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CoGNiTiViSmo, CorPorALiDADE E
CoNSTruÇÕES: NoVAS PErSPECTiVAS NoS
ESTuDoS DA LiNGuAGEm
Paulo Henrique Duque
Marcos Antonio Costa
RESUMO:
As estruturas de conhecimento, que guiam nossas percepções, são, em grande medida, reguladas por uma
contínua interação entre práticas socioculturais, esquemas cognitivos, capacidades corporais e linguagem.
Neste artigo, pretendemos demonstrar que a linguagem
está relacionada a processos criadores a partir dos quais
organizamos e damos forma às nossas experiências.
PALAVRAS-CHAVE: Cognição; corporalidade; construções gramaticais.
introdução
A
final, para que usamos a linguagem? A partir de quais mecanismos se
efetua sua função “representativa”? Que relações podem existir entre
os sistemas conceptuais e nossa estrutura sensório-motora? Propomonos, aqui, a pensar essas e outras questões sob o enfoque de um modelo teórico
ancorado na concepção de linguagem como manifestação dinâmica da cognição
e que, portanto, adota o pressuposto de que as categorias linguísticas se organizam e se estruturam a partir de princípios que também regem outros sistemas
cognitivos. Hoje, a Linguística Cognitiva, atenta às acomodações mútuas entre
linguagem, cognição e corporalidade, assume para si a tarefa de descrever e explicar a configuração gramatical das línguas concomitantemente aos processos
de construção conceptual. Tais processos atestam as relações entre o organismo
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e o seu meio e entre os aspectos estruturais e a dinâmica sociocultural.
Fundamentados nessa perspectiva, defendemos que a linguagem esteja
relacionada a atividades cognitivas realizadas pelos sujeitos conjuntamente.
É a partir dessas atividades que organizamos e damos forma às nossas experiências. O pressuposto aqui defendido nos leva a considerar os processos
de categorização, que permitem ordenarmos cognitivo e discursivamente o
mundo à nossa volta, como função primária da linguagem. Nesse sentido, o
foco de investigação se desloca para o trabalho de elaboração, organização e
manipulação de esquemas interpretativos e imaginativos relacionados à natureza construcionista das operações cognitivas. Em última instância, são esses
esquemas que nos permitem conhecer e falar sobre tudo aquilo que nos cerca.
Advoga-se, pois, que o aspecto semiológico das categorias linguísticas decorre,
sobremaneira, das inter-relações entre nossa constituição biológica e nossas experiências no mundo, o que resulta em estruturas de conhecimento organizadas na forma de domínios cognitivo-culturais. De acordo com Johnson1 , esses
domínios – que funcionam como padrões recorrentes, estrategicamente regulando as atividades de ordenação das experiências – organizam-se como estruturas significativas principalmente a partir de nossos movimentos corporais no
espaço, nossas manipulações de objetos e nossas interações psicológicas, físicas
e sociais. São esses domínios que configuram expectativas acerca dos objetos,
dos eventos, das ações, enfim, de nosso entorno em geral, guiando-nos no
processo de compreensão e construção do conhecimento. Toda atividade de
categorização, por conseguinte, evoca um ou mais desses domínios, e mesmo
as situações não-familiares são inicialmente semantizadas recorrendo-se a um
padrão relativamente semelhante.
São os domínios cognitivo-culturais que nos permitem fazer uma série
de inferências no curso do processamento discursivo, o mesmo acontecendo quando nos encontramos diante de acontecimentos do dia-a-dia. Se, por
exemplo, deparamo-nos com o tema “transporte público” (ou recorremos a
um ônibus como uma alternativa de transporte), mobilizamos conhecimentos
sobre condutor, trocador, passagem, passageiros, pontos de parada, trânsito, horários etc. e mais, dependendo do cenário em que estivermos inseridos, políticas
1
JOHNSON, M. The body in the mind: The bodily basis of meaning, imagination, and
reason. Chicago: University of Chicago Press, 1987.
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públicas, liberação de carbono, violência urbana, desigualdades sociais, novas tecnologias, alternativas de condução etc., uma vez que os domínios cognitivo-culturais apresentam limites difusos e tendem a associar-se em redes. Os sistemas
linguísticos não podem ser devidamente considerados de forma autônoma,
excluídos do âmbito desses domínios. Recorremos às unidades da língua a
fim de darmos conta de conteúdos e categorias, resolvermos certas disponibilidades e atingirmos objetivos considerados importantes, construindo, assim,
uma ordem física e social para o mundo2. O ato de categorizar atesta os links
entre nossas ações e nossos processos cognitivos. Corpo, cognição e interação
fornecem a base do nosso sentido do que seja a realidade. Se não há interação
entre os organismos e entre os organismos e o ambiente à sua volta, não há o
que categorizar. A investigação acerca do modo como pensamos e produzimos
conhecimento, a compreensão de como categorizamos é “um ponto central
para a compreensão daquilo que nos faz humanos”3.
Como consequência dessa maneira de se conceber os processos de categorização, é possível afirmarmos que a linguagem, antes de refletir objetivamente
a realidade, impõe ao mundo uma organização, interpretando-o e construindoo. Por sua vez, a gramática, como sistema de configuração conceptual, atesta o
modo pelo qual nós apreendemos sinergicamente e, ao mesmo tempo, arquitetamos o nosso entorno biopsicossocial. Segundo Talmy4, conceptualizamos e
exprimimos linguisticamente interações físicas por meio de esquemas pré-conceptuais (que se fundamentam na nossa experiência cinestésica) e interações
psicológicas e sociais, metaforicamente, em termos desses mesmos esquemas.
Cumpre investigar, portanto, de que modo e em que medida ocorre tal processo. Um empreendimento de caracterização da linguagem, nesses termos,
exige obviamente duas difíceis missões: a elaboração de um aparato teóricometodológico que favoreça a descrição e a análise dos fenômenos linguísticos
considerando variáveis situacionais, biológicas, psicológicas, históricas e socioculturais e a integração de abordagens de disciplinas diversas em prol de uma
2
3
4
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JACOB, E, K., SHAW, D. “Sociocognitive perspectives on representation”. Annual Review
of Information Science and Technology, 33: 131-185, 1998.
LAKOFF, G. Women, Fire and Dangerous things. Chicago: The University of Chicago Press,
1987. p.5.
TALMY, L. “Force dynamics in language and cognition”. Cognitive Science, 12: 49-100,
1988.
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teoria neural da linguagem. Feldman5 justifica a segunda missão demonstrando
que outras habilidades humanas, como o controle motor, a audição e a visão,
têm sido estudadas como sistemas neurais por muitas décadas, mas a linguagem ainda é, muitas vezes, tratada como um sistema de símbolos abstratos não
relacionados ao cérebro ou à experiência humana.
Admitimos que, atualmente, detalhes de como as palavras ou frases são
processadas no cérebro não são conhecidos e ainda não há metodologias para
se descobrir. De acordo com Feldman6 é prematuro formular teorias de vinculação explícita ligando a linguagem à computação neural. Em compensação,
os teóricos em geral estão satisfeitos com os modelos sugestivos, que apesar de
não serem precisos, têm conduzido a experimentos interessantes, a partir dos
quais as ciências cognitivas gradativamente vêm revelando muito sobre como
nossos cérebros produzem a linguagem e o pensamento.
Focados nas duas missões descritas acima, pretendemos neste artigo: a)
apresentar um pequeno histórico da investigação sobre a interface cognição,
linguagem e cultura e b) caracterizar a linguagem adotando modelos e propostas teóricas que tenham por base uma perspectiva corporificada de cognição. Nesse sentido, organizamos o texto de modo a apresentar o histórico das
investigações e premissas que, no século XX, subsidiaram a perspectiva em
tela e a tratar mais especificamente da caracterização preliminar do que seria
uma abordagem fundamentada na integração entre linguagem, cognição e
corporalidade.
1. Linguagem e estruturas simbólicas: a revolução cognitivista
Em meados do século XX, a comparação entre máquina e mente humana tornou-se tão comum que, em pouco tempo, psicólogos e neurocientistas
passaram a afirmar que o cérebro era um computador,
(...) Isso porque as atividades do computador em si pareciam,
em alguns aspectos, semelhantes aos processos cognitivos. Os
5
6
FELDMAN, J. A. From Molecules to Metaphors: a neural theory of language. Cambridge, Ma:
Bradford MIT Press, 2006.
Idem.
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computadores recebem informação, manipulam símbolos, armazenam itens na “memória” e buscam-nos novamente, classificam inputs, reconhecem padrões e assim por diante. Na
verdade, os pressupostos que servem de base à maior parte dos
trabalhos contemporâneos sobre processamento de informação
são surpreendentemente parecidos com os da psicologia introspeccionista do século XIX, embora sem a introspecção propriamente dita7.
Com o objetivo de compreender os processos mentais com base num
modelo computacional, em 1956, realizou-se em Dartmouth, nos Estados
Unidos, um congresso de seis semanas que reuniu os maiores especialistas em
Ciências da Computação da época. No evento, Noam Chomsky, professor de
Linguística no Instituto de Tecnologia de Massachusetts, demonstrou que a
linguagem humana possuía propriedades formais que poderiam ser tomadas
como verdadeiros programas cognitivos. O encontro passou a ser considerado
o momento oficial da revolução cognitiva.
O modelo cognitivista proposto por Noam Chomsky, desenvolvido
pela teoria gerativa, embora se posicionando contrariamente ao pensamento
behaviorista, que serviu de inspiração ao estruturalismo norte-americano,
reafirma a dicotomia entre determinismos internos e externos ao efetuar a
distinção entre competência (o conhecimento da língua por parte do falanteouvinte) e desempenho (o uso da língua em situações concretas). Ao asseverar a “pobreza dos estímulos” frente à enorme capacidade de conhecimento
que somos capazes de demonstrar, Chomsky opta por uma teoria linguística
internalista interessada em descobrir uma realidade mental subjacente ao
uso da língua. O desempenho do falante, portanto, é usado exclusivamente
como fonte de dados para determinação da competência, sendo esta, tomada como objeto primário de sua investigação. De acordo com Chomsky8,
embora os nossos sistemas cognitivos reflitam, de algum modo, a nossa experiência no mundo, uma análise cuidadosa das propriedades desses sis7
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NESSIER, U. Cognition and reality: principles and implications of cognitive psychology.
WH Freeman, 1976. p.5-7.
CHOMSKY, N. O conhecimento da língua. Sua natureza, origem e uso. Lisboa: Caminho,
1994. p.15.
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temas, por um lado, e da experiência que leva à sua formação, por outro,
mostra que “existe entre ambos uma lacuna considerável – na realidade,
um abismo”. Na perspectiva gerativista, caberia ao analista determinar “o
equipamento inato que serve para preencher a lacuna entre experiência e
conhecimento atingido”.
A tese de que a linguagem humana é uma faculdade inata, uma espécie
de “órgão mental”, foi encontrando evidências cada vez mais significativas.
Especialistas do mundo inteiro, ao estudarem a linguagem de crianças até os
três anos de idade, em diferentes línguas, sob situações diversas de aprendizado, relatam as mesmas regularidades anunciadas por Chomsky. Além disso,
pesquisas de áreas correlatas sobre lesões no cérebro reforçaram essas constatações. A chamada revolução das Ciências Cognitivas se deve, dentre outros
motivos, ao deslocamento da Linguística para a área das Ciências Naturais.
De acordo com Chomsky, o aspecto relevante da linguagem é o procedimento
recursivo (gerativo), que se sustenta numa gramática universal inata. A Linguística seria, então, uma ciência da mente/cérebro, mais próxima das Neurociências, da Biologia e da Física, do que da gramática estrutural tradicional
ou da Sociologia.
Em diferentes momentos de sua produção bibliográfica, Chomsky
tem ratificado o seu compromisso de oferecer uma explicação para o funcionamento de diferentes módulos cognitivos a partir daquele que ele compreende como sendo o responsável pela faculdade da linguagem. O autor
esclarece:
Por que estudar a linguagem? Há muitas respostas possíveis
e, ao focalizar algumas delas, não pretendo, é claro, depreciar
outras ou questionar sua legitimidade. Algumas pessoas, por
exemplo, podem simplesmente achar os elementos da linguagem fascinantes em si mesmos e querer descobrir sua ordem
e combinação; sua origem na história ou no indivíduo, ou os
modos de utilização no pensamento, na ciência ou na arte, ou
no intercurso social normal. Uma das razões para estudar a linguagem – e para mim, pessoalmente, a mais premente delas – é
a possibilidade instigante de ver a linguagem como um “espelho
da alma”, como diz a expressão tradicional. Com isto não quero
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apenas dizer que os conceitos expressados e as distinções desenvolvidas no uso normal da linguagem nos revelam os modelos
do pensamento e o universo do “senso comum” construídos
pela mente humana. Mais instigante ainda, pelo menos para
mim, é a possibilidade de descobrir, através do estudo da linguagem, princípios abstratos que governam sua estrutura e uso,
princípios que são universais por necessidade biológica e não
por simples acidente histórico, e que decorrem de características mentais da espécie9.
Para Chomsky10 (1988), a investigação acerca do fenômeno da linguagem deve estabelecer, como principais metas, as respostas para as seguintes
questões: a) Qual é o conteúdo do sistema de conhecimento do falante de
uma determinada língua? O que é que existe na mente desse falante que lhe
permite falar/compreender expressões e ter intuições de natureza fonológica,
sintática e semântica sobre a sua língua?; b) Como é que esse sistema de conhecimentos se desenvolve na mente do falante? Que tipo de conhecimento
é necessário pressupor que a criança traz a priori para o processo de aquisição
de uma língua particular que seja capaz de explicar o desenvolvimento dessa
língua na sua mente?; c) Como é que o sistema de conhecimentos adquiridos
é utilizado pelo falante em situações discursivas concretas? e d) Quais são os
sistemas físicos no cérebro do falante que servem de base ao sistema de conhecimentos linguísticos?
A investigação em torno dessas questões se dá a partir da concepção de
que a gramática interiorizada consiste de um dicionário mental das formas da
língua e de um sistema de princípios e regras atuando computacionalmente
sobre essas formas, ou seja, construindo representações mentais constituídas
por combinações categorizadas das formas linguísticas. A gramática determinaria o modo como essas representações se articulam com outros sistemas
conceptuais da mente humana ou com o sistema neuromuscular que determina a pronúncia das expressões.
9
10
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CHOMSKY, N. Reflexões sobre a linguagem. São Paulo: Cultrix, 1980. p. 9.
CHOMSKY, N. Language and problems of knowledge: the Managua lectures. Cambridge: The
MIT Press, 1988.
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2. Linguagem, cognição e cultura: a segunda revolução cognitivista
De acordo com Croft & Cruse11, em termos gerais, a segunda etapa da “virada cognitiva” desenvolve-se a partir de três importantes pressupostos básicos:
a) Não há separação entre as faculdades cognitivas: ao contrário do que postula o paradigma chomskyano, a linguagem não constitui um módulo
inato, separado de outras capacidades cognitivas do ser humano. Dessa
forma, essa segunda etapa dos estudos cognitivistas se propõe a descrever,
simultaneamente, processos cognitivos, sociointeracionais e culturais. As
representações do conhecimento linguístico, nesse enfoque, são essencialmente do mesmo tipo de outros mecanismos conceptuais, amplamente
investigados pela Psicologia, tais como categorização, conceptualização,
organização gestáltica, mapeamento conceptual, analogia, esquematização, inferenciação, dentre outros, de fundamental importância para a
emergência, estruturação e recuperação do conhecimento linguístico;
b) A estrutura da gramática de uma língua reflete diferentes processos de conceptualização: de acordo com Langacker12, gramática é conceptualização.
Para o autor, a gramática de uma língua é o reflexo de diferentes processos de conceptualização, uma vez que até mesmo os padrões de combinação das diversas estruturas de uma dada língua são decorrentes de processos que se dão no nível do sistema conceptual humano. Tal afirmação
sugere que a linguagem é simbólica em todos os seus aspectos, inclusive
os morfossintáticos. Essa perspectiva simbólica da gramática possibilitou
o desenvolvimento da Gramática Cognitiva (cf.: LANGACKER, 1987) e
das chamadas Gramáticas de Construções13.
11
12
13
CROFT, W. & D. Alan Cruse. Cognitive Linguistics. Cambridge: Cambridge University
Press, 2004.
LANGACKER, R. Foundations to Cognitive Grammar. v.1. California: Stanford
University Press, 1987.
Desenvolvidas principalmente por:
CROFT, W. Radical Construction Grammar: Syntactic Theory in Typological Perspective. Oxford: Oxford University Press, 2001.
FILLMORE. C., KAY, P. & O’CONNOR, M. C. Regularity and Idiomaticity in Grammatical Constructions: the case of ‘let alone’. Language 63(3), 1988. p. 501-38.
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c) O conhecimento linguístico emerge e se estrutura a partir do uso da linguagem: de acordo com esse pressuposto, o conhecimento linguístico emerge
e se estrutura a partir do uso efetivo da língua em eventos comunicativos
reais (Usage Based Model). Isto é, categorias e estruturas gramaticais são
construídas a partir de processos cognitivos gerais que aplicamos às diversas situações de uso real da linguagem.
Para muitos autores, essa nova perspectiva ganha força a partir dos estudos sobre categorização cognitivo-cultural14, passando pelos trabalhos de análise linguística de Fillmore15 e de Lakoff e Johnson16, e culminando nos trabalhos de Lakoff (1987), Langacker (1987), Fauconnier 17 e Lakoff e Johnson18.
14
15
16
17
18
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GOLDBERG. A. Constructions: A Construction Grammar Approach to Argument Structure.
Chicago: Chicago University Press, 1995.
_____. “Constructions at Work: The Nature of Generalization”. Language. Oxford University Press, 2006.
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De acordo com a teoria sobre o pensamento metafórico, proposta por
George Lakoff e Mark Johnson no livro Metaphors we live by (1980), a metáforas é – ao contrário do que prega a tradição, que a vê como simples
ornamento estilístico – um recurso de pensamento (e, portanto, um aparato
cognitivo) que nos permite estruturar conceitos a partir de outros conceitos
mais básicos e concretos, sendo nossa experiência direta do mundo – proporcionada por nosso corpo19 – a responsável pelo desenvolvimento desse
processo. No livro, metáforas como “DISCUSSÃO é GUERRA” e “TEMPO é DINHEIRO” são empiricamente demonstradas através de vários
exemplos encontrados na língua portuguesa. Em Philosophy in the flesh: the
embodied mind and its challenge to Western thought, livro escrito por Lakoff
e Johnson em 1999, é apresentada uma nova versão da teoria conceptual da
metáfora: a Teoria Neural da Metáfora. Essa nova elaboração – motivada pelas descobertas em neurobiologia e buscando evidências para sua sustentação
no campo da neurociência experimental – assume, com ênfase, a hipótese
da cognição corporificada (embodied cognition) e se posiciona criticamente
frente à tradição filosófica ocidental, de acordo com a qual a capacidade
para raciocinar é separada e independente da percepção sensorial e do movimento corporal20. A orientação cognitivista elaborada por Lakoff e Johnson
defende que a razão insurge das capacidades corporais. Essa constatação se
apoia em dois postulados21:
a) a razão humana é uma forma de razão animal, uma razão inextricavelmente vinculada aos nossos corpos e às peculiaridades dos nossos cérebros;
b) nossos corpos, cérebros e interações com o ambiente fornecem as bases
essencialmente inconscientes da nossa metafísica comum, isto é, do nosso
sentido cotidiano do que é a realidade.
19
20
21
A “corporalidade” tem sido um dos caminhos explicativos seguidos por pesquisadores contemporâneos. De acordo com esse enfoque, as habilidades cognitivas e comunicacionais
dos sujeitos são interpretadas como fenômenos resultantes de sua existência como sistemas
físicos em contínua interação com seu ambiente humano e não-humano.
No modelo tradicional, embora a razão possa receber informações da percepção e o movimento possa ser uma consequência dela, nenhum aspecto da percepção ou do movimento é
tratado como parte da razão (LAKOFF e JOHNSON, 1999, pp. 16-17)
Idem 16, p. 17.
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Para os autores,
O que chamamos de conceitos são estruturas neurais que nos
permitem caracterizar nossas categorias mentais e raciocinar sobre elas. Categorias humanas são tipicamente conceituadas em
mais de uma maneira, em termos daquilo que são chamados
de protótipos. Cada protótipo é uma estrutura neural que nos
permite fazer algum tipo de tarefa inferencial ou imaginativa
em relação a uma categoria. Casos típicos de protótipos são
usados ao se fazer inferências sobre os membros da categoria, na
ausência de qualquer informação especial contextual22.
De acordo com esse enfoque, “todas as estruturas conceituais são estruturas neurais” e “muito de inferência conceptual é, portanto, inferência
sensório-motora”23. Por exemplo, empurrar, puxar, carregar e equilibrar são
conceitos que compreendemos “através do uso de partes dos nossos corpos
e nossa habilidade de manipular e mover objetos, especialmente com nossos
braços, mãos e pernas”24. Alguns modelos computacionais, simulando estruturas neurais, oferecem evidências da conjunção entre conceptualização e percepção25. Esses modelos vêm atestando que não há distinção absoluta entre as
dimensões perceptual e conceptual. Em suma, demonstram que, assim como
o sistema conceptual faz uso de partes importantes do sistema sensório-motor
para construir o sentido, o sistema sensório-motor é responsável pela formatação do sistema conceptual.
Baseados em Women, fire and dangerous things, Fauconnier e Turner
desenvolveram a Teoria da Mesclagem. Uma formulação inicial dessa teoria
se encontra no artigo “Conceptual Integration and Formal Expression”26.
22
23
24
25
26
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Idem 16, p. 17.
Idem 16, ibidem.
Idem 16, p. 36.
Regier’s Model for Learning Spatial-Relations Terms; Bailey’s Model for Learning Verbs of Hand
Motion; Narayanan’s Model of Motor Schemas, Linguistic Aspect and Metaphor. Citados por
Lakoff e Johnson (1999, p. 39-41).
FAUCONNIER, G. e TURNER, M. “Conceptual Projections and Formal Expression”,
Journal of Metaphor and Symbolic Activity 10/3, Hillsdale, NJ: Lawrence Erlbaum Associates,
p. 183-203, 1995
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A mesclagem conceptual é uma teoria geral da cognição que descreve a capacidade humana de imaginar identidades entre conceitos e integrá-los para criar e
formar novos modelos de pensamento e ação. Fauconnier & Turner27 afirmam
que, embora a mesclagem contemple outros processos cognitivos (tais como
a metáfora, metonímia, recursividade, modelagem cognitiva, categorização e
frame), deve-se enfatizar que se trata de um processo mais amplo e dinâmico. A combinação de domínios pode acontecer de diferentes maneiras. Desse
modo, de acordo com a teoria, a mesclagem é um processo cognitivo que
opera sobre dois espaços mentais28 para obter um terceiro espaço.
Apesar da relevância desses estudos, a integração entre processos cognitivos e rotinas significativas da vida em sociedade permanece frágil. Nesse sentido, novas tendências buscam reconhecer o papel dos aspectos socioculturais
na organização, estruturação e no funcionamento dos sistemas conceptuais.
Desse modo, abre-se um caminho que nos possibilita o diálogo entre as questões construídas pela epistemologia da corporalidade.
3. A teoria neural da linguagem e a gramática de construções
corporificada
De acordo com Feldman29, os estudos mais recentes em neurociências e
ciências comportamentais sugerem que a linguagem seja a pedra angular das
ciências cognitivas como um todo. Uma das propostas de integração está em
curso há duas décadas, em Berkeley. Trata-se do projeto NTL (Neural Theory
of Language), que investiga a aprendizagem e uso da linguagem a partir de um
27
28
29
FAUCONNIER, G. e TURNER, M. Conceptual projection and middle spaces. Report
9401. San Diego: University of California, April 1994.
_ ____. Conceptual Integration, A Lecture Series in Cognitive Science, Trento: Instituto Trentino di Cultura/ Instituto perla Ricerca Scientifica e Tecnologica, 1997.
A contribuição do Modelo dos Espaços Mentais (FAUCONNIER, 1994) erige-se a partir da
postulação de um modelo cognitivo de análise para os fenômenos de linguagem natural. De
acordo com esse modelo, os Espaços Mentais (EM) – produzidos como funções da expressão
linguística que os suscita e do contexto que os configura - são operadores do processamento
cognitivo. Como domínios dinâmicos, os EM organizam-se enquanto pensamos e falamos
e, por isso, são diferentes e novos a cada semiose.
FELDMAN, J. A. From Molecules to Metaphors: a neural theory of language. Cambridge, Ma: Bradford MIT Press, 2006.
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sistema neural corporificado. Para isso, são usadas técnicas analíticas, experimentais e de modelagem. O principal objetivo dos pesquisadores do NTL é
construir modelos computacionais que demonstrem suas afirmações teóricas.
Os estudos realizados pelo grupo do NTL fornecem um novo olhar sobre a
linguagem: como continuidade do todo mente, corpo e sociedade. O grande
desafio do grupo tem sido desenvolver uma metodologia que, além de considerar tal inseparabilidade, seja suficientemente rigorosa para suportar uma
análise formal e computacional. Nesse sentido, a abordagem do NTL postula
diferentes níveis de descrição, explicitamente espelhando os níveis de descrição de ciências naturais, tais como biologia, química e física.
A gramática que corresponde ao referencial cognitivista proposto pelo
NTL é a Gramática de Construções Corporificada (doravante GCC), desenvolvida por Benjamin Bergen e Nancy Chang, em 2005. Na perspectiva defendida
por esses autores, a ênfase é dada ao processamento linguístico, em especial à
compreensão da linguagem. Diferentemente de outras abordagens, o modelo
GCC postula que “construções” formam a base do conhecimento linguístico
e volta seu foco para o modo como “construções” são processadas on-line. De
acordo com Bergen30, as construções gramaticais fornecem sentido de três maneiras diferentes: a) fornecendo significado da mesma forma que os itens lexicais: os casos mais comuns são as expressões idiomáticas (“chutar o balde”) e os
esquemas genéricos (de movimento causado, resultativos etc.); b) especificando
propriedades de significado de ordem mais abstrata, como noções de aspecto
e pessoa e c) juntando as contribuições semânticas das palavras aos esquemas
genéricos que determinam quem fez? o que fez? a quem fez? como fez? etc.
Em suma, a noção de construções, numa perspectiva corporificada, deve
dar conta das representações biologicamente plausíveis da experiência e compreensão do mundo por parte do ouvinte/ leitor. Tal conhecimento é codificado por meio de esquemas que descrevem os papéis envolvidos e suas relações
no cumprimento da experiência esquemática a ser interpretada. Essas funções
e relações podem fornecer uma rica fonte de inferências para a compreensão
da linguagem.
30
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BERGEN, B.K. “Embodied concept learning”. In PACO CALVO and TONI GOMILA
(eds.) Handbook of Cognitive Science. Elsevier, 2008.
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Duque, Paulo Henrique; Costa, Marcos Antonio
Cognitivismo, corporalidade e construções: novas perspectivas nos estudos da linguagem
De acordo com Lakoff & Johnson31, em uma mente corporificada, o
mesmo sistema neural, engajado na percepção ou no movimento corporal,
desempenha um papel central na concepção, ou seja, as mesmas estruturas
neurais responsáveis pela percepção, pelo movimento e pela manipulação
de objetos são também responsáveis pela conceptualização e pelo raciocínio.
Nesse contexto, uma abordagem corporificada deve conceber o significado
envolvendo a ativação do conhecimento perceptual, motor, social e afetivo na
caracterização do conteúdo dos enunciados. De acordo com Bergen32, exposto à língua num determinado contexto, o indivíduo a apreende (e aprende)
recorrendo ao emparelhamento de “pedaços” da língua com experiências perceptuais, motoras, sociais e afetivas reais. Em casos posteriores de uso da língua, quando os estímulos motores perceptivos, sociais, afetivos originais não
estão presentes no contexto, as experiências são recriadas e revividas através da
ativação de estruturas neurais. Nesse sentido, o significado é “corporificado”
uma vez que depende de o indivíduo ter vivenciado experiências em seu corpo
no mundo real, onde são recriadas experiências em resposta aos inputs linguísticos. Por outro lado, essas experiências são revividas para produzir outputs
linguísticos.
No que diz respeito à GCC especificamente, esta difere dos outros modelos de Gramáticas de Construções, por três motivos básicos: 1 – o seu formalismo foi construído ao lado de um mapeamento detalhado do formalismo de estruturas neurais computacionais; 2 - foi concebida para formar um
núcleo de compreensão da linguagem computacional e sistemas de produção
e, como tal, deve ser explícita o suficiente para servir a fins de processamento
da linguagem, em vez de conhecimentos linguísticos simples e 3 - incorpora
mecanismos linguísticos como esquemas imagéticos, frames, projeções metafóricas e metonímicas, espaços mentais e mesclagem conceptual em suas estruturas gramaticais, permitindo diferentes mecanismos de interface.
A crença em que a compreensão da linguagem se baseia na recriação
interna de experiências corporificadas anteriores é corroborada por recentes
pesquisas sobre o cérebro, as quais mostram que as áreas do córtex motor e
pré-motor associadas a partes específicas do corpo (mão, pé e boca, por exem31
32
Idem 16, p. 37-38.
Idem 26, p. 3.
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plo) tornam-se ativas na resposta ao se fazer referência linguística às partes do
corpo. Com a intenção de apresentar evidências de uma mente corporificada, baseado em uma experiência que testou o grau em que as representações
motoras humanas foram ativadas para a compreensão da linguagem, Bergen
(2008) constatou que, quando os indivíduos são convocados para realizar uma
ação física (como mover sua mão para longe ou em direção ao seu corpo,
em resposta a uma frase), há certa demora para executarem ações incompatíveis com as descritas na sentença33. Essa interferência da compreensão da
linguagem sobre a ação e execução de uma ação real com o corpo sugere que,
enquanto processamos a linguagem, ativamos imagens motoras, utilizando as
estruturas neurais dedicadas ao controle motor.
Esse e outros resultados semelhantes de várias pesquisas sugerem um
papel concreto para as experiências motoras e perceptivas corporificadas na
compreensão da linguagem. Nesse processo, os indivíduos automaticamente
ativam a imaginação ou simulam cenários descritos pela linguagem. As simulações mentais realizadas podem incluir detalhes motores, pelo menos no nível
de um efetor34 especial, que seria usado para executar as ações descritas, e as
informações de percepção sobre a trajetória do movimento (longe ou perto,
para cima ou para baixo), como a forma e a orientação dos objetos descritos.
Experimentos envolvendo modelagem computacional de redes neurais,
que têm em Jerome Feldman um de seus expoentes, também oferecem evidências indiretas da conexão entre conceptualização e percepção. Ao simularem estruturas neurais, esses modelos demonstram que o nosso cérebro,
em princípio, pode realizar tarefas sensório-motoras e conceptuais, simultaneamente.
Dessa forma, de acordo com Bergen, Narayan e Feldman35, o processo
de compreensão de qualquer aspecto da língua tem uma relação direta com a
realização de simulações mentais (de percepção e movimento). O estudo de
33
34
35
Cadernos 42.indb 101
Por exemplo, se a sentença for Andy deu-lhe a pizza, os indivíduos levam mais tempo para
apertar um botão, o que os obriga a mover as mãos para longe do corpo e o inverso é verdadeiro para frases indicando movimentos em direção oposta ao corpo, como você deu a pizza
de Andy.
Efetores são órgãos que sediam as reações do indivíduo aos estímulos recebidos.
FELDMAN & S. NARAYANAN. Embodied Meaning in a Neural Theory of Language. Brain
and Language 89, 385-392, Elsevier Press, 2004.
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Cognitivismo, corporalidade e construções: novas perspectivas nos estudos da linguagem
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como esses aspectos da linguagem participam da construção de um imaginário
mental é conhecido como simulação semântica36.
A avaliação da maneira como partes da linguagem evocam a simulação depende de, antes, identificarmos que partes são essas. Segundo Bergen
& Chang37, palavras de certos tipos, tais como nomes e verbos, contribuem
diretamente para o conteúdo da simulação. Menos obviamente, no entanto,
outros elementos linguísticos, como as palavras funcionais, têm repercussões
diretas na simulação. Preposições, por exemplo, podem indicar trajetórias de
movimentos a serem incluídas na simulação, como em (01):
(01) A carreta estava em alta velocidade e bateu atrás de um
caminhão-baú, projetando os veículos contra a mureta de proteção. O caminhão de Renato ficou preso na mureta por estar
mais leve. Já o de Élio, rolou ribanceira abaixo (globo.com, em
16/02/2009).
Ou relações espaciais como em (02):
(2) Moradores de dois bairros de Angra, próximos ao trecho interditado da BR-101, abandonam suas casas38.
Padrões frasais também podem contribuir para a simulação. Um exemplo são as construções ditransitivas, que contêm sujeito, verbo e dois objetos,
como em (03):
(3) Aos 44 minutos, Cafu passou a bola para Kaká, que chutou
de fora da área, acertando um chute no ângulo, sem chances
para o goleiro.
36
37
38
A simulação semântica tem sido aplicada a questões de representação do modelo baseado
em frames. Em colaboração com os membros do projeto FrameNet, apresenta-se como a
GCC pode ser usada para unir as lacunas entre os corpora semanticamente estruturados do
FrameNet e os mais ricos mecanismos inferenciais fornecidos pela simulação.
BERGEN, N. CHANG & S. NARAYAN. Simulated action in an embodied construction grammar. Proceedings of the 26th Annual Meeting of the Cognitive Science Society.
Chicago: IL, 2004.
Extraído do Correio Braziliense, em 02/10/2009.
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O padrão oracional, apresentado em (03), pode carregar um conteúdo
simulativo que, em particular, codifica a transferência do primeiro objeto (a
bola) prevista pelo sujeito (Cafu) para o segundo objeto (Kaká). Há evidências
de que a significação de padrões frasais, como o ditransitivo, vem da possibilidade de usá-los para descrever transferência de cenários, usando verbos que
não designam transferência, como em (04):
(4) No lance em que tocou a bola para Kaká, Ramires sofreu
falta dura de Kljestan e ficou caído no campo.
Cada parte da linguagem que emparelha alguma forma com um significado (morfemas, palavras, padrões frasais e expressões idiomáticas) – construção – pode evocar simulações. A evidência de que o processamento de
enunciados resulta na ativação de imagens perceptuais e motoras não implica
que isso aconteça diretamente sem mediação.
Bergen39 apresenta dois tipos de evidência da existência de um estágio
intermediário de representação entre a forma e a simulação que elas evocam.
Em primeiro lugar, juntar palavras dentro de uma configuração aceitável durante a produção linguística, ou determinar qual seria o conjunto de palavras
em um enunciado e suas relações durante a compreensão linguística, não
requer o acesso ao significado enciclopédico detalhado da construção envolvida. De preferência, as palavras são combinadas em parte sobre a base de
generalizações sobre seus significados. Assim, a fim de participar como verbo
numa construção ditransitiva, este deve ser interpretado como codificador
de apenas um entre vários tipos de transferência bem sucedida (metafóricas
ou não) de um objeto a um recipiente, mas, para uma sentença ditransitiva
ser interpretada como tal, não são colocadas restrições semânticas específicas
sobre o constituinte verbal no nível do detalhe motor ou perceptual - nós
não temos como saber qual efetor está sendo usado, de que jeito está sendo
usado ou qual a direção na qual o movimento será codificado. Nessas condições, não seria o caso de um verbo de transferência causada pelos pés (como
39
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BERGEN, B. K. Simulated Action in an Embodied Construction Grammar. In Proceedings of
the Twenty-Fifth Annual Conference of the Cognitive Science Society. (With Nancy Chang
and Shweta Narayan), 2004.
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Cognitivismo, corporalidade e construções: novas perspectivas nos estudos da linguagem
“chutar”) poder ocorrer em construções ditransitivas, enquanto um verbo
de transferência causada pelas mãos (como “tocar”), não. Essa ambivalência
que as construções, para ser combinadas, demonstram em relação ao detalhe
simulativo é bastante motivada. Poderia ser muito oneroso para o usuário da
linguagem se, ao processar qualquer enunciado, lhe fosse requerido acessar
o conteúdo motor e perceptual detalhado de cada uma das possíveis interpretações do enunciado. De preferência, unidades linguísticas parecem codificar só generalizações sobre aspectos da ação. No caso de uma construção
ditransitiva, isso significa saber se as unidades linguísticas envolvidas podem
ou não ser interpretadas como efetuando uma transferência de posse de um
ou vários tipos. Tais generalizações, também conhecidas como esquematizações ou parametrizações, constituem representação de significado puramente
linguístico. No entanto, facilitam a simulação por serem fortemente ligadas
aos detalhes simulativos sobre os quais são esquematizadas. A segunda evidência de que representações de significados linguísticos são diferentes do
conteúdo perceptual e motor a que se conectam deriva da possibilidade de
compreender sentenças que envolvam novos conteúdos de simulação. Se a
compreensão da linguagem fosse fortemente restrita às possibilidades motoras e perceptuais reais proporcionadas pela nossa experiência de mundo,
então não deveríamos ser hábeis para compreender a linguagem que conflita
significativamente com essa experiência. Mas nós sabemos que as pessoas
podem fazer isso. Sentenças como as destacadas em (05) são inteiramente
interpretáveis e simuláveis.
(5) Em Saramandaia tudo era possível. Quando o Coronel Zico
se aborrecia e levava uma toalha ao nariz, começavam a sair formigas. Isso aconteceu durante toda a novela, até que no último
capítulo, acredite, a casa dele afundou num imenso formigueiro.
Outra cena clássica foi a explosão da Dona Redonda. Num belo
dia ela vinha caminhando pela praça aí começou a inchar, inchar
e boom! Explodiu! Lembro-me que a mão dela caiu na mesa do
Professor Aristóbulo. Por falar nele, nas noites de lua cheia ouviase o uivado aterrorizante. Sim, ele virava lobisomem. Já a fogosa
Marcina, quando se excitava, a fumaça subia. Seu colchão era trocado quase todo dia. Sempre amanhecia queimado pelo fogo da
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morena. Mas nada se comparou a clássica cena que encerrou
a novela. O personagem João Gibão, brilhantemente interpretado por Juca de Oliveira, estava encurralado numa encosta.
Quando tudo parecia perdido, ele abriu as asas e alçou vôo40.
Enquanto as outras abordagens enfatizam a modelagem do conhecimento linguístico ao invés do processamento on-line, o modelo de GCC toma
como certo que as construções formam a base da linguística cognitiva e se
concentra na verificação de como essas são processadas na compreensão linguística on-line (ou dinâmica). Além disso, a GCC objetiva verificar como as
construções de uma determinada língua se relacionam com o conhecimento
corporificado no processo de compreensão. Sendo assim, grande parte da investigação até hoje, em GCC, tem sido focada no desenvolvimento de aparatos formais que possam descrever as construções de línguas naturais. Um
aparato formal, no nosso entendimento, também precisa ser capaz de descrever os conceitos corporificados que as construções acionam no processo de
compreensão da linguagem dinâmica.
Dessa forma, o processo de compreensão de enunciados envolve a ativação interna de “esquemas corporificados”, juntamente com a simulação
mental dessas representações no contexto de geração de um rico conjunto de
inferências. Construções são importantes na abordagem em tela porque fornecem a interface entre conhecimentos fonológicos e conceituais, evocando,
para isso, estruturas semânticas corporificadas.
Consideremos o exemplo (06):
Roberto Carlos jogou flores para a multidão41.
Em (06), uma análise construcional presume que a estrutura argumental da atividade ditransitiva impõe uma interpretação em que uma entidade
(Roberto Carlos) realiza uma ação (jogar) que causa em outra entidade (multidão) receber uma coisa (flores). Apesar de o verbo “jogar” ser recorrente em
40
41
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Extraído de portaldasseries.blogspot.com/2009/06/clássicos-da-teve-brasileira.html, em
09/01/2010.
Extraído da Folha On-line, em 19/04/2009.
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Cognitivismo, corporalidade e construções: novas perspectivas nos estudos da linguagem
muitas estruturas argumentais, sua utilização em (06) é permitida apenas se o
significado for reconhecido como contribuindo para um evento de transferência. A palavra “jogou” evoca uma ação física específica que também denota
tempo e aspecto relacionados ao evento maior em que está envolvida. Prototipicamente, o esquema JOGAR ativa a ideia de que foi empregada alguma energia no esforço de provocar que uma entidade (no caso, as flores) se
movesse pelo ar. Mais especificamente, o esquema JOGAR contribui para a
acomodação do esquema força/movimento dentro de uma construção ditransitiva ativa. Então, “jogar” se relaciona a uma forte ação sobre uma entidade
causando seu movimento, incluindo um atirador (agente) e o objeto atirado.
Construções não são determinísticas, mas buscam o ajuste entre um enunciado e o contexto específico. No fim, o resultado do processamento acaba sendo
o melhor conjunto de ajustes de construções.
Uma breve visão da análise cosntrucional fornece o primeiro passo na
determinação do significado do enunciado (06). O significado emerge da
simulação de estruturas semânticas fundamentais caracterizadas pela análise
construcional. Primeiramente, processando esquemas, ou x-esquemas, que
são usados para executar ou perceber uma ação exercida na compreensão da
ação. Por exemplo, o esquema JOGAR evocado por “jogou”, que é explícito,
fundamentado na representação do padrão semântico usado por um agente
(ou aquele que joga) para realizar uma ação de jogar. Esse esquema captura
especificamente uma sequência de ações que são relacionadas ao se jogar um
objeto, incluindo possivelmente ações preparatórias (p.ex. pegar o objeto e
movê-lo em uma posição de partida adequada) e o movimento de adequação
do braço para lançar o objeto. Ações subsidiárias que movem objetos ao longo de caminhos adequados com baixa força são também consideradas. Esse
esquema de execução de jogar deve também especificar outras condições que
possivelmente são mantidas em diferentes fases do evento, tais como o fato
de que o objeto jogado partiu da mão de um agente e que o objeto “voa” até
uma meta.
Em suma, a GCC deve ser compreendida como um modelo baseado na
simulação de compreensão da linguagem. Fundamental para essa perspectiva é
a ideia de que a ação motora pode ser simulada e aplicada à compreensão de
vários aspectos da linguagem.
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4. Considerações finais
Verificamos que as perspectivas cognitivistas assumiram, num primeiro
momento, que o comportamento inteligente pressupõe uma habilidade de representação do mundo. Nesse sentido, a cognição passa a ser explicada a partir
do pressuposto de que o agente executa ações com base nessas representações
com a finalidade de resolver problemas que lhe são apresentados. A assunção
de que o comportamento depende de uma capacidade cognitiva internalizada
fundamenta a ideia de que a cognição pode ser bem explicada se for compreendida como uma computação (operação lógica realizada sobre símbolos,
repercutindo na execução de determinadas funções). Assunções como essa
foram adaptadas, com muita facilidade, ao estudo da linguagem, tendo em
vista a viabilidade de, enfim, se compreender cientificamente a relação entre
capacidades cognitivas, mundo e mediação linguística, um empreendimento
até então de natureza estritamente filosófica.
De acordo com o primeiro momento da virada cognitivista, a cognição se
manifesta como uma espécie de computação simbólica, isto é, manipulação de
símbolos com base em regras e combinações. Não há espaço, nesse sentido, para
qualquer tratamento no nível semântico e sua forma de explicar os fenômenos da
cognição se associa ao aparecimento dos computadores, na década de cinquenta.
A concepção do “conhecer”, como resultado de complexas relações, dentre as
quais do organismo com o seu meio, contribuiu para algumas reformulações na
agenda dos estudos cognitivistas. Estudos recentes têm defendido uma proposta
alicerçada nas acomodações mútuas entre cognição, linguagem e corporalidade.
De acordo com esses estudos, o cérebro humano e o resto do corpo constituem
um organismo indissociável, formando um conjunto integrado por meio de circuitos reguladores bioquímicos e neurológicos mutuamente interativos.
Cabe destacar que, de acordo com essa nova perspectiva, os fenômenos do espaço externo são compartilháveis porque dispomos de corpos que se
movimentam no espaço, manipulam objetos, interagem com outros corpos
e tratam o ambiente de forma similar. Os fenômenos mentais só podem ser
cabalmente compreendidos no contexto de um organismo em interação com
o ambiente que o rodeia42. Mais do que uma “máquina”, o cérebro passa a ser
42
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DAMÁSIO, A. O Erro de Descartes. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
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Duque, Paulo Henrique; Costa, Marcos Antonio
Cognitivismo, corporalidade e construções: novas perspectivas nos estudos da linguagem
concebido como um ecossistema. E, de acordo com essa perspectiva ecológica,
não há espaço para o dualismo entre corpo e alma presente no projeto cartesiano de um método científico no século XVII.
Portanto, a epistemologia da corporalidade, conforme proposta por
Lakoff e Johnson, permite-nos avançar na investigação das relações intrínsecas
entre a estrutura fisiológica de nossos corpos e o papel de fatores socioculturais
na organização, estruturação e no funcionamento dos sistemas conceptuais.
Em conformidade com essas ideias, reivindica-se um papel central para as experiências motoras e perceptivas corporificadas na compreensão da linguagem.
Essa perspectiva nos leva à compreensão de que a linguagem, antes de
ser um sistema representacional, é um trabalho intersubjetivo que nos permite
estabilizar, mesmo que transitoriamente, o conteúdo variável de nossas experiências. As atividades cognitivas, por sua vez, deixando de ser compreendidas
em separado da interação do corpo com o meio e à parte da vida social, passam a ser consideradas como parcela fundamental da ação conjunta que se dá
na atividade linguística.
ABSTRACT:
The knowledge structures that guide our perceptions
are largely governed by a continuous interaction between cultural practices, cognitive schemas, body skills and
language. In this paper, we show that language is related
to creative processes from which we organize and give
shape to our experiences.
KEY WORDS: Cognition; embodiment; grammar
constructions.
Recebido em:21/03/2011
Aprovado em: 20/07/2011
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