VIII Colóquio Internacional Marx e Engels – Julho de 2015 GT9 – Cultura, capitalismo e socialismo O Teatro Dialético e o Teatro do Oprimido: Augusto Boal como continuidade da atualidade de Bertolt Brecht Autora: Natalia Mendonça Conti (mestranda no Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal Fluminense –UFF Niterói – Campus Gragoatá) Introdução ou A revolução de Brecht Ao pautar a temática da atualidade de Brecht, estou me situando em meio a um debate que não diz respeito tão somente à dramaturgia, como aos grandes embates políticos internacionais e a atualidade de paradigmas e conceitos fundamentais ao campo do marxismo, como classe e revolução. Na medida em que o conhecido métodoBrecht se constitui enquanto ruptura com formas estético-políticas burguesas, coloca também em xeque a paralisante concepção do espectador como passivo, coadjuvante da cena teatral e da realidade. O advento do teatro épico-dialético, que apelido aqui de revolução de Brecht, supera as antigas formas do drama burguês, do teatro de catarse e do espaço privado, para propor o teatro político, reflexivo e público em tema e forma. Para Brecht, a forma artística deve responder aos sujeitos de sua realização e ao tempo e contexto vividos, o que dá a esta um caráter historicizante. O drama, ao retratar a particularidade de uma classe apenas da sociedade, a burguesia e a sua poética dramática, não poderia ser assumida como ferramenta dos de baixo, para encenar novas formas de ser e questionar o sistema social vigente. A esfera privada, a mobilização catártica, a ênfase na identificação com os personagens não propiciavam nada além de deleite e consumo acrítico da experiência teatral. O teatro épico-dialético é elaborado como literatura e método a partir de preceitos inversos. Ao invés de envolver e gerar identificação, deveria estranhar o espectador e colocar diante dele questões para as quais seria impossível permanecer passivo. Irmanado à teoria desnaturalizadora de Marx, a ação no palco serviria centralmente à desmistificação e questionamento da realidade como natural ou ahistórica/eterna. Trata-se de uma forma de incitar a construção ativa e coletiva do conhecimento e da política, na medida em que: A peça deve, portanto, caracterizar determinada situação na sua relatividade histórica, para demonstrar a sua condição passageira. A nossa própria situação, época e sociedade devem ser apresentadas como se estivessem distanciadas de nós pelo tempo histórico ou pelo espaço geográfico. (...) O tornar estranho, o anular da familiaridade da nossa situação habitual, a ponto de ela ficar estranha a nós mesmos, torna o nível mais elevado, esta nossa situação mais conhecida e mais familiar. O distanciamento passa então a ser negação da negação; leva através do choque do não-conhecer ao choque do conhecer (...) Tornar estranho é, portanto, ao mesmo tempo tornar conhecido. (ROSENFELD, 2008, p.151-152) A atualidade de Brecht e o debate brasileiro Em 1997, no prédio do antigo Teatro de Arena de São Paulo, aquele que veio a se tornar um dos mais importantes grupos de teatro dialético do Brasil estreava com nome e abertura ao público de seu processo teatral. Tendo assumido o espaço do Arena como palco para o projeto de pesquisa teatral, a Companhia do Latão convida Roberto Schwarz para falar sobre a leitura que fazia o grupo de A Santa Joana dos Matadouros (peça de Brecht de 1929). Esta fala, como relata Sérgio de Carvalho, diretor do grupo, serviu como batismo de água gelada, na medida em que inaugurou sua atividade com o questionamento acerca da atualidade de Brecht. A crítica de Schwarz pressupunha o caducamento do conceito de distanciamento do dramaturgo alemão, apontando o vínculo entre a proposição estética brechtiana e a teoria marxista da desnaturalização. A passagem da crítica à prática seria o nó da problematização de Schwarz, considerando a hegemonia do modo de produção capitalista contraditória ao elogio da mutabilidade e a perda por parte do socialismo histórico do lugar de referência enquanto crítica anticapitalista. A crítica destaca uma suposta ingenuidade na crença de que bastava a compreensão da injustiça social para que a transformação estivesse ao alcance das mãos. (CARVALHO, 2009, p.43) Schwarz destaca ainda que o estranhamento da realidade presente seria para Brecht o caminho direto à sugestão do socialismo, compreensão que reduz e expressa de forma caricatural a intenção do dramaturgo. A “sugestão” do socialismo estaria condenada pela crise deste sistema mundialmente enquanto alternativa política. Questiona ao grupo ainda: O que agrupa as pessoas hoje? O que o distanciamento ainda pode agrupar? Que tipo de relação coletiva ele pode construir? Trata-se de condenação explícita à práxis projetada pela cena, ao que Sérgio de Carvalho responde: Os véus ideológicos contemporâneos são muito fortes e elásticos, e mesmo que não sejam mais baseados nas crenças tradicionais (ou no idealismo clássico) continuam hábeis em eternizar as dinâmicas totalizantes do capitalismo em imagens de aparência eterna. Não acho demais dizer que existe em curso um novo processo de naturalização dos valores, não mais baseado nas relações produtivas tradicionais, mas na sua falência, não mais baseado em ideias decretadas, mas na ignorância histórica, e mais do que tudo, decorrente do totalitarismo das dinâmicas capitalistas no mundo atual. (CARVALHO, 2009, p.49) A Companhia do Latão, no entanto, não nega o peso das críticas proferidas por Schwarz naquela noite, posteriormente publicadas em forma de artigo na coletânea Sequências Brasileiras. O “batismo de água fria” teria servido de alerta e postulado perguntas importantes para aqueles que se inauguravam na escolha estético- metodológica brechtiana. O trecho que segue faz a ponte para o laço que vou estabelecer entre Brecht e Boal, e abre o precedente para pensar este último como atualizador do primeiro. Sua práxis simbólica não é em si abstrata. É um trabalho de concretização que favorece a compreensão abstrata a partir de sua irresolução gestual. Seu método de geração de produtividade não pode ser julgado como uma configuração abstrata a partir de sua irresolução gestual. Seu método de geração de produtividade não pode ser julgado como uma configuração absoluta, puramente dependente do engajamento, pois sua qualidade fundamental é a exigência dialética de atualização. (CARVALHO, 2009, p.53-54) O Arena no centro do teatro brasileiro da década de 1960 Há no debate político e artístico acerca do período pré-golpe de 1964, sobretudo no que tange o balanço do Centro Popular de Cultura da UNE, diferentes posições. Desde os que negam a experiência como válida até aqueles que a exaltam acriticamente (estes mais raros), não havendo, entretanto, dúvidas de que o período de atividade do CPC foi fundamental para formar artistas e grupos de todas as linguagens e possibilitar a produção e distribuição de arte política no país. Pensando o teatro neste contexto, Iná Camargo nos diz que se em algum momento o teatro brasileiro viveu uma revolução, foi no período entre 1958-1968, e esteve ligada ao CPC da UNE. A reviravolta tem lugar no Teatro de Arena de São Paulo, em 1958, com a peça Eles não usam black-tie, de Gianfrascesco Guarnieri, que mantém ainda a forma do teatro dramático, mas avança na questão dos personagens e da temática, quando pauta uma greve operária e faz dos operários sujeitos do fazer político e teatral – o que seria impossível no drama burguês. A inauguração propriamente do teatro épico-dialético no Brasil, segundo Camargo, se daria em 1960, com a peça Revolução na América do Sul, de Augusto Boal, que faz a trilha do teatro épico ao mesmo tempo em que reata com a tradição do teatro de revista, o que potencializa a sua intervenção. Na peça, Boal faz do operário espectador da contrarrevolução gestada no país, esta sim a verdadeira protagonista neste momento histórico, que constitui grande acerto do dramaturgo. Considerando os revezes em traduzir teatro alemão para a realidade brasileira, podemos compreender as falhas, equívocos e debilidades da apropriação de Brecht no Brasil. Camargo nos alerta para a nossa falta de fortuna crítica e mesmo de tradição de luta operária e fazer teatral, bem como uma realidade totalmente distinta da europeia e a formação bem mais precária destes intelectuais e artistas no país. Menos generoso, Schwarz aponta a não existência de classe em-si no Brasil, quanto mais classe-para si, o que tornaria impossível a tradução entre continentes. A importância dos acertos de Revolução na América do Sul não esconde os posteriores equívocos estéticometodológicos do Teatro de Arena. Segundo Camargo, Arena conta Zumbi (1965), que para Boal é um primeiro passo para o avanço na ruptura das formas burguesas do fazer teatral, aplica o estranhamento aos personagens “inimigos”, enquanto exalta e perfila a lógica do drama aos personagens “amigos”. A heroicização e a idealização de Zumbi condenam a representação ao maniqueísmo, distante do método proposto por Brecht. Além disso, o paralelo traçado entre a luta centenária dos escravos negros e a resistência pontual e pouco efetiva no período do golpe constitui comparação muito problemática. Outro revés, ainda mais grave, teria sido a representação heroica e descontextualizada de Tiradentes, em Arena conta Tiradentes, que Boal avalia como um aprofundamento das inovações estéticas, enquanto Camargo aponta como o “game over” do teatro épicodialético naquele período. Os acertos e os equívocos tinham origem, sobretudo, no caráter desigual e combinado da apreciação de Brecht no país, com a inventividade do que surge pela primeira vez e com a sombra do que floresce em chão semicolonial. O exílio de Boal e o surgimento do Teatro do Oprimido Um sequestro seguido de prisão e tortura em 1971 fez com que Augusto Boal se exilasse em Buenos Aires. Distante dos círculos de atuação e do espaço de criação familiares, o novo momento colocou para o dramaturgo a necessidade de reinventar o cotidiano e centrar fogo em sua elaboração teórica, como meio de dar continuidade ao trabalho iniciado no Teatro de Arena e de se manter vivo em meio à solidão e ao isolamento do exílio. O envolvimento com o teatro argentino e o período de vivência ali e em outros países latino-americanos e europeus foram os principais cenários da elaboração da maior parte de sua teoria e seus avanços metodológicos. Amparado pela experiência no teatro brasileiro, e diante de novos desafios frente à repressão em toda a América Latina, Boal sintetiza, em 1973, a poética política – como ousou nominar – que seria a sua maior potência, e se desenvolveria nos anos subsequentes até o fim de sua vida, o Teatro do Oprimido. O Teatro do Oprimido pauta a necessidade da conquista dos meios de produção teatral por parte dos oprimidos. Partindo da filiação ao lugar, à defesa e organização dos oprimidos, aponta a possibilidade da desmecanização do corpo – que é a palavra mais importante do fazer teatral – para poder se colocar em outros papéis, estranhar e conhecer a própria realidade e potencialidade, individual e coletiva, como sujeito político. O jogo cumpriria esse papel de readequar o corpo, ou de livrá-lo da adaptação muscular ao trabalho, à atividade teatral, como um primeiro momento da tomada de consciência de si no mundo. O método proposto, portanto, assumia a demanda de criar formas adequadas às necessidades de expressão dos oprimidos e explorados, que não cabiam nas formas do drama burguês, e assumia formas as mais diversas – com o desenvolvimento de outras poéticas políticas e técnicas – para esta atividade. Junto a isso, em consonância com o método Brecht, propunha uma quebra total da quarta parede do palco, integrando em uma arena estético-política o espect-ator – não mais espectador, visto que assumia um lugar de sujeito e de crítico da própria realidade – e o ator, a quem era delegado o papel de narrar sobre diferentes temas, sem que tomasse do espect-ator o lugar de pensamento e ação. A diferença dos lugares de observação e ação era eliminada, todos passavam a ser observadores e atores. Na experiência de trabalho com o Teatro do Oprimido no Peru, Boal relata o estreitamento ainda maior com preocupações brechtianas na forma estética e política, na medida em que o esforço para a formulação de um teatro de conscientização – e sua atividade esteve ligada a uma trajetória de intervenção na educação – ganhava espaço, em detrimento das práticas geradoras de catarse e deleite apassivador. O espectador não delega poderes ao personagem para que atue nem para que pense em seu lugar: ao contrário, ele mesmo assume um papel protagônico, transforma a ação dramática inicialmente proposta, ensaia soluções possíveis, debate projetos modificadores: em resumo, o espectador ensaia, preparando-se para a ação real. (...) O teatro é uma arma e o povo deve manejá-la. (BOAL, 2005, p.182) O trecho elucida duas coisas, que contribuem para a hipótese de Boal como atualizador e continuador do método-Brecht. A primeira delas é a tese de que o fim é o começo, sendo o momento do espetáculo tão somente o primeiro momento de um despertar de consciência para a ação política futura. O teatro de Brecht não propunha a reflexividade como fim em si mesmo. Ao contrário, o caráter educativo e de suscitar pulgas atrás das orelhas espectadoras dava ao teatro brechtiano um caráter de extrapolação do momento da fruição e da própria arte, invadindo aquilo que era visto como o campo da política – comumente distante dos palcos. A segunda é a apropriação dos meios de produção teatral, e nesse sentido a contribuição de Augusto Boal é fundamental. A criação de técnicas e de uma poética que encaixasse com as questões do modo de viver e de resistir dos oprimidos e explorados implicava na apropriação por parte destes do fazer teatral. O conhecimento do próprio corpo, o estudo da realidade, a participação nos diferentes postos da produção artística eram parte disso. Boal sistematiza em etapas o caminho dessa apropriação dos meios de produção, que segue: PRIMEIRA ETAPA – Conhecimento do Corpo – Sequência de exercícios em que se começa a conhecer o próprio corpo, suas limitações e suas possibilidades, suas deformações sociais e suas possibilidades de recuperação; SEGUNDA ETAPA – Tornar o Corpo Expressivo – Sequência de jogos em que cada pessoa começa a se expressar unicamente através do corpo, abandonando outras formas de expressão mais usuais e cotidianas; TERCEIRA ETAPA – O Teatro como Linguagem – Aqui se começa a praticar o teatro como linguagem viva e presente, e não como produto acabado que mostra imagens do passado: PRIMEIRO GRAU – Dramaturgia Simultânea: os espectadores “escrevem”, simultaneamente com os atores que representam; SEGUNDO GRAU – Teatro-Imagem: os espectadores intervêm diretamente, “falando” através de imagens feitas com os corpos dos demais atores ou participantes; TERCEIRO GRAU – Teatro-Debate: os espectadores intervêm diretamente na ação dramática, substituem os atores e representam, atuam! QUARTA ETAPA – Teatro como Discurso – Formas simples em que o espectador-ator apresenta o espetáculo segundo suas necessidades de discutir certos temas ou de ensaiar certas ações. Exemplo: 1) 2) 3) 4) 5) 6) 7) Teatro-jornal Teatro invisível Teatro foto-novela Quebra de repressão Teatro-mito Teatro-engajamento Rituais e máscaras. (BOAL, 2005, p.188-189) Vários dos aspectos que observamos na poética-política do Teatro do Oprimido também podem ser identificados nos trabalhos de Brecht. Há, no entanto, uma diferença que dá ao seu trabalho o caráter de atualização. A possibilidade de organizar oprimidos para que eles mesmos emitam a voz, façam questões, ensaiem os seus problemas, escrutinando todas as possibilidades é praticamente a fusão entre palco e plateia. A meu ver o aprofundamento da quebra da quarta parede se dá através do Sistema Coringa1, do 1 Sistema através do qual todos os atores assumem todos os papéis. Cada cena é autônoma em relação às demais e pode assumir diferentes gêneros narrativos. Teatro-Fórum2, do Teatro Invisível3, e da incorporação do oprimido/explorado ao corpus dos atores em cena, que podem ser atores na cena de dentro e de fora da sala (ou rua, arena, o que seja) de teatro. Árvore do Teatro do Oprimido (BOAL, 2005, p.17) Conclusão A apresentação e a defesa feitas no texto são parte de um entendimento de que o fazer artístico referenciado entre os oprimidos e explorados, que trabalhe questões políticas e assuma filiação de esquerda – independente da linguagem – exige resistência cotidiana, na medida em que o discurso de obsolescência imposto ao teatro e à arte política tem efeito de bigorna, visto que esta arte ocupa um espaço pequeno no cenário em que a forma mercadoria engoliu dos pés a cabeça a maior parte das produções. Nesse sentido, Boal é uma ferramenta potente como organizadora coletiva em qualquer espaço de trabalho, estudo e moradia. Está para além dos espaços destinados ao teatro, porque pode se construir nas ruas, em sindicatos, escolas, em qualquer lugar. A crítica de uma apropriação distorcida da arte de Brecht também se estende ao método de Boal. Infelizmente eles não estão isentos de serem incorporados à lógica 2 O Teatro Fórum é uma poética política em que ao final da peça ou cena apresentada é perguntado ao público se existem opressores e oprimidos, e se é possível mudar a situação exposta. Os espectadores assumem o lugar dos atores para encenar a sua proposta. Tida por Boal como a forma mais democrática do fazer teatral, funciona como uma assembleia cênica. 3 O Teatro Invisível é uma poética política através da qual os atores encenam em lugares públicos de grande movimentação sem que os espectadores saibam que aquilo é teatro. A prática incita o envolvimento dos espectadores como no Teatro Fórum, mas de forma espontânea, como se fosse (e é) uma situação da realidade. mercadológica. Se o estranhamento de Brecht é usado pela publicidade, como gosta de lembrar Schwarz, a apropriação de Boal por seções de Recursos Humanos em indústrias para apaziguar os conflitos entre capital e trabalho também existe. Cabe aos novos grupos e atores a permanente disputa pela localização de esquerda dos autores, bem como a continuidade do desenvolvimento e do conhecimento do fazer teatral dialético, ao que Boal propõe: A ação dramática esclarece a ação real. O espetáculo é uma preparação para a ação. (BOAL, 2005, p.237) Bibliografia BOAL, Augusto. Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. CARVALHO, Sérgio de. Introdução ao teatro dialético: experimentos da Companhia do Latão. São Paulo: Expressão Popular, 2009. COSTA, Iná Camargo. Teatro e revolução nos anos 60. In: Sinta o drama. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998. __________________. Prólogo. In: JAMESON, Fredric. Brecht e a questão do método. São Paulo: Cosac & Naify, 2013. ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. São Paulo: Perspectiva, 2008. SCHWARZ, Roberto. Altos e baixos da atualidade de Brecht. In: Sequências Brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.