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Geral
O Estado do Maranhão - São Luís, 14 de setembro de 2014 - domingo
Dez anos sem Oliveira Ramos
Jornalista, radialista e advogado foi também ex-dirigente do INSS no Maranhão e morreu no dia 13 de setembro de 2004,
deixando grandes contribuições para o estado; como cronista de O Estado, escreveu muitas histórias sobre o cotidiano de SL
Divulgação
José de Oliveira Ramos*
Especial para O Estado
J
ordina Gurgel Ramos, por
incontáveis vezes, reunia
a filharada na latada da
casa e, enquanto cafuneava um
e outro, como um extinto “Contador de estórias”, entretinha a
todos ajudando a noite passar.
Eram as estórias de trancoso,
fórmula não tão mágica que os
antigos pais garantiam em casa
a permanência dos filhos, mantendo- os distantes da marginalidade e dos inúteis.
De dia, o trabalho na roça –
sem que ninguém se considerasse explorado ou escravizado
– mesmo que durante as férias
escolares. De noite, espiando a
fogueira que tangia para longe
o breu da escuridão. Para unir
a família, um aluá de pão
acompanhava uma batata doce assada no borralho do braseiro. Ou uma gostosa espiga de
milho assada, antes plantada e
colhida sem apoio de nenhum
governo.
E foi numa dessas noites –
mantenho vivo o arquivo na
memória – que Dona Jordina
contou os avexados fatos ocorridos na recém-chegada noite
do dia 24 de junho de 1939. Era
uma noite junina, animada como ainda hoje. Pai viajando a
trabalho, e apenas Raimunda
Francisco de Oliveira Ramos tinha gosto apurado pela leitura e atuou em diversas áreas profissionais
Buretama e João em casa, além
da mulher entrando nos dias
de parir.
Os chocalhos das cabras e
dos bodes no chiqueiro quebravam o silêncio. De repente,
um grito desacostumado: Chega, mamãe, estou sangrando! Me acuda!
Fora dali, chocalhos tocavam
e bodes berravam se misturando ao espocar dos foguetes juninos. Anunciavam, creio, a
chegada de um magricela que
pesava pouco mais de 1,5 kg,
suscitando que a avó materna
jurasse promessa a São Francisco de Canindé pela sobrevivência do recém-chegado.
Foi assim que, nascido no dia
24 de junho de 1939, dia dos festejos de São João, o nosso “Chico” se tornou Francisco e por
anos foi conhecido como “Gurgel”. Exageradamente peralta,
magricela por demais – a parte
mais larga das pernas era a patela – foi interno do Santo Antônio do Buraco, de onde os administradores deram graças à
Deus quando ele de lá conseguiu fugir.
A adolescência e as necessidades familiares lhe impuseram
mudanças. Cresceu, mudou, e,
anos depois figuraria como Porta Estandarte do Ginásio Municipal de Fortaleza, um dos mais
conceituados da capital nos
anos 50 nos desfiles do dia 7 de
Divulgação
Para ler em família
25 DE FEVEREIRO DE 1988
bom pedaço para os meus parentes e
aderentes, que ninguém é de ferro; et,
Era para ter começado aqui, entre os
monstros, na última quinta-feira (18), mas
uma ressaca que insiste em estigmatizar os
cronistas que se prezam impediu-me de voltar de Fortaleza, aonde fui curtir uma boa
coalhada com farinha seca e de onde não
pude voltar a tempo.
Passados os porres carnavalescos – e
há gente que ainda está pagando por isso – volto-me para as atividades às quais
me dedico desde que existo: salvar o
mundo, reservando, se possível, um
Lembro-me
que há muitos anos
namorávamos no
portão, respeitava-se
a virgindade das moças
pour cause, dar alguns conselhos corretos por vias oblíquas.
Lembro-me de que há muitos anos namorava-se no portão, respeitava-se a virgindade das moças e obedecia-se uma regra muito simples: comeu, casou. Tudo era
feito em nome da família. Se o silêncio da
madrugada era varado pelo estampido de
revólver, certamente algum funcionário
público arrependido tinha dado um tiro
na cabeça. Era melhor o suicídio do que
envergonhar a família. A demissão, a bem
do serviço público, era o remédio que a sociedade aprovava para curar os casos de
“alcance”. Esse eufemismo era usado para dizer que alguém tinha roubado o patrimônio público.”
Uma ponte entre os corações
9 DE SETEMBRO DE 2004
O que as pessoas esperam de um cronista? Como leitor assíduo de alguns, nada
exijo, e nenhuma sensação imediata experimento, a não ser a de encontrá-lo no
mesmo lugar de sempre. Quando os editores resolvem diagramar o jornal de maneira diferente, muitas vezes mudam não
somente o local do nosso cronista, como
também trocam os tipos e a disposição
gráfica da coluna. Até que nos acostumemos com a mudança, é como se estivéssemos lendo coisas escritas por um estranho. Aqui mesmo já ocorreram algumas
mudanças significativas.
Outro dia, encontrei entre meus guardados, um exemplar de 15 anos. Tive a
sensação muito desagradável de olhar
bem de perto o esqueleto de uma pessoa
amada. Quando amamos alguém, nem
mesmo pensamos que esse objeto do nosso amor possua um osso com o inaceitável nome de patela. A mulher amada, de
um modo geral, só tem boca, peitos, um-
bigo, alguma coisa mais abaixo, pernas
grossas e pés maravilhosos. Depois, quando o amor desgasta-se, descobrimos que,
às vezes, nem cérebro a criatura tem. A
crônica que escrevera naquele espaço
com cheiro de mofo era de um tamanho
Vejamos o tal caso
da ponte que, em
vez de nos ligar ao
continente, isola-nos
do resto do mundo
exagerado, tinha mais parágrafos do que
recomenda o bom senso editorial. O assunto - este sim - era atualizado, como se
hoje tivesse sido escrito.
Vejamos o tal caso da ponte que, em vez
de nos ligar ao continente, isola-nos do resto do mundo. José Chagas tratou do assunto com a competência de sempre, mas o
que ele escreveu leva-me a pensar mais
setembro. Coloriu ainda mais a
inteligência nata com a leitura.
Tornou-se autodidata, com noções de francês, espanhol e inglês sem jamais ter frequentado escola particular para aprender esses idiomas.
Ingressou no rádio como locutor. Rádio Dragão do Mar,
PRE-9, Rádio Assunção Cearense e Rádio Verdes Mares. Foi
narrador esportivo e depois comentarista. Casou e teve filhos
com Elerina. Mudou para o Rio
de Janeiro, onde trabalhou na
TV e Rádio Tupi, de onde mudou para São Luís e chegou em
1970 para dirigir a Rádio Educadora, levando-a pela única vez
na história a conquistar a preferência dos ouvintes desta terra. A partir daí, quase todos já o
conhecem.
Radialista, jornalista e advogado, ingressou no INSS, onde,
após turbulências, inerentes à
profissão e ao cargo conseguiu
aposentadoria (pós-morte).
Ontem, 13 de setembro de
2014 fez 10 anos da morte de
Oliveira Ramos, cujos restos
mortais estão num dos túmulos do Jardim da Paz, no bairro
Vinhais. Como homenagem, relembramos trechos da primeira crônica escrita por ele para o
jornal O Estado do Maranhão,
no dia 25 de fevereiro de 1988 e
parte da última, escrita no dia 9
de setembro de 2004:
profundamente nas rachas e culpas. A ponte em questão tem um passado sem atropelos, um presente cheio de fendas, mas
não tem futuro previsível. Ao lado da ponte velha, existe o esquecido esqueleto de
uma ponte nova. Para informação dos leitores, esse negócio de ponte sempre foi a
passagem para problemas aparentemente sem solução.”
Francisco de Oliveira Ramos deixou um
legado imaterial para os filhos: a inteligência genética e o gosto pela leitura. Teve com
Elerina dois filhos do sexo masculino e, também com ela conseguiu a proeza de, neste
atual mundo iletrado e desperdiçado pela
juventude, a proeza de encaminhá-los para duas das mais conceituadas instituições
de ensino do Brasil: ITA (Instituto Tecnológico da Aeronáutica), Tagil; e IME (Instituto Militar de Engenharia), Samir.
Como se isso por si só não fosse suficiente, teve também quatro filhas: Tami, Professora e funcionária antiga da Famem; Telma,
falecida; Sabrina, Odontóloga; e Ticiana,
também com formação em nível superior
e funcionária concursada do INSS.
O “ex-jardineiro” Acácio tarrafeando no açude de Uruburetama
O imortal
Era hábito familiar (veja o início deste texto, quando foi dito que, na latada da casa do interior, a mãe reunia os filhos....)
reunir para conversar e, principalmente, relembrar as agruras da vida.
Sempre a família – mãe e irmãos – procurou se reunir. E era
sempre nessas reuniões que Oliveira Ramos dava ciência à mãe,
Jordina, e aos irmãos presentes,
os problemas enfrentados e as
soluções encontradas. Sempre
soubemos de tudo da vida dele,
que era a nossa também. Sabemos das causas da sua morte.
Sabemos de tudo. Ele nos contava. Entregamos tudo nas mãos
de Deus.
Sabemos, inclusive que ele tinha uma desesperança por
nunca ter sido sequer lembrando oficialmente para a imortalidade pela Academia Mara-
nhense de Letras.
Mas, sabemos, também, que
ele se imortalizou através de Acácio, seu ex-jardineiro e fauno de
Uruburetama. Antes que ele se
fosse, nos domingos de reuniões
tocadas a galinha caipira em cabidela, rabada com agrião, mocotó com bofe e muitas gaitadas
em alto e bom som, falávamos
em Acácio e juramos de pés juntos que sua identidade jamais seria revelada.
Hoje, dez anos após o passamento do “ex-patrão”, o “ex-jardineiro” Acácio voltou a morar
em Uruburetama e resolveu virar pescador. Entre uma tarrafeada e outra pesca umas tilápias e
umas curumatás enquanto tenta descobrir a pólvora e a roda.
Para que mais, se ele sempre
soube de tudo?
*[email protected]
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