Arte e oralidade entre os ashanti: classificação e interpretação dos pesos de ouro Chirinos, Lucia H. Borba Ao estudar a cultura material dos ashanti, observamos que eles são conhecidos, na literatura, por sua tradição metalúrgica, em especial pela sua produção de pequenas figuras de metal: os chamados pesos de ouro. Fundidos pelo método da cera perdida e com uma infinita variedade de formas, essas peças, que não são de ouro, mas de bronze ou latão, serviam como contrapeso para medir o pó de ouro. Mais do que pesos, elas veiculam provérbios e são símbolos cosmogônicos da cultura ashanti. Nesta exposição, vamos focalizar essas peças como transmissoras de idéias que concernem não a uma escrita formal, mas a uma oralidade que é plástica, visual e tátil. Há na África outras produções de arte tradicional que também possuem esse caráter não verbal expresso em formas e símbolos; como exemplo podemos citar os discos de madeira produzidos pelos bawoyo de Cabinda, Angola estudados por Carlos Serrano (1993) e que possuem uma linguagem proverbial impressa em escultura. É necessário dizer que o contexto histórico de comércio do ouro de escravos na região de onde esses pesos provêm coincide com o período do tráfico negreiro para o Brasil. Tem-se inclusive a indicação da presença da cultura ashanti, na auto-denominação do terreiro Fanti-Ashanti lá existente. Os fanti, assim como os ashanti, são grupos étnicos pertencentes ao complexo cultural akan, que abrange diversos outros grupos localizados em Gana e oeste da Costa do Marfim, na áfrica ocidental. Os ashanti, de que trata este artigo, se localizam na região centro-sul do atual território de Gana. Antes de tratar dos pesos, são necessários alguns elementos históricos para situar essas peças no seu contexto tradicional Por volta de 1400, se dá o surgimento de diversos reinos centralizados entre os akan. Esses reinos estabeleceram intercâmbios comerciais com as regiões ao norte do Saara, sendo o ouro, que era abundante na região akan, o principal artigo comercial. Os comerciantes do norte, que num primeiro momento monopolizavam o comércio com a região akan, traziam também novas tecnologias. Entre elas, a metalurgia e a fundição pelo método da cera perdida (Blier, 1997). A partir do séc.XV, o comércio do ouro foi incrementado com a chegada dos europeus na costa do Golfo da Guiné, por volta de 1670 (Blier,1997). É nesse contexto de desenvolvimento comercial, urbanização e crescimento do poder político com Estados centralizados, que se dá a exploração massiva das reservas de ouro da região. O meio de troca tradicional era o pó de ouro. A adoção universal do pó de ouro como meio de intercambio nos Estados akan criou a necessidade de uma grande quantidade de pesos correspondentes a uma escala de medidas, esta decretada pelo Estado, além de outros instrumentos de medida (Menzel, 1968). Os pesos foram usados durante aproximadamente cinco séculos (1400-1900) pelos povos akan e outros relacionados a eles. Mas o seu uso e manufatura por parte dos ashanti é o mais documentado e os levou a ser conhecidos nos catálogos de coleções e museus como "pesos de ouro ashanti". A partir da bibliografia consultada, podemos definir uma cronologia do desenvolvimento dos pesos de ouro. Para sistematizar, podemos definir três grandes etapas: no inicio da dinamização do comercio (1400) usavam-se grãos, sementes,pedras, conchas, ossos, contas de vidro, enfim, qualquer coisa que tivesse massa igual a uma dada unidade da escala podia ser usada como peso (Gillon, 1989). Mais tarde se desenvolveram pesos fundidos de bronze ou outra liga de bronze. Estes, assim como balanças e outros acessórios, eram manufaturados e vendidos por aurives. Os motivos eram extraídos do mundo natural, de artefatos produzidos pelo homem, bem como motivos geométricos. Acredita-se que os pesos de formato geométrico, embora coexistissem com os figurativos, tenham precedido estes (Gillon, 1989). Finalmente, num período mais recente (1700-1900), aparecem figuras menos abstratas; mais complexas de homens e animais, sendo verdadeiras esculturas em miniatura (Menzel, 1968). O que queremos ressaltar aqui é que na tecnologia ashanti, desde a manufatura dos pesos até a técnica de pesagem do pó de ouro, as pequenas figuras fundidas em metal extrapolam a dimensão funcional como contrapesos. Embora seja possível traçar alguns estilos formais, elas estão longe de serem padronizadas (tal como conhecemos os contrapesos ocidentais). À alta diversidade formal dos pesos de ouro corresponde um sentido iconográfico socialmente construído e que expressa a cosmovisão ashanti (e akan, de modo geral). Os Pesos da Coleção do MAE Levantamos no acervo do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo - MAE, sete pesos, todos de metal, mais especificamente latão, adquiridos através de doações e compras, dentre os quais se destaca a coleção doada pelo Museu de Gana. Na documentação de cada peso não há referencia ao sentido simbólico ou a existência de um provérbio ao qual a peça seja associada. Consta apenas a origem: "Gana ashanti"; e a função: "pesagem do ouro em pó". Algumas peças constam como sendo do período contemporâneo. Das outras não temos informações quanto à cronologia. Com relação ao significado dessas peças, procuramos em coleções catalogadas do gênero a interpretação de similares pela forma. Assim, temos na coleção do MAE, um peso que representa um escorpião estilizado. Essa peça tem dimensões relativamente grandes (10 cm. de comprimento e 6 cm. de largura), sendo o corpo do escorpião representado em forma de concha oval com a concavidade voltada para baixo, e a superfície texturizada com linhas estreitamente paralelas. As patas e as presas do escorpião são bastante simplificadas, curtas e próximas ao corpo. O destaque da peça é a grande cauda com o ferrão, disposta acima do corpo, em forma de gancho. À representação de escorpião, é atribuído o seguinte provérbio: "Se o escorpião pica uma boa mãe, a dor continua ate que o coração esfrie", ou seja, "se há uma pessoa problemática na casa, não haverá paz até que ela parta". A coleção do MAE, possui um exemplar de fundição por métodos diretos, este em forma de amendoim; e seis pesos que parecem ter sido manufaturados pelo método da cera perdida, sendo três pesos geométricos, e três figurativos. Dos pesos geométricos temos: um peso de formato quadrado, um peso em forma de retângulo e um peso em forma de pirâmide. Dos pesos figurativos temos: duas figuras animais - um escorpião e uma tartaruga - e uma figura antropomórfica. De acordo com categorias estabelecidas por diversos autores, podemos classificar os pesos ashanti de acordo com os seguintes critérios: 1. Pesos não fundidos. Ex. sementes, conchas, ossos, contas de vidro, cerâmica, fragmentos de metal. 2. Pesos de metal fundido. 2.1 Fundição direta (a partir de um modelo in natura). 2.1.1 - figuras vegetais. 2.1.2 - figuras animais. 2.2 Fundição pelo método da cera perdida (a partir de um modelo de cera). 2.2.1 Geométricos. 2.2.2 Figurativos. 2.2.2. Figuras animais. 2.2.2.2 Figuras antropomórficas. 2.2.2.3 Artefatos. 2.2.2.4 Cenas/combinações. Iconografia e provérbios: a transmissão de idéias A iconografia dos pesos deriva da percepção do homem de seu meio: o comportamento e relação entre os seres vivos; o padrão de crescimento dos vegetais; e as funções de vários objetos. Alguns animais são conhecidos por sua força, coragem ou paciência. Uma planta pode ser admirada por sua beleza, cheiro ou longevidade. E um artefato pode ser identificado com guerra, trabalho ou família. Algumas imagens estão associadas a máximas tradicionais ou provérbios (ex.o sapo é associado ao provérbio "a extensão total do sapo só é visível após sua morte", que pode ser interpretado como: o valor de um homem não pode ser devidamente reconhecido durante sua vida; um peso fundido diretamente de um vegetal remete ao provérbio: "o quiabo não mostra suas sementes através da pele", significando que há mais na mente humana do que mostra sua face). Outras imagens são simples metáforas (ex. a cobra enrolada traz a mensagem de alerta, perigo). Os significado dos pesos mais complexos, desenvolvidos principalmente no contexto de consolidação do reino Ashanti, estavam muitas vezes associados ao poder do rei na hierárquica sociedade ashanti, hierarquia essa que se expressa não só na organização política, mas também na religião e na cosmologia de um modo geral. Esses pesos expressam um esforço, por parte da realeza, de criação de uma identidade. E de legitimação de poder (Blier, 1997). Por exemplo, o peixe bagre era freqüentemente usado como símbolo real. Um peso bastante documentado representa um crocodilo e um bagre. Este peso está associado ao seguinte provérbio: "se o bagre engole algo precioso, ele o faz para seu mestre", ou seja, qualquer coisa que o bagre pega/come, volta para o crocodilo, que é o seu predador natural ou, entendido de outra forma, o seu "superior" natural (McLeod, 1971). Tão importante quanto a função didática de transmissão da moral, filosofia e códigos de comportamento, os provérbios também tinham na sociedade akan uma função estética ou poética (Boadi, 1972). O uso de provérbios no discurso era sinal de sofisticação no uso da linguagem. Hampatê-Bá (1980) nos lembra que nas sociedades orais (como é a grande maioria das sociedades tradicionais africanas), é de vital importância o elo que une o homem à palavra. A própria coesão da sociedade depende do valor e respeito à palavra. O que valorizava um provérbio era a qualidade das imagens que evocava: quanto mais incomum e concreta fosse a imagem, mais alto o valor do provérbio (Boadi, 1972). Na maioria dos provérbios, o significado transmitido é muito geral e pode ser aplicado a um grande leque de situações. Assim, por exemplo, o já citado provérbio sobre a relação entre o bagre e o crocodilo pode ser usado para se referir a interdependência dos chefes e seus súditos; bem como às crianças e os mais velhos; mas o vocabulário não é geral e abstrato, mas concreto e socialmente partilhado (McLeod, 1971). Assim é fácil entender o fato de que os pesos, como representações concretas, veiculavam noções, pensamentos abstratos. A palavra torna-se silenciosa, mas está presente, materializada em objetos, formas, representações gráficas. E a experiência humana, através do provérbio, é sintetizada e transmitida. BIBLIOGRAFIA BASCOM, William. The Akan Region. In: BASCOM, W. African Art in Cultural Perspective: an Introduction. New York: W.W. Norton & Company.INC, 1973. p. 6775. BLIER, Suzanne Preston. Le Royaume Ashanti: L'Age du Or du Ghana. In: BLIER, S. P. L'Art Royal Africain. Birmingham: Flammarion, 1997. p. 125-163. BOADI, L. A. The Language of Proverbs in Akan. In: DORSON, Richard M. African Folklore. Bloomington & London: Indiana University Press, 1972. p. 183-191. GILLON, Werner. El Arte de los Akan. In: Breve Historia Del Arte Africano. Madrid : Alianza Editorial, p. 145-171. 1989. HAMPÂTÉ-BÂ, Amadou. A Tradição Viva. In: J. KI-ZERBO (coord.). Historia Geral da Africa I - Metodologia e Pre Historia da Africa. São Paulo: Atica/Unesco, 1980. p. 181-218. MENZEL, Brigitte. Goldgewichte aus Ghana. Berlin : (Staatliche Museen) Museum für Völkerkunde, 1968. McLEOD, M. D. Goldweights of Asante. African Arts, Los Angeles, v. 5, n.1, p. 8-15, 1971. SERRANO, Carlos. Símbolos do poder nos provérbios e nas representações gráficas Mabaya manzangu dos Bawoyo de Cabinda - Angola. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, S. Paulo, n. 3, p. 137-146, 1993.