RAUL SEIXAS E A FILOSOFIA: uma análise marcuseana do maluco beleza na construção do indivíduo contracultural Larissa da Silva Souza, Alana Lisboa da Silva UEPA - [email protected], [email protected] Definir o que foi a contracultura em seus primeiros momentos não é uma tarefa tão simples e mais trabalhosa ainda sua compreensão. Cair no estigma de defini-la como um grupo de “jovens rebeldes que abusavam de álcool, drogas e sexo” ou ainda limitá-la a “hippies arruaceiros” é limitá-la dentro de um de seus aspectos. É importante ressaltar que quando tratamos de comportamento humano, temos de ter em mente que suas ações podem tendenciar para lados positivos ou negativos, dependendo de como é vista pela construção cultural de cada sociedade, de seu contexto histórico. E falamos de um movimento social que nasce de uma sociedade cuja construção social norte-americana do pós-guerra, elitista, exclusivista e racista, que é contra a cultura daqueles que não se encaixavam nessas escalas sociais, logo, contracultura é o que se opõe a um sistema sociocultural dominante, propondo maneiras alternativas para conduzirem suas perspectivas às relações humanas para além desse eixo. A contracultura é um elemento idealista, questionador de valores centrais e normas padrões como família, moda, religião entre outros. Consequentemente, isso resultaria na criação de uma nova cultura jovem-libertária, por vezes utópica. Era essa perspectiva de novos tempos que inspirava jovens a criarem suas maneiras de revoltar-se contra o sistema, marcando também a mudança de mentalidade de uma geração. Jovens da classe média ditavam suas regras comportamentais por meio da cultura underground. Assim, desde seu surgimento, ela construiu e se reconstruiu em diferentes gerações, às vezes com uma roupagem mais agressiva e outras de forma pacifista, mas sempre com o papel renovador da crítica social. A frase do célebre escritor brasileiro Machado de Assis, “As ocasiões fazem as revoluções”, ajusta-se muito bem quando discutimos os acontecimentos que levaram ao surgimento da contracultura. Quando nos deparamos com este fenômeno social, precisamos 1 compreender os eventos que desencadearam o surgimento da contracultura pelo qual a sociedade se encontrava. Após o fim da Segunda Guerra Mundial as tensões ideológicas mudavam de eixo, em razão da luta ideológica continuar entre Estados Unidos, que defendia um sistema econômico capitalista e a União Soviética, que adotara um sistema socialista, deixando o sentimento de que a paz fosse uma sombria incerteza. O então presidente dos Estados Unidos Harry S. Truman lançava um projeto de contenção do avanço do sistema socialista propagado pela URSS, este ficaria conhecido como Doutrina Truman, iniciando a Guerra Fria. O conflito entre essas duas nações ficou marcado pela corrida armamentista e tecnológica, enquanto o mundo era dividido simbolicamente entre capitalistas e socialistas. Não havia se passado metade da década de 1940 quando a contracultura anunciava seu nascedouro. O plano desigual e acomodado em que a sociedade se encontrava era motivo de inconformidade de uma juventude saída do pós-guerra, que cada vez mais encontravam na figura da cultura marginal uma forma de contestarem os valores da época. É nesse cenário também, entre os anos de 1940 e começo de 1950 que tem-se início um movimento literário conhecido como Beat Generation, nomes como Jack Kerouac e Allen Ginsberg ditaram uma nova forma de viver, contrariando o que era imposto pela sociedade. O Movimento Beat inspirava os jovens a uma revolução cultural, uma revolução jovem, seus poemas agressivos, a valorização da cultura underground (cultura marginalizada, como a música negra), aliada ao estilo “pé na estrada” representavam a busca frenética de uma vida intensa e aberta a todas as possibilidades. A sua influência seguiria pelas gerações seguintes. Em meio ao clima de tensões políticas e mudanças comportamentais, o ano de 1955 marca o começo de um novo conflito envolvendo os Estados Unidos, seria um estopim que ajudaria a abalar as estruturas da sociedade norte-americana: a independência do Vietnã. Após ter sua independência reconhecida, o país foi dividido em Vietnã do Norte, sob ideologias socialistas e Vietnã do Sul, um regime ditatorial. O confronto capitalismo versus socialismo gerou o apoio dos EUA às tropas do Vietnã do Sul, que combatia os vietcongs do norte do país. Em 1964, sob a justificativa de ataque as embarcações norte-americanas, os Estados Unidos entra oficialmente na guerra e passa a atacar o Vietnã do Norte, essa decisão foi alvo de duras críticas da população. Dentro dos Estados Unidos as tensões entre os ativistas negros aumentaram desde que o pastor protestante Martin Luther King liderou o boicote aos ônibus de Montgomery em 1955, em protesto pela prisão de Rosa Parks, o que o transformaria em um dos principais líderes pelos direitos civis dos negros, propagando uma campanha de protesto pacífica, o não uso da violência e respeito ao próximo, tal como ‘Mahatma’ Mohandas Gandhi pregava quando lutava pela independência da Índia. Enquanto isso, a América do Sul sofria com a instalação das ditaduras militares, de modo a conter a expansão comunista, principalmente depois da Revolução Cubana, lideradas entre 1953 e 1959 pelos então revolucionários Ernesto Guevara de la Serna e Fidel Alejandro Castro Ruz. Iniciada através da Operação Condor, as instalações do regime militar contaram com a ajuda dos Estados Unidos e durante o ano de 1960 foram implantadas em países como Argentina, Brasil e Chile. Nesse contexto, Ernesto Guevara torna-se um dos principais líderes do movimento de guerrilha comunista, anticapitalista e também antiamericanismo pela América Latina, tornando-se um ícone da contracultura pelo mundo. Dentro das universidades, o movimento estudantil ganhava espaço. Obras de autores como Karl Marx e Jean Paul-Sartre faziam uma revolução ideológica que permitia ao jovem analisar e pensar na forma em que a sociedade se firmava, levantando uma reflexão sobre como sua nova visão de mundo passaria a alterar as normas de uma cultura dominadora. Anunciava-se, então, o início do mais conhecido segmento da contracultura: o movimento hippie. Os hippies eram fortes antagonistas ao american way of life (estilo de vida americano) e seus valores políticos e morais. A negação do patriotismo, oposição à guerra, orientalismo, estilo de vida pacifista, direitos civis iguais para negros e mulheres, uso de drogas e contrariedade à estética padrão. As ações desse movimento ficaram marcadas na história por dois grandes eventos: O Verão do Amor e o lendário Festival de Woodstock. O Verão do Amor foi uma série de protestos que ocorreram em 1967, ganhando destaque na Califórnia, quando uma multidão com cerca de trinta mil pessoas se reuniu para protestar principalmente contra a guerra do Vietnã, contando com a presença de um dos representantes da Beat Generation, Allen Ginsberg e o “papa” do LSD Timothy Leary, que pregava à multidão o estilo Turn on, tune in and drop out (expressão que dizia para as pessoas “ligarem-se e caírem fora do sistema”). Por sua vez, ocorrido em 1969, O Festival de Woodstock (Woodstock Music & Art Fair) reuniu 400 mil pessoas para um fim de semana que o tornaria um dos maiores momentos do movimento hippie e da contracultura. Inicialmente, o evento organizado por Michael Lang, John P. Roberts, Joel Rosenman e Artie Kornfeld seria um investimento financeiro com a exposição de artes e atrações musicais de renome da época, realizado nos arredores da pequena vila de Bethel, mas uma grande multidão de pessoas invadiu o local, tornando-o assim um evento gratuito. Era o clímax do movimento hippie. No Brasil, o país passava por uma forte mudança em seu sistema constitucional, pois em 31 de Março de 1964 foi deflagrado um golpe militar ao governo de João Goulart, abrindo uma forte repressão aos movimentos de esquerda com atos de tortura e censura, milhares de pessoas tiveram seus direitos depreciados. Para que essas ações fossem legalizadas o regime instaurou o AI-05 (Ato Institucional), no qual tinha por objetivo apurar atividades consideradas subversivas, nesse caso atos de caráter esquerdista. Esse regime totalitário só teve força devido ao apoio de setores como a grande parte do empresariado da área rural e das mídias, igreja católica, alguns importantes representantes políticos e ao apoio de grande parte da classe média, ambos visando tanto o fim da ameaça comunista quanto o controle da crise econômica em que o país se encontrava. A oposição à cultura dominante ganhava força nos Estados Unidos e corria o mundo, propagando mudanças nas estruturas sociais, econômicas e políticas, a exemplo da descolonização da África, da Ásia e a eclosão de Maio de 1968 em Paris, que refletiria no Brasil com absorção do rock and roll, observados dentro do movimento conhecido como Jovem Guarda, embaladas pela rebeldia juvenil e os ideais de esquerda, indo contra a estética cultural do país, com o adoção do comportamento rebelde e contestador, propagando um pensamento de contestação da sua própria realidade, entre músicas como “quero que vá tudo pro inferno”, do cantor Roberto Carlos, representava o cenário musical brasileiro. Nesse contexto surge no Brasil no ano de 1967, a Tropicália, movimento que utilizou de suas próprias raízes, nesse caso a cultura nacional, diferente da Jovem Guarda, trazendo em suas composições influências do rock estadunidense incorporando aspectos culturais nordestinos, a psicodelia e os acordes da guitarra elétrica, nas roupas levadas mais coloridas seguindo o estilo hippie, suas letras eram mais críticas, indo de contra a Bossa Nova, pelo qual suas letras eram mais neutras e melódicas sem representar de fato todo o ambiente que o país vivia. Essa corrente tinha como representantes no campo musical o cantor e compositor baiano Caetano Veloso, Torquato Neto, também poeta, Gilberto Gil, Os Mutantes, Tom Zé, o maestro e arranjador Rogério Duprat, as cantoras Gal Costa e Nara Leão, nas Artes Plásticas Hélio Oiticica e outros criadores, na esfera audiovisual Glauber Rocha e seu Cinema Novo, mostrando a pobreza e as desigualdades brasileiras e no teatro José Celso Martinez Corrêa. Por conseguinte, o ambiente estimulou o fortalecimento de bandas de rock and roll nacionais, com suas letras críticas elucidadas por bandas como Titãs, Paralamas do Sucesso, Legião Urbana, entre outras, no entanto, não foi somente no rock que a contracultura se manifestou, no movimento do hip hop, sustentadas pela beat eletrônica, com letras mais ácidas eclodindo das periferias para os centros urbanos, como forma de demostrar as desigualdades e violência do país, mas não somente a violência física, mas a simbólica, pois as minorias da sociedade, como as mulheres e os negros, discutiam temas acerca do aborto e da valorização da cultura negra. Uma breve biografia: de Raul Santos Seixas ao maluco beleza Em meio à classe média baiana, no dia 28 de Junho de 1945, nascia Raul Santos Seixas, filho do engenheiro Raul Varella Seixas e da dona de casa Maria Eugênia Santos Seixas, na cidade de Salvador, até então primeiro filho do casal, no qual posteriormente em 04 de Dezembro de 1948 nasceria seu único irmão, Plínio Santos Seixas. Antes de Raul se interessar pelo rock seu propósito de vida era ser escritor e escrever um tratado da metafísica, preocupando-se com problemas da vida e morte, de onde vinha e para onde iria, reflexões identificadas em suas composições, foi quando começou a inventar as suas próprias estórias relatadas ao seu irmão. Seu interesse mudou quando no filme Rock Around the Clock de Bill Halley, se deparou com o comportamento rebelde dos jovens que aderiam ao rock and roll, seu amor se intensificou quando passou a morar próximo ao consulado americano bem como o contato direto com os estrangeiros que implantavam em Raul toda uma influência estadunidense. Apaixonou-se por Elvis Presley, resultando na fundação do Elvis Rock Club e a exteriorização de todos os trejeitos de seu ídolo, mas suas influências também passavam por Little Richard, Frank Zappa, Vanilla Fudge, Rolling Stones entre outros. Com a primeira banda chamada The Panthers, que logo após passou a se chamar Raulzito e Seus Panteras, Raul viajou pelo interior da Bahia até apresentações na TV local, foi quando percebeu que gostava de estar nos palcos, mas suas composições vieram mesmo após o contato com as obras da banda The Beatles e suas composições que falavam das próprias experiências, então percebeu que podia ser um veículo, não mais um “revoltado sem causa”, e com a banda foi para o Rio de Janeiro, porém sem sucesso, retornando para Salvador tempos depois. Raul Seixas retornou para o Rio de Janeiro, mas dessa para ser produtor da CBS e foi como ele mesmo diz onde aprendeu a fazer música comercial, produziu artista como Jerry Adriane, Trio Ternura, Renato e Seus Blue Caps, Tony & Franie, Diana e Sérgio Sampaio, no entanto foi expulso da gravadora após gravar um disco sem autorização intitulada Sociedade da Grã-Ordem Kavernista: apresenta sessão das dez, junto com outros músicos. Inscreve-se no VII Festival Internacional da Canção em 1972 produzido pela TV Globo com a música Let Me Sing, Let Me Sing misturando rock e baião, no qual ficou entre as finalistas, obteve notoriedade, mas o sucesso só veio com a música “Ouro de Tolo”. Inicia seus estudos esotéricos após o contato com Paulo Coelho, em 1973, bem como o uso de drogas e juntos lançam a Sociedade Alternativa sob as teorias do ocultista Aleister Crowley. Nos shows distribuía gibi/manifesto chamado “A Fundação de Krig-ha”, cujos ideais não agradaram a todos, sendo preso e torturado pelo DOPS até expulso do país, partindo para os EUA junto com Paulo Coelho, retornando ao Brasil após o sucesso da música Gita tocada de norte a sul do Brasil, no mesmo período acabara a parceria com Paulo Coelho. Com algumas decepções em relação aos seus discos, ou pela má divulgação ou até mesmo por não achar gravadora, pois todas já não queriam mais produzi-lo, Raul afundava-se cada vez mais no álcool e nas drogas, em que consequentemente teve de se afastar duas vezes para o interior da Bahia para se tratar, sempre retornando com uma aparência melhor e mais saudável, no entanto, já estava com um quadro de pancreatite e também hepatite, apesar de no período estar fazendo sucesso com algumas canções não estava mais se apresentando em decorrência de sua saúde. O retorno aos palcos se deu com o convite do vocalista da banda Camisa de Vênus, Marcelo Nova, que também era seu fã, para gravarem juntos uma faixa para o seu CD e após uma turnê pelo país, nesse período já estava afastado a três anos do palco. A turnê rendeu o lançamento do disco A Panela do Diabo, lançado dois dias antes da morte de Raul Seixas, no qual foi encontrado morto em seu quarto pela empregada no dia 21 de Agosto de 1989 às nove horas da manhã, resultado de uma parada cardíaca provocada pela pancreatite que sofria há dez anos. A notícia de sua morte logo chegou à imprensa e amigos, no qual juntos com os jornalistas e fãs se dirigiram ao prédio onde residia. Chegava ao fim a carreira de um dos artistas mais geniais que o país já teve, mas suas músicas perpassam por gerações e cada vez mais consegue adeptos de sua filosofia. Raul e Marcuse na construção do indivíduo contracultural Fundada em 1924 a Escola de Frankfurt foi uma das principais fontes de reflexão crítica da sociedade moderna, resultando no Instituto de Pesquisa Social, cujo seus integrantes influenciados pela teoria de Marx, apesar de algumas críticas que os teceram, forneceram grandes contribuições à crítica da sociedade capitalista industrial e à teoria tradicional representada pelos filósofos desde Descartes, no qual o racionalismo atingiu seu auge no Iluminismo. Seus integrantes como Theodor Adorno, Max Horkheimer, Walter Benjamin, Herbert Marcuse, entre outros, exerceram forte oposição ao modo como o sistema capitalista tirava a autonomia do indivíduo através da dominação pela dimensão instrumental a serventia da sociedade industrial e seus poderes dominantes, pois a ciência, o conhecimento e tecnologia como possibilidade de emancipação do homem bem como uma melhoria em sua condição humana, idealizados pelos pensadores modernos, perderam seu caráter libertário, resultando no desaparecimento do sujeito autônomo mergulhado em uma sociedade unidimensional, equivalente ao conceito de Marcuse, portanto, os frankfurtianos, em linhas gerais, defendiam a potencialidade e a necessidade, através da razão, assumirem o próprio destino já que são sujeitos da própria história. À vista disso, nosso principal alvo de estudo se detém ao filósofo Herbert Marcuse e em duas de suas principais obras para fomentar o pensamento acerca do indivíduo contracultural, a obra A Ideologia da Sociedade Industrial e Eros e Civilização. Diferente dos demais autores frankfurtianos, Marcuse visionava uma formulação mais humanizada da filosofia. Quando houve o fim da segunda guerra mundial, o filósofo observou que novas formas ideológicas de domínio apresentavam-se em disputa pela sua instalação. O Imperialismo cedia lugar pela disputa entre capitalismo versus socialismo. Logo percebera que os fatores econômicos e históricos não seriam capazes de explicar o fracasso das revoluções, já que estas eliminavam um sistema de domínio para caírem em um novo sistema repressor. Em seu julgo, as revoluções caiam sempre em fracasso, mesmo que as condições para estas fossem favoráveis. Estaria então, a repressão implantada no sujeito em uma sistematização de dimensões psíquicas que a tornassem a dominação um ciclo? Essa questão acarretaria em um estudo aprofundado das teorias de Freud, que culminaria na obra Eros e a Civilização, onde Marcuse faria a junção das teorias sociológicas de Marx com os fundamentos da psicanálise freudiana. Isso permitiria que o autor considerasse um ponto muito importante, embora muitas vezes desconsiderado ou esquecido: a subjetividade humana. Compreender a formação do aparelho mental expandiria a possibilidade de um estudo mais detalhado das formas de repressão do indivíduo. Para Marcuse, a problemática se encontra na construção do sujeito, haja vista que o indivíduo é condicionado desde a formação da consciência a ceder o prazer pelo trabalho (formulação dada pelo princípio do prazer subjugado ao princípio da realidade na teoria freudiana), elaborando os conceitos de “mais-repressão” e “princípio de desempenho”. “A “mais-repressão” está ligada às restrições requeridas pela dominação social e as modificações dos instintos necessários para a perpetuação da raça humana, já o princípio de desemprenho é a forma histórica predominante do princípio da realidade” (MARCUSE, 1975, p. 50). Desse modo, as necessidades e a busca pela sua supressão foram atreladas nas formas de dominação, não excluindo desse processo o progresso técnico, material ou intelectual, mas transformandoos em elementos constitutivos para a preservação da dominação. A energia potencial do indivíduo é canalizada para desempenhos sociais úteis, em que o indivíduo trabalha para si mesmo somente na medida em que trabalha para o sistema, empenhado em atividades que, na grande maioria dos casos, não coincidem com suas próprias faculdades e desejos, porque a energia sexual primitiva localizada no Id (libido) é transferida para funções de trabalho técnico. Ao longo da construção da sociedade, a modificação das pulsões afeta os instintos de vida e morte (representados pela figura de Eros como energia erótica e Thanatos como energia destrutiva). As formas de dominação estão tão entranhadas nas dimensões biopsicossociais que as verdadeiras revoluções só ocorrem quando as revoluções socioculturais trabalham para que “a força libertadora de Eros, que não pode ser totalmente reprimida e que sempre retorna à superfície, faz explodir os quadros da sociedade estabelecida” (LOUREIRO, 2005, p. 12). Enquanto o Eros é a pulsão pela vida, pela convivência em sociedade a manifestação do princípio de prazer, mas não somente como interpretação erótica, mas como tudo aquilo que dá prazer ao homem pelas exteriorizações de seus instintos, existe o oposto a esse sentimento denominado Thanatos, no qual se refere às pulsões da morte relacionada à morte de toda uma manifestação positiva do Eros também como simbólica à sociedade, não obstante, esse instinto destrutivo é capaz de desfazer conexões e levar os instintos de prazer ao seu ponto inicial antes de sua manifestação. Em Marcuse o indivíduo quando não está sob condições repressivas sua libertação se dá através do Eros em que sua auto-sublimação tende à expansão de uma forma mais prolongada, assim intensifica e expande os instintos prazerosos numa luta pela sua permanência, no entanto, quando sua natureza oposta mais conservadora tenta inibir sua permanência a sua forma de opressão ao oprimido cria uma liberdade ilusória, essa razão tomada pela ação repressiva abre caminhos para uma satisfação cada vez mais individual ocasionando sua própria divisão hierárquica, porém esse conflito não se faz mais forte na dicotomia entre razão e instintos, mas em um conflito interno no indivíduo, ou seja, as pressões que os instintos geram em si próprio em consequência da ação da mais-repressão no indivíduo, pois Thanatos vem como forma oposta a libido em Eros, podendo inferir que quando Eros chega a seu máximo poder libidinal logo vem a sua “acomodação”, isso quando não ganha a luta por sua permanência, aparecem os instintos de morte manifestados por Thanatos o reprimindo e aguardando outra manifestação. Após uma vida bem cumprida, podem chamar a si a incumbência da morte – num momento de sua própria escolha. Mas até o advento supremo da liberdade não pode redimir aqueles que morrem em dor. É a recordação deles e a culpa acumulada da humanidade contra as suas vítimas que obscurecem as perspectivas de uma civilização sem repressão. (MARCUSE,1975, p. 204). Portanto, Thanatos como impulso destrutivo não destrói completamente uma ideologia de libertação manifestada em Eros, a morte carregada por ele pode trazer ao eterno toda uma luta desenvolvida pelo indivíduo contra a repressão do sistema dominante, pois o que morre são as frentes diretas de confronto devido já se ter “alcançado” o objetivo de uma mudança na ordem, apesar de para o filósofo alemão essa mudança não ser completa, pois a população básica e o prazer não terem sido absolutamente superados, nesse caso a população básica em sua grande maioria ainda ser dominado e o prazer ainda estar vinculado às falsas necessidades e à produtividade industrial, mas sim as “caras” do movimento terem se eternizado pelo confronto ao domínio estabelecido pelo sistema repressivo e servirem de exemplo e inspiração para uma civilização livre quando esta estiver entrando em colapso novamente. Em uma análise da sociedade industrial desenvolvida, Marcuse abre uma reflexão a respeito do papel que a sociedade tem sobre o indivíduo bem como faz uma severa crítica a essa sociedade industrializada e a função que é dada a tecnologia. Sua reflexão parte do meio mais desenvolvido pelo maior poder totalitário que esta possui “disseminando-se pelas áreas menos desenvolvidas e até mesmo pré-industriais e criando similaridades no desenvolvimento do capitalismo e do consumo” (MARCUSE, 1973, p. 18). Á vista disso, Herbert Marcuse configurou seu pensamento e chegou a uma sociedade unidimensional, no qual o homem passa por uma forte alienação que perde a sua dimensão crítica acatando um “pensamento positivo” a respeito de sua própria condição, pois não se devem utilizar dados empíricos de uma sociedade dominadora para validar uma teoria crítica, porque os resultados serão os impostos e desejados pelo sistema opressor, diante disso, ele constatou que uma liberdade ilusória e democrática prevaleceria à civilização industrial, no qual só se faz possível com o processo técnico sob o domínio dessa civilização, no qual cria novas formas de poder impondo falsas necessidades aos dominados, logo, com uma administração totalitária propaga-se sentimentos opostos à labuta agindo contra uma modificação qualitativa do estado do próprio indivíduo o levando a necessidade falsa e uma felicidade ilusória, além disso, com o “pensamento positivo” atos como a destruição da natureza em detrimento de um avanço tecnológico, por exemplo, fazem com que o pensamento que deveria refutar essa ação, acabar consentindo e apoiando por achar que este avanço lhe trará benefícios, nesse caso podemos tomar como exemplo o avançando da cidade sobre as áreas verdes cercadas pela ação e poluição do homem, onde essa área verde deixada pelo governo está ali apenas para satisfazer o lazer do indivíduo, onde “a absorção do negativo pelo positivo é validade na experiência diária, que obscurece a distinção entre aparência racional e realidade irracional” (MARCUSE, 1973, p. 210). Por conseguinte, para Marcuse a teoria crítica tem um papel fundamental que é a luta para demonstrar e definir esse caráter estabelecido dito racional como irracional para uma transformação qualitativa de suas tendências, sendo possível também com a ajuda de uma nova tecnologia, onde essa transição se daria por uma tecnologia pacificadora que luta pela existência humana bem como as populações de base. Quando analisamos as letras das músicas Sociedade Alternativa e Não Quero Mais Andar Na Contramão, encontramos alguns elementos da filosofia marcuseana. Para tanto, primeiramente analisaremos o trecho da música Sociedade Alternativa: Se eu quero e você quer Tomar banho de chapéu Ou esperar Papai Noel Ou discutir Carlos Gardel Então vá! Faz o que tu queres Pois é tudo Da Lei! Da Lei! Viva! Viva! Viva a Sociedade Alternativa Para adentrarmos na interpretação, consideraremos algumas explicações sobre as vertentes de dominação do homem e a subordinação da felicidade: I - a um trabalho que ocupa toda a jornada do indivíduo; II - à disciplina da reprodução monogâmica; III - ao sistema constituído das leis e da ordem. Isso quer dizer que o sacrifício etódico da libido e seu desvio imposto para atividades e expressões socialmente úteis, pela via da sublimação das pulsões, constituiriam a cultura. Quanto à sublimação, essa seria uma das vias que a civilização impõe ao sujeito para assegurar o controle das pulsões. (FERNANDES, 2011, p.289) O homem desconheceria a propriedade de prazer porque ela é condicionada a uma satisfação pelo trabalho ou por outras formas de comportamentos de acordo com os padrões da sociedade. Esses elementos só não poderiam subjugar um elemento em que Eros poderia se manifestar e expelir a sua repressão: a arte. A arte seria uma espécie de canal em que Eros diminuiria a pressão sofrida, podendo expressar seus desejos subjetivos. Em Sociedade Alternativa podemos perceber uma tentativa de construir um modelo baseado em impulsos de Eros. Uma maneira alternativa de viver, apoiada na vontade e na escolha subjetiva do indivíduo, baseados nos princípios, a exemplo do misticismo que o sujeito contracultural seguia. Baseado no Liber AL vel Legis, do ocultista britânico Aleister Crowley. Ela é estruturada na vontade com que o indivíduo agia (baseadas pelo princípio do prazer), cabendo dentro da lei (de Thelema). Essa música é uma grande difusora de uma proposta de sociedade que ficou no campo das ideias de Raul. Ela exprime todo o sentimento de liberdade que o sujeito pode ter. Poderia ser a grande expressão de Eros na construção artística de Raul? Quando Raul Seixas fala em Sociedade Alternativa, compreendemos que sua construção artística (no caso, a musical) é o canal para propagar um de seus impulsos que não são restringidos pela cultura dominante (quando falamos em Eros e a Civilização). Ela é a via para pregar uma nova forma de construção social baseada na vontade, aos moldes do princípio do prazer: “faz o que tu queres, pois é tudo da lei”, de fato, essa frase encontrada no livro da Lei de Crowley e introduzida na música de Raul Seixas é também uma forma da expressão do Eros dominado encontrar uma forma de manifestação. Embora o próprio Raul não saiba explicar sua definição, a Sociedade Alternativa expressa mais um estilo de vida, uma fantasia. Aliás, a fantasia é onde nossas memórias de antes de nos constituirmos como seres sociais estão armazenadas, também onde estão todos os nossos desejos e vontades, a exemplo de “esperar papai Noel” ou “tomar banho de chapéu” que Raul cita na música, algo que não tenderia a reprimir a vontade, a busca da felicidade de uma maneira mais humanizada. A fantasia seria, então, uma forma de manifestação protestante tanto do sujeito quanto do coletivo. Essa fantasia de Raul Seixas seria uma forma de protestar contra as suas pulsões reprimidas. Como uma parte de sua produção artística visou difundir o projeto da Sociedade Alternativa, podemos exemplificar perfeitamente como a arte pode favorecer a fantasia para libertação do homem, desde que este não transforme-a em um bloqueio temporário da realidade. Passaremos agora a análise do trecho da música Não Quero Mais Andar Na Contramão: Titia que morava Na Argentina Riu de mim porque Eu não “intindi” Me trouxe uma caixa De perfume heihei Daquele que não tem Mais por aqui ... Eu disse: Não! Não! Não! Não! Não brinco mais carnaval Cansei de desmaiar no salão Muito obrigado! Eu já andei perfumado Não quero mais andar na contramão. A música Não Quero Mais Andar Na Contramão faz parte do álbum A Pedra de Gênesis de 1988, um ano antes de sua morte, trata de uma fase obscura de Raul, no qual já tinha passado por algumas internações pelo abuso do álcool, sua saúde estava mais debilitada devido a pancreatite. Partindo do pensamento de Marcuse o remontando a letra da música de Raul Seixas, podemos notar a ação de Thanatos nas suas passagens, a morte simbólica do seu pensamento revolucionário manifestado pelo Eros, onde antes impulsionado pelo seu princípio de prazer pretendia uma mudança dentro da sociedade repressiva, porém quando na música ele diz “não quero mais andar na contramão”, Thanatos age desfazendo as conexões antes realizadas por Eros o levando ao “adormecimento” de seu pensamento revolucionário, essa mudança pode ser entendida, primeiramente, pela ação das pulsões, pois como se trata de conflitos internos direcionando-se para sua auto conservação, nos trechos identificados pela recusa aos produtos oferecidos pelos amigos. Outro ponto que pode ser destacado se trata ao próprio contexto de Raul e as dificuldades enfrentadas na época destacados nos trechos que demostram as consequência do uso das drogas “Não brinco mais carnaval, cansei de desmaiar no salão.", no qual podemos remontar ao vício do Raul sobre o éter, caindo em uma “unidimensionalidade”, em que o homem perde seu caráter crítico acatando ao “pensamento positivo” de sua própria condição, no qual pela “indústria das drogas” e o seu poder de alienação não percebe que foi vítima, abusando do uso de drogas que deixaram seu corpo fragilizado, à vista disso assumindo uma falsa necessidade que o levou a uma “euforia na infelicidade” (termo que se refere a uma felicidade ilusória), que consequentemente o deixou dependente das drogas. Como Thanatos não age somente de uma forma negativa, porque ele pode interromper a manifestação revolucionária de Eros e seus instintos de vida, mas não o que já foi manifestado e enraizado na sociedade, aqui, se for observada por outro ângulo de quem tem por finalidade a mudança, o pensamento revolucionário de Raul eternizado em suas letras diante do confronto ao domínio estabelecido pelo sistema repressivo são utilizadas por gerações depois de sua morte. Considerações finais Tanto Raul Seixas quanto a contracultura em um contexto geral englobaram um elemento fundamental que conduziria para libertação do homem: a negação do modelo social em que o homem é dominado pela evolução técnica. A tentativa de mudança que a contracultura apresentou é em parte uma demonstração das forças que Eros representa no poder de libertação. Raul elaborou como poderia ser uma sociedade construída em princípios da vontade e da não alienação do homem pelo trabalho, contudo, estes não poderiam ser os caminhos reais que levariam a um novo princípio da realidade que Marcuse idealizou. O primeiro ponto que impossibilitaria essa revolução está localizado no formato da estrutura, que abrangia algumas determinadas classes e movimentos da sociedade. Para Herbert Marcuse, a verdadeira revolução se dá em conjunto com todas as vertentes que constituem a sociedade, algo que não aconteceu pelo período de maior manifestação da contracultura. Outra parte que infundamentaria sua total liberdade é que a grande maioria daqueles que seguiam os ideais da contracultura deixaram-se levar pela total vontade do Id. Quando se vive em um contexto de grande repressão do Eros, apesar de ser a parte das pulsões de vida, também pode apresentar conotações destrutivas quando totalmente cedidas ao controle do Id, isso é o que Marcuse caracteriza com um lado sombrio de Eros. Não que Marcuse invalidasse o ocorrido, mas que haveria uma necessidade de um pensamento político mais crítico e estruturalizado que levasse a verdadeira revolução de classes. No entanto, o impasse ao se chegar nessa fantasia de um meio diferente, o indivíduo deverá manter-se com as manifestações de seu instinto de prazer sempre manifestada, para não ocorrer os riscos de se chegar ao “Nirvana” da contestação e a mudança social de seu status quo e não acomodar-se com a sua “conquista” trazendo à tona o Thanatos para uma morte de sua ideologia. Todavia, essa morte não se dá completamente, pois as obras realizadas que tiveram o caráter libertário da sociedade não morrem completamente, ficam vivas, nesse caso, nas obras de Raul Seixas embaladas pelas melodias de suas canções despertando no indivíduo reprimido o fio que irá desencadear na manifestação de seu princípio de prazer e por fim na busca de mudanças da sua própria condição, pois o indivíduo contracultural deve sempre questionar os valores centrais tidos como racionais em uma sociedade industrial. REFERÊNCIAS BOSCATO, Luiz Alberto de Lima. Vivendo a Sociedade Alternativa: Raul Seixas no panorama da cultura jovem. 2006. 248 f. Tese (Doutorado em História Social) – FFLCH/USP, São Paulo. CHAUI, Marilena. Convite à filosofia. 9. ed. São Paulo: Ática, 1997. FERNANDES, Sergio Augusto Franco. Marcuse e os limites da sua utopia. Revista Filos., Curitiba, v. 23, n. 33, p. 287-300, jul./dez.2011. FILHO, Adauto Lopes da Silva. O Marxismo de Marcuse na Escola de Frankfurt. 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