0 TIAGO DE OLIVEIRA LUCAS O USO DE TEXTOS PARAFILOSÓFICOS NO ENSINO MÉDIO: INTRODUÇÃO PARA UM PENSAR FILOSÓFICO CANOAS, 2012 1 TIAGO DE OLIVEIRA LUCAS O USO DE TEXTOS PARAFILOSÓFICOS NO ENSINO MÉDIO: INTRODUÇÃO PARA UM PENSAR FILOSÓFICO Trabalho de conclusão apresentado a banca examinadora do curso de Filosofia do Centro Universitário La Salle – Unilasalle, como exigência parcial para obtenção do grau em Licenciado em Filosofia. Orientação: Prof. Dr. Luis Evandro Hinrichsen CANOAS, 2012 2 TIAGO DE OLIVEIRA LUCAS O USO DE TEXTOS PARAFILOSÓFICOS NO ENSINO MÉDIO: INTRODUÇÃO PARA UM PENSAR FILOSÓFICO Trabalho de conclusão apresentado a banca examinadora do curso de Filosofia do Centro Universitário La Salle – Unilasalle, como exigência parcial para obtenção do grau em Licenciado em Filosofia. Aprovado pela banca examinadora em 05 de julho de 2012. BANCA EXAMINADORA: ________________________ Prof. Dr. Luis Evandro Hinrichsen Unilasalle ________________________ Prof. M.e. Gilmar Zampieri Unilasalle ________________________ Prof: M.e. Itacir Antônio Gasparin Unilasalle 3 RESUMO Investigaremos abordagem pedagógica que – pensamos – inédita de introdução da Filosofia no ambiente escolar. O pensar filosófico, segundo Gerd A. Bornheim desenvolve-se em três etapas, ou seja, a admiração ingênua, o comportamento dogmático, a experiência negativa e a sua superação pela conversão filosófica. A falta de efetiva cultura filosófica escolar inibe o desenvolvimento de um pensar crítico e reflexivo, impedindo elaboração de metodologias adequadas ao ensino de Filosofia em nosso país. O diálogo pedagógico, através de textos parafilosóficos ou textos filosóficos selecionados estrategicamente, acreditamos, poderá estimular e despertar o interesse de nossos alunos, oportunizando vivências significativas, debates e autêntico exercício filosófico. Contudo, essa metodologia deve ter como pressuposto expandir e aprofundar a visão de mundo dos alunos. Dessa forma, depois de iniciado no exercício filosófico, portador de experiências filosóficas significativas, poderá trabalhar autônoma e rigorosamente obras filosóficas, na direção de estudos críticos, produtivos e transformadores. O que, por sua vez, resultará em uma transformação do indivíduo. Palavras-chave: Filosofia. Ambiente escolar. Pensar filosófico. Admiração ingênua. Dogmatismo. Experiência negativa. Textos parafilosoficos. Criticidade. Transformação. Reflexão. 4 ABSTRATCT Investigate pedagogical approach that - we think - an unprecedented introduction of philosophy in the school environment. The philosophical thought, according to Gerd A. Bornheim develops in three stages, ie, the admiration naive, dogmatic behavior, the negative experience and their philosophical overcoming the conversion. The lack of effective school philosophical culture inhibits the development of a critical and reflexive thinking, preventing development of methodologies appropriate to the teaching of philosophy in our country. The educational dialogue through texts or philosophical texts parafilosóficos selected strategically, we believe, will stimulate and arouse the interest of our students, providing opportunities for meaningful experiences, debates and genuine philosophical exercise. However, this methodology should be to expand and deepen understanding the worldview of students. Thus, once initiated in philosophical, philosophical significant carrier experience, can work autonomously and strictly philosophical works in the direction of critical studies, productive and transformers. This, in turn, result in a change of the individual. Keywords: Philosophy. School environment. Philosophical thinking. Naive admiration. Dogmatism. Negative experience. Texts parafilosoficos. Criticality. Reflection. Transformation. 5 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ............................................................................................ 6 2 PENSAR FILOSÓFICO ............................................................................... 7 2.1 Idéia geral ................................................................................................... 7 2.2 Admiração ingênua ................................................................................... 8 2.3 Comportamento dogmático....................................................................... 10 2.4 Experiência negativa.................................................................................. 12 2.5 Conversão filosófica.................................................................................. 13 3 METODOLOGIA DE FILOSOFIA NO BRASIL E DIÁLOGO...................... 15 3.1 Um breve panorama................................................................................... 15 3.2 Maiêutica e diálogo.................................................................................... 18 3.2.1 Maiêutica ..................................................................................................... 18 3.2.2 Diálogo......................................................................................................... 21 4 PROPOSTA DE ENSINO DE FILOSOFIA ................................................. 23 4.1 Dificuldades de compreensão de um texto filosófico ........................... 23 4.2 Prática ........................................................................................................ 25 4.2.1 Aplicação ..................................................................................................... 27 5 CONCLUSÃO............................................................................................... 29 REFERENCIAS............................................................................................ 30 APÊNDICE A – Plano de aula ................................................................... 31 APÊNDICE B – O Pequeno Príncipe (Resumo) ....................................... 32 APÊNDICE C – Aplicação .......................................................................... 34 ANEXO A – Mito da Caverna ..................................................................... 35 6 1 INTRODUÇÃO Nosso trabalho investigativo procurará discutir o cenário no qual se desenvolve a prática pedagógica do ensino de Filosofia no Brasil, notadamente no ensino médio, cenário carente de metodologias adequadas, de desinteresse para com a disciplina, ou seja, a inexistência de cultura favorável ao ensino e vivência da Filosofia. Por que o processo ensino-aprendizagem de Filosofia no ensino médio nas escolas brasileiras enfrenta resistências e, parece-nos, ineficaz? Existe metodologia que possa ajudar-nos no enfrentamento do problema? Acreditamos que, tanto o despreparo docente quanto a continuada ausência da Filosofia nos currículos de ensino médio contribuíram, enormemente, para o descrédito de nossa disciplina. Mas, quando trabalhamos, gradativa e adequadamente, textos parafilosóficos1 e textos filosóficos criteriosamente selecionados, a resposta discente, demonstra nossa experiência, é positiva. No segundo capítulo procuraremos descrever como se desenvolve a construção de um pensar filosófico segundo Gerd A. Bornheim. No terceiro capítulo, trabalharemos as dificuldades que os educadores encontram no desenvolvimento de uma metodologia para o ensino de Filosofia. Ainda, nesse capítulo, proporemos o uso de textos parafilosóficos introdutórios ao pensar filosófico considerando as necessidades do ensino médio. Sendo assim, no quarto capítulo procuraremos exemplificar praxicamente como podemos usar textos parafilosóficos. Nosso trabalho trata de questão importante que merece atenção de todos, até para que a presença da Filosofia nos currículos do ensino médio seja efetiva e perdure. Sabemos que existem outras propostas, mas, a nossa nasceu das vivências do estágio, quando fomos desafiados pelas exigências de nossos estudantes. E, não apenas nossa abordagem revelou-se satisfatória, como descobrimos quão significativa pode ser para professor e jovens estudantes a descoberta do mundo do texto, da cultura filosófica e das possibilidades transformadores que a iniciação no exercício do pensamento possibilita. Todos ganhamos em criticidade e, o mais importante, em humanidade. 1 Por textos parafilosóficos compreendemos, por exemplo, textos literários que suscitem indagações e debates filosóficos, encaminhando o amadurecimento reflexivo e a capacidade de leitura e interpretação de textos e vida. 7 2 PENSAR FILOSÓFICO No segundo capítulo investigaremos o pensar filosófico. Utilizaremos, para tanto, o livro de Gerd Bonrnheim Introdução ao Filosofar, que possibilitará entender como e porque um indivíduo lança-se ao exercício da Filosofia, qual é a causa inicial de um pensamento filosófico, o primeiro impulso do filosofar. Compreender a estrutura de um pensamento filosófico permitirá ver com mais clareza os problemas que serão abordados no desenvolvimento deste trabalho e, também, servirá de base para construção de uma interpretação cognitiva das obras filosóficas. O autor trabalhará uma ideia chave de seu livro, o impulso ao filosofar que denominamos por admiração ingênua. A admiração ingênua, ponto de partida do filosofar, portanto, será objeto de nosso estudo. No decorrer do trabalho aprofundaremos melhor a questão da admiração ingênua e, posteriormente examinaremos o comportamento dogmático. O comportamento dogmático, que segue à admiração ingênua caracteriza-se por ser dogmático, absoluto, fechado. Bornheim indica, igualmente, que um processo de ruptura (fissura) denominado experiência negativa, será superado, apenas, através da conversão filosófica. A conversão filosófica é a plenitude do processo filosófico, do pensamento crítico e reflexivo. Gerd Bornheim indaga as razões que levaram cada filósofo a filosofar?2 Do mesmo modo, procurará identificar em cada indivíduo o processo, ou melhor, as condições existenciais do ato filosofar. 2.1 Ideia geral A partir do existencialismo3, abordará a questão original do ato de filosofar. Ele trará à luz dos seus estudos a problemática do tema e fundamentará na existência humana, a posição de uma atitude de ação crítica frente à realidade, pois 2 3 Em especial os filósofos existencialistas. Existencialismo: designação vaga de várias tendências filosóficas que enfatizam alguns temas comuns, como o indivíduo, a experiência da escolha e ausência de uma compreensão racional do universo- com o consequente temor ou sentimento do absurdo da vida humana. Essa combinação sugere um tom e um estado de espírito emocionais, em vez de um conjunto de teses dedutivamente relacionadas entre si; o existencialismo de fato atingiu seu apogeu na Europa com desencanto que se seguiu à Segunda Guerra Mundial. No entanto, o primeiro pensador importante a trazer à luz esses temas foi Kierkegaard, cuja obra é, em geral, considerada fundadora do existencialismo. As obras existencialistas, por um lado, reagem contra o ponto de vista de que o 8 [...] quem se resolve ou se sente condenado a fazer filosofia, assume, pelo simples fato dessa resolução, uma certa responsabilidade, um compromisso que, como todo compromisso, impõe determinadas condições, quais coincidem e ao mesmo tempo transcendem o que possa haver de arbitrário e irredutível compromisso com a natureza da filosofia, o que vale dizer: com o próprio sentido do real e de sua verdade. A autenticidade não só de uma filosofia, mas também a de uma vida filosófica, dependem de sua fidelidade ao real. O estudo da consciência filosófica, desde a sua etapa ingênua e pré-filosófica até o despertar para o problema do sentido da realidade, acompanhando as etapas básicas e necessárias de seu desenvolvimento, é o que se propõe, mais especificamente, o autor destas páginas. (BORNHEIM, 1978, p. 4). No decorrer da obra, Bornheim tem uma preocupação em evidenciar a importância com a história da filosofia, porém, não pretende ele “dissolver a problemática da atitude filosófica inicial em alguma modalidade de relativismo, afogando a questão nas brumas da história.” (BORNHEIM,1978, p. 5). Daí, o autor perseguirá outros caminhos para trilhar seu itinerário na busca do preceito de um filosofar originário. Contudo não abrirá mão da história para alicerçar sua trilha e põe em relevo Karl Jaspers que propõe três atitudes básicas para quem pretende desenvolver o pensamento filosófico, são elas a admiração, a dúvida e a insatisfação moral. É, porém, na admiração que se dá abertura ao real. Ao privilegiar a admiração, Bornheim não desprezará as outras duas fontes do filosofar. 2.2 Admiração ingênua Na admiração ingênua o indivíduo ficaria submerso em sua relação com o mundo, e isto poderia ser considerado comportamento dogmático. O sujeito se confundiria com o próprio mundo, não tendo distanciamento do mundo. A admiração seria a primeira abertura, o momento em que o homem se depara com a realidade que o transcende, sendo que esta transcendência é algo que apenas supera a realidade limitada pelo senso comum. O primeiro contato com a realidade põe universo é um sistema fechado, coerente e inteligível; e, por outro, veem a contingência daí resultante como um motivo de consternação. Perante um universo indiferente, somos de novo postos face a face com a nossa própria liberdade. Agir com autenticidade é, então, é agir à luz do horizonte de possibilidades que o mundo oferece. Diferentes autores, ainda que unidos na importância que dão a estes temas, formularam sistemas éticos e metafísicos muito diferentes. Em Heidegger, o existencialismo transforma-se numa ontologia escolástica: em Sartre, numa exploração dramática de momentos de escolha e tensão; com os teólogos Barth, Tillich e Bultmann, é um instrumento de reinvenção das relações entre as pessoas e Deus. O existencialismo nunca criou raízes fora do continente europeu, e muitos filósofos manifestaram dúvidas quanto a certas preocupações existencialistas, como a relativa ao ser e ao não-ser ou ainda quanto ao tem libertista de suas análises do livre-arbítrio. (BLACKBURN, Simon. Dicionário Oxford de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.). 9 questões a serem resolvidas ao longo da caminhada filosófica, entretanto, a realidade percebida nem sempre é boa, e a admiração também pode se transformar numa atitude antiadmirativa, ou pessimismo. O pessimista é aquele que não sente admiração porque não quer, ou porque não pode. Segundo Bornheim (1978, p. 22): A marca precípua deste pessimismo ingênuo é um comportamento afetado de uma desconfiança básica e, portanto, profundamente negativo diante da realidade. Ora na admiração ingênua nós encontramos exatamente o oposto. Se o pessimismo é uma recusa ao real, a admiração é a semente que começa a reconhecer um sentido neste mesmo real. Se o pessimismo é a vontade que teima sobre si própria, na admiração brota o primeiro gesto de abertura do homem para uma realidade que o transcende. Essa abertura percebida pela admiração faz o homem continuar a viver no mundo, no entanto, sem crer que é apenas mais um elemento de seu engenho. Dessa forma, sem uma maior apuração epistemológica, o sujeito está no mundo e consegue cultivar sua individualidade. Nesse momento, o sujeito não terá mais como voltar à realidade antes vislumbrada, pois o processo já se iniciou, o dar-se conta da realidade é progressivo e as ideias prévias de realidade tornam-se rasas para o um entendimento mais ampliado. Aquela verdade antes aceita começa a ser diluída. A continuidade do processo de abertura, principiado pela admiração, acabará por excluir o homem do mundo que ele acreditava pronto e organizado. Para chegarmos à plenitude da admiração ingênua é necessário observar que a característica da “admiração ingênua é a afirmação, compreendida como abertura, do outro como outro”. (BORNHEIM, 1978, p. 24), claro que para isso é necessário o fundamento da consciência4, o que torna a consciência fundamental à admiração ingênua. Nesse 4 Possivelmente a fonte de problemas mais penetrante de roda a filosofia. Nossa própria consciência parece ser o fato mais básico com que nos confrontamos: no entanto, é quase impossível dizer o que é a consciência. A minha consciência é igual a sua? Nossa consciência é igual a dos animais? Será que as máquinas podem vir a ter consciência? É possível existir consciência incorpórea? Sejam quais forem os complexos processos biológicos e neurais que ocorrem nos bastidores, é a minha consciência que me oferece o palco para minhas experiências e pensamentos, no qual sinto meus desejos e formo minhas intenções. Mas como posso então conceber o “eu” que é o espectador desse teatro? Uma das dificuldades em pensar sobre a consciência consiste no fato de seus problemas não parecerem ser científicos. Leibniz comentou que mesmo que pudéssemos construir uma máquina capaz de pensar e sentir, e a fizéssemos do tamanho de um moinho, para assim podermos examinar o trabalho de suas partes tão minuciosamente quanto quiséssemos, não encontraríamos a consciência (Monadologia, par.17) concluindo por isso que a consciência reside em objetos simples e não em objetos complexos. Mesmo que estejamos convencidos de que a consciência emerge de alguma maneira da complexidade do funcionamento do cérebro, podemos ainda assim nos sentir desconcertados por não saber como isso acontece, ou porque acontece precisamente dessa maneira. A natureza da experiência consciente é o maior obstáculo ao fisicalismo, ao behaviosimo e ao funcionalismo na filosofia da mente: segundo seus adversários, só se pode acreditar em todas essas perspectivas se se fingir estar num estado permanente anestesia. 10 sentido, a subjetividade é dialética entre a consciência de si, natural, e a projeção do rela, fora de si, dado espontâneo do existir. Gerd, a respeito da dialética da consciência, afirma A consciência revela-se, assim, como o pressuposto fundamental, fundante, de todo ato admirativo. E assim como o sentimento de distância, por outro lado, não menos presente, está o sentido de heterogeneidade, o reconhecimento do outro como outro. (BORNHEIM, 1978, p.28) Contudo, destacamos a grande importância da admiração ingênua para o desenvolvimento de um pensar filosófico. Deve-se observar as suas limitações, pois a ingenuidade se transforma em um absoluto, na medida em que sendo ingênua não pode ser crítica e não sendo crítica, não pode ser filosófica. Assim, cumpre examinar o próximo ponto. 2.3 O comportamento dogmático Bornheim, a seguir, tratará de questionar o comportamento de um indivíduo que outrora vivia numa postura dogmática,5 e que depois passará a uma postura de atitude crítica. É necessário entender que dificilmente o homem deixará totalmente essa postura dogmática, pois, ela é da natureza do homem, sua casa, conforme Bornheim em relação a Sartre sobre a dogmaticidade: E a primeira sugestão que devemos aceitar desta página de Sartre é justamente esta: a existência dogmática vive dentro de mundo desde sempre dado, desde sempre já feito, e não lhe ocorre pôr seriamente em dúvida este mundo. Daí este sentir-se em casa, pois o dogmático sabe que mesmo quando “as coisas não andam bem”, este mundo lhe pertence assim como uma parte de seu corpo. (BORNHEIM, 1978, p. 36) Podemos dizer que é característico do dogmático aceitar o mundo como ele é sem questionar o estabelecido, sem problematizá-lo. O autor chamará Husserl para 5 Mas muitos filósofos estão convencidos de que podemos dividir para conquistar: podemos progredir dividindo o eu em diferentes capacidades, e reconhecer que em vez de um único eu ou observador é melhor pensar num turbilhão de atividades cerebral relativamente não direcionada, sem qualquer teatro, luzes ou, sobretudo, qualquer espectador interior. (BLACKBURN, 1997.). Em geral, uma crença que se sustenta com uma certeza injustificada, sem que tenha sido colocada em questão. Na igreja cristã, uma crença comunicada por revelação divina e estabelecida pela igreja. (BLACKBURN, Simon. Dicionário Oxford de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.). 11 explicar sua ‘tese geral’ de que há uma tríplice dimensão no filosofar, constituída pelas dimensões gnosiológica, ontológica e axiológica, sendo esta última, a axiológica, a prioritária dentre as três, na medida em que [...] afirma o valor da tese geral, fundamenta as dimensões gnosiológica e ontológica da mesma tese, pois se o mundo tem um valor que lhe é próprio, independentemente de mim, eu o aceito como existência objetiva. E é através da aceitação deste valor que posso aceder ao mundo. (BORNHEIM, 1978, p. 38). O homem, dentro da postura dogmática, não consegue nunca por em dúvida a tese geral e não chega a criticar a existência, não consegue, desse modo, abrir-se ao real, tornando-se cativo nas suas atividades que podem ser a técnica, a ação ou conhecimento. Isso a tese de Husserl nos confirma. Segundo Hussel (apud BORNHEIM, 1978, p. 37): O mundo natural, no mundo no sentido usual da palavra, desde que vivo naturalmente nele, é, e, para mim, sempre esteve aí. E quando isto acontece, estou em uma postura natural [...] encontro permanentemente a realidade espaço-temporal como o que está diante de mim, uma realidade à qual eu mesmo pertenço, e à qual pertencem todos os homens que nela se encontram e a ela se relacionam da mesma maneira. Como eu desperto que sou, encontro, numa experiência conexa e sem rupturas, a realidade – já a palavra diz – como existente, e a aceito, tal como ela se dá, como realmente existente. Qualquer dúvida ou recusa do que é dado no mundo natural, nada modifica na tese geral da postura natural. O mundo, como realidade, sempre está aí, e, no máximo é diferente do que eu pensava apenas neste ou naquele aspecto; isto ou aquilo, por ser julgado aparência, alucinação, etc., deve ser como que excluído dele – mas deve ser excluído do mundo, e este, no sentido da tese geral, permanece um mundo existente. Na postura dogmática, nossas crenças ingênuas têm uma sustentação gnosiológica, ontológica e valorativa acrítica. Assumimos determinada compreensão do conhecimento, do ser e do valor sem examinar criteriosamente nossos pressupostos. A tese geral que sustenta a atitude dogmática, enfim, precisa ser desconstruída para que iniciemos o processo do filosofar. Para superar a postura dogmática, somente a postura crítica, que vai questionar os alicerces da ação, pondo-a em cheque, examinando-a na direção da superação de uma atitude passiva, pois “A ação estabelece-se na tese geral, dando por resolvido precisamente aquilo que a filosofia deve problematizar.” (BORNHEIM, 1978, p.41). Somente compreenderemos essa situação quando não estivermos absorvidos pelo mundo, quando sairmos de um estado de conforto e nos 12 perguntamos sobre o ser, o que nos levará ao próximo ponto que é a ruptura da dogmaticidade e a experiência negativa. 2.4 A experiência negativa O próximo passo não é um passo fácil de dar, pois, a dor física e intelectual fará parte dessa nova etapa e este fato é típico daquele que resolve abandonar o dogma e a ingenuidade. Bornheim narra-nos, nessa direção, o mito da caverna de Platão6 para esclarecer o trabalho que poderá ter e a rejeição que poderá sofrer aquele que resolver abandonar o dogmatismo e a ingenuidade. Estando na etapa de ingenuidade, pré-crítico, o sujeito enquadra-se e não ultrapassa a tese geral de Husserl. Lembramos que, a dimensão gnosiológica é referente àquilo que não podemos conhecer do mundo e não resiste ao conhecimento epistêmico. Na dimensão ontológica, o ser não questiona sua origem e fim. Já na dimensão axiológica ele respeita os valores, a realidade tem um valor objetivo e imanente que foge à especulação. Após suas investigações, o indivíduo abala os fundamentos desta tese geral, transferindo-se do dogmatismo ao criticismo. Agora, o indivíduo sabedor de que o mundo já não é aquilo que aceitará até então, somente poderá buscar nova resposta através da experiência negativa. Mas para entender melhor essa etapa, o autor delimita a experiência negativa em duas posturas básicas Numa, o indivíduo se entrega a um comportamento passivo, delimitando-se assistir ao que lhe acontece. Esta passividade por sua vez, pode-se dar em um plano intelectual ou em um plano existencial. Na outra postura, o indivíduo acede a um comportamento ativo, fazendo a negação do objeto de sua conquista. (BORNHEIM, 1978, p. 57). 6 Não é exatamente um mito, mas a figura ou alegoria apresentada por Platão no livro VII 514-518 da República para mostrar os níveis em nossas naturezas podem ser iluminadas ou não. No primeiro nível estão os prisioneiros, amarrados de tal maneira que conseguem perceber apenas sombras na parede da caverna. São sombras de objetos artificiais, e a luz vem de uma fogueira. Para eles, a realidade é constituída apenas pelas sombras desses objetos artificiais. Mas, se um prisioneiro se soltar das amarras, poderá voltar-se e ver, primeiro, os próprios objetos artificiais, depois o fogo, seguindo-se então o mundo real e, por fim, o sol. Cada estágio dessa ascensão será difícil e estranho e, no fim, o indivíduo iluminado será incapaz de comunicar seu conhecimento aos prisioneiros que ficaram na caverna. Platão diz que a ascensão descrita simboliza a viagem da alma até o inteligível (as formas), identificado com aquilo que é verdadeiramente real. Esse mito pode ser interpretado apenas como um convite a que reflitamos com cuidado em vez de confiarmos nas aparências das coisas; mas é também muitas vezes usado como convite aberto à crença em estados de conhecimento esotéricos e místicos. (BLACKBURN, 1997). 13 Não será possível descrever totalmente a experiência negativa, porém, quando limitada em sua tipologia fundamental, sua leitura fica mais clara. Sabendo-se então que a experiência negativa pode ser passiva ou ativa e ainda, que nessas duas circunstâncias ela pode, também, ser de forma intelectual ou existencial e, prosseguindo, nesse contexto a dúvida tem um papel importante na totalidade do processo, possibilitando a superação. O ser humano, que se encontra no estado da experiência negativa, a está em um estado de separação do mundo, pois O que constitui, em sua essência, a experiência negativa? Poderíamos responder, simplesmente, com uma palavra: a separação. Mas o que deve entender-se aqui por separação? Podemos dizer que a separação pertence à própria consciência, mas não de maneira acidental ou secundária. A separação ou a distância é o que caracteriza fundamentalmente a consciência, é o ser da consciência. (BORNHEIM, 1978, p. 69). Prosseguindo e conceituando o que vimos até agora, em suma, podemos dizer que o homem é convocado, chamado à responsabilidade, pois precisar vencer o estado dogmático mesmo que isso custe na perda de seu mundo, implique em cair na experiência negativa, ou seja, perder-se, desorientar-se, ter suas referências mundanas perturbadas. Ora, tal experiência, se assumida responsavelmente, permitirá a transformação, pois a desorientação fará com que realize a conversão filosófica. 2.5 A conversão filosófica Esse é, o ultimo passo do processo de construção de um pensamento filosófico. Pois, como já dissemos anteriormente, o homem necessita destinar-se no mundo e o fará, somente, quando assumir a responsabilidade do rela, saindo da zona de conforto, concretizando – desde o âmago de sua existência – a liberdade que reivindica a compreensão do mundo [real] que o cerca. Tendo passado pelas belezas da contemplação ou admiração ingênua, pelas dores da experiência negativa, poderá recuperar a si mesmo no mundo, ou seja, re-situando-se na esfera do real. A partir da negação do mundo anterior, agora, constrói nova realidade, sendo autêntico, fiel ao seu próprio ser. Porém, esse ato, de construir-se a partir do 14 seu próprio ser não é simplesmente, um desdobrar-se, um autocriar-se, pois se assim o fosse, cairíamos num absolutismo. A conversão filosófica podemos dizer, consiste em uma constante abertura ao real. Mas, essa abertura deve sempre trazer o sentimento da admiração, próprio daquele que tem curiosidade. Contudo, essa admiração não pode ser mais aquela ingênua, livre de crítica, pois, “O sentido da problematicidade é próprio do homem.” (BORNHEIM, 1978, p. 94). Independente da posição adotada pelo filósofo, ou melhor, no nosso caso, daquele que pretende pensar o mundo a partir de um viés filosófico. Ele tem em si a racionalidade e a atitude crítica como fio condutor do seu modo de organizar o mundo e, desse modo, consegue fazer a sua leitura do real com total autenticidade, buscando sempre a verdade como sua principal virtude. Podemos pensar, portanto, que talvez tenhamos conseguido alcançar o conceito de vida filosófica proposto por Bornheim. E tal conceito irá fundamentar nossa tentativa de proposição do uso de textos parafilosóficos, introdutórios ao pensar filosófico no ensino médio. 15 3 METODOLOGIA DE FILOSOFIA NO BRASIL E O DIÁLOGO Para pensar a introdução de textos parafilosóficos em um contexto de iniciação filosófica no ensino médio, é necessário esclarecer aspectos da elaboração de metodologia do ensino de filosofia no Brasil e os programas de filosofia desenvolvidos em nossas escolas. 3.1 Um breve panorama Para quem deseja lecionar filosofia no Brasil, após vivência concreta do ensino da Filosofia em nossas escolas, confronta-se com duro e triste cenário. Não há programas integrados nas grades curriculares, conteúdos pensados seriamente, metodologias estruturadas com coesão, pertinência e efetividade, na maioria das vezes. A Filosofia é, apenas, mais uma disciplina, quem sabe dispensável, ao lado de outras e subsidiada àquelas que preparam para o vestibular ou instrumentalizam nossos alunos para o mundo do trabalho, tais quais, matemática e português. Talvez fosse melhor mudar o título acima para a falta de uma metodologia de ensino de filosofia no Brasil, pois, nos parece mais apropriado tratar assim esse assunto. Precisamos entender que essa falta de metodologia, ou melhor, a falta de um programa pedagógico adequado ao ensino de filosofia, está ligado ao descuido para com a plena formação escolar de nossos discentes. A história político legislativa dessa questão, o da introdução da filosofia no currículo escolar em nosso país é um dos possíveis fatores do descuido para com nossa disciplina. Mas, existem outros, como a falta de estrutura pedagógica elaborada e aprofundada própria ao ensino de filosofia no Brasil. Poderíamos descrever e contextualizar – em linha de tempo – as idas e vindas da disciplina de Filosofia nos currículos escolares, porém não é exatamente isso o que buscamos neste trabalho. Mas, à guisa de introdução, trabalharemos brevemente o cenário que acolhe a prática do ensino da Filosofia em nosso país7. Claro que, não só a política é a culpada nessa historia, mas o 7 Ao longo da história, a filosofia foi diversas vezes retirada e reinserida nos currículos. È o que ocorreu logo após a implantação do regime republicano, no final do século19. A ideia era que houvesse mais espaço para disciplinas de formação cientifica. Essa situação de exclusão foi temporária; a disciplina voltou a ser incluída em 1901, mas foi novamente retirada em 1911. Em 16 desinteresse8 dos nossos governantes em estimular a formação de cidadãos críticos e autônomos, os precários numerários destinados à educação que não é considerada investimento, o desrespeito aos profissionais docentes, todos esses fatores contribuem, sem dúvida, para a crise do ensino de Filosofia, que é, também, a crise da Educação em nossa nação. Se olharmos nossos programas e currículos, como já mencionamos, todas essas implicações políticas, ideológicas, epistemológicas e sociológicas lá estarão presentes. Segundo Ronai Pires da Rocha9, em Filosofia e ensino: um diálogo transdisciplinar, discussões ocorridas nos últimos anos, nos indicam algumas características da atual situação: a) não existem programas oficiais definidos por Secretarias Estaduais de Ensino ou Coordenadorias de Educação Regionais ou Municipais; b) quanto à escolha dos programas de ensino, predominam as decisões tomadas pela escola e, em última instância pelo professor. Com isso, a unidade existente entre as aula de filosofia das diversas escolas de uma mesma região, quando existe, está baseada na adoção dos mesmos livros didáticos; c) a inexistência de diretrizes e programas básicos de ensino permite que o professor de filosofia tenha, na maior parte dos casos, ampla liberdade de escolha de conteúdos, formas de abordagem, atividades didáticas, bibliografia, etc.; d) Constata-se, em algumas regiões mais do outras, qua as direções de escolas por vezes aceitam entregar as aulas de filosofia para professores não titulados na área. Essa tendência aumenta na medida em que cresce a demanda por programas de filosofia com crianças, que tem acolhido profissionais da área da pedagogia; e) verifica-se, em muitas escolas, o fato que a aula de filosofia é vista pelos professores das demais disciplinas como um tempo que pode ser tomado emprestado no horário escolar; assim, não é raro que o professor de filosofia ceda seu espaço para o colega que está com falta de carga horária para os conteúdos de sua disciplina. A filosofia é vista por esses professores como uma disciplina pouco comprometida com conteúdos 1915, a filosofia voltou à escola como matéria optativa, passando a ser obrigatória em 1925. As reformas educacionais de 1932 e 1942 mantiveram a filosofia no currículo escolar, dando a esse campo de estudo um caráter histórico e enciclopédico. Após 56 anos, o governo da ditadura militar exclui a filosofia das escolas por meio da Lei nº 5.692, de 1971. A disciplina retornou aos currículos graças à reforma de 1982; dessa vez na condição de optativa, ficando a critério dos estabelecimentos de ensino implantá-la ou não. (MAAMARI, Adriana M. Discutindo Filosofia, 5. Ed. São Paulo: Escala, ano1.) 8 9 Tal desinteresse encontra, remotamente, raízes na ditadura militar que, após acordo MEC – USADE, aboliu o ensino humanístico e introduziu um suposto ensino técnico que prepararia nossos estudantes para o mundo do trabalho. Mas, podemos acrescentar, a crescente virtualização acrítica de nossas experiências vitais, possibilitada pelo uso onipresente dos recursos informáticos, a confusão entre informação e conhecimento, a superficialidade – através da qual – pessoas precisam ter opinião sobre tudo, mesmo que não possam sustentar suas posições racionalmente, tudo isso contribui para o esquecimento da atividade filosófica. Mas, paradoxalmente, estimula a indagação e nos põe à caminho da realização de perguntas e do exercício filosófico. Professor do Departamento de Filosofia da UFSM/RS. 17 obrigatórios e por isso tem o seu tempo curricular predado pelos colegas. A filosofia, para esses professores, é vista como um espaço de debates sobre coisas como “sexo, drogas & videoteipes”. (ROCHA, 2004, p. 18) Diante de tal quadro, que revela quão complexo é o trabalho do educador, nos permite entender, um pouco melhor, o descuido para com o ensino em geral e para com o ensino de Filosofia, em especial. Nos parece que o quadro contribui à diversidade metodológica do ensino de Filosofia, o que pode ser bom e ao mesmo tempo ruim. Essa ambiguidade pode ter em seu benefício o desenvolvimento da criatividade e do dinamismo do educador na elaboração de seu conteúdo, quase que autonomamente. A não criação de uma didática mais aplicada ao ensino da filosofia, porém, nos remete a um relativismo, comprometendo a qualidade dos processos pedagógicos e cimentando uma incrível fragmentação programática, que torna o ensino da Filosofia terra de ninguém, onde tudo pode ser trabalhado, com critérios ou descritérios, com ou sem objetivos a serem cumpridos, lócus de amenidades e generalidades, ensino que pode, por tal grau de generalidade, tratar de tudo e de nada ao mesmo tempo, causando frustração e desconsideração para com nossa disciplina. Essa bipartição gera o que Ronai chama de ‘uma briga de partidos’, segundo ele existem os ‘conteudistas’ e os ‘pocessistas’ Os conteudistas pensam que a filosofia, ao longo de sua história, acumulou uma razoável riqueza discursiva, na forma de argumentos e discussões sobre alguns problemas fundamentais que afligem o ser humano [...] os conteudistas pensam que a filosofia em um sentido parecido com a matemática ou a física, tem algo para ensinar; [...] O processista entende que essa crença em conteúdos congela a vida do conceito filosófico, imobiliza a natureza convencional disciplina. Ele diria talvez, que a fixação de conteúdos contém em germe a rigidez das fórmulas que esvaziam a riqueza dos conceitos. (CARBONARA, 2004, p. 19) Possamos compreender que, desse embate, ambos tem um pouco de razão, aquela verdade própria daquele que se dispõe à reflexão, a um pensar filosófico, como o proposto por Bonrheim. Seguindo nosso raciocínio, poderíamos dizer que aquele que se dispõe a ensinar filosofia, deve, igualmente, querer aprendê-la, necessitando aliar conteúdo de sua história à subjetividade reflexiva na direção de autêntica hermenêutica. O que nos remete a uma pergunta. Qual o melhor processo didático de construção para uma aula de filosofia? 18 3.2 Maiêutica e diálogo Aquele que deseja responder a pergunta acima precisará submeter à questão, a uma pesquisa minuciosa e aprofundada nos autores ligados a educação, pedagogia, psicologia, sociologia e afins. Não será o caso deste trabalho, a pretensão deste, como já referido anteriormente, porém em outras palavras, é trazer a luz do conhecimento filosófico, a partir da introdução de textos parafilosoficos, textos esses que não carregam todo o peso da filosofia10 e que são mais receptivos aos não iniciados. Nesse sentido sem pretender estabelecer uma verdade ultima sobre o uso de uma metodologia soberana, mas com uma proposta ponderada e adequada ao cenário de hoje. O papel da filosofia nessa pesquisa é abordar o nascimento da ideia de um pensar crítico e reflexivo, um abandono da ingenuidade, e cabe recorrer à tradição pra mostrar que, com o surgimento do dialogo Socrático, o nascimento de um novo ser humano se deu, ao passo que ele mesmo procura se conhecer. Daí a Maiêutica. 3.2.1 Maiêutica A Maiêutica11 iniciou no século IV A.C, sendo Sócrates o inventor. Por meio desta, para ele, o Homem procura dentro do Homem a verdade. Daí sua celebre 10 11 Dimensão de autoridade, dogma, tradição. Refutação e maiêutica: A “refutação”(élenchos), em certo sentido, constituía a pars destruens do método, ou seja, o momento em que Sócrates levava o interlocutor a reconhecer a sua própria ignorância. Primeiro, ele forçava uma definição do assunto sobre o qual se centrava a investigação; depois, escavava de vários modos a definição fornecida, explicitava e destacava as carências e contradições que implicava; então, exortava o interlocutor a tentar uma nova definição, criticando-a e refutando-a com o mesmo procedimento; e assim continuava procedendo, até o momento em que o interlocutor se declarava ignorante. É evidente que a discussão provocava irritação ou reações ainda piores nos sabichões e nos medíocres. Mas, nos melhores, a refutação provocava um efeito de purificação da ignorância, a tal ponto que Platão podia escrever a respeito: “(...) Por todas essas coisas, (...) devemos afirmar que a refutação é a maior e mais fundamental purificação. E quem não foi por ela beneficiado, mesmo tratando-se do Grande Rei, não pode ser pensado senão como impuro das mais graves impurezas, privado de educação e até mesmo feio, precisamente naquelas coisas em relação às quais conviria que fosse purificado e belo no máximo grau alguém que verdadeiramente quisesse ser homem feliz. ” E, assim, passamos ao segundo momento do método dialético. Para Sócrates, a alma só pode alcançar a verdade “se dela estiver grávida”. Com efeito, como vimos, ele se professava ignorante e, portanto, negava firmemente estar em condições de transmitir um saber aos outros ou, plelo menos, um saber constituído por determinados conteúdos. Mas, da mesma forma que a mulher que está grávida no corpo tem necessidade da parteira para dar à luz, também o discípulo que tem a alma grávida de verdade tem necessidade de uma espécie de arte obstétrica espiritual que ajude essa verdade a vir à luz – e nisso consiste exatamente a “maiêutica” socrática. (REALE,Giovanni, História da Filosofia, 1990, p. 98/99) 19 frase “Conhece-te a ti mesmo”, percebido isso, começa o percurso do cerne da Humanidade, na procura do caminho que acarreta à prática das virtudes morais. Pelo meio de questões simples, inseridas dentro de um contexto determinado, a Maiêutica dá à luz idéias complicadas. Para entender o que Sócrates buscava é importante entender um pouco da sua vida. Ele nasceu por volta de 470 A.C., na cidade de Atenas. Ao longo de sua vida ocupou alguns cargos públicos, porém nunca se corrompeu sendo um exemplo de honestidade e ética. Sua educação se deu principalmente através da meditação. Ele acreditava não ser possível filosofar enquanto as pessoas não alcançassem o autoconhecimento, percebendo assim, claramente seus limites e imperfeições. Assim sendo, considerava que precisaria agir conforme suas crenças, com justiça e retidão, edificando homens sábios e honestos. Diferentemente dos sofistas, que só buscavam tirar vantagens pessoais das situações. Sua forma de viver, porém, com liberdade de opinião, considerações críticas, ironia e uma maneira específica de educar, provocaram a íra geral, e que acabou por lhe arrecadar uma lista de inimigos. Sob a ótica de seus contemporâneos, ele era visto como líder de uma elite intelectual. Acusado de corromper os jovens e de substituir os deuses venerados em sua terra natal por outros desconhecidos, ele negou-se a elaborar uma defesa própria, pois argumentava que seus ensinamentos eram imortais, não algo para ser compreendido e aceito naquele momento, no âmbito da vida material. Assim, preferiu morrer, recusando inclusive a fuga providenciada por seu discípulo Criton, porque não desejava ir contra as leis humanas. Assim, morreu aos 71 anos de idade, vítima da execução à qual fora condenado. O filósofo busca o conhecimento através de questões que revelam uma dupla face – a ironia e a maiêutica (o que nos interessa é a maiêutica). Através da ironia, o saber sensível e o dogmático se tornam indistintos. Sócrates dava início a um diálogo com perguntas ao seu ouvinte, que as respondia através de sua própria maneira de pensar, a qual ele parecia aceitar. Posteriormente, porém, ele procurava convencê-lo da esterilidade de suas reflexões, de suas contradições, levando-o a admitir seu equívoco, refutando-o. Por intermédio da maiêutica, ele mergulha no conhecimento, ainda superficial na etapa anterior, sem atingir, porém um saber absoluto. Ele utilizava este termo justamente porque se referia ao ato da parteira, profissão de sua mãe, que traz uma vida á luz. Assim ele vê também a verdade 20 como algo que é parido. Seu senso de humor costumava desorientar seus ouvintes, que na conclusão do debate acabavam admitindo seu desconhecimento. Percebemos abaixo em Platão, um breve trecho da obra Teeteto: Sócrates — Eis aí a função das parteiras; muito inferior à minha, Em verdade, não acontece às mulheres parirem algumas vezes falsos filhos e outras vezes verdadeiros, de difícil distinção. Se fosse o caso, o mais importante e belo trabalho das parteiras consistiria em decidir entre o verdadeiro e o falso, não te parece? Teeteto — Sem dúvida. VII — Sócrates — A minha arte obstétrica tem atribuições iguais às das parteiras, com a diferença de eu não partejar mulher, porém homens, e de acompanhar as almas, não os corpos, em seu trabalho de parto. Porém a grande superioridade da minha arte consiste na faculdade de conhecer de pronto se o que a alma dos jovens está na iminência de conceber é alguma quimera e falsidade ou fruto legítimo e verdadeiro. Neste particular, sou igualzinho às parteiras: estéril em matéria de sabedoria, tendo grande fundo de verdade a censura que muitos me assacam, de só interrogar os outros, sem nunca apresentar opinião pessoal sobre nenhum assunto, por carecer, justamente, de sabedoria. E a razão é a seguinte: a divindade me incita a partejar os outros, porém me impede de conceber. Por isso mesmo, não sou sábio não havendo um só pensamento que eu possa apresentar como tendo sido invenção de minha alma e por ela dado à luz. Porém os que tratam comigo, suposto que alguns, no começo pareçam de todo ignorantes, com a continuação de nossa convivência, quantos a divindade favorece progridem admiravelmente, tanto no seu próprio julgamento como no de estranhos. O que é fora de dúvida é que nunca aprenderam nada comigo; neles mesmos é que descobrem as coisas belas que põem no mundo, servindo, nisso tudo, eu e a divindade como parteira. E a prova é o e seguinte: Muitos desconhecedores desse fato e que tudo atribuem a si próprios, ou por me desprezarem ou por injunções de terceiros, afastam-se de mim cedo demais. O resultado é alguns expelirem antes do tempo, em virtude das más companhias, os germes por mim semeados, e estragarem outros, por falta da alimentação adequada, os que eu ajudara a pôr no mundo, por darem mais importância aos produtos falsos e enganosos do que aos verdadeiros, com o que acabam por parecerem ignorantes aos seus próprios olhos e aos de estranhos. Foi o que aconteceu com Aristides, filho de Lisímaco, e a outros mais. Quando voltam a implorar instantemente minha companhia, com demonstrações de arrependimento, nalguns casos meu demônio familiar me proíbe reatar relações; noutros o permite, voltando estes, então, a progredir como antes. Neste ponto, os que convivem comigo se parecem com as parturientes: sofrem dores lancinantes e andam dia e noite desorientados, num trabalho muito mais penoso do que o delas. Essas dores é que minha arte sabe despertar ou acalmar. É o que se dá com todos. Todavia, Teeteto, os que não me parecem fecundos, quando eu chego à conclusão de que não necessitam de mim, com a maior boa vontade assumo o papel de casamenteiro e, graças a Deus, sempre os tenho aproximado de quem lhes possa ser de mais utilidade. Muitos desses já encaminhei para Pródico, e outros mais para varões sábios e inspirados. Se te expus tudo isso, meu caro Teeteto, com tantas minúcias, foi por suspeitar que algo em tua alma está no ponto de vir à luz, como tu mesmo desconfias. Entrega-te, pois, a mim, como o filho de uma parteira que também é parteiro, e quando eu te formular alguma questão, procura responder a ela do melhor modo possível. E se no exame de alguma coisa que disseres, depois de eu verificar que não se trata de um produto legítimo, mas de 21 algum fantasma sem consistência, que logo arrancarei e jogarei fora, não te aborreças como o fazem as mulheres com seu primeiro filho. Alguns, meu caro, a tal extremo se zangaram comigo, que chegaram a morder-me por os haver livrado de um que outro pensamento extravagante. Não compreendiam que eu só fazia aquilo por bondade. Estão longe de admitir que de jeito nenhum os deuses podem querer mal aos homens e que eu, do meu lado, nada faço por malquerença pois não me É permitido em absoluto pactuar com a mentira nem ocultar a verdade. VIII — Volta, pois, para o começo, Teeteto, e procura explicar o que é conhecimento. Não me digas que não podes; querendo Deus e dando-te coragem, poderás. (PLATÃO, [19--], p. 37). Sócrates por meio de Platão não resolve nossa pergunta, mas a clarifica, o conhecimento não pode ser passado, ninguém ensina alguém, apenas ilumina o caminho para que, aquele outro, conheça a verdade. Nesse conhecer, é que ele poderá edificar o mundo. Nessas condições de construção do conhecimento, o diálogo nos parece ser o melhor caminho para trabalhar em sala de aula, pois, o diálogo poderá ser um processo em que as idéias fluam mais facilmente. 3.2.2 Diálogo A idéia, de um diálogo didático tem sua condução em uma dimensão difusora, na acolhida do outro “deixar-se afetar pelo olhar do outro, ouvir o que este outro tem a dizer e perceber a docência que se manifesta em sua alteridade” (RIBAS, 2005, p. 78), essa via de duas mãos deverá ser pensada na ideia do aluno pesquisador. Forma-se assim uma didática onde o educando seja um grande conhecedor do conteúdo trabalhado e desperte no aluno aquela admiração já citada anteriormente, admiração essa, que será atitude de abertura ao mundo e, desse processo, desencadeará uma serie de questionamentos e reflexões no sentido de abertura a subjetividade, o que poderá fazer o aluno retornar as trevas, porém, como pensado por Sócrates, pelo uso diálogo o professor trará luz ao aluno. A dinâmica possibilitará propor novas questões, desse modo o aluno sente-se estimulado a voltar ao seu tema anterior e tentar resolve-lo. Mais do que isso, a troca de saberes provoca novas perspectivas, segundo Carbonara12 (RIBAS, 2005, p. 78), [...] A linguagem verbal constrói-se éticamente pelo diálogo: escuta e acolhida primeiro, resposta desinteressada depois. O diálogo é compreendido como fundamento que possibilita a construção de um saber 12 Professor do Departamento de filosofia da UCS. 22 maior, interpretação do mundo que está para além de um eu e de um tu, mas que também não se fecha na soma do nós. A exposição, do diálogo não serve para dar resposta única e definitiva enquanto didática. Contudo, é um processo introdutório e argumentativo que possibilitará dar inicio a construção de um pensar filosófico, menos exaustivo. O próximo passo a quebra do paradigma da filosofia no ensino médio. 23 4 PROPOSTA DE ENSINO DE FILOSOFIA A difícil tarefa, da introdução da filosofia no ensino médio, justifica-se pelo fato de não haver - em nosso país - uma tradição filosófica consolidada. Nessa direção, a carência de cultura filosófica no Brasil, pensamos, contribuiu à desumanização da filosofia, pondo-a em altura inalcançável ao homem médio e acessível, apenas, para poucos. Nossos educadores, considerando essa falta, encontram-se sem norte – orientação – na cotidiana tarefa de elaboração das aulas de filosofia, o que, também, inibe a construção de um pensar filosófica, generalista ou livre. Tal inexistência de critérios e de pouquíssimas pesquisas sobre o tema, ensino de filosofia, acabou por gerar uma barreira, quase que intransponível, entre os alunos do ensino médio e os educadores. Nossa proposta, que não deseja ser exclusiva, mas sugestão a ser considerada, é que, propedeuticamente, antecedendo o uso dos textos clássicos de filosofia, adotemos – num primeiro momento –, o uso de textos parafilosóficos, pois são acessíveis e capazes de introduzir problemas filosóficos genuínos. Os textos parafilosóficos, capazes de despertar o gosto pela leitura, interpretação e debate, por sua acessibilidade e demais características, poderá estimular o diálogo, introduzindo, desse modo, nossos estudantes no exercício ativo da filosofia. 4.1 Dificuldades de compreensão de um texto filosófico. Os textos filosóficos revelam estilos próprios de cada autor, conceitos elaborados ao longo de suas trajetórias existenciais, exigindo conhecimento do contexto, interpretação de suas categorias básicas, esforço exegético e hermenêutico que, mesmo em diferentes níveis de exercício, supõe habilidades cognitivas a serem trabalhadas e conquistadas. O texto filosófico propõe, sempre, um problema filosófico a ser discutido, já, o texto literário – parafilosófico – propõe, também, questões que podem facilmente serem trabalhadas, preparando nossos estudantes à leitura dos clássicos. Resumindo, podem tornar-se textos filosóficos nas atividades do ensino médio, por sua linguagem acessível, possibilidades e dimensão didática. O que não elimina o uso de textos dos autores clássicos, mas, prepara abordagem dos mesmos. 24 Nossa opção por esse caminho dá-se no contexto do próprio agir filosófico, pois os textos filosóficos muitas vezes não são compreendidos, pois, para tanto, são necessário pressupostos exegéticos, interpretativos, mesmo em níveis de iniciação, como no caso dos alunos do ensino médio. A filosofia possui um vocabulário próprio, técnico, que somente os iniciados podem entender. O vocabulário, todavia, não é a única barreira que pode tornar difícil compreender e exercer a filosofia. Existem muitos debates, controvérsias, diferenças entre autores, o que exige gradativo acesso à tradição presente nos textos filosóficos. Em certos momentos, pode-se não entender completamente um texto filosófico porque, um determinado filósofo escreve um texto comentando ou contestando a obra de outro autor. Se o leitor não tem esse prévio conhecimento, acaba por ficar à deriva, perdido em um oceano de prolixidade. Gadamar, nesse sentido, afirma que o texto, por si só, adquire vida própria, pois [...] um texto tem vida autônoma. Assim, por exemplo, ele tem efeitos sobre a história posterior, efeitos que o autor não podia prever nem imaginar. E essas conseqüências do texto entram em simbiose com outros produtos culturais. A história dos efeitos de um texto sempre determina mais plenamente o seu sentido. E o interprete relê o texto também à luz da história dos seus efeitos. O cientista não vê todas as conseqüências da teoria que criou: não as vê porque não pode vê-las, porque faltam-lhe aqueles pedaços de saber que permitiriam a sua extração; assim, não vê o desenvolvimento da sua teoria. Mas o historiador da ciência, posto a relativa distância do tempo da descoberta da teoria, vê mais e melhor do que o próprio criador da teoria. Ele vê coisas que este último sequer sonhava em inserir no texto. E o historiador vê melhor a teoria porque também vê a luz da historia dos efeitos da própria teoria. E o que dissemos de uma teoria cientifica vale para qualquer obra humana e para qualquer texto. (REALE, 1990, p. 632) Porém, não podemos esquecer que sempre há a intenção do autor, presente de modo latente no texto e nunca completamente captável, do que resultam inúmeras interpretações possíveis e divergentes, muitas vezes, entre si, dificultando a utilização imediata dos clássicos no ensino médio. Podemos utilizar recortes dos clássicos, mas, se procedermos didaticamente, escolhendo textos significativos da tradição, trabalhando problemas pertinentes ou atuais existentes nos mesmos. O uso de textos parafilosóficos, entrementes, pode preparar a leitura e trabalho com os denominados clássicos da filosofia. Os parafilosóficos, criteriosamente escolhidos, são metodologicamente relevantes. A receptividade dos parafilosóficos, devido caráter acessível, mas, ao mesmo tempo, profundo, permite rigorosa propedêutica 25 filosófica. Consideramos que essa não é proposta única ou exclusiva, mas pode gerar entusiasmo nos estudantes que, se corretamente entendido, levará aos estudos dos clássicos da filosofia. Salientamos que os parafilosóficos devem ser criteriosamente selecionados, considerando problemas filosóficos fundamentais e trabalhados rigorosamente, exigindo esforço interpretativo, debate, rigor, expressão escrita e, sobretudo, o dar razão das posições conquistadas. É preciso enquadrá-los em projeto de estudos abrangente, trabalhá-los com adequada metodologia, significando-os, ligando-os com a vida e suas questões. 4.2 Prática Os problemas descritos em um texto filosófico procuram encaminhar seus leitores à criticidade, permitindo olhar abrangente e judicativo sobre a realidade, oportunizando permanente autocompreensão do si mesmo no mundo, abordando assuntos éticos, econômicos ou, até, teóricos, mas sempre próximos da vida vivida. É questão de atitude, pensamos, ligar filosofia e vida. O filosofar, na medida em que coloca tudo em questão, tendo em vista que exige o dar razão de nossas posições, que suscita a superação do senso comum (dialética aparência versus ser), é enriquecedor, transformador e, nessa perspectiva, a mais útil das atividades humanas. Para que serve a filosofia?13 Para respondermos tal questão é preciso, e tal fica cada vez mais claro, termos uma atitude filosófica. Essa atitude inicia quando o indivíduo constitui seu intelecto através da indagação. O quê? Como? Por quê? Essas três perguntas estão sempre presentes no cotidiano daquele que se interessa em viver a vida com uma postura crítica diante do mundo, estabelecendo, desse modo, a superação do senso comum. Porém, ainda nos perguntamos, para que introduzir a filosofia no ensino médio? Para responder essa pergunta seria importante fazer o exercício de compreensão de um texto filosófico. Para isso, usaremos um texto recorrente e já citado nesse trabalho, o mito da caverna de 13 Assim, mesmo se disséssemos que o objeto da Filosofia não é o conhecimento da realidade, nem o conhecimento da nossa capacidade para conhecer, mesmo se disséssemos que o objeto da Filosofia é apenas a vida moral ou ética, ainda assim, o estilo filosófico e a atitude filosófica permaneceriam os mesmos, pois as perguntas filosóficas - o que, por que e como – permanecem. (CHAUÍ, Marilena, Convite à Filosofia, 1995, p. 14) 26 Platão14. Fato, que este texto é clássico, não só pelo seu tempo de existência, pois foi escrito há mais de dois mil anos, mas porque continua pleno de significados, sendo, portanto, atual, testemunhando a presença da filosofia em nossas vidas. Não pretendemos, aqui, discorrer teses sobre o texto, mas desejamos elaborar uma pequena síntese. A partir dela, procuraremos dar significância à obra em contexto de didático, que possa ser abordado pelo educador em sala de aula. Ao iniciar a leitura, o autor projeta o leitor em um sombrio cenário, o fundo de uma caverna. Essa caverna é habitada por homens que não conheciam a luz do sol, os mesmos ficavam presos de forma que, não conseguiam virar a cabeça. Direcionavam o seu olhar somente para frente. Atrás deles há um muro frequentado por titiriteiros. A luz do fogo projeta a sombra das figuras carregadas pelos titiriteiros na parede da caverna. O que podiam enxergar os cativos? Somente sombras. Não tinham, porém, conhecimento de que as tais imagens eram apenas sombras, uma ilusão, pois presos, concediam plena realidade às sombras. O cenário criado por Platão mostra que, essas pessoas tinham uma visão de mundo tão limitada que acreditavam serem as sombras projetadas o mundo verdadeiro. Devido ao fato de estarem nessa condição por toda vida, acredita-se que, mesmo libertadas, lhes custaria enormemente superar a ilusão, admitir que o que viram, até então, não passará de ilusão. É provável que desejassem continuar iludidos. Se um dos prisioneiros se libertasse das correntes e, gradativamente, transita-se do seu covil à região dos titiriteiros e, depois, ao mundo exterior, precisaria realizar dolorosa adaptação do olhar, no caso, do olhar da razão, olho da alma. Após descobrir o mundo exterior, precisando retornar à caverna e testemunhar sua descoberta, poderia ser, até, morto por seus antigos companheiros de prisão. De tal consideramos que, se não conhecemos outra realidade além daquela que nos é aparente, não conseguimos aceitar outra verdade. A alegoria da caverna, entretanto, nos ensina que temos a possibilidade de conhecer algo novo, mesmo que isso custe desorientação, necessidade de rever conceitos e práticas. Nos ensina, também, que a desorientação é vital, pois essa experiência permite o perguntar, gênese da atividade filosófica, encaminhando-nos à descoberta e ao dar razão (argumentar) com o discurso e com a vida na defesa da verdade conquistada. 14 Anexo A. 27 Ainda no texto, o processo de conhecimento continua e o prisioneiro que fora levado para fora da caverna, inicia o reconhecimento do mundo externo, o que lhe causa dor, pois seus olhos não estão acostumados com a luz do sol. A experiência negativa da dor, aos poucos vai se desfazendo e possibilita o conhecimento na medida em que vai se acostumando com a superfície. O próximo passo, como já mencionamos, será de aceitação da nova realidade. Para aceitá-la, o ex-prisioneiro passou por uma transformação, obrigou-se a refletir sobre o Sol. Descobrirá que o astro rei ordena todas as coisas da superfície e que tudo que ele acreditava quando preso na caverna, era vã ilusão. A personagem, a partir desse raciocínio, sentirá vontade de revelar aos demais prisioneiros, ex-companheiros, sua experiência libertadora. Se o fizer, como já dissemos, poderá ser visto pelos demais como mentiroso, louco ou doente. E se insistir em sua tarefa libertadora, poderá, até mesmo, sofrer agressões. 4.2.1 Aplicação O uso de um resumo que destaque algumas ideias do texto clássico, no caso, o Mito da Caverna, pode facilitar a compreensão do texto escolhido, tornando-o mais acessível aos alunos. O uso, do texto original sem o auxílio de uma síntese pode acabar sendo ineficiente e inibindo o exercício filosófico. O aluno pode não conseguir entender nada daquilo que o autor escreveu. Seja pelo vocabulário ou pela falta de cultura filosófica, que exige gradativa formação de pesquisa e judicatividade. Imaginemos que no momento da apresentação da síntese aos alunos estabeleçam-se diálogos. Esses diálogos têm a pretensão de trazer os problemas abordados pelo texto para o mundo, dando significância à obra e despertando o interesse dos alunos em pensar a sua realidade e suas questões internas, tais como, suas crenças e convicções morais. No final do texto, por exemplo, um problema moral, salta aos olhos: O ex-prisioneiro deve ou não, voltar à caverna para tentar libertar os demais? Em uma perspectiva mais geral do texto podemos formular outras duas questões: a) Conseguimos hoje, enxergar com um olhar crítico as informações que nos são passadas? b) Devido as diversas formas de mídia, fazemos ou não, um bom uso das informações que temos a disposição? O mesmo exercício, porém, com outro texto (parafilosófico) pode ser aplicado em sala de aula. 28 Por que outro texto? A escolha de outro texto se explica por não carregar a tradição filosófica, ignorada pelo cidadão médio em nosso país. A partir dessa premissa, logo, temos razões para crer de que o uso de textos parafilosóficos no ensino médio possibilitará melhor compreensão e interesse, encaminhando os alunos à leitura dos clássicos. A partir dessa aproximação com a Filosofia iniciará processo de construção de um pensar filosófico, começará uma cultura filosófica, tão necessária à via autárquica e cidadã comprometida. O exercício filosófico, atitude de perguntar, descobrir e dar razão (argumentar) é indispensável, acreditamos, ao desenvolvimento de cada cidadão e do país. A filosofia tem papel importante e insubstituível nessa tarefa. E precisamos começar em nossas aulas no ensino médio, tornando-as relevantes, significativas. 29 5 CONCLUSÃO Ao final de nosso exercício investigativo, alcançamos interessante ideia de como se desenvolve o pensamento filosófico. Não é a única percepção, mas, é dotada de valor. Descobrimos que o filosofar nasce da admiração, pois somente desejamos conhecer aquilo que admiramos. Mas, o primeiro impulso conduz tanto à experiência negativa quanto à sua superação. Para podermos contemplar claramente o objeto de nossa admiração é mister, assim, viver a experiência negativa e superá-la. Decidimos admirar e difundir o conhecimento, porém durante o exercício de nossa escolha – encontraremos as mais diversas adversidades, obstáculos à efetivação da admiração crítica. No ensino da Filosofia, seja por falta de estrutura, desvalorização da disciplina ou dos docentes, conveniência política ou, até mesmo, falta de formação de alunos e professores, poderemos fracassar. A falta de uma tradição voltada à prática do ensino da filosofia, destacamos, foi o que motivou a elaboração de nosso estudo. Percebemos que, ao longo dos anos, uma grande barreira foi construída entre a educação da Filosofia e os alunos do ensino médio. Aos poucos, porém, é possível romper essa barreira. Nossa proposta, uma das propostas a ser considerada, dá-se de maneira harmoniosa através do diálogo e reflexão através da mediação de textos parafilosóficos, preparando leitura dos clássicos. Por quê textos parafilosóficos? O uso de textos com apelo mais popular e prontamente acessíveis, se criteriosamente selecionados, poderá estimular os alunos à prática dos exercícios propostos em sala de aula, permitindo que estabeleçam relação mais próxima com o texto e suas vidas – possibilitando o filosofar. A estratégia não exclui o uso dos textos da tradição, mas prepara nossos estudantes à leitura comprometida dos clássicos, armando-os de visão crítica, preparando-os com as ferramentas da exegese e da hermenêutica, através do despertar o gosto pela leitura de textos literários problematizados filosoficamente. Pensamos, finalmente, que nossa proposta contribuirá, também, ao desenvolvimento de uma cultura filosófica em nosso país. Mãos a obra, então, pois há muito que fazer! 30 REFERÊNCIAS BLACKBURN, Simon. Dicionário Oxford de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. BORNHEIM, Gerd. Introdução ao filosofar: o pensamento filosófico em bases existenciais. 10. ed. Porto Alegre: Globo, 2001. CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. 6. ed. São Paulo: Ática, 1995. LIPMAN, Matthew. A filosofia vai à escola. 2. ed. São Paulo: Summus, 1990. MAAMARI, Adriana M . Discutindo Filosofia, 5. Ed. São Paulo: Escala, ano1, [20--]. PARISI, Mário; COTRIM, Gilberto. Trabalho dirigido de filosofia: 2º grau. São Paulo: Saraiva, 1977. PIOVESAN, Américo (Org.). Filosofia e ensino: em debate. Ijuí, RS: UNIJUÍ, 2002. PLATÃO. A república. São Paulo: Nova Cultural, 1999. PLATÃO. Teeteto: ou da ciência. Lisboa: Inquérito, [19--]. PRADO JÚNIOR, Caio. O que é Filosofia. 20. ed. São Paulo: Brasiliense, 1993. REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da filosofia. 9. ed. São Paulo: Paulus, 1990. 3 v. RIBAS, Maria Alice Coelho (Org.). Filosofia e ensino: a filosofia na escola. Ijuí, RS: Ed. da UNIJUÍ, 2005. SAINT-EXUPÉRY, Antoine de. O pequeno príncipe. 37. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1990. 31 APÊNDICE A – Plano de Aula 1. Tema Introdução ao pensar filosófico. 2. Objetivos Reconhecer as características de um texto filosófico. Discutir conceitos fundamentais do agir humano. Trabalhar as habilidades de interpretação de texto, investigação e formação de conceitos. Identificar conceitos chaves, no texto estudado. 3. Recursos Resumo do Livro: O Pequeno Príncipe. Texto complementar: Serenidade. Laboratório de informática. Recursos audiovisuais. 4. Avaliação Seminários Participação Trabalhos Critérios Será avaliada a capacidade dos alunos em resolver problemas propostos na aplicação prática das tarefas, ligando as idéias centrais dos textos e sua participação qualitativa durante as aulas. Desenvolvimento e aplicação As atividades se darão pela leitura dos textos, acima sugeridos. Durante as aulas, será formado um grande círculo com os alunos. Em seguida, serão desenvolvidos diálogos. As questões deverão conter problemas a cerca da realidade. Estabelecendo, dessa forma, uma conexão do texto com o mundo. Porém, seria interessante que os alunos listem suas concepções a cerca dos problemas a serem debatidos, antes de dar início à tarefa de leitura. Assim, os estudantes vão poder distinguir o pensamento filosófico do senso comum, estabelecendo relações com o seu cotidiano. Neste primeiro momento, é importante que o professor estimule a participação da turma. E registre as curiosidades, que os estudantes possuem sobre o tema e o que gostariam de discutir em seguida. Dessas discussões, deverão ser estabelecidos alguns conceitos sobre os temas abordados. Esses conceitos serão registrados, em um blog criado pelos próprios alunos. Como encerramento, pode-se confrontar as idéias do texto com as definições que foram registradas no blog. O professor deve questionar sobre o que o texto os fez pensar ou se eles mudaram a opinião que tinham sobre o sentido da vida antes e depois da discussão do tema em sala de aula. 32 APÊNDICE B – O Pequeno Príncipe (Resumo) Inicia-se assim, o narrador recorda seus primeiros desenhos de criança, tentativa frustrada dos adultos entenderem o mundo infantil ou o mundo das pessoas de puras. Ele havia desenhado um elefante engolido por uma jibóia, porém os adultos só diziam tratar-se de um chapéu. Quando cresceu, testava o grau de lucidez das pessoas, mostrando-lhes o desenho e todas respondiam a mesma coisa: “É um chapéu”. Por causa disto, viveu sem alguém com quem pudesse realmente conversar. Pelas decepções com os desenhos, largara aos seis anos de idade uma bela carreira de pintor e escolhera a profissão de piloto. Certo dia, houve uma pane em seu avião, vindo a cair no deserto do Saara. Na primeira noite, ele adormeceu sobre a areia. Ao despertar do dia, uma voz estranha o acordou, pedindo para que ele desenhasse um carneiro. Era um rapazinho de cabelos cacheados e dourados, o pequeno príncipe. O narrador mostrou-lhe o seu desenho número 1. Para seu espanto, o pequeno príncipe disse-lhe que não queria um elefante engolido por uma jibóia e sim um carneiro. O narrador teve dificuldades para desenhá-lo, pois fora desencorajado de desenhar quando criança. Depois de várias tentativas, teve a idéia de desenhá-lo dentro de uma caixa. Para surpresa do narrador, o principezinho aceitou o desenho. Foi deste modo que o narrador trocou conhecimentos com o pequeno príncipe. O principezinho contou-lhe que, viera de um planeta, do qual o narrador imaginou ser o asteróide B612, visto pelo telescópio uma única vez, em 1909, por um astrônomo turco.O pequeno planeta era do mais ou menos do tamanho de uma casa. O pequeno príncipe contou o drama que ele vivia, em seu planeta, com o baobá, árvore que cresce muito; por este motivo, ele precisava de um carneiro para comer os baobás enquanto eram pequenos. Através do Pequeno Príncipe, o narrador aprendeu a dar valor às pequenas coisas do dia-adia; admirar o pôr-do-sol, apreciar a beleza de uma flor, contemplar as estrelas… O narrador acreditava que o principezinho havia viajado, segurando nas penas dos pássaros selvagens, que emigravam. O Príncipe conta-lhe as suas aventuras em vários outros planetas: o primeiro era habitado por apenas um rei; o segundo, por um vaidoso; o terceiro, por um bêbado; o quarto, por um homem de negócios; o quinto, um acendedor de lampião; no sexto, um velho geógrafo que escrevia livros enormes, e, por último, ele visitou o planeta terra. Na terra, encontrou uma serpente, que lhe prometeu mandá-lo de volta ao seu planeta, através de uma picada. 33 No oitavo dia da pane, o narrador havia bebido o último gole de água e, por este motivo, caminharam até que encontraram um poço. Este poço era perto do local onde o Pequeno Príncipe teria que voltar ao seu planeta. A partida dele seria no dia seguinte. Falou-lhe, também, que a serpente havia combinado com ele de aparecer na hora exata para picá-lo. O narrador ficou triste, ao saber disto, porque tomara afeição ao pequeno. O príncipe lhe disse para que não sofresse, quando constatasse que o corpo dele estivesse inerte, afirmando que devemos saber olhar além das simples aparências. Não havia outra forma de ele viajar, pois o seu corpo, no estado em que se encontrava, era muito pesado. Precisava da picada para que se tornasse mais leve. Chegado o momento do encontro com a serpente, o Pequeno Príncipe não gritou. Aceitou corajosamente o seu destino. Tombou como uma árvore tomba. E assim, voltou para o seu planeta, enfim. O narrador, dias mais tarde, conseguiu se salvar, sentindo-se consolado porque sabia que o pequeno príncipe havia voltado para o planeta dele, pois ao raiar do dia seguinte à picada, o corpo do pequeno não estava mais no local. Hoje, ao olhar as estrelas, o narrador sorri, lembrando-se do seu grande pequeno amigo. 34 APÊNDICE C – Aplicação EXEMPLO DE APLICAÇÃO Relacionando, os dois primeiros parágrafos do resumo com o texto abaixo. Qual o papel da ciência aplicada [pensamento instrumental] na vida humana? E qual é o papel do pensamento (que medita) na sua relação com a ciência? Serenidade O homem atual está, pois, em fuga do pensamento, entrementes, paradoxalmente, nega essa fuga. Dirá, com plena razão, que vivemos num período de realizações formidáveis, avanços sequer sonhados pelos homens que nos antecederam. São tantas as pesquisas em andamento, são tantas as descobertas e aplicações que, apaixonadamente, somos tentados a negar a fuga do pensamento. Sem dúvida, esse dispêndio de sagacidade e reflexão, foi muito útil. Entretanto, não é o pensamento operativo que negamos. O pensamento que calcula, capaz de medir e projetar, apto em dominar preditivamente as forças ocultas da natureza –transformando todas as coisas em objetos úteis e mercantilizáveis – é cotidianamente louvado. Todavia, não é a única forma de pensar. Existe outro tipo de pensamento, o pensamento que medita e indaga pelo sentido das teorias, conceitos e práticas. O pensamento negligenciado, portanto, não é o pensamento que calcula, mas o pensamento que medita. Existem, pois, duas formas de pensamento, igualmente importantes: o pensamento que medita e o pensamento que calcula. Contudo, o pensamento que calcula, efetivamente, não exerce a atividade do pensamento em caráter estrito, pois não pergunta pelo sentido, não permanece junto às coisas, acolhendo-as em sua manifestação originária. O pensamento que calcula, ao representar esquematicamente as coisas, as esvazia de conteúdo, obstaculizando, assim, a relação do homem com o mundo. Esse pensamento útil e operativo, sobretudo, é incapaz de pensar a si mesmo, de indagar a si mesmo. Lá, onde o pensamento que calcula encontra seus limites e contradições, brota o pensamento que medita. O pensamento que medita é um pensamento que reflete, que busca dar conta das razões do existir. O pensamento que medita habita o mundo, acolhe o significado e pergunta, incessantemente, pelo significado de todas as coisas. Cf. HINRICHSEN, LE. Serenidade. In: Ética. Introdução à Filosofia Prática. (Impresso). P4, 2012. 35 ANEXO A – Mito da Caverna Sócrates – Agora imagina a maneira como segue o estado da nossa natureza relativamente à instrução e à ignorância. Imagina homens numa morada subterrânea, em forma de caverna, com uma entrada aberta à luz; esses homens estão aí desde a infância, de pernas e pescoço acorrentados, de modo que não podem mexer-se nem ver senão o que está diante deles, pois as correntes os impedem de voltar a cabeça; a luz chega-lhes de uma fogueira acesa numa colina que se ergue por detrás deles; entre o fogo e os prisioneiros passa uma estrada ascendente. Imagina que ao longo dessa estrada está construído um pequeno muro, semelhante às divisórias que os apresentadores de títeres armam diante de si e por cima das quais exibem as suas maravilhas. Glauco – Estou vendo. Sócrates – Imagina agora, ao longo desse pequeno muro, homens que transportam objetos de toda espécie, que o transpõem: estatuetas de homens e animais, de pedra, madeira e toda espécie de matéria; naturalmente, entre esses transportadores, uns falam e outros seguem em silêncio. Glauco – Um quadro estranho e estranhos prisioneiros. Sócrates – Assemelham-se a nós. E, para começar, achas que, numa tal condição, eles tenham alguma vez visto, de si mesmos e dos seus companheiros, mais do que as sombras projetadas pelo fogo na parede da caverna que lhes fica de fronte? Glauco – Como, se são obrigados a ficar de cabeça imóvel durante toda a vida? Sócrates – E com as coisas que desfilam? Não se passa o mesmo? Glauco – Sem dúvida. Sócrates – Portanto, se pudessem se comunicar uns com os outros, não achas que tomariam por objetos reais as sombras que veriam? Glauco – É bem possível. Sócrates – E se a parede do fundo da prisão provocasse eco, sempre que um dos transportadores falasse, não julgariam ouvir a sombra que passasse diante deles? Glauco – Sim, por Zeus! Sócrates – Dessa forma, tais homens não atribuirão realidade senão às sombras dos objetos fabricados. Glauco – Assim terá de ser. 36 Sócrates – Considera agora o que lhes acontecerá, naturalmente, se forem libertados das suas cadeias e curados da sua ignorância. Que se liberte um desses prisioneiros, que seja ele obrigado a endireitar-se imediatamente, a voltar o pescoço, a caminhar, a erguer os olhos para a luz: ao fazer todos estes movimentos sofrerá, e o deslumbramento impedi-lo-á de distinguir os objetos de que antes via as sombras. Que achas que responderá se alguém lhe vier dizer que não viu até então senão fantasmas, mas que agora, mais perto da realidade e voltado para objetos mais reais, vê com mais justeza? Se, enfim, mostrando-lhe cada uma das coisas que passam, o obrigar, à força de perguntas, a dizer o que é? Não achas que ficará embaraçado e que as sombras que via outrora lhe parecerão mais verdadeiras do que os objetos que lhe mostram agora? Glauco – Muito mais verdadeiras. Sócrates – E se o forçarem a fixar a luz, os seus olhos não ficarão magoados? Não desviará ele a vista para voltar às coisas que pode fitar e não acreditará que estas são realmente mais distintas do que as que se lhe mostram? Glauco – Com toda a certeza. Sócrates – E se o arrancarem à força da sua caverna, o obrigarem a subir a encosta rude e escarpada e não o largarem antes de o terem arrastado até a luz do Sol, não sofrerá vivamente e não se queixará de tais violências? E, quando tiver chegado à luz, poderá, com os olhos ofuscados pelo seu brilho, distinguir uma só das coisas que ora denominamos verdadeiras? Glauco – Não o conseguirá, pelo menos de início. Sócrates – Terá, creio eu, necessidade de se habituar a ver os objetos da região superior. Começará por distinguir mais facilmente as sombras; em seguida, as imagens dos homens e dos outros objetos que se refletem nas águas; por último, os próprios objetos. Depois disso, poderá, enfrentando a claridade dos astros e da Lua, contemplar mais facilmente, durante a noite, os corpos celestes e o próprio céu do que, durante o dia, o Sol e a sua luz. Glauco – Sem dúvida. Sócrates – Por fim, suponho eu, será o Sol, e não as suas imagens refletidas nas águas ou em qualquer outra coisa, mas o próprio Sol, no seu verdadeiro lugar, que poderá ver e contemplar tal como é. Glauco – Necessariamente. Sócrates – Depois disso, poderá concluir, a respeito do Sol, que é ele que faz as estações e os anos, que governa tudo no mundo visível e que, de certa maneira, é a causa de tudo o que ele via com os seus companheiros, na caverna. Glauco – É evidente que chegará a essa conclusão. 37 Sócrates – Ora, lembrando-se da sua primeira morada, da sabedoria que aí se professa e daqueles que aí foram seus companheiros de cativeiro, não achas que se alegrará com a mudança e lamentará os que lá ficaram? Glauco – Sim, com certeza, Sócrates. Sócrates – E se então distribuíssem honras e louvores, se tivessem recompensas para aquele que se apercebesse, com o olhar mais vivo, da passagem das sombras, que melhor se recordasse das que costumavam chegar em primeiro ou em último lugar, ou virem juntas, e que por isso era o mais hábil em adivinhar a sua aparição, e que provocasse a inveja daqueles que, entre os prisioneiros, são venerados e poderosos? Ou então, como o herói de Homero, não preferirá mil vezes ser um simples criado de charrua, a serviço de um pobre lavrador, e sofrer tudo no mundo, a voltar às antigas ilusões e viver como vivia? Glauco – Sou da tua opinião. Preferirá sofrer tudo a ter de viver dessa maneira. Sócrates – Imagina ainda que esse homem volta à caverna e vai sentar-se no seu antigo lugar: não ficará com os olhos cegos pelas trevas ao se afastar bruscamente da luz do Sol? Glauco – Por certo que sim. Sócrates – E se tiver de entrar de novo em competição com os prisioneiros que não se libertaram de suas correntes, para julgar essas sombras, estando ainda sua vista confusa e antes que os seus olhos se tenham recomposto, pois habituar-se à escuridão exigirá um tempo bastante longo, não fará que os outros se riam à sua custa e digam que, tendo ido lá acima, voltou com a vista estragada, pelo que não vale a pena tentar subir até lá? E se a alguém tentar libertar e conduzir para o alto, esse alguém não o mataria, se pudesse fazêlo? Glauco – Sem nenhuma dúvida.