Cor O estudo da cor dos monumentos medievais em Portugal é uma área praticamente virgem, a merecer um trabalho minucioso de levantamento e análise de vestígios de policromia ou bicromia 1 . A necessidade de um estudo desta natureza foi-me suscitada pelas fotografias de Mário Novaes dos edifícios românicos portugueses, que acompanham o livro de Joaquim de Vasconcellos, V, A Arte Românica em Portugal, Lisboa, publicado em 1918. Aí surpreendem-se inúmeros monumentos dotados de três tipos de aplicação “cor”: revestidos a cal, escondendo pelo exterior todos os seus paramentos, o que deverá ter acontecido em muitos dos casos e na época da edificação, especialmente entre os edifícios sem silharia regular e de dimensões mais modestas; a existência de ornamentação exterior pintada, nomeadamente nos tímpanos; e, no interior, a profusa decoração que ali foi sendo aplicada e mantida, sem rebuço, até ao século XX, antes dos restauros da DGEMN. S. Cláudio de Nogueira. Portal sul de Bravães, c. 1918 (foto Mário Novaes). 1 - Cf. CAETANO, Joaquim Inácio, “Revestimentos da imitação da pedra em Évora ou o gosto pela arquitectura erudita”, Monumentos, 26, 2007, pp.174-179. Para o estudo das policromias medievais em monumentos, é imprescindível a consulta a AA.VV. (VERRET, Denis, e STEYAERT, Delphine, dir.), La couleur de la Pierre. Polychromie des portails gothiques, Actes du Colloque, Amiens 2000, Amiens. Picard/ARPP, 2000. As imagens, naturalmente, falam por si. Mas distingue-se um edifício com uma “vida” que se desvaneceu por completo, e por vezes, ou quase sempre, sem razão, apenas porque uma segunda vaga de critérios restauradores, com raízes no século XIX, considerava qualquer revestimento que retirasse à pedra – e só à pedra – o seu protagonismo, seria algo espúreo, até por reacção erudita à “popularidade” das caiações e pinturas. Travanca, c.1918. Portal principal (foto Mário Novaes). Ora, é hoje bem sabido que a maior parte dos monumentos dos séculos XII e XIII possuíam pinturas nos capitéis do interior e, eventualmente, nos portais exteriores. Não que fosse universal este tratamento e, decerto, de região para região haveria diferenças de gosto, e até limitações forçadas pela necessidade de economizar meios, sendo que os pigmentos eram, geralmente, caros. Referi já, porém, quando analisei o Apocalipse de Lorvão 2 , de finais do século XII, a intensidade cromática do livro (mesmo que cingindose a quatro cores de tonalidades extremas ou próximas e aproximando-se da bicromia (branco, negro, vermelho, vermelho-laranja e dourado). Mas, mesmo em bicromia, com realces para as partes constituintes da escultura ornamental (panejamentos, coroas, fíbulas e cintos, com dourados ou ocres) e para as carnações das imagens mais reconhecíveis), é quase certo que muitas igrejas contassem com uma riqueza cromática, hoje ignorada, e com um consequente ganho de expressividade. Apenas podemos ter uma ideia vaga, mas aproximada – e não 2 - Ver Parte 1, Capítulo 1. comprovada, por enquanto –, de um potencial uso da cor e do seu efeito, por via de campanhas mais recentes, algumas do século XVI, ou ainda mais tardias. Portal principal de Bravães, c.1918 (foto Mário Novaes). Mas não deixam de ser iminentes traços de uma realidade pretérita, que se esfumou com o tempo, e que tinha a ver com a materialidade (com a cultura material, para ser mais preciso) de uma Idade Média para a qual a cor sempre foi um aspecto de valorização e de representatividade, senão mesmo com conteúdos simbólicos (que é, também, como quem diz, heráldicos) extremamente importantes. S. Pedro de Rates, c. 1918. Interior (foto Mário Novaes). Para avaliar do impacto destes revestimentos cromáticos 3 , a pálida imagem que nos é dada pelos arcos triunfais multicolores de algumas igrejas “românicas” é bem capaz de ser a justa medida de uma possível restituição. Arco triunfal da Igreja Matriz de Arões (foto arquivo Alfa). 3 - Pelos estudos já efectuados em cerca de meia centena de portais pintados, sabe-se que os pigmentos usados seriam relativamente banais, evitando-se ao máximo os pigmentos dispendiosos como o denominado “azul ultramarino” ou a “folha de ouro” e de prata”. Os que foram usados na Catedral de Amiens são os seguintes: azuis: azurite, lápis-lazúli (axul ultramarin) e um pigmento não identificado; vermelhos: laca, minium, ocre vermelho, vermelhão de cinábrio; verdes: malaquite, resiansto de cobre; verde de cobre; amarelos: amarelo de estanho; “massicot” e ocre amarelo. (PALLOT-FROSSARD, Isabelle, “Polychromies des portails sculptés médiévaux en France”, La couleur de la Pierre. Polychromie des portails gothiques (VERRET, Denis, e STEYAERT, Delphine, dir.), Actes du Colloque, Amiens 2000, Amiens. Picard/ARPP, 2000. Ornamentação geométrica policroma, aplicada sobre os elementos pétreos em igrejas “românicas”. Manutenção de uma primeira forma, ou arranjo tardio do período barroco? À esq., arco triunfal da Igreja Matriz de Sernancelhe; à dir., arco triunfal da Igreja de S. Salvador de Arnoso (fotos arquivo Alfa). Há que mencionar ainda as protecções de juntas que tendem a regularizar visualmente o aparelho, seja no interior, seja no exterior dos edifícios. O uso deste dispositivo de nobilitação da arquitectura não se destinava apenas à protecção dos materiais. É, aliás, um facto comprovado entre nós, cabendo à Sé de Évora (por fora e por dentro) e ao Mosteiro dos Jerónimos (no interior do templo), o estatuto de exemplos maiores. S. Pedro de Rates, fachada norte, c.1918 (foto Mário Novaes). Sé de Évora, interior. Tratamento de cal para regularização das juntas. O mesmo se passa quanto às superfícies ditas de sacrifício, ou seja, as denominadas “aguadas”, que eram aplicadas com o intuito de unificarem a aparência de um edifício onde por vezes conviviam diferentes tonalidades de pedra, prática que decerto se iniciou muito cedo e se perpetuou até ao século XVII, pelo menos. Igreja de S. Francisco de Évora. Exterior (foto DGEMN). Já no caso de S. Francisco de Évora, para referir o mais saliente de todos, contém, pelo interior e pelo exterior, rebocos nas paredes, onde foram aplicadas barras ortogonais de cal para imitação da estereotomia da pedra. Interior da Igreja de S. Francisco de Évora (seg. DGEMN). Joaquim Inácio Caetano alerta para este facto, assim como para as imagens obtidas ainda hoje, na “apresentação” de edifícios como estes: “Quando as paredes dos edifícios não eram constituídas por um aparelho regular, a solução encontrada foi a aplicação de um reboco que o escondesse e que, simultaneamente, pudesse proporcionar uma leitura semelhante à do aparelho regular. É assim que aparecem os revestimentos de imitação da estereotomia da pedra. São rebocos tradicionais que, utilizando a técnica do esgrafito, criando, portanto, contrastes cromáticos e diferenças de planos, imitam um paramento de blocos de pedra com as juntas refechadas, com massas brancas, num plano mais saliente que o da pedra, isto é, mais próximo do observador, (…) É difícil avaliar com rigor desde e até quando se fizeram estes revestimentos em Évora. No entanto, os da Igreja de São Francisco e da Casa de Garcia de Resende foram refeitos na última década. Este facto é importante na abordagem desta questão, pois um reboco, além da sua eventual função decorativa, tem como primeira função proteger. Isto significa que, quando deixa de ser eficaz como capa protectora, tem que ser reparado. Foi o que aconteceu com estes exemplares, não sendo a sua actual expressão visual resultado de um gosto mais ou menos recente.” 4 . Exterior da Igreja de S. Francisco de Évora (seg. DGEMN). Exemplos em que a cor se encontra ausente reportam-se, na maioria das vezes, a efeitos de paragone, i.e., de comparação entre pintura e escultura, sempre que esta se sobrepõe em mestria, ou pretende fazê-lo. A marca desta discriminação positiva da 4 - CAETANO, 2007, pp.176-177. escultura é logo constatável num dos primeiros portais historiados medievais portugueses com imagens autónomas: o portal axial da Sé de Évora. Portal principal da Sé de Évora. A sua instalação – ou melhor, a execução das estátuas e a sua colocação nas peanhas do portal – remonta ao século XIV, e é certo que ocorreu durante o governo do Bispo D. Pedro II (1322-1340). Este conjunto de imaginária acaba por concentrar o significado essencial de cada catedral através da escultura de vulto, dando expressão visual às Escrituras: "Já não sois hóspedes nem peregrinos, mas sois concidadãos dos santos e membros da família de Deus, edificados sobre o alicerce dos Apóstolos e dos Profetas, com Cristo por pedra angular" (Efésios, 2, 19-20). Fruto de um programa intencional, esta série escultórica repõe a questão da interpretação da catedral como evocação da Cidade Celeste ou do Reino dos Céus, inundado de luz (na expressão de Sedlmayr), ou como lugar único de encontro com a espiritualidade ou a desmaterialização, segundo von Simson. Ora, as imagens oferecem uma coerência estilística assinalável, e tudo leva a crer que tenha aqui sido dominante uma oficina, instalada em Évora, que usou o belíssimo mármore de Estremoz como matéria-prima para muitas das suas esculturas. Seja como for, a valorização do “mármore” e do trabalho do escultor encontra-se sublinhada pelo contraste dos fustes marmóreos das colunas e pela brancura das estátuas, quer as das jambas do portal, quer as que se encontram (S. Pedro e S. Paulo) na esquina do portal, de cada lado do vão. A intenção foi, mesmo, a de promover uma valorização da “pedra à vista” por contraste com as imagens habitualmente pintadas e estofadas que se encontram nos altares interiores – e não faltam exemplos à Sé de Évora de imagens polícromas, porventura do mesmo autor das estátuas do portal…. É este o caso de uma valorização absoluta do material através da cor, do mesmo modo que uma hierarquia cromática se observa na pintura: assim acontece com as figuras em grisaille patentes nos batentes exteriores do tríptico do Baptismo de Cristo, atribuível a Quentin de Metsys (ou a Eduardo o Português) Um caso excepcional, não propriamente pela sua qualidade plástica absoluta, mas antes pela informação que nele consta e que bem ilustra a importância do cromatismo e da programação sistemática da cor nos templos, é o Retábulo da Capela dos Ferreiros, em Oliveira do Hospital, obra atribuída a Mestre Pêro. Vista exterior e interior da Capela dos Ferreiros da Igreja de Santa Cruz, matriz de Oliveira do Hospital (c.1341), antes dos restauros (seg. DGEMN). Estamos perante a instituição privada de uma capela para fins funerários, materializando precocemente uma intenção que a partir do século XIV se difundirá e entrará em voga. De facto, a Capela dos Ferreiros na Igreja Matriz de Oliveira do Hospital foi instituída muito provavelmente por volta de 1341 5 . Trata-se de uma pequena construção rectangular coberta por uma abóbada de berço quebrado, destinada a acolher os túmulos de Domingos Joanes e Domingas Sabanchais, seus instituidores. O mobiliário desta capela inclui uma estátua equestre e um retábulo – que é o que aqui nos interessa –, ambos atribuídos ao aragonês mestre Pêro, bem como os túmulos com jacentes apresentados em decúbito lateral direito. A estátua, única no seu género, verdadeiro “monumento equestre”, representa um cavaleiro em armadura com os arreios de equitação e maça de armas, destinado a parada militar, armado de um escudo com a 5 - A datação é incerta, mas parecem correctas as conclusões que Mário Barroca retira da leitura da lápide fundacional entretanto desaparecida, corrigindo a data nela constante (“1279”) segundo uma leitura feita por Coelho Gasco no século XVII (publicada tardiamente em 1805), dando-a como um erro no registo dos numerais, pelo que se deve aceitar a data de conclusão como sendo 1341. Sobre a Capela dos Ferreiros, cf. CORREIA, Vergílio e GONÇALVES, A. Nogueira, Inventário Artístico de Portugal, Vol. IV, Distrito de Coimbra, Lisboa: Academia Nacional de Belas Artes, 1953, pp.156-157 e, especialmente, para a datação, BARROCA, Epigrafia Medieval Portuguesa, Lisboa, FCG, 2000, vol. II, tomo 2, pp.1627-1632. O conteúdo desta capela foi recentemente discutido em pormenor por RODRIGUES, 2011, pp.314-321. heráldica familiar de flores-de-lis, numa autêntica passagem a três dimensões das representações senhoriais dos selos medievais, sublinhando de forma inequívoca o carácter ideal da cavalaria, tanto mais ideal quanto esta família seria, como já salientou José Mattoso, de nobreza recente (podendo ter andado envolvida nas lutas internas do período dionisino) 6 . Cavaleiro da Capela dos Ferreiros (MNMC), com reconstituição da policromia perdida do escudo de armas, “de azul, e aspa de prata acompanhada de quatro flores-de-lis de ouro”. Retábulo da Capela dos Ferreiros, antes dos restauros (c.1340?) (seg. DGEMN). Por parte de Joanes, trata-se de assumir o seu carácter de condottieri, de chefe militar, capacitado para as façanhas que tomou por suas 7 , e com meios para instruir um programa arquitectónico, dos raros, de raiz, desse longínquo período, levado a cabo de forma global. A capela, a estátua, os túmulos – encomendados àquele que era o mais importante artista da região centro – e o edifício, que supomos pensado e idealizado por mestre Pêro, 6 - Cf. MATTOSO, José, Madre de Deus, catálogo do núcleo da Madre de Deus, XVIIª Exposição de Arte, Ciência e Cultura, Lisboa, 1987, nº 4.4.2.3. Sobre este assunto, de resto associado a outro desacerto de datas, cf. ALMEIDA e BARROCA; op. cit., pp.204-205, atribuindo a 1341 a feitura do retábulo, data que considero demasiado tardia, inclinando-me para a década anterior - isto se forem de facto devidas a Mestre Pêro as obras escultóricas do conjunto. 7 - Jorge Rodrigues avança a sedutora hipótese, com bons argumentos, de a estátua equestre celebrar os feitos de Domingos Joanes na Batalha do Salado: “A singularidade desta representação (…) bem como o facto de estarmos em presença de um cavaleiro hospitalário morto em 1341, levam-nos a formular uma outra hipótese: a sua apresentação na forma de uma estátua equestre poderá estar ligada a um feito guerreiro verdadeiramente excepcional – como excepcional é esta figuração – podendo Domingos Joanes ter sido um dos cavaleiros hospitalários que, sob o comando de Álvaro Gonçalves Pereira, e graças ao milagre que o prior do Crato protagoniza ao arvorar a relíquia do Santo Lenho, se cobriram de glória na vitória cristã da batalha do Salado, em 1340; o que justificaria não só o orgulho na afirmação da sua linhagem, com a construção da capela-panteão dos Ferreiros, mas também a afirmação das suas heróicas qualidades guerreiras – que emulavam, afinal, as dos romances de cavalaria – tornadas evidentes na orgulhosa efígie de cavaleiro que deixa para a posteridade” (RODRIGUES, 2011, pp.319-320). destinavam-se a proceder a uma actualização da linguagem artística de modo a tornar o novo edifício e o seu conteúdo num objecto de propaganda neo-senhorial. Eis o que poderá explicar a representação, no retábulo, dos doadores e patrocinadores da capela ao lado da imagem de Cristo Crucificado, presença extensível à “corporalidade” dos túmulos. Fora de série haveria, de ser, claro, o retábulo. Tudo nele é exagerado, expressionista, simbólico, concentradamente simbólico. E denso. Trata-se de uma estrutura banal, até certo ponto, mas transfigurada pela urgência de transmissão de uma mensagem arquitectónica do novo modo: o gótico. O retábulo é definido por um arco apontado abatido – um largo arco de “quinto ponto” segmentado ao nível da raiz – com o ápice soerguido numa contracurva pronunciadíssima, que gera uma mísula onde assenta uma estátua da Virgem (ali colocada posteriormente, não sendo essa a sua posição original). Trata-se de Nossa Senhora da Graça (ou da Expectação), acentuadamente portadora da linguagem do gótico no jogo de proporções, no pregueado ondulante da túnica e na acentuação invulgar do gesto da mão direita em saudação, com os dedos significativamente longos, posição que tem um valor iconológico e que conjuga o “estilo” com o símbolo gestual. Retábulo da Capela dos Ferreiros, antes dos restauros (c.1340?). Em baixo, em pronunciado relevo, encontra-se, ao centro, a imagem da Virgem com o Menino, que aqui reitera o tema do coroamento, ladeada por duas figuras em escala mais reduzida: à sua esquerda, um homem maduro de barbas, túnica e manto com as mãos postas e a cabeça dirigindo o olhar para a imagem da Virgem; à esquerda da Virgem, vê-se uma mulher de mãos postas, igualmente dirigindo a sua atenção para a Virgem. Ao fundo, um sol radiado e um disco com crescente lunar compõem o céu. De cada lado, em escala reduzida, dois anjos ceriferários agitam os turíbulos que balançam no ar. Fecham este quadro, nos extremos do retábulo, botaréus góticos, com o primeiro corpo encimado por um gablete triangular, continuando daí para cima num pináculo com cogulhos vegetalistas. Grandes – enormes – enrolamentos de vegetação, dois em cada vertente do arco, rematam a composição. Acresce que este retábulo é inteiramente policromado – ou melhor, mantém, como poucos, a policromia, que não parece ter resultado de avivamentos espúrios. Retábulo da Capela dos Ferreiros, antes dos restauros (c.1340?): esquema reconstituindo a distribuição da policromia. E assim se surpreende a forma de realce da arquitectura gótica através da cor: um debruado dourado nos botaréus vermelhos, pináculos vermelhos com pequenos cogulhos pintados de verde-montanha com pintas douradas nos extremos florais. Os grandes cogulhos que se abrem de forma vigorosa para cima, sobre o arco, são igualmente pintados de verde, bem como os seus caules, que seguem a curvatura desse arco, com as flores douradas a pontuá-los. O arco contracurvado, bem como as modenaturas, superfícies arquitectónicas e a mísula da grande imagem da Senhora, são pintados de um vermelhão bem acentuado com apontamentos geometrizantes. O impacto destas peças na Capela dos Ferreiros ainda hoje impressiona. Pela sua dimensão, vitalidade escultórica exacerbada, ultrapassando os cânones do gótico internacional, acabam por assumir um localismo extremo. Não custa admitir outros apontamentos policromos estenderem-se à abóbada e, certamente, reflectindo nos fortes brilhos das alfaias que, em dias de festa e celebração, seriam descobertos, expostos e manipulados na ritualização da homenagem dos patrocinadores. O que aqui vemos é, também, na minha opinião, um resumo, um concentrado de muito do que se desvaneceu do gótico e da Idade Média: a intensidade cromática, o gosto exibicional, a riqueza insistente, a verdadeira imposição de um esquema que pretende ser mais verdadeiro do que a realidade, ou que não interessa enquanto realidade, mas sim enquanto manifestação da realidade corpórea das coisas. Essa realidade corpórea das coisas – dos arcos, das imagens, das folhas – é a prova de uma concepção da espiritualidade que implica uma natureza criada representada a partir de sinais amplificados. O gótico é isto mesmo. Assim, o arco e os pináculos, ataviados como autênticas grinaldas, confirmam a natureza “naturante”, a conciliação “vegetal” da arquitectura, ou da arquitectura como consequência das coisas criadas, sem ser mais, nem ser menos, por ser obra do homem. A inscrição do retábulo é, a este respeito, inequívoca: “Deus he grande”. Um exemplo posterior do mesmo uso da policromia é-nos oferecido pelo que desta se mantém, de forma vestigial, no Mosteiro da Batalha. Aqui, os arcos e arquetes das capelas funerárias encontram-se revestidos a vermelhões e dourados, sublinhando, como que em pauta, as modenaturas, e conferindo ritmo e uma atmosfera de douradura ao interior destes espaços consagrados. Nada foi deixado ao acaso, e os elementos heráldicos serão os que em primeiro lugar foram pintados. Bicromia na Capela do Fundador do Mosteiro da Batalha (fotos Saúl Gomes).