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TERRA IGNOTA: os sentidos da palavra “sertão” em Os
sertões, de Euclides da Cunha.
*Rivânia Maria Trotta Sant’Ana
O livro Os sertões, de Euclides da Cunha, é grandioso por várias razões,
dentre as quais estão a linguagem minuciosamente elaborada, a argumentação
cuidadosamente construída e, no plano das idéias, por se apresentar como uma
síntese das diversas concepções científicas circulantes no Brasil em fins do
século XIX e início do século XX, transcendendo-as, para inaugurar uma visão
complexa, profunda, arrojada, comprometida e trágica do país.
A linguagem de Os sertões é caracterizada pela abundância de figuras.
As metáforas, as personificações dos elementos da natureza, as numerosas
antíteses...tudo concorrendo para a construção das imagens da terra, dos
homens e dos fatos, enfim, do cenário em que se dão as reflexões do autor.
Cenário que justifica, no decorrer da narrativa, sua clara e crescente ironia.
Definido ora como neobarroco1, ora como parnasiano2, o estilo de
Euclides da Cunha apresenta, conforme SEVCENkO:
“(...) uma linguagem elevada, selecionada, elaborada, altamente
metafórica e imagística, de comunicabilidade mediatizada, dotada de
efeitos elocutivos, escoimada de clichês, rebarbativa, áspera, carregada,
homogênea, praticamente sem variação sociolingüística, isenta de paródia
ou prosopopéia, reveladora e enérgica. Uma linguagem altamente
coerente com o conteúdo transmitido, na medida em que procurava
evidenciar uma dignidade superior da cultura científica e filosófica e
revelar a sua capacidade de perceber erros e injustiças, ao mesmo tempo
que expunha a verdade última presente no movimento profundo das forças
naturais. Um discurso de revelação e verdade, que perderia o seu poder de
demonstração se oscilasse de acordo com os vários níveis da realidade que
aborda; fato que sintomaticamente também ocorre com a linguagem
científica.”3
De fato, Euclides da Cunha crê na ciência, está comprometido com o
pensamento científico que embasou toda a sua formação na escola militar e o
demonstra nas páginas de seu livro mais famoso, através da citação dos nomes
de vários cientistas a que teve acesso e através da discussão das diversas teorias
científicas correntes em sua época. Naturalmente, essas citações não são apenas
* Professora da Universidade Federal de Ouro Preto
1- GALVÃO, Walnice Nogueira. Fato e ficção na obra de Euclides da Cunha. [Entrevista concedida a Nísia
Trindade Lima e Simone P. Kropf] In.: HISTÓRIA, CIÊNCIA, SAÚDE, Vol. V (suplemento), julho, 1998.
P.299
2
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República.
São Paulo: Brasiliense, 1983. P 134
3
Ibidem. p.135
2
prova de erudição, tudo tem relevância dentro do narrativa, porque essas teorias
e esses autores são utilizados na tentativa de compreensão dos fatos narrados: o
aparecimento de Antônio Conselheiro, a criação e o desaparecimento de
Canudos, no sertão da Bahia, no final do século XIX.
Não podemos, porém, concordar com Sevcenko quando este diz que a
linguagem euclidiana é isenta de prosopopéia. Na verdade, em Os sertões, a
prosopopéia - figura de retórica também chamada de personificação, que
consiste em “atribuir vida, ou qualidades humanas, a seres inanimados,
irracionais, ausentes, mortos ou abstratos.”4 –, é recorrente. O uso da
personificação está de acordo com a crença do autor na grande influência do
meio sobre a vida do homem: na determinação da sua aparência, do seu
caráter, da sua maneira de pensar e de agir com e sobre os outros. O uso dessa
figura de retórica empresta aos elementos da natureza uma aura de grandeza e
mistério, presente na longa tradição dos relatos de viagem sobre o Brasil,
desde o séc. XVI, e que, de alguma forma, perdura nos relatos de viagem dos
estrangeiros naturalistas e dos brasileiros em expedições científicas pelo Brasil
do séc. XIX.
Apesar do compromisso de Euclides com a ciência, que o fez, conforme
palavras do próprio Sevcenko, “abdicar de toda ficção que envolvesse a
imaginação de enredos literários tradicionais”5, o autor utiliza-se da linguagem
própria da ficção para alcançar o seu objetivo de ser veemente e persuadir o
leitor. Seu texto é arrebatador, apaixonado, tocante, porque é construído a
partir de fatos reais numa linguagem ficcional, para construir uma narrativa
que é, também, uma argumentação em defesa da sua visão dos acontecimentos.
Enfim, o seu texto é retórico. Não na acepção corrente hoje em dia, na qual o
termo assume o sentido pejorativo de “afetado, mas superficial”. Estamos
usando o termo em sua acepção denotativa, qual seja, “elaborado de acordo
com as normas da retórica, visando à demonstração dos argumentos e
conseqüente persuasão do leitor”.
Nesse sentido, sua narrativa se aproxima muito dos discursos de Vieira
naquilo que este autor tem de mais marcante, que é a sua eloqüência, sua
grande capacidade de argumentar através de uma linguagem rica em imagens.
Assim como nos sermões de Vieira, em Os sertões toda a argumentação de
Euclides é cuidadosamente construída. Cada informação presente na narrativa,
cada imagem, cada conceito funciona como argumento relevante e verossímil
para a demonstração de suas teses. Assim como cada parte e cada capítulo
prepara o leitor para a parte ou o capítulo seguinte.
ZILLY observa que a retórica, técnica verbal da antigüidade, recebeu
requinte e grandiosidade no Barroco, assumindo características tais como:
“tendência às hipérboles, à redundância, ao hermetismo, à
sobrecarga de alusões e conotações, à sinonímia rica, ao excesso de
epítetos ornamentais, à festa verbal, características estas que são a antítese
da sobriedade, objetividade, clareza denotativa da linguagem científica
4
MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. 5 ed. São Paulo: Cultrix, 1988. P. 422
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República.
São Paulo: Brasiliense, 1983. P 131
5
3
(Brandão, 1988, pp.213-26). Na prosa euclidiana ecoam o fausto, a
pompa, a solenidade das prédicas de um Antônio Vieira. Mas ela
seculariza e racionaliza estes atributos, aproximando-se mais dos
discursos científico, político, ético e jurídico.”6
Assim, a obra Os sertões caracteriza-se por apresentar uma prosa
carregada de antíteses e contradições já no microplano da forma, em que
consideramos a linguagem usada e a coesão dos elementos lingüísticos para
construir a argumentação. Ainda no plano da forma, mas considerando o
gênero textual, também tem sido corrente a definição que a crítica apresenta
para essa narrativa como um misto de:
“(...) relatos, poemas, pichações de paredes, artigos e livros sobre a
guerra -, incorporando, portanto, vários tipos de texto: crônica, lenda,
depoimento, diário, tratado geográfico, etnográfico e historiográfico,
formas populares simples (JOLLES, 1976) e ainda romance, ensaio,
discurso forense e político, oração fúnebre, tudo amalgamado num estilo
relativamente coeso, próprio, inconfundível. O livro reúne as três formas
básicas da literatura – a epopéia, o drama e a lírica -, como têm apontado
muitos críticos, enfatizando principalmente os traços da epopéia e
tragédia.”7
O seu texto é, portanto, uma síntese de várias tendências narrativas, como
resultado de seu compromisso com a arte e com a verdade histórica e científica
que sua condição de homem de ciência e jornalista exigia. Assim, não se pode
dizer que seu texto é apenas ficção, a despeito de sabermos hoje que muito
pouco do que narra foi de fato presenciado por ele.8 Mas também não podemos
afirmar que a sua narrativa é um relato fiel da realidade dos fatos acontecidos
em Canudos, exatamente porque sabemos que ele lá esteve por pouco tempo, e
na retaguarda. Euclides não parece ter, portanto, compromisso com a ficção,
tampouco com a realidade, mas com a arte e a verdade, conforme aponta
ZILLY:
“Em última análise, sua retórica evocadora de quadros e cenas visa
emocionar o público constituído pelos letrados do Brasil e do mundo,
sentados, por assim dizer, num vasto anfiteatro ao redor do autor que
declama em voz alta a sua mensagem. Ele quer dizer que a arte está a
serviço da busca da verdade histórica e da ética política: a construção de
uma nação civilizada, com direito à vida e cidadania para todos, e a
condenação, ao menos moral, dos assassinos governamentais e seus
cúmplices, inclusive a indústria bélica européia.”9
6
ZILLY, Berthold. A guerra como painel e espetáculo. A história encenada em Os sertões. In.: HISTÓRIA,
CIÊNCIA, SAÚDE. Vol. V (suplemento), julho, 1998.p.17
7
ZILLY, Berthold. A guerra como painel e espetáculo. A história encenada em Os sertões. In.: HISTÓRIA,
CIÊNCIA, SAÚDE. Vol. V (suplemento), julho, 1998.p.15
8
VILLA, Marco Antônio. Canudos:o povo da terra. São Paulo: Ática, 1995.
9
ZILLY, Berthold. A guerra como painel e espetáculo. A história encenada em Os sertões. In.: HISTÓRIA,
CIÊNCIA, SAÚDE. Vol. V (suplemento), julho, 1998.p.20
4
O autor de Os sertões acredita na ciência e na civilização e, ao se dirigir
para Canudos como correspondente de guerra do jornal O Estado de São
Paulo, em agosto de 1897, durante a quarta expedição, ele vai imbuído do
cientificismo característico do séc. XIX. Formado engenheiro na Escola Militar,
ele nutre a crença na possibilidade de transformação do Brasil em um lugar
melhor, através do conhecimento e da modernização, inclusive das nossas
instituições. Para ele, a República teria condições de promover as mudanças
necessárias a essa empreitada. É com o seu olhar cientificista, portanto, que ele
entra no sertão, na busca de compreensão do lugar, das pessoas e dos
acontecimentos. Muito mais do que relatar fielmente os fatos, ele quer
compreendê-los. Assim, ele olha para tudo com um olhar perscrutador.
Para o autor, o olhar, assim como o viajar para todo o séc. XIX, é
metáfora de conhecimento. Daí a importância da viagem e do olhar na narrativa
de Os sertões. A primeira parte do livro, intitulada “A terra”, é uma viagem ao
sertão. Em várias passagens de sua descrição, o autor convida o leitor a viajar
com ele, a conhecer a nossa terra, a se encantar e se surpreender com ela :
“Atravessemo-la.
(...)
E o observador que seguindo este itinerário deixa as paragens em que se
revezam, em contraste belíssimo, a amplitude dos gerais e o fastígio das
montanhas, ao atingir aquele ponto estaca surpreendido...”10
Essa viagem se dá no espaço geográfico, do litoral para o sertão e deste,
de novo para o litoral, que já não é mais o litoral da partida, mas o litoral/sertão
da chegada; e se dá também no tempo, do presente para o passado e, de novo,
para o presente que mantém o passado. Nesse percurso vamos, junto ao autor e
sua narrativa, tecendo as imagens da nossa Nação.
O olhar, além de ser instigado pelas descrições do autor, aparece em dois
subtítulos da parte “A luta” referentes às expedições terceira e quarta, revelando
a aproximação cada vez maior do arraial: “Um olhar sobre Canudos”11 e “Outro
olhar sobre Canudos”12
É através desse olhar atento que ele, como um arqueólogo, vai, a partir da
superfície, retirando camadas e mais camadas até chegar a uma compreensão
mais profunda e complexa dos aspectos contraditórios da nossa nacionalidade.
Para compreendermos melhor a visão do país apresentada em Os sertões,
é produtivo abordar a obra de Euclides através dos sentidos possíveis para a
palavra “sertão” na sua narrativa.
Lúcia Lippi OLIVEIRA13, ao refletir sobre a importância da conquista do
espaço territorial na construção da identidade nacional brasileira, afirma que, na
ausência de um passado histórico remoto que pudesse sustentar uma imagem
una da Nação, a consciência do espaço forneceu as bases da integração
10
CUNHA, Euclides da. Os sertões.São Paulo: Martin Claret, 2002. pp.26-27
Idem. P.294
12
Idem. P.390
13
OLIVEIRA, Lúcia Lippi A conquista do espaço: sertão e fronteira no pensamento brasileiro. In: História,
Ciências, Saúde, Vol. V (suplemento), julho 1998.
11
5
nacional, daí a sua importância para a formulação de um projeto de nação.14
Segundo a autora, as descrições da natureza estão presentes nos diversos textos
sobre a nova terra, desde o descobrimento, sendo possível distinguir duas visões
opostas dessa natureza: ou ela é vista como paraíso, ou como inferno. Exemplo
da primeira visão seria a Carta de Caminha e da segunda seriam os textos dos
jesuítas, que enfatizavam os perigos da natureza.
A mesma coisa se daria com a palavra “sertão”, usada para designar um
lugar geográfico e/ou social que ora recebe avaliação positiva, ora, negativa. As
definições de sertão identificadas por Oliveira são muitas, e ela afirma que
existe no imaginário social brasileiro “(...) a idéia de que não há um sertão mas
(sic) muitos sertões e que o sertão pode e deve ser tomado como uma metáfora
do Brasil.”15
Continuando sua análise, a autora aponta três perspectivas em que o tema
aparece na literatura brasileira, com seus respectivos representantes: a primeira
perspectiva seria aquela que identifica sertão a paraíso e que teria como
representantes escritores do romantismo, com algumas representações no séc.
XX, tais como Catulo da Paixão Cearense e Afonso Arinos; a segunda
identificaria sertão a inferno, lugar de destempero da natureza, desespero dos
homens, e teria como representante Euclides da Cunha; já a terceira,
representada por Guimarães Rosa, identificaria sertão a “purgatório, lugar de
passagem, de travessia, definido pelo exercício da liberdade e da dramaticidade
da escolha de cada um”16.
De fato, é possível afirmar que na obra aqui em estudo a palavra “sertão”
tem vários sentidos e também que designa um espaço geográfico/social visto
como uma metáfora do Brasil. O próprio título do livro, no plural, indica que o
autor está apresentando para o leitor diversos espaços do território brasileiro,
com características geográficas, climáticas e sociais diferentes, mas todas sob a
mesma denominação. A palavra “sertão” tem inicialmente no livro, portanto,
uma acepção menos detalhada e, como conseqüência, mais abrangente,
significando interior, em oposição a litoral. À medida que a narrativa avança e
se aproxima do palco da guerra, a palavra vai assumindo uma acepção mais
detalhada e específica e, portanto, menos abrangente, passando a designar o
território que o autor/narrador identifica como o sertão do norte, definido como
uma região semi-árida, onde a criação de gado prevalece sobre a agricultura e
onde perduram tradições e costumes antigos.17
Não consideramos, porém, que Euclides da Cunha seja um representante
da leitura do espaço do sertão como inferno, conforme afirma a referida autora.
Para nós, ele elabora uma síntese das três leituras, apresentando esse espaço
como paraíso, inferno e purgatório, dependendo dos diversos pontos de vista
revelados durante a narrativa: o do viajante observador da natureza; o do
soldado que enfrenta a aridez e as agruras de uma terra desconhecida e
inóspita; e finalmente o ponto de vista do sertanejo, para quem o sertão pode ser
14
OLIVEIRA, Lúcia Lippi A conquista do espaço: sertão e fronteira no pensamento brasileiro. In: História,
Ciências, Saúde, Vol. V (suplemento), julho 1998. P. 196
15
Idem. P. 197
16
Idem. P.200
17
HOLANDA, AB. Novo dicionário da língua portuguesa
6
paraíso, quando floresce depois das chuvas, quando o acolhe e protege de seus
inimigos, ou pode ser também purgatório, no qual ele se prepara para uma vida
melhor no reino de Deus.
Até agora estivemos falando de um nível de análise mais da superfície do
texto e, paralelamente, na narrativa, da visão que o autor tem da superfície do
território geográfico: um nível de análise que revela as diferenças materiais e
culturais visíveis entre, inicialmente, o litoral e o interior e, logo depois, entre
os diversos espaços, dentro desse espaço maior que é o interior do país. Nesse
nível, as diferenças são muitas. E se isso é verdade para a comparação entre
litoral e interior, quando se compara o litoral ao sertão do norte, as diferenças
são gritantes: elas chegam a se configurar como oposições. O litoral significa a
civilização, a modernização, o presente, enquanto o sertão do norte é visto
como a ignorância, o atraso, o passado. Em síntese, é o lugar da falta, negativo,
portanto. Tudo isso explica e até justifica o embate entre o Exército
Republicano e Canudos.
Porém, na medida em que a narrativa progride, aproximando o foco
narrativo dos acontecimentos no arraial de Canudos, o narrador/autor vai
exercitando um olhar em profundidade que abstrai das diferenças visíveis na
superfície geográfico-cultural, para revelar semelhanças estruturais subjacentes
entre o litoral e o interior, então, a ironia do autor fica mais cortante.
“Mas a luta sertaneja começara, naquela noite, a tomar a feição
misteriosa que conservaria até o fim. Na maioria mestiços, feitos da
mesma massa dos matutos, os soldados, abatidos pelo contragolpe de
inexplicável revés, em que baqueara o chefe reputado invencível, ficaram
sob a sugestão empolgante do maravilhoso, invadidos de terror
sobrenatural, que extravagantes comentários agravavam.
O jagunço, brutal e entroncado, diluía-se em duende intangível.”18
Tirando poucos personagens heróicos de um e outro lado, todos os outros
são apresentados como sendo representantes, ou estando muito próximos, da
barbárie, vejamos alguns exemplos: “(...); e a brutalidade humana rolava
surdamente dentro da quietude miserável das coisas.”19; “(...) O homem do
sertão, encourado e bruto, tinha parceiros porventura mais perigosos.”20
Euclides da Cunha fica chocado com o que vê: os mesmos erros repetidos
em todas as expedições, a brutalidade inerente ao ser humano; as superstições
comuns entre jagunços e soldados, o despreparo das tropas, a covardia dos
soldados em retirada, a mitificação de Canudos, resultante das “mentiras
heróicas” que circulavam em todo o país e geravam em vários lugares reações
descontroladas do povo, a exemplo do episódio da Rua do Ouvidor, em que
jornais monárquicos foram atacados por uma multidão. Ao comentar o
episódio, Euclides faz uma das mais veementes críticas à forma como o
governo conduzia os fatos e uma também veemente denúncia do abandono do
sertão pela Monarquia, o Império e a República:
18
CUNHA, Euclides da. Os sertões.São Paulo: Martin Claret, 2002. p.310
Idem,. p.256
20
Idem, p.324
19
7
“A Rua do Ouvidor valia por um desvio das Caatingas. A correria
do sertão entrava arrebatadamente pela civilização adentro. E a guerra de
Canudos era, por bem dizer, sintomática apenas. O mal era maior. (...)
A força portentosa da hereditariedade, aqui, como em toda a parte e
em todos os tempos, arrasta para os meios mais adiantados – enluvados e
encobertos de tênue verniz de cultura – trogloditas completos. (...) pouco
nos avantajáramos aos rudes patrícios retardatários. Estes, ao menos, eram
lógicos. Insulados no espaço e no tempo, o jagunço, um anacronismo
étnico, só podia fazer o que fez - bater, bater terrivelmente a
nacionalidade que, depois de o enjeitar cerca de três séculos, procura leválo para os deslumbramentos da nossa idade dentro de um quadrado de
baionetas, mostrando-lhe o brilho da civilização através do clarão das
descargas. (...) e o governo começou a agir. Agir era isso – agremiar
batalhões21
Dessa forma, Euclides da Cunha continua a tradição, presente nos relatos
de viagem do séc. XIX, de denunciar as mazelas do povo brasileiro e a cegueira
das autoridades (in)competentes. A denúncia do descaso e irresponsabilidade
das elites com o conseqüente abandono da terra e da gente do interior brasileiro
está presente, também com clareza, em relatos como os de Gonçalves Dias,
Diário da Viagem ao Rio Negro, e Visconde de Taunay, A retirada da Laguna.
Textos dramáticos, provavelmente conhecidos por Euclides. Portanto, este não
inaugura a denúncia do descaso das elites pelo sertão do norte, como afirma
OLIVEIRA22, mas inova, uma vez que não apenas denuncia as condições de
abandono do povo do interior, do sertão brasileiro, mas aponta também na
direção contrária, fazendo um paralelo do litoral com o sertão, para revelar
semelhanças trágicas subjacentes.
Em sua ânsia de afirmar a necessidade da educação formal, do
conhecimento científico, ele aponta para um Brasil contraditório, com um
verniz de civilização, mas, no âmago, bárbaro, marcado pela falta em todos os
níveis de sua vida. A sua viagem para os sertões foi, na verdade, a viagem
metafórica para a essência da civilização brasileira, revelando o Brasil como o
grande sertão. O olhar para a superfície revela as diferenças, os sertões, no
plural, enquanto o olhar em profundidade revela as semelhanças, um único
sertão, no singular. As duas expressões, porém, “os sertões” e “o sertão” podem
se imiscuir, nesse olhar em profundidade, apontando para um mesmo referente,
uma terra ignota chamada Brasil.
21
CUNHA, Euclides da. Os sertões.São Paulo: Martin Claret, 2002. pp 324-325
OLIVEIRA, Lúcia Lippi A conquista do espaço: sertão e fronteira no pensamento brasileiro. In: História,
Ciências, Saúde, Vol. V (suplemento), julho 1998. P. 199q
22
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Rivânia Maria Trotta Sant`Ana - Instituto de Ciências Humanas e