UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB – CAMPUS IV
CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM HISTÓRIA:
CULTURA URBANA E MEMÓRIA
JOSÉ BENEDITO ANDRADE DE OLIVEIRA
MEMÓRIAS DE PICADEIRO
Histórias de vida de circenses do semiárido baiano
entre Senhor do Bonfim e Jacobina
JACOBINA – BAHIA
2012
MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
José Benedito Andrade de Oliveira – UNEB 2012
JOSÉ BENEDITO ANDRADE DE OLIVEIRA
MEMÓRIAS DE PICADEIRO
Histórias de vida de circenses do semiárido baiano
entre Senhor do Bonfim e Jacobina
Trabalho de Conclusão de Curso
apresentado ao curso de Especialização
em História: Cultura Urbana e Memória –
UNEB, Departamento de Educação, como
requisito para obtenção do título de
Especialista em História.
Orientadora: Prof.ª Ms. Cláudia Pereira
Vasconcelos
Co-orientador: Prof.º Ms. Reginaldo
Carvalho da Silva
JACOBINA – BAHIA
2012
MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
José Benedito Andrade de Oliveira – UNEB 2012
OLIVEIRA, José Benedito Andrade de.
MEMÓRIAS DE PICADEIRO. Histórias de vidas de circenses do
semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina.
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(86 folhas)
Orientadora: Prof.ª Ms. Cláudia Pereira Vasconcelos
Co-orientador: Prof.º Ms Reginaldo Carvalho da Silva
Monografia (Especialização) – Universidade do Estadual da Bahia- UNEB
1. Senhor Nilson e Dona Socorro; 2. Arte circense; 3. Circo-família.
MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
José Benedito Andrade de Oliveira – UNEB 2012
JOSÉ BENEDITO ANDRADE DE OLIVEIRA
MEMÓRIAS DE PICADEIRO
Histórias de vidas de circenses do semiárido entre
Senhor do Bonfim e Jacobina.
Trabalho de Conclusão de Curso
apresentado ao curso de Especialização
em História: Cultura Urbana e Memória –
UNEB, Departamento de Educação, como
requisito para obtenção do título de
Especialista em História.
Jacobina 09 de novembro de 2012
Orientadora
________________________________________________
Prof.ª Ms. Cláudia Pereira Vasconcelos
________________________________________________
Co-orientador: Prof. Ms Reginaldo Carvalho da Silva
_________________________________________
Prof. Ms. Marcone Denys dos Reis Nunes
Banca Examinadora
MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
José Benedito Andrade de Oliveira – UNEB 2012
DEDICO ESTE TRABALHO
Ao universo
Vento
Sol
Aos palhaços...
Meus antepassados;
Por me acompanharem.
Aos meus pais por proporcionarem a
materialização de meu espírito.
Aos meus irmãos e irmãs do passado,
atuais e futuros.
Aos meus filhos amados por comporem
meu sentido espiritual.
Aos meus sobrinhos e sobrinhas tão
amados e amáveis.
Aos meus avôs e avós, tios e tias,
primos e primas confrades de
sentimentos diversos.
Aos amigos e amigas, amores de
eterna impressão em minha alma.
Ao grande mestre Biro.
Aos colegas e parceiros de arte:
Trupe do Benas,
Núcleo Aroeira de Arte;
As crianças, adolescentes, jovens e
adultos, educadores, gestores e
parceiros dos espaços em que atuei e
atuo como artista/educador.
MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
José Benedito Andrade de Oliveira – UNEB 2012
AGRADECIMENTOS
À Escola Estadual Dr. Luiz Navarro de Brito, ao Colégio Municipal Osvaldo Pereira,
ao Colégio e Grêmio estudantil Ernesto Carneiro Ribeiro, Escola o Pequeno
Príncipe, a PJMP – Pastoral da Juventude do Meio Popular (diocese de Senhor do
Bonfim), Dueto Art’folia, Grupo Teatral Metamorfose, Grupo Teatral Almarte,
Associação Ambiental de Saúde (Saúde – Bahia); Grupo teatral Cala a boca já
morreu (Serrolândia – Bahia); Grupo de Artes Cênicas Condor (Jacobina – Bahia);
Grupo Teatral Sei-Que-Mais-Lá, e Projeto Circo das Andorinhas (Andorinha –
Bahia), Grupo Ato-Ação, Associação de moradores do bairro do Mutirão, Trupe de
palhaças Bruta Cênica, Núcleo Aroeira de Arte (Senhor do Bonfim); Itingarte
(Antonio Gonçalves – Bahia); Grupo Culturart (Campo Formoso – Bahia); ATUAR e
Grupo Teatral Atua Cara Patacoadas Artísticas (Salvador – Bahia); Companhia de
Artes Cênicas Rheluz e Grupo Teatral Caras de Tacho (Pintadas – Bahia); Aos
Arte-educadores do projeto Arte pela educação na Bacia do Jacuípe, (Território
Bacia do Jacuípe), ACLASB (Academia de Ciência, Letras e Artes de Senhor do
Bonfim), UNEB – Universidade do Estado da Bahia, aos queridos amigos e
confrades nesse universo de busca de saberes circenses: Jessica Vitorino,
Reginaldo Carvalho e Cláudia Vasconcelos. Em especial, ao Palhaço Carobinha,
Dona Socorro e a família Weverton Circo.
MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
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SUMÁRIO
LISTA DE IMAGENS ......................................................................................... 8
RESUMO .......................................................................................................... 9
ABSTRACT………………………………………………………………………...…10
INTRODUÇÃO
CHEGANÇA.................................................................................................... 11
O mastro da convivialidade .......................................................................... 11
CAPÍTULO I
1. CIRCO ........................................................................................................ 24
1.1 Lampejos da história... Um olhar sobre o circo no Brasil e no mundo.....23
1.2 Saberes e fazeres .................................................................................. 29
CAPÍTULO II
2. CIRCENSES – um riso na corda bamba e outras modalidades .................. 36
2.1 O Palhaço .............................................................................................. 36
2.2 Malabarismo............................................................................................ 40
2.3 Funambulismo.....................................................................................................42
2.4 Trapézio....................................................................................................44
CAPÍTULO III
3. E A MULHER NO CIRCO, O QUE É?...........................................................47
CAPÍTULO IV
4. FAMÍLIA, PÃO E ALEGRIA. ........................................................................ 57
4.1 Senhor Nilson e Dona Socorro............................................................... 57
4.2 “Filho de peixe...” Entre o brinquedo e o trabalho.....................................68
4.3 Vida itinerante, o circo da vida..................................................................71
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................ 79
REFERÊNCIAS .............................................................................................. 82
ANEXO..............................................................................................................85
Família Weverton Circo.....................................................................................85
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José Benedito Andrade de Oliveira – UNEB 2012
LISTA DE IMAGENS
Figura 01 – Lembranças de minha infância - Candido Portinari........................19
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RESUMO
Com base na história oral e na etno-pesquisa, este trabalho pretende registrar
as memórias do senhor José Nilson Rodrigues Barbosa, o palhaço Carobinha,
e sua companheira, a senhora Maria do Socorro Campos da Conceição,
artistas circenses do semiárido baiano que passaram por vários circos até a
efetivação do Weverton Circo. Este trabalho visa mostrar a organização de um
circo-família, uma modalidade circense descrita como quase extinta no país. As
vivências do casal são relatadas por eles e seus filhos em uma narrativa
emocionante que faz emergir as histórias de vida de uma família, podendo ser
comparada com a de muitos outros circenses em outras partes do Brasil. O
texto tem o intuito de focar a memória numa sorte de lembranças, prazeres e
dores em busca de uma possível interface com a história do circo-teatro no
semiárido baiano e em outras partes do país. A partir de uma investigação
teórica, foi possível localizar em Silva, (2010 A) alguns registros sobre o circoteatro no semiárido baiano; em Araújo (1979) registros do teatro popular na
Bahia e em Silva (2010 B) uma perspectiva do circo-teatro e circo-família no
Brasil. Também se buscou em Bolognesi (2003) os registros sobre a história do
circo, e em Bortoleto (2008) as especificidades da formação do artista circense.
A metodologia que dá suporte a este trabalho embasa-se no estudo de caso
(MARTUCCI, 2001) a fim de traçar experiências com as artes circenses.
Palavras-chaves: Senhor Nilson e Dona Socorro; Arte circense; circo- família.
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MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
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ABSTRACT
Based on oral history and ethno-research this work aims to register the
memories of Mr. José Nilson Rodrigues Barbosa, Carobinha the clown, and his
mate, Mrs. Maria do Socorro Campos da Conceição, circus performers from
Bahia’s semiarid who have gone through several circuses until the conclusion of
Weverton Circus. This work aims to display the organization of a family-circus, a
circus modality described as almost extinct in the country. The experiences of
the couple are reported by them and their children in an emotional narrative that
brings out the life stories of a family, and can be compared with many others in
Brazil’s circus. The text aims to focus on the memory of several memories,
pleasures and pains in search of a possible interface with the history of the
circus-theater in Bahia’s semiarid and other parts of the country. From a
theoretical investigation, was possible locate in Araújo (1979) registers of
popular theater in Bahia and in Silva (2010) perspective circus-theater and
circus-family experiences to bring to the Bahia’s semiarid. Also in Bolognesi
(2003) were found registers of the circus history, and Bortoleto (2008) the
specific training of circus artist formation. The methodology that supports this
work is the case study (MARTUCCI, 2001) in order to draw experiences with
the circus arts.
Keywords: Mr. Nilson and Dona Socorro; Circus Art; Circus-family.
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MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
José Benedito Andrade de Oliveira – UNEB 2012
CHEGANÇA
Começo... Tudo começou assim...
Passou um circo na minha cidade e eu era criança,
ai eu acompanhei o circo,
com um tempo aprendi trabalhar
ai eu passei a ser artista de circo, né?1.
O mastro da convivialidade
Lona colorida estendendo-se como um lençol gigante, música, crianças,
gritaria, cantorias de palhaços. Basicamente é o que se vê quando artistas
circenses apontam sua chegança às pequenas cidades. O circo quando dá
sinal de fumaça liberta suas cores para as vermos brotarem da terra como um
passe de mágica. A vida renasce naquele local e transmite emoções com
encanto e beleza.
Para muitos o circo é sinônimo de diversão; para outros, escolha,
trabalho, dedicação, fonte de vida e de sonhos. Quem nunca foi seduzido por
esses encantos? Quem nunca quis fugir para o circo ao se deparar com toda
sua aura de mistério e sedução que cerca seus habitantes?
Este trabalho faz referência aos pequenos circos de lona por acreditar
que sua essência é o principal lugar de resistência dos indivíduos que
valorizam a pessoa humana de uma forma mais rudimentar. Os pequenos
circos têm seus alicerces nos sonhos pessoais dos artistas circenses e na
vontade de superar as exigências burocráticas e as estratégias capitalistas
comprometidas especificamente com os lucros. Se considerarmos as novas
políticas econômicas na área cultural em que se pauta a economia criativa
como possibilidades de desenvolvimento econômico para o país nos próximos
anos, podem-se aqui justificar objetivos mais pragmáticos em si tratando de
justificativas para se pesquisar sobre a história de pequenos circos. Porém, a
intensão central neste trabalho é o compromisso histórico da sociedade com os
1
José Nilson Rodrigues Barbosa (palhaço Carobinha), entrevista concedida em Senhor do
Bonfim, 27 – 06 – 2011.
2
O território é conceituado como um espaço físico, geograficamente definido, geralmente
contínuo, caracterizado por critérios multidimensionais, tais como o ambiente, a economia, a
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sociedade, a cultura, a política e as instituições,
e uma população com grupos sociais
MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
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circenses enquanto agentes do desenvolvimento cultural mesmo diante das
necessidades econômicas vigentes.
Compreendendo que o estudo de elementos das artes circenses tornase um
processo imprescindível
da formação
na contemporaneidade,
fortalecendo sua produção artística/cultural e garantindo acessibilidade deste
conhecimento, é que o presente trabalho delineia-se com o objetivo de
registrar, a partir de uma revisão bibliográfica, observações e história oral,
histórias de vidas de pessoas oriundas de famílias circenses da região
localizada entre Senhor do Bonfim, no território de identidade Piemonte Norte
do Itapicuru, e Jacobina, no território Piemonte da Diamantina2.
Daí, este se constitui em um estudo de caso etnográfico da família de
José Nilson Rodrigues Barbosa e Maria do Socorro Campos da Conceição no
caminho do tornar-se artista circense que segue um rumo itinerante em
dissonância com o atual panorama econômico e social, esquematizado pelo
sistema vigente. O estudo de caso dessa família e empreendimento circense
pode mostrar um campo a ser pautado futuramente no marco da
sustentabilidade cultural e economia criativa na região supracitada. Contudo, o
presente estudo pretende servir de registro e fonte para novas buscas visto
que:
O estudo de caso é aqui utilizado como uma das estratégias eleitas
para a realização dessa pesquisa. Entende-se que este tipo de
investigação, especificamente, de cunho etnográfico procura
compreender e retratar a particularidade e a complexidade de um
grupo natural ou microcultura, a partir dos significados subjetivos de
seus atores, coletados em seu contexto ecológico, por meio de
observação participante, entrevistas e narrativas escritas”.
(MARTUCCI, 2001, p.14)
Assim, a fala dos atores dessa história foi aqui interpretada de múltiplas
formas, partindo da ideia de que eles constroem significados de maneiras
diferenciadas e estão sempre abertos para a possibilidade de reinterpretações
e mudanças. A ideia da pesquisa foi reunir memórias sobre as diversas
experiências vividas pela família Weverton Circo, tendo como fontes principais
2
O território é conceituado como um espaço físico, geograficamente definido, geralmente
contínuo, caracterizado por critérios multidimensionais, tais como o ambiente, a economia, a
sociedade, a cultura, a política e as instituições, e uma população com grupos sociais
relativamente distintos, que se relacionam interna e externamente por meio de processos
específicos, onde se pode distinguir um ou mais elementos que indicam identidade, coesão
social, cultural e territorial. Disponível em http://www.seplan.ba.gov.br/mapa.php acesso em
11/11/2012.
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MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
José Benedito Andrade de Oliveira – UNEB 2012
os relatos orais, uma vez que a própria constituição dos saberes circense é
consolidada por meio da oralidade como elucida Silva (2003, p.51):
A forma da transmissão oral do saber circense fez desse mundo
particular uma escola única e permanente. A diretriz desta
aprendizagem determinou a formação de um artista completo, pois
cada indivíduo fazia parte de uma comunidade cuja sobrevivência
dependia de seu trabalho. Um ‘artista completo’ tinha a capacidade
de desempenhar várias funções dentro do espetáculo, além de ter
conhecimento (e prática) de mecânica, eletricidade, transporte; podia
atuar como ferramenteiro, ferreiro, relações públicas e, por fim, armar
e desarmar o circo.
Saberes semelhantes foram socializados pela valorosa descrição oral
dos entrevistados, sendo devidamente gravados, transcritos e analisados para
formar, a partir da memória, a base desse trabalho. Compreendendo o sentido
de memória a partir de Le Goff (1992, p. 419), vemos que
A memória, como propriedade de conservar certas informações,
remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas,
graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações
passadas, ou que ele representa como passadas.
Há também uma pequena tentativa de interpretar os significados que
esses atores dão ao seu mundo e às suas práticas, tal qual é o objeto da
ciência social, como elucida (Chizzotti,1994, p.93 apud Martucci, 200, p.2):
O objeto da ciência social é: ir buscar o significado que as pessoas
dão ao seu mundo e às suas práticas, ou seja, a toda a soma total de
objetos e dos acontecimentos do mundo cultural e social criados pelo
pensamento de senso comum dos homens, vivendo numerosas
interações sociais. Cabe aos pesquisadores identificar e descrever as
práticas e os significados sociais (...), de compreender como elas se
dão no contexto dos sujeitos que as praticam.
Para alcançar resultados satisfatórios, garantir qualificação, respeito aos
conhecimentos das pessoas pesquisadas e com o intuito de tratar as fontes, a
exemplo das entrevistas, de forma coerente, procuramos referências entre os
autores que escrevem sobre o circo, optando principalmente por pesquisadores
que tenham vivências íntimas com o tema, como é o caso de Ermínia Silva
(2010) autora do livro “Respeitável público... O circo em cena”, publicado pela
Fundação Nacional das Artes (FUNART), em que relata, entre outras coisas, a
metodologia que utilizou nas entrevistas feitas para o seu livro. Também
podemos citar o trabalho de Roberto Ruiz (1987), “Hoje tem espetáculo? As
origens do circo no Brasil”, onde o autor traz vários trechos de importantes
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MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
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entrevistas feitas com um dos principais palhaços do Brasil, o inesquecível
Benjamim de Oliveira. Nesta linha, podemos citar ainda a obra “Duas formas de
teatro popular do recôncavo baiano”, do professor e pesquisador Nelson de
Araújo (1979). A obra de Araújo encanta pela grandeza e compromisso com as
produções artísticas de cunho popular e com os artistas criadores,
descrevendo emocionantes entrevistas de artistas como o palhaço Maneira,
nome artístico de Filomeno Santos, nascido em 1923 e atuante na área
circense até a época da pesquisa feita por Nelson de Araújo, em 1975. Uma
curiosidade percebida entre as pesquisas sobre palhaços é que Benjamim de
Oliveira, Maneira e Carobinha acompanharam cada um em sua época, uma
companhia de circo, e em seus relatos todos diz que o fizeram aos doze anos
de idade. Seria a aura do circo a força lúdica que envolve crianças sensíveis ao
campo da arte, fazendo-as se agarrar ao que para elas seja o mais próximo
deste mundo de fantasia que é a infância?
A escolha do tema relacionado às artes circenses surgiu com o desejo
de descortinar as histórias de circenses do interior da Bahia, como a de José
Nilson Rodrigues Barbosa, o palhaço Carobinha, um artista sertanejo que,
como tantos outros circenses, deixaram a família em busca de suas
realizações no mundo da arte. Carobinha morava na comunidade de Catuní
município de Jaguararí, no semiárido baiano, quando resolveu acompanhar o
circo da Senhora Salomé, o Circo-teatro Alan, no fim da década de 1970. Mais
tarde encontrou-se com Dona Socorro, sua atual companheira, filha de
circenses e com um legado de saberes que foram construídos por seus pais
durante sua jornada pelo Nordeste brasileiro. Essas duas pessoas, esses dois
artistas, abriram suas portas para falar de si, de suas lutas, sonhos e
dificuldades, para falarem de suas vidas. Para compreendê-los, nos baseamos
nos novos rumos da pesquisa em história, buscado fundamentação em Le Goff
(1992, p.14):
hoje, a aplicação à história dos dados da filosofia, da ciência, da
experiência individual e coletiva tende a introduzir, junto destes
quadros mensuráveis do tempo histórico, a noção de duração, de
tempo vivido, de tempos múltiplos e relativos, de tempos subjetivos
ou simbólicos. O tempo histórico encontra, num nível muito
sofisticado, o velho tempo da memória, que atravessa a história e a
alimenta.
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MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
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Compreendendo isso, adentramos na pesquisa procurando descortinar a
vida privada desses atores a partir de suas próprias histórias e assim,
passamos a entender algumas especificidades da vida do palhaço Carobinha
(Senhor Nilson), de sua companheira Dona Socorro e um pouco da família
Weverton Circo. O intuito foi registrar uma parte da história do circo no
semiárido baiano, buscando peculiaridades desta região para entrelaçá-la ao
elo da história do circo em outras partes do Brasil.
Inicialmente tentamos entender como esta linguagem artística chegou ao
país. Sobre isso, e de acordo com a tradição circense, Ruiz (1987) relata que já
existiam experiências com as artes circenses antes do registro da primeira
companhia estrangeira de circo chegar ao solo brasileiro:
A tradição circense nacional afirma que o primeiro circo que nos
chegou, foi por volta de 1830, era o Circo Bragassi, e que, no entanto,
já existiam por aqui circos de pau-a-pique, feitos na base do
improviso. (RUIZ, 1987, p.21)
Percebendo a tradição circense no Brasil, torna-se mais urgente o
estudo sobre esta linguagem coletiva em todo território nacional, para que um
levantamento de informações possa contribuir com os fazeres artísticos em
suas mais diversas linguagens. Acreditamos que uma contínua atividade
produtiva no campo da arte servirá como suporte para o fortalecimento de
outras modalidades que possam alavancar a cultura nacional e cada linguagem
trabalhada estará fortalecendo a memória coletiva, transformado e criando
tradição circense no Brasil, uma vez que
a memória coletiva encontra seu lugar na tradição e, ao mesmo
tempo, dinamiza as tradições, num processo semelhante ao que foi
descrito com relação às lembranças no contexto dos quadros sociais.
(SCHMIDT E MAHFOUD, 1993, p.293)
Com o intuito de fortalecer a tradição torna-se necessário o registro
desta história da cultura brasileira que é um reflexo de seu povo, que é a
própria constituição desta gente mista, alegre e sedenta de arte. Para tanto,
deve-se compreender que aqui se optou pelo conceito de tradição relacionado
ao que diz:
A tradição oral é a grande escala da vida, e dela recupera e relaciona
todos os aspectos. Pode parecer caótica àqueles que não lhe
descortinam o segredo e desconcertar a mentalidade cartesiana
acostumada a separar tudo em categorias bem definidas. Dentro da
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MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
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tradição oral, na verdade, o espiritual e o material não estão
dissociados. (BÂ, A. HAMPATÉ, 1982, p.183)
Relacionar a oralidade ao estudo sobre a história do circo no Brasil é
querer saber sobre a alma do povo brasileiro. Pesquisar histórias de vidas de
circenses no semiárido baiano é querer compreender a jocosidade, o risível, a
alegria dessa gente que sofre com as dificuldades, mas mantém o bom humor
diante das agruras da vida. A maioria dos artistas deve pensar, escrever e
serem sensíveis a isso. Albuquerque Júnior (2009) ao comentar sobre o teatro
de Ariano Suassuna afirma:
O teatro de Ariano encena um Nordeste teocêntrico, feito de vidas
simples, primárias, risíveis e, ao mesmo tempo, em busca da
transcendência e de encontrar respostas para a questão da ontologia
do mundo, da vida. Um teatro em que a sociedade humana aparece
como farsa, um espetáculo circense em que todos são palhaços.
(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2009, p.189)
Escrever sobre o circo, sobre pessoas, sobre famílias circenses no
semiárido baiano, é buscar compreender as identidades desses lugares. É
analisar as características em busca, se possível, de uma ontologia
artístico/cultural do semiárido. A proposição de recortes, que produzem e
elaboram pequenos desenhos de pessoas e de artes sertanejas, numa pintura
que retrata particularidades que passam despercebidas, são, no entanto, de
suma importância para a composição geral do painel circense nordeste/Brasil.
Sem pretensão de generalizar um caso particular, mas entendendo que
a história de um país é feita pelas histórias dos lugares e das pessoas que
compõem esse todo, há possibilidade de realizar uma análise da relação entre
o todo e as especialidades no campo dos conhecimentos referentes às artes
cênicas, neste caso específico, sobre esta “gente de circo” Silva (2010 B).
Os pormenores deste trabalho estão presentes nas palavras dos
entrevistados, pois ninguém melhor do que eles para falarem sobre o que
viveram e vivem cotidianamente. O Senhor Nilson (palhaço Carobinha) e Dona
Socorro, falam de forma direta sobre suas experiências como circenses.
Percebemos,
na
prosa
de
ambos,
a
poesia
concreta
do
cotidiano
principalmente quando relatam que, ao saírem do Circo-teatro Alan, tornaramse proprietários de seu próprio circo, que por sua vez, teve início com um pano
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MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
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de roda3, dando continuidade a história tradicional dos artistas circenses. Aos
poucos essa família vem construindo cada parte de uma estrutura profissional
que mantém como circo-família, atuando desde Catuni, no território Piemonte
Norte do Itapicuru, até as cidades do território de Irecê. Esse itinerário se
mantém por mais de 30 anos.
Senhor Nilson, (palhaço Carobinha), sua companheira Dona Socorro e
toda família do Weverton Circo estão no centro do discurso e a intensão é darlhes voz e espaço para contar de si, como diria Fernando Pessoa (1994,
p.155): “Por mim, escrevo a prosa dos meus versos”.
Senhor Nilson conta de si dizendo: “(...) começou, tudo começou assim...
Passou um circo na minha cidade e eu era criança ai eu acompanhei o circo,
com um tempo aprendi trabalhar ai eu passei a ser artista de circo, né?”. Ele
não pertencia à família tradicional de circo, mas mostra uma relação íntima
com saberes pertencente a “dinastia circense” no sentido estudado por Erminia
Silva4: (2010, p.25):
Desde o final do século XVIII, na Europa Ocidental, grupos e formas
de expressões artísticas diversas foram se constituindo e se
identificando como circenses. Esses grupos, na sua maioria familiar,
formaram o que se costuma denominar de “dinastias circenses” e
iniciaram trajetórias para as Américas e uma parte do Oriente.
Os circenses pesquisados levam uma vida itinerante, são pessoas que
fazem dos lugares o seu lugar provisório, contudo, não se afastam do elo que
os mantém firmes em seu propósito, a família. As entrevistas apresentadas por
Dona Socorro são pertinentes para o entendimento dessa relação, no que
tange à constituição destes saberes artísticos circenses “tradicionais” no
Weverton Circo, pois tem muito da transmissão oral da mesma, por ser filha e
neta de circenses, como também do desempenho do Senhor Nilson, um
homem simples e um artista compelido em escrever sua própria história.
As vivências da família Weverton Circo, nome adotado em homenagem
ao segundo filho do casal, Ueverton Campos Barbosa (palhaço Fofoca),
3
Pano de roda é a denominação que os circenses usam para classificar a categoria de circo
em situação inferior as companhias mais estruturadas. Trata-se de uma estrutura armada com
madeira e rodeada de tecido sem cobertura. Neste espaço, o público fica em pé separando-se
dos artistas por uma corda amarrada em piquetes fincados no chão.
4
Erminia Silva - Filha de Barry Charles Silva e Eduvirges P. Silva, quarta geração circense no
Brasil. Doutora em História Social Unicamp pela Universidade Estadual de Campinas, Brasil
(2003) Pesquisadora Colaboradora do Centro de Memória da Unicamp, Brasil.
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MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
José Benedito Andrade de Oliveira – UNEB 2012
lembram o modo de vida dos saltimbancos europeus da Idade Média e dos
ciganos no Brasil Colônia. Conforme o Núcleo de Estudos Ciganos, a presença
deste povo no Brasil é datada do primeiro século de colonização.
Mas não há dúvida alguma que os primeiros ciganos que
desembarcaram no Brasil foram oriundos de Portugal, e que estes
não vieram voluntariamente, mas expulsos daquele país. Foi o que
parece ter acontecido, por exemplo, já em 1574, com um certo João
de Torres e sua mulher Angelina que foram presos apenas pelo fato
de serem ciganos. Inicialmente João foi condenado às galés e
Angelina deveria deixar o país dentro de dez dias, levando seus
filhos. Alegando, no entanto, que “era fraco e quebrado, e não era
para servir em coisa de mar e muito pobre, que não tinha nada de
seu”, João pediu para poder sair do Reino, ou então que pudesse ir
para o Brasil para sempre. (TEIXEIRA, 2008, p.15)
Nota-se uma aproximação da etnia cigana com costumes relacionados a
atividades
artísticas,
configurando
uma
justaposição
dos
circenses
principalmente das pequenas companhias com o nomadismo cigano; aonde,
ambas transmitem seus saberes através da memória e a história oral. O
palhaço Benjamim de Oliveira relata em entrevista sua trajetória artística em
que diz ter fugido do Circo Sotero e ter acompanhado um bando de ciganos,
dos quais voltou a fugir posteriormente, pois seria trocado por cavalo (RUIZ,
1987, p.30). O Brasil também pode ser tomado como um lugar em que as artes
circenses não estejam tão distantes na história, se olhada por este ponto de
vista de aproximação do povo de etnia cigana com os artistas circenses. É
importante frisar que o conhecimento, as habilidades e a necessidade de
sobrevivência outorgam aos representantes da cultura popular a garantia da
continuidade das manifestações artístico-culturais, e com o circo não é
diferente. Torres (1998, p. 19) indica que “sempre houve ligação dos ciganos
com o circo (...). No Brasil setecentos, há registros de padres reclamando dos
ciganos que usavam estruturas semelhantes às de circo de pau fincado”. Os
ciganos em suas andanças introduziam seus espetáculos nos lugarejos
configurando um cenário que nos permite afirmar que “já havia arte circense no
Brasil, obviamente não em um circo como se conhece hoje” (p. 20). Como este
não é o principal foco deste trabalho, deixaremos estas inquietações para
pesquisas futuras5.
5
Para saber mais sobre a história do circo ver BOLOGNESI (2003) e SILVA (2010)
http://www.circonteudo.com.br/ ou “Respeitável público... O circo em cena”, disponível em
http://www.funarte.gov.br
18
MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
José Benedito Andrade de Oliveira – UNEB 2012
Ressaltamos que isto aconteceu antes do que se convencionou chamar
de circo moderno6 e da oficialização do ensino de arte com a chegada da
família real ao Brasil em 1808 e fundada a Escola Real de Ciências, Artes e
Ofícios em 12 de agosto de 1816 (BARBOSA, 2009, p.17), que trouxe um estilo
voltado para o racionalismo técnico e que descaracterizava as manifestações
artísticas de cunho mais populares intuitivas e com suas especificidades, caso
em que os pequenos circos se enquadram.
Contudo, compreender a existência de artistas populares atuantes
anteriormente e pós-oficialização do ensino de arte no Brasil, servirá de apoio
para se entender a exclusão de artistas circenses de pequenas companhias,
que são possíveis herdeiros de uma arte que surge nas apresentações em
feiras e praças públicas e que foi transmitida oralmente em âmbito familiar.
Durante muito tempo, aqui e alhures, os pequenos circos eram
recebidos com entusiasmo pelos moradores das pequenas cidades, ao mesmo
tempo em que eram marginalizados pelos próprios artistas de teatro que
enxergavam o picadeiro como ameaça para a estética do palco e o artista
circense como reles criadores de trabalhos corporais sem muito aprimoramento
estético e artístico. Essas visões hierarquizadas instigavam o preconceito,
afastando os circenses de pequenas companhias do convívio social
impregnando pelo determinismo burguês de impor costumes pautados no lucro.
Assim, o circo moderno que surge nesta mesma esfera capitalista com
espetáculo produzido para a aristocracia, passa através das trupes de pano de
roda e pequenas companhias, a se aproximarem das camadas populares
alheias aos códigos da cultural e estética aristocrática.
Portanto, conhecer mais sobre as possíveis origens das artes circenses
no Brasil, relacionando as vivências contemporâneas com fatos passados, nos
coloca em outro patamar enquanto herdeiros de tradições em nosso próprio
lugar. É o caso, mais especificamente no semiárido baiano, do circo como
conhecemos hoje que aparece, por exemplo, em um artigo de Silva (2010),
Circo-teatro no semiárido baiano (1911-1942), publicado na Revista Repertório:
6
Dupart (2010, p.20) explica essa expressão utilizada por muitos historiadores e estudiosos do
circo. Alguns autores acreditam que essa denominação é referente à constituição do circo
como espetáculo a partir de 1779, início da revolução industrial.
19
MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
José Benedito Andrade de Oliveira – UNEB 2012
teatro e dança, da Universidade Federal da Bahia. Nesse artigo também se
encontra uma análise do autor sobre o quadro Circo, óleo sobre tela, 60 x 73cm
de Candido Portinari, em que o pesquisador propõe uma interface dessa obra
com as possibilidades de andanças de companhias de circo pelo interior do
Brasil.
Ao conferir outras obras com o tema circo do próprio Portinari, percebese que nas imagens o circo aparece sempre distante dos centros, isso pode
caracterizar a periferização do mesmo. Outro aspecto importante para análise é
o fato dos circos, pintados por Portinari, possuírem apenas um mastro e a
divulgação dos espetáculos serem feitas por um palhaço sobre o dorso de um
jumento, o que pode indicar se tratar de pequenas companhias.
Contudo, a leitura realista, abordando a questão físico-espacial, pode
não condizer exatamente com boa parte da realidade do circo brasileiro na
primeira metade do século XX, quando, sem rádio ou televisão, as companhias
eram recebidas com entusiasmo, uma vez que o público estava ávido por
novidades. A periferização representada, no entanto, pode ser simbólica, uma
vez que essa “gente de viagem” sempre foi vista como diferente, estranha,
talvez por isso tenha sido representada afastada da cidade, da vila, da vida
sedentária e de costumes socialmente aceitos.
Lembranças de minha infância – Candido Portinari. Óleo sobre tela
60 X 73, Rio de Janeiro, 1957.
As pinturas também servem como registro e demonstram que estas
companhias eram as principais influências para o desenvolvimento das artes
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MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
José Benedito Andrade de Oliveira – UNEB 2012
cênicas e circenses proporcionando a fruição destas linguagens para as
camadas populares nos interiores do Brasil.
Se o pintor recorreu a suas memórias de infância na fazenda de café em
Brodosqui, interior de São Paulo, para retratar as pitorescas cenas circenses,
ele não se distanciou da memória coletiva de tantos interiores do Brasil,
inclusive dos diversos sertões, principalmente, onde se localiza o semiárido
baiano no território de identidade Piemonte Norte do Itapicuru, na cidade de
Jaguarari onde nasceu José Nilson Rodrigues Barbosa (Carobinha).
O principal personagem desta história é fortemente influenciado por uma
perspectiva de pensamento e vida poética, construída através das vivências e
experiências com a arte e atuando como palhaço por onde anda, Senhor Nilson
(palhaço Carobinha) em entrevista diz:
Rapaz tem uns 30... 32 anos mais ou menos, que eu estou em circo.
Porque eu comecei com meu circo em 1980. Já são mais de 30 anos
né? É já vão para 32 anos que eu ando em circo batalhando na arte.
(José Nilson Rodrigues Barbosa (palhaço Carobinha), entrevista
concedida em 27 – 06 – 2011).
Quando Senhor Nilson afirma que labuta na arte há mais de trinta anos,
é preciso pensar um conceito mais geral de arte. Sobre isso, Colli (2007, p.64)
diz que “(...) é importante ter em mente que a ideia de arte não é própria a
todas as culturas e que a nossa possui uma maneira muito específica de
concebê-la”. Chaplin7 dizia: “quer me entender, veja meus filmes”. Para
entender José Nilson Rodrigues Barbosa, sua arte e sua história é preciso
conhecer o palhaço Carobinha. Porém, acompanhar a trajetória do artista
circense é diferente de analisar uma produção cinematográfica! O espetáculo
cênico tem curta duração e se encerra no picadeiro ou no palco e mesmo que
reapresentado ou filmado, jamais será o mesmo que fora apresentado ao vivo.
Esta particularidade na arte cênica exige esforço singular para quem se
debruça sobre este intricado assunto. Como analisar as três décadas de
experiências desenvolvidas por José Nilson Rodrigues Barbosa, para que, a
7
SCHICKEL, Richard. Vida e Arte de Charles Chaplin (Charlie: The Life and Art of Charles
Chaplin, 2003)
Direção: Richard
Schickel
Roteiro: Richard
Schickel
(roteiro) Gênero: Biografia/Documentário Origem: Estados Unidos Duração: 132 minutos
Tipo: Longa-metragem.
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MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
José Benedito Andrade de Oliveira – UNEB 2012
partir daí, se tenha como analisar a produção circense do Palhaço Carobinha
diante de tantas adversidades contemporâneas?
As mesmas dificuldades apresentam-se quando se resolve introduzir um
tema de pesquisa relacionado às artes circenses, no semiárido baiano onde o
campo de pesquisas na área ainda é escasso? Esta e tantas outras perguntas
nos fizeram buscar a figura do palhaço Carobinha como referência de produção
e difusão de arte no semiárido baiano na década de oitenta e noventa do
século vinte entre Senhor do Bonfim e Jacobina, mesmo não fazendo um
recorte específico dentro dos padrões da historiografia, deixando que o tempo
da memória dos entrevistados indique a tônica do discurso. E é por intermédio
do método de pesquisa da história oral que buscamos algumas respostas.
Assim,
procuramos
apresentar
algumas
modalidades
das
artes
circenses para melhor embasamento das histórias de vidas de Senhor Nilson e
Dona Socorro no capítulo 1, buscando alguns lampejos da história do circo no
Brasil e no mundo, tendo como base teórica textos de pesquisadores da área
das artes circenses trazendo ainda relatos, entrevistas e recortes sobre os
saberes e fazeres na história deste campo das artes. O capítulo 2, “Circenses –
um riso na corda bamba e outras modalidades”, contextualiza algumas
linguagens e modalidades circenses escolhidas especificamente por serem
números apresentados no espetáculo do Weverton Circo e estarem ligadas
diretamente ao início da formação da companhia, dando maior atenção ao
palhaço numa relação direta com Carobinha, mentor desta ideia.
Em seguida, no capítulo três, “E a mulher no circo, o que é?”,
apresentamos um pouco do papel da mulher no circo, fazendo uma referência
forte à Dona Socorro para que, a partir de seu discurso, se possa fazer uma
costura entre as análises da entrevista e a teoria que indica o quão complexo é
a participação da mulher em um espaço ainda visto por parte da sociedade
sedentária com descriminação e reserva diante de uma visão pudica e
moralista.
No capítulo quatro, A família, pão e alegria, procuramos demarcar o
lócus, contextualizando entre o campo econômico, a relação do circo com as
personagens pesquisadas, Senhor Nilson e Dona Socorro; a visão dos filhos do
casal, também circenses; a vida itinerante; políticas públicas e perspectivas
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MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
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futuras. Por fim, deixamos registrado o ponto de vista da militância no campo
das artes circenses em uma tentativa de brado justificado pelas novas
tendências políticas econômicas do país no campo das artes.
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MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
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1. CIRCO
1.1 Lampejos da história... Um olhar sobre o circo no Brasil e no mundo.
Das diversas áreas que compõem as artes cênicas, talvez a que mais se
aproxime da integralidade humana seja o circo e sua constante circularidade
renovando-se sempre, com toda sua poética, musicalidade, visualidade,
performance, teatralidades e movimentos estonteantes. Podemos comparar os
artistas circenses a atletas profissionais em dias de campeonato, mantendo
entre ambos as devidas diferenças, mas não tão gigantescas, pois encontram
entre o pódio e o picadeiro semelhanças sutis uma vez que os prêmios e as
recompensas, os fracassos e/ou desesperos vêm acompanhados dos
semelhantes e eufóricos aplausos ou vaias, ovações ou depreciação pública.
Mas de onde vem isso? Desde quando a humanidade se expressa através
dessa complexa e rica composição chamada circo?
Importantes reflexões sobre o tema “a origem do circo”, podem ser
encontradas em Bolognesi (2003):
Poder-se-ia argumentar que as raízes do circo estariam postas no
hipódromo e nas olimpíadas da Grécia antiga. No primeiro, porque os
conquistadores gregos expunham os resultados de uma façanha
bélica, exibindo os adversários vencidos e escravizados. Além desta
exibição, os chefes dos exércitos traziam animais exóticos, muitos até
então desconhecidos, como prova de bravura e testemunho das
distâncias percorridas e das terras conquistadas. As olimpíadas, por
sua vez, sob o signo do esporte, expunham os atletas em disputas
acrobáticas, no solo, em corridas e saltos, ou em aparelhos que
permitiam a evolução do corpo no ar, em barras e argolas.
(BOLOGNESI, 2003, p.24).
O artista circense e o atleta olham-se no espelho e veem suas origens
enraizadas em costumes antigos, jogos e festividades cunhadas em princípios
religiosos, rituais de fertilização, de culto aos deuses, homenagens a heróis e
às guerras e a submissão de outros povos condenados à escravidão.
Os divertimentos e jogos públicos eram a grande política pública do
Estado romano. Ligavam-se diretamente aos ideais militaristas: o uso
da força guerreira para subjugar povos, fazer escravos e conquistar
terras. Os jogos – no anfiteatro, no estádio e no circo – não deixavam
de ser a celebração das vitórias, aliados ao culto aos deuses.
(BOLOGNESI, 2003, p.28)
A história testemunha o cortejo dos vencidos vigiados pelos vencedores
como espetáculos assistidos e registrados como origem de diversas
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MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
José Benedito Andrade de Oliveira – UNEB 2012
manifestações, sendo o circo uma das mais populares. É importante ressaltar
que existem muitas distorções sobre as supostas origens de manifestações
populares, a exemplo do circo. Muitos historiadores se fundamentam na busca
de tornar arguciosas certas suposições.
Em um dos primeiros trabalhos publicados sobre o circo no Brasil na
década de 1980, Ruiz (1987, p. 14) assegura que, “Os pesquisadores afirmam
que no ano 70 a.C., em Pompéia, já existia um enorme anfiteatro destinado à
exibição de habilidades que, mais tarde, seriam caracterizadas como
circenses”. Esta afirmação lembra a famosa política de pão e circo
popularmente conhecida, que segundo Bolognesi, (2003, p.29):
O ápice simbólico dessa política encontra-se na figura do imperador.
Nero, por exemplo, no ano 66, vestiu-se como um auriga8 e conduziu
pessoalmente um carro, celebrando a nova fundação de Roma e o
início de uma idade de ouro.
Porém, para não correr o risco de confusões, o circo no formato como se
conhece hoje é bem mais novo. “Atribui-se ao suboficial da cavalaria inglesa,
Philip Astley, a criação do circo moderno. Ele construiu um edifício permanente
em
Londres,
em
Westminster
Bridger,
chamado
Anfiteatro
Astley”.
(BOLOGNESI, 2003, p.31). A partir desse período se começa a compreender o
circo como um espaço fechado onde são apresentadas diversas habilidades, e
segundo Erminia Silva, (2010, p. 46)
A composição do espaço físico e arquitetônico, onde ocorriam as
apresentações, era em torno de uma pista de terra cercada por
proteção em madeira, na qual se elevavam, em um ponto, pequenas
tribunas sobrepostas, semelhantes a camarotes, cobertas de
madeira, como a maior parte das barracas de feira daquele período,
acopladas a pequenos barracões. O resto do cercado era formado
por arquibancadas ou galerias, bem próximas à pista. Este espaço,
porém, foi construído de modo semelhante aos lugares já
mencionados e aí também se adestravam cavalos e/ou ensinava
equitação (Astley usava a pista para aulas, nos períodos da manhã,
apresentando-se ao público à tarde).
O formidável fenômeno de Philip Astley foi colocar estas apresentações
em um espaço fechado, o que convenciona pensar a partir deste período em
uma denominação para o circo como “circo moderno” onde na concepção de
Astley o espetáculo era constituído de diversos exercícios de equitação. De
8
Entre os gregos e romanos, condutor dos carros de cavalo, cocheiro. 2012
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MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
José Benedito Andrade de Oliveira – UNEB 2012
acordo com a maioria dos pesquisadores o uso constante do cavalo no circo foi
um dos motivos para o surgimento de outra denominação, no Brasil, o “circo de
cavalinhos”. Com base nesses fundamentos, mas sem a intenção de
aprofundar a questão, apontamos neste trabalho apenas algumas referências
sobre as origens do circo.
Existem muitas diferenças entre as atividades apresentadas no circo e
anfiteatro romano que tinha propósitos político/sociais, como mecanismo de
controle da população e o que ficou denominado como circo moderno,
construído intencionalmente para promover divertimento mediante pagamento
de ingresso. Assim, entendemos que as referências ao circo na antiguidade
muito enriquece as buscas por compreensões ao que se convencionou chamar
de “circo moderno”.
No Brasil, durante o século XIX, o circo mantém a estrutura inicial
com números acrobáticos, equestres, dança, teatro e palhaços. Esta
divisão é apenas formal, pois os artistas não realizavam
especificamente um ou outro, pois um mesmo artista era ao mesmo
tempo trapezista, equestre, palhaço, além de se apresentar como
músico, dançarino e ator nas representações teatrais. (SILVA, 2010,
p.48)
Aproximando as discussões para o Brasil, também se pode notar que
apresentações populares eram feitas nas praças e feiras livres por artistas
nômades ou sedentários que se apresentavam em espaços diversos. Mas, de
acordo com Duprat, (2010, p.38)
em 1842 foi à primeira vez que uma companhia circense utilizou a
palavra circo em seu nome; ocorreu na cidade de São João Del Rei
(Minas Gerais), com um espetáculo do ator Alexandre Lowande e sua
esposa Guilhermina Barbosa.
Deste modo, o que isso quer representar é que tais habilidades já
aconteciam no Brasil, como foram mencionadas as contribuições dos povos
ciganos
desde
o
período
setecentista
com
suas
apresentações
de
prestidigitação, dança, música e teatro, inclusive em festividades da corte de D.
João VI no Brasil oitocentista.
Registros comprovam a chegada de diversos artistas no Brasil inclusive,
comprova-se a presença de circense desembarcando no país apenas com
suas famílias e muitos saberes na memória, pioneirismo fundamental para o
desenvolvimento da linguagem circense entre os brasileiros. Sobre estas
cheganças, Silva (2010, p.6) diz que:
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MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
José Benedito Andrade de Oliveira – UNEB 2012
A família Wassilnovich chegou ao Brasil na segunda metade do
século XIX. Pedro Basílio desceu no porto de Salvador casado e com
filhos. Quando foi registrar o nome em cartório, virou Silva. Chegaram
como artistas, portadores de uma memória sobre processos de
formação e capacitação, e com todo um saber arquitetônico existente
na Europa. Como chegaram apenas com o corpo como instrumento
de trabalho, para a memória familiar, eram saltimbancos, vindos do
Leste Europeu. Além disso, trouxeram também um urso, para realizar
o número que no linguajar circense chamavam de “dançar o urso”.
Como o exemplo da família Wassilnovich, outras tantas companhias
provavelmente se espalhavam por todo Brasil, apresentando-se e ensinando
para seus descendentes as habilidades circenses que faziam parte de suas
memórias artísticas e culturais. Para Silva (2010, p. 25), “no Brasil, a partir do
início do século XIX, registra-se a presença de várias famílias circenses
europeias, trazendo a “tradição” da transmissão oral dos seus saberes”.
Criando também um forte intercâmbio cultural que contribuiu consciente ou
inconscientemente com o desenvolvimento das artes circenses no país,
apresentando-se do litoral até os mais remotos rincões do território nacional,
tendo como base de referência de localização tanto as capitais dos estados
como os polos regionais do interior, também grandes apreciadores das artes
circenses.
Assim supõe-se que o circo moderno chegou aos sertões nordestinos e
no semiárido baiano. Fazendo um recorte mais preciso designadamente até o
território Piemonte Norte do Itapicuru, lócus de estudo da presente pesquisa,
encontramos poucos registros documentais sobre a presença de companhias
circenses por estas plagas. Quem aponta algumas fontes documentais a partir
de estudos em periódicos locais disponíveis no Memorial de Senhor do Bonfim,
é Silva (2010 A), que mostra para o público interessado um importante artigo,
fruto de sua pesquisa de mestrado e que desperta para novas descobertas a
respeito das andanças circenses no semiárido baiano, mais especificamente na
cidade de Senhor do Bonfim:
De acordo com as fontes documentais disponíveis, pode-se afirmar
que uma das primeiras lonas armadas em Senhor do Bonfim no
século XX foi a do Circo Olimecha. O circo chegou à cidade em
meados de setembro de 1911, mas não pôde estrear no domingo
previsto ‘em virtude das trovoadas havidas nesse dia e do forte
aguaceiro que caiu sobre esta cidade no momento em que devia
começar o espetáculo, foi este transferido para quando melhorasse o
tempo’. (SILVA, 2010, p.43)
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MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
José Benedito Andrade de Oliveira – UNEB 2012
O trabalhoso e indispensável registro supracitado nos é de grande valor
historiográfico, uma vez que são raros os escritos sobre a passagem de
companhias
e
artistas
circenses
no
semiárido
baiano
em
períodos
historicamente longínquos para o presente estudo. Torna-se mais urgente o
registro das memórias dos mestres e mestras da cultura popular, neste caso,
dos herdeiros dos saberes construídos sob o sol escaldante dos dias quentes
de verão debaixo das lonas e barracas improvisadas, e das noites frias de
inverno em ambientes nada menos hostis. Sobre essas memórias encontramos
na revista Rego do Gorila, um artigo escrito por Joelma Costa, cientista social,
palhaça, diretora circense e fundadora da Associação de Famílias e Artistas
Circenses - Asfaci. A autora afirma que:
A pesquisa e o registro sobre a memória circense são relevantes por
se tratar de tradição que tem a oralidade como principal forma de
transmissão dos saberes. Neste sentido, o fomento aos trabalhos de
memória e registro deve ser ampliado tendo em vista a urgência no
recolhimento de informações e possibilidade de proporcionar melhor
qualidade de vida aos nossos mestres que trazem consigo
importantes acervos e devem ser recompensados somente por terem
contribuído no enriquecimento de nossa história. Seu registro atrelado
à perspectiva da memória e da identidade de circenses ilustra o elo
indissociável que existe entre cultura e memória, sendo parte da
constituição do patrimônio histórico cultural brasileiro. (COSTA, 2011,
p. 54).
Apesar disso, não foi fácil encontrar fontes documentais. Os mestres da
cultura popular circense estão sendo levados em uma tendência de
desaparecimento nas veredas do tempo. Grande parte das atuais gerações
perecem alheias à gama de conhecimentos construídos por estes que dão
sustentação aos costumes e aptidões artísticas aprendidas, mas que se
perdem no imaginário popular como saberes adquiridos de fontes anônimas,
contribuindo cada vez mais para que esses criadores sejam amaldiçoados ao
anonimato.
A presente pesquisa reflete o desejo de entender a formação
artística/cultural do território Piemonte Norte do Intapicuru; uma necessidade de
registrar as vivências, histórias e saberes dos artistas populares residentes
nessa região. Isto é apenas um princípio, uma amostra de que assim como Sr.
Nilson e D. Socorro, existem muitos outros atores, poetas, cantores, pintores,
escultores, cordelistas e palhaços espalhados nos campos e nas cidades, em
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MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
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contínuo processo de produção do que há de mais sensível na sociedade: a
eterna arte.
1.2 Saberes e fazeres
Cada um na vida tem
Sua historia pra contá,
Eu tenho a minha também,
Calado não vou ficá.
(Patativa do Assaré)9
Em geral, parte da formação dos artistas circenses está relacionada com
as manifestações da cultura popular a qual esses sujeitos pertencem. No
âmbito destes saberes, se não houver um processo continuado de transmissão
mesmo que oral de suas histórias, hão de se perder e serem esquecidos pelo
inexorável tempo. Se pensarmos por este ponto de vista, quem vai contar essa
história?
O circo faz parte de um conjunto de conhecimentos construídos através
dos séculos, como a arte popular da rua, das feiras livres, das manifestações e
folguedos de heranças ritualísticas de nossos ancestrais negros, indígenas,
chineses, indianos, ciganos etc. Para tanto, deve-se pesquisar, nos mais
diversos meios de comunicação e fontes documentais ou de memória, as
raízes das diversas modalidades de circo que agregam uma enorme
diversidade cultural.
O circo segue na frente da marcha e vez por outra na história veremos
que ele vem retomando o cortejo de desenvolvimento da humanidade. Para
entendermos isso, podemos analisar a origem dos números apresentados
como: a arte da prestidigitação cigana, os números de concentração e
equilíbrios indianos, as acrobacias chinesas, a música latino-americana,
agilidades e força de rituais tribais, a arte clownesca europeia e com mais
evidência no Brasil, o humor brasileiro miscigenado, etc. Bolognesi (2003, p.
30-31) as descreve da seguinte forma:
As aptidões circenses ganham um caráter espetacular porque nelas
estão contidos os seguintes elementos: (a) a habilidade propriamente
dita, quando o artista domina a acrobacia, o trapézio o equilíbrio, os
truques de magia e prestidigitação, o controle sobre feras etc.; (b) a
9
Antologia poética, 2007, p.120.
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MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
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coreografia, que confere às habilidades individuais ou coletivas um
sentido na evolução temporal e espacial; (c) a música, que contribui
para a eficácia rítmica dos elementos anteriores; (d) a indumentária,
que completa visualmente o propósito maior do número; (e) a
narração do Mestre de Pista, que se converteu em ingrediente
especial para a consecução do tempo dramático, enfatizando os
momentos da apresentação, o seu desenvolvimento, o clímax e o
consequente desfecho.
Os fazeres circenses complementa-se entre o picadeiro e a vida
cotidiana. Os artistas revezam suas ações entre o lar e o trabalho; entre o
trailer e o tablado. Aprender é repetir todas as noites os mesmos números, os
mesmos exercícios no picadeiro. Ensinar é estar presente a todo o momento
fazendo junto, respirando a mesma atmosfera. É estar vivendo num constante
fazer/desfazer do clímax entre o cômico e o dramático tanto no picadeiro
quanto na exposição diária da moradia vulnerável pela instabilidade do tempo e
da cultura.
A continuidade das atividades circenses depende, e muito, das
estruturas administrativas dos estados e municípios, uma vez que os espaços
para montagem da lona se tornam cada dia mais escassos e o tempo de
permanência em cada cidade são ínfimos, obrigando os artistas estarem em
constante itinerância gastando mais tempo se deslocando que aprimorando
suas habilidades artísticas.
Dessa forma, o desenvolvimento das artes e a aprendizagem entre os
circenses das pequenas companhias mantém o mesmo rumo itinerante de
suas vidas; entre o risco do acidente dentro ou fora do picadeiro e do
esquecimento de números que não fazem sucesso nas praças sendo deixados
de lado em decorrência de outros mais populares, como de suas próprias
experiências artísticas.
Sabemos que é comum o público fazer críticas aos espetáculos
circenses das pequenas companhias. As pessoas vão ao circo para rir das
mazelas expostas pelos palhaços e o trágico exposto nos poucos números de
trapézio, equilíbrio e outros. Difícil é compreender que muitos artistas circenses
aprenderam estes números desde criança e aprimoram a cada apresentação e
que muitas vezes são obrigados a improvisar, apresentando cenas que
agradem a plateia para garantir a bilheteria e consequentemente a
sobrevivência de sua família. Quanto menos o público entende o circo, quanto
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MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
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menos existam políticas de incentivo para esta arte milenar, mais difícil tornase a vida destes agentes culturais espalhados por todo território nacional. Os
circenses revigoram a vida dos espíritos cansados pelo fardo social imposto
inclusive pela educação formal.
Ascender o lugar do circo na escola, por exemplo, é reconstruir o espírito
lúdico com a presença do palhaço fortalecendo o desenvolvimento da cultura
infantil. Pensar o circo na escola é promover segurança física alimentar10,
intelectual e principalmente emocional que irão auxiliar os estudantes, de certo
modo, a aprender na prática noções de cooperatividade, ao executarem
atividades acrobáticas em equipe; solidariedade, ao apoiarem os colegas em
exercícios de parada de mão; autoconfiança, ao trabalhar equilíbrio; estímulo e
persistência no jogo de malabares; humanismo e alegria, ao construir seu
próprio palhaço em um mundo onde todos têm o nariz vermelho e as
brincadeiras nunca devem ser de mau gosto. O circo, em sua dualidade
tragicômica, proporciona a humanidade o olhar sobre si mesmo, fazendo-nos
compreender o outro a partir de nosso próprio sentir.
Ao garantir na formação do educador um campo epistemológico que
fundamente discussões dessa natureza, estaremos caminhando para a
transdisciplinaridade e consequentemente, para a socialização dos saberes de
diversos povos. Porque, como diz Silva (2010, p. 27):
As memórias do ‘povo da lona’, daqueles que têm ‘serragem nas
veias’, são pouco conhecidas. A importância desse registro parece
ser evidente, tanto porque a produção da teatralidade circense fez e
faz parte da constituição da história cultural no Brasil, quanto porque
aqueles que estão dentro do circo não se dão conta daquela
produção e nem mesmo das transformações que as gerações
anteriores e eles produziram.
O registro é importante, principalmente pela carência de materiais sobre
o tema no semiárido, uma vez que os saberes circenses por aqui, ficam
restritos às famílias circenses e as fragilidades dos programas governamentais
não contribuem para o fortalecimento e permanência dos descendentes dessas
10
É importante frisar sobre o papel que uma alimentação saudável e balanceada representa na
prática da atividade física (circo). A educação alimentar é uma das inúmeras temáticas que
não priorizadas durante o processo formativo de indivíduos que passam pelas escolas
brasileiras. Cabe ressaltar também a dependência de boa parte desses sujeitos da merenda
escolar, essa deve estar também sempre atenta aos preceitos nutricionais básicos para se
obter uma vida saudável.
31
MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
José Benedito Andrade de Oliveira – UNEB 2012
famílias com os empreendimentos e conhecimentos produzidos por seus
antepassados. A força da tradição aos poucos se esvai e tornam-se frágeis os
laços que antes os uniam. Sobre as contribuições da tradição familiar circense,
ao falar das relações familiares entre os Viana, Neves e Santoro, Andrade
(2010) diz que:
Não se pode deixar de assinalar o quanto a tradição familiar esteve
presente e atuante entre os Viana, os Neves e os Santoro. A fusão de
três irmãs e um irmão da família Santoro, com três irmãos e uma irmã
da família Neves, não nos apresenta apenas como resultado perfeito
de uma equação matemática, mas prova que no contexto circense, os
laços que envolvem os familiares são sólidos, verdadeiros e
duradouros. (ANDRADE, 2010, p. 339)
Existem várias fendas em relação aos registros de famílias, companhias,
trupes, pequenos circos, seus saberes e fazeres no semiárido baiano. São
lacunas que precisam ser preenchidas, são pessoas que devem ser ouvidas
para que possam dizer de si e contribuir com a diversidade de saberes
acumulados durante suas andanças e assim, contribuir para o levantamento e
registro de uma ontologia artístico/cultural do semiárido. Estudo que pode ser
feito a partir das particularidades vividas e descritas por esses incansáveis
criadores do improviso em cada praça onde se apresentam identificando com
sutileza as almas sensíveis que são homenageadas com galhofas em seus
espetáculos de natureza improvisacional.
O circo agrega os mais diferentes sentimentos, onde o artista chega ao
ápice da glória quando alcança seu maior objetivo ao concluir seu número. Não
é diferente para o público que vibra e cria uma cumplicidade artística dentro da
atmosfera do espetáculo, que se o artista errar o número apresentado, o
público compartilha com fervor deste acontecimento.
Estes saberes não são relevantes apenas para a formação dos
circenses. As leituras referentes ao processo formativo em artes circenses são
fundamentais nesta pesquisa, por se tratar de um trabalho voltado
principalmente para um público interessado nos saberes desta área de
conhecimento para possíveis aplicabilidades e desdobramentos no campo da
educação. Para isso, é preciso conhecer mais sobre a história do circo e como
esta linguagem se desenvolve e permanece presente na cultura brasileira.
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MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
José Benedito Andrade de Oliveira – UNEB 2012
As vivências com algum elemento das artes circenses na educação
básica têm acontecido como recreativas, estando mais próximas da distração.
Assim, percebemos também que esta linguagem é compreendida por alguns
educadores como atividade de menor importância em relação aos outros
conteúdos tidos como sérios e fundamentais para a vida social. Se se pensa
assim de forma genérica em relação às artes, sobre o circo a coisa ainda é
pior. A questão está na estruturação do sistema educacional. Para Barbosa
(2008, p.17), “Não se pode conhecer a cultura de um país se não se
compreender a sua arte”. Não se pode compreender a vida dos circenses sem
conhecer a arte do circo.
Assim como outras experiências e pesquisas feitas com famílias de
pessoas de circo, no semiárido a forma de transmissão desses saberes segue
o mesmo rumo itinerante citado pelas demais companhias. Aqui, as técnicas,
saberes e conhecimentos também são passados de pai para filho no convívio
diário com a linguagem no subir e descer da lona.
Senhor Nilson, ao ser perguntado sobre o processo de formação na
linguagem circense, em que foi sugerido que ele apresentasse um projeto nas
secretárias de educação para promover oficinas em espaços formais ou não
formais de educação, responde com propriedade:
Eu nunca fiz oficina com crianças. Mas, sabe por que é que a gente
não faz? Por causa dessa dificuldade; muitas vezes, organizar um
grupo de crianças para fazer uma oficina no circo hoje é difícil.
Porque as leis não permitem que menores trabalhem no circo. (José
Nilson Rodrigues Barbosa (palhaço Carobinha), entrevista concedida
em 27 – 06 – 2011).
E continua problematizando sobre o processo de preparação e formação
dos próprios familiares, ao ponto que questiona as interpretações feitas pelas
leis de proteção aos menores e descendentes de famílias circenses.
Até com a família da gente... Escute uma coisa... Esses dias houve
um debate lá em Brasília. Eles querem que o filho do artista ensaie,
mas não trabalhe, segundo esta visão só é para trabalhar depois dos
18 anos, aí como é que vai aprender? Aí depois de 18 anos a gente
já com os ossos tudo duro. Vai aprender mais com 18 anos? O filho
do artista tem que começar a trabalhar nem que seja sem
compromisso, né? Porque compromisso pra criança. Você sabe que
não existe ter um filho pequeno e ter que impor que ele trabalhe toda
noite, né? (José Nilson Rodrigues Barbosa (palhaço Carobinha),
entrevista concedida em 27 – 06 – 2011).
33
MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
José Benedito Andrade de Oliveira – UNEB 2012
É possível observar que o Senhor Nilson tem uma analise muito
contundente da importância da formação e permanência dos artistas circenses
na arte. Ele compreende que é fundamental o processo de formação que deve
ser feito com as crianças para permanência e continuidade das atividades
circenses. A metodologia de ensino da arte circense vai sendo desenvolvida no
decorrer do tempo, o que possibilita ao artista repensar a forma como
aprendeu, criando, ao seu modo, novas formas de repassar para os mais
jovens. Para Senhor Nilson:
A obrigação é da gente tá ensinando, trabalhou em um lugar, deixa
pra trabalhar em outra praça, mas se eles querem, então devemos
deixar subir no picadeiro. Mas, tem que manter aquele compromisso
de ensinar com 3, 4 anos em diante, para quando tiver com seus 12
anos já saber fazer muitas coisas. Com 18 anos não acredito que a
pessoa aperfeiçoa número circense. A pessoa vai aprender uma
contorção? Você acha que com 18 anos vai aprender? A pessoa vai
conseguir mais enrolar a coluna pra poder fazer uma contorção? Não
vai! A pessoa tem que tá ensinando desde novo. (José Nilson
Rodrigues Barbosa (palhaço Carobinha), entrevista concedida em 27
– 06 – 2011).
Os circenses tem o compromisso de ensinar a seus filhos as artes que
aprenderam com seus pais. A questão é que a sociedade sedentária não
ensina a seus filhos que existem pessoas que tem uma vida itinerante e que os
filhos dessas pessoas frequentam as mesmas escolas e seus direitos devem
ser respeitados. A escola, por sua vez, precisa acabar o estranhamento com
este público que chega de todos os lugares trazendo na bagagem muitas
experiências de vida e que muito pode contribuir para o desenvolvimento
humano.
Garantir que a linguagem circense tenha notoriedade no currículo dos
cursos de licenciatura em artes cênicas, educação física, música, letras e áreas
afins, é instituir um saber que na prática será compreendido e absorvido como
conhecimento. Para que isso aconteça, é necessário inserir os mestres
circenses por serem importantes conhecedores de grandes segredos destas
artes,
e
esta
ruptura
dentro
das
universidades
terá,
entre
outros
desdobramentos, um importante diálogo na construção dos conteúdos que
comporá o material didático para se trabalhar nas escolas futuramente.
Dentro dos afazeres circenses nas pequenas companhias ou trupes, os
artistas populares aprendem a produzir suas próprias estruturas a partir de
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MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
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suas necessidades, possibilidades e materiais disponíveis. Senhor Nilson, por
exemplo, ao explicar como montavam o circo, descreveu uma forma artesanal
e rudimentar para impermeabilizar os tecidos para cobrir a parte do circo
destinada ao público.
Eles compravam sacos de tecido de algodão que servia para embalar
açúcar. Na época era um material barato e disponível no mercado, podendo
ser vendido a preço popular, menor que o valor do ingresso para assistir ao
show. Após descoser os sacos, eles reaproveitavam a linha e uniam as partes
formando retângulos com mais de três metros; esticavam o tecido em um
terreno ao ar livre e pintavam formando retângulos coloridos.
A tinta era produzida com uma mistura de querosene, parafina líquida e
um componente mineral utilizado como material de construção. Colocavam
uma pigmentação de acordo com a cor desejada e pintavam o tecido duas ou
três vezes, deixando-o estendido até que a parafina secasse e o tecido
estivesse pronto para ser utilizado como lona. Um poste de madeira era fincado
no centro do circo e servia de suporte para distribuir as partes da lona
formando um semicírculo que servia para proteger a plateia enquanto os
artistas continuavam trabalhando ao ar livre em dias que não houvesse chuva.
Já a iluminação era feita com gambiarras cruzando de um lado a outro do circo.
As informações prestadas por Senhor Nilson servem para instigar outras
buscas sobre a história do circo nesta região, registrando experiências e
saberes dos artistas circenses que permanecem na área ou não, mas que
podem contribuir na elaboração de subsídios que sirvam como ensinamentos
para a continuidade dos encantos da vida dessa “gente de circo”.
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MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
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2. CIRCENSES – um riso na corda bamba e outras modalidades
2.1. O Palhaço
Tratar de algumas modalidades circenses neste trabalho torna-se
relevante por abordar um estudo de caso de uma companhia caracterizada
como circo-família, da qual seu mentor aprendeu e aprimorou diversas
habilidades para sustentar a sua atividade.
O conceito circo-família foi construído por meio da abstração de
elementos que, para os circenses – a fonte – constituíam matériaprima de seu modo de viver. A noção geral dada pelo conceito é a de
um circo que se fundamentava na família circense. O conceito é
complexo, constituído por meio da intermediação dos vários aspectos
que conformam essa ideia de família circense. Esses vários aspectos
– saberes, práticas e ‘tradição’ – já estavam presentes na formação
do circo com a chegada das primeiras famílias no início do século XIX
no Brasil.(SILVA, 2010, p.32)
É necessário compreender que tipo de habilidades e números 11
artísticos era apresentado pelo palhaço Carobinha no início de sua carreira
como circense que aos poucos se profissionalizava, bem como conhecer a
base de sua formação para analisar se o seu caso, especificamente, pode ser
caracterizado nesta estrutura de circo-família, que consiste em uma
organização onde a tradição seja mantida e os ensinamentos passados para os
descendentes.
Circenses – proprietárias ou não. É a esse conjunto que denomino
circo-família. Mas o circo-família só existiu até o momento em que
estava fundamentado na forma coletiva de transmissão dos saberes e
práticas, através da memória e do trabalho, e na crença e aposta de
que era necessário que a geração seguinte fosse portadora de futuro,
ou seja, depositária dos saberes. Transmitidos oralmente, o que
pressupunha também todo um ritual de aprendizagem para fazer-se e
tornar-se circense. (SILVA, 2010, p.33)
A estrutura metodológica de sustentação do Weverton Circo fica a cargo
da família circense de Senhor Nilson e Dona Socorro, incluindo a
administração, método de formação dos circenses, orientação das crianças e
preocupações com o futuro da companhia. O pequeno empreendimento de
11
Números: Qualquer atuação circense que requeira ou não o uso de aparelhos, individuais ou
não. Os palhaços, embora nem sempre usem aparelhos, também executam um número.
(SILVA, 2010, p. 44)
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MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
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Senhor Nilson visa o sustento de sua família e do próprio circo, o que é
diferente de uma estrutura empresarial, onde o principal objetivo é o lucro
gerado com a produção dos espetáculos.
O modo adequado de tratar os aspectos econômicos referentes à
inserção da criança no circo-famílias é situa-la no conjunto que
articula a organização do trabalho e o processo de
socialização/formação/aprendizagem. Deste ponto de vista, fica claro
que a formação e a aprendizagem do circense deve ser entendida
como a reprodução de um modo de vida. Procurar ‘perdas e ganhos’
neste processo é simplificar e reduzir a analise. O circo-família, tendo
em vista sua singularidade, não transferia ou imputava às instituições
escolares e de formação profissional a obrigação de qualificar seus
componentes. (SILVA, 2010, p. 86)
Ao supor que a companhia Weverton Circo pode ser caracterizada como
sendo circo-família, resolvemos apresentar algumas modalidades que foram
listadas por Senhor Nilson como sendo a gênese de seu show e a metodologia
para
fortalecer
a
equipe,
como
a
cooperatividade
na
família
e
o
desenvolvimento da autoconfiança em seu trabalho que desde o início encanta
crianças, adolescentes, jovens e adultos, em espaços formais e não formais
por onde tem passado mantendo a tradição.
Ser tradicional é, portanto, ter recebido e ter transmitido, através das
gerações, os valores, conhecimentos e práticas dos saberes
circenses de seus antepassados. Não apenas lembranças, mas uma
memória das relações sociais e de trabalho, sendo a família o mastro
central que sustenta toda esta estrutura. (SILVA, 2010, p.25)
O Senhor Nilson não nasceu em um circo e até os doze anos ele levou
uma vida sedentária. Porém, após acompanhar o Circo-teatro Alan, ele não
retornou para o seu antigo modo de vida, casou-se com uma filha de circense
tradicional e mantem-se na vida itinerante com seus filhos e netos há mais de
trinta
anos,
garantindo
a
continuidade
dos
saberes
circense.
O
desenvolvimento da arte feita pelo Senhor Nilson e o crescimento do seu circo
paralelo à constituição de sua prole, sendo intrínseca a transmissão e
aprendizado de algumas destas modalidades para seus filhos não o caracteriza
como sendo circo-família? Acreditamos que sim, pois entendemos que para os
filhos de artistas circenses iniciarem na arte o pré-requisito básico é estar junto
com sua família, é estar no circo e consequentemente o aprendizado é algo
que acontece na prática diária, no repetido gesto de subir e descer a lona,
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MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
José Benedito Andrade de Oliveira – UNEB 2012
diante da necessidade básica da família de manutenção e permanência da arte
circense.
Porém, as questões ligadas à metodologia aplicada pelos pais na
transmissão desses saberes artísticos ficam para outro momento, uma vez que
requer aprofundamento e mais tempo para análise. Mas acreditamos que
alguns desdobramentos podem ser feitos no sentido de aproximar os
conhecimentos discutidos com o processo educativo a partir da leitura de
algumas linguagens e modalidades circenses apresentadas na Companhia
Weverton Circo.
Dentre as várias modalidades circenses, foi escolhido dissertar sobre
algumas linguagens como equilíbrio, manipulação de objetos e o ator de circo.
Referimo-nos diretamente ao rolo americano, aos malabares e às entradas e
reprises12 explorando o universo do palhaço brasileiro e a construção de
personagens cômicas.
Começando pelo último tópico citado, a comédia, se esclarece a priori
que não será feita grande explanação sobre este intricado gênero dramático,
uma vez que seria assunto para ser tratado individualmente em um projeto de
pesquisa específico, dada a sua complexidade, já que neste caso, não há
tempo hábil para aprofundar estudos sobre os primórdios da comédia desde
Aristófanes na Grécia antiga até a atualidade, buscando compreender as
mudanças desde as origens, baseando-se nos costumes dos komos etc. como
bem afirma Berthold (2001, p. 120)
A origem da comédia, de acordo com a Poética de Aristóteles, reside
nas cerimônias fálicas e canções que, em sua época, eram ainda
comuns em muitas cidades. A palavra ‘comédia’ é derivada dos
Komos, orgias noturnas nas quais os cavaleiros da sociedade ática
se despojavam de toda a sua dignidade por alguns dias, em nome de
Dioniso, e saciavam toda a sua sede de bebida, dança e amor.
Ao contrário do citado acima, o que se pretende tratar é sobre o papel do
riso, escolhendo o palhaço como principal personagem a ser estudado e
compreendido dentro do contexto da arte circense. Não tão visceral quanto as
festas dionisíacas, mas sem perder a embriaguez poética da personagem de
12
Reprise ou entrada são termos usado para designar uma apresentação cômica de 15 ou 20
minutos, podendo estender-se a partir da intervenção com a plateia, em um jogo improvisado.
(BOLOGNESI, 2003, p. 103)
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MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
José Benedito Andrade de Oliveira – UNEB 2012
cara pintada e riso provocador. É preciso entender o espírito lúdico do palhaço.
Nesta busca por entendimento, encontramos algumas referências sobre o
palhaço, em Bortoleto (2008, p. 53) quando discorrem sobre esta personagem
dizendo:
A abordagem que cada palhaço mostra nas suas expressões
fisionômicas através da maquiagem, da riqueza de detalhes e
técnicas presentes no repertório corporal de cada um deles, nos
revela um norte para entendermos a linguagem... Estes
conhecimentos como fonte de entendimento individual e coletivo na
apresentação da linguagem no picadeiro são procedimentos de
grande importância comumente conhecidos como os elementos
técnicos dos palhaços que são as gags, cascatas e pilhérias.
No entanto, é preciso conhecer mais sobre esta personagem tão
importante para o desenvolvimento emocional do ser humano, já que o palhaço
faz parte do imaginário na cultura infantil e a má condução na introdução dessa
personagem neste período da vida humana pode acarretar problemas
psíquicos sérios e que hão de acompanhar a pessoa por toda sua vida.
Para conhecer mais sobre a origem do palhaço, pode-se adentrar na
historiografia específica e encontrar referência em Berthold (2001) quando fala
nas bases da commedia dell’arte, sobre a construção de personagens de
cunho popular com uma extrema força interpretativa. Os cômicos dll’arte
construíram um estilo próprio adaptado das apresentações das feiras, das
manifestações de cunho carnavalesco e de outras manifestações populares.
Esses alcançaram fama na Itália e em pouco tempo ocuparam Paris, onde
viveram sua glória no século XVI. Segundo a autora:
A comédie italienne atuou, nos anos de 1658-1673, no Petit Bourbon,
depois no Hôtel Guénegaud, e mudou-se, após a fusão da tragédia e
comédia francesas na Comédie Française em 1680, para a sala de
espetáculos do Hôtel de Bourgogne. No Hôtel de Bourgogne, com
suas veneráveis tradições, viveu os momentos de sua maior glória. E
aqui, em 1697, ela própria cortou o fio de sua vida. Uma sátira
insuficientemente dissimulada atacando Mme de Maintenon, a
comédia La Fausse Prude (A falsa Pudica), à maneira de SaintSimon, provocou o fechamento instantâneo do teatro por Luís XIV. Os
comediantes italianos tiveram de deixar Paris. (BERTHOLD, 2001, p.
358)
Se analisarmos o impacto causado com a apresentação deste
espetáculo, levando em consideração que na maior parte o texto era
improvisado – em que os artistas se utilizavam do artifício de aproveitar a verve
provocada pelo clímax da peça – perceberemos a capacidade que estas
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MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
José Benedito Andrade de Oliveira – UNEB 2012
personagens tinham diante do público em Paris, durante um período onde este
era um dos maiores meios de divertimento e fruição artística. O impacto causou
um pesar para o público ao ver os artistas de uma companhia - que a tantos
fizeram ri e se emocionar durante os quinze anos, agora deixando uma
herança na cidade, o que os fizeram retornar dezenove anos mais tarde já
sobre a direção de Luigi Riccoboni em 1716 – serem expulsos. (BERTHOLD,
2001).
Propomos um afunilamento intencional supondo uma aproximação dos
cômicos dell’arte com os palhaços de picadeiro, principais mestres dos
pequenos circos de lona tão comuns no semiárido baiano hoje, e analisando as
personagens com características clownescas presentes no teatro Elisabetano
em peças de Shakespeare e a origem dos mimos presentes nas farsas
burlescas e rústicas no antigo império romano:
O mimo desenvolveu-se originalmente no Sicília. Era uma farsa
burlesca rústica, à qual Sófron deu forma literária pela primeira vez
por volta de 430 a.C. Suas personagens são pessoas comuns e, no
sentido mais amplo da mimese, animais antropomórficos. (Berthod,
2001, p. 136)
A presença de cômicos nos espetáculos de comédia aos pouco delineia
as personagens com carga grotesca que representa uma camada de pessoas
simples da sociedade e este clown vai aparecendo e ganhando força
dramática, ocupando espaço de destaque nos espetáculos, de acordo com
Bolognesi:
O clown, ou uma primeira caracterização dele, pode ser encontrado
no teatro de moralidades inglês, da segunda metade do século XVI.
Inicialmente secundário, aos poucos ele foi se definindo como
personagem importante e passou a ser ‘obrigatório’ em todas as
peças inglesas... A pantomima inglesa se desenvolveu a partir da
commedia dell’arte. (BOLOGNESI, 2003, p. 62-63).
Por sua vez, a aproximação do clown inglês versado de pantomimas
derivadas dos mimos com os cômicos dell’arte foi se caracterizando aos
poucos. O desenvolvimento da personagem que utilizava uma maquiagem
baseada nas máscaras da comédia dell’arte, com o vermelho herdado do
Arlequim e o branco do Pierrô, acontece com um ator inglês: “Essa
transformação ocorreu no final do século XVIII e veio a se consolidar no XIX,
especialmente através da criatividade de um ator inglês do teatro de
variedades, Joseph Grimaldi (1778-1837)” (BOLOGNESI, 2003, p.63).
40
MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
José Benedito Andrade de Oliveira – UNEB 2012
O ator que é considerado o criador do palhaço circense jamais ocupou
um picadeiro de circo (BOLOGNESI, 2003). Sua formação se deve,
especialmente, a uma grande bagagem herdada do avô, que viveu a
personagem Arlequim na feira de Saint-Germain e o próprio pai que, além de
também ter feito Arlequim como ator, era bailarino e professor de dança em
Londres, aproximadamente em meados do século XVIII (BOLOGNESI, 2003).
Essa personagem, após sintetizar sua base no teatro de variedades inglesas,
vai se desenvolvendo e adquirindo importância nos mais diversos espetáculos,
ao ponto de se eternizar como elemento principal no universo das artes
circense.
Naturalmente, ao alongo dos séculos ocorreram muitas mudanças e o
palhaço foi ocupando espaço dentro da dramaturgia mundial. Tornou-se a
principal atração no picadeiro. Nos pequenos circos é o palhaço quem ainda
arrasta a plateia ávida por alguns momentos de riso e alegria diante de tantas
adversidades contemporâneas em que as camadas mais empobrecidas
encontram um lugar para escancarar momentaneamente suas bocas de sorriso
falhado e expressões deprimidas diante da realidade. O espetáculo circense
transforma as mágoas em alegrias. E a tristeza? Fica esquecida em baixo da
lona! A intervenção brincante de um palhaço leva o tempo de uma vida para
esquecer. Nilson sabe disso e sua personagem, o palhaço Carobinha, vem a
trinta anos encantando pessoas de todas as idades por onde passa esta
pequena companhia Weverton Circo.
2.2. Malabarismo
A brincadeira que utiliza o corpo em diversos movimentos acrobáticos
faz parte do universo lúdico infantil: pular, girar, pendurar-se, equilibrar-se em
uma ou mais parte do corpo, como também atirar objetos para cima, subindo,
saltando com ou sem proteção nos mais diferentes lugares.
O desafio move o ser humano e isso se firma desde sua mais tenra
idade, numa busca de se fazer presente em todas as ações cotidianas, nos
espaços sociais ou em suas individualidades. Outra atividade que muito diverte
crianças em todo mundo desde épocas imemoriais são os jogos que utilizam a
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MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
José Benedito Andrade de Oliveira – UNEB 2012
bola como brinquedo principalmente a modalidade malabarismo. Sobre esta, o
pesquisador de artes circenses, Duprat (2010, p. 90-91) diz:
Em muitas culturas, muitos xamãs ou pessoas dedicadas aos rituais
religiosos utilizavam-se desta prática para atrair e convencer os
demais de seus poderes sobrenaturais, um fascínio que ainda hoje é
explorado no malabarismo. Na Europa, durante a idade média, os
saltimbancos eram muitas vezes músicos, comediantes, ilusionistas e
malabaristas. Desde o início do século 19 até meados do século 20
expande-se o malabarismo como uma arte própria. São os musicais
e, principalmente, os circos, que oferecem em suas representações
números de malabarismo de altíssimo nível.
No circo esta é uma das modalidades mais fascinantes, onde o
malabarista com seu carisma e habilidade conquista e encanta o público pela
sua ousadia e rapidez em atirar para o ar e aparar objetos diversos com uma
leveza impressionante, ou move-lo, mantendo-o em contato com seu próprio
corpo animando-o de forma lúdica13.
O malabarismo pode ser caracterizado por ser habilidoso, artístico,
possível com qualquer material e por qualquer pessoa. Habilidoso,
porque o malabarismo não é fácil. Não é preciso ter nenhum talento
especial, mas sim habilidade adquirida pela prática. É uma
possibilidade que só possuem os que passaram um bom tempo
praticando; não existe maior mistério. (BORTOLETO, 2008, p. 40).
O malabarismo constitui-se como um número circense muito comum
principalmente em pequenos circos onde um ou outro membro da companhia
começa a praticar essa modalidade com o intuito de enriquecer a programação
da mesma. Também é comum os artistas circenses receberem um cachê
artístico diferenciado de acordo com a quantidade de números, neste caso se o
artista é polivalente e mantém uma produtividade artística favorável para a
companhia,
esse
artista
tem
uma
garantia
maior
de
se
destacar,
consequentemente, esse fator irá melhorar sue próprio sustento e/ou da
família, se for o caso.
Importante frisar que o malabarismo não fica restrito ao picadeiro do
circo, principalmente pela versatilidade que permite ao praticante, tanto nos
materiais utilizados na prática da modalidade, quanto pelo espaço exigido para
a demonstração do mesmo. Duprat (2010) apresenta uma definição que
organiza os malabarismos nas seguintes categorias: “malabarismo de
13
Para maior entendimento, consultar Bortoleto (2008, p.39) Introdução à pedagogia das
atividades circenses.
42
MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
José Benedito Andrade de Oliveira – UNEB 2012
lançamento; malabarismo de equilíbrio dinâmico; malabarismo giroscópico e
malabarismo de contato”.
Cada uma dessas definições tem suas especificidades não sendo
comum o mesmo malabarista dominar todas as linguagens com o mesmo
afinco. Porém, é possível encontrar artistas dedicadíssimos que dominam duas
ou mais linguagens com satisfatório desempenho para apresentações em
shows de variedades ou em companhias de pequeno e médio porte.
Destacam-se como casos excepcionais os artistas das grandes companhias
circenses espalhadas pelo mundo.
2.3 Funambulismo
Uma modalidade circense muito comum nos pequenos circos é o
funambulismo, também conhecido como corda bamba. Este é um número que
geralmente
aparece
na
programação
das
pequenas
companhias
principalmente por ser um equipamento barato que pode ser adaptado em
situações em que a companhia esteja passando por dificuldades e precise
trabalhar em outros espaços fora do circo, como escolas, clubes recreativos,
festas populares, festas particulares, etc.
Este número circense era comum entre os artistas populares que
andavam com pano de roda. Contudo, é um número perigoso criando uma
situação tensa na plateia uma vez que o artista deve manter-se instável sobre
um cabo ou corda a uma determinada altura do solo. Nos pequenos circos,
chega a ser corriqueiro a apresentação deste número sem a utilização de
nenhum equipamento de segurança, consistindo um risco ainda maior e que
pode ser fatal para o funâmbulo. No entanto, a natureza própria desta
modalidade instiga o público ávido pela conquista do sublime da finalização do
número pelo artista, o que torna a apresentação muito mais rica do ponto de
vista da estética circense.
As modalidades citadas nesta parte do texto foram selecionadas
especificamente por se tratar de práticas comuns no repertório do Weverton
Circo. O equilíbrio no arame, o malabarismo e o palhaço mais especialmente,
foram os números que garantiram a confiança do Senhor Nilson e que o
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MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
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encorajou a se arriscar na corda bamba de sua própria vida, equilibrando-se
entre a leveza do palhaço Carobinha e a tensão do malabarismo sobre o arame
frouxo durante as apresentações nos mais distantes rincões destes sertões da
Bahia.
Segundo o próprio Nilson, em momentos críticos da bilheteria de sua
pequena companhia, ele chegou a apresentar seu número de funambulismo,
em que o artista equilibra-se e faz diversas evoluções sobre um arame a certa
distância do solo (DUPRAT, 2010, p. 119). Senhor Nilson apresentou-se
mesmo estando com um braço quebrado. Ele havia sofrido um acidente em
uma apresentação. O circo estava em uma comunidade rural carente de
qualquer assistência médica oficial. Ele contou que na noite anterior havia
caído da corda bamba e mesmo assim precisava manter o espetáculo:
Rapaz... Quando a gente tá na arte né? Não pode desistir não, ainda
mais se não tiver apoio de lugar algum... Foi assim... Eu caí do arame
e não tinha assistência médica... Como é que vai ter? Lá no meio da
caatinga. Longe! Eu tinha que trabalhar... Eu estava com uma febre
que eu ficava tremendo ali... Ficava deitado assim perto do pano de
roda, em um colchão; quando era minha vez de entrar eu ia e alguém
me ajudava subir no arame; fazia o número e depois voltava para o
colchão. E foi assim até melhorar. (José Nilson Rodrigues Barbosa,
entrevista concedida em 27/06/ 2011)
Aqui, percebemos a força de vontade mantida pela necessidade real de
garantir ao público a qualidade do espetáculo, sem o prejuízo estético do
número de funambulismo e o compromisso com sua família. Porque era com a
garantia da bilheteria que ele cobriria despesas básicas, as quais incluíam os
próprios remédios e alimentação.
Ao se tentar analisar as complexidades das pessoas que vivem de forma
itinerante, precisa-se acuidade nas reflexões não correndo o risco de vitimizar
ou marginalizar estes sujeitos que constroem seus itinerários pensando em
uma perspectiva de vida diferente da maioria das pessoas sedentárias. Nilson,
naquele momento não deixaria suas atividades circenses mesmo sabendo dos
riscos que corria com um sistema de saúde precário ou mesmo com a ausência
deste. Os circenses sabem os riscos que correm. Mas a persistência que os
move em direção a seus sonhos está além das preocupações aparentemente
determinantes para o encerramento das atividades circenses. A capacidade de
emocionar vai adiante do carro da razão (grifo nosso).
44
MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
José Benedito Andrade de Oliveira – UNEB 2012
2.4 Trapézio14
Os artistas circenses das pequenas companhias se arriscam em
diversas modalidades aumentando suas possibilidades, variando entre um e
outro número. O trapézio é uma modalidade dentro da área das acrobacias
aéreas15 e também faz parte do repertório do Weverton Circo. Nilson conta que
muitas vezes quando saía para “dar show” pelas comunidades rurais, eles
procuravam entre os moradores do povoado uma casa que tivesse uma sala
grande com a cumeeira alta. Na sala desta casa eles armavam o trapézio e
separavam uma pequena parte onde delimitavam o picadeiro. Ali, durante a
noite, sobre luz de candeeiro, eles apresentavam seus números e seguiam
viajem a pé até arrumar algum dinheiro para pagar o transporte do circo para
outro lugar. Segundo Bortoleto (2008, p.157) “não há registros precisos de
quem inventou, nem de onde surgiram as primeiras experiências artísticas com
o trapézio, tampouco de como ele foi introduzido no contexto circense”. Já
Duprat (2010, p.72) diz que “o trapézio é oriundo do grego trapezion, pequena
tábua. Consiste em uma barra de madeira ou de metal, ligadas a duas cordas,
um aparelho extremamente simples”.
Quando perguntada sobre a forma das apresentações nestes espaços,
delimitação do picadeiro e desenvolvimento dos números artísticos, Dona
Socorro exemplifica com a apresentação de trapézio:
Não era nada fácil viu... Veja bem, a gente ficava apertadinho assim...
As pessoas em cima. Quando o trapezista apresentava o número, era
engraçado (...). Ele vinha pra cá e todo mundo saí para os lados; ele
ia pra lá e o povo voltava para seus lugares (Maria Socorro Campos
da Conceição, entrevista concedida em 27/06/ 2011)
Dona
Socorro
refere-se
ao
movimento
que
o
trapezista
faz
embalançando o corpo sobre o aparelho para dar impulso e fazer as evoluções
pertinentes a este número de acrobacias aéreas. Importante perceber que
Dona Socorro começou falando exclusivamente do trapézio. Isto pode ser um
indicativo do fascínio provocado por este número circense. Talvez a alusão
feita com a possibilidade de voar, de alguma forma faça o público experimentar
14
Para maiores entendimentos sobre a modalidade trapézio e suas técnicas, consultar
Bortoleto (2008, págs. 157-177)
15
Modalidades aéreas são aquelas que permitem exibições aéreas, ou seja, sem contato
duradouro do artista com o solo. (BORTOLETO, 2008, p. 157).
45
MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
José Benedito Andrade de Oliveira – UNEB 2012
a sensação de confronto com o perigo e a realização do sublime em que o
artista desafia e vence a morte numa apresentação artística. O que faz do
trapézio um grande número circense.
Na entrevista aparecem as dificuldades enfrentadas pelos artistas que
improvisam seus números em qualquer espaço. Uma necessidade movida pela
preocupação com o sustento de sua equipe e continuidade das atividades
circenses. Muitas vezes estas apresentações eram feitas em bares,
associações, clubes ou até mesmo em uma sala de alguma casa, como foi
citado por Dona Socorro. O importante é apresentar, fazer o show e voltar para
o circo e assim seguir em busca de uma praça16 melhor.
A gente deixava o circo longe; tinha época que a gente deixava e
dizia: ‘Ah nós vamos deixar o circo aí e vamos sair pra dar show!’ Aí
saía dando show em outros salões. A gente chegava ao lugar;
arrumava um salão para trabalhar e apresentava duas, três noites
depois vinha buscar o circo. Nessa época ainda era o pano de roda; a
gente levava o pano de roda; armava, dava mais dois
espetaculozinhos aí as praças começavam a ficar ruim novamente e
não arrecadávamos o dinheiro do transporte. Deixava o circo
novamente e passava mais para frente, sempre andando a pé e eu
sei que com esse negócio nós vivemos muitos anos. (Maria Socorro
Campos da Conceição, entrevista concedida em 27/06/ 2011)
Armar o circo em uma praça ruim, nem sempre era uma opção, mas
uma imposição das circunstâncias. A trupe seguia para um povoado, montava
o pano de roda e tentava trabalhar, porém, as incertezas da vida itinerante
muitas vezes lhes colocavam à prova, e uma vez instalados em um lugar que
não gerasse uma renda mínima para custear a viagem, eles eram obrigados a
procurar alternativas e isso implicava no transporte do circo, o que nem sempre
era possível por questões financeiras. Daí, eles caminhavam de povoado em
povoado, próximos ao local onde deixavam o circo de pano de roda. O peso da
lona
e
dos
equipamentos
necessários
para
a
montagem
do
circo
impossibilitava as saídas. Era necessário apresentar seus espetáculos em
outros espaços para arrecadar algum dinheiro para transportar o circo e
garantir um sustento básico. Estes eram os principais motivos que obrigavam o
deslocamento a pé.
16
Definir o roteiro de viagem implicava ‘preparar’ as cidades de destino: fazer a propaganda,
escolher roteiro, reservar as acomodações necessárias, entrar em contato com as autoridades
locais. Este movimento é até hoje realizado e denominado ‘fazer a praça’. (SILVA, 2010, p.69)
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MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
José Benedito Andrade de Oliveira – UNEB 2012
Muitas vezes percorrendo a pé, andando cerca de vinte, trinta
quilômetros ou mais, estes artistas viveram a década de oitenta passando por
muitas dificuldades. Senhor Nilson, Dona Socorro e seu irmão Assis seguiam
seu caminho. Dona Socorro com as trouxas na cabeça, um filho no ventre,
outro nos braços; Nilson com um filho no ombro e as malas na mão; Assis
empurrava uma bicicleta, único transporte carregado de equipamentos e
utensílios para os shows.
A descrição, de longe, parece uma pintura de Portinari, mas trata-se de
um quadro real em que as personagens não fazem parte da ficção artística
com verossimilhança da realidade. É a descrição de uma crueza poética feita
por testemunhas vivas dos fatos ocorridos e que hoje, mesmo com todas as
dificuldades enfrentadas, sabem o quanto já foi conquistado na vida circense.
A companhia Weverton Circo tem percorrido várias trilhas no cenário
baiano, agregando sonhos e parcerias e florescendo as artes circenses, não
medindo esforços para tal, a exemplo de sua participação no documentário 17
Profissão Palhaço, curta metragem da cineasta Paula Gomes. O circo também
já foi inclusive premiado em edital do Ministério da Cultura intitulado Prêmio
Carequinha de estímulo ao circo, sendo contemplados com uma lona nova.
Hoje a companhia conta com uma estrutura básica de um empreendimento de
economia criativa, em atividade no estado da Bahia, mais especificamente nos
territórios lócus desta pesquisa.
17
GOMES, Paula. Profissão Palhaço. Produtora: Plano 3 filmes. Doctv, realização: Governo
do Estado da Bahia, TVE, Bahia, 2009.
47
MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
José Benedito Andrade de Oliveira – UNEB 2012
3. E A MULHER NO CIRCO, O QUE É?
...Vejam só e há quem diga
Que o palhaço é
No grande circo apenas o ladrão
Do coração de uma mulher...
(Antônio Marcos)18
A música de Antônio Marcos faz lembrar um antigo verso da chula de
palhaços (de domínio público) citado abaixo e que instiga as reflexões sobre o
papel da mulher no circo. Andrade (2010, p.308) afirma que:
Todos que se debruçaram sobre esse intrigante mundo do circo são
unânimes em afirmar que aquela quadrinha tão conhecida de
qualquer criança tinha lá seu fundo de verdade, quando ecoava nos
ouvidos da população temerosa (E o palhaço o que é? Ladrão de
mulher...).
Muitas vezes, a visão machista e preconceituosa de grande parte da
sociedade sedentária tenta escamotear a compreensão sobre a capacidade e a
liberdade que a própria mulher tem em querer seguir o rumo itinerante do circo.
Cabe aqui uma quadra mais contemporânea de autoria de Oliveira (2009)
apresentada pelo palhaço “Gurdurinha” (sic) no espetáculo de circo-teatro Tem
Folia no Meu Quintal, (2009):
Diferente me responda
E o palhaço o que quer?
Verdadeira sapiência,
Ser roubado por mulher.
No entanto, a carência de trabalhos acadêmicos referindo-se ao tema da
mulher no circo caracteriza-se como uma lacuna a ser preenchida de forma
sutil e poética como o próprio gênero feminino suscita. Contudo, dissertar sobre
a mulher, não implica dizer que ao se referir a sua sensibilidade se deva anular
ou menosprezar suas lutas, conquistas e referências. Nota-se, no entanto, que
alguns pesquisadores mantêm um esforço para garantir o registro de fontes
recolhidas com o auxílio de colaboradores, sendo muitos deles herdeiros
destes saberes circense. A esse respeito Silva (2010, p.84) diz que:
O papel da mulher na relação familiar circense difere do papel
feminino exercido numa sociedade não nômade. Ela, desde que
18
Antônio Marcos Pensamento da Silva (São Paulo, 8 de novembro de 1945 — São Paulo, 5
de abril de 1992) foi um ator, compositor, humorista e cantor brasileiro.
48
MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
José Benedito Andrade de Oliveira – UNEB 2012
nascia, era preparada para realizar uma atividade, que requeria mais
que o cumprimento de sua jornada de trabalho ‘como mãe e
doméstica’: ela seria uma artista de circo à noite.
Observamos que o papel assumido pela mulher no universo circense
desde o fim do século XIX exige muito mais força de vontade e esforço para
dentro do padrão vigente: ser capaz de cuidar das “prendas do lar” durante o
dia e apresentar-se como artista circense à noite. Em alguns lampejos Auguet
(1974, p. 27 apud BOLOGNESI, 2003, p.45) diz que:
No ambiente do século XIX, o circo reservou à mulher um lugar de
destaque, e a graça feminina, nos exercícios da Alta Escola,
associou-se aos movimentos do cavalo. O mito da criatura frágil foi
testado diante da força instintiva do animal. Mais do que a graça, o
espetáculo circense explorou e conciliou o erotismo com os
‘fantasmas os mais etéreos da sensibilidade romântica’.
Até o momento, nos territórios supracitados, pode-se dizer que os
trabalhos de pesquisa sobre o papel da mulher e as relações de gênero no
circo ainda não são suficientes ou inexiste, principalmente em relação a
estudos do cotidiano de mulheres artistas de circo. Também é notório que os
estudos de gênero na historiografia são muito recentes. Segundo Soihet (1997
apud VASCONCELOS 2007, p. 13)
O desenvolvimento dos estudos de gênero está intimamente ligado
às inovações teóricas e metodológicas no campo das pesquisas
historiográficas. Ao abrir espaço para novas temáticas – não se
restringindo apenas àquelas que enfocam as mulheres como
participante do espaço público como trabalho, política, educação e
direitos civis. – estes novos estudos focalizam espaços alternativos
relacionados ao cotidiano, tais como a família, a maternidade, os
gestos, a sexualidade e o corpo, entre outros.
Ao perceber no campo da historiografia, bases que fundamentam
estudos desta natureza, passa-se a entender que produzir um trabalho tendo
como objeto de investigação a história de vida de uma família circense, existe
ali a preocupação em destacar o papel da mulher nesse contexto. Mas ao
analisar essas histórias de vida através dos discursos de cada membro da
família é preciso estar atento para não cair na armadilha romântica de pensar
que as mulheres circenses são sempre vistas/estudadas como artistas, como
musas inspiradoras, ingênuas e fáceis de serem ludibriadas por palhaços
conquistadores que as iludem e as roubam das famílias para viverem em
49
MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
José Benedito Andrade de Oliveira – UNEB 2012
castelos de lona aquecidas durante o dia e resfriadas à noite neste belo cenário
que é o sertão.
Certa acuidade é necessária para tratar da presença feminina no circo,
que, diga-se de passagem, se a vida para o homem circense dentro dos
padrões culturais vigentes tem as suas complexidades, para a mulher talvez
seja muito mais difícil, sendo um aspecto em que se agrega maior valor pelas
suas conquistas. Silva (2010, p.85) faz uma melhor explanação sobre isso
quando diz que:
A mulher não desempenhava somente o papel de artista. Ela, apesar
do regime patriarcal, fazia parte de um coletivo, em que todos —
homens, mulheres e crianças — executavam as atividades. Diferente
do que se observa hoje, à mulher circense do período analisado
neste estudo não cabia exercer o papel de partner19, ela não podia
ser simplesmente coadjuvante. Da mesma forma que os homens não
eram “apenas” artistas, as mulheres circenses eram componentes
vitais de todo o processo de constituição do que nesse estudo se
entende por tradição no circo-família.
No caso do presente estudo vamos adentrar a realidade de uma mulher
de circo que muito tem contribuído para o desenvolvimento das artes circenses
nos territórios Piemonte Norte do Itapicuru, Portal da Diamantina e Irecê. Uma
mãe cuidadosa e preocupada com a união de sua família, Dona Socorro não é
apenas uma artista circense, ela é uma herdeira da arte popular desenvolvida
no nordeste, e foi com as vivências que se tornou bailarina, mestre de cena,
atriz, contrarregra e bilheteira nos circos por onde andou até o amadurecimento
em sua própria companhia, Weverton Circo. Esta mulher de um metro e
sessenta, aproximadamente, cabelos pretos com traços de descendência
indígena, ao ser questionada sobre suas vivências e a relação com a família no
circo, nos laureia com suas memórias de infância ao falar sobre a presença
feminina no circo no contexto do semiárido baiano, tendo como referência sua
própria mãe:
Minha mãe era bailarina. Trabalhava, cantava, era contrarregra
também, da parte das mulheres, para entregar as roupa para as
artistas trabalharem. Era responsável pelo guarda-roupa; tomava
conta, lavava. Tinha época também que quando o dono do circo
pagava, ela lavava roupas, cozinhava para muitos... Para os artistas
solteiros, ela cozinhava também. Minha mãe batalhava muito (...)
19
No circo o termo é usado como parceiro de cena, geralmente como apoio para o outro artista
que assume o papel principal.
50
MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
José Benedito Andrade de Oliveira – UNEB 2012
(Maria Socorro Campos da Conceição, entrevista concedida em
27/06/ 2011)
Percebemos que a entrevistada apresenta a mulher circense do
semiárido inicialmente como artista, para depois falar de outras atividades
aparentemente prosaicas. Contudo, se observarmos com mais atenção,
compreendemos outros fatores referentes ao trabalho feminino no circo quando
Dona Socorro diz: “Tinha época também que quando o dono do circo pagava,
ela lavava roupas, cozinhava para muitos”. Inês Conceição, a mãe de Dona
Socorro, assim como muitas mulheres de pequenas companhias circenses
existentes no semiárido, desempenhava cotidianamente várias tarefas no circo.
Além das atividades artísticas, as tarefas comuns ou socialmente definidas
como feminina. Por um lado há um avanço, mas por outro a mulher é
submetida a uma dupla jornada de trabalho.
A beleza poética do picadeiro ofusca o esforço não menos importante
dos serviços secundários? O homem circense divide as tarefas domésticas
com suas companheiras? Todos são orientados desde criança à solidariedade
com a família ajudando nas tarefas simples do dia a dia ou apenas as
circenses recebem este encargo? Para responder estas e outras questões,
será necessário um trabalho mais aprofundado tendo um objetivo específico
voltado para este foco. No entanto, as análises das entrevistas indicam que
além do convívio com sua própria família, as mulheres circenses ainda
desempenham alguns serviços para terceiros como fora citado acima, a fim de
complementarem a renda familiar.
Com base na entrevista concedida por Dona Socorro, notamos que
mesmo mostrando sua capacidade de auxiliar de diversas formas na
manutenção de suas famílias e do sonho de permanecer juntos em busca da
felicidade, a mulher circense no semiárido ainda não se libertou deste lugar de
submissão ao homem. Muitas vezes sem aprofundar nesse assunto e movidas
pelos sonhos iniciados por uma paixão pelo artista ou pela arte circense, estas
artistas se submetem aos mais diversos trabalhos. O exemplo de Inês, mãe de
Dona Socorro ajuda elucidar a questão. Ela tinha 16 anos de idade e casou-se
com o palhaço Baratinha em Catolé do Rocha, no estado da Paraíba, na
primeira metade do século XX, entrando na vida circense a partir deste
51
MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
José Benedito Andrade de Oliveira – UNEB 2012
momento e assumindo responsabilidades de artistas e trabalhos socialmente
tidos como femininos. Dona Socorro fala sobre o encontro dos pais:
Meu pai armou o circo lá no norte, minha mãe era nortista, minha
mãe é paraibana, Catolé do Rocha. Ele armou o circo lá e eles se
conheceram; depois casou lá mesmo. Ela não queria nem sair, o
pessoal dela não queria permitir o casamento. Mas, fizeram o
casamento religioso. Porque ela só é casada no padre. A partir daí,
ela acompanhou e viveu 45 anos no circo com ele. (Maria Socorro
Campos da Conceição, entrevista concedida em 27/06/ 2011)
Muitas vezes o casal circense convive por muitos anos superando as
dificuldades da vida itinerante juntos. Aos poucos um vai aprendendo com o
outro e surge uma nova vida construída a partir de cada dimensão do cotidiano.
Analisando cuidadosamente o caso de Inês Campos da Conceição, vêse que as mudanças ocorridas ao longo do tempo, muitas vezes muda o rumo
das coisas e a vida ganha outro itinerário. Após a separação, o pai de Dona
Socorro acompanhou outro circo e segundo a ela, sua mãe construiu e
coordenou o próprio circo.
Dona Socorro conta que sua mãe, Dona Inês, acompanhou o circo por
amor ao palhaço Baratinha. Passaram muitos anos juntos e após a separação
ela permaneceu na arte criando e administrando seu próprio circo. Percebe-se
que o amor conjugal não superou as dificuldades, mas o amor pela arte
circense a fez permanecer durante anos no circo.
Inês Campos da Conceição acompanhou o circo aproximadamente na
metade da década de 1950. Compreender o contexto social deste período
histórico em que as questões de gênero não estavam em evidência no cenário
das lutas por igualdade de direitos, supõe que tanto esta mulher circense como
tantas outras, enfrentaram preconceitos ao assumir corajosamente deixar uma
vida sedentária junto a sua família para se arriscarem na itinerância da vida
circense. Aprofundamento no estudo sobre gênero será fundamental para se
entender este período e o sistema vigente na época por que
A partir do gênero pode-se perceber a organização concreta e
simbólica da vida social e as conexões de poder nas relações entre
os sexos; o seu estudo é um meio ‘de decodificar e de compreender
as relações complexas entre diversas formas de interação
humana’(FILHO, 2004,p.136)
Compreendendo este contexto, será possível analisar as relações de
poder, sabendo até que ponto as mulheres circenses do período analisado
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MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
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assumiam suas responsabilidades como artista, mãe, esposa, educadora, além
dos trabalhos socialmente entendidos como de obrigação feminina, e qual o
posicionamento dos seus companheiros diante destas tarefas.
Outra coisa que se pode analisar é o fato de os artistas populares
desenvolverem sua arte e aprenderem lições a partir das vivências cotidianas
mesmo percebendo as dificuldades enfrentadas pelos seus pares. O amor ao
cônjuge move primeiro o desejo de liberdade junto da pessoa amada. Porém,
quando este amor que é transformado a cada dia no convívio e existência com
a arte, pode tornar-se incondicional. Dona Socorro lembra:
Minha mãe viveu muitos anos de circo! Ela e meu pai andavam em
circo, como a gente no início; depois ela criou um circo pra ela... Bem,
mas, antes da separação eles andavam no circo de outras pessoas.
Um dia eles decidiram: ‘Vamos fazer nosso próprio circo’.
Começaram com um pano de roda e andaram muito com o circo,
antes de a gente crescer... Nós ainda éramos pequenos, quando o
circo deles acabou nós já estávamos grandinhos. Foi na época que
ele inventou esse circo de mato, querendo andar de novo. A gente fez
a mesma coisa muitos anos depois. (Maria Socorro Campos da
Conceição, entrevista concedida em 27/06/ 2011)
Observamos que Dona Socorro fala de parar de andar com circo e viver
uma vida sedentária para em seguida retornar para a vida itinerante. É muito
comum os artistas circenses, principalmente os das pequenas companhias,
resolverem para de andar com o circo por uns tempos. Isto acontece durante
períodos difíceis, quando a economia do país passa por mudanças bruscas
dificultando a circulação da moeda entre as camadas mais populares, público
alvo dos artistas populares e das pequenas companhias circenses.
Algo bastante curioso pode ser observado na entrevista quando Dona
Socorro se refere a uma outra modalidade circense: circo de mato. Em nenhum
registro analisado até o momento essa nomenclatura foi citada. Conforme Silva
(2010, p.120)
Como não saíam dos vários países europeus armados em pavilhões
e, não encontrando no Brasil circos estruturados onde podiam
trabalhar, os artistas imigrantes desenvolveram adaptações às
realidades locais, de modo a sair das praças para se apresentar em
espaços fechados nos quais pudessem cobrar ingressos, tendo como
referência o conhecimento técnico da estrutura física de um circo que
traziam da Europa. Pelos relatos, as primeiras formas de
apresentação, em recinto fechado, são denominadas de circo de
tapa-beco, circo de pau a pique, circo de pau-fincado e circo
americano (o mais conhecido atualmente).
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MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
José Benedito Andrade de Oliveira – UNEB 2012
Até o momento, não existe registros que descrevam a modalidade circo
de mato, sendo esse, uma particularidade desta família circense. Mais uma
comprovação da criatividade e persistência do artista. Uma vez que a
dificuldade os obriga a parar, perdendo inclusive o pano de roda, ainda assim o
amor pela arte, o sentido pulsante da vida artística os ajuda a encontrar uma
saída para permanecer atuando.
De acordo como o que foi narrado por Dona Socorro, o circo de mato foi
uma forma que seu pai encontrou para voltar a atuar. Ela conta que eles
aproveitavam o oitão de uma casa como base, depois retiravam madeira e
galhos para fechar as outras partes formando um retângulo. Separavam uma
pequena parte para ser o picadeiro e as pessoas pagavam o ingresso e
ficavam em pé para assistir o espetáculo. A iluminação deste espaço
rudimentar era feita da seguinte forma: retiravam murundus20 de cupins na
natureza, colocavam trapos de pano e óleo reaproveitado que eles conseguiam
em alguma oficina e construíam tochas para iluminação dos espetáculos. Era
assim que durante algumas noites eles trabalhavam até juntar dinheiro e
retornar para a vida itinerante prestando serviço em novos circos ou mesmo
nas companhias já conhecidas.
Percebemos que se dedicar a uma vida comprometida com atividades
artísticas não é fácil e que o artista precisa superar dificuldades aparentemente
impossíveis para uma pessoa comum. Esta reflexão leva-nos a pensar na força
de uma mulher sertaneja que deixou a família, casou-se com o palhaço
Baratinha e seguiu seu próprio destino em busca de aventuras e sentido na
vida circense. Assumiu este modo de vida e ‘tocando em frente’, constituiu
família, aprimorou sua arte e produziu artisticamente durante muitos anos no
semiárido baiano e, segundo Dona Socorro, chegando mesmo a construir
quatro circos.
A mãe de Dona Socorro mora hoje na cidade de Jacobina, Bahia. Uma
artista idosa com muitas lembranças sobre a vida itinerante, testemunha viva
da memória da arte popular em nossa região. Mais uma fonte para a história do
20
Murundu é um tipo de micro relevo em forma de pequena elevação, geralmente arredondado,
muitas vezes apresentando solo e vegetação diferentes da área circundante. A comunidade
vegetal e as características abióticas de um campo de murundu em Uberlândia, MG.
(RESENDE, 2004, p.1)
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MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
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circo e uma memória que aos poucos se perde com as mazelas do tempo.
Ainda sobre sua mãe Dona Socorro diz:
(...) Trabalhava, aprendeu a trabalhar, dançar. Número quase ela não
levava não, ela só fazia mais era dançar ou era cantar, que ela
cantava, que naquela época que as mulher dançava em circo sempre
cantava primeiro pra poder dançar rumba, aquelas rumba, dançava
(...) (Maria Socorro Campos da Conceição, entrevista concedida em
27/06/ 2011)
Aqui se pode pensar no fato de que as pequenas companhias de circo
não tinham equipamentos de som, o que exigia dos artistas muitas habilidades.
Pode-se imaginar um público de um povoado de pé em um cercado de mato no
oitão de uma casa assistindo uma jovem cantando uma música acompanhada
apenas por um cavaquinho tocado pelo palhaço Baratinha que mantinha a
música instrumental enquanto a bailarina Inês Campos da Conceição dançava
rumba. Tudo isso num contexto em que o preconceito com a mulher circense e,
principalmente, das pequenas companhias de circo sempre foi muito grande,
devido à ignorância e ao olhar machista por parte da sociedade, ainda presente
na contemporaneidade.
No entanto, existem na história do circo no Brasil, mulheres que fazem e
outras que fizeram suas histórias marcando uma época, aliando o talento
artístico à organização administrativa do circo-família, chegando a alcançar
grande respeito e prestígio no país. O estudo de caso feito sobre Arethusa
Neves em São Paulo citada por Andrade (2010) em sua tese de doutorado pela
USP traz essa referência:
Tudo leva a crer que Arethusa Neves gozava de grande prestigio
junto aos que exerciam o poder constituído por onde quer que o circo
Arethuzza se apresentasse. A maior prova disso é que em dois
momentos, 1924 e 1932, quando o país se viu na iminência de uma
guerra civil, a Revolução de Isidoro e a Revolução Constitucionalista,
ambas eclodidas em São Paulo. Arethusa, nesses tempos de conflito
armado, obteve salvo conduto parta deslocar-se pelas estradas sem
ser incomodada. (ANDRADE, 2010, p. 317)
O caso de Arethusa Neves pode se diferenciar da experiência da mãe
de Dona Socorro em aspectos econômicos e estéticos de sua época, por conta
das diferenças regionais e do período histórico em que atuavam, porém, no
que se refere à importância e a forte presença da mulher no universo circense
é possível fazermos alusões.
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MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
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Dona Socorro ao ser perguntada sobre sua família responde
entusiasmada; é possível notar um sorriso encantador: “o nome da minha mãe
é Inês Campos da Conceição e o nome do meu pai Euclides Rosa, conhecido
como Baratinha e o meu nome é Maria do Socorro Campos da Conceição”. Ela
é uma mulher corajosa, com quarenta e poucos anos de idade, traço étnico
indígena e um espírito jovial. Confiante em seu trabalho e na herança de
saberes adquiridos com os pais e experiências próprias construídas ao longo
desses anos de vida itinerante. Seu entusiasmo torna-se mais evidente ao falar
da infância no circo:
Todos nós éramos pequenos, e eu sei que era uma dificuldade
muito grande; mas, a gente achava bom; a gente era feliz com
isso; eu mesmo gostava; tenho até saudade daquele tempo. Por
que era um tempo em que nós éramos novos, a gente não
pensava em probleas... Na infância, né? Perto do pai, perto da
mãe. (Maria Socorro Campos da Conceição, entrevista concedida
em 27/06/ 2011)
São relatos que identificam o indivíduo com a linguagem e com
ensinamentos referentes à realidade vivida por estes atores sociais. Pessoas
que desde sua mais tenra idade aprendem a defender de forma consciente e
com paridade o seu papel como circense, diante de um estilo de vida andante e
o labor próprio do artista. Os circenses convivem diretamente com várias
pessoas, levam uma vida que a exposição pública torna-os vulneráveis,
obrigando-lhes a construir uma postura que lhes garanta o respeito ao trabalho
e a proteção à família.
(...) mas também as roupas não eram do jeito de hoje, era uma
sainha mais ‘coisadinha’(sic), assim (faz gesto indicando babados);
fechadinha; as roupas eram mais compostas. Ela trabalhou de
dançarina e ele trabalhava de palhaço. Ela ‘mestrava’21(sic) cena pra
ele. Sei que viveu foi muitos anos de circo, andava em circo, depois
aí ela botou um circo pra ela. Chegou a construir quatro circos. (Maria
Socorro Campos da Conceição, entrevista concedida em 27/06/
2011)
As famílias de artistas circenses estão sempre muito vulneráveis por
conta da vida itinerante, o que os obriga manter o controle muitas vezes com
uma educação mais rígida do que as famílias tradicionais. A postura moral que
21
Mestre de cena no circo é o artista que faz a relação entre o artista e o público, tanto pode
apresentar o número como participar do mesmo. ‘Mestrear’ cena com o palhaço no linguajar
circense é fazer parte da piada criando a situação cômica para que o desfecho seja dado pelo
cômico.
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MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
José Benedito Andrade de Oliveira – UNEB 2012
as filhas dos circenses precisam manter é uma forma dos pais se sentirem
mais seguros por onde passam, uma vez que o encantamento do público
masculino pelas artistas, e vice-versa, seja em certa medida comum. O receio
da visão da sociedade por onde passam, contribui para o crescimento do
preconceito contra os circenses e talvez seja uma das causas da imposição
moral.
Por outro lado, a própria disciplina imposta pelos métodos de
aprendizado da arte e as referências éticas pode ser a gênese de um costume
que impõe uma postura moral para a mulher circense.
Ao pensar o papel da mulher na família no início do século XX,
incluindo aquelas que já desenvolviam uma atividade produtiva fora
do lar, verifica-se que a mulher circense era portadora de uma
tradição que pressupunha que iria tornar-se uma profissional da arte.
Seu corpo e mente eram preparados não somente para ser mãe ou
para trabalhar em uma atividade diferenciada, mas também para
atuar num picadeiro e, no futuro, nos dramas encenados nos circosteatro.(SILVA, 2010, p.84)
Estes são alguns aspectos que aproximam a mulher artista no picadeiro,
(aparentemente
reservada),
uma
livre)
vez
da
que
mulher
os
circense
números
na
família
apresentados
(aparentemente
por
elas
são
cuidadosamente pensados pelos circenses para que não haja desrespeito às
famílias por parte do público, nem prejuízo artístico gerado a partir de reservas
morais que comprometam a estética do espetáculo.
As entrevistas feitas com Dona Socorro mostram que as mulheres
circenses tem manifestado intensa produtividade artística, ao mesmo tempo em
que mantém uma acuidade com a família. Elas são contorcionistas, bailarinas,
equilibristas, palhaças, bilheteiras, mestres de cena, ao mesmo tempo em que
são mães, educadoras, esposas, cozinheiras, namoradas, conselheiras,
enfermeiras etc.
A busca de um equilíbrio entre as mulheres e seus companheiros no
circo-família em nossa região se reflete nos depoimentos de Dona Socorro, que
fala de manter o negócio tendo como princípio o cuidado e a honra da família.
Trata-se de uma difícil construção, um entranhado pensamento entre a
liberdade artística e a moral imposta pelo sistema vigente.
Existe uma preocupação em não vulgarizar o trabalho da mulher
circense tampouco atravancar a qualidade estética dos espetáculos, o que para
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MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
José Benedito Andrade de Oliveira – UNEB 2012
as mentes aparentemente sensíveis dos artistas não representa problemas,
mas para a sociedade pudica e machista pode significar desrespeito e afronta.
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MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
José Benedito Andrade de Oliveira – UNEB 2012
4. FAMÍLIA, PÃO E ALEGRIA.
Tinha momentos que eu pensava que estava fazendo tanta coisa importante, né?
Trabalhando, agradando o público; eu gostando também...
Mas, no fim das contas, não fica quase nada registrado, né?
(José Nilson Rodrigues Barbosa (palhaço Carobinha),
entrevista concedida em 27 – 06 – 2011.)
.
4.1 Senhor Nilson e Dona Socorro
No semiárido baiano, mais especificamente na região de Senhor do
Bonfim no Piemonte Norte do Itapicuru; Jacobina, no Piemonte da Diamantina
e território de Irecê, a família Weverton Circo tem atuado há mais de três
décadas, desde a saída de seu fundador José Nilson Rodrigues Barbosa
(Palhaço Carobinha) com apenas 12 anos de idade da casa dos seus pais.
Senhor Nilson, como é mais conhecido, saiu do povoado de Catuní, município
de Jaguarari, Bahia, no ano de 1977.
O garoto José Nilson Rodrigues Barbosa integrou-se a companhia de
Circo-Teatro Alan22, que provavelmente desembarcou do trem na estação
ferroviária de Catuní, armou sua lona para “fazer a praça” naquela localidade e
conseguiu agradar o público com seus espetáculos.
Se pensarmos que as
referências das artes cênicas provavelmente chegam aos povoados e distritos
do país por intermédio dos pequenos circos, poderemos supor que foi este
espaço de picadeiro que encantou o atual palhaço Carobinha. Um entusiasmo
que faz emergir suas memórias de picadeiro, fazendo-o lembrar de que desde
aquela época sua vida tem se caracterizado pela luta diária de levar para as
camadas mais populares da sociedade o entretenimento através dos
espetáculos
circenses
e,
depois
de
ter
constituído
sua
família,
o
aprimoramento, manutenção e memória da arte que aprendeu para garantir
também sua luta pela sustentabilidade.
22
O Circo-Teatro Alan era formado por artistas de Minas Gerais do qual ele lembra de Suely
suposta filha do Casal Paulo e Salomé proprietários do mesmo circo. (Josenilson Rodrigues
Barbosa. Entrevistado 27/06/2011)
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MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
José Benedito Andrade de Oliveira – UNEB 2012
Para compreender mais sobre essa história, precisamos conhecer seus
criadores e, necessariamente, ter ciência de que as entrevistas não dão conta
de toda complexidade das histórias de vidas das pessoas, e menos ainda, da
vida de atores sociais culturalmente ativos, que vivem cotidianamente a
itinerância, como é o caso desta “gente de circo”. Contudo, esse método de
coleta de dados pode ajudar em algumas descobertas favoráveis à pesquisa,
principalmente com a utilização da oralidade como fonte histórica.
Indo direto ao ponto, percebemos que durante a entrevista concedida
na cidade de Senhor do Bonfim, Bahia, no dia 27 de junho de 2011, Carobinha
buscou na memória o nome de alguns lugares por onde andou e atuou com o
Circo-Teatro Alan. Este foi o circo que encantou o menino José Nilson. Uma
paixão que o fez sair de sua casa na microrregião de Senhor do Bonfim,
mesmo com tão pouca idade e se envolver na vida artística tornando-se
circense, popular e conhecido na região demarcada no mapa acima.
Dono de uma memória formidável, Senhor Nilson, fala de si, de suas
experiências, do encontro com sua companheira Dona Socorro e ambos falam
dos filhos, dos artistas circenses com os quais se relacionaram, das políticas
públicas para o povo de circo e suas expectativas para o futuro. Ao se lembrar
das primeiras experiências no Circo Teatro Alan, ele fala do encantamento de
um menino ao viajar de Catuni onde morava e passar por vários povoados e
cidades circunvizinhas até tomar rumos mais distantes:
Eu acompanhei eles, daqui, nessa região; aí fiz essa região toda, fiz
Juacema, fiz Gameleira, fiz Ponto Novo, fiz Caldeirão Grande, fiz é...
Paraíso, Cachoeira Grande, Batata, Ourolândia, Umburana, Lagoa
Trinta e Três, Gameleira do Jacaré... Subimos para o sertão de
Irecê... (José Nilson Rodrigues Barbosa (palhaço Carobinha),
entrevista concedida em 27 – 06 – 2011).
Para um garoto morador em uma zona rural de uma pequena cidade,
isso representa muito mais que uma simples aventura. Foi uma realização em
sua vida que se tornou seu sentido de existir. Ele seguiu como ajudante até o
dia em que resolveu pintar a cara em uma matinê. A experiência foi suficiente
para que a magia acontecesse e o jovem se transformasse em um artista
malabarista, equilibrista em arame e palhaço, aprimorando sua personagem e
seus números na complexa e fabulosa “universidade da vida” itinerante de
circo.
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MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
José Benedito Andrade de Oliveira – UNEB 2012
Dona Socorro vem de uma família circense. Seu pai, Euclides Rosa (o
palhaço Baratinha) natural do Rio Grande do Norte e sua mãe, Inês Campos da
Conceição, natural de Catolé do Rocha, Paraíba. A história de seu pai em parte
assemelha-se à de Sr. Nilson. Aos poucos D. Socorro vai falando sobre sua
família. Essas informações são valiosas para o registro das histórias de vidas
de circenses no semiárido baiano, uma vez que pouco ou quase nada se sabe
por fontes oficiais e registros assegurados à existência e importância dos
pequenos e médios circos na Bahia.
A relevância em tratar sobre a origem dos familiares está em buscar a
gênese dessa história para compreender os fundamentos que estão ligados ou
não à tradição circense, comparando-os cronologicamente com as fontes que
tratam do circo no Brasil. Com este propósito, aos poucos se conhece a história
de vida de Dona Socorro, seus familiares e suas experiências como circense
que muito se assemelham com as de seu companheiro. As parecenças
artísticas e talvez as histórias de vida sejam as fontes de ligação do casal
Nilson e Socorro. O pai de Socorro assim como Sr. Nilson, acompanhou um
circo quando ainda era menor de idade. Ambos aprenderam no dia a dia a
prática de se tornar circense. Dona Socorro nasceu no circo e, em suas
andanças com sua família, conheceu Nilson no Circo-Teatro Alan. O mesmo
circo em que se reencontraram tempos depois, unindo-se como cônjuges. Ele
diz à sua companheira: “... Eu vim conhecer você aqui no Paraíso23, ali já tinha
tempo que eu estava no circo...”. Continua:
...Eu conheci Socorro, muito antes da gente fazer circo juntos, ela já
trabalhava no circo e a mãe morava em Jacobina. Na época nós
éramos novos, nós não nos olhávamos, com interesse de amor, de
coisa. Aí com um tempo, foi com um tempo que deu certo, né? A
gente se encontrar... (José Nilson Rodrigues Barbosa (palhaço
Carobinha), entrevista concedida em 27 – 06 – 2011).
Aqui, ao fazer um aparte, para provocar uma reflexão sobre a vida
itinerante dos circenses, na qual podemos perceber muitos códigos próprios
dessa linguagem artística. Nilson e Socorro se conheceram no circo e nele
permanecem até o momento desta pesquisa. No plano concreto pode-se dizer
23
Paraíso é um povoado do município de Jacobina, Bahia e fica a 330 quilômetros da capital
Salvador. Jacobina possui uma população de 79.247 habitantes, senso 2010 IBGE, disponível
em http://www.ibge.gov.br/cidadesat/topwindow.htm?1. Visitado 29/10/2012
61
MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
José Benedito Andrade de Oliveira – UNEB 2012
que Socorro nascera no circo por decisão de seus pais, e Nilson ao circo se
juntou por decisão pessoal.
Os artistas circenses vivem histórias semelhantes e muitas vezes se
encontram nas andanças e mantêm uma comunicação entre si, sendo possível
saber se aqui ou alhures uma ou outra família passa por dificuldades ou
conquistam espaços produtivos para a linguagem, mantendo um cuidado com
a praça trabalhada para não dificultar a próxima companhia que venha passar
por ali.
Após sua experiência com o Circo-Teatro Alan, Carobinha e Socorro
resolveram sair e criar sua própria companhia formada por afinidades e
parentesco. A trupe criou um pano de roda e passou a atuar nas praças por
onde viajava com o antigo circo. O grupo cresceu e atualmente é a família
Weverton Circo, que mantém o mesmo itinerário, tendo como endereço fixo a
cidade de Jacobina no território do Piemonte da Chapada Diamantina, mas a
predominância do trajeto segue prioritariamente do Piemonte Norte do Itapicuru
até o território de Irecê.
As regiões que compõem os territórios citados acima mantêm um
complexo regional no semiárido baiano com determinados polos econômicos,
como: o comércio geral e festas juninas em Senhor do Bonfim, pedras
preciosas e indústria de exploração mineral em Andorinha e Campo Formoso,
exploração de ouro e festas populares em Jacobina, comércio geral e
agricultura em Irecê. Uma região rica e com vasto campo a ser explorado em
vários aspectos da economia. Portanto, uma região propícia ao deslocamento
de atividade itinerante em busca de público pagante para os espetáculos
oferecidos pelos artistas.
A visualização do mapa ajuda a pensar no trajeto realizado pelos
circenses que hoje formam o Weverton Circo e que circulam pelos territórios
supracitados. Um itinerário conhecido por eles desde o período mais remoto,
quando do ingresso do patriarca da família na vida circense até os dias atuais
como agentes de seu próprio empreendimento artístico/cultural. Quando
perguntado sobre o início de suas atividades como circense, o senhor Nilson,
(o palhaço Carobinha) respondeu: “Setenta e sete parece, setenta e sete pra
setenta e oito”.
62
MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
José Benedito Andrade de Oliveira – UNEB 2012
Pela resposta incisiva de Sr. Nilson, concluímos que reativando a
memória é a maneira como estes conhecimentos referentes à cultura circense
permanecem e são passados na família. Os artistas populares dos circos de
pequeno e médio porte repetem praticamente as mesmas ações todos os dias.
Essa reprodução os obriga a memorizar saberes específicos dessa linguagem.
Seus filhos aprendem diariamente estas lições e guardam a memória de seus
antepassados circenses, ensinando a seus descendentes.
Veremos que a entrevista com Senhor Nilson e Dona Socorro mostra a
importância da memória individual e coletiva24 para fortalecer os registros de
fatos ocorridos e períodos de cada acontecimento desta vida itinerante. Se
observarmos o diálogo dos entrevistados, perceberemos a forma como estes
conhecimentos são preservados diariamente pela oralidade, através das
histórias contadas pela família circense. Ainda sobre a entrada na companhia
Circo-Teatro Alan, D. Socorro tentou contribuir temendo confusão de datas:
- Foi não Nilson...
- Foi, quando eu acompanhei foi... Foi no tempo que tinha saído
aquelas ‘combezinhas’... Foi quando eu acompanhei em 1977...
Depois é que eu conheci você aqui no Paraíso.(José Nilson
Rodrigues Barbosa e Maria do Socorro Campos da Conceição
entrevista em 27/06/2011)
Senhor Nilson refere-se ao início de seu relacionamento com Dona
Socorro e também relembra as cidades e povoados por onde passou. A
memória se entrecruza entre os momentos que para ele foram de grande
importância para continuidade de seus anseios e sonhos. Primeiro nos
povoados e cidades próximas a Jaguarari, lugar onde registra sua naturalidade,
em seguida nos povoados e cidades próximas à microrregião de Senhor do
Bonfim. ”Eu acompanhei, eu acompanhei por aqui, fui até... Passei por
Jaguarari fui até Juacema, fiz Santa Rosa de Lima, Gameleira...”. Aos poucos
Nilson vai desenhando o trajeto por onde passou quando ainda era apenas
uma criança, em seguida pré-adolescente e a cada dia afastando-se mais de
seus familiares e de Catuni, distrito de Jaguarari, onde até então morava, mas
24
A memória coletiva propriamente dita, é o trabalho que um determinado grupo social realiza,
articulando e localizando as lembranças em quadros sociais comuns. O resultado deste
trabalho é uma espécie de acervo de lembranças compartilhadas que são o conteúdo da
memória coletiva. (SCHMIDT e MAHFOUD, 1993, p. 291)
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MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
José Benedito Andrade de Oliveira – UNEB 2012
por outro lado, aproximando-se mais da vida circense. Hoje a família se
encontra pelo menos uma vez por ano quando o Weverton Circo faz a praça na
terra natal deste artista.
Inicialmente muitas mudanças começaram a acontecer, principalmente
quando o Circo-Teatro Alan passou a receber as influências de outras
realidades do estado da Bahia e a escola dos picadeiros foi ensinando ao
jovem aprendiz lições com muitas palavras novas. Foi na prática que ele
aprendeu o que é: argolão, lona, espia, estaca, pano de roda, empanados de
picadeiro, mastro, morto, mastaréu, etc. Estas palavras foram se misturando
com outras tantas do linguajar popular, transformando-se mais tarde em gags,
jargões, pilhérias, chistes que são usadas no dia a dia na construção da
atmosfera circense. A escola do artista José Nilson se estende por um território
amplo e diverso, e seus professores não estão limitados a uma sala de aula
convencional, ao contrário, eles mostram diariamente e na prática, como
desempenhar seu aprendizado circense.
Para nortear o discurso, podemos analisar que pouco mais de 300 km
unem e separam os municípios de Jaguarari e Irecê. Uma distância propícia
para a fruição de diversos elementos da cultura popular. Saberes que
contribuem com mudanças sutis, percebidas na linguagem, nos hábitos diários,
na maneira de ser deste povo ímpar e paradoxalmente distinto, que forma as
populações dos sertões baianos. Essa é uma gente que o garoto José Nilson
aos poucos começou a conhecer nas suas andanças e ao passar por vários
lugares, como ele mesmo afirma:
“Batata, Ourolândia, Umburanas; aí subimos lá pro sertão, Gameleira
do Jacaré e fui para Irecê. Alagadiço, Gameleira, aquele Angical,
subindo para lá, ficamos lá no sertão um bocado de tempo para lá. Ia
até Jussara voltava, o circo quase todo ano tava em Jussara, eles
armava... Trabalhei mais Seu Paulo25 umas três vez em Jussara.
Jussara, São Gabriel... .(José Nilson Rodrigues Barbosa entrevista
em 27/06/2011)
Aos poucos estas cidades que outrora poderiam ter sido estranhas aos
ouvidos de José Nilson, começam a fazer parte de seu repertório e de seu
imaginário. Aquelas pessoas não lhe pareciam mais estranhas e os risos e
sofrimentos se assemelharam aos seus e de outros tantos, nos lugares por
25
Seu Paulo era o companheiro de D. Salomé, ambos proprietários do Circo-Teatro Alan.
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MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
José Benedito Andrade de Oliveira – UNEB 2012
onde passou e começou a atuar no Circo-Teatro Alan como acrobata,
funâmbulo e palhaço.
A relação com a companhia Circo-Teatro Alan foi duradoura, isso pode
ser percebido pelo tempo em que o garoto José Nilson viveu com estas
pessoas. Ele confirma a permanência no referido circo e ratifica incisivamente
sem interromper suas lembranças quando é questionado a respeito do ingresso
neste circo, a quem o mesmo pertencia e por onde andaram: “É! São Gabriel,
Presidente Dutra, eles gostava muito de tá por ali por aquela região (...) Iniciei
neste circo. Era o mesmo circo de Dona Salomé”.
Durante a entrevista, Dona Socorro continuou com seus afazeres
domésticos, no entra e sai do ônibus que serve de casa. Em seu interior uma
cozinha improvisada, camas de acampamento e alguns bancos. Ela preparava
o almoço, lavava e pendurava panos em um varal improvisado. No entanto,
não deixou de prestar atenção no assunto e volta e meia ela aparecia para
contribuir com a conversa. Sobre o Circo-Teatro Alan ela diz:
- Mas ele não existe mais não.
- Tem o pessoal deles né? Mas tudo morando... Morador... Acabou!
Não existe mais não. Acabou-se. .(José Nilson Rodrigues Barbosa e
Maria do Socorro Campos da Conceição entrevista em 27/06/2011)
Quando Dona Socorro refere-se a morador, ela fala das pessoas que
encerraram as atividades itinerantes e passaram a ter uma residência fixa em
alguma cidade, passaram a ser sedentárias. É o caso da filha dos proprietários
do Circo-Teatro Alan, de quem José Nilson Santos Rodrigues e Maria do
Socorro Campos da Conceição lembraram no decorrer da entrevista realizada
em 27 de junho de 2011:
- Tem a Suely...
- Que mora em São José do Rio Preto.
- Tem a Suely que é filha do dono do circo, ela trabalhou muito tempo
com a gente depois que eles deixaram de andar com circo, ela...
Aqui, mais uma vez Senhor Nilson mostra o quanto à relação com as
pessoas do Circo-Teatro Alan foi duradoura. Carobinha afirma que uma filha
dos proprietários daquele circo conviveu muito tempo no Weverton Circo após
a extinção daquele circo.
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MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
José Benedito Andrade de Oliveira – UNEB 2012
Dona Socorro sabe a importância dos registros documentais para a
memória do circo e aproveitando o momento da entrevista, ela tentou garantir
que este material possa ser guardado e cuidado para que não desapareça
junto com a memória dos circenses. E foi pensando na valorização dessa
atividade artística que ela falou dos dramas circenses26 indicando fontes para
se encontrar estes registros:
Eu vou te dar até o e-mail dela, para você entrar em contato com ela,
para ver se ela tem os dramas, pra ela passar pra você, vai ser
melhor assim, porque ela tem... Ela deve ter os dramas tudo
guardado lá. Que ela antigamente escrevia os dramas naquele livrão
sabe? (Maria do Socorro Campos da Conceição, 27/06/2011)
Mais uma vez, se pode perceber a relação dos saberes passados
através da convivência familiar. Os entrevistados lembram o nome de uma
descendente do Circo-Teatro Alan, uma senhora de nome Suely, filha do dono
do circo e que, provavelmente, possui os dramas apresentados que
compunham os espetáculos daquela companhia. Um indício de que a senhora
Salomé também estava preocupada com a continuidade da arte dramática no
circo é que, segundo Dona Socorro:
A finada Salomé uma vez que eu fui lá, ela disse: - Socorro eu vou te
dá esses dramas. Agora que você tá com o circo e eu vou te dá,
porque uma hora você quer formar um drama, aí você, já tem os seus
dramas tudinho aí... (Maria do Socorro Campos da Conceição,
27/06/2011)
Quando D. Salomé afirma que vai passar para D. Socorro os textos dos
dramas, ela está confiante de que o “espetáculo não pode parar”, e que alguém
a quem ela confia um cabedal de saberes saberá dar o devido valor a estes
conhecimentos. Entretanto, isso não aconteceu até o momento da pesquisa e
D. Socorro não apresentou nenhum arquivo, livro ou até mesmo um velho
caderno que sirva como documento e registro.
Os saberes do Circo-Teatro Alan não estão apenas nos supostos
registros ou prováveis textos, hoje na guarda dessa filha do casal Paulo e
Salomé. Eles aparecem especialmente na fonte viva que é a própria Suely,
uma artista criadora, que segundo o relato do casal entrevistado, mantinha uma
constante produção dramatúrgica. Em uma sutil pilhéria Carobinha cita a
26
Peças de teatro encenadas no circo.
66
MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
José Benedito Andrade de Oliveira – UNEB 2012
produção poética de Suely dizendo que: “Tem vez que ela escrevia muito.
Suely, comendo arroz e... que ela comia um arroz cru danado”.
A memória emocional veio à tona, os olhos dos artistas entrevistados
brilharam e o sorriso ecoou no espaço vago fazendo com que o palhaço Fofoca
(Ueverton Campos Barbosa), o filho mais velho do casal, colocasse a cabeça
pra fora da janela do ônibus para saber da novidade.
As lembranças são generosas e Dona Socorro continuava emocionada
e, sem perceber, misturou o passado e o presente. As lembranças trouxeram
imagens de várias personalidades masculinas e femininas do mundo circense e
do convívio do casal. Ao falar sobre outra antiga conhecida e artista circense, o
casal o fez de forma tão visceral que nem percebeu que se tratava de alguém
que já faleceu:
- Outro também que pode ter muito drama guardado é Finada
Raimundinha. Dona Raimundinha mora aonde?
- Dona Raimundinha mora em...
- Todos Velhos de circo viu? E ela é poeta, faz poesias... Dentro de
cinco minutos ela faz uma poesia
- Ela mora... Como é o nome dessa cidade... Aquelas cidades ali pra
baixo.. Ibicoara... Ela mora em Ibicoara...
- Redenção. É em Redenção.
Ambos falam - Raimundinha.
- É a mulher do Finado... É...
- Essa escrevia drama.
- Ela escreve drama essa daí.
- Eu não sei hoje, que ela deve esta bem velhinha, mas ela escrevia o
drama...
- Uma cabeça que eu vou dizer, viu...
- Ela escrevia drama, escrevia... Poema...
- Ela fazia uma música assim, bem ligeirinha assim pra qualquer...
Dentro de cinco minutos ela fazia uma música, é boa pra fazer essas
coisas...
- Fazia... Ela fazia poesia imediatamente pra uma pessoa assim ela
fazia...
- Ela faz tanta poesia bonita, não é Nilson? Que ela fazia... Ela
declamava aquela poesia da carta do Baralho, declamava aquela...
Um bocado... Tanta poesia, do cachaceiro... Menino olhe... Linda...
Quando ela entra... Ela trabalhava no circo só pra fazer isso, ela
apresentava as poesias. Cada poesia linda, linda, linda, finada
Raimunda... Dona Raimunda... (José Nilson Rodrigues Barbosa e
Maria do Socorro Campos da Conceição entrevista em 27/06/2011)
Contudo, vemos que as lembranças do passado e as vivências do
presente se misturam na memória dos entrevistados. Não fica claro se o
marido, o qual eles não conseguem lembrar o nome, ou mesmo a mulher,
Dona Raimundinha, estão vivos. Mas o registro é importante mesmo com esta
forma de contar de si e de suas experiências de forma não linear, já que nosso
67
MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
José Benedito Andrade de Oliveira – UNEB 2012
maior interesse nesta pesquisa é fazer um registro etnográfico para possíveis e
futuras pesquisas na área de artes circenses.
Quiçá um dia, possa existir um censo cultural para que sejam
registradas todas as pessoas que contribuem com seus feitos artísticos. Se
esta possibilidade se concretizar, o sistema educacional deve ser reformulado
para que a produção de tais conteúdos sirva como referências na construção
dos saberes culturais de cada lugar. E com isso, talvez seja possível visualizar
as proporções da influência circense na formação cultural das pessoas. Será
que poderíamos perceber como cada família circense pode contribuir com sua
diversidade de saberes em cada localidade por onde passa? Seria possível
analisar qualitativamente as contribuições de artistas circenses, a exemplo do
palhaço Carobinha e Dona Socorro nesta parte do semiárido baiano na
contemporaneidade?
Infelizmente, estes exemplos ainda precisam ser provocados para que
se possa pensar no valor artístico do circo. Desta forma, o valor de atividades
lúdicas e de pessoas sabedoras de conhecimentos empíricos com forte base
na cultura popular como são os casos dos artistas populares, principalmente os
brincantes dos folguedos e da gente de circo de pequeno e médio porte,
permanecem desassistidos e excluídos pelos mecanismos burocráticos
vigentes.
Seguir esta linha de raciocínio é querer impulsionar a discussão sobre o
papel do artista popular no campo da cultura. Porque o objetivo dessa
pesquisa, que tem como atores principais um casal de artistas circenses, é
buscar e provocar o levantamento e diagnóstico de como estas famílias atuam
e vivem há muitos anos nas cidades por onde passaram e continuam
passando. O caso do Senhor Nilson e Dona Socorro é como o de muitos outros
artistas populares. A família Weverton Circo, assemelha-se a muitas outras
famílias circenses no Brasil e o que se deseja é melhorar a condição de vida
destes atores sociais que desempenham um papel fundamental mantendo o
espírito lúdico e fortalecendo a alma humana.
Portanto, são os próprios fundadores do Weverton Circo que analisam
os problemas vividos por eles e citam outros tantos artistas ativos que passam
por problemas semelhantes. Questões como periferização dos circos,
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MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
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dificuldades de localização de terreno adequado para armar a lona, falta de
planejamento urbano na adequação do espaço destinado ao circo – quando
existe este espaço na cidade, falta de estrutura hidráulica e elétrica nos
espaços etc. Quando são questionados sobre quais as maiores dificuldades
encontradas na vida itinerante de circo, o casal não demora em descrever com
propriedade e cita, entre tantos outros, os mais graves:
- Terreno, também tem horas que a gente chega assim eles não
ajudam. Quando o terreno é sujo eles deixam... Pensa que a gente é
bicho, é animal e bota pra lá. E tem hora que a gente tem que pagar o
terreno, o alvará, a gente paga, é o direito nosso pagar. Se sente até
bem também a gente pagar, porque tá em nossos direito. Agora eles
podiam dizer: - Não, já que tem aquela área ali, vamos limpar, para
quando o circo chegar tá tudo limpinho. Tem criança né? Eles não
fazem isso, aí isso aí tudo é ruim pra gente que trabalha no circo.
Sobre também água, é um momento ruim quando a gente chega. A
gente... É difícil. A gente vai às casas, quer ajudar na água, “ah não
vou dar água”. Também Circo Fulano de Tal... (Maria do Socorro
Campos da Conceição, entrevista, 27/06/2011).
Aqui, Dona Socorro fala um pouco da relação do circo com os poderes
públicos municipais. Um relato que reflete com muita propriedade o drama
vivido por estes artistas, por estas famílias que levam suas vidas contribuindo
com o desenvolvimento artístico e a formação cultural nas comunidades por
onde passam. Os terrenos espremidos nos bairros mais periféricos forçam uma
relação com os moradores que, em sua maioria, são solidários com os novos
visitantes. Como não existem na maioria das cidades espaços reservados para
os circos, é uma prática comum dos circenses compartilharem com os
moradores locais a água. Contudo, caso o circense não cumpra o acordo com
o morador local, sua ação decerto vai refletir negativamente com os próximos
grupos ou companhias circense que chegarem ao local:
- Porque também tem muitos circos que eles passam já fazendo a
ruindade com os outros que vem atrás. Você chega, combina aquilo
direitinho e quando vão embora não fazem o que eles tem que fazer.
Porque eles têm que manter a responsabilidade, se eles arrumaram a
água, paguem. Porque vem outro atrás e precisa e aí... Os moradores
não querem arrumar, né não? Aí é por isso que é ruim. Se chegasse
ao terreno, já tivesse água encanada da prefeitura, o circo já
chegasse e já encontrasse tudo isso aí, para nós artistas era fácil
para a gente viver; mas, tem muito coisa que é muito difícil para circo
ainda. Mas uma hora, a Deus querer, eles vão ver que a gente tem...
Eles dependem da gente... Que nós também somos eleitores, todo
mundo de circo! Eles sabem que a gente vota, eles sabem que eles
dependem da gente. (Maria do Socorro Campos da Conceição,
27/06/2011)
69
MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
José Benedito Andrade de Oliveira – UNEB 2012
Dona Socorro explica em poucas palavras como funciona o sistema da
administração pública e a organização das companhias circenses. A
experiência adquirida durante os anos de vida itinerante é suficiente para
garantir uma leitura de mudo mais consistente, uma visão da vida mais
confiante em uma fala segura de quem tem ciência de seus direitos enquanto
mulher, artista e cidadã.
4.2 “Filho de peixe...” Entre o brinquedo e o trabalho.
Eu perdi a mocidade
Com os pés sujos de lama
Eu fiquei analfabeto
Mas meus filho criou fama
Pelo gosto dos menino
Pelo gosto da mulher
Eu já ia descansar
Não sujava mais os pé
Os bichinho tão criado
Satisfiz o meu desejo
Eu podia descansar
Mas continuo vendendo caranguejo
Gordurinha27
Família no circo
A família de José Nilson Rodrigues Barbosa e Maria do Socorro Campos
da Conceição, fotos de apresentações no Weverton circo, em anexo na pagina
85. Até o momento da pesquisa contava com uma filha, três filhos, três noras,
quatro netos e um sobrinho. A tabela abaixo descreve maiores detalhes sobre
estas pessoas que amam sua arte e seguem seu itinerário aprendendo a cada
dia um número novo e fazendo das artes circenses seu modo de vida:
Nome
Data
nascimento
José Nilson
Rodrigues
Barbosa
17/04/1962
Naturalidade
JaguarariBahia
Escolaridade
2º ano do ensino
Fundamental
Atividade/função
Palhaço (Carobinha)/
Administrador
Membro
da família
Pai
27
MACEDO, Waldeck Artur (Gordurinha) foi um compositor, cantor e radialista baiano. Nasceu
em Salvador,
Bahia, 10/8/1922;
faleceu
no
Rio
de
Janeiro-RJ
16/1/1969.
http://www.dicionariompb.com.br/gordurinha
70
MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
José Benedito Andrade de Oliveira – UNEB 2012
Maria do Socorro
Campos da
Conceição
22/06/1962
ArapiracaAlagoas
Teçalha Campos
Barbosa
29/10/1981
Barra do
Mendes-Bahia
Ueverton Tarlei
Campos Barbosa
16/03/1983
JacobinaBahia
Ueliton Campos
Barbosa
10/04/1986
André Campos
Barbosa
Jeferson da silva
06/05/1987
11/10/1997
Daniele Almeida
Pereira
19/10/1991
Maria de Fátima
Barreto de Oliveira
18/12/1986
Noélia Pereira
Silva
14/02/1989
2º ano ensino
Fundamental
Bilheteira
Mãe
5º ano do ensino
Fundamental
Corda indiana/
Adestradora/ Bailarina
Filha de
Nilson e
Socorro
5º ano do ensino
Fundamental
Palhaço/ Locutor/ Facas
Filho de
Nilson e
Socorro
JacobinaBahia
5º ano do ensino
Fundamental
Equilibrista/ Palhaço/
Dublador
JacobinaBahia
4º ano do ensino
Fundamental
Trapezista/ Giro/ Palhaço
Filho de
Nilson e
Socorro
2º ano do ensino
Fundamental
Contorção/ Escadete/
Rola/ Duplo trapézio
Sobrinho
de
Socorro
7º ano do ensino
Fundamental
Rumbeira/ Dubladora/
Mestre de Cena
Esposa
de
Ueverton
6º ano do ensino
Fundamental
Rumbeira/ Dubladora
Esposa
de André
7º ano do ensino
Fundamental
Rumbeira
Esposa
de Ueliton
JacobinaBahia
São GabrielBahia
Mulungu do
Morro-Bahia
São GabrielBahia
Kauan Oliveira
Barbosa
Palhaço
Andreia Silva
Barbosa
kailane Oliveira
Barbosa
Fátima Ketlen
Campos Barbosa
Pereira
kauane Oliveira
Barbosa
Kauan Oliveira
Barbosa
22/05/2.000
20/07/2005
18/09/2004
Mulungu do
Morro - Bahia
Ibitiara-Bahia
Xiqui-XiquiBahia
2º ano do ensino
Fundamental
Força Capilar
2º ano do ensino
Fundamental
Bailarina/ Força Capilar
Filho de
Nilson e
Socorro
Filho de
Ueliton e
Noélia
Silva
Filho de
Ueliton e
Noélia
Silva
Filha de
André e
Maria de
Fátima
Filha de
Teçalha
Filha de
André e
Maria de
Fátima
Filho de
André e
Maria de
Fátima
Analisando o quadro acima, refletimos sobre a seguinte questão: os
filhos dos circenses são obrigatoriamente circenses? Uma pergunta difícil de
responder. Quem não é circense, ao integrar este modo de vida aos poucos se
torna de circo. Da mesma forma que quem vive no circo um dia pode deixar de
ser circense uma vez que ser circense é um modo de vida e não uma condição
natural ou étnica. Em muitos momentos quando os entrevistados falavam sobre
algum conhecido circense ou até mesmo pessoas de suas famílias, eles
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MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
José Benedito Andrade de Oliveira – UNEB 2012
diziam: “estão todos morando!” Isso quer dizer, pessoas que eram circenses,
do ponto de vista itinerante, e que passaram a ser moradores com residência
fixa em alguma cidade podendo ou não continuar sendo circenses mesmo com
uma vida sedentária.
Ao conversar com Teçalha, Ueverton, Ueliton e André, filhos de Senhor
Nilson e Dona Socorro, eles são unanimes em falar do gosto pela vida
itinerante e que sabem muito das dificuldades iniciais dos pais mais por
narração dos mesmos ou por testemunho de tios do que através de vivências
propriamente ditas. Ueverton (palhaço Fofoca) diz:
As dificuldades que nós enfrentamos hoje são muitas. Nada
comparadas com as que nossos pais viveram. Mas, hoje não é fácil
não. O respeito pelo circo é muito pouco e falta muito apoio, projetos
voltados para pessoas de circo mesmo. A gente viaja de uma cidade
para outra, levando alegria para as pessoas e isso é o que satisfaz.
Mas tem os filhos, escola, uma moradia melhor... Tem que pensar
nisso também. (Ueverton Campos Barbosa, 27/06/2011)
Na visão do palhaço Fofoca, o circo é importante e os circenses
precisam de maior apoio do poder público. Em seguida ele fala das
contribuições que o circo pode dar para a sociedade:
Veja só... Se a gente tivesse apoio, a gente poderia armar o circo
aqui em Senhor do Bonfim e ficar durante um bom tempo com uma
escolinha de circo. A gente poderia ensinar nossa arte para as
crianças e afastar elas das ruas, das drogas... Poderia fazer parceria
com a escola e nossos filhos também teria mais apoio nas escolas.
Mas, não tem como a gente ficar parado porque nosso trabalho é
esse. (Ueverton Campos Barbosa, 27/06/2011)
Vemos com isso, que as políticas públicas no campo da arte-educação,
no que diz respeito às modalidades circenses, estão muito distantes de se
tornarem realidade diante do sistema educacional vigente. E pior que isso, é
que os mestres da cultura popular - e o circo não é exceção - começam a
envelhecer, deixar os circos e aos poucos esta memória vai desaparecendo do
convívio social. A preocupação de Teçalha está mais ligada ao processo
educacional, quando ela diz:
Eu fico preocupada com a formação das crianças... A gente sabe que
é de direito colocar elas na escola. A gente coloca, mas o que se
aprende é pouco. As professoras diz que agente tem que ensinar em
casa... Mas a gente não sabe ensinar. Como é que vai ensinar se a
gente também foi pouco a escola... O melhor é que tivesse professor
que acompanhasse o circo. (Teçalha Campos Barbosa, 27/06/2011)
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MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
José Benedito Andrade de Oliveira – UNEB 2012
O processo pedagógico não é uma tarefa fácil e a criança que não é
estimulada não aprende com facilidade. O que se pode perceber é que as
crianças circenses têm vivências dinâmicas que fazem parte de seu cotidiano e
que fica difícil se adaptarem às regras do sistema educacional. A escola
precisa ser mais lúdica para todas as crianças, incluindo as circenses.
Ueliton, o quarto filho do casal de circenses, tem passado por momentos
difíceis no circo. Na cidade de Senhor do Bonfim ele perdeu o filho menor em
um atropelamento. Mais uma crueldade da periferização do circo. O circo
estava montado no bairro Bonfim III perto da BA 131. As crianças foram
atravessar a pista e o filho de Ueliton foi atropelado e faleceu no local. Aqui
cabe uma crítica contundente à administração pública do município, uma vez
que a criança atravessou a estrada para fazer necessidades fisiológicas em
terreno baldio que fica no lado oposto de onde o circo estava armado. Se
houvesse estrutura física com rede de esgoto e banheiros para atender as
necessidades básicas dos circenses esta tragédia poderia ter sido evitada.
A comoção da sociedade, dos moradores do bairro e do poder público
local não se compara à dor dos pais e familiares. O circo ficou em luto e a
alegria exposta no picadeiro camufla a falta do pequeno artista que morreu por
falta de investimentos que garantam um terreno em local seguro com estrutura
de água, energia elétrica, rede de esgoto para que as companhias circenses
sejam mais bem recebidas com garantia e segurança para as crianças e que
seja uma prioridade. Ueliton diz:
Em muitos momentos eu tenho vontade de sair do circo. Procurar
outra atividade para ganhar a vida. Mas, desde criança que eu faço
isso... Fazer o que também? A gente vê tanta gente desempregada,
vai ser mais um procurando emprego... Aqui pelo meons, nós
fazemos o que gostamos de fazer. (Ueliton Campos Barbosa,
27/06/2011)
Muitas vezes o circo é uma opção para os circenses, outras vezes vivese dele por falta de opção. O circense precisa acordar todos os dias e reafirmar
seu compromisso com sua própria vida e com sua gente. Independente do
rótulo, o mais importante a se discutir é que o circense é um ser humano com
limitações e necessidades, competências e direitos porque as dificuldades não
são poucas, como não são para ninguém em nenhum outro espaço ou em
nenhuma outra atividade.
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MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
José Benedito Andrade de Oliveira – UNEB 2012
4.3 Vida itinerante, o circo da vida
Valsa dos Clowns
Em toda canção
O palhaço é um charlatão
Esparrama tanta gargalhada
Da boca para fora
Dizem que seu coração pintado
Toda tarde de domingo chora
Abra o coração
Do palhaço da canção
Eis que salta outro farrapo humano
E morre na coxia
Dentro do seu coração de pano
Um palhaço alegre se anuncia
(Chico Buarque)28
Dificilmente paramos para refletir sobre os obstáculos que essas
pessoas enfrentam diariamente, sobre as dificuldades e os pesos que
carregam constantemente. Muitas vezes não pensamos nos seres humanos
que são e que se escondem por trás das inúmeras máscaras personificadas no
dia a dia, na luta fiel para conquistar seus anseios, como bem aborda a música
do mestre Chico Buarque.
Contar histórias sobre a vida itinerante de circenses não é uma tarefa
fácil, quem nos conta é o Sr. Nilson e Dona Socorro. O casal fez questão de
reunir suas memórias para compartilhar conosco, possibilitando a construção
de um registro sobre uma história de circo do semiárido baiano. Essa história
vem sendo reproduzida através das palavras que discorrem sobre as
experiências vivenciadas, as dificuldades enfrentadas, as opiniões construídas
e sobre os saberes que foram preservados e repassados por essa família
durante seu percurso. Esses são exemplos de circenses que viveram e se
doaram por amor a arte do circo.
O caminho que o circo segue em sua trajetória histórica é sempre
narrada e construída apontando inúmeras dificuldades, sob diversos aspectos.
Afinal de contas, viver uma vida itinerante é se submeter às instabilidades
cotidianas, é empreender uma jornada artística coletiva e não solitária, é andar
28
BUARQUE, Chico e LOBO, Edu – Valsa dos clowns. In: O grande circo místico, Rio de
Janeiro, Som Livre, 1983, CD.
74
MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
José Benedito Andrade de Oliveira – UNEB 2012
de uma cidade para outra à procura de espaço e de público, que a priori não se
sabe onde encontrá-lo.
Outras dificuldades como a dependência do público e a inflexibilidade
das autoridades municipais, são barreiras que atrapalham os pequenos circos
em suas andanças restringindo os terrenos da cidade, e mais do que isso é
pagar para receber um alvará e não contar com as condições básicas
necessárias para as devidas instalações do circo.
Sabe-se pouco sobre as dificuldades que é se deslocar de praça em
praça sem possuir um meio de transporte que suporte toda a estrutura física do
circo, em que a pesada lona é apenas uma parte. Vale ressaltar, que essas
dificuldades são comuns à maioria dos pequenos empreendedores circenses
brasileiros. Aqui, o casal que deu luz ao Weverton Circo, narra um pouco sobre
as suas particularidades que, de certo modo, estão embutidas no contexto
social do circo de um modo geral. Uma das falas do Senhor Nilson traduz um
pouco essa realidade difícil:
Quando o circo era pequenininho tinha vez que a gente se apertava,
que tu sabe que a vida da gente é cheia de problemas né? Cheio de
altos e baixos, quando a gente tá começando principalmente.
Começando pode dizer que não tem nada, né? (José Nilson
Rodrigues Barbosa entrevista em 27/06/2011)
Como dito anteriormente, depois de terem se encontrado e firmado um
relacionamento sério no Circo-Teatro Alan e após terem passado uma longa
temporada naquele lugar aprendendo e vivenciando as artes circenses, Sr.
Nilson e Dona Socorro decidiram montar o seu próprio circo. Como afirma
Dona Socorro, foi a partir daí que surgiram os momentos de maior dificuldade,
mas eles foram alertados pelo pessoal do circo-teatro antes de realizarem esse
intento:
Uns diziam: ‘- Vá não, ser dono de circo não presta não’... Como na
época mesmo que nós decidimos fazer o nosso: ‘ - Ei, vá não! - Vocês vão sofrer... Vocês vão sofrer tanto no meio deste mundo.
Outros diziam: ‘- É ruim demais ser dono de circo’. Mas, a gente saiu
só com a cara e a coragem, eu e Nilson. Nós saímos coma cara e a
coragem mesmo; saímos fechando. Nós fazíamos era fechar beco
mesmo, porque nós não tínhamos circo... .(Maria do Socorro Campos
da Conceição entrevista em 27/06/2011)
Destinados a enfrentar o mundo afora, o casal seguiu seu destino com a
cara e a coragem como afirma D. Socorro. Como eles ainda não tinham um
75
MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
José Benedito Andrade de Oliveira – UNEB 2012
circo próprio, no caso a lona, tiveram que arranjar outros meios para garantir
seu espaço de apresentação, o que os identifica enquanto circenses. Desta
feita, passaram a utilizar madeira de sisal e seus próprios cobertores
emendados para improvisar esse espaço. Sr. Nilson ao falar sobre sua
trajetória classifica esse seu primeiro circo como “pano de roda”, uma prática
muito comum nos interiores brasileiros, conforme explica o professor Nelson de
Araújo (1979, p.14) sumário e carente, destituído de mastro e cobertura, o
“pano de roda” é o ramo mais aventureiro de toda organização à qual pertence.
Sobre este assunto Dona Socorro nos fala:
A gente não tinha circo. Então, tirava madeira... Era pau de... Sisal e
botava lá pra fazer o redondo, quando era de noite; a gente botava
umas cobertas que a gente usava para se enrolar; porque tinha uma
parte que não tinha o pano... Aquele plástico preto era a lona que a
gente tinha. Aí a gente emendava com as cobertas. Quando
terminava o show; tirava de novo para a gente se enrolar, com
aquelas cobertas. No outro dia, tornava a emendar de novo, botava
de novo, até quando... Nós fizemos uma sociedade com um rapaz e a
mulher dele; compramos uns paninhos, começamos a comprar aos
poucos. Depois ele pegou uma briga com a mulher, decidiu ir embora
e nos vendeu a parte deles. Nós continuamos, batalhando com este
material e aos poucos fomos estruturando o circo e nisso estamos até
hoje. (Maria do Socorro Campos da Conceição entrevista em
27/06/2011)
Com o circo de pano de roda ambos batalharam durante muitos anos.
Nessa época Senhor Nilson e Dona Socorro tiveram sua primeira filha, Teçalha
Campos Barbosa (dançarina e domadora) e logo depois o primeiro filho
Ueverton Campos Barbosa (Palhaço Fofoca e locutor – O nome do circo é em
sua homenagem). As dificuldades29 eram tantas que não sobrava dinheiro para
pagar um transporte para deslocar o circo para outra cidade. Houve épocas,
como conta Dona Socorro, que o circo foi carregado até em carro de boi: “Nós
colocávamos o material em cima e ia atrás caminhando a pé”. Nesses
momentos a ideia da coletividade, da parceria e cooperação era de extrema
importância para o fortalecimento da trupe.
O circo na frente no carro de boi e nós com um bocado de bagagem
assim... Uns meninos levavam uma bolsa, outro levava outra e ia
caminhando. Assim a base... Uma légua, duas légua; a gente ia para
29
Para melhor entendimento das dificuldades enfrentadas pelos circenses na Bahia, consultar
a página 14 da cartilha Bahia de todos os circos, produzida pela Secretaria de Cultura do
Estado da Bahia em 2010 e que apresenta, entre outras coisas, uma relação de despesas
básicas nas pequenas e médias companhias de circo.
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MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
José Benedito Andrade de Oliveira – UNEB 2012
os lugarzinhos pequenos. A gente enfrentava nessa época, era uma
vida muito difícil. Hoje em dia, não, hoje em dia já tá melhor, né? O
tempo vai passando a gente vai se aperfeiçoando, vai adquirindo
alguma coisa na vida... .(Maria do Socorro Campos da Conceição
entrevista em 27/06/2011)
Em outras passagens Dona Socorro comenta que a família não tinha
condições de levar o circo com eles, dessa forma, era necessário deixá-lo em
determinado local e seguir em frente. Com tamanha dificuldade e com os filhos
ainda pequenos esses artistas seguiam seu trajeto “dando show” em outros
espaços, até conseguirem alcançar melhores condições para enfim retornar e
buscar o circo. Eles eram obrigados a se deslocarem andando a pé até as
localidades mais próximas do povoado aonde a trupe chegava. Não era uma
tarefa fácil para quem levava consigo filhos menores, Dona Socorro gestante,
em outros momentos amamentando. Deslocavam quilômetros sem auxilio
algum carregando os materiais necessários para a apresentação do show e em
muitos casos nem isso foi suficiente.
Com a carência de apresentações por falta de um número quantitativo
de público para prestigiar os espetáculos, houve também a necessidade de
arranjar outros meios e modos de garantir a sobrevivência. Dona Socorro, uma
mulher muito esperta, como ela mesma diz, e com bastante saberes adquiridos
com a experiência de vida, conta que nesses momentos difíceis ela procurava
trabalhar com outras coisas. Fazia consertos em diversos utensílios em troca
de algumas moedas ou de qualquer outra contribuição que a pessoa pudesse
oferecer. Sobre os momentos de dificuldades que enfrentavam quando “a
praça esta ruim”, Dona Socorro discorre:
Olhe teve uma época que quando a ‘praça estava ruim’ mesmo. Veja
só: nós chegamos numa região e a coisa estava difícil... Toda vida fui
uma pessoa muito esperta, eu trabalhava e arrumava... Não dava arte
não... Eu arrumava umas vasilhas para eu consertar, que sempre eu
consertava estas coisas: sombrinha, guarda-chuva, panela de
pressão qualquer coisa neste nível. Com isso eu arrumava o
dinheiro... Eu fazia qualquer trabalho digno. Nunca fui de pegar no
que é alheio, nunca gostei e nem incentivei meus filhos. Não aceito e
não aprovo. Consertava guarda-chuva... Quando as pessoas não
tinha o dinheiro eles diziam: ‘- Oh eu vou lhe dar um quilo de açúcar’,
eu dizia: ‘- Eu quero’; ‘- um cozinhado de feijão?’; ‘- Eu faço! - Em
troca disso aí eu faço, porque eu preciso, eu vou comprar!’ não é? No
lugar que a gente chegava era muito difícil, eu dizia: ‘- com isso aí eu
faço!’ E ali, aquela temporada daquele tempo ruim, a gente passava
aquelas dificuldades depois chegava à outra ‘praça’ arrumava, dava
dois, três espetáculos melhorzinhos e ia passando... .(Maria do
Socorro Campos da Conceição entrevista em 27/06/2011)
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MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
José Benedito Andrade de Oliveira – UNEB 2012
Percebemos que o caso do Weverton Circo não é diferente de tantas
outras companhias de pequeno porte que possuem enorme dependência do
público em todos os lugares que chegam para apresentar seus números e
habilidades. A bilheteria deve cobrir os custos do deslocamento, permanência e
saída da companhia de uma praça para outra. Quanto menor o público, mais
dificuldades estes circense enfrentaram para manter a equipe e os
espetáculos.
O circo é uma presença marcante no imaginário de todo brasileiro
nascido até o início dos anos 80, quando a televisão alavancou em
definitivo seu poder junto ao público, esvaziando as tendas circenses
dos centros urbanos. (ANDRADE, 2006, p. 15)
Atualmente os artistas circenses necessitam bastante da criatividade
em suas apresentações. É preciso inovar. Mas ser inovador não é uma tarefa
fácil, principalmente diante de um mundo tecnologicamente avançado.
Contudo, faz-se necessário lembrar que a fome diária não espera e as
necessidades básicas urgem obrigando os artistas a avançarem adaptando
seus números de acordo com a realidade do local para que chamem a atenção
do público. Apesar de todo esse desenvolvimento tecnológico que afastou os
espectadores das lonas, o circo ainda resiste e encanta, garantindo sua
permanência nos espaços urbanos.
As dificuldades vivenciadas por essa família circense beiram também
outros aspectos que estão intrinsecamente ligados ao preconceito social. Ainda
no século XIX, no auge da modernidade quando houve a institucionalização de
algumas práticas corporais, em que se atribuiu a elas ideais de caráter
higiênicos, ordenativos, disciplinadores e metódicos, o circo passou a não ser o
melhor lugar para se frequentar (SOARES, 2005).
De acordo com essa ideia burguesa, todas as práticas corporais que se
apresentavam em ambientes abertos, feiras, ruas, circos em que acrobatas,
contorcionistas, bailarinas, equilibristas, funâmbulos, palhaços, “gigantes e
anões” despertavam o interesse do público no que se refere aos usos do corpo,
eram vistas como perigo e ameaça, pois o universo gestual próprio do circo
havia uma total ausência do caráter utilitário. Essa imagem foi fortemente
demarcada e reflete também no Brasil até os dias atuais. Ainda segundo
Soares (2005, p. 24):
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MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
José Benedito Andrade de Oliveira – UNEB 2012
Esta inteireza não cabia na sociedade cindida, fundada e erigida pelo
pensamento burguês. A atividade física fora do mundo do trabalho
devia ser útil ao trabalho. A atividade livre e lúdica, encantatória do
acrobata devia ser redesenhada no imaginário popular. Em seu lugar
e a partir daquele universo gestual, nasceriam as ‘séries de
exercícios físicos’, pensados, exclusivamente, a partir de grupos
musculares e de funções orgânicas, a serem aplicados com
finalidades específicas, úteis, e não como mero entretenimento.
Ainda hoje as imagens que foram construídas acerca dos artistas
circenses tem dificultado bastante o trabalho artístico. Muitas famílias quando
chegam a determinados lugares a fim de apresentar seu trabalho, são barradas
e, de certo modo, mal recebidas. A maioria das autoridades políticas nega,
muitas vezes, um terreno ou qualquer outro espaço urbano para que a família
possa armar o circo a fim de desenvolver seu digno trabalho.
- A maior dificuldade...
- A maior dificuldade que a gente encontra, só quando a gente chega
assim em praça que os prefeitos ficam medindo distância pra gente
armar o circo, né? ‘É... porque não vai dar, que agora você passa em
outro período’. E aí tem hora que a gente vem até em fase de... Que
a taxa financeira tá pouca, né? Com pouco dinheiro...
- Para se deslocar para outro lugar.
- E eles também não ajudam, poderiam dizer: ‘ - Não dá para vocês
ficarem na cidade desta vez! Mas, eu vou ajudar vocês com um
alguma coisa e vocês vão pra outra cidade assim mais na frente um
pouco, vou dar um óleo uma coisa assim qualquer para vocês se
deslocarem. Mas, isso não acontece, não ajuda, faz é desajudar,
porque já que não dá o local pra gente armar ele tá desajudando a
gente, né? Aí a gente fica com aquela dificuldade, eu acho isso. É
muito difícil. .(José Nilson Rodrigues Barbosa e Maria do Socorro
Campos da Conceição entrevista em 27/06/2011)
Outra reclamação oriunda dessas famílias quando se instalam nessas
cidades é a falta de um terreno apropriado, limpo, com saneamento básico,
água potável, etc., na verdade é o mínimo que deveriam oferecer para abrigar
esses grandes cidadãos do mundo. Dona Socorro critica os métodos utilizados
por muitas prefeituras no tocante à falta de incentivo e apoio às artes circenses
e fala que tipo de política pública deve ser adotada para um melhor
funcionamento dessa linguagem artística, mostrando o quanto os pequenos
circos brasileiros têm sido marginalizados, ficando à mercê de uma atenção
especial, o que raramente é encontrada.
Entendemos que algumas medidas já foram iniciadas pelo poder público.
Já existem inclusive, alguns programas do governo federal via Ministério da
Cultura. Mas o circo urge por políticas para o fortalecimento das companhias,
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MEMÓRIAS DE PICADEIRO: Histórias de vida de circenses do semiárido baiano entre Senhor do Bonfim e Jacobina
José Benedito Andrade de Oliveira – UNEB 2012
de incentivo às famílias com atendimento específico em questões de saúde,
alimentação, educação formal das crianças e adultos. Precisa ser criado um
sistema que em dez, quinze anos no máximo os circenses adultos sejam
alfabetizados, concluam a educação básica e o ensino superior.
É preciso pensar na criação de uma universidade itinerante de circo,
onde de forma modular o corpo docente visite os circos, socializando e
contribuindo com os artistas/alunos. Este curso deve atender a pré-requisitos
relevantes
para
o
fortalecimento
e
aprimoramento
do
circense:
1º)
Aperfeiçoamento nas disciplinas circenses; 2º) Administração da produção
cultural e da economia criativa; 3º) Formação artística nas diversas áreas
cênicas, música e educação física; 4º) Área pedagógica com ênfase na
licenciatura.
O Brasil aponta para um novo rumo na economia, aproveitando o que
tem de mais rico em sua cultura que é a criatividade. Essas medidas precisam
ser pensadas em caráter de urgência para que o campo da cultura se fortaleça
e direcione quais são os meios que vão garantir a sustentabilidade cultural e
melhor aproveitamento das linguagens criativas no campo econômico.
O governo do Estado da Bahia iniciou de forma tímida algumas medidas
de apoio às companhias de circo e aos circenses lançando editais que
contemplam as artes circenses. Porém, são muito irrisórias diante da
complexidade e diversidade de circenses espalhados por todo estado.
- O governo da Bahia eles tem que olhar que o circo existe, o
presidente da república também tem que olhar que o circo existe,
porque eles... Eles têm uma votação muito grande de...
- De gente de circo...
- De gente circense, eles têm. Uma votação muito grande de todos os
circos.
- Não é nem pouco...
- Então eles têm que olhar que o circo existe como qualquer empresa
existe, né?
- Que nós que somos pessoas de circo existimos como qualquer um
morador, qualquer outra pessoa...
- Nós temos que ter nossos direitos no banco, pra fazer empréstimo
para melhorar nosso circo e investir em nosso trabalho. .(José Nilson
Rodrigues Barbosa e Maria do Socorro Campos da Conceição
entrevista em 27/06/2011)
O Senhor Nilson diz que o desenvolvimento de seu empreendimento de
circo está em consonância com as novas tendências econômicas que o país
começa desenhar. Ele sabe que ampliar seu negócio é garantir melhor
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qualidade dos serviços prestados às comunidades em geral. Deste modo, é
preciso pensar uma linha de crédito que contemple as demandas deste público,
com juros baixos e isenções de algumas taxas, principalmente para os
proprietários das pequenas companhias.
A questão cultural no país precisa ser pauta das discursões nos mais
diversos espaços formais ou não formais. Tendo como base das discursões a
diversidade cultural, a riqueza de detalhes em cada linguagem, seus
desdobramentos e melhores meios de aproveitamento desta riqueza, para
fortalecer a cultura brasileira contribuindo de forma significativa com a
economia, distribuição de renda e desenvolvimento social do país.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pesquisa no campo cultural mais especificamente na área circense
constitui-se em uma tarefa muito mais difícil quando se tem como objetivo
registrar as memórias de pessoas oriundas dos referidos objetos analisados
dentro da pesquisa etnográfica. A carência de material para estudo obriga o
pesquisador a entrar em um campo empírico e fazer registros por meios
diversos de coleta de dados que nos servem presentemente e para futuras
análises, tudo com a devida imparcialidade mesmo diante de buscas com
características afins, uma vez que pesquisamos o que faz sentido para nós e
nossos pares.
Adentrar neste campo de estudo em que se pretende abrir as cortinas da
vida privada das pessoas pesquisadas é introduzir um olhar estranho, externo
à vida íntima desses atores e suas famílias. A ação requer uma conquista de
confiança e uma reciprocidade de respeito entre as pessoas estudadas e o
pesquisador e isso é possível com delimitação do tema e objetivos que devem
ser úteis para ambos, e maior no sentido de prestar um serviço público
registrando parte da memória cultural de uma região para que sirvam de
subsídio para estudos futuros sobre o tema dentro do contexto estudado.
Tentoamos de forma breve discorrer sobre a história do circo, no intuito
de situar o leitor dentro do contexto, indicando alguns autores que tratam do
assunto. A intensão do texto neste sentido é preparar o terreno para identificar
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a linguagem cênica de forma diversa. Possibilitando uma análise sobre os
primórdios desta arte conhecidas hoje como circense.
Dentro desta busca, foram citados alguns autores que indicam possíveis
origens do espetáculo circense na antiguidade até a concretização do que se
passou a denominar como circo moderno. O primeiro capítulo também procura
aproximar as leituras de autores que apontam os povos ciganos como
primeiros criadores e divulgadores da arte circense europeia no Brasil e indica
algumas leituras que apontam quais famílias desembarcaram no país com o
intuito de desenvolver as artes circenses em solo brasileiro.
No capitulo 2, procuramos mostrar alguns fazeres circenses explorando
especificamente as modalidades de equilíbrio, acrobacias aéreas e o palhaço,
por serem linguagens trabalhadas no circo pesquisado e ainda tratamos no
capítulo 3, de um tema muito delicado e importante que é a questão da mulher
no circo, tentando analisar sua participação enquanto profissional das artes e
sua dupla jornada de trabalho como mãe, esposa e doméstica.
Por fim, no capítulo 4, o texto mostramosa o principal objetivo deste
trabalho feito sobre o Weverton Circo, que é provocar novas buscas para
comprovar que o Senhor Nilson e Dona Socorro vêm mantendo a mais de trinta
anos a modalidade de circo-família. Estes dados são úteis para mudar os
registros que apontam esta modalidade circense como não existente no
cenário nacional.
A partir da entrevista concedida pelos artistas desta família, registramos
a quantidade de seus membros, analisando seus depoimentos e possibilitando
que outros pesquisadores façam comparações e tirem suas próprias
conclusões sobre os inscritos na historiografia do circo e sobre o conceito de
circo-família. A análise das memórias de Senhor Nilson e Dona Socorro,
permitem conhecer suas histórias de vida, de maneira que a confiabilidade dos
fatos narrados por eles garantam o registro de acontecimentos artísticoculturais que indicam que no semiárido baiano ainda residem células desta
modalidade circense.
Contudo, estas buscas teriam sido muito mais difíceis ou até impossíveis
sem a colaboração direta dos envolvidos a quem devemos mencionar
especialmente as pessoas de Senhor Nilson e Dona Socorro, depoentes e
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parceiros nesta escrita a partir de suas narrativas e disponibilidade em relatar
suas memórias sem limitação das mais diversas lembranças; toda família do
Weverton Circo, em especial à Teçalha Campos Barbosa pelos tantos e-mails
e recados fazendo uma ponte entre os registros escritos e as contribuições de
Dona Socorro, relembrando frases, fatos, nomes de pessoas e endereços a
serem pesquisados.
Nesse texto fica claro o quanto os pequenos circos brasileiros têm sido
marginalizados, ficando a mercê de uma atenção especial dos poderes
públicos. Reconhecemos que algumas medidas já foram iniciadas e que já
existem alguns programas do governo federal, mas o circo urge por mais
políticas para o fortalecimento das companhias.
Não é fácil trilhar estes caminhos abertos pelos circenses. É necessário
muito mais que talento. O elemento fundamental é a alegria com que se
caminha. Mas para quem acompanha os passos largos de um palhaço sabe
que para fazer sorrir é preciso entender a dor, porque ela é o sentido da
alegria. Quem sofre quer sair do sofrimento, quem chora quer sorrir e quem
sente dor quer alegria... O palhaço anda léguas incansavelmente em sua alma
de menino arteiro, e suas tristezas remonta-se a cada rosto pintado
derramando gargalhada em faces ingênuas e infantis mesmo sendo em corpos
adultos. É preciso fazer ciência com a mesma intenção clownesca, deixando
derramar pelas linhas histórias costurada com fios de sonhos, para tecer um
lençol de lembranças e proteger a memória de picadeiro nas vidas de crianças
e adultos circenses espalhados por todo Brasil.
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Anexo
Família Weverton Circo
Palhaço Carobinha,
Senhor Nilson e Dona
Socorro
Teçalha Campos Barbosa
Ueverton “mestreando”
cena para, Ueliton
(Palhaço Xeretinha) e
André (Palhaço Furaca).
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Jeferson, equilíbrio em monociclo e
apresentando rolo americano
Palhaços: Fofoca, Furaca e Xeretinha.
Participação especial Dona Inês
Campos da Conceição
.
Dançarinas: Teçalha, Fátima, Andréa
e Noelia
.
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Kauan, filho de Ueliton
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