1 Olhou para o relógio por simples curiosidade. Quatro e trinta da manhã. Consultar as horas naquele momento já era um exercício que exigia uma certa concentração e por isso demorou uma eternidade a focar o mostrador. Miguel Correia estava sentado num banco alto do bar do fundo do Queen’s havia três quartos de hora. Tinha o cotovelo direito em cima do balcão enquanto a cabeça vacilava ao sabor da mão que a apoiava. Era aquilo uma sexta-feira de Outubro, mas o ambiente estava suficientemente quente no interior da discoteca para que a empregada pudesse usar apenas um top minúsculo. Ela vestia jeans apertadas e exibia a barriga lisa e as costas perfeitas. Tinha cabelo loiro, bem cortado pelos ombros. A rapariga era linda e sabia isso. Os seios dançavam com ela, enquanto se mexia ao som da música electrónica, e enfeitiçavam Miguel. Não tirava os olhos dela nem para bebericar o uísque aguado. De uísque estava cheio até cima, mas quando aquele acabasse ia pedir outro só pelo prazer de chamar a rapariga e poder vê-la debruçar-se sobre o balcão para conseguir ouvir o seu pedido por cima da música. — Mais um uísque — disse-lhe ao ouvido. Os olhos concentraram-se no decote da empregada. Decote? Aquilo não era um decote, aquilo era o paraíso. Tens as melhores mamas do mundo, apeteceu-lhe dizer. — Só com gelo — disse. 7 Aquela empregada era uma armadilha para os clientes. Apesar de muito bebido, Miguel ainda se mantinha suficientemente consciente para perceber isso. Mas estava-se nas tintas. Afinal de contas, no que é que um homem sozinho podia pensar àquela hora da madrugada senão em mulheres? Finalmente, distraiu-se com o relógio. Depois olhou em redor à procura dos amigos, mas não localizou nem um. Também não saberia dizer quantos o tinham acompanhado até ali. Eram cinco no início da noite, ao jantar. Miguel fora o último a chegar, pois estivera ocupado com alguns pormenores da edição do jornal do dia seguinte. Miguel considerava-se uma espécie de jornalista-faz-tudo n’O Popular, um tablóide guerrilheiro com sede num prédio antigo do Bairro Alto. O jornal ainda lutava para se impor no exíguo mercado nacional. Tinham saído do restaurante e percorrido tantas discotecas e bares que, no dia seguinte, Miguel seria incapaz de se lembrar de todos os lugares por onde passara ao longo da noite. Assim como também não conseguiria lembrar-se de quantos amigos haviam resistido até ao raiar do dia. 8