O AVIÃO E
A MARMOTA
1
A dois mil pés, onde Claudette Sanders recebia uma aula de voo, a cidade de
Chester’s Mill cintilava à luz da manhã como algo que acabou de ficar pronto
e de ser ali pousado. Os carros rodavam pela rua principal, relampejando piscadelas de sol. A torre da Igreja Congregacional parecia tão aguda que poderia
furar o céu imaculado. O sol correu pela superfície do riacho Prestile quando o
Seneca V o sobrevoou, avião e água cortando a cidade na mesma rota
diagonal.
— Chuck, acho que estou vendo dois meninos ao lado da Ponte da Paz!
Pescando! — O seu próprio deleite a fez rir. As aulas de voo eram cortesia do
marido, primeiro vereador* da cidade. Embora, na sua opinião, se Deus quisesse que o homem voasse, teria lhe dado asas, Andy era um homem fácil de
convencer, e Claudette acabou conseguindo o que queria. Ela adorou a
experiência desde o princípio. Mas não era só divertimento; era euforia. Aquele
era o primeiro dia em que entendia mesmo por que voar era tão bom. Por que
era tão legal.
Chuck Thompson, o instrutor, tocou o manche de leve e apontou o painel de instrumentos.
* As cidades pequenas do estado americano do Maine são administradas por uma Câmara
de Vereadores (em inglês, Board of Selectmen) formada por três ou cinco representantes
eleitos. Não há prefeito, e as leis são criadas e aprovadas por assembleias das quais participam os moradores da cidade. A Câmara de Vereadores tem função mais executiva do que
no Brasil: convoca eleições, nomeia funcionários, especifica algumas taxas, supervisiona
alguns órgãos administrativos e cria regulamentos básicos. Só as cidades maiores têm prefeitos. (N. da T.)
15
— Não duvido — disse ele —, mas vamos manter o lado branco para
cima, Claudie, tudo bem?
— Desculpe, desculpe.
— Não há de quê. — Há anos ele ensinava aquilo às pessoas e gostava de
alunos como Claudie, que ficavam ansiosos para aprender coisas novas. Logo,
logo ela custaria um bom dinheiro a Andy Sanders; adorara o Seneca e já tinha
dito que queria um igualzinho, só que novo. Isso representava algo por volta de
um milhão de dólares. Embora não fosse exatamente mimada, era inegável que
Claudie Sanders tinha gostos caros que para Andy — homem de sorte! — não
era difícil satisfazer.
Chuck também gostava de dias como aquele: visibilidade ilimitada, sem
vento, condições perfeitas para ensinar. Ainda assim, o Seneca balançou de leve
quando ela exagerou na correção.
— Você está se esquecendo dos pensamentos felizes. Não faça isso. Chegue a 120. Vamos pela rodovia 119. E desça para 900.
Ela assim fez, o equilíbrio do Seneca novamente perfeito. Chuck
relaxou.
Sobrevoaram a loja de carros usados de Jim Rennie e depois a cidade ficou para trás. Havia campos dos dois lados da 119 e árvores ardendo em cores.
A sombra cruciforme do Seneca voou pelo asfalto, uma asa escura roçou rapidamente um homem-formiga com uma mochila nas costas. O homem-formiga olhou para cima e acenou. Chuck acenou de volta, embora soubesse que o
sujeito não conseguiria vê-lo.
— Que dia danado de lindo! — exclamou Claudie. Chuck riu.
A vida deles duraria mais quarenta segundos.
2
A marmota veio bamboleando pelo acostamento da rodovia 119, na direção de
Chester’s Mill, embora a cidade ainda estivesse a 2,5 quilômetros e até mesmo
a loja de carros usados de Jim Rennie não passasse de uma série de raios de sol
faiscantes e arrumados em fila no lugar onde a estrada se curvava para a esquerda. A marmota planejara (na medida em que se pode dizer que marmotas
planejam) voltar para a floresta muito antes de chegar ali. Mas, por enquanto,
o acostamento estava agradável. O animal estava muito mais longe da toca do
que pretendia, mas o sol lhe aquecia as costas e os aromas nítidos no nariz
formavam imagens rudimentares — não quadros completos — no cérebro.
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A marmota parou e se ergueu um instante nas patas traseiras. Os olhos
não eram tão bons quanto antigamente, mas ainda serviam para perceber um
humano andando na sua direção lá no outro acostamento.
Decidiu avançar mais um pouco ainda assim. Às vezes humanos deixavam para trás coisas boas de comer.
O animal era um sujeito velho e gordo. Nos bons tempos, atacara muitas
latas de lixo e conhecia o caminho até o lixão de Chester’s Mill tão bem quanto
os três túneis da sua toca; sempre havia coisa boa para comer no lixão. Ele sacolejava no ritmo complacente dos velhos, observando o humano que andava
do outro lado da estrada.
O homem parou. A marmota percebeu que fora avistada. À direita e logo
à frente havia uma bétula caída. Ia se esconder debaixo dela, esperar que o
homem passasse e depois investigar se havia algo saboroso para...
A marmota chegou até esse ponto nos seus pensamentos — e deu mais
três passos bamboleantes — embora tivesse sido cortada ao meio. Então caiu à
beira da estrada. O sangue jorrou e palpitou; as tripas tombaram na terra; as
pernas traseiras deram dois chutes rápidos e pararam.
O seu último pensamento antes da escuridão que vem para todos nós,
marmotas e seres humanos: O que aconteceu?
3
Todas as agulhas do painel de controle caíram como mortas.
— Ei, o que foi isso? — disse Claudie Sanders. Ela se virou para Chuck.
Os olhos estavam arregalados, mas não havia pânico neles, só perplexidade.
Não houve tempo para pânico.
Chuck não teve tempo de ver o painel de controle. Viu o nariz do Seneca
se amassar na sua direção. Aí viu as duas hélices se desintegrarem.
Não houve tempo para ver mais. Não houve tempo para nada. O Seneca
explodiu acima da rodovia 119 e fez chover fogo no campo. Também choveram pedaços de corpos. Um antebraço fumegante — de Claudette — pousou
com um ruído surdo ao lado da marmota perfeitamente dividida.
Era 21 de outubro.
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