Web-Revista SOCIODIALETO • www.sociodialeto.com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande ISSN: 2178-1486 • Volume 5 • Número 13 • julho 2014 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE LÍNGUAS AFRICANAS E POLÍTICAS LINGUÍSTICAS EM ANGOLA Paulo Jeferson Pilar Araújo (USP/FAPESP) [email protected] RESUMO: Faz-se neste artigo algumas considerações sobre as línguas africanas em Angola e suas relações com as políticas linguísticas frente ao português, única língua oficial no país. A figura do linguista descritivistas é apontada como primordial para o conhecimento da diversidade e das variedades linguísticas existentes em Angola. São apontados alguns estudos realizados sobre essas línguas africanas e discute-se a posição dos linguistas frente às atitudes linguísticas dos falantes das línguas nacionais e as possíveis implicações para as políticas linguísticas a serem realizadas em Angola. São discutidos alguns pontos referentes a processos de “language shift” e “reversing language shift” para o caso das línguas africanas em Angola. PALAVRAS-CHAVE: Línguas africanas; Angola; política linguística; linguística descritivista; reversing language shift. ABSTRACT: Some considerations are made in this article about African languages in Angola and their relationship with language policies in relation to Portuguese, the only official language in the country. The figure of the descriptivist linguist is seen as crucial for understanding the diversity and linguistic varieties existing in Angola. Some studies on those African languages are shown and the position of linguists concerning the language attitudes of speakers of national languages and the possible implications to language policies are pointed. Some questions concerning the processes of "language shift" and "reversing language shift" in the case of African languages in Angola are discussed. KEYWORDS: African languages; Angola; language policy; descriptive linguistics; reversing language shift. 1 Introdução1 Para linguistas africanistas interessados na descrição e documentação de línguas africanas é quase impossível não esbarrar vez e outra com questões de políticas linguísticas. Um continente com cerca de um terço das línguas do mundo, a maioria delas consideradas como minoritárias (BATIBO, 2009, p. 292), tem um grande desafio para lidar com as diferentes línguas e povos encontrados nas suas fronteiras políticas. 1 Este artigo retoma alguns pontos do capítulo 1 da tese de doutorado em Araújo (2013) e inicia alguns questionamentos relacionados a um projeto de pós-doutorado financiado pela FAPESP (Processo n. 2013/20567-5) sobre contatos linguísticos entre o português e o quimbundo. Web-Revista SOCIODIALETO: Bach., Linc., Mestrado Letras UEMS/Campo Grande, v. 5, nº 13, jul. 2014 161 Web-Revista SOCIODIALETO • www.sociodialeto.com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande ISSN: 2178-1486 • Volume 5 • Número 13 • julho 2014 Fazemos neste artigo algumas reflexões sobre a situação das línguas africanas de Angola e o estatuto que elas têm recebido no que podemos chamar de política linguística angolana. Focalizaremos as línguas africanas do grupo banto, não deixando de atentar para o fato de que as mesmas conclusões podem ser aplicadas para o caso das demais línguas, como as da família coissan.2 Sendo assim, um diferencial deste trabalho em relação a outros sobre a temática (SEVERO, 2011;CZOPEK, 2011; PONSO, 2011; NZAU, 2011; INVERNO, 2009a; dentre outros) que tratam das línguas nacionais angolanas secundariamente em sua relação com o português, faremos neste artigo um deslocamento de eixo, colocando as línguas africanas como eixo das políticas linguísticas e suas relações com as variedades de português falado em Angola. Portanto, não nos deteremos apenas sobre a questão da língua portuguesa em Angola, mas do “empoderamento” (empowerment) das línguas africanas em suas relações com o português, seguindo assim a posição de Roy-Campbell (2006, p. 5) de que as línguas africanas devem assumir socialmente o poder que elas já possuem na cultura de cada povo. Na próxima seção, fazemos algumas considerações iniciais sobre os conceitos de política linguística e sua relação com o trabalho de linguistas descritivistas. Na seção seguinte, discutimos qual seria a realidade linguística em Angola, apesar do quase total desconhecimento das línguas africanas faladas no país. Na seção 4, nos detemos sobre as atitudes linguísticas de falantes de português e quimbundo. Na seção 5, fazemos uma reflexão sobre a possibilidade de processos de language shift, de línguas africanas para o português, e medidas que podem ser tomadas para um reversing language shift, conforme propostas de Fishman (2001; 1991). 2 As línguas africanas são apresentadas aqui em sua forma aportuguesada, seguindo proposta de Fiorin e Petter (2008, p. 10-11). Web-Revista SOCIODIALETO: Bach., Linc., Mestrado Letras UEMS/Campo Grande, v. 5, nº 13, jul. 2014 162 Web-Revista SOCIODIALETO • www.sociodialeto.com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande ISSN: 2178-1486 • Volume 5 • Número 13 • julho 2014 2 Sobre linguistas descritivistas e políticas linguísticas Nem todos os linguistas que trabalham com línguas pouco ou não descritas estão envolvidos em questões de política linguística. Por outro lado, há alguns linguistas que tomam para si a tarefa de luta política pela preservação, manutenção e promoção de determinada(s) língua(s), e isso além de desenvolver suas atividades de linguistas profissionais com a descrição das estruturas fonológicas e morfossintáticas e documentação das línguas no bojo de seus interesses científicos. Essas observações podem levantar as seguintes perguntas para um início de reflexão: o que leva um linguista descritivista a se interessar por política linguística? Ou o inverso, o que faz com que alguns desses linguistas não se interessem por políticas linguísticas? Neste artigo nos deteremos sobre um caso específico, o de linguistas que são levados a se interessar por políticas linguísticas por terem seus trabalhos de descrição linguística muitas vezes dificultados por políticas linguísticas implícitas de desvalorização de línguas nativas. Este artigo é, portanto, um trabalho de reflexão que toma para si a tarefa de considerar um caso bem particular: o estudo de línguas angolanas realizado por linguistas brasileiros e as consequências advindas desse trabalho. Ainda dentro desse caso particular, delimitamos o caso em que para a continuação e realização de um trabalho de descrição linguística, os descritivistas encaram a necessidade de uma tomada de ação quando entram em jogo as dificuldades de descrever as línguas africanas almejadas para um estudo científico. Rajagopalan (2013: 20), ao tentar delimitar a(s) área(s) de abrangência da Política Linguística como disciplina, colocar o linguista profissional como apenas mais um cidadão que deve e pode participar de ações de políticas linguísticas, mas não assumindo para si o papel de tecnocrata dessas ações. Concordamos em parte com o posicionamento de Rajagopalan, no entanto, defendemos que em boa parte dos procedimentos tomados para a implementação de políticas linguísticas a figura do linguista tem se tornado um pouco mais comum. Veja-se o caso da participação de Web-Revista SOCIODIALETO: Bach., Linc., Mestrado Letras UEMS/Campo Grande, v. 5, nº 13, jul. 2014 163 Web-Revista SOCIODIALETO • www.sociodialeto.com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande ISSN: 2178-1486 • Volume 5 • Número 13 • julho 2014 linguistas no Inventário Nacional da Diversidade Linguística no Brasil (MORELLO, 2012). Nas palavras de Rajagopalan (2013, p. 19): “Sem sombra de dúvida, a militância faz parte daquilo que chamamos de política linguística; mas é importante frisar que ela faz apenas uma pequena parte, ainda que vital.” O foco deste artigo será a realidade linguística de Angola, no entanto, não temos como objetivo tratar profundamente de todas as questões de política linguística desse país, antes de tudo pela simples razão de não haver dados atualizados confiáveis sobre os quais podemos nos posicionar.3 No entanto, faremos algumas considerações a partir dos dados disponíveis sobre as línguas africanas de Angola, de uma forma crítica. Seguindo essas reflexões, lançamos algumas hipóteses sobre trabalhos futuros nos quais os linguistas africanistas devem se posicionar frente os direcionamentos sentidos nas políticas linguísticas angolanas. Essas reflexões deverão servir tanto para linguistas brasileiros interessados em línguas angolanas como para os linguistas angolanos.4 3 Qual a realidade linguística de Angola? A história colonial de Angola contribuiu sobremaneira para um quase que total descaso com as línguas nativas dos seus povos. De acordo com o Ethnologue (LEWIS; SIMONS, 2013), cerca de 40 línguas são faladas em todo o território do país, mas infelizmente, devido a fatos como o tráfico de escravos do século XV ao XIX, a política proibitiva do uso das línguas nativas no período colonial por parte de Portugal, entre 1919 e 1960, e as guerras entre 1961 até 2002 fizeram de Angola um país marcado pelo multilinguismo e pela velha política oficial do monolinguismo (MONTEAGUDO, 2012). Todos esses fatores influenciaram lamentavelmente para a escassez de estudos e pesquisas das línguas faladas nesse país até recentemente. 3 Um Censo mais atual foi programado para maio de 2014, no entanto, a questão do número de falantes das línguas nacionais não foi incluída dentre as perguntas do Censo (Patissa, c.p.). 4 Espera-se ainda que um trabalho de maior fôlego e pautado em dados mais concretos seja realizado a partir das primeiras considerações discutidas neste artigo. Web-Revista SOCIODIALETO: Bach., Linc., Mestrado Letras UEMS/Campo Grande, v. 5, nº 13, jul. 2014 164 Web-Revista SOCIODIALETO • www.sociodialeto.com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande ISSN: 2178-1486 • Volume 5 • Número 13 • julho 2014 Com o fim da guerra e a reestruturação de Angola, a atenção de alguns linguistas africanistas se voltou para o país com fortes ligações históricas com o Brasil. Nesse caso, linguistas, principalmente aqueles ocupados com questões de contato entre o português e línguas bantas, buscaram ir a campo para a realização de pesquisas mais que necessárias, in loco, das variedades de português angolano (INVERNO, 2009a). No entanto, essa ida a campo dos linguistas esbarra de forma direta com resultados de políticas linguísticas realizadas de uma forma quase imperceptível na qual as línguas africanas nativas não assumem o verdadeiro papel que elas deveriam assumir. Antes de adentrar na relação de linguistas descritivistas com políticas linguísticas fazemos uma rápida apresentação das línguas angolanas nas seções que seguem. 3.1 Para o conhecimento da diversidade linguística de Angola O território angolano possui três zonas linguísticas do grupo banto, as zonas H, K e R, que também abrangem alguns países fronteiriços (MAHO, 2003).As línguas do grupo banto são classificadas em zonas designadas por letras do alfabeto (A, B, C, D...) subdivididas por dezenas (H. 10; H. 16; R. 10; R. 20, etc.). Dentre as línguas bantas em Angola, o umbundo é a mais falada, seguida do quimbundo e quicongo. Aparentemente, apenas o umbundo não é falado fora do país. Seis línguas são consideradas nacionais e contam com alfabetos (DIÁRIO DA REPÚBLICA, 1987). Cinco delas foram escolhidas pelas seguintes razões: históricas (quicongo e quimbundo), geográficas (dialetos centrais do umbundo e chôcue), e razões sociolinguísticas (kwanyama é o principal dialeto do Oshiwambo no território angolano). Apenas a língua mbunda como representante do ganguela não parece ter sido escolhida por nenhum dos critérios acima (Diarra, 2003, p. 187). Fora as seis línguas mencionadas acima, a realidade e diversidade linguística de Angola ainda estão por ser conhecidas. Não se sabe ao certo quais são as variedades das Web-Revista SOCIODIALETO: Bach., Linc., Mestrado Letras UEMS/Campo Grande, v. 5, nº 13, jul. 2014 165 Web-Revista SOCIODIALETO • www.sociodialeto.com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande ISSN: 2178-1486 • Volume 5 • Número 13 • julho 2014 principais línguas faladas em Angola. Um exemplo é o caso do estudo de variedades linguísticas pouco ou não descritas, como é o caso de variedades das línguas nacionais pouco conhecidas, por exemplo, a variedade do quimbundo chamado kibala-ngoya, falado nas regiões de transição entre o quimbundo e o umbundo. Tal indeterminação recebeu as seguintes palavras de Angenot, Ndonga e Ribeiro (2011): É propositalmente que recorremos à denominação “falar” ao referirmos ao kibala na medida em que paira alguma incerteza sobre a questão desaber se é uma variante dialetal assaz distante da língua kimbundu [H21],uma língua autônoma dentro do grupo kimbundu [H20] ou – a priori porque não – do grupo umbundu [R10], ou se se trata de um falar híbrido detransição entre as zonas tipológicas H e R do domínio bantu. (ANGENOT;NDONGA; RIBEIRO, 2011: 254) Quando se fala das principais línguas bantas faladas em Angola não se sabe ao certo qual a distribuição dessas variedades linguísticas, seja nas aglomerações urbanas ou nas áreas rurais. O conhecimento das línguas africanas de Angola é um ponto crucial para a efetivação de ações de política linguística no país, e, portanto, o trabalho de descrição e documentação linguística são etapas iniciais primordiais. Um outro exemplo é o caso do lingala que, embora seja uma língua de contato e veicular principalmente na República Democrática do Congo (RDC),de certa forma está se tornando uma língua angolana, pelo seu crescente uso no Norte de Angola e principalmente nas províncias de fronteira com a RDC, conforme reportado por Ndonga (2010, p. 168).O uso do lingala em território angolano é uma constatação que deve ser levado em conta, não diminuindo o estatuto dessa língua por ser uma língua de contato. Junta-se ao pouco conhecimento da diversidade linguística de Angola o quase total descaso pelo estudo das línguas angolanas. Até pouco tempo, as guerras eram a justificativa principal para a impossibilidade de as línguas angolanas surgirem como de interesse para o trabalho de linguistas. Os anos seguidos de paz e a reestruturação do país têm dado ânimo para o desenvolvimento de estudos linguísticos em Angola. Tópico da próxima seção. Web-Revista SOCIODIALETO: Bach., Linc., Mestrado Letras UEMS/Campo Grande, v. 5, nº 13, jul. 2014 166 Web-Revista SOCIODIALETO • www.sociodialeto.com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande ISSN: 2178-1486 • Volume 5 • Número 13 • julho 2014 3.2 As línguas angolanas e seus estudos Das línguas africanas de Angola, apenas aquelas que são faladas em países vizinhos contam com gramáticas de referência, a exemplo do herero (MÖHLIG; KAVARI, 2008) e ochindonga (FIVAZ, 2003). Outras línguas contam com gramáticas tonais, o kwanyama (HALME, 2004) e o ganguela (MANIACKY, 2003). As demais línguas contam com gramáticas produzidas por religiosos ou teses e dissertações produzidas mais recentemente.5 Talvez a iniciativa mais ambiciosa de descrição das línguas angolanas tenha sido o “Development of the national languages in the People’s Republic of Angola” (Desenvolvimento das línguas nacionais na República Popular de Angola), financiado pela Organização das Nações Unidas (ONU), entre 1978 e 1992 (DIARRA, 2003). Como resultado desse projeto cultural, alguns esboços gramaticais foram produzidos, mas nunca publicados. Diarra (2003) descreve em detalhes o contexto social e político antes e após a realização desse projeto e aponta, com um certo otimismo, para futuros desdobramentos desse projeto inicial (DIARRA, 2003, p. 190). Apesar de mais de vinte anos depois, nenhum outro projeto da mesma dimensão tenha sido realizado novamente. Esses estudos apontam para a figura do linguista descritivistas, mostrando que a etapa de descrição das línguas angolanas ainda está por ser completada, apesar das dificuldades ainda encontradas para tal tarefa. 5 Para uma lista de trabalhos sobre línguas angolanas, remetemos o leitor à tese de Araújo (2013, p. 23). Web-Revista SOCIODIALETO: Bach., Linc., Mestrado Letras UEMS/Campo Grande, v. 5, nº 13, jul. 2014 167 Web-Revista SOCIODIALETO • www.sociodialeto.com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande ISSN: 2178-1486 • Volume 5 • Número 13 • julho 2014 4 O linguista descritivista entre atitudes linguísticas e políticas linguísticas Além dos fatores apontados acima na seção 3.1 que dificultavam a realização de trabalhos de descrição linguística, o linguista interessado em línguas angolanas encara pelo menos dois outros fatores que dificultam, atualmente, a realização de trabalhos de pesquisa: as atitudes linguísticas dos próprios falantes e a indeterminação das políticas linguísticas realizadas em Angola. Esses dois fatores em conjunto apontam para um processo difícil de delimitar, mas que pode ser sentido em alguns casos, o de language shift, a ser tratado mais detidamente na seção 5. Em Araújo (2013) e Xavier (2010) encontramos relatos de angolanos que diziam não terem boa proficiência das suas línguas étnicas e por isso não puderam contribuir com a realização de pesquisa. Como justificativa para a pouca proficiência, os próprios angolanos relatavam que isso se dava devido ao português estar se tornando a língua veicular ou materna para muitos deles. Muitos angolanos apontam a existência de um preconceito linguístico explícito para com aqueles que fazem uso das línguas nacionais, o que tem tolhido o desejo de muitos de aprender e utilizar suas línguas étnicas. Não é raro encontrar angolanos que se ressinta de não dominarem completamente suas línguas maternas devido à pouca importância dada para o seu aprendizado como língua materna. 4.1 O caso do quimbundo ngoya do Libolo6 Em viagem de campo exploratória ao Libolo, município ao Norte da Província do Kwanza-Sul, em julho de 2013, a equipe de linguística do “Projeto Libolo” se 6 Essa seção faz parte de nosso trabalho como integrante do Projeto: “Município do Libolo, Kwanza Sul, Angola: aspectos linguístico educacionais, histórico culturais, antropológicos e sócio-identitários”, ou “Projeto Libolo”, coordenado pelo professor Carlos Figueiredo, da Universidade de Macau, e Márcia dos Santos Duarte de Oliveira, da Universidade de São Paulo. No referido Projeto, o autor deste artigo é responsável pela descrição da variedade do quimbundo falado no município em questão e sua relação com a variedade de português daquela região. Para uma melhor apresentação do referido projeto, remetemos o leitor a Figueiredo e Oliveira (2013). Web-Revista SOCIODIALETO: Bach., Linc., Mestrado Letras UEMS/Campo Grande, v. 5, nº 13, jul. 2014 168 Web-Revista SOCIODIALETO • www.sociodialeto.com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande ISSN: 2178-1486 • Volume 5 • Número 13 • julho 2014 deparou com uma realidade de contato bastante complexa devido, em parte, às atitudes linguísticas dos falantes e das consequências ainda sentidas da política linguística realizada pelos colonizadores em tempos anteriores. Grande parte das pessoas entrevistadas se dizia falante do português como língua materna e pouquíssimas pessoas disseram entender ou falar a variedade do quimbundo daquela região, o mesmo mencionado por Angenot, Ndonga e Ribeiro (2012), a variedade ngoya.Em muitos casos, essa língua africana é adquirida tardiamente pelo convívio familiar, com os mais velhos ou com as mães. O seguinte trecho de entrevista, coletado por um dos elementos da equipe de linguística do “Projeto Libolo” na comuna do Calulo, é bastante ilustrativo quanto às atitudes linguísticas dos falantes de quimbundo e português no Libolo:7 (1) Entrevista realizada no Mercado Kamama Entrevistadora M: O senhor nasceu aqui? Informante R: Naisci. M: E aprendeu o quimbundo quando? R: Desde que naisci [sobreposição] M: Desde que nasceu... R: Dez, doze anos já falava o dialeto. [sobreposição da entrevistadora] M: Já falava o dialeto... E continua falando? [sobreposição da fala do informante] R: Continua falando. Os meus filhos também que naisceram aqui já não falam. M: Já não falam. Por que não fala com eles. R: Porque eu, é... a língua [hesitação] mesmo no bairro... há muita gente de parte do bairro que ainda hoje não fala quimbundo porque ela tá em vias de ser eliminada. M: Por que tá [...] eliminada? R: Porque as pessoas começaram mais a falar o português. Agora só fala português. Já encontra as pessoas daqui, da faixa etária aí dos 18 anos que não sabem falar quimbundo. M: Não sabem... Mas nós vimos na escola que muitas crianças ainda sabiam falar quimbundo e falavam [interrompida] R: Mas na maioria não. 7 Os exemplos e trechos de entrevistas são retirados de nossas transcrições preliminares, sendo assim, ainda não estão devidamente organizadas e codificadas, etapas a serem cumpridas mais adiante. Web-Revista SOCIODIALETO: Bach., Linc., Mestrado Letras UEMS/Campo Grande, v. 5, nº 13, jul. 2014 169 Web-Revista SOCIODIALETO • www.sociodialeto.com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande ISSN: 2178-1486 • Volume 5 • Número 13 • julho 2014 M: A maioria não? R: A maioria não. A transcrição acima aponta para uma realidade linguística já sentida há mais de meio século, conforme se pode constatar nas palavras do padre Baião, organizador de um guia de conversação do quimbundo: Luanda e Malanje são os centros principais onde se fala o kimbundu, como língua nativa. Hoje, porém, nestas duas cidades a língua portuguesa alcançou a primazia que, em breve, alcançará em toda a parte, isto é, a preferência de ser compreendida e falada por todos os indígenas, graças ao progresso da civilização pela ocupação missionária dia a dia mais acentuada. (BAIÃO, 1946, p. 7) (Grifos nossos) No parágrafo seguinte, o religioso demonstra sua preocupação para com a língua africana: Antes que esse facto se realize, convém arquivar para o Erário Nacional as preciosidades linguísticas destes povos primitivos, que apresentam inconscientemente uma literatura nacional digna de registo, com um Folclore brilhante que nada fica a dever às línguas dos ditos povos civilizados.(BAIÃO, 1946, p. 7) O exemplo do quimbundo ngoya é ilustrativo do que deve estar ocorrendo nas crescentes aglomerações urbanas em Angola. Cada vez mais o português tem sido a língua materna de muitas crianças. A realidade presenciada no Libolo foi de que o quimbundo, de modo geral, está tornando-se cada vez mais restrito, sendo utilizado com mais frequência apenas pelos mais velhos. Foi possível identificar famílias nas quais cada membro demonstrava graus diferentes de fluência nessa língua banta. Essa situação aponta para um cenário que poderíamos qualificar como de language shift, guardadas as devidas particularidades. No entanto, não parece ser fácil fazer tal constatação em diversos contextos de bilinguismo, apesar das fortes atitudes negativas dos falantes em relação ao quimbundo e a necessidade de aprender o português, a língua Web-Revista SOCIODIALETO: Bach., Linc., Mestrado Letras UEMS/Campo Grande, v. 5, nº 13, jul. 2014 170 Web-Revista SOCIODIALETO • www.sociodialeto.com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande ISSN: 2178-1486 • Volume 5 • Número 13 • julho 2014 de prestígio, alguns linguistas consideram não está havendo tal processo de language shift por ainda ser possível encontrar falantes de quimbundo nos bairros periféricos das banzas ou centros urbanos administrativos. 5 Detectando processos de language shift em Angola? Iniciamos com uma rápida definição de language shift: Na maioria dos casos, o processo de language shift envolve o uso progressivo de língua dominante em uma situação marcadamente de bilinguismo e o eventual abandono da língua materna minoritária por parte dos falantes em favor da língua dominante, particularmente aquelas línguas que são usadas largamente para a comunicação ou que têm assumido um papel público, como na educação, administração ou que são usadas no mercado de trabalho. (Batibo, 2009, p. 292-3) (Tradução nossa) Os processos de language shift pode, portanto, ocasionar a morte de uma língua. Por ser marcado pelo bilinguismo, o processo de language shift pode está relacionado com o decode-switching (o uso alternado de duas ou mais línguas em uma mesma situação conversacional). Em português, os dois termos são às vezes traduzidos por “alternância de línguas”, o que ocasiona uma certa confusão entre as duas situações. Uma alternativa seria traduzir langauge shift por“alternância linguística” e codeswitching por “alternância de código”, porém, na impossibilidade de nos determos sobre uma melhor tradução para esses termos, ficam aqui as formas em inglês, utilizadas como termos técnicos. Feitas as considerações acima, a questão a ser discutida é a de se existe ou não um processo de language shift em Angola. Para o caso do quimbundo falado no Libolo, a realidade aponta para uma afirmativa, o que nos leva a discordar das palavras de Batibo: Web-Revista SOCIODIALETO: Bach., Linc., Mestrado Letras UEMS/Campo Grande, v. 5, nº 13, jul. 2014 171 Web-Revista SOCIODIALETO • www.sociodialeto.com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande ISSN: 2178-1486 • Volume 5 • Número 13 • julho 2014 Por outro lado, em alguns países como Moçambique e Angola, o português, apesar da política de assimilação, tem penetrado nas camadas populares, a maioria das pessoas, especialmente nas áreas rurais, falam o português como segunda língua e alguns são ainda largamente monolíngues em suas respectivas línguas. A ligação social e cultural a essa língua ex-colonial não é forte o suficiente para motivar qualquer alternância das línguas nativas para o português. (Batibo, 2009, p. 292) (Tradução livre) De acordo com Batibo, o português em Moçambique e em Angola estaria agindo da mesma forma, apesar do seu prestígio como língua oficial, as línguas africanas não estariam em processo de language shift. No entanto, talvez esse seja o caso adequado para descrever a realidade de Moçambique, mas não a de Angola. Discordamos da forma como Batibo atesta a mesma realidade para os dois países com algumas distinções tanto de história linguística como de política linguística. O rápido quadro esboçado sobre o caso do quimbundo na subseção 4.1 pode indicar, sim, que o processo de language shift esteja se desenrolando em contextos sociais específicos em Angola, mesmo que de uma forma não tão perceptível nas aglomerações urbanas menores ou no interior onde as línguas africanas são utilizadas bem mais que a língua do colonizador. Aqui nos deparamos com a problemática de assegurar se processos de language shift realmente ocorrem em certas áreas de Angola, novamente, pelo quase total desconhecimento da realidade sociolinguística do país. Pelo menos para o caso do quimbundo no Libolo os próprios falantes acreditam que a língua dos seus antepassados esteja em processo de “ser eliminada”, conforme entrevista em (1). O fato de Angola ainda estar engatinhando na execução de uma política linguística mais dura para que as línguas nacionais sejam ensinadas na escola deixa com que o trabalho de descrição linguística ainda seja uma tarefa em realização, e com isso, envolve de uma forma mais próxima os trabalhos de descrição com os de planejamento linguístico. Web-Revista SOCIODIALETO: Bach., Linc., Mestrado Letras UEMS/Campo Grande, v. 5, nº 13, jul. 2014 172 Web-Revista SOCIODIALETO • www.sociodialeto.com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande ISSN: 2178-1486 • Volume 5 • Número 13 • julho 2014 5.1 O papel do linguista descritivista e as políticas linguísticas Além do trabalho que qualquer linguista africanista tem na produção de gramáticas, o linguista interessado nas línguas angolanas sente que não pode deixar de atentar para os rumos que as políticas linguistas direcionam os esforços para a promoção das línguas de seu interesse. A única alternativa deixada para esse linguista é o do engajamento político, o de pensar nos resultados de seu trabalho científico em conjunto com um melhor aproveitamento social desse trabalho. Essa é praticamente a ideia defendida por Fishman (2006), linguista que tem dedicado sua vida em favor das línguas minoritárias. Tal engajamento muda um pouco o rumo de como na maioria das vezes acontece o trabalho de descrição linguística. Geralmente uma determinada língua chama a atenção de um estudioso que depois de estudar os fenômenos gramaticais de interesse e utilizar alguns dados como exemplo em um artigo ou livro volta a seguir seu percurso acadêmico, independentemente se aquela língua terá alguma vitalidade ou não. O quadro se inverte quando a vitalidade da língua em perigo é um empecilho para a realização do trabalho do linguista. Não intentando dar uma última palavra sobre medidas que podem ser tomadas pelos linguistas para a promoção de línguas minoritárias, mencionamos alguns exemplos de ação que de alguma forma podem acompanhar o trabalho do linguista descritivistas na subseção que segue. 5.2 Ações de engajamento em políticas linguísticas Um primeiro ponto a ser pensado é a posição do linguista em relação com os falantes da(s) língua(s) de seu interesse. Os linguistas de campo geralmente se inserem, ou pelo menos tentam se inserir, nas comunidades onde estão os falantes, seus informantes e colaboradores. Nem sempre a inserção é eficaz, mas com o trabalho de descrever uma língua minoritária, a cultura e a vida social dos falantes devem ser Web-Revista SOCIODIALETO: Bach., Linc., Mestrado Letras UEMS/Campo Grande, v. 5, nº 13, jul. 2014 173 Web-Revista SOCIODIALETO • www.sociodialeto.com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande ISSN: 2178-1486 • Volume 5 • Número 13 • julho 2014 levadas em conta. E, novamente, o respeito pelos direitos linguísticos desses falantes. Uma tarefa implícita para esse linguista é inevitavelmente o de promover o uso e preservação das línguas minoritárias, tanto no eixo educacional, econômico, social, etc. Respeitar os próprios falantes das línguas estudadas é também contribuir de alguma forma para iniciativas tomadas pelos próprios falantes para o aumento do prestígio das suas línguas maternas, como é o caso da língua umbundo e algumas ações que tem sido tomadas por professores e escritores quanto ao uso dessa língua nacional. Por exemplo, desde 2008 o escritor angolano Gociante Patissa mantém um blog escrito em umbundo e português.8 Outra iniciativa foi a criação de uma associação voltada exclusivamente para o umbundo e sua tradição oral, liderada pela professora Antonieta Kulanda: o Etumbuluko LyeLimi Lyumbundu - AELLU.9 6 Considerações finais Um país com uma diversidade linguística ainda a ser explorada, como Angola, e os programas pouco motivadores de conhecimento das línguas nativas dão ao linguista descritivista responsabilidades maiores que o clássico ofício de descrever línguas de tradição oral, até porque as políticas linguísticas podem interferir inevitavelmente no seu trabalho de descrição. Tomando essa constatação, discutimos neste artigo a necessidade que alguns linguistas têm tido de acompanhar e participar em questões de política linguística. Consideramos, assim, que a realidade linguística de Angola é ainda um desafio que demanda esforços humanos e financeiros para um melhor conhecimento da sua diversidade linguística. O linguista africanista voltado para o estudo das línguas angolanas encara constantemente as consequências das políticas linguísticas que se arrastam em Angola até o momento, além das atitudes linguísticas dos próprios falantes, marcada negativamente por diversos fatores, nomeadamente históricos. Depois de 8 9 O blog pode ser acessado em: http://ombembwa.blogspot.com.br/. Infelizmente não temos notícias de iniciativas semelhantes para outras línguas nacionais. Web-Revista SOCIODIALETO: Bach., Linc., Mestrado Letras UEMS/Campo Grande, v. 5, nº 13, jul. 2014 174 Web-Revista SOCIODIALETO • www.sociodialeto.com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande ISSN: 2178-1486 • Volume 5 • Número 13 • julho 2014 utilizar o caso do quimbundo ngoya falado no Kwanza-Sul, levantamos a questão de como podem estar ocorrendo possíveis processos de langauge shift em Angola, principalmente nas crescentes formações urbanas do país. Ao levantar a problemática de processos de language shift, constatamos a necessidade cada vez maior de um engajamento, por parte dos linguistas, nas ações de política linguística voltadas para as línguas africanas angolanas, além de algumas iniciativas que podem ser seguidas pelos estudiosos em seus trabalhos de investigação. Por fim, atestar ou não que as novas gerações em Angola estão deixando as línguas dos avós, à medida que se dirigem para os centros urbanos e que seguem para os níveis mais altos de escolaridade, é outra tarefa dos linguistas africanistas e um motivo mais que urgente para que esses mesmos linguistas se interessem por políticas linguísticas. Referencias ANGENOT, Jean-Pierre; NDONGA, Mfuwa; RIBEIRO, Michela Araújo. As classes nominais do kibala-ngoya, um falar bantu de Angola não documentado, na intersecção dos grupos kimbundu [H20] e umbundo [R10]. Papia 21(2), 2011, p. 253-266. ARAÚJO, Paulo Jeferson Pilar. Domínios conceituais das construções locativas, existenciais, comitativas e possessivas em línguas bantas. Tese Doutorado (Linguística) Universidade de São Paulo-USP, São Paulo, 2013. BAIÃO, Domingos Vieira. O Kimbundo sem Mestre. Porto: Imprensa Moderna, 1946. BATIBO, Herman M. Language endangerment and death in Africa: what roles have the colonial languages played? 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