1 O perigoso uso político do racismo como bode expiatório Claudio Mano Bacharel em Filosofia pela UFJF Membro do Centro de Pesquisas Estratégicas “Paulino Soares de Souza” da UFJF [email protected] Segundo matéria publicada no portal G11, um relatório da ONU indica que no Brasil prevalece um “racismo institucional” comandado por “hierarquias raciais”. Independente do que os termos entre aspas possam significar, esta declaração, por si só, dada a proeminência da entidade que a respalda, é muito grave, uma vez que traz em si o germe da cizânia e fomenta a desconfiança étnica entre os brasileiros. O dito relatório ganha ainda um destaque maior face o lamentável episódio onde uma jovem torcedora é acusada de racismo, dados os termos pejorativos a que ela se referiu a um atleta negro. Neste artigo teceremos algumas considerações a respeito do racismo e de suas implicações em nossa pátria. Antes de prosseguir, rumo a tentar desvendar se no Brasil contemporâneo o destino dos indivíduos é determinado pela via do preconceito racial, faz-se necessário explicitar um entendimento do que seja racismo ou, ao menos, compartilhar com o leitor o significado que atribuímos ao termo neste texto. Partiremos de uma definição encontrada no Aurélio, onde lemos que racismo é “qualquer teoria ou doutrina que considera que as características culturais humanas são determinadas hereditariamente, pressupondo uma existência de algum tipo de correlação entre as características ditas ‘raciais’ (isto é, físicas e morfológicas) e aquelas culturais (inclusive atributos mentais, morais, etc.), dos indivíduos, grupos sociais ou populações”. Neste caso, a perspectiva racista abre espaço para que, ao comparar-se um determinado grupo étnico com outro, surjam interpretações do que seriam suas principais 1 http://g1.globo.com/mundo/noticia/2014/09/relatorio-apresentado-na-onu-diz-que-brasil-tem-racismoinstitucional.html em 12/09/2014 2 qualidades ou deficiências. Estas, ao invés de circunscritas a alguns indivíduos, pelo uso de indução, ganham a dimensão de característica implícita a um determinado grupo. Ora, pelo exposto acima, podemos até considerar que uma postura racista confira a quem a pratica a pecha de preconceituoso. Quem sabe até mesmo implique em expor publicamente sua ignorância, uma vez que a ciência aponta na direção de que entre nós, seres humanos, não existem raças e sim a universal humanidade. Mas, pelo que vimos até o momento, seria razoável caracterizar o racismo que descrevemos como um crime? É comum escutarmos que os ingleses são fleumáticos, os alemães extremamente disciplinados e os paulistas viciados em trabalho. Mas também que os cariocas só querem saber de praia, que os baianos seriam preguiçosos e nem mesmo nossos queridos irmãos portugueses escapam de ser objeto de piadas, quando suas maneiras são extremadas e levadas ao ridículo. Os ditos mencionados atribuem a uma população inteira características supostamente encontradas em alguns de seus indivíduos. Não são estas colocações normalmente aceitas, ou ao menos suportadas sem causar maiores traumas? Mas, não é isso também uma forma de racismo? Agora, voltemo-nos ao racismo que nos importa neste texto. Para identificá-lo, devemos voltar à definição que emprestamos do Aurélio e acrescentar-lhe um componente que tanto o distingue como o torna avassalador, qual seja, um formato corporativo. O que estamos tentando dizer é que o racismo, embora abominável sob quaisquer aspectos, quando abraçado por um indivíduo isolado, ele é inócuo. O poder de um só ser humano é sempre limitado, e não o vemos como capaz de ameaçar o progresso ou a felicidade de qualquer grupamento étnico ou social. Mas quando este sentimento de distinção é encampado por um grupo, por uma associação ou principalmente, por um governo, aí sim temos o racismo capaz de monstruosidades, como foi o caso emblemático da Alemanha nazista. Este é o tipo de racismo que, em nosso entendimento, devemos diuturnamente envidar esforços para combater e erradicar de uma vez por todas da face da terra. Com relação ao relatório da ONU, tal como apontado no portal G1, os indícios que levam as pesquisadoras a afirmar que existe um racismo institucionalizado no Brasil, derivam de dados sócio-econômicos onde a população negra é apontada como a mais pobre, a menos educada, desproporcionalmente sujeita ao desemprego e também a mais envolvida com a criminalidade. Essa situação, segundo os responsáveis pelo estudo, decorre fundamentalmente por conta de uma discriminação no acesso à educação que, como conseqüência, na prática torna-se “uma das principais fontes de desigualdade” que distancia os negros dos demais segmentos da população. O problema da escravidão dos negros no Brasil foge ao escopo deste artigo, mas vale considerar que após a inominável violência que foi perpetrada contra os que 3 foram trazidos a força de sua terra mãe para serem aviltados em solo estrangeiro, seguiu-se uma ainda maior. Trata-se de, em nome de uma ilusória abolição da condição de escravos, homens e mulheres desprovidos de educação e meios para perseguirem uma vida digna, terem sido lançados à própria sorte em uma sociedade alienígena, cujos valores, pouco ou nada compreendiam. Aqui então voltamos ao cerne da questão que, desta vez acertadamente, o relatório da ONU aponta como causa da exagerada desigualdade social no Brasil: a precariedade de nosso sistema público de ensino. Mas engana-se quem acredita que em nossa pátria, nos dias de hoje, a educação seja intencionalmente vedada a uma específica etnia. Nesse aspecto, no Brasil impera a absoluta igualdade. Independente da cor da pele, gênero ou crença religiosa, o futuro de milhões de nossos jovens, que dependem da escola pública, está irremediavelmente comprometido; a educação lá ofertada é reconhecidamente de má qualidade. Em nosso texto, má qualidade de ensino traduz-se na endêmica incapacidade que o ensino público tem demonstrado em transformar jovens em adultos independentes, capazes de formular um raciocínio crítico e autônomo, enfim, de serem mestres de seus próprios destinos. Talvez daí então, da ação nefasta de nosso governo nesta área, venha a idéia de racismo institucionalizado em nosso país. Mas neste caso, voltamos a frisar, não se trata efetivamente de racismo, pois não se destina a um específico grupamento étnico e sim à totalidade da população que freqüenta o ensino público. Por outro lado, sugerir que em nosso país existe uma “hierarquia étnica” ocupada em articular uma conspiração que visa manter uma determinada raça à parte dos progressos intelectuais e materiais alcançados pelos demais membros da sociedade, isso, em nosso entendimento, beira o desvario. Pouquíssimos indivíduos no Brasil contemporâneo podem afirmar com segurança que possuem um sangue puro europeu ou africano. O povo brasileiro é majoritariamente mestiço, daí inclusive, a falta de espaço para o desenvolvimento do racismo em nossas terras. Certamente concordamos com o relatório da ONU quando este sugere que existe uma hierarquia no comando de nossa nação, e que ela negligencia, talvez até de forma proposital, com a educação do brasileiro. Mas ao contrário do que é sugerido, essa hierarquia não é étnica e sim política. Seu objetivo não é a ignorância de uma parcela da população, mas sim de toda ela, de modo a poder perpetuar-se indefinidamente no poder por intermédio de pequenos favores a um povo dependente e prisioneiro da ignorância. Nesse sentido, não faltam sugestões que, à primeira vista, soam dignas e bem intencionadas. Este é o caso, por exemplo, da proposta de se ensinar a história da África em nossas escolas públicas. Vejam, as crianças estão na escola justamente para desenvolver o uso 4 da razão. Nesse processo, ao longo de seus estudos, reconhecerão o valor do vínculo que as integra tanto à sua comunidade quanto à pátria que as viu nascer. Ora, como reagirão algumas dessas crianças, ainda imaturas, quando apresentadas a uma segunda cidadania antes de terem consolidada a primeira? Não poderão elas creditar a causa de todos seus possíveis males ao fato de viverem em uma hipotética diáspora? Se for assim, pensando que seu destino já se encontra determinado, como fazê-las acreditar que o caminho do esforço pessoal pode modificar sua existência? Vejam, não insinuamos que a história, seja de qual etnia for, deva ser esquecida. Em nossa terra são fartas as manifestações religiosas e civis que revigoram laços ancestrais específicos. Defendemos apenas que, está é nossa tese, quem nasce no Brasil não é nem italiano, nem congolês e muito menos alemão. Em nossa pátria, não devem prevalecer nem discursos de eurodescendentes nem tão pouco de afrodescendentes, pois, aos olhos de nossas leis, para que elas representem a vontade do povo, devemos todos, de forma indistinta, ser reconhecidos apenas como brasileiros. As chamadas “ações afirmativas”, tão acalentadas por organismo como a ONU, na verdade, em nosso entendimento, vêm somente solapar a igualdade dos indivíduos perante às leis. No caso do Brasil, inclusive, longe de criar novas oportunidades, elas em geral apenas fazem tirar o lugar de uns para entregar a outros. As “ações afirmativas” partem do pressuposto de que o governo reconhece em definitivo sua incompetência em prover ensino de qualidade para todos. Assim, de modo a deslocar o foco do problema real, ou seja, a criminosa omissão do Estado em relação à educação, cria-se um jogo de cena onde um quixotesco aparato governamental luta contra gigantes que levantam a bandeira do racismo, que seria então o grande culpado. Mas quando os focos de luz voltam-se sobre o rosto desse famigerado vilão, o que presenciamos nada mais é que o sacrifício de um bode expiatório. Dentre lágrimas vemos surgir a face amedrontada de uma jovem que na verdade nem entende bem que crime cometeu, mas que, acuada face o poderio do Estado e da força da mídia, declara-se culpada de qualquer coisa que lhe seja imputada, de modo a se ver livre de tamanha pressão. Em outros tempos, o uso tão desproporcional da força do Estado contra um cidadão, independente do crime cometido, seria chamado de tortura. Para encerrar, reforçamos nossa tese de que racismo implica em meios poderosos para se concretizar. Não é tarefa simples cercear a liberdade, humilhar continuamente, degradar a moral, eliminar a dignidade e mesmo a vida daqueles que, enquanto grupamento étnico, são julgados pretensamente inferiores em função de sua raça. Um indivíduo por si só não detém esses meios. Em sendo assim, um cidadão somente deveria ser categorizado como racista, a partir do momento em que contribui ou participa de uma associação que tem por finalidade 5 precípua a segregação ou mesmo a destruição de outro grupo de seres humanos em função de suas alegadas características raciais. Se for assim, antes de lançarmos a acusação de racismo, seria prudente que considerássemos que por vezes nós nos deixamos embriagar, quer seja pela euforia ou, principalmente, pela raiva. Quando isso ocorre, nos expressamos ou agimos de forma tal, que a posterior vergonha pela lembrança do malfeito já é, na imensa maioria das vezes, a maior das punições. Por outro lado, diante do passional, qualquer lei escrita, por mais draconiana que seja, perde sua eficácia em dissuadir. O que tentamos expressar, é que devemos ter cuidado em não banalizar o crime de racismo, sob pena de deixarmos passar, por desapercebido, quando nos depararmos com o verdadeiro ódio institucionalizado. No Brasil contemporâneo, certamente seria ingênuo desconsiderar que paira um sentimento de discriminação no ar. Mas ele diz mais respeito ao modo modesto ou luxuoso como alguém se apresenta à sociedade do que com a cor de sua pele. É dirigido preferencialmente à inadequação do uso da língua pátria do que em relação a alguma regionalidade que modele a voz do interlocutor. Em nosso país impera uma discrepância de meios tão acentuada que, por vezes, a distância entre extratos sociais parece indicar que não somos uma, mas várias nações. Mas isso, pelos argumentos que já apresentamos, não implica em racismo. É resultado puro e simples do desleixo do Estado em cumprir a única tarefa que justifica sua existência. Promover um ambiente favorável ao desenvolvimento da igualdade de direitos e de meios entre todos os cidadãos. Mas uma igualdade fundada na manutenção da riqueza e do bem estar, e não na distribuição equitativa da miséria. Por mais repugnante e destrutiva que seja a idéia de racismo, não devemos ceder à tentação de atribuir-lhe a responsabilidade por aspectos obscuros de nossa realidade que não lhe dizem respeito. O povo brasileiro não é racista, mas poderá vir a ser. Basta nos lembrarmos da frase atribuída àquele que foi o grande marqueteiro do racismo, Joseph Goebbels: “uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”.