GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO DE LÍNGUA NAS SÉRIES INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL Valdecy Margarida da Silva (UERJ) [email protected] 0. INTRODUÇÃO De acordo com os PCN (1997), a escola deve compreender a necessidade de se ensinar os alunos a utilizarem os textos de que fazem uso. No que se refere ao trabalho com gênero, afirmam que o aluno deve selecionar o gênero mais adequado a seus objetivos e à circunstância. Assim, se os alunos devem aprender a utilizar, no seu dia-a-dia, os textos de que fazem uso, então são esses os textos que devem circular no universo escolar. Observamos que na escola de Ensino Fundamental e Médio os professores pouco conhecem a discussão sobre gêneros textuais e não apresentam nenhuma preocupação em trabalhar em sala de aula com os textos que circulam no dia-a-dia do aluno. Limitam-se a explorar a gramática normativa, na perspectiva prescritiva e analítica. A nossa hipótese é que, como afirma Bakhtin (2003), quanto mais e melhor dominamos um gênero, mais o empregamos livremente. Nesse sentido, quanto mais os gêneros forem trabalhados na escola, mais os alunos terão possibilidade de colocarem em prática, de forma competente, os seus discursos. A pesquisa investiga o trabalho com gêneros textuais realizado por uma professora das séries iniciais do Ensino Fundamental de uma escola pública da cidade de Campina Grande/PB. Os dados foram coletados através de observação direta das aulas de Língua Portuguesa, durante a realização de um projeto pedagógico intitulado Gêneros Textuais. Os dados revelam que o trabalho com gêneros textuais na sala de aula favorece a aprendizagem da escuta, leitura e escrita de textos diversos, com funções específicas, visto que a orientação do professor não é mais a de considerar apenas o aspecto formal do texto escrito, mas a de proporcionar o uso efetivo do texto por parte de seus alunos, abrindo-lhes oportunidades de se desenvolverem como cidadãos de uma sociedade letrada. A opção por fundamentos teóricos que vêem a linguagem como construção social em que dialogia e interação constituem-se elementos fundadores define certas opções metodológicas. Assim, o conhecimento científico de procedimentos interativos determina um vínculo às linhas de pesquisa qualitativa e interpretativista. Ao aceitar essa visão de realidade, esta pesquisa coloca-se sob o ponto de vista interpretativista (Moita Lopes, 1991), segundo o qual o acesso ao conhecimento é sempre indireto, feito através da interpretação e da visão dos participantes: pesquisadora e pesquisados (professora e alunos), que, nessa investigação, são os constituintes do diálogo. O corpus de análise, em consonância com a linha metodológica adotada, focou professora e alunos em situação particular e natural de trabalho escolar, especialmente nos momentos de atividades escritas envolvendo gêneros textuais diversos. Baseados na pesquisa de Marcuschi (2002) e Bezerra (2002), discutimos o conceito e a funcionalidade dos gêneros textuais. Em seguida, abordamos os gêneros textuais na perspectiva da fala e da escrita. Nesta abordagem, recorremos às pesquisas de Brandão (2001) e de Marcuschi (2002). Finalmente, apresentamos e analisamos o trabalho realizado com os gêneros textuais nas séries iniciais do Ensino Fundamental. 1. GÊNEROS TEXTUAIS: o que são e para que servem Sempre que nos manifestamos linguisticamente, o fazemos por meio de textos. E cada texto realiza sempre um gênero textual. Cada vez que nos expressamos linguisticamente estamos fazendo algo social, estamos agindo, estamos trabalhando. Cada produção textual, oral ou escrita, realiza um gênero porque é um trabalho social e discursivo. As práticas sociais é que determinam o gênero adequado. Mas, o que então pode ser classificado como gênero textual? Pode-se dizer que os gêneros textuais estão intimamente ligados à nossa situação cotidiana. Eles existem como mecanismo organização das atividades sociocomunicativas do dia-a-dia. Assim, caracterizam-se como eventos textuais maleáveis e dinâmicos. De acordo com Marcuschi (2002), os gêneros textuais são fenômenos históricos profundamente ligados à vida cultual e social. Fruto do trabalho coletivo, os gêneros contribuem, segundo o autor, para ordenar e estabilizar as atividades comunicativas do dia-adia. Nesse sentido, são vistos como entidades sócio-discursivas e formas de ação social incontornáveis em qualquer situação comunicativa. Marcuschi (op. cit.) destaca que mesmo apresentando alto poder preditivo e interpretativo das ações humanas em qualquer contexto discursivo, os gêneros não são instrumentos estanques e enrijecedores da ação criativa. São eventos textuais que caracterizam-se pela sua maleabilidade, dinamismo e plasticidade e surgem emparelhados a necessidades e atividades sócio-culturais, bem como na relação com inovações tecnológicas, o que é facilmente perceptível ao se considerar a quantidade de gêneros textuais existentes na sociedade atual, em relação às sociedades anteriores ao aparecimento da escrita. Historicamente, o estudo dos gêneros iniciou-se com os gregos que apontavam a linguagem sempre associada à realidade. A origem dos gêneros estaria, para eles, então, na realidade, surgindo com a retórica, que fazia da fala pública um instrumento de deliberação e persuasão jurídica e política. A seguir, a tradição literária começou a ganhar espaço neste debate. Ela defendia a idéia de que os gêneros podiam ser selecionados e classificados, a partir dos textos literários, segundo critérios de composição, forma e conteúdo; representação da realidade; estrutura do texto. Entretanto, observou-se um problema: “um mesmo tipo de texto pode acumular vários desses critérios de modo homogêneo” (Charaudeau & Maingueneau, 2004, p. 249). A discussão sobre a origem dos gêneros levantou inúmeros debates, dentre os que a questionavam esteve Todorov (1980). Ele acreditava que os gêneros surgiam a partir de outros gêneros, através de processos como a inversão, o deslocamento ou a combinação a fim de suprir uma necessidade de comunicação; e que o debate sobre sua origem é de natureza sistemática e, não, histórica. Seus estudos se centralizam no estudo do gênero literário, porém contribuem para outras pesquisas sobre o assunto pelo fato de levantar vários questionamentos sobre as concepções de gênero de sua época, apontando que cada um deles possui uma finalidade comunicativa. Além disso, aborda a importância de analisá-los dentro de um contexto: “um discurso não é feito de frases, mas de frases enunciadas, ou, resumidamente, de enunciados” (Todorov, 1980, p.51), já que os gêneros dialogam com a sociedade em que ocorrem e se constituem. Biber (1988) define gênero com base no uso efetivo dos textos, ou seja, são as formas textuais empíricas. Swales (1990, apud Bezerra, 2000), considerando o evento comunicativo e o propósito a que o texto atende, afirma que gênero é “uma classe de eventos comunicativos, cujos participantes compartilham algum conjunto de propósitos” (p.58). Para Marcuschi (op. cit.), usamos a expressão tipo textual para designar uma espécie de construção teórica definida pela natureza lingüística de sua composição – aspectos lexicais, sintáticos, tempos verbais, relações lógicas. Em geral, os tipos textuais abrangem cerca de meia dúzia de categorias conhecidas como: narração, argumentação, exposição, descrição, injunção. Usamos a expressão gênero textual como uma noção propositalmente vaga para referir os textos materializados que encontramos em nossa vida diária e que representam características sócio-comunicativas definidas por conteúdos, propriedades funcionais, estilo e composição característica. Se os tipos textuais são apenas meia dúzia, os gêneros são inúmeros: telefonema, sermão, carta comercial, carta pessoal, bilhete, reportagem jornalística, receita culinária, bula de remédio, lista de compras, piada... (Marcuschi,2001/2002). Os textos, orais ou escritos, variam em função de sua finalidade: informar, entreter, instruir, emocionar, anunciar, seduzir, convencer... De acordo com Bezerra (2002), a finalidade do texto determina sua organização, estrutura e estilo – seu gênero. Embora o conceito de gênero ainda não esteja completamente definido, ele é fundamental no ensino da escrita na escola, pois, de acordo com Schnewly e Dolz (1997:1), “é o gênero que é utilizado como meio de articulação entre as práticas sociais e os objetos escolares, mais particularmente , no domínio do ensino da produção de textos orais e escritos.” Com a intenção de favorecer a aprendizagem da escrita de textos, a escola sempre trabalhou com gêneros, apesar de tratá-los como tipo e, consequentemente, não ter uma diversificação muito grande nas aulas. Além disso, restringe seus ensinamentos aos aspectos estruturais ou formais dos textos, desconsiderando os aspectos comunicativos específicos, que permeiam cada gênero textual. 2. OS GÊNEROS TEXTUAIS NA PERSPECTIVA DA FALA E DA ESCRITA Os textos eram estudados numa perspectiva suprafrasal, antes da década de 80, apresentado aos alunos em frases soltas sem quaisquer orientações sobre o seu uso nas diversas situações sociais, tendo como principal fundamento os aspectos gramaticais. Com o surgimento da Lingüística Textual na Europa na década de 60 houve um rompimento dessa perspectiva, sendo o texto identificado como uma nova unidade lingüística. No entanto, só a partir da década de 80, através das teorias do texto, esse é consolidado dentro de uma visão funcional e interacional da linguagem, como um evento comunicativo, instaurando-se efetivamente, a dimensão discursiva na linguagem, superando, assim, a visão de um amontoado de frases. Segundo Fávero e Koch, (1988, p. 25): O texto consiste em qualquer passagem, falada ou escrita, que forma um todo significativo, independentemente de sua extensão. Trata-se, pois, de uma unidade de sentido, de um contínuo comunicativo contextual que se caracteriza por um conjunto de relações responsáveis pela tessitura do texto (...). Nessa concepção, o texto corresponde a uma atividade comunicativa. Com essa mesma linha de pensamento, Marcuschi (2002, p.24) também o define como “uma entidade concreta realizada materialmente e corporificada em algum gênero textual”, diferentemente do discurso porque este envolve o que um texto produz ao se manifestar em alguma instância discursiva. Portanto, os textos operacionalizam os discursos em situações sociais. Assim, as concepções dos pesquisadores vão de encontro ao texto entendido como fonte ou pretexto para exploração das formas gramaticais isoladas do contexto ou como material indiferenciado a ser trabalhado de forma homogênea nas pretensas atividades de leitura (Brandão, 2001). A legitimação da Lingüística Textual, que tem como objeto de estudo o texto, deu-se plenamente por diversas razões, uma vez que alguns fenômenos, tais como: a pronominalização, a seleção dos artigos, as relações semânticas entre as sentenças não-ligadas por conjunções, a diversidade da tipologia e outros, precisam de uma contextualização textual para que possam ser devidamente compreendidos e explicitados. Isso não era levado em consideração na lingüística frasal, pois a língua era tratada de forma muito redutora. Nas discussões relativas aos gêneros textuais, Marcuschi (2002) discute a escolha entre as denominações gêneros textuais ou gêneros discursivos. Se houver referência à primeira designação (gêneros textuais), entendemos haver uma alusão aos aspectos constitutivos de natureza empírica, sejam intrínsecos ou extrínsecos à língua. Se a referência for a gêneros discursivos, deverá ficar explícita a idéia de algo realizado numa situação discursiva. Os gêneros textuais aparecem na perspectiva da fala e da escrita dentro de um continuum tipológico das práticas sociais de produção textual. Para Brandão (2001), uma abordagem que privilegie a interação deve conhecer tipos diferentes de textos, com diferentes formas de textualização, visando a diferentes situações de interlocução. Esses fatos têm levado os estudiosos da linguagem à busca de uma classificação dos diferentes gêneros textuais. A autora ressalta que, além das classificações tradicionais da literatura, existe ainda a retórica antiga, que nos deixou como legado a sua classificação. Identifica três tipos de discurso, definidos pelas circunstâncias em que são pronunciados: deliberativo, judiciário e epidítico. O deliberativo ou legislativo é dirigido habitualmente a um auditório a quem se aconselha ou dissuade, correspondendo mais ou menos ao nosso discurso político. No judiciário, usado nos tribunais, o orador acusa ou defende. O epidítico é um discurso usado em ocasiões solenes, para elogiar e/ou criticar o comportamento e/ou caráter de um sujeito. Para a autora (op. cit., p. 19): O estudo de gênero foi, dessa forma, uma constante temática que interessou aos antigos e tem atravessado, ao longo dos tempos, as preocupações dos estudiosos da linguagem, interessando tanto à retórica quanto às pesquisas contemporâneas em poética e semiótica literária e às teorias lingüísticas atuais. Esta diversidade de campos do saber, voltada às questões do gênero, sem resultado numa variedade de abordagens – o que se atesta pela metalinguagem utilizada; têm-se usado às vezes indistintamente os termos: gêneros, tipos, modos, modalidades de organização textual, espécies de textos e discursos. 3. O TRABALHO COM OS GÊNEROS TEXTUAIS NAS SÉRIES INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL: discutindo possibilidades Os textos, orais ou escritos, variam em função de sua finalidade: informar, entreter, instruir, emocionar, anunciar, seduzir, convencer... De acordo com Bezerra (2002), a finalidade do texto determina sua organização, estrutura e estilo – seu gênero. Na observação feita, o trabalho pedagógico priorizou os gêneros que circulam nas práticas sociais de leitura dos alunos – carta pessoal, bilhete, notícia, texto de opinião, horóscopo, receita culinária, bula de remédio, lista de compras, piadas, poemas de cordel, dentre outros. Foi dado enfoque ao texto de uso social, subsidiados numa concepção sociológica do trabalho com a leitura e o trabalho com textos integrais. Mesmo existindo um plano de ensino norteador da prática pedagógica da escola, observamos que a professora desconsiderou esse plano e partiu para um trabalho mais direcionado para as experiências de vida desses alunos, levando em consideração os outros saberes. No trabalho observado, a preocupação maior da professora era contemplar os gêneros textuais que mais circulam na sociedade. Embora essa experiência tenha contemplado diversos gêneros textuais, por questões de espaço, fizermos um recorte e apresentamos em seguida o trabalho com dois gêneros: o texto de opinião e o bilhete. 3.1 A organização da fala e da escrita na sala de aula No 1º Ano do Ensino Fundamental, mesmo os alunos não tendo condições de defender seu ponto de vista por escrito, porque, na fase inicial, ainda não conseguem escrever de forma legível, os diálogos e a elaboração de textos coletivos contribuíram para que se fossem adquirindo conhecimentos a respeito da estrutura dos diversos gêneros textuais. Mesmo assim, alguns alunos já conseguia defender o seu ponto de vista por escrito. Assim, esses alunos compartilhavam com os demais as suas idéias expressas em produções escritas. O trabalho surgiu em decorrência do fato histórico relativo às eleições para a escolha do Prefeito Municipal. Observamos que esse momento histórico estava marcado pelo acirramento dos ânimos. Os momentos que antecediam as aulas eram marcados por insultos aos adversários políticos e intolerância entre os próprios alunos. Foi nesse cenário que a professora iniciou um trabalho com o texto de opinião, chamando a atenção dos alunos para a necessidade de respeitarmos o discurso dos outros. Observamos que houve todo um esforço da professora para convencê-los de que é comum as pessoas pensarem diferente. Sempre argumentava em sala que a maioria das vezes não concordamos com os nossos pais; temos, muitas vezes, em uma mesma família, religiões diferentes, times diferentes; gostamos de cores diferentes, de comidas diferentes... Nenhuma dessa divergência nos torna inimigos. A professora sempre argumentava que uma opção política deve ser respeitada da mesma forma que respeitamos as outras escolhas dos indivíduos. Depois de preparado o terreno para o respeito aos diversos discursos que circulariam no espaço da sala de aula, a professora partiu para o segundo passo que foi a proposta de debate sobre as eleições. Debateram propostas, currículo e posturas dos candidatos diante de determinados problemas sociais. A cada discussão em sala observamos que os alunos se sentiam mais à vontade para expressarem a sua opinião, respeitando o ponto de vista dos colegas. Como havia a possibilidade de discutirem as eleições no espaço de sala de aula, com a mediação direta da professora, os conflitos foram desaparecendo e a necessidade de melhorar a argumentação foi sendo o desafio maior. Defender seu candidato com bons argumentos poderia convencer os colegas, era uma possibilidade de voto. Desse exercício de argumentação, surgiram os textos que seguem: Ex 01: Olha, eu gostei das eleições. O meu pai votou para vereador porque tinha paixão. Não ganhou nenhuma camisa, mas não se arrependeu. Votou para prefeito e ele perdeu, mas ele não esquentou porque se ele tivesse ganhado ele não ia dar nada a nós. Só que ele é competente em tudo o que ele faz. Ex. 02: Nessa eleição muitos candidatos compraram votos. As pessoas trabalharam para os candidatos, mas não receberam. Quem vende o seu voto não tem consciência. A minha mãe votou em ... porque acha que ele é uma pessoa muito positiva que pode fazer muito por Campina. Acho que ele é muito competente e que ia ser um bom prefeito. Ex. 03: A minha família votou em ... porque ele nunca foi candidato a prefeito e acho que ele vai ser melhor, se não prestar a gente tira. Espero que ele administre muito bem a nossa cidade, que olhe para os pobres e faça o bem. Como vimos nos exemplos citados, os discursos dos alunos tinham a finalidade de convencer. Aos poucos foram abandonando a necessidade de acusar os outros candidatos, de ofendê-los com agressões verbais, e construindo um discurso de convencimento. Palavras como competente e administrar bem uma cidade passaram a fazer parte do vocabulário desses alunos que enriqueciam os seus discursos a cada participação em sala. Assim como Marcuschi (2001), entendemos que o ensino da língua portuguesa deve ter como um dos seus objetivos na aprendizagem, a exploração dos gêneros textuais nas modalidades de língua falada e escrita. Foi a partir dos debates que os alunos conseguiram expressar-se através da escrita de forma mais produtiva. Os PCN (1997) também enfatizam a necessidade de se ensinar os alunos a utilizarem os textos de que fazem uso. De acordo com esse documento, o aluno deve selecionar o gênero mais adequado a seus objetivos e à circunstância. Assim, se os alunos devem aprender a utilizar, no seu dia-a-dia, os textos de que fazem uso, então são esses os textos que devem circular no universo escolar. 3.2 O trabalho com o gênero bilhete Assim como Marcuschi (2001), entendemos o bilhete como um gênero textual pertencente ao domínio interpessoal. Caracteriza-se por apresentar um registro informal. Isso se verifica pelo fato de o destinatário ser comumente alguém com quem as relações acontecem no grau de informalidade. Ao questionar os alunos sobre suas expectativas no início do ano, alguns afirmaram que sonhavam em aprender a ler e a escrever cartas e bilhetes. Uma aluna disse sonhar com o dia em que poderia escrever um bilhete. O trabalho com bilhete iniciou com uma breve sondagem com os alunos. A professora questionou se eles tinham algum bilhete em casa, se já tinham escrito algum, se já receberam, para que serve o bilhete... Cada um dos alunos tinha uma experiência diferente com esse gênero textual. Depois dos questionamentos, a professora pediu que eles trouxessem para a sala de aula alguns bilhetes para serem lidos para os colegas e expostos em classe. De posse de alguns bilhetes trazidos pelos alunos, a professora fez a exploração desse gênero observando a sua estrutura e a escrita informal presente nesses textos. O desafio que lançou para a turma foi a escrita de bilhetes para os colegas. Distribuiu papéis e solicitou que eles trocassem bilhetes com qualquer assunto. Como nesse período os alunos do 1º Ano estavam em processo de alfabetização, apresentaram certa resistência para escreverem os bilhetes. Disseram que não sabiam escrever. A professora explicou que eles poderiam escrever do jeito que eles soubessem. O resultado desse desafio segue nos exemplos abaixo: Ex 04: C..., você é feia, mas mesmo assim eu gosto muito de você. S (1º Ano) Ex 05: Z..., eu a sabei de e Escola a pra perra J.... (Z..., eu acabei de ir à escola para pegar J...) R (1º Ano) Ex 06: R..., você pode até não aquerditar, mas eu gosto muito de você. Da sua amiga I (1º Ano) O mais importante nesse trabalho foi a possibilidade de os alunos usarem a linguagem escrita na interação com os outros. As palavras carinhosas (...eu gosto muito de você.), as brincadeiras com os colegas mais íntimos (exemplo 04), o sonho de escrever o primeiro bilhete para a mãe avisando que vai pegar a irmã na escola (exemplo 05), a alegria de receber um bilhete carinhoso de uma colega de sala e chorar de emoção afirmando o quanto foi importante receber esse carinho... essas vivências aproximaram mais a turma que passou a escrever bilhetes em casa, para os familiares. Como podemos perceber, as atividades propostas estavam sempre vinculadas às práticas sociais de linguagem. Segundo Meurer & Roth (2002) o ensino formal tem por competência o desenvolvimento da consciência sobre como a linguagem se articula em ação humana sobre o mundo, através dos gêneros textuais. Muitos autores também destacam essa importância, pois o poder e o impacto da linguagem no mundo contemporâneo e, conseqüentemente, a formação relativa do uso de texto e sua interação com o contexto onde ocorrem, não são percebidos pela maioria das pessoas, o que é de suma importância na educação de crianças, que vivem nos mais diversos contextos sociais. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Uma escola que almeje a democracia e a formação de sujeitos autônomos e críticos necessita rever a sua estrutura curricular e levar em consideração os conhecimentos que os alunos trazem a partir de sua história de vida e de seus interesses pessoais. A prática docente com crianças evidencia a necessidade de uma organização curricular que considere o texto de uso social como principal recurso. Assim, com a preocupação de aproximar o estudo da língua de seus usos, necessitamos desenvolver em uma sala de aula um trabalho que visa, principalmente, o aperfeiçoamento da prática social da interação lingüística, através do desenvolvimento das habilidades do aluno de falar e ouvir, escrever e ler, em diferentes situações discursivas, ou seja, um ensino que vise ao letramento. Ao nos restringir, basicamente, ao trabalho com as narrativas de ficção para recontar ou criar outra, com o pressuposto de que o trabalho no eixo narrar seria suficiente para o desenvolvimento de capacidades necessárias à escrita de outros gêneros textuais, não estamos, com essa prática de produção escrita, oferecendo subsídios necessários para que os alunos desenvolvam outras capacidades relacionadas aos gêneros explicativos e opinativos. Assim, em nosso trabalho pedagógico, devemos priorizar os gêneros que são mais freqüentes ou mais necessários nas práticas sociais de leitura dos alunos – cartão de aniversário, e-mail, carta pessoal, bilhete, notícia jornalística, propaganda, poema, revista em quadrinhos, histórias infantis, texto de opinião, receita culinária, bula de remédio, lista de compras, piadas, dentre outros. Devemos dar enfoque ao texto de uso social, subsidiados numa concepção sociológica do trabalho com a leitura e o trabalho com textos integrais. Observamos que o aprendizado dos gêneros representa um processo de socialização do aprendizado nos modos de organizar o conhecimento e na maneira de representar suas percepções e seu conhecimento para os outros. Cada um dos vários gêneros apresenta suas próprias exigências em termos de conteúdo, de estrutura e das seqüências lingüísticas que os compõem. Todos esses aspectos devem ser aprendidos mediante práticas sociais que desenvolvem as capacidades de linguagem dos aprendizes e as estratégias de aprendizagem. Na Educação Infantil e no início da 1ª série do Ensino Fundamental, mesmo os alunos não tendo condições de defender seu ponto de vista por escrito, porque, na fase inicial, ainda não conseguem escrever de forma legível, os diálogos e a elaboração de textos coletivos contribuirão para que sejam adquiridos conhecimentos a respeito da estrutura dos diversos gêneros textuais. Considerando a existência de uma multiplicidade de gêneros presentes no nosso dia-a-dia, percebemos que a apreensão desses gêneros tem efeitos sociais e ideológicos, pois à medida que ensinamos suas formas e possibilidades diferentes, os alunos se socializam com as estruturas e o sistema de valores da sociedade. Finalmente, o trabalho com gêneros textuais na sala de aula favorece a aprendizagem da escuta, leitura e escrita de textos diversos, com funções específicas, visto que a orientação do professor não será mais a de considerar apenas o aspecto formal do texto escrito, mas a de proporcionar o uso efetivo do texto por parte de seus alunos, abrindo-lhes oportunidades de se desenvolverem como cidadãos de uma sociedade letrada. Assim, a leitura e escrita não serão apenas práticas escolarizadas. 5. REFERÊNCIAS BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: _____. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra do título em russo Estetika sloviésnova tvórtchestva. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. BEZERRA, “História”: um gênero textual tipicamente didático? Revista do GELNE Vol. 2. No . 2. 2000. ____________, 2002. Ensino de língua portuguesa e contextos teórico-metodológicos. In: A. Dionísio, A. Raquel Machado, A. Bezerra. Org. Gêneros textuais & ensino. Rio de Janeiro: Lucerna. 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