Ficha Catalográfica Anais do IV Encontro Internacional de História Colonial. Encontros com a história colonial / Rafael Chambouleyron & KarlHeinz Arenz (orgs.). Belém: Editora Açaí, volume 1, 2014. 279 p. ISBN 978-85-61586-70-5 1. História – Colonização portuguesa. 2. Espaço – América Portuguesa – História. 3. Ocupação – Território – Colonização – América colonial. 4. História. CDD. 23. Ed. 338.9976 Apresentamos os Anais do IV Encontro Internacional de História Colonial, realizado em Belém do Pará, de 3 a 6 de Setembro de 2012. O evento contou com a participação de aproximadamente 750 pessoas, entre apresentadores de trabalhos em mesas redondas e simpósios temáticos, ouvintes e participantes de minicursos. O total de pessoas inscritas para apresentação de trabalho em alguma das modalidades chegou quase às 390 pessoas, entre professores, pesquisadores e estudantes de pós-graduação. Ao todo estiveram presentes 75 instituições nacionais (8 da região Centro-Oeste, 5 da região Norte, 26 da região Nordeste, 29 da região Sudeste e 7 da região Sul) e 26 instituições internacionais (9 de Portugal, 8 da Espanha, 3 da Itália, 2 da França, 2 da Holanda, 1 da Argentina e 1 da Colômbia). O evento só foi possível graças ao apoio da Universidade Federal do Pará, da FADESP, do CNPq e da CAPES, instituições às quais aproveitamos para agradecer. Os volumes destes Anais correspondem basicamente aos Simpósios Temáticos mais um volume com alguns dos textos apresentados nas Mesas Redondas. Boa leitura. A Comissão Organizadora Sumário O domínio colonial e as populações do novo mundo Silvia Hunold Lara.....................................................................................................................1 População no mundo colonial: algumas reflexões sobre o espaço luso na América Ana Silvia Volpi Scout.............................................................................................................15 A importância do porto do Rio de Janeiro nos séculos XVI-XVII para a expansão e consolidaçao dos lusos na fronteira da América Meridional Luiz Guilherme Scaldaferri Moreira..........................................................................................27 A “chave de prata do Brasil”: o rio da prata como a fronteira sul da América Portuguesa Paulo César Possamai ...............................................................................................................44 “É de minha conquista e cabe debaixo de minha demarcação”: o Prata na gestão da monarquia portuguesa (1640-1680) Marcello José Gomes Loureiro....................................................................................................59 As missões austrais: os jesuítas e o poder local nas fronteiras Maria Cristina Bohn Martins ...................................................................................................72 Daniel Concina e Diego de Avendaño: dominicanos e jesuitas no debate sobre o probabilismo jurídico na América do século XVII Rafael Ruiz...............................................................................................................................85 Antônio Vieira e a diplomacia da Restauração portuguesa Ronaldo Vainfas .......................................................................................................................96 De corpo e alma: o vínculo entre freiras e confesores nos conventos portugueses do século XVIII Georgina Silva dos Santos....................................................................................................... 109 Jesuítas: “os mais perigosos inimigos” da West Indische Compagnie na América Portuguesa (1624-1654) Mário Fernandes Correia Branco............................................................................................ 116 O corpo eloquente da palavra divina: pressupostos e métodos para o estudo dos aspectos não verbais da pregação (séculos XVI-XVIII) Guilherme Amaral Luz ......................................................................................................... 130 Os Mártires Jesuítas na Ocupação Espiritual do Território, séculos XVI a XVIII: América e outras partes Renato Cymbalista ................................................................................................................. 142 Carreiras e trajetórias da magistratura letrada que atuou nas Minas Setecentistas: relações de poder, possibilidades de progressão e corrupção Maria Eliza de Campos Souza.............................................................................................. 166 Ouvidores régios e as redes comerciais locais: negócios e conflitos na capitania do Ceará no século XVIII Reinaldo Forte Carvalho......................................................................................................... 179 Os governadores gerais e os governos das capitanias: governação no Estado do Brasil, 1654-1681 Francisco Carlos Cosentino ..................................................................................................... 193 Os governadores e a prática do contrabando na Capitania de Mato Grosso (1752-1793) Nauk Maria de Jesus............................................................................................................. 210 Os homens de negócio da colônia do Sacramento e o contrabando de escravos para o Rio da Prata (1749-1777) Fábio Kühn............................................................................................................................ 221 Un Emblema Volante…! A Adaptação da Tradição Emblemática nas Missões Jesuíticas da América Latina (séculos XVI-XVIII) Renata Maria de Almeida Martins ........................................................................................ 236 Grotescas, Emblemas, Empresas: Funções do Ornamento no Sistema Figurativo Híbrido da América Colonial Luciano Migliaccio.................................................................................................................. 252 A Paisagem Política em Frans Post: A Pax Nassoviana e a guerra pelo Atlântico Sul Daniel de Souza Leão Vieira................................................................................................. 263 Encontros com a história colonial 1 O domínio colonial e as populações do novo mundo Silvia Hunold Lara1 Um dos códices da coleção “Conde dos Arcos”, no Arquivo da Universidade de Coimbra, intitulado “Disposições dos governadores de Pernambuco”,2 contém documentos à primeira vista estranhos. Na parte de baixo da folha 334 está a cópia de um “papel” enviado por Aires de Souza de Castro, então governador da capitania, a Gangazumba.3 Datado de 22 de junho de 1678, o texto chama a atenção por seu destinatário que, como se sabe, foi um dos líderes de Palmares. Depois de declinar seus títulos, o governador dirige-se a Gangazumba para avisálo de que, em nome do príncipe de Portugal, remetia-lhe “o bem da liberdade” e o perdoava por ter vivido “há tantos anos fora da [sua] obediência”.4 A concessão se justifica pelo fato de o governador e os “filhos e família” de Gangazumba (que compunham uma embaixada palmarina enviada ao Recife) terem acertado que “todos os negros [dos] Palmares e os mais potentados deles” viriam, em paz, se instalar na aldeia de Cucaú. O texto detalha as negociações realizadas na presença do Conselho da capitania, enuncia os termos ajustados e reitera as promessas feitas na ocasião. Sob a ameaça de retomada da guerra, Gangazumba tem um prazo de 30 dias para confirmar o que foi acordado por seus embaixadores.5 Essa não foi a única comunicação enviada pelo governador de Pernambuco ao líder dos Palmares: naquele códice há ainda duas outras cartas dirigidas a ele, que vão copiadas mais adiante. E mais outra, destinada a Gangazona, irmão de Gangazumba. Elas indicam que o “principal” dos Palmares concordou com os termos do acordo, pois na primeira delas, datada de 24 de julho de 1678, o governador acusa o recebimento de um presente e de uma carta de Gangazumba, trazidos pelos 1 Depto. História – UNICAMP. Disposições dos governadores de Pernambuco (1648-1696). Arquivo da Universidade de Coimbra (AUC), CCA, IV, 3ª-I-1-31. O volume contém cópia com letra do século XVIII dos registros de provisões, cartas, ordens e outros documentos enviados pelos governadores de Pernambuco a diversas autoridades. 3 Ganazumbà, no original. Adoto aqui, para melhor comunicação, os nomes fixados pela historiografia. 4 Papel que escreveu ao principal dos negros dos Palmares sobre as pazes que determinavam fazer, em 22 de junho de 1687. AUC, VI, 3ª-I-1-31, fls. 334-334v, n. 6. O título do documento é o que consta do índice desse códice. 5 Uma cópia desse “papel” foi remetida a Portugal em junho de 1678, junto com uma carta do governador de Pernambuco, escrita no dia 22 daquele mês. Cópia do papel que levaram os negros dos Palmares. Doc. anexo à carta do governador Aires de Souza de Castro de 22 de junho de 1678. Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), AHU_ACL_CU_015, Cx. 11, D. 1116. O prazo de 30 dias consta apenas da cópia do AHU. 2 ISBN 978-85-61586-70-5 2 IV Encontro Internacional de História Colonial embaixadores que tinham vindo ao Recife confirmar o acordo, pouco antes de vencer o prazo dos 30 dias. Aires de Souza de Castro manda notícias da mulher e dos filhos de Gangazumba que haviam permanecido no Recife, reitera sua disposição em cumprir as promessas feitas e expressa a estima que tinha em ver que Gangazumba mostrava-se disposto a viver “debaixo da [sua] obediência”, pois nas novas terras que lhe haviam sido concedidas, poderia “viver muito a [seu] gosto”, com “descanso e conveniência”.6 As duas últimas cartas datam de 12 de novembro, quase cinco meses depois da reunião do Conselho da capitania. Elas evidenciam que o acordo se concretizou: na primeira, o governador saúda e dá boas vindas a Gangazumba por ter chegado em paz a Cucaú, avisa que providenciou farinha e soldados para auxiliá-lo na instalação de sua gente e que os padres prometidos já haviam sido enviados. Mas também lamenta a morte do filho de Gangazumba que, segundo ele, havia sido batizado e morrera como cristão.7 A segunda, dirigida a Gangazona, é ainda mais objetiva e indica haver maior proximidade entre os correspondentes, talvez por tratar de assuntos mais práticos. O texto menciona uma carta anterior de Gangazona e outra, de um dos soldados que havia levado uma cópia do “papel” do acordo a Palmares, que noticiam o deslocamento de muita gente em direção a Cucaú, inclusive de um grupo que “viria em breve”, em companhia de Zumbi. Gangazona é tratado com a mesma deferência que Gangazumba e, mais uma vez, a confiança na palavra empenhada e no cumprimento das promessas feitas é reafirmada.8 O texto que selou o ajuste foi escrito como um documento que emana do governo de Pernambuco: começa com a fórmula tradicional da identificação da autoridade delegada a Aires de Souza de Castro pelo príncipe de Portugal, mas, ao invés de expor suas determinações, descreve promessas e concessões, faz oferecimentos e pedidos. É, explicitamente, um texto escrito para ser explicado por intermediários qualificados - dois “soldados mui honrados e mui antigos” que sabem a “língua” dos Palmares e serviram de emissários do governador.9 Aires de Souza de Castro e os demais oficiais pernambucanos não parecem ter tido dificuldade em relação aos nomes de origem africana, que nesses documentos designam pessoas específicas, nem às relações de parentesco entre os que governam Palmares. Esses e outros nomes, bem como as relações de afinidade e parentesco, 6 Carta de Aires de Souza de Castro de 24 de julho de 1678. AUC, CCA, IV, 3ª-I-1-31, fls. 336v, n. 13. 7 Carta de Aires de Souza de Castro a Gangazumba, de 12 de novembro de 1678. AUC, CCA, IV, 3ª-I-1-31, fls. 337-337v, doc. 15. 8 Carta de Aires de Souza de Castro a Gangazona de 12 de novembro de 1678. AUC, CCA, IV, 3ª-I-1-31, fl. 337v, doc. 16. 9 Papel que escreveu ao principal dos negros dos Palmares sobre as pazes que determinavam fazer, em 22 de junho de 1687. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 3 aparecem nomeadas na correspondência administrativa entre o governo de Pernambuco e o Conselho Ultramarino, sobretudo a partir do final da década de 1670.10 Nas cartas que são examinadas aqui têm papel de destaque. Foram os filhos e irmãos do “principal” de Palmares que lideraram as embaixadas e falaram em seu nome, e dois de seus filhos permaneceram no Recife para atestar a veracidade da palavra empenhada.11 A hierarquia política de Palmares foi, assim, reconhecida e aceita pelo governo de Pernambuco, que acompanhou sua instalação nas terras de Cucaú. Esses textos seguem as regras retóricas que caracterizam documentos desse tipo e mencionam a troca de cartas e presentes. Isso não significa que, em tão breve tempo, laços de amizade, como entendemos hoje esse sentimento, tenham se desenvolvido entre aqueles homens - mas sim que estamos diante de textos que seguem os rituais da escrita administrativa e do diálogo entre autoridades com crédito e poder equivalentes. É exatamente por serem documentos oficiais que foram registrados pela secretaria de governo de Pernambuco12 e aparecem copiadas nesse códice da coleção Conde dos Arcos. 10 A descrição mais detalhada, porém, aparece na crônica anônima provavelmente escrita em homenagem a d. Pedro de Almeida em 1678, cuja transcrição foi publicada na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 22, p. 303-329, 1859 com o título: Relação das guerras feitas aos Palmares de Pernambuco no tempo do governador dom Pedro de Almeida de 1675 a 1678 (M. S. offerecido pelo Exm. Sr. Conselheiro Drummond). É importante lembrar que Joseph Miller já observou que a hierarquia política, entre os Mbundo, pode muitas vezes ter sido expressa por meio da metáfora do parentesco. Assim as relações entre pai e filho, entre tio e sobrinho ou entre irmãos, podem significar relações de submissão ou posições que impliquem certos direitos ou obrigações. MILLER, Joseph C. Kings and kinsmen: early Mbundu states in Angola. Oxford: Clarendon Press, 1976, p. 45. O mesmo pode talvez se aplicar às relações de parentesco aqui mencionadas. 11 Ivan Alves Filho afirma que Aires de Souza de Castro adotou dois filhos de Gangazumba quando da primeira embaixada enviada ao Recife. Há outras referências de que, ao serem batizados, teriam recebido nomes cristãos que incorporaram o nome do governador. ALVES FILHO, Ivan. Memorial dos Palmares. Rio de Janeiro: Xenon, 1988, p. 91. A informação deve ter origem em Domingos Loreto Couto que destaca, dentre os “homens pretos” pernambucanos “valorosos”, dom Pedro de Souza Castro Gangazona, natural de Cucaú, e Brás de Souza Castro, irmão de Gangazona - ambos filhos de Gangazumba, que teriam combatido os “negros rebelados”. COUTO, Domingos do Loreto. Desagravos do Brazil e Glórias de Pernambuco [1757]. Anais da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, v. 25, p. 107, 1903. Não localizei documentos administrativos que confirmem essas informações. 12 Para uma visão geral da atuação administrativa da secretaria da capitania de Pernambuco ver MELO, Josemar Henrique de. A idéia de arquivo: a secretaria do governo da capitania de Pernambuco (1687-1809). Porto: Tese de Doutoramento - Universidade do Porto, 2006. Para uma avaliação de toda a coleção do “Conde dos Arcos”, ver o Guia do arquivo da Universidade. Boletim do Arquivo da Universidade de Coimbra. Coimbra, v. 1, p. 159, ISBN 978-85-61586-70-5 4 IV Encontro Internacional de História Colonial A leitura dessas fontes suscita, de imediato, muitas perguntas. Evidentemente várias delas dizem respeito à história de Palmares e do acordo de 1678 - temas que não vou tratar aqui. Meu interesse, nesse momento, é discutir alguns aspectos que permitem explicar como e por que um governador de uma das mais importantes capitanias do Estado do Brasil no século XVII pôde se corresponder com chefes de mocambos formados por escravos fugidos. O caminho leva, necessariamente a uma discussão sobre os processos da dominação escravista no Brasil da segunda metade do século XVII e, também, sobre as formas do domínio colonial no Novo Mundo. Meu ponto de partida é o fato de que essas cartas registram a continuidade da relação entre autoridades que se reconhecem mutuamente com poderes e hierarquias governamentais, ao mesmo tempo militares e políticas. O que chama a atenção, nesses textos, é o tratamento formal e igualitário entre seres tão diferentes e distantes, do ponto de vista da cultura ou das relações de dominação - seja ela colonial ou escravista. Trata-se de um “concerto de potência a potência”, como disse uma vez Mário Martins de Freitas.13 Com o acordo firmado em 1678, o príncipe de Portugal passava a ser o senhor de todos (“meu e vosso senhor”, como afirmou Aires de Souza de Castro na primeira carta mencionada aqui) - mas isso não eliminou a hierarquia palmarina. Assim como o governador negociou em nome do príncipe, os filhos de Gangazumba falaram em seu nome. E ele, por meio dos filhos embaixadores, assumiu o compromisso em nome de todos os que estavam sob seu poder. O poder de Gangazumba e a hierarquia política interna aos Palmares não foram postos em questão nem limitados por qualquer palavra no documento. Nas cartas subsequentes, a obediência, essa “virtude que inclina a executar os mandados do superior e sujeita a vontade de um homem à de outro”, como a definiu Raphael Bluteau,14 serviu para reiterar a cadeia hierárquica que liga Gangazumba ao governador e este ao príncipe - o único a não ser obediente a ninguém, salvo a Deus. Esse ordenamento, que pressupõe uma solidariedade que caminha verticalmente em direção ao soberano, faz parte da concepção de vassalagem, tal como entendida nesse período, e como praticada não só no Reino,15 mas também nas “Conquistas”.16 1973. Ver também MELLO, Evaldo Cabral de. A fronda dos mazombos. Nobres contra mascates. Pernambuco, 1666-1715. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 14. 13 FREITAS, Mário Martins de. Reino Negro de Palmares [1954]. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 2ª ed., 1988, p. 251. 14 BLUTEAU, Raphael. Vocabulário portuguez & latino. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712-1728, verbete “obediência”. Acessível em: http://www.brasiliana.usp.br/en/dicionario/1/obedi%C3%AAncia. 15 Obediência e perdão eram elementos fundamentais da concepção monárquica durante a segunda metade do século XVII. Dentre os principais atributos do soberano estavam a justiça, a capacidade de garantir fortuna e segurança aos súditos, e o respeito aos usos e ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 5 Há aqui uma sintaxe política que é preciso compreender e que está associada ao modo como os colonizadores e as populações do Novo Mundo entraram em contato e se enfrentaram no processo de construção das formas de domínio na área colonial. Esse é o tema central desse breve texto. O fenômeno histórico que enquadra a questão que se está discutindo é o da expansão europeia da época moderna, que incorporou novas áreas “além-mar” ao domínio das monarquias nacionais que se haviam formado naquele continente. No caso português, que focalizo aqui, esse processo envolveu a formação de um império colonial, que articulava territórios espalhados pelos quatro cantos do mundo, habitados por uma diversidade de povos. Não há dúvida a respeito das tensões e dilemas que a dominação colonial fez brotar e os historiadores não se cansam de debater a natureza dos vínculos e nexos políticos, econômicos e culturais que estiveram em jogo no processo de dominação e exploração das riquezas do Novo Mundo pelos europeus.17 Grande parte da literatura sobre o tema da expansão ultramarina e da colonização europeia no ultramar tem se dedicado a analisar seus aspectos econômicos e políticos mais amplos. A colonização tem sido habitualmente tratada pela historiografia a partir de grandes temas relacionados à economia, como a ocupação, o povoamento e a valorização das terras do Novo Mundo, ou a exploração das riquezas produzidas costumes, ao direito natural e às regras tradicionais. Para ser obedecido por seus vassalos, o rei ou seus delegados tinham que governar com justiça e respeitar os usos e costumes locais. Ao perdoar Gangazumba, o príncipe reafirmava suas qualidades como bom governante, em condições de exigir obediência a seu novo “vassalo” Tal pressuposto envolvia, necessariamente, princípios laicos e religiosos, associando as noções de fidelidade e vassalagem, como bem observou CARDIM, Pedro. Religião e ordem social. Em torno dos fundamentos católicos do sistema político do antigo regime. Revista de História das Idéias. Coimbra, v. 22, p. 133-174, 2001. 16 Para o Reino de Angola, vide HEINTZE, Beatriz. Luso-african feudalism in Angola? The vassal treaties of the 16th to the 18th century. Revista Portuguesa de História. Coimbra, v. 18, p. 111-131, 1980; e SANTOS, Catarina Madeira. Escrever o poder: os autos de vassalagem e a vulgarização da escrita entre as elites africanas Ndembu. Revista de História. São Paulo, v. 155, p. 81-95, 2006; para o Estado da Índia, vide SALDANHA, Antonio Vasconcelos. Iustum Imperium. Dos tratados como fundamento do Império dos portugueses no Oriente. Estudo de História do Direito Internacional e do Direito Português. Lisboa: Fundação Oriente, 1997. 17 Há, evidentemente, modos diversos de abordar o tema, com implicações teóricas que não vou discutir aqui. Para uma análise clássica e marcante da colonização portuguesa moderna ver NOVAIS, Fernando Antonio. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808). São Paulo: Hucitec, 1979, especialmente cap. 2. Para um exame mais específico dos nexos coloniais no século XVII português, vide ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes. Formação do Brasil no Atlântico sul. Séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. ISBN 978-85-61586-70-5 6 IV Encontro Internacional de História Colonial nos circuitos coloniais e as formas de acumulação.18 Aos temas clássicos da história econômica (a produção açucareira, a mineração e o comércio colonial) ou da demografia histórica, a historiografia das últimas décadas somou os aspectos ligados às mentalidades e ao cotidiano, como as crenças religiosas, as sexualidades, as “heresias” religiosas, as formas de viver e sentir, e focalizou novos personagens e experiências sociais diversificadas.19 Índios aldeados, administradores coloniais, homens livres pobres, comerciantes de pequeno e grosso trato, lavradores de cana e de alimentos foram sendo estudados no norte, no sul, nas minas, nas áreas de lavoura e nos sertões.20 Ganhando perspectiva e incorporando novas fontes, as análises passaram também a inquirir as projeções políticas presentes nas construções explicativas e certos enquadramentos tradicionais da própria historiografia começaram a ser postos em causa.21 Este crescimento dos estudos sobre a colonização e o “viver em colônia” foi acompanhado por um renascimento e um redimensionamento da história política, que passou a perscrutar o entrelaçamento dos interesses públicos e particulares, dos poderes locais e centrais, das hierarquias sociais e das formas de acumulação de riquezas, transformando a visão sobre as relações de poder no mundo colonial.22 As 18 Ver, a esse respeito, os comentários de BOSI, Alfredo. Colonia, culto cultura. A dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 11-63. 19 A avaliação é constante em muitos balanços bibliográficos sobre este período. Vide, por exemplo, SOUZA, Laura de Mello e. Aspectos da historiografia da cultura sobre o Brasil colonial. In: FREITAS, Marcos Cezar de (Org.). Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo: Contexto, 3a ed., 2000, p. 17-38; e SCHWARTZ, Stuart B. Depois da dependência: caminhos novos da historiografia brasileira. Da América portuguesa ao Brasil. Estudos históricos. Lisboa: Difel, 2003, p. 273-304. Para um balanço da produção norte-americana sobre o Brasil colonial vide RUSSELL-WOOD, A. J. R. United States scholarly contributions to the historiography of colonial Brazil. Hispanic American Historical Review. Durham, v. 65, n. 4, p. 683-723, 1985. 20 Um balanço desta diversidade pode ser traçado a partir das teses de mestrado e doutorado defendidas nos diversos programas de pós-graduação do país a partir dos anos 1980-1990. Ver, por exemplo, CAPELATO, Maria Helena Rolim; FERLINI, Vera Lúcia A. e GLEZER, Raquel (Eds.). Produção histórica no Brasil, 1985-1994. São Paulo: Xamã, 1995, 3 vols. 21 Vide, por exemplo, SILVA, Rogério Forastieri da. Colônia e nativismo: a história como “biografia da nação”. São Paulo: Hucitec, 1997; e FURTADO, João Pinto. O manto de Penélope. História, mito e memória da inconfidência mineira de 1788-9. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. O tema torna-se mais candente nos estudos voltados para o período da independência. Um panorama dos desdobramentos desta perspectiva pode ser encontrado nos artigos da coletânea organizada por JANCSÓ, István (Org.). Brasil: formação do Estado e da Nação. São Paulo: Hucitec/ Editora Inujuí/Fapesp, 2003. 22 Ver FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima Silva e BICALHO, Maria Fernanda Baptista. Uma leitura do Brasil colonial. Bases da materialidade e da governabilidade no Império. Penélope. Lisboa, v. 23, p. 67-88, 2000. Para um balanço desta bibliografia vide ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 7 pesquisas sobre as formas de governar e sobre o funcionamento das diversas instituições que agregavam e davam consistência às redes hierárquicas que ligavam horizontal e verticalmente a sociedade colonial foram se desenvolvendo, em conexão com estudos realizados para outras áreas do império português.23 Aos poucos, os nexos imperiais das políticas metropolitanas e das dinâmicas coloniais foram se impondo nas análises, fazendo com que eventos “brasileiros” pudessem ser analisados em conexão com outros ocorridos na África ou na Índia.24 Há, entretanto, um aspecto do modo como as forças políticas se articularam para controlar e explorar os novos territórios que me parece ter recebido pouca atenção embora apareça de modo claro em diversas fontes, especialmente nas mencionadas aqui. A estranheza ou surpresa que as cartas do governo de Pernambuco dirigidas a Gangazumba ou Gangazona despertam é uma boa evidência disso. Ao contrário do enfoque mais frequente na historiografia, elas impedem que esse processo seja abordado somente do ponto de vista do movimento colonizador. Ao colocarem no centro da cena política as populações nativas do Novo Mundo, esses documentos nos levam a considerar a natureza das relações entre os colonizadores (autoridades metropolitanas ou coloniais e os próprios colonos) e os índios e africanos - esses, nas duas margens do Atlântico. Certamente, o modo como povos e civilizações diversas foram forçados a entrar em contato com os europeus variou bastante. O tema não é novo na historiografia e geralmente tem sido abordado em conexão com o dos descobrimentos, apoiado em relatos de viajantes e missionários, explorando as representações europeias dos povos recém-descobertos e a incorporação dos valores ocidentais pelas populações HESPANHA, Antonio Manuel. A constituição do império português. Revisão de alguns enviesamentos correntes. In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda e GOUVÊA, Maria de Fátima (Orgs.). O antigo regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 163-188. Ver também SOUZA, Laura de Mello e. O sol e a sombra. Política e administração na América portuguesa do século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. 23 Um panorama dos trabalhos realizados nesta direção pode ser encontrado em várias coletâneas: FRAGOSO, J.; BICALHO, M. F. e GOUVÊA, M. F. (Orgs.). O antigo regime nos trópicos…, e FURTADO, Júnia Ferreira (Org.). Diálogos Oceânicos. Minas Gerais e as novas abordagens para uma história do império ultramarino português. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001; BICALHO, Maria Fernanda e FERLINI, Vera Lúcia A. (Orgs.). Modos de Governar. Ideias e Práticas Políticas no Império Português (sécs. XVI-XIX). São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2005. 24 É o caso, por exemplo, de FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. O império em apuros. Notas para o estudo das alterações ultramarinas e das práticas políticas no império colonial português, séculos XVII e XVIII. In: FURTADO, J. F. (Org.). Diálogos oceânicos, p. 197-254. ISBN 978-85-61586-70-5 8 IV Encontro Internacional de História Colonial nativas.25 É preciso lembrar entretanto que, para além da dimensão cultural, o contato entre culturas diversas no contexto dos impérios coloniais implicou - com maior ou menor tensão - um diálogo político. Colocados em contato pelo movimento da expansão europeia, povos com estruturas políticas e culturas diferentes foram obrigados a lidar com os europeus - e vice-versa. Sem esse diálogo político, o domínio colonial não poderia ter se estruturado e se mantido ao longo dos séculos. Em virtude da necessária economia para expor de modo sintético meu argumento, recorto a análise focalizando o mundo atlântico nos séculos XVI e XVII. Vejamos primeiramente, em linhas gerais, os eventos ligados à ocupação portuguesa na África Centro Ocidental. Nos reinos do Kongo, do Ndongo e em outros reinos centro-africanos, o poder estava assentado em linhagens descendentes de um ancestral comum (muitas vezes mítico) ou por uma divindade. O domínio sobre as pessoas e o território era exercido por meio de uma rede hierárquica de linhagens aparentadas, que controlava seus membros e os escravos pertencentes a elas, usados como criados, soldados e trabalhadores. Ao mesmo tempo político e religioso, o controle das linhagens combinava-se à capacidade de obter tributos (cobrados em produtos, serviços, incluindo os militares, e escravos). Por meio desse sistema corporativo e hierarquizado, a riqueza, medida em produtos e escravos, circulava e podia ser acumulada. A cobrança de taxas e tributos e as guerras - originadas por crises sucessórias ou por rivalidades políticas - eram as formas mais frequentes de crescimento econômico e aumento de poder político.26 Os portugueses conectaram-se a essa estrutura política, como parceiros políticos e militares, interessados que estavam em obter escravos e outras riquezas, por meio do controle indireto das rotas comerciais e dos tributos. No caso do Kongo, a presença portuguesa foi garantida pela associação direta com o Mani Kongo, que conseguiu manter sua relativa independência. As cerimônias dos tratados e acordos entre os soberanos do Kongo e de Portugal misturavam elementos políticos e religiosos, africanos e europeus; comerciantes portugueses e padres tinham salvo conduto e, por vezes, influíam na política congolesa - mas nunca houve governadores do Kongo nomeados por Lisboa. Angola, ao contrário, foi ocupada militarmente. A região do reino do Ndongo, um reino tributário do Kongo, foi conquistada por tropas portuguesas, tornando-se 25 Ver, por exemplo, FERRONHA, Antonio Luís (Org.). O confronto do olhar. O encontro dos povos na época das navegações portuguesas. Lisboa: Ed. Caminho, 1991; e BETHENCOURT, Francisco e CHAUDURI, Kirti N. (Orgs.). História da Expansão portuguesa. Lisboa: Circulo de Leitores, 1998, especialmente volumes 1 (A formação do Império, 1415-1570) e 2 (Do Índico ao Atlântico, 1570-1697). 26 Ver, entre outros, THORNTON, John K. A África e os africanos na formação do mundo atlântico, 1400-1800. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 127- 137. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 9 uma capitania com um governador nomeado pelo rei português. A partir de 1607, a Coroa retomou para si o governo, passando a nomear a cada três anos um capitãomor e governador da “conquista e reino de Angola e das mais províncias dela”.27 Tornou-se, assim, um poder concorrente em relação aos demais reinos e chefes locais, lutando para impor a eles laços de vassalagem. Assim como os chefes africanos, o governador de Angola buscava alianças com o poder militar oferecido pelos bandos Imbangala.28 Conjugava guerra e alianças para fortalecer seu domínio sobre a região, seus habitantes e riquezas. Diferentemente do que ocorria no Kongo, onde os portugueses combatiam grupos dissidentes com o apoio dos poderes locais, em Angola os portugueses se aliavam e lutavam com os vários reinos e grupos políticos e militares africanos.29 As posições portuguesas dependiam das guerras de conquista: eram elas que permeavam as relações com os reinos e sobas locais, que permitiam o controle sobre as redes comerciais que forneciam lucros, por meio da cobrança de impostos e do próprio comércio de escravos e marfim (os principais produtos). Elas constituíam, também, as formas mais rápidas de enriquecimento, pois ofereciam ocasiões propícias para o comércio particular e para o roubo. A tensão entre defender e controlar as redes comerciais ou guerrear envolvia não apenas os interesses da Coroa, como incluía ainda aqueles dos governadores, dos agentes do tráfico e dos sobas. Sem guerras e acordos de vassalagem, os navios do tráfico que zarpavam para a América não podiam ser abastecidos. Havia, portanto, uma sintaxe que conjugava guerra e paz, e articulava autoridades portuguesas e linhagens locais, do Kongo e do Ndongo (e, depois, com menos estabilidade, de Matamba e Kasanje).30 Expressa em kikongo, kimbundo e português, essa sintaxe fazia sentido para os falantes das várias línguas. Guerras, campanhas punitivas ou defensivas, acordos políticos e alianças militares estavam imbricados e promoviam a produção e a circulação de escravos. A ação militar não era possível sem o domínio político e vice-versa: o envio de tropas e a ajuda em caso de guerra legitimava e assegurava os acordos de vassalagem, ao mesmo tempo em que fazia parte de suas cláusulas, negociadas por meio de embaixadas nas quais os missionários 27 A expressão está na Carta patente do governador Manuel Pereira, de 2 de agosto de 1606. FELNER, Alfredo de Albuquerque. Angola. Apontamentos sobre a ocupação e início do estabelecimento dos portugueses no Congo, Angola e Benguela extraídos de documentos históricos. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1933, p. 426-427. 28 Cf. HEYWOOD, Linda M. e THORNTON, John K. Central Africans, Atlantic Creoles, and the foundation of the Americas, 1585-1660. N. York: Cambridge University Press, 2007. 29 BIRMINGHAM, David. The Portuguese conquest of Angola. Londres: Oxford University Press, 1965, p. 19. 30 HEYWOOD, L. M. e THORNTON, J. K. Central Africans, Atlantic Creoles…, especialmente cap. 3. ISBN 978-85-61586-70-5 10 IV Encontro Internacional de História Colonial estavam muitas vezes presentes. Os tributos estipulados pelos capítulos ajustados com o mani e os sobas forneciam escravos que, por sua vez, eram obtidos por meio das guerras ou das feiras - que só funcionavam se abastecidas de prisioneiros e se as caravanas atravessassem os sertões. Além das riquezas, as autoridades centroafricanas e portuguesas disputavam a hegemonia política, concorrendo umas com as outras pelo domínio da região. Concorriam, também, com outras nações europeias que, ao longo do século XVII, também passaram a participar desse jogo político. Foi assim que se estruturou o domínio português na África Centro Ocidental e foi por meio dessas alianças, ao mesmo tempo políticas e militares, que ele cresceu e se defendeu das agressões das potências rivais, europeias ou africanas. Na América, os portugueses tiveram de se haver com grupos estruturados de modo diverso. Diferentes na língua e na cultura, Guaranis e Tupinambás ocupavam as terras litorâneas mas “não formavam unidades políticas regionais: estavam divididos, nas palavras dos cronistas, em várias 'nações', 'castas', 'gerações' ou 'parcialidades', algumas aliadas entre si, outras inimistadas até a morte”.31 Sem uma estrutura centralizada ou um poder hierarquizado associado à cobrança de tributos, a unidade política básica dos ameríndios era a aldeia. Várias delas podiam manter relações pacíficas entre si, participar de rituais comuns, ligar-se por relações de parentesco, reunir-se para expedições guerreiras, formando redes de aldeias.32 Essas nações foram reconhecidas pelos portugueses, que adotaram as aldeias como unidade política primordial nas suas relações com os ameríndios. A fixação dos índios em regiões próximas às áreas coloniais remonta à época do primeiro governo geral e rapidamente o aldeamento se transformou em terreno de conflitos entre índios, padres, missionários, senhores de engenho e autoridades coloniais.33 Não pretendo historiar aqui esses embates nem os debates jurídicos que eles envolveram; basta observar que o assentamento dos indígenas em aldeamentos próximos às áreas colonizadas e o modo como eram formados e governados estavam imbricados na maneira como os portugueses percebiam e lidavam com as estruturas políticas indígenas. Ao longo do século XVII, a mesma legislação que oscilou entre 31 FAUSTO, Carlos. Os índios antes do Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000, p. 75. Cf. FAUSTO, Carlos. Fragmentos da história e cultura tupinambá: da etnologia como instrumento crítico de conhecimento etno-histórico. In: CUNHA, Manuela Carneiro da (Org.). História dos Índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras; FAPESP/SMC, 1992, p. 381-396. 33 Para uma visão geral do avanço do processo colonizador sobre os territórios indígenas ver HEMMING, John. Os índios e a fronteira no Brasil colonial. In: BETHEL, Leslie (Org). História da América Latina: A América Latina colonial. São Paulo: Edusp; Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 1999, p. 423-469. Para uma análise mais específica da política de aldeamentos ver ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses indígenas. Identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003, cap. 2. 32 ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 11 reconhecer a plena liberdade dos índios e permitir sua escravização, reformou diversas vezes tanto os modos de utilizar o trabalho indígena quanto as formas de administrar os aldeamentos, reconhecendo o poder dos “principais”.34 Localizados em função dos interesses da administração colonial na defesa do território ou dos colonos em aproveitar o trabalho indígena, os aldeamentos tinham suas terras reconhecidas como um território sob jurisdição especial.35 Governados em nome do soberano português, por padres, capitães ou até pelos índios, eles constituíam um lugar diferenciado em relação ao termo das vilas e cidades, sob a alçada das câmaras. O regime de missões servia, assim, a interesses que mesclavam o proselitismo cristão, a avidez por mão de obra, e a preocupações mais gerais de defesa do território colonial contra os ataques dos índios bravios ou dos negros dos mocambos.36 A política indigenista portuguesa também implicava a exploração das rivalidades entre as várias nações - aspecto também aproveitado pelos holandeses e franceses em suas tentativas de se fixar na América portuguesa. Os Potiguares da Paraíba, os Junduís do Rio Grande, os Cariris e os Goianás da região do São Francisco foram os principais aliados dos holandeses, enquanto os portugueses eram auxiliados por outros Potiguares e por índios que haviam sido convertidos e integravam algumas tropas, como a liderada por Antônio Felipe Camarão.37 A expulsão dos holandeses foi, não por acaso, seguida de guerras - chamadas “dos bárbaros” - destinadas a submeter esses contingentes indígenas, de modo a reconstruir o domínio 34 Cf. PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Índios livres e índios escravos: os princípios da legislação indigenista do período colonial. In: CUNHA, Manuela Carneiro da (Org.). História dos Índios no Brasil…, p.115-132; e também KIEMEN, Mathias C. The Indian policy of Portugal in the Amazon region, 1614-1693. N. York: Octagon Books, 1973. Para uma análise dos debates teológicos e jurídicos sobre as diversas formas de exploração do trabalho indígena ver: ZERON, Carlos. Linha de fé. A Companhia de Jesus e a escravidão no processo de formação da sociedade colonial (Brasil, séculos XVI e XVII. São Paulo: Edusp, 2011, cap. 3. 35 Este é mais um tópico que variou conforme as leis promulgadas, mas esteve sempre contemplado pela legislação. Cf. CUNHA, Manuela Carneiro da. Terra indígena: história da doutrina e da legislação. Os direitos dos índios. Ensaios e documentos. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 58-61. 36 THOMAS, G. Política indigenista dos portugueses no Brasil, 1500-1640. São Paulo: Loyola, 1982, caps. 5 e 6. 37 Cf. RAMINELLI, Ronald. Nobreza Indígena: os chefes potiguares, 1633-1732. In: OLIVEIRA, João Pacheco de. (Org.). A presença indígena no Nordeste. Rio de Janeiro: Contracapa, 2011, p. 47-67; e GONÇALVES, Regina Célia. Guerras e Alianças: os Potiguara no conflito luso-holandês (1630-1654). In: POSSAMAI Paulo (Org.). Conquistar e Defender: Portugal, Países Baixos e Brasil - Estudos de História Militar na Idade Moderna. São Leopoldo: Oikos, 2012, p. 143-155. ISBN 978-85-61586-70-5 12 IV Encontro Internacional de História Colonial português.38 A negociação com os Junduís empreendida por Francisco de Brito Freire em 1661 não chegou a ser escrita, mas nas guerras do sertão das capitanias de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande e Ceará, houve vários casos, na década de 1690, em que os chefes indígenas fizeram as pazes com as autoridades coloniais, firmando tratados que foram registrados por escrito.39 A sintaxe política centro-africana não era pois a única a articular guerras e acordos de paz. Na capitania de Pernambuco - assim como no resto do Estado do Brasil e no do Maranhão - os descimentos e os aldeamentos eram práticas constantes para “reduzir” os índios e trazê-los à obediência do soberano português. A recusa em descer para as missões ou a fuga delas transformava os índios em rebeldes e sujeitos a “campanhas de punição”. Podiam servir de justificativa para a guerra contra eles, do mesmo modo que os ataques dos índios bravios do sertão contra os colonos. Ainda que a historiografia tenha apenas recentemente atentado para esses aspectos, eles foram fundamentais para a instalação do domínio português nas terras da América e para a exploração de suas riquezas. Depois desse rápido passeio, podemos voltar ao acordo de paz de 1678. Tudo indica que Gangazumba tenha negociado e se comportado na implementação do acordo feito com o governo de Pernambuco de modo semelhante a muitas lideranças africanas diante das autoridades portuguesas do outro lado do Atlântico. Como tal, ele foi identificado pelas autoridades coloniais: como “rei” dos Palmares, detentor de poderes políticos assentados em uma rede de relações familiares (de parentesco sanguíneo ou político), que lhe permitia falar em nome de seus “súditos”.40 Talvez tenha agido assim justamente para salvar sua linhagem (e as linhagens a ele submetidas) e preservar seus súditos da destruição completa. Também é provável que, como muitos sobas centro-africanos fizeram, ele tenha procurado alianças para solidificar seu poder e conseguir reconhecimento e respeito de seus “vizinhos”. As duas possibilidades não são excludentes - e ambas revelam que, nesta outra margem do Atlântico, havia homens e mulheres que agiam inspirados por uma cultura política centro-africana. De modo diferente daqueles que ficaram na África, porém, os homens e mulheres escravizados no Brasil que fugiram e construíram os mocambos nos Palmares 38 PUNTONI, Pedro. A guerra dos bárbaros. Povos indígenas e as colonização do sertão. Nordeste do Brasil, 1650-1720. São Paulo: Hucitec /Edusp, 2002. Ver também MEDEIROS, Ricardo Pinto de. Povos indígenas nas guerras e conquista do sertão nordestino no período colonial. Clio. Recife, v. 27, n. 1, p. 331-361, 2009. 39 Para alguns exemplos desses acordos ver PUNTONI, P. A guerra dos bárbaros…, p. 300-304. 40 Os termos rei e súditos aparecem em vários documentos relativos à história de Palmares, designando Gangazumba e os mocambos sob seu domínio. Talvez o melhor exemplo seja a Relação das guerras feitas aos Palmares de Pernambuco no tempo do governador dom Pedro de Almeida de 1675 a 1678. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 13 encontraram homens que, embora conhecendo a sintaxe política centro-africana, pois participavam das lides da administração ultramarina, tinham outras maneiras de pensar e objetivos diversos em relação aos habitantes da América que esperavam manter sob seu domínio. No Estado do Brasil e em Pernambuco, a cultura política que informava as ações dos escravos fugitivos - da formação de mocambos ao fortalecimento das linhagens - encontrava outros elementos, diversos daqueles existentes na África Centro Ocidental. Ainda que os negros dos Palmares tivessem sido reconhecidos pelas autoridades coloniais como um poder separado, cujo governo estava assentado em uma linhagem similar à do reino do Ndongo, as negociações realizadas em 1678 não necessariamente levavam a uma aliança como aquelas realizadas com os sobas de Angola. Vários aspectos da negociação que resultou na elaboração do “papel” examinado no início desse texto são semelhantes aos acordos com os sobas centro-africanos, como a devolução de fugitivos ou o compromisso de ajuda militar para submeter os que não seguissem os termos acordados. Mas Aires de Souza de Castro tentou transformar os mocambos de Palmares em uma aldeia.41 Ao invés de deixá-los permanecer nos Palmares, promoveu o descimento dos habitantes dos Palmares para Cucaú, situado em região mais próxima de Serinhaém - e da sede da capitania. A presença em Cucaú dos padres oratorianos, ordem missionária por excelência e bastante ligada aos poderes coloniais em Pernambuco, reforça a hipótese de que o modelo do aldeamento indígena tenha orientado as ações do governador de Pernambuco. Outros fatores talvez tenham pesado para determinar o deslocamento daquelas pessoas, já que as terras de Palmares - seguindo o costume - podiam ser distribuídas aos participantes mais destacados das campanhas contra os mocambos, como forma de remunerar seus serviços. Como disse, não quero enveredar na discussão sobre os termos e os significados do acordo de 1678, mas tomá-lo como indicativo do modo como sintaxes políticas foram articuladas no processo de implantação do domínio colonial no Novo Mundo. O governador de Pernambuco pôde negociar e dirigir-se a Gangazumba por meio de cartas oficiais expedidas e registradas por sua secretaria de governo porque tratava-se de estabelecer uma aliança política que pudesse manter o domínio conquistado por força das armas sobre gente rebelde. Ao agir dessa forma, lançava mão do repertório de práticas políticas que regulavam o modo como os colonizadores lidavam com as populações do Novo Mundo. Gangazumba e outras lideranças palmarinas, por sua vez, puderam compreender o gesto de Aires de Souza de Castro porque conheciam essa sintaxe política tal como praticada na África Centro Ocidental e conjugaram-na em função de seus próprios interesses. 41 A hipótese é extensamente analisada em LARA, Silvia Hunold. Palmares & Cucaú. O aprendizado da dominação. Campinas: Tese de Titularidade UNICAMP, 2009. ISBN 978-85-61586-70-5 14 IV Encontro Internacional de História Colonial Como já observei mais extensamente em outra ocasião, os significados da escravidão e da experiência escrava nem sempre foram levados em conta na análise das questões políticas imbricadas na história do império colonial português. Talvez isso tenha ocorrido porque os debates que têm atraído os historiadores do período colonial ficam muitas vezes distantes daqueles que tratam da história da escravidão, como se essas fossem duas áreas separadas da historiografia. Como então lembrei, não se trata apenas de incorporar o tráfico negreiro como parte importante dos mecanismos da exploração colonial ou de enfatizar os nexos econômicos e políticos entre a África e o Brasil. Recorrendo aos ganhos analíticos da produção recente sobre a história da escravidão nas Américas, salientei a importância de incorporar a experiência escrava na história da América portuguesa.42 Espero ter mostrado nesse breve texto que é possível ir além, ao levar em conta o peso que as políticas indígenas na América e as políticas africanas tiveram na constituição das políticas coloniais. É preciso conceder às populações do Novo Mundo a condição de sujeitos políticos atuantes no processo mais amplo da colonização, nos dois lados do Atlântico. Dito de outro modo, não há história da colonização nem do domínio colonial se não considerarmos os interesses políticos, as lógicas e a atuação daqueles que viviam nas terras conquistadas por Portugal. As fontes administrativas que todos usamos - como essas cartas registradas na secretaria de governo de Pernambuco - documentam o modo como essas sintaxes políticas se articularam: suas fórmulas retóricas, os termos empregados e as praxes narrativas acionadas mostram como, para ser exercido, o poder colonial precisou “incorporar” índios e africanos.43 Há uma linguagem política e institucional registrada nessas fontes que também é preciso conhecer e levar em consideração na análise e no estudo da história da colonização. Nelas podemos ver o gesto da dominação colonial, mas também o ponto de vista e as ações dos africanos e dos índios diante dos europeus.44 Será possível continuar a fazer a história do processo de domínio e exploração das riquezas do coloniais sem considerar a atuação política das populações do Novo Mundo? 42 Cf. LARA, Silvia Hunold. Conectando Historiografias: a escravidão africana e o antigo regime na América portuguesa. In: BICALHO, M. F. e FERLINI, V. L. A. (Orgs.). Modos de Governar…, p. 21-38. 43 Esse parágrafo é inspirado em THORNTON, J. K. Early Kongo-Portuguese relations: a new interpretation. History in Africa. Madison, v. 8, especialmente, p.183-186 e 197-198, 1981. 44 Essa perspectiva tem sido explorada com resultados muito interessantes por TAVARES, Ana Paula e SANTOS, Catarina Madeira (Orgs.). Africae Monumenta. A apropriação da escrita pelos africanos. Lisboa: Instituto de Investigação Científica e Tropical, 2002, especialmente p. 471-533; e SANTOS, C. M. Escrever o poder: os autos de vassalagem e a vulgarização da escrita entre as elites africanas Ndembu… ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 15 População no mundo colonial: algumas reflexões sobre o espaço luso na América1 Ana Silvia Volpi Scott2 Toda a ciência humana, sem uma possante base demográfica, não passa de um frágil castelo de cartas, toda História que não recorre à Demografia priva-se do melhor instrumento de análise (Pierre Chaunu). Parti dos dados demográficos para passar às realidades que eles ocultam; destas realidades das atitudes perante a vida, a idade, a doença, a morte, os homens de outros tempos não gostavam de falar, ou até não eram deles conscientes; a análise das séries numéricas faz aparecer modelos de comportamento até agora inacessíveis e clandestinos: assim a mentalidade aparece sempre no fim de uma análise das estatísticas demográficas (Philippe Ariès). A Mesa Redonda Plenária “População no mundo colonial” que integra o IV Encontro Internacional de História Colonial lança o grande desafio de se refletir sobre um tema que é fundamental para aqueles que estudam o passado americano. A proposta desse paper é fazer algumas reflexões sobre o espaço americano partir do estudo das suas dinâmicas populacionais, concentrando sua atenção especificamente no território sob domínio luso no continente americano. O mote escolhido para essa reflexão inspirou-se nas duas frases que abrem este paper. Pierre Chaunu já nos meados dos anos 1970 chamava a atenção para a importância da contribuição da demografia para os estudos históricos.3 Da mesma forma, Philippe Ariès aponta a diretriz que tem orientado minhas reflexões em torno da Demografia Histórica ou História Demográfica,4 através da qual muito mais que os números, as estatísticas demográficas abrem caminho para desvendar comportamentos da população que estão muito além das variáveis demográficas 1 Essas reflexões são fruto dos projetos financiados pelo CNPq: Além do Centro-Sul: por uma história da população colonial nos extremos dos domínios portugueses na América (coordenado por Sergio O. Nadalin – UFPR) e Família e sociedade no Brasil meridional -1772-1835 (coordenado por Ana Silvia Volpi Scott). Acrescente-se também o projeto Gentes das Ilhas: trajetórias transatlânticas dos Açores ao Rio Grande de São Pedro entre as décadas de 1740 a 1790 (coordenado por Ana Silvia Volpi Scott e com financiamento Fapergs e CNPq). A autora agradece a essas instituições. 2 Programa de Pós-Graduação em História/ Unisinos. 3 CHAUNU, Pierre. Histoire, science sociale. Paris: SEDES, 1974. 4 Apud NAZARETH, J. M. Demografia – a ciência da população. Lisboa: Editorial Presença, 2004. ISBN 978-85-61586-70-5 16 IV Encontro Internacional de História Colonial estritas.5 Como será possível ver, mais adiante, o uso adequado e elaborado de conceitos demográficos pode dar uma contribuição fundamental para compreensão da sociedade no passado colonial latino-americano. Contudo, antes de entrar na problemática privilegiada nesta comunicação, é importante tecer algumas considerações sobre os elementos que interferem no comportamento das populações, pois isso nem sempre está claro para os pesquisadores que não estão familiarizados com a Demografia Histórica ou com os estudos de população em perspectiva histórica. Em linhas muito gerais, o estudo do passado colonial americano também pode ser feito a partir de uma perspectiva demográfica, que leva em conta tanto a estrutura como a dinâmica da população. Quando nos referimos ao estudo da estrutura de uma população, qualquer que seja, estamos nos referindo às características “estáticas”, isto é, a um momento no tempo, que nos informam sobre o tamanho da população, sua distribuição territorial e sua composição por sexo, idade, cor, ou características socioeconômicas (são as chamadas “estatísticas de estoque”). Por outro lado, quando nos mencionamos à dinâmica populacional, referimo-nos a eventos que modificam estas características, como são os nascimentos (natalidade), casamentos (nupcialidade),6 óbitos (mortalidade) e a migração/ mobilidade da população (estatísticas de fluxo). No que tange especificamente ao mundo de colonização ibérica na América é necessário sublinhar ainda algumas características compartilhadas pelas populações radicadas neste espaço. A primeira característica, sem dúvida, é a sua heterogeneidade, tanto do ponto de vista étnico, quanto cultural e religioso. A mestiçagem é outro traço distintivo das populações coloniais e, talvez, especialmente intensa no espaço dominado pela coroa portuguesa. A presença dominante de formas compulsórias de trabalho também conforma mais uma característica importante das populações da América de colonização 5 Minha tese de Doutorado, Famílias, Formas de União e Reprodução Social no Noroeste Português, apresentada ao Instituto Universitário Europeu, em 1998, colocou em prática essa diretriz. Partiu do estudo das variáveis demográficas, para dar as bases para a reflexão sobre a reprodução social das populações e das famílias na região noroeste de Portugal entre os séculos XVIII e XIX, em um contexto de emigração estrutural, que caracterizou aquela região portuguesa, tendo como pano de fundo a discussão do regime demográfico europeu. A conjugação de metodologias seriais e microanalíticas possibilitou o estudo aprofundado de temas que interessam de perto à História Social. A tese foi publicada em Portugal, no ano de 1999, e agora está no prelo a edição brasileira, a ser publicada no âmbito da coleção EHILA (Estudos Históricos Latino-americanos), numa parceria do Programa de Pós-Graduação em História da Unisinos com a Editora Oikos. 6 Quando nos referimos à nupcialidade, compreende-se aquela que se dá de maneira socialmente reconhecida (através do casamento que, por sua vez, legitima a reprodução biológica). ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 17 ibérica. No caso da América Portuguesa chamamos a atenção também para as formas de alforria da população escrava, que permitiu o surgimento e incremento da categoria dos Forros/ Libertos que, ao longo do tempo se tornou mais expressiva, especialmente em algumas regiões da antiga colônia portuguesa. As populações fixadas nos territórios ibero-americanos caracterizaram-se da mesma forma, por uma intensa mobilidade. Tal mobilidade foi resultado tanto da entrada constante de elementos externos (entrada de europeus e de africanos, por exemplo), como também dos deslocamentos internos, que foram marca distintiva dessas populações.7 Os padrões familiares das populações coloniais apresentam também aspectos específicos, se comparados com aqueles da Europa Ocidental, por exemplo. No espaço latino-americano as uniões não consagradas pela Igreja e elevadas taxas de fecundidade ilegítima faziam parte da vivência de muitos indivíduos que, por conta disso, experimentavam formas alternativas de relacionamento entre os sexos, baseadas em uniões consensuais estáveis.8 Paralelamente, devido à intensa mobilidade diferencial masculina, essa sociedade caracterizava-se também por um percentual significativo de domicílios com chefia feminina. Em linhas gerais esses são alguns dos traços que definem as dinâmicas populacionais nas Américas. Vejamos agora o recorte aqui privilegiado, que focaliza as “populações” no território de domínio luso na América. População luso-brasileira em perspectiva histórica O interesse pela história da população esteve presente desde os primórdios da historiografia brasileira, a partir dos esforços iniciais do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil (IHGB), que procurava compreender o processo de formação do “povo brasileiro”, como nos informa Sergio Nadalin.9 Para o autor, essa questão ganhava força no espaço de uma jovem nação que buscava uma identidade própria, esforçando-se por se dissociar de uma trajetória de três séculos de dominação europeia. Nesse contexto, parecia fundamental definir as “especificidades brasílicas”, o que muitas vezes resultava em idealizada valorização dos autóctones. Foi nesse contexto que a produção historiográfica e literária, de matiz romântica, idealizou o 7 Para o caso luso-Veja-se por exemplo, NADALIN, S. O. A população no passado colonial brasileiro: mobilidade versus estabilidade. Topoi, vol. 4 n. 7, p. 222-243, jul-dez. 2003. 8 Há uma extensa produção relativa à história da família na América Latina. Apenas a título de ilustração cito o número especial revista População e Família, vol. 5, 2003, sobre a família ibero americana; assim como a revista História Unisinos, vol. 11, 2007 com dossiê temático sobre família latino-americana. 9 Conforme projeto submetido ao CNPq: Além do centro-sul: por uma história da população colonial nos extremos dos domínios portugueses na América. ISBN 978-85-61586-70-5 18 IV Encontro Internacional de História Colonial ameríndio e, ao mesmo tempo, criou o “mito das três raças” fundado no pressuposto de que as relações étnicas no Brasil sempre se deram harmoniosa e pacificamente. Nadalin nos revela que, somente tempos depois, na viragem da década de 1960 para a de 1970, é que houve uma mudança substancial nessa interpretação clássica, que foi resultado do avanço do diálogo de pesquisadores brasileiros com historiadores e demógrafos europeus, particularmente os ligados às instituições francesas e inglesas. A partir daí, foram introduzidos em determinados centros de pesquisas no Brasil, as novas formas de a historiografia tratar a matéria “população”. Sobressaem neste contexto os nomes de Maria Luiza Marcílio, assim como as contribuições fundamentais do grupo reunido na Universidade Federal do Paraná (UFPR), sob a direção de Altiva Pilatti Balhana e Cecília Maria Westphalen. No entanto, para nossos objetivos, partiremos das considerações elaboradas por Maria Luiza Marcílio, em capítulo intitulado “A população no Brasil Colonial”, que integra a coleção História da América Latina (organizada por Leslie Bethell).10 Naquela oportunidade a autora chamava a atenção para o fato de que o estudo e a reconstituição da população brasileira durante a era colonial, seu tamanho no decurso de três séculos, seus componentes regionais e seu ritmo de padrões de crescimento era uma tarefa que “só muito recentemente começava a interessar estudiosos brasileiros”. Um dos obstáculos que havia dificultado o estudo da população em perspectiva histórica, sem dúvida, estava atrelado à disponibilidade de fontes documentais apropriadas. Por conta disso, a autora propunha uma classificação dos períodos da história do Brasil, para efeito de estudo da demografia retrospectiva, mostrando que estudos mais acurados de demografia só seriam possíveis a partir da segunda metade do século XVIII, quando as fontes se tornariam mais abundantes. Contudo, somente no último quartel do século XIX que, de fato, começaram a ser produzidas com regularidade as fontes propriamente demográficas, isto é os Censos (1872 é o ano do primeiro recenseamento nacional, único no período escravista) e, o Registro Civil de nascimento, casamentos e óbitos (instituído a partir de 1890).11 Em que pesem as dificuldades relativas à disponibilidade de fontes e a limitação dos estudos sobre população elaborados até então, Marcílio apresentava as características básicas da demografia do Brasil colonial, distinguindo três padrões 10 Publicado originalmente em inglês pela Cambridge U. Press, em 1984. A versão brasileira da coleção saiu em 1999. Veja-se: MARCÍLIO, M. L. A população do Brasil Colonial. In: BETHELL, Leslie. História da América Latina: A América Latina Colonial. São Paulo: Editora da USP; Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, vol. II, 1999, p. 311-338. 11 O registro anteriormente era da competência da Igreja (sob o padroado régio), constituindo o conjunto composto pelos registros paroquiais de (batizado, casamento e óbito). A classificação propõe o chamado período pré-estatístico (para os primeiros depois século e meio da colonização), o período proto-estatístico (1750 a 1872) e, finalmente, o período estatístico, a partir de 1872. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 19 demográficos das populações coloniais: 1) o padrão da elite colonial, em grande parte europeia e por definição “branca”; 2) o padrão vinculado à demografia escrava, especialmente nas regiões de grande lavoura, atreladas ao mercado de exportação e na região mineira; 3) o padrão demográfico do setor pobre da população livre, envolvida em atividades produtivas marginais à economia de exportação. Essa proposta baseava-se nos resultados dos estudos que se valiam, sobretudo, da exploração das conhecidas Listas Nominativas de População ou Maços de População, disponíveis para a Capitania-Província de São Paulo (que, grosso modo, cobriam também a região do atual estado do Paraná entre os anos de 1760 e 1840/50), e Minas Gerais em alguns anos específicos. Poucos dos estudos feitos haviam utilizado as fontes paroquiais, e aplicado a metodologia clássica da Demografia Histórica: a reconstituição de famílias, proposta por Louis Henry e Michel Fleury. Mesmo assim, em que pesem as muitas limitações, a aplicação dos métodos e técnicas da Demografia Histórica permitiu, posteriormente, avançar no conhecimento dos comportamentos das populações coloniais radicadas notadamente no sudeste brasileiro, assim como foi possível também explorar o período posterior à passagem do século XVIII para o XIX, adentrando inclusive no século XX, através do estudo de grupos de imigrantes, tais como descendentes de alemães, italianos e ucranianos. Deve-se sublinhar também, que pouco ou nada se conhece a respeito das dinâmicas populacionais do período anterior finais do XVIII e aos anos oitocentos e/ou vivenciadas nas demais partes do país, assim como pouco, ou quase nada se avançou no conhecimento relativo às populações indígenas.12 A contribuição do Grupo de Pesquisa Demografia & História para o estudo da história da população brasileira Diante desse quadro lacunar e desequilibrado relativo aos estudos da população brasileira em perspectiva histórica, um grupo de pesquisadores de variadas instituições resolveu agregar esforços em torno de uma iniciativa inédita, visando contribuir para o avanço do conhecimento sobre a história da população brasileira no período colonial. Trata-se do projeto de longa duração, proposto pelo Grupo de Pesquisa (CNPq) “Demografia & História”, preocupado com a investigação dos regimes demográficos que caracterizaram o passado brasileiro. 12 Em 2005 foi publicada uma reflexão crítica sobre os quarenta anos de Demografia Histórica no Brasil, onde os autores aprofundam essa discussão. O artigo publicado na REBEP pode ser acessado em http://www.scielo.br/pdf/rbepop/v22n2/v22n2a09.pdf. Assinam a publicação Carlos Bacellar, Ana Silvia Volpi Scott e Maria Silvia C. B. Bassanezi. ISBN 978-85-61586-70-5 20 IV Encontro Internacional de História Colonial Diferentemente do que se poderia imaginar a discussão dos regimes demográficos vai muito além do estudo das variáveis demográficas estritas, uma vez que esse conceito define-se como o conjunto de relações e de mecanismos que estão na base da organização social quer da reprodução biológica de uma população, quer da reprodução do conjunto de relações mediante as quais se regula a apropriação social (e a distribuição) dos meios de vida dessa população. Essa formulação um tanto abstrata visa sublinhar o fato de os comportamentos demográficos não se verificarem num vácuo e de o seu enquadramento social – em primeiro lugar, no âmbito do sistema familiar – ser em muitos casos de importância decisiva para a determinação das dinâmicas demográficas.13 O projeto de abrangência nacional em andamento no âmbito do GP Demografia & História, padroniza os procedimentos metodológicos para a coleta e o tratamento das fontes documentais, compostas pelos registros paroquiais (assentos de batizado, casamento e óbito) possibilitando análises comparadas no tempo e no espaço. Com base na exploração sumária e amostral das fontes selecionadas o Grupo de Pesquisa Demografia & História pretende avançar na discussão a respeito dos regimes demográficos diferenciados do passado brasileiro. Assim, na primeira etapa da proposta do GP, almeja-se contribui para sanar o flagrante desequilíbrio no conhecimento da história demográfica brasileira, concentrado na região sudeste. Optou-se, portanto, por privilegiar, inicialmente, as fontes paroquiais referentes ao período colonial e circunscritas às regiões Norte, Nordeste e ao Extremo sul.14 A padronização de formulários para a inserção das informações em bancos de dados informatizados criados e utilizados pelos pesquisadores integrados ao grande projeto foi o passo inicial. Tal estandardização é condição sine qua non para facilitar o trabalho de coleta nas fases posteriores do grande projeto do grupo, tendo em vista a necessidade de garantir a maior eficiência possível no levantamento de dados, a melhor qualidade no cruzamento dos mesmos e para evitar duplicação de esforços. 13 ROWLAND, Robert. População, família, sociedade – Portugal, séculos XIX-XX. Oeiras: Celta Editora, 1997, p. 14. Grifos nossos. 14 Para aprofundar a discussão que dá as bases para o projeto, veja-se: NADALIN, S. O. et al. Más allá del Centro-Sur: por una historia de la población colonial en los extremos de los domínios portugueses en América (siglos XVII-XIX). In: CELTON, Dora; GHIRARDI, Mónica; CARBONETTI, Adrián. (Org.). Poblaciones históricas: fuentes, métodos y líneas de investigación. Rio de Janeiro: ALAP Editor, 2009, p. 137-153. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 21 Tal procedimento viabiliza o desenvolvimento de análises comparativas no espaço e no tempo e o estabelecimento de generalizações que possam fornecer subsídios confiáveis para testar nossas hipóteses relativas aos diferentes regimes demográficos que caracterizariam as populações do passado brasileiro. Paralelamente às atividades de organização, crítica e descrição das fontes, pretende-se empreender diversos esforços no sentido de divulgar a proposta do grupo nas diversas instituições de pesquisa das regiões selecionadas. O grupo se propõe a organizar encontros e palestras com vistas a estimular a realização de pesquisas com a documentação levantada e de constituir uma rede nacional de pesquisadores na área de história demográfica. Desafios e avanços no estudo das dinâmicas populacionais no passado brasileiro A discussão relativa aos diferentes regimes demográficos vem na esteira das reflexões de Marcílio sobre os padrões demográficos no passado brasileiro. Além da análise das características da população colonial, no texto referido anteriormente, Marcílio desenvolveu uma reflexão mais alargada sobre a temática15 que foi retomada por Sergio Nadalin vinte anos mais tarde e que deu as bases teóricas para o projeto que está em curso.16 O autor parte da hipótese da coexistência de diferentes regimes demográficos, que foram concebidos a partir de sua diversidade regional e de suas características específicas. Essa proposta é o ponto de partida para as reflexões dos pesquisadores que integram o projeto. Essas hipóteses deverão ser comprovadas a partir do levantamento amostral dos assentos paroquiais para as diferentes regiões do país, o que permitirá a reflexão sobre a validade da discussão sobre os regimes demográficos que teriam vigorado no passado colonial. Parte-se de um conjunto de dez tipos, a seguir discriminados, com suas respectivas características:17 o Regime demográfico “paulista”: caracterizaria a população que se aventurou no sertão, caracterizado por um tipo de migração que, por meio de seus fluxos, construíam caminhos e plantavam arraiais; migrações em família, geralmente fundada na mestiçagem, acompanhavam também os escravos, índios e negros; 15 MARCÍLO, Maria Luiza. Sistemas demográficos no Brasil do século XIX. In: MARCÍLIO, M. L. (org.) População & sociedade. Evolução das sociedades pré-industriais. Petrópolis: Vozes, 1984, p. 193-207. 16 NADALIN, S. O. História e Demografia: elementos para um diálogo. Campinas: Associação Brasileira de Estudos de População – ABEP, 2004. 17 Ibidem, p. 133 e segs. ISBN 978-85-61586-70-5 22 IV Encontro Internacional de História Colonial o Regime demográfico das “plantations”: vigoraria no interior do sistema, possivelmente generalizado até o XVIII, destacando-se a autarquia do engenho. Regimes demográficos restritos seriam concernentes às camadas senhoriais e aos escravos da plantation; Haveria a possibilidade de um regime de mortalidade original fundado na concentração de escravos, facilitando a transmissão de epidemias; o Regime demográfico da escravidão: caracterizado pela complexidade das flutuações da produção, tráfico, continuidade do fluxo, reforço da cultura africana no Brasil, repercussões da fecundidade, morbidade/mortalidade dos escravos, razão de sexo, estrutura etária da população, possibilidades postas pelo casamento, famílias escravas mais ou menos estáveis, e as características das próprias senzalas; o Regime demográfico da “elite”: como refere, diria respeito aos comportamentos demográficos da elite senhorial e dos grupos sociais próximos à aristocracia colonial: grupos com patrimônio a zelar e a transmitir, estratégias complexas para atingir esses objetivos. Sistema matrimonial seria caracterizado pelo adiamento do casamento dos varões aliado ao precoce casamento das mulheres, esperança de vida mais alta, opção pela consanguinidade; o Regime demográfico das sociedades campeiras: fundados nas autarquias do gado ligados às plantations (tríade latifúndio, patriarcalismo, escravidão), mas com especificidades relativas ao caráter mais nômade dos seus componentes, densidade demográfica mais rala da estância. O gado avança e com ele, o senhor e sua família, os agregados, os peões, o mestiços, os negociantes ligados ao sistema. Clima de guerra, em face das tensões criadas com os aborígenes; o Regime demográfico das economias de subsistência: estruturado em função das plantations e das estâncias, grupos de população dedicavam-se a viver do que plantavam e vender o excedente, eventualmente ligados a atividades sazonais; o Regime demográfico das “drogas do sertão”: regime restrito aos colonos que se aventuravam na colheita das drogas do sertão e outros produtos demandados pela Metrópole, estabelecendo uma relação muito especial com os indígenas; também ajudaria a compreender as migrações que se fariam na região em função exploração da borracha, no XIX; o Regime demográfico das secas do sertão: peculiaridades climáticas, postular um regime demográfico fundado no regime de secas do sertão nordestino, articulado às economias de subsistência e à criação do gado, caracterizado ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 23 pela grande mobilidade gerada pelas fomes periódicas que assolavam a região; o Regime demográfico restrito aos colonos açorianos: registrar formas de organização familiar e do domicílio, os sistemas de parentesco rompidos com as migrações e que foram reconstruídos nas economias de regime familiar na colônia; o Regime demográfico das economias urbanas: próprio do litoral e em grande parte fundados na dependência do comércio e dos portos (especialmente depois de 1808) e a cultura urbana mineira. Mobilidade que inaugura o sistema pode fazer esse regime ser aparentado com o “paulista”. É possível ainda, equacionar um regime demográfico “mineiro”; cuja base desenvolve-se em função de especificidades regionais muito características. Como foi sublinhado anteriormente, o projeto “Além do centro-sul” (referido na nota 1) está priorizando estudos relativos aos extremos da América Portuguesa. Temos em andamento subprojetos que focalizam freguesias dessas regiões, que utilizam programa informatizado especialmente desenvolvido para a equipe de pesquisadores efetuar a coleta padronizada dos dados, o NACAOB.18 Um desses subprojetos está sendo desenvolvido na Universidade Federal do Pará e a equipe é coordenada por Antônio Otaviano Vieira Júnior, que coleta a documentação composta pelos assentos paroquiais de paróquias de Belém. No extremo sul, atualmente estão em andamento dois subprojetos. O primeiro tem como espaço privilegiado a paróquia da Madre de Deus de Porto Alegre, entre os anos de 1772 e 1835. Está em adiantado estágio de coleta dos dados: todos os assentos de casamento já foram inseridos. Em fase final está a coleta dos assentos de batizado e de óbito.19 O segundo projeto trata especificamente da população de origem açoriana que se radicou em algumas freguesias da Capitania do Rio Grande 18 O programa foi desenvolvido por Dario Scott, que coordena, no âmbito do GP Demografia & História toda a parte técnica. Para informações sobre o programa, veja-se: SCOTT, Dario & SCOTT, Ana Silvia Volpi. Cruzamento Nominativo de Fontes: desafios, problemas e algumas reflexões para a utilização dos registros paroquiais. XV Encontro Nacional de Estudos Populacionais. Caxambú: ABEP, 2006; SCOTT, Dario & SCOTT, Ana Silvia Volpi. NACAOB: una opción informatizada para historiadores de la familia. In: CELTON, Dora; GHIRARDI, Mónica; CARBONETTI, Adrián. (Org.). Poblaciones históricas… Rio de Janeiro: ALAP Editor, 2009, p. 171-185. 19 Desse projeto já resultaram diversas comunicações e artigos, assim como o seu material subsidiou uma dissertação de Mestrado e três Trabalhos de Conclusão de Curso, apresentados na Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Atualmente está em andamento mais uma tese de Doutorado e uma dissertação de Mestrado que exploram os dados da Madre de Deus. ISBN 978-85-61586-70-5 24 IV Encontro Internacional de História Colonial de São Pedro na segunda metade do século XVIII. Aqui estamos trabalhando, além da freguesia da Madre de Deus de Porto Alegre com as freguesias de Viamão e Itaqui e a pesquisa está em sua primeira etapa. Nossa atenção está voltada, inicialmente, para os assentos de casamento e batizado. Enfim, o aprofundamento da discussão sobre a população no mundo colonial demanda, de acordo com nosso ponto de vista, um investimento maior na reflexão sobre os diferentes regimes demográficos que coexistiram no passado brasileiro. Somente um debate alimentado pela exploração das fontes paroquiais poderá fornecer algumas das repostas sobre a dinâmica populacional na América portuguesa e como essa impactou nos sistemas familiares que se organizaram no espaço luso. A exploração sumária dos dados coletados para a Madre de Deus já confirmou que algumas das características demográficas estavam presentes também na região do extremo sul da colônia lusa na América. A atual cidade de Porto Alegre, capital do estado mais meridional do Brasil - o Rio Grande do Sul - teve sua origem na freguesia da Nossa Senhora da Madre de Deus de Porto Alegre. Localizada às margens do Guaíba, na região conhecida à época por “Campos de Viamão”, Porto Alegre, conforme Sandra Jatahy Pesavento20 teve sua origem na sesmaria de Santana, recebida por Jerônimo de Ornelas em 1740. Inicialmente a região que se caracterizaria pelas estâncias de criação de gado para o mercado interno, por conta da necessidade de animais para abastecimento e transporte na região de Minas Gerais, que à época vivia o auge da exploração aurífera. Em 1772, o Porto dos Casais foi elevado à condição de freguesia (denominada São Francisco dos Casais), desmembrando-se de Viamão. Em 1773, finalmente, passa a ser denominada como “freguesia da Madre de Deus de Porto Alegre”, ao mesmo tempo em que conhece nova etapa de desenvolvimento com a chegada dos migrantes açorianos, fugidos dos conflitos militares originados da invasão espanhola do Rio Grande em 1763. A partir daí foram demarcados lotes, ruas e estradas, reservando-se uma área denominada de Alto da Praia (atual Praça da Matriz), para a instalação dos primeiros equipamentos públicos e, paralelamente, foram distribuídas datas de terra aos açorianos. De um povoado tranquilo, na encruzilhada dos caminhos, a freguesia de Nossa Senhora da Madre de Deus de Porto Alegre seria alçada a Capital do “Continente” em 1773, vila em 1809 e cidade em 1822. A forte mobilidade populacional e o crescimento acelerado da população por conta da entrada de contingentes de fora da capitania e do reino, em maior proporção sexo masculino, ficaram comprovadas pelos dados levantados: em 1780 a população da freguesia ultrapassava, por pouco, os 1.500 habitantes; em 1822 20 PESAVENTO, Sandra Jatahy (coord.). Memória Porto Alegre: espaços e vivências. Porto Alegre: UFRGS; Prefeitura Municipal, 1991. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 25 alcançar cerca de 12.000 habitantes, como também pela análise da naturalidade dos homens e mulheres que se casaram na Madre de Deus. Em relação à natalidade aqui também encontramos elevadas taxas de fecundidade ilegítima, com uma peculiaridade interessante. Enquanto na década de 1770 a ilegitimidade rondaria os 30%: desse percentual, 29,4 seriam as crianças naturais e os expostos somariam 0,8%; na década de 1810 os números continuariam altos, em torno de 26,4%, mas a distribuição teria sofrido uma alteração digna de nota: as crianças registradas como naturais teriam tido uma queda significativa, baixando para 19,5%, enquanto que o número de crianças expostas (abandonadas, sem a identificação de seus pais,) teria subido para quase 7%. Seria essa mudança resultado da crescente urbanização da freguesia? Esses últimos indicadores, relativos à fecundidade ilegítima, mostram a importância das relações entre homens e mulheres que se davam fora do âmbito do matrimônio reconhecido e legitimado pela Igreja. O cruzamento dos assentos paroquiais com róis de confessados também nos leva a perceber outras facetas dessa população. Através do rol de confessados da freguesia para o ano de 1782 verifica-se que, quase 19% dos fogos, eram chefiados por mulheres. A exploração dessa fonte confirma as transformações importantes que ocorreram na freguesia no último quartel do século XVIII. A população total cresceu, assim como o número de fogos, embora o tamanho médio do domicílio tenha registrado pequena queda. O espaço ocupado foi sendo ampliado e redesenhado. De acordo com o rol relativo ao ano de 1779, a população se distribuía em duas ruas: a Rua da Praia e a Rua Nova. O grosso da população concentrava na Rua da Praia (82.%). Pelo mapa apresentado por Clovis Oliveira, relativo ao ano de 1772, outras ruas são arroladas. Mas a informação do rol de 1779 limita-se a mencionar somente aquelas duas.21 Clóvis Oliveira afirma que já no início da década de 1770, grandes transformações teriam marcado aquela localidade: em 1772, por Pastoral do Bispado do Rio de Janeiro o povoado, conhecido como Porto dos Casais (açorianos que lá se haviam fixado em 1752), era elevado a Freguesia. E o capitão Engenheiro Alexandre José Montanha havia sido designado para demarcar a ‘praça do novo lugar’, bem como traçar as primeiras ruas e as ‘meias datas’ que seriam destinadas aos colonos. Cada uma delas correspondia a uma área de 135,5 hectares (616m de frente por 2.200m de fundo).22 Por outro lado, pelo rol de 1782, podemos perceber uma mudança na organização do espaço urbano e os entornos “rurais”. A população já se aglomerava 21 OLIVEIRA, Clovis Silveira. Porto Alegre a cidade e sua formação. Porto Alegre: Gráfica e Editora Norma, 1985. 22 Ibidem, p. 23. ISBN 978-85-61586-70-5 IV Encontro Internacional de História Colonial 26 em oito áreas distintas: as Ruas da Praia, da Igreja e Rua Formosa; as áreas identificadas como Arsenal, Campo da Tumasa, Cristal, Passo d’Ornellas, Fora do Portão, e arrolava-se, por fim, o Destacamento de Infantaria da freguesia. Mais da metade (51.5%) se concentrava nas três ruas. A maior aglomeração fora desse núcleo central eram os moradores instalados ‘Fora do Portão’ com 17.1%. Seguiam-se os moradores no Capão da Tumasa com 12.0%, no Arsenal que reunia 7.5%, no Cristal com 6.8% e no Passo d’Ornellas com escassos 2.2%. O destacamento de infantaria da freguesia reunia 48 soldados, correspondendo a 2.8% da população total arrolada no referido ano de 1782. O coronel José Marcelino de Figueiredo, que governou a Capitania do Rio Grande de São Pedro entre 1769 e 1780, tem um papel importante nessa transformação, por conta de diversas ações: a transferência da capital de Viamão para Porto Alegre em 25 de julho de 1773, a construção de uma linha de fortificações para defender a freguesia, a abertura de fontes públicas e outras medidas como o incremento a plantação de trigo, promoção do estabelecimento de fábricas, moinhos, estaleiros, instalação do Arsenal, onde se procedia a feitura de espadas, conserto de pistolas e confecção de fardamento para a tropa. Do mesmo modo, a linha de fortificações em volta do casario serviu também para delimitar a ‘zona urbana’.23 Portanto, pelos finais da década de 1770, com as ruas delineadas e os colonos açorianos organizados, Porto Alegre consolidava sua vocação urbana e, em 1794, registra-se a instalação do primeiro local organizado para divertir a população – a Casa da Comédia – que em 1797 passou a se chamar Casa da Ópera. Assim, os espaços se diversificam, a população aumenta, e as crianças nascem em maior número (a média de batizados entre 1773 e 1780 foi 72,7; enquanto que entre 1781 e 1790 foram 112,6 batizados por ano). Com base nesses e em outros dados que estão sendo coletados procuraremos, portanto testar e refinar a hipótese relativa ao regime demográfico característico dessa população, comparando-o, oportunamente, a outras áreas estudadas pelos integrantes do Grupo de Pesquisa. Isso, seguramente, contribuirá para enriquecer o nosso conhecimento sobre as populações da América lusa, subsidiando, a partir do cruzamento com outras fontes quantitativas e qualitativas, inserções no campo da História Social. 23 Ibidem, p. 31-38. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 27 A importância do porto do Rio de Janeiro nos séculos XVI-XVII para a expansão e consolidaçao dos lusos na fronteira da América Meridional Luiz Guilherme Scaldaferri Moreira1 Este artigo é parte resumida de minha dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Neste trabalho procuramos traçar o perfil dos capitães das fortalezas da Baía de Guanabara, na segunda metade do século XVII. Do mesmo modo, analisamos o processo de escolha daqueles agentes empreendidos pelo Conselho Ultramarino e pela Coroa lusa. Considerando que o estudo tinha como foco a História Social abordamos as fontes por meio da chamada Nova História Militar.2 Para dar conta desta empresa, precisávamos situar nossos agentes no espaço físico, tanto nas fortalezas como na própria baía de Guanabara. Por isso, era vital entender um pouco das condições materiais das fortalezas da capitania do Rio de Janeiro, particularmente das duas mais importantes, Santa Cruz e São João. Veremos aqui como este cenário era visto pelos viajantes, pelos agentes estatais (Coroa, governador-geral, governador da capitania, Senado da Câmara etc.); as condições físicas das fortalezas e de seus armamentos; um breve histórico e seus estilos arquitetônicos peculiares. Comecemos pela sua importância estratégica. Os dois fortes,3 Sta. Cruz e S. João, localizam-se na entrada da Baía de Guanabara, que banha o porto da cidade do Rio de Janeiro. O de Sta. Cruz encontra-se na cidade de Niterói, do lado direito de quem chega ao recôncavo pelo Oceano Atlântico, região conhecida no século XVII como banda “d´além”. Já o de S. João fica aos pés de um dos principais pontos turísticos do município do Rio de Janeiro, o famoso bondinho do morro Pão de Açúcar, atração construída no século XX, no bairro atualmente conhecido como Urca. Lá do alto conseguimos, ainda hoje, visualizar as duas construções e percebemos que uma está praticamente de frente para a outra, o que facilitava o controle da circulação dos navios que chegavam e saíam da urbe. 1 Doutorando em História (UFF) e Professor da Universidade Veiga de Almeida. TEIXEIRA, N. S. A história militar e a historiografia contemporânea. Revista a nação e a defesa. Lisboa: Inst. da Defesa Nacional, ano XVI, nº 59, p. 53-71, 1991; WEHLING, A. A pesquisa da História Militar Brasileira. Revista da Cultura. Rio de Janeiro: Exército Brasileiro, ano I, nº 1, p. 35-38, jan/jul 2001; COELHO, E. A instituição militar no Brasil. Boletim Informativo e Bibliográfico de Ciências Sociais (BIB). Rio de Janeiro: ANPOCS, 1º Semestre de 1985; HESPANHA, A. (Coord.). Nova História Militar de Portugal. Lisboa: Círculo de Leitores, 2004; CASTRO, C.; IZECKSOHN, V. e KRAAY, H. (orgs.). Nova História Militar Brasileira. Rio de Janeiro: FGV, 2004; e MOREIRA, L. G. S; LOUREIRO, M. A ‘Nova História Militar’, o diálogo com a História Social e o Império Português. (texto mimeo), 2011. 3 Utilizamos os termos forte, fortaleza, fortins e etc. como sinônimos. 2 ISBN 978-85-61586-70-5 28 IV Encontro Internacional de História Colonial Nada melhor do que depoimentos coevos de viajantes que por lá passaram, para nos dar uma ideia de como era este cenário. Um anônimo viajante francês, ao transitar pelo porto da cidade em 1703, registrou: “A entrada do porto parece-me bastante bem guardada. Ela é defendida por duas fortalezas [Sta. Cruz e S. João], entre as quais é necessário passar, o que torna um ataque à cidade tarefa de difícil execução”.4 Ao continuar a sua descrição sobre a entrada da baía e as qualidades de suas fortificações, relatou certa particularidade: “Isso se dá graças à estreiteza da embocadura que dá acesso ao porto e à cidade, embocadura que obriga os navios a passarem muito próximo da fortaleza de Sta. Cruz.” Citemos um último exemplo, também de autor anônimo, um dos tripulantes do navio francês L´Arc-en-Ciel, que lá esteve em 1748, e comentou sobre a fortaleza de Sta. Cruz: “a mais importante do país, está situada sobre a ponta de um rochedo, num local onde todos os barcos que entram ou saem do porto são obrigados a passar”.5 Destes relatos, queremos apenas fazer um breve comentário, que retomaremos mais adiante. Os viajantes, que já haviam circulado por outros lugares, conheciam um mundo um pouco mais amplo do que o cenário descrito. Para nossa surpresa, não fizeram menção à precariedade da estrutura que encontravam, mesmo os que ficaram alguns dias na localidade, o que lhes possibilitava conhecer melhor aquela realidade. Este quadro era compartilhado pelos representantes do Estado luso, como por exemplo, os engenheiros militares Miguel de L’Escolle e Felipe de Guitan.6 Estes enviaram, em 1649, à D. João IV, informações sobre a barra da capitania. Diziam eles: Agora (…) o que toca a entrada da barra desta cidade (…) fica a fortaleza de Sta. Cruz (…) situada em cima de um penedo saído no mar. (…) Sua construção é de um parapeito de pedra (…) defronte desta fortaleza (…) está o forte de S. João (…). Construído de um parapeito de uma meia parede por de fora e de um pouco de terra por dentro. (…) E ficará oposta a (…) de Sta. Cruz.7 4 FRANÇA, J. M. C. Visões do Rio de Janeiro colonial. Rio de Janeiro: EdUerj, 1999, p. 57. 5 Ibidem, p. 62 e 81. 6 Mais a frente, veremos a importância dos engenheiros militares e, em especial, dos dois citados. 7 FERREZ, G. O Rio de Janeiro e a defesa do seu porto, 1555-1800. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação Geral da Marinha, 1972, p. 157-8. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 29 Por conta deste, e de outros relatos, os monarcas portugueses reconheciam a importância das duas fortalezas para a defesa da região. D. Pedro II determinou ao provedor da Fazenda Real da Capitania, Pedro de Souza Pereira, em 1674, que pagasse aos soldados e aos índios que “existem nas duas fortalezas da barra”, para que se possa ter uma “melhor defesa delas e sua conservação”.8 A atitude do rei fora motivada pela representação encaminhada pelo mesmo provedor, que relatava: haver na dita cidade [do Rio de Janeiro] duas fortalezas [Sta. Cruz e S. João] na barra distantes da cidade uma légua em que consiste a total defesa e segurança da praça e os soldados das quais se não pagam mais que mil e duzentos réis cada três meses, com que os socorrem da Real Fazenda de Vossa Alteza, com que não é possível sustentar-se; e assim que esta causa, como, também, por não terem embarcação os da fortaleza de Sta. Cruz que só tem serventia por mar estão fugindo continuamente e deixando as fortalezas ao desamparo; e porquanto na dita cidade há seis índios do gentio da terra matriculados nos livros da Real Fazenda de Vossa Alteza com pretexto de que são para serviço das fortalezas e armazém de pólvora da cidade dos quais se paga os mesmos socorros que se dão aos soldados do presídio.9 Segundo António Hespanha as fortificações eram erguidas à custa do trabalho dos moradores e o dinheiro deveria sair dos impostos cobrados pelo Senado da Câmara.10 Ao consultarmos algumas de suas deliberações, é possível notar que várias penalidades eram revertidas para a construção ou manutenção dos fortes. Neste caso, por exemplo, a vintena do vinho, em 1643, deveria servir “para o sustento do presídio desta cidade e fortificações.11 8 ARQUIVO NACIONAL DO RIO DE JANEIRO. Códice 61, vol. 7, p. 438. Sempre que possível, optamos por transcrever os documentos utilizando a grafia atual. 9 Ibidem. Ibidem. 10 HESPANHA. Nova História Militar de Portugal…, p. 180-1. Posição compartilhada por RODRIGUES, V. A Guerra na Índia, em HESPANHA. Nova História Militar de Portugal…, p. 250. 11 PREFEITURA MUNICIPAL DO DISTRICTO FEDERAL (PMDF). O Rio de Janeiro no século XVII – accordãos e Vereanças do Senado da Camara, copiados do livro original existente no Archivo do Districto Federal, e relativos aos annos de 1.635 até 1.650. mandados publicar pelo Sr. Presidente Dr. Pedro Ernesto. Rio de Janeiro: Oficinas Gráficas do Jornal do Brasil, 1935, p. 69-70. ISBN 978-85-61586-70-5 30 IV Encontro Internacional de História Colonial Igualmente, senhores de engenho e lavradores de cana que, em 1646, não cultivassem mandioca, contribuindo para o desabastecimento da farinha, teriam que ser penalizados em 50 cruzados “para a fortificação desta praça”.12 Durante algum tempo, nos anos de 1640, muito se discutiu acerca da construção da fortaleza da Laje e dos recursos monetários para sua edificação. Por isso, alguns criminosos eram multados e a quantia paga direcionada para este fim. Destarte, em 1646, o Senado da Câmara vetava que “nenhuma negra (…) traga saia nem gibão de seda, nem brincos de ouro com pena de seis mil réis, pagos da cadeia. E de seda ou brinco que se lhe acharem perdidos, o que tudo se aplica para a fortaleza da Laje”.13 No mesmo ano também se proibiu a “venda de aguardente da terra (…) com pena de 6000 réis pagos da cadeia (…) a qual pena se aplicará a metade (…) para a fortaleza da Laje”.14 Negava-se aos negros que carregassem pelas ruas da cidade pau e faca, sob “pena de 2000 réis pagos a cadeia, a metade para as obras da (…) fortaleza da Laje”.15 Em 1649, depois do parecer do engenheiro Miguel de L’Escolle, abandonou-se a ideia da construção do dito forte e as penalidades voltaram a ser destinadas para todas as fortificações.16 A construção dos fortes de Sta. Cruz e S. João havia sido planejada pela Coroa em 1584, logo após a fundação da cidade por Estácio de Sá (1565). Salvador Correia de Sá, “o velho”, em seu 2º período como governador do Rio de Janeiro (15781598),17 iniciava a construção de uma fortaleza na ponta leste, que recebeu o nome de N. S. da Guia. O governador consultou a Corte para saber se era preferível fortificar o Rio de Janeiro, o que acabou ocorrendo, ou mandar povoar Cabo Frio. Salvador Correia de Sá, então, começou o plano de fortificar a Laje, localizada na entrada da barra.18 No entanto, ao consultar o engenheiro militar italiano Batista Antonelli, este lhe aconselhou a construir duas fortalezas, uma em cada lado da baía. 12 Ibidem. Ibidem, p. 109. Ibidem, p. 131. 14 Ibidem, p. 132. 15 Ibidem, p. 134. 16 Ibidem, p. 178-9. 17 BOXER, C. Salvador de Sá e a luta pelo Brasil e Angola – 1602-1686. São Paulo: Editora Nacional, 1973, p. 420. 18 Durante todo o século XVII, vários governadores fracassaram na tentativa de edificar a fortaleza da Laje. Ela só viria a ser erguida nos setecentos. A Laje é um costado de pedra que se localiza na entrada da barra, exatamente entre a fortaleza de Sta. Cruz e de S. João. Cf. FERREZ. O Rio de Janeiro e a defesa do seu porto, 1555-1800… 13 ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 31 O mesmo engenheiro elaborou a planta das fortalezas e enviou para o soberano português que aprovou e autorizou suas construções.19 Ela foi restaurada pelo governador Martim Correia de Sá (1623-1632),20 quando recebeu o nome de Sta. Cruz. A reforma contou com índios tutelados pelos jesuítas e foi fiscalizada pessoalmente por Mem de Sá que transferiu o governo a Gonçalo Correia de Sá, seu irmão.21 Joaquim Serrão destacou que a ligação dos Sás com o Rio de Janeiro vinha desde a sua fundação por Estácio de Sá, passando pelas reformas empreendidas por Martim de Sá, momentos antes da Restauração Portuguesa, em 1637, quando empresta 60.000 cruzados para aperfeiçoar as fortalezas da cidade.22 Naquele momento, havia um contexto marcado pelo medo da expansão dos batavos para além das capitanias do norte, quando houve grande preocupação em fortalecer a proteção de toda a costa da América lusa. Contudo, a ligação e o domínio dos Sás nos postos das fortalezas já vinham desde o início do século.23 A fortaleza de S. João ficou completa em 1618 e ampliada pelo governador Sebastião de Brito Pereira em 1651. O governador requereu aos moradores que ajudassem com um ou dois negros para a empreitada.24 O forte novamente foi reformado em 1675, no governo de Matias da Cunha.25 19 VARNHAGEN, F. História Geral do Brasil. São Paulo: Edições Melhoramentos, 1956, 6ª edição, tomo I, p. 372. 20 Pai de Salvador Correa de Sá e Benevides Cf. BOXER. Salvador de Sá e a luta pelo Brasil e Angola – 1602-1686…, p. 410 e 420. 21 COARACY, V. O Rio de Janeiro no século XVII. Rio de Janeiro: José Olympio, 1965, p. 59-60. 22 SERRÃO, J. V. Do Brasil filipino ao Brasil de 1649. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1968, p. 231 e AHU - Rio de Janeiro, cx. 1, doc. 81, 80, 78, 79, 38. 23 FRAGOSO, J. A Nobreza da República: Notas Sobre a Formação da Primeira Elite Senhorial do Rio de Janeiro (Séculos XVI e XVII). Topoi. Rio de Janeiro, 7 Letras, p. 76-77, 2000. 24 Como podemos ver nas atas do Senado da Câmara do Rio de Janeiro, o uso de negros e índios em obras públicas era comum. Neste corpo documental é possível ver deliberações a cerca da reforma da cadeia da cidade, em 1640; a construção do aqueduto da Carioca, ao longo do século, entre outras construções urbanas. (PMDF. O Rio de Janeiro no século XVII – accordãos e Vereanças do Senado da Camara…, p. 35-6, 36 e 43). 25 COARACY. O Rio de Janeiro no século XVII…, p. 48, 142 e 194. ISBN 978-85-61586-70-5 32 IV Encontro Internacional de História Colonial Planta da capitania do Rio de Janeiro, de 1631 Fonte: João Teixeira Albernaz (o avô). Atlas do Estado do Brasil. Mapoteca do Itamaraty. Agora que já conseguimos observar como os contemporâneos viam o cenário em que atuavam nossos personagens, podemos mostrar como era representado. A imagem acima retrata a barra da capitania. Notemos que para os navios adentrarem a baía era necessário que passassem bem próximo à fortaleza de Sta. Cruz, como é explicado no texto que compõe a gravura. A preocupação com a defesa, em todo o período colonial, era uma constante por parte dos reis lusos, sobretudo naquele contexto de meados do XVII. Afinal de contas, não podemos esquecer que a parte dos rendimentos da Coroa vinha do comércio ultramarino. Manter as rotas comerciais do Império era vital e muitas destas rotas passavam pelo Rio de Janeiro. Com isso, os governadores gerais frequentemente remetiam ao rei informações a respeito do estado das fortificações em sua área de atuação, visto que: “O governador-geral foi definido como chefe supremo da administração colonial, com ênfase nas suas funções militares, sendo o posto de comandante da tropa sua atribuição fundamental”.26 Esta não era a única função militar que detinha. Entre as inúmeras atribuições do governador-geral, duas eram de suma importância: 1) “Zelar pela boa manutenção dos armamentos existentes nas capitanias” e; 2) “Executar obras de fortificações para a defesa da terra”.27 26 GOUVÊA, M. F. Governo Geral. In: VAINFAS, R. (dir.) Dicionário do Brasil colonial (1500-1808). Rio de Janeiro: Objetiva, 2000, p. 265. 27 SALGADO, G. (Coord.). Fiscais e meirinhos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 171. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 33 Contudo, os governadores-gerais não eram os únicos responsáveis pela defesa do território, os capitães e governadores de capitania também o eram. Constavam de suas funções: a) “Informar ao governador das armas e munições existentes na capitania e se estão necessitando de ajuda”28 e; b) “Visitar as fortalezas e armazéns existentes na capitania, (…) bem como fazer um levantamento sobre o estado das instalações, equipamentos e reparos necessários, dando de tudo notícia ao governador-geral do Estado do Brasil”.29 Esta característica também aparece na documentação local. Sendo assim, o Senado da Câmara, ao se reunir para decidir quem assumiria o governo da capitania temporariamente, em 1644, enfatizava a necessidade de nomear alguém que “(…) governasse assim no político como na guerra, no que acuda as ocasiões (…) de sua defesa, no que continuem com as fortificações (…) em conformidade das ordens de Sua Majestade”.30 O escolhido, Duarte Correa Vasqueanes, ao assumir o oficio, prometeu, entre outras coisas, “defender esta cidade contra to(dos os inimi)gos de nossa Santa Fé e desta Coroa conforme sua obrigação”.31 Diogo de Campos Moreno – sargento-mor e capitão da Costa do Brasil – cumprindo com sua obrigação, enviou de Salvador, em 1609, um relatório ao rei, dizendo que aquela cidade estava pessimamente equipada. Logo, deveriam ser realizadas as obras que haviam sido recomendadas pelo engenheiro militar Francisco Frias de Mesquita e que foram remetidas para a Europa, ajustadas e corrigidas pelos engenheiros militares Turriano e Tibúrcio Spanhocchi (engenheiro-mor da Espanha), em 1606.32 O mesmo procedimento fora adotado pelo governador do Rio de Janeiro, Luiz Cesar de Menezes, em 1689, que escreveu ao monarca dando conta das condições das fortificações e das companhias daquele presídio. Em sua resposta, o rei enfatizou que: vendo o papel que me fizeste e o que nele me representa (…) e do estado em que se acham as fortalezas e soldados desse presídio e artilharia me pareceu dizermos e ordenarmos, como por esta o faço, que enchais a força das companhias de infantaria e das do presídio dessa praça e suas fortalezas com aquele número dos soldados de lotação que a Câmara se 28 Ibidem. Ibidem, p. 146. Ibidem, p. 243. 30 PREFEITURA. O Rio de Janeiro no século XVII– accordãos e Vereanças do Senado da Camara…, p. 82, grifo nosso. 31 Ibidem. Ibidem, p. 83, grifo nosso. 32 MENDONÇA DE OLIVEIRA, M. As primitivas defesas da cidade de Salvador. Revista da Cultura. Rio de Janeiro: Diretoria de Assuntos Culturais, ano VII, nº 12, junho de 2007. 29 ISBN 978-85-61586-70-5 34 IV Encontro Internacional de História Colonial obrigou a sustentar pelas imposições, quanto for mais possível a respeito do procedimento das ditas consignações e, da mesma maneira, proceder assim os oficiais de artilharia que forem necessários para a defesa e conservação das forças desse gênero, (…) dando por conta da Fazenda Real fazer as carretas cobertas e todos os reparos para as peças da artilharia que achando seus serviços e pelos meus os efeitos da Fazenda Real mandeis consertar e reformar as ruínas que se acharem nessas fortalezas, de que são de depender a conservação de sua praça e em que se tem notícia que há necessário peças de artilharia pela praia, escolhais destas as que vos parecerem podem ter melhor serventia e as mandará por nas fortalezas e, com este meio, se remediará a necessidade que se praz.33 A necessidade de defesa da região por parte dos lusos se devia a um duplo medo: primeiro, o “Mar Tenebroso”, recentemente conquistado e, segundo, a floresta tropical. Destes cenários poderiam emergir, a qualquer momento, piratas e índios, respectivamente. Defesa e colonização andavam de mãos dadas, sendo impossível pensar uma sem a outra. Para este binômio era vital o conhecimento de vários fatores, a saber: marítimos, geográficos, climáticos, culturais entre outros. A proteção não só da cidade como de toda a costa com suas rotas comerciais foi uma preocupação recorrente por parte dos monarcas.34 Deste modo, nos seiscentos “sempre houve necessidade de proceder a obras e reparações”35 das fortalezas da cidade. Característica que também aparece na historiografia que se debruça sobre o tema, em especial o trabalho de Gilberto Ferrez.36 A urgência de defesa também era discutida no Senado da Câmara. Durante os anos de 1640, seus membros se reuniram com o governador e com os notáveis da cidade, entre eles figuras importantes no campo militar, como por exemplo, os capitães das fortalezas.37 Para tal, uma das figuras principais eram os engenheiros militares. Beatriz Bueno sublinhou que os desenhos feitos por estes agentes nos permitem apreender não só “aspectos formais e simbólicos da arquitetura e do urbanismo oficiais implantados nas conquistas”, mas “entrever os diferentes momentos da política de colonização e expansão dos tentáculos do Império português nas entranhas do Brasil”. Por meio 33 ANRJ. Códice 61, vol. 9, p. 49. Aqui, naturalmente incluímos os monarcas hispânicos que, durante a União Ibérica (15801640), também eram reis de Portugal. 35 COARACY. O Rio de Janeiro no século XVII…, p. 60. 36 FERREZ. O Rio de Janeiro e a defesa do seu porto, 1555-1800… 37 PREFEITURA. O Rio de Janeiro no século XVII– accordãos e Vereanças do Senado da Camara…, p. 49-52, 68-71, 101, 109, 122-4, 137 e 187. 34 ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 35 de suas gravuras produziam conhecimento e, ao mesmo tempo, se apropriavam e controlavam o território, possibilitando aos monarcas ausentes materializarem-se nas conquistas. Suas representações não eram publicadas e permaneciam restritas às esferas estatais. Há poucos desenhos do Brasil feitos pelos engenheiros militares nos quinhentos e seiscentos. As gravuras que eram enviadas para a Europa deveriam ser aprovadas ou pelo Conselho de Guerra ou pelo Ultramarino, para que posteriormente fossem colocadas em prática.38 É o que podemos ver no documento enviado pelo Senado da Câmara ao rei, em 1649:39 Carta dos oficiais da câmara da cidade do Rio de Janeiro ao rei [d. João IV] sobre o envio das plantas da cidade e das fortalezas do Rio de Janeiro, tiradas pelos engenheiros Miguel de L’Escolle e Filipe de Guitan, para se determinar a melhor forma de se fortificar esta capitania, informando a falta de artilharia necessária aos moradores para defesa desta praça.40 Felipe Guitan, um engenheiro militar francês a serviço de Portugal, veio para o Rio de Janeiro em 1649, para fortificar a cidade, seguindo as ordens do governadorgeral conde de Vila-Pouca, Antônio Telles de Menezes, juntamente com o engenheiro militar Miguel de L’Escolle, em razão do medo da invasão batava.41 Miguel de L’Escolle serviu como engenheiro militar, na capitania do Rio de Janeiro, pelo prazo de três anos a partir de 1648.42 Acreditamos, segundo informações contidas nas atas do Senado da Câmara, que tenha desembarcado na cidade em 1649, proveniente de Lisboa.43 Logo que chegou, começou a inspecionar os fortes. Na vistoria que realizou na fortaleza de Santa Luísa, que havia recebido algumas intervenções, acabou determinando a sua demolição, por “não vir a servir”.44 38 BUENO, B. Desenho o desígnio – o Brasil dos engenheiros militares. Oceanos. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, nº 41, p. 41 e 47, 2000. 39 Este, no entanto, já era um costume do período filipino. Na obra de Ferrez podemos ver vários exemplos de plantas remetidas para a Europa, para serem consertadas, emendadas ou refeitas. Para citar somente um exemplo, em 1635, o Conselho de Portugal encaminhou ao rei recomendações para que mandasse vir do Rio de Janeiro “uma planta daquela capitania e das fortificações que tem e de novo tem feito e se vão fazendo em tão boa forma que se possa ver por ela ou como tudo esta obrado. E se há de emendar ou acrescentar (…)” Cf. FERREZ. O Rio de Janeiro e a defesa do seu porto, 1555-1800…, p. 124. 40 AHU-Rio de Janeiro, cx. 2, doc. 124-A e AHU_ACL_CU_017, Cx. 2, D. 195. 41 FERREZ. O Rio de Janeiro e a defesa do seu porto, 1555-1800…, p. 26. 42 TAVARES DA CONCEIÇÃO, M. A praça da guerra aprendizagens entre a Aula do Paço e a Aula de Fortificação. Oceanos. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, nº 41, p. 170, jan/mar 2000. 43 PREFEITURA. O Rio de Janeiro no século XVII– accordãos e Vereanças do Senado da Camara…, p.172. 44 Ibidem. Ibidem, p. 175-6. ISBN 978-85-61586-70-5 36 IV Encontro Internacional de História Colonial As intervenções de L’Escolle não foram importantes apenas no campo militar. Alguns autores o consideram o primeiro urbanista do Rio de Janeiro, devido às modificações nas “ruas, [nas] valas de esgotamento, [na] muralha de defesa, [nas] praças, [nas] estradas de acesso”. Entretanto, sua principal participação se deu nos projetos militares, pois foi o primeiro especialista em fortificações que atuou no Rio de Janeiro. Para Ciro Cardoso e Paulo Araújo, no século XVII, o Rio de Janeiro apresentava um grande crescimento urbano, fruto da importância cada vez maior de seu porto e das rotas mercantis que passavam por ali, tendo com isso, uma preocupação mais efetiva com a sua infraestrutura. Em 1625, começavam a surgir regras urbanas para a construção de casas na cidade baixa, preservando o traçado das ruas; drenavam-se algumas lagoas; reformava-se a cadeia da cidade (1640);45 abriam-se ruas, como por exemplo, a rua da Vala (1641) e a rua do Cano (1646); iniciava-se a construção do aqueduto da Carioca (1673);46 criava-se um serviço de correios na cidade; e cristalizava-se uma estratificação social do espaço, com a formação de bairros bem definidos, entre outras mudanças.47 Parte desse crescimento fora consequência da tomada de Pernambuco pelos holandeses. Assim, o governador Rodrigo de Miranda Henriques escrevia ao Rei Filipe III, em 1634, dando conta das modificações existentes na capitania: “Esta cidade tem crescido depois da tomada de Pernambuco muito em gente e comércio e riqueza”.48 L’Escolle já havia atuado no restauro e construção de outros fortes na Província do Minho, em razão da necessidade de fortificar as fronteiras terrestres com a Espanha, e das Guerras de Restauração (1641-1668).49 Para além da importância da Restauração, Rui Bebiano sublinhou que: pelos finais do século XVII não existia na Europa exército no qual a engenharia não desempenhasse papel determinante e o português desenvolveu muito cedo, por imposição das circunstâncias vividas durante as campanhas de Restauração, essa mesma componente.50 45 Ibidem, p. 35-36, 38 e 43. Respectivamente, Rua Uruguaiana, Rua 7 de Setembro e Arcos da Lapa (CARDOSO & ARAUJO. Rio de Janeiro. Madri: Mapfre, 1992, p. 67). 47 CARDOSO, C. & ARAUJO, P. Rio de Janeiro…, p. 67. 48 FERREZ. O Rio de Janeiro e a defesa do seu porto, 1555-1800…, p. 123. 49 TAVARES DA CONCEIÇÃO. A praça da guerra aprendizagens entre a Aula do Paço e a Aula de Fortificação…, p. 32. 50 BEBIANO, R. A Guerra: o seu imaginário e a sua deontologia. In: HESPANHA, A. (Coord.) Nova história militar de Portugal…, p. 49. 46 ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 37 A defesa da região alentejana havia sido deixada de lado durante o período Filipino.51 As fortalezas precisavam de reformas, em virtude de seu abandono e porque “a arquitetura militar conhecia exemplar renovação”.52 Os projetos de revitalização incluíam equipamentos necessários para a guerra, tais como: hospital, quartéis, paióis etc. Esses anexos passavam a ser vistos como capitais para o bom funcionamento da estrutura de guerra. Começava a existir um planejamento cada vez mais amplo, abandonando-se a improvisação. As tradicionais requisições compulsivas de abrigo para os soldados eram descartadas. Os lusos procuravam atualizar-se científica e tecnicamente com o que de mais moderno existia. Engenheiros e militares franceses e holandeses foram contratados para que houvesse uma “oxigenação” no processo descrito.53 Dois destes personagens foram L´Escolle e Charles Lassart, francês que se tornou engenheiromor do Reino (1641). A preocupação de defesa não era apenas na Europa. Os Braganças também focavam a América. Havia certa urgência em suprir as demandas de engenheiros militares para dar conta de várias frentes de atuação as quais não se podia negligenciar. Contudo, a contratação de estrangeiros para a tarefa esbarrava na falta de recursos. Os gastos não eram apenas no emprego de homens. Reformas ou a construção de novas fortalezas dependiam de muito cabedal. Durante os seiscentos, os governadores do Rio de Janeiro sempre reclamavam da precariedade em que se encontrava o sistema defensivo da capitania. Assim, pediam o envio de mais homens, equipamentos, reformas e ampliação dos fortes. Requisições estas que, quase sempre, não eram atendidas por falta de recursos. Ao mesmo tempo, o custo da defesa ficava a cargo dos moradores, em especial a manutenção de seus fortes, fortinhos, baluartes etc., como era comum em todo o Império.54 Voltemos aos engenheiros militares. D. 51 Hespanha sublinha que antes da Restauração o perigo vinha do mar com os piratas marroquinos, ingleses ou holandeses. A principal linha de proteção se situava na costa e, portanto, a preocupação de defesa se localizava naquela região, que não só concentrava o efetivo militar, mas os fortes construídos ou reformados. (HESPANHA. Nova história militar de Portugal…, p. 32). 52 TAVARES DA CONCEIÇÃO. A praça da guerra aprendizagens entre a Aula do Paço e a Aula de Fortificação…, p. 32. 53 Não foram somente os engenheiros militares estrangeiros que foram contratados, militares experientes também o foram, como por exemplo, o conde de Schomberg (Prússia), que teria que reorganizar todo o Exército português (TAVARES DA CONCEIÇÃO. A praça da guerra aprendizagens entre a Aula do Paço e a Aula de Fortificação…, p. 32). 54 FERREZ. O Rio de Janeiro e a defesa do seu porto, 1555-1800…; HESPANHA. Nova história militar de Portugal…, p. 180-1; BICALHO, M. F. A cidade e o império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 199, texto bastante parecido aparece em BICALHO. As Câmaras ultramarinas e o governo do Império. In: FRAGOSO, J., BICALHO, M. F. e ISBN 978-85-61586-70-5 38 IV Encontro Internacional de História Colonial João IV criou, em 1641, a “Aula de Artilharia e Esquadria”, no Paço da Ribeira que, em 1647, foi transferida para a Ribeira das Naus com o nome de “Aula de Fortificação e Arquitetura Militar”.55 O objetivo era formar engenheiros militares para atuarem em todo o Império. Assim, o monarca, em 1649, escreveu ao general de artilharia, André de Albuquerque, perguntando sobre o que fazia o engenheiro militar holandês Timermans, contratado para servir de professor: e porque Eu desejo saber se Timermans (…) ensina a alguns naturais a sua arte, os discípulos que teve, e o fruto que desta doutrina tem resultado, vos recomendo me aviseis e procureis que haja particular cuidado em que os naturais aprendam e se façam práticos nesta Arte (Arquitetura Militar), para que não estejamos dependendo de estrangeiros com os quais se fazem tão grandes despesas.56 Timermans veio para o Brasil com a missão de “preparar 24 alunos para as funções de engenheiro, inclusive de fogo”, no período de 1648 a 1650.57 Ao que parece, não conseguiu alcançar o seu objetivo, pois os profissionais que atuaram na América ou eram estrangeiros ou tiveram sua formação em Portugal.58 A carência de engenheiros militares lusos obrigava-os, assim como em vários ofícios reais, a circularem por todo o Reino, embora os melhores fossem mandados para a América.59 Deste modo, começava a se delinear de forma mais clara um sistema de defesa suprarregional, que não contava com todas as cidades fortificadas, mas sim “cabeças”, que tinham a função de resguardar uma determinada região mais ampla.60 Assim, o porto do Rio de Janeiro, já no século XVII, por ser o principal da região sul da América portuguesa, apresentava para além da importância comercial uma grande GOUVÊA, M. F. (orgs.) O antigo regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI–XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 199. 55 TAVARES DA CONCEIÇÃO. A praça da guerra aprendizagens entre a Aula do Paço e a Aula de Fortificação…, p. 36. 56 APUD TAVARES DA CONCEIÇÃO. Ibidem, p. 37-8. 57 Ibidem, p. 49 e 170. 58 BUENO, B. & REIS, N. Cidades e fortes coloniais. Revista da Cultura. Ano II, nº 3, p. 47, 2002. 59 TELLES, Pedro Carlos da Silva. História da engenharia no Brasil (séculos XVI a XIX). Rio de Janeiro: Clavero, 1994, p. 10 e; BUENO E REIS. Cidades e fortes coloniais…, p. 47. 60 TAVARES DA CONCEIÇÃO. A praça da guerra aprendizagens entre a Aula do Paço e a Aula de Fortificação…, p. 30. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 39 relevância militar.61 A principal função do governador da capitania era a defesa de toda a parte sul da América lusa, juntamente com as suas rotas mercantis. Sob a perspectiva de “cabeça” da região, podemos entender três acontecimentos que tomaram corpo a partir da cidade do Rio de Janeiro, responsável por mandar tropas para a defesa de outras localidades. O primeiro, em 1615, quando se expulsou definitivamente os franceses, com a instalação da cidade de Cabo Frio, conjuntura marcada pela própria fundação da urbe fluminense. Segundo, em 1648, quando se reconquistou Angola, com a expedição montada por Salvador Correia de Sá e Benevides.62 E terceiro, com a criação da Colônia de Sacramento, em 1680, na região do rio da Prata.63 De acordo com este sistema, os engenheiros eram vitais, posto que atuavam nas construções militares e também nas batalhas. Luís Serrão Pimentel foi um dos engenheiros militares lusos que mais se destacou. Sua obra Methodo lusitanico de desenhar as fortificaçoens das praças regulares e irregulares foi publicada em 1680. Ela criava um modelo luso de praça de guerra e foi difundido após a Restauração. Sua preocupação residia na flexibilização e adaptação das condições reais existentes, buscando o equilíbrio entre o real e o possível, uma vez que: A extrema amplitude geográfica e cronológica do império colonial obrigou, até pela sua velocidade, à adopção expedita de procedimentos flexíveis, pouco favoráveis à formalização teórica de modelos demasiados rígidos, sem previsível eficácia em espaços diversificados.64 Esta ideia fora compartilhada pelo engenheiro militar João de Balesteiros. Durante todo o século XVII, quando se discutia a fortificação e a defesa da barra do Rio de Janeiro, um dos projetos era construir a fortaleza da Laje, que seria erguida 61 SAMPAIO, A. Na encruzilhada do Império – hierarquias sociais e conjunturas econômicas no Rio de Janeiro (c. 1650 – c. 1750). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2001, p. 140 e; CARDOSO, C. & ARAUJO, P. Rio de Janeiro. Madri: Mapfre, 1992, p. 72. 62 Sobre algumas diretrizes e decisões tomadas pelo Senado da Câmara no Rio de Janeiro, que passavam tanto pelo envio da expedição de Salvador Correia de Sá e Benevides, que reconquistaria Angola (1648), até o de alimentos para a região. Cf. PREFEITURA. O Rio de Janeiro no século XVII– accordãos e Vereanças do Senado da Camara…, p. 49 e 173. 63 Em nossa dissertação analisamos os perfis dos capitães das fortalezas e observamos a circulação destes agentes dentro deste conceito de “cabeça”. Assim, tinham o Rio de Janeiro como “sede” e circulavam por áreas subordinadas: Angola, Espírito Santo, Cabo Frio e etc. Este sistema não era novidade. Afonso de Albuquerque, no século anterior, havia pensado a defesa da Índia por meio deste preceito. O sistema permitira a diminuição de gastos. Cf. RODRIGUES, V. A Guerra na Índia, p. 203. 64 TAVARES DA CONCEIÇÃO. A praça da guerra aprendizagens entre a Aula do Paço e a Aula de Fortificação…, p. 25-6. ISBN 978-85-61586-70-5 40 IV Encontro Internacional de História Colonial somente no século seguinte. O projeto fora feito por Guitan e L’Escolle e havia sido remetido para a metrópole. Balesteiros ficou responsável pelo aval final sobre o projeto e elaborou algumas alterações para a sua execução. Não queremos destacar aqui as suas interferências na planta, mas a sua concepção de que era necessário conhecer a região e adaptar um modelo pensado por quem não a conhecia. Vejamos seu parecer: “para que não se seguisse nenhum erro fiz a planta da plataforma (…), não para que absolutamente se execute por este tamanho, mas para que sirva de guia”.65 Deste modo, mantinha-se uma tradição do período filipino que primava pela fusão dos estilos. De um lado, a ortodoxia do urbanismo castelhano e, de outro, a “morfologia urbana brasileña (versión “tupi” de las influencias ibéricas).66 Voltemos a Pimentel. O engenheiro havia se formado nas “Aulas de Esfera do Colégio de Sto. Antão”. Muitos professores desta instituição eram portugueses, alemães, ingleses, irlandeses e, especialmente, italianos e flamengos. Um de seus principais docentes foi o jesuíta batavo, João Cosmander, que participou ativamente da campanha de fortificação portuguesa pós-1640. Nestas “Aulas” foram introduzidas inúmeras modificações e inovações na engenharia militar ibérica. Uma delas era a substituição de uma “escola italiana”, de construção de fortes, por uma “escola flamenga”, nos anos de 1630. Muitas destas novidades foram colocadas à prova nas batalhas da Restauração Portuguesa.67 A obra de Pimentel, em sua essência, revelava “um apurado equilíbrio entre a tradição portuguesa e o corpo teórico internacional mais actualizado”, atingia ainda um objetivo essencial “explicitamente esclarecido, a fixação de um método português de fortificação, fundamentado e fundamentador da especificidade de uma Escola portuguesa”. Ela mesclava conhecimento prático, pois Pimentel havia participado de batalhas na Restauração, e teórico, em razão da sua formação no Colégio de Santo Antão.68 65 FERREZ. O Rio de Janeiro e a defesa do seu porto, 1555-1800…; HESPANHA. Nova história militar de Portugal…, p. 21 e 144. Não entraremos aqui na discussão apresentada por Ferrez sobre a autoria do mesmo. Para alguns historiadores, posição não compartilhada por este autor, o projeto era dos engenheiros Filipe de Guitan e Miguel de L'Escolle. 66 JAYO, A. H. Brasil, una construcción hispánica – el papel de la Unión de las Coronas en la definición de um urbanismo original ibérico. In: I Simpósio Luso-Brasileiro de Cartografia Histórica, s/d, p. 15. 67 TAVARES DA CONCEIÇÃO. A praça da guerra aprendizagens entre a Aula do Paço e a Aula de Fortificação…, p. 30-1. 68 Ibidem. Ibidem, p. 36. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 41 Seu “Methodo” fora tão bem desenvolvido que continuou a ser usado até o século seguinte. Surgia o estilo português denominado de “Estilo Chão”, “uma arquitetura de raiz maneirista adaptada ao contexto português e com uma feição castrense fruto do pragmatismo dos seus conceptores”.69 O conceito de guerra era pensado com foco na defesa em detrimento ao ataque e baseava-se no conceito de “praças fortes/cabeças” com a clara divisão entre espaços de fronteiras e espaço centralizado. O esforço empreendido pelo Estado luso para a criação dessas aulas era vital, como já vimos, pois era urgente formar um quadro de engenheiros e técnicos lusos para que se diminuíssem os gastos com a contratação de estrangeiros. Neste sentido, há um esforço por “popularizar” a formação de engenheiros. O oficio, tradicionalmente, era destinado à formação de uma elite e, portanto, direcionada aos fidalgos. Com a crescente necessidade de pessoal especializado, passava a haver uma ampliação das origens sociais. Os jovens que substituíram os fidalgos eram recrutados no próprio Exército dentro dos que apresentavam aptidão. Possuíam uma formação teórica e prática e começavam a carreira como “ajudantes” dos engenheiros. Este modelo, no fim do século XVII, foi levado às conquistas: na Bahia, em 1696; no Rio de Janeiro, em 1698; no Maranhão, em 1699 e; no Minho e Pernambuco, em 1701.70 As inovações não chegavam a Portugal somente desta forma, com os professores lusos lendo obras estrangeiras. Apesar da “aula de artilharia e esquadria” o quadro de engenheiros militares ainda era precário. Algumas consultas continuavam a ser feitas a estrangeiros e são bastante elucidativas da preocupação da Coroa em termos de defesa e de uma busca da “modernidade”. Mais uma vez, vejamos a documentação, da qual extraímos uma citação longa, porém bastante rica: O secretário de Estado Pedro Vieira da Silva remeteu a este Conselho [Ultramarino] com ordem de Vossa Majestade para se ver e consultar o que parecer, a cópia de um Capítulo de carta de Arnaut de Hondelate, escrita de Bayena de França, em 9 de julho passado. Nela lembra a Vossa Majestade que as fortalezas do Rio de Janeiro (que diz que tem visto) não são fortalezas para defender armada que a aquela praça for de propósito, porque as rodas da artilharia estão sempre ao sol e a chuva e os soldados que as guardam, são as três partes forçados e ficam cinco ou seis anos sempre nas fortalezas, pelo que se chegar ocasião de serem acometidas de inimigos, mais depressa se hão de por da sua parte, que da nossa, que os artilheiros serão 69 70 BUENO. Cidades e fortes coloniais…, p. 48. Ibidem. ISBN 978-85-61586-70-5 42 IV Encontro Internacional de História Colonial somente sete ou oito e tais, que o fazendo condestável um não valem os mais outros. Ao Conselho [Ultramarino] pareceu dizer a Vossa Majestade que o que aponta Arnaut de Hondelate, do estado das fortalezas do Rio de Janeiro, é certo, porque assim o referiu o Conselheiro Salvador Correa de Sá, e o viu quando passou por aquela praça vindo de Angola. Pelo que parece que Vossa Majestade deve mandar que em cada uma das fortalezas, de Sta. Cruz, e S. João, que são as da Barra, haja cem soldados de presídio para sua defesa. E na cidade, oitocentos, e destes oitocentos assistam cada dois meses cinqüenta no Cabo Frio, e cinqüenta na Ilha Grande. E nas ditas duas fortalezas cada mês se remudem as companhias, indo assistir uma cada mês além da infantaria de sua dotação. E que haja nelas tantos artilheiros, como peças tiverem cada uma. E dois condestáveis em cada uma. E que para se poder governar esta infantaria, haja dois ajudantes numerários. E para governar a gente miliciana outros dois ajudantes supranumerários, que não vençam mais que o soldo de alferes reformados. E que Vossa Majestade mande que o provedor da fazenda com o ministro que o governador lhe nomear, vão fazer vistoria nas carretas e mais petrechos da artilharia para sua defesa. E que logo se trate do remédio de tudo, que será fácil, e muito difícil de restaurar se a praça se perder. Lembrando a Vossa Majestade que só esta capitania esta intacta dos inimigos, sendo que por natureza é a mais defensável. E das mais importantes por está causa. Em Lisboa a 9 de dezembro de 655. Salvador Correa de Sá e Benevides Francisco de Vasconcelos da Cunha Diogo Lobo Pereira À margem a ordem do rei: Diga-me Conselho o que se poderá executar de tudo o que aponta esta consulta, e o que se poderá também tentar no Brasil, e de que sendo respeitantes as necessidades do Reino e daquele estado, em Lisboa 26 de janeiro de 656.71 Neste documento podemos ver o secretário de Estado português recebendo o parecer de um engenheiro francês que se encontrava em seu país natal. Há uma série de recomendações que incidem basicamente em aumentar o efetivo e a forma como era recrutado e remunerado. Atentemos para o silêncio em relação à estrutura física das fortalezas e da qualidade das armas. Não há comentário sobre questões técnicas da artilharia, ou seja, se o armamento disponível era o apropriado. Criticava-se a 71 FERREZ. O Rio de Janeiro e a defesa do seu porto, 1555-1800…, p. 174-178. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 43 conservação e abrigo que se dava a ele. O mesmo já havia ocorrido entre 1649-50, quando, com as reformas planejadas por Miguel de L´Escolle e Filipe de Guitan, foram mandadas plantas para o engenheiro militar francês, Pedro Pelifique, dar seu parecer sobre as fortalezas.72 Lembremos que Ferrez nos mostra uma série de relatos feitos pelos governadores do Rio de Janeiro que sempre dão conta do péssimo estado das fortificações daquela capitania.73 Como vimos no início do artigo, o engenheiro francês e outros tantos viajantes que por aqui passaram conheciam outros cenários. Em seus relatos não há menção à existência de uma diferença, especialmente no que diz respeito à estrutura física, entre as realidades. Portanto, somos levados a acreditar que talvez fosse bem pequena. Do mesmo modo, pensamos que os relatórios feitos pelos governadores, que mostravam a precariedade da capitania, devam ser vistos com outros olhos. É o que também percebeu Hespanha ao analisar o cálculo dos efetivos reunidos nas guerras e batalhas portuguesas nos séculos XIV a XVII, “(…) o desejo de valorizar a vitória faz subavaliar os efectivos próprios ou o desejo de reputação os faz aumentar”.74 É claro que a estrutura não era ideal, realmente deveria haver carência de quase tudo. Mas esta devia ser sentida em outras praças, que não somente as lusas. As condições materiais na Europa, até mesmo pelo desenvolvimento tecnológico da época, não eram de uma sociedade industrializada, como temos hoje. Deste modo, os governadores, a fim de valorizarem seus serviços, deveriam “carregar na tinta” nos seus relatos. Afinal, conseguir sucesso na defesa de uma praça tão importante como o Rio de Janeiro, com pouco ou nenhum recurso, lhes daria mais prestígio do que defender uma praça bem equipada. 72 Ibidem. Ibidem. Ibidem, p. 185-6. 74 HESPANHA. Nova história militar de Portugal…, p. 23. Esta percepção também aparece nos relatos das batalhas da Restauração Pernambucana, ver também VAINFAS, R. Traição. São Paulo: Cia. das Letras, 2008. 73 ISBN 978-85-61586-70-5 44 IV Encontro Internacional de História Colonial A “chave de prata do Brasil”: o rio da prata como a fronteira sul da América Portuguesa Paulo César Possamai1 A política de expansão rumo ao Rio da Prata que a Coroa portuguesa adotou a partir da Restauração, foi legitimada pela criação da diocese do Rio de Janeiro, uma importante vitória diplomática do príncipe regente D. Pedro junto à Santa Sé. Os limites da nova diocese seguiam instruções que já apontavam o Rio da Prata como o limite sul do Estado do Brasil. No memorial em que Lourenço de Mendonça, administrador eclesiástico do Rio de Janeiro, escreveu, por volta de 1630, sobre a necessidade da criação de um bispado na cidade, descrevia a costa brasileira correndo da boca do Rio da Prata até o cabo do Norte, na província do Maranhão e Rio das Amazonas.2 Efetivamente, a Prelazia do Rio de Janeiro, criada em 19 de julho de 1576, tinha como limite sul o Rio da Prata, o que foi confirmado um século depois, quando da criação do bispado do Rio, em 22 de novembro de 1676, pela bula Romani Pontificis, na qual Inocêncio XI estabeleceu o alcance da nova diocese que, do Espírito Santo, seguia “até o Rio da Prata, pela costa marítima e pelo sertão”.3 A confirmação, obtida através da bula que criara a diocese do Rio de Janeiro, de que o território em litígio que corria de Cananéia ao Rio da Prata fazia parte do Brasil, legitimou a tentativa de fundar uma povoação na região platina. Outro fator favorável à retomada pelos portugueses do velho projeto de ocupar as margens do Rio da Prata foi a decadência acentuada do poderio militar espanhol verificada nessa época. A soma desses fatores, aliada à necessidade de metal precioso, motivou a Coroa portuguesa a passar à ação. Em 1677, o príncipe D. Pedro instruiu secretamente o tenente-general Jorge Soares de Macedo a visitar Paranaguá, a fim de determinar o valor de supostas minas de prata, e de lá passar ao Rio da Prata, onde deveria erguer uma fortificação na ilha de São Gabriel.4 Entretanto, por duas vezes, tempestades obrigaram a frota de Macedo a regressar ao porto de Santos, de onde saiu a expedição. Na terceira tentativa, uma tempestade ainda maior dispersou a frota, sendo que quatro embarcações conseguiram regressar, enquanto outras três foram dar à ilha de Santa 1 Doutor em História Social pela USP. Professor da Universidade Federal de Pelotas. ALMEIDA, Luís Ferrand de. A Diplomacia Portuguesa e os Limites Meridionais do Brasil (1493-1700). Coimbra: Universidade de Coimbra, 1957, p. 54. 3 LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1945, vol. VI, p. 534. 4 RODRÍGUEZ, Mario. Dom Pedro of Braganza and Colônia do Sacramento, 1680-1705. Hispanic American Historical Review. Durham, vol. XXXVIII, nº 2, p. 179-208, p. 187188, May 1958. 2 ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 45 Catarina. Em Santos, Macedo foi informado de que deveria seguir para o Rio de Janeiro, a fim de entrar em contato com o recém-empossado governador, D. Manuel Lobo, que entrementes havia sido escolhido por D. Pedro para empreender a nova fundação.5 Seguindo as instruções de Lisboa, assim que Lobo tomou posse do governo do Rio de Janeiro, em 9 de maio de 1679, ele tratou de dar início à preparação da expedição que viria a fundar a Colônia do Sacramento. O governador ordenou o recrutamento compulsório de quantos homens pôde capturar no Rio: operários, aprendizes, comerciantes, mendigos e mesmo os presos, aos quais foi concedido o perdão em troca do alistamento.6 A câmara da cidade não deixou de protestar ao rei contra o procedimento do governador, pois, a fim de evitar o serviço militar, muitos agricultores e operários fugiram para as matas,7 abandonando os engenhos, prejudicando desse modo a economia local.8 A pequena frota chegou sem maiores problemas à ilha de São Gabriel em janeiro de 1680. Porém, ao tomar conhecimento da chegada da expedição, o governador de Buenos Aires, D. José de Garro, enviou ao seu encontro uma comissão a fim de requerer ao comandante dos navios que abandonasse as terras do rei de Espanha, pois se não o fizesse com toda a brevidade, usaria da força para desalojá-lo da região. D. Manuel Lobo não deixou de demonstrar firmeza na discussão que se seguiu entre portugueses e espanhóis sobre a posição em que a linha de Tordesilhas passava no sul da América, encerrando-a com a afirmação de que sem a ordem expressa do príncipe regente, não voltaria atrás um passo.9 Além da oposição dos espanhóis, o governador encontrou problemas com indisciplina dos homens que trouxe do Rio de Janeiro. Se houve violência no recrutamento, o príncipe regente tentou garantir a boa vontade dos recrutas, ordenando a D. Manuel Lobo que pagasse um mês de soldo adiantado aos oficiais e soldados, enquanto os efetivos da cavalaria deveriam receber dois meses 5 PORTO, Aurélio. História das Missões Orientais do Uruguai. Porto Alegre: Selbach, 1954, parte I, p. 387-388. 6 MONTEIRO, Jonathas da Costa Rego. A Colônia do Sacramento (1680-1777). Porto Alegre: Globo, 1937, vol. 1, p. 42. 7 A prática de buscar nas matas refúgio contra o recrutamento compulsório continuou a ser comum durante bastante tempo. Em 1722, o governador do Rio de Janeiro informou que não tinha homens disponíveis para enviar a Colônia “e caso que os houvesse, estes mais facilmente desertam fugindo pelo mato, como tinha mostrado a experiência”. Cf. Consulta do Conselho Ultramarino de 17/03/1722. IHGB, Arq. 1.1.21, ff. 75v.-76. 8 COARACY, Vivaldo. O Rio de Janeiro no Século XVII. Rio de Janeiro: José Olympio, 1944, p. 191. 9 ALMEIDA, Luís Ferrand de. A Diplomacia Portuguesa e os Limites Meridionais do Brasil (1493-1700)…, p. 116-117. ISBN 978-85-61586-70-5 46 IV Encontro Internacional de História Colonial adiantados.10 Contudo, o fundador não demorou a se queixar da “incapacidade da gente que trouxe do Rio de Janeiro”, soldados que, até então, “considerava maus só no militar os experimentei malíssimos em todas as suas ações”, o que não surpreende se nos lembrarmos da forma como foi feito o recrutamento. Reclamou ainda que, aproveitando-se da enfermidade que padecia, “os brasileiros se licenciaram tanto que desobedeciam a seus oficiais”. Segundo Lobo, os melhores soldados eram os reinóis,11 já que, com poucas exceções, os brasileiros “iam muito pouco às faxinas e nelas trabalhavam o que queriam, que era muito pouco, e com aquela calma que no Brasil costumam fazer todas as coisas”.12 Tendo em vista a resistência dos portugueses, o governador de Buenos Aires deu ordem para a mobilização do exército espanhol, solicitando também a ajuda de três mil índios requisitados às missões jesuíticas. Na madrugada de 7 de agosto iniciou-se o ataque, que se destacou pelo massacre realizado pelos índios de todos os portugueses que continuaram a resistir, somente escapando os que se refugiaram na igreja e D. Manuel Lobo, salvo pela intervenção do comandante espanhol, Vera y Muxica. Alguns historiadores, como Henrique Alexandre Fonseca13 e Azarola Gil,14 definiram a escolha das terras de São Gabriel como um grave erro de estratégia, acreditando que uma fundação em Maldonado ou Montevidéu teria maior chance de resistir aos ataques dos espanhóis. Outros, como Capistrano de Abreu,15 Rego Monteiro16 e Luís Ferrand de Almeida17 defendiam que o objetivo da Coroa em 10 Regimento de D. Manuel Lobo. In: MONTEIRO, Jonathas da Costa Rego. A Colônia do Sacramento…, vol. 2, p. 7. 11 Das quatro companhias que formavam a guarnição de Sacramento no tempo de D. Manuel Lobo, uma fora recrutada na metrópole, enquanto as outras foram formadas no Brasil. Cf. ALMEIDA, Luís Ferrand de. A Colônia do Sacramento na Época da Sucessão de Espanha. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1973, p. 51. 12 D. Manuel Lobo ao Príncipe Regente, 21/09/1680. In: MONTEIRO, Jonathas da Costa Rego. A Colônia do Sacramento…, vol. 2, p. 33. 13 FONSECA, Henrique A. A Colônia do Sacramento. Lisboa: Academia da Marinha, 1985, p. 4. 14 AZAROLA GIL, Luis Enrique. La Epopeya de Manuel Lobo. Madrid: Compañía IberoAmericana de Publicaciones, 1931, p. 30. 15 CAPISTRANO DE ABREU, João. Sobre a Colônia do Sacramento. Introdução a Simão Pereira de Sá. In: História Topográfica e Bélica da Nova Colônia do Sacramento do Rio da Prata. Rio de Janeiro: Leuzinger, 1900, p. XXVII. 16 MONTEIRO, Jonathas da Costa Rego. A Colônia do Sacramento…, vol. 1, p. 39. 17 “A fundação da Colônia do Sacramento, em 1680, não foi um episódio súbito e isolado, mas sim o termo lógico de um processo com profundas raízes históricas, que chegam até ao Tratado de Tordesilhas e aos problemas relacionados com a sua aplicação no Novo Mundo”. ALMEIDA, Luís Ferrand de. Páginas Dispersas: Estudos de História Moderna de Portugal. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1995, p. 163. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 47 fundar uma povoação em frente a Buenos Aires revelou o desejo de marcar o ponto extremo das pretensões de Portugal. No nosso ponto de vista, a escolha das terras de São Gabriel como o sítio da nova fundação portuguesa obedeceu antes às conveniências que o local oferecia ao comércio ilícito com Buenos Aires, que a uma busca de estabelecer limites e ocupar terras, embora essas finalidades fossem oficialmente apontadas como a razão da criação de Sacramento. A enseada de Colônia era o porto da margem norte mais próximo a Buenos Aires, ao mesmo tempo em que era o último ponto onde as naus transoceânicas podiam chegar. Dali em diante a navegação deveria ser feita em pequenas embarcações, que podiam internar-se nos pequenos canais do delta do Paraná e passar pelos bancos de areia sem grandes problemas. Essas eram vantagens essenciais para o progresso do comércio ilícito.18 Justamente por isso, a ilha de São Gabriel era um antigo refúgio de piratas e contrabandistas, principalmente dos holandeses,19 situação que não deve ter sido ignorada pelos portugueses, uma vez que eles eram os principais agentes do comércio ilícito no Rio da Prata. Provavelmente o desejo de se adiantar aos holandeses, que ambicionavam estabelecer-se na região,20 também contribuiu para a escolha da ilha que, segundo o regimento de D. Manuel Lobo, era “a de melhor surgidouro, fundo, com água, lenha, sítio sadio e fácil ao desembarque dos navios e resguardo dos tempos, e dentro da demarcação e senhorio desta Coroa” [grifo nosso].21 Se o Regimento proibia a abertura do comércio com os espanhóis, o mesmo taxava em cinco por cento as mercadorias que “eles queiram introduzir”, exceto prata, ouro e mantimentos. A mesma cobrança deveria incidir sobre as mercadorias vendidas aos castelhanos, ordenando o Príncipe Regente que “os despachos das entradas e saídas se farão pelo escrivão e tesoureiro deste apresto com livro separado e rubricado por vós para se ter toda a conta e razão que convém”.22 Portanto, antes que estabelecer limites, circunstância que justificava a fundação no regimento de D. Manuel Lobo, pensamos que a Coroa planejava então criar um entreposto através do qual seria reaberto o lucrativo comércio ilícito com Buenos Aires. Como a rede comercial já estava instalada, se inverteram as etapas que os portugueses seguiram durante o século XV na Guiné e no século XVI na Índia, 18 DIFIRERI, Horacio A. Buenos Aires: Geohistoria de una Metropoli. Buenos Aires: UBA, 1981, p. 18 e 63. 19 RIVEROS TULA, Aníbal M. Historia de la Colonia del Sacramento. Apartado de la Revista del Instituto Histórico y Geográfico del Uruguay. Montevideo, tomo XXII, p. 39, 1959. 20 BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O Expansionismo Brasileiro e a Formação dos Estados na Bacia do Prata. São Paulo: Ensaio; Brasília / UnB, 2ª ed., 1995, p. 39. 21 O Regimento de D. Manuel Lobo (1678). In: MONTEIRO, Jonathas da Costa Rego. A Colônia do Sacramento…, vol. 2. p. 8. 22 Ibidem, p. 12. ISBN 978-85-61586-70-5 48 IV Encontro Internacional de História Colonial quando trataram de estabelecer feitorias comerciais. Se antes, primeiro procuravam ativar o comércio para um ponto do litoral que depois seria fortificado para defender o monopólio régio,23 no Prata, a fortificação precedeu o estabelecimento do entreposto. Por sua vez, o domínio da navegação do Rio da Prata poderia facilitar aos portugueses a conquista do território banhado por seus afluentes, a fim de obter o controle da linha de comunicações entre Buenos Aires e as minas do Alto Peru. Para Portugal, enquanto potência mercantil, a noção de fronteira era móvel, já que estava ligada à expansão dos seus interesses econômicos.24 Logo, eram plenamente fundados os receios dos espanhóis de que, com a fundação de Colônia, os portugueses procuravam dominar o acesso ao Vice-Reino do Peru e por isso não mediram esforços para desalojá-los do estuário platino. Com a destruição de Sacramento, no mesmo ano da sua fundação, parecia ter acabado melancolicamente o sonho da Coroa portuguesa de reabrir o lucrativo comércio com o Rio da Prata e, ao mesmo tempo, aumentar seu poder através do domínio e exploração de uma vasta região ainda não ocupada por nenhuma potência europeia. Entretanto, o príncipe D. Pedro não aceitou pacificamente a situação. Enviou um ultimatum à Espanha, que, dentro de quinze dias, teria de dar satisfação do ocorrido, castigar o governador de Buenos Aires, libertar os prisioneiros e devolver o território ocupado.25 A situação internacional não era favorável à coroa espanhola que tentava fazer frente à ambição francesa de hegemonia europeia, por isso ela cedeu às pressões dos portugueses e, em 7 de março de 1681, foi assinado em Lisboa o Tratado Provisional. O tratado regulamentava ainda que se nomeariam comissários em igual número para ambas as partes para que, dentro de dois meses, se reunissem numa conferência na qual seriam definidos os limites do meridiano de Tordesilhas. Caso os comissários não chegassem a nenhum acordo dentro de no máximo três meses, a disputa seria resolvida pelo Papa, que teria um ano para arbitrar a questão.26 Embora as conferências realizadas em Elvas e Badajoz, na fronteira lusoespanhola, não chegassem a nenhuma conclusão, pois os representantes de ambos os países empenharam-se unicamente em fazer valer os interesses de seus soberanos, a fundação de Sacramento trouxe à tona o problema dos limites das possessões ibéricas na América, esquecido desde fins do século XVI. Os debates concentraram23 ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O Trato dos Viventes: Formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 75. 24 Sobre a política expansionista portuguesa nas bacias platina e amazônica, consultar: BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O Expansionismo Brasileiro e a Formação dos Estados na Bacia do Prata…, p. 43-52. 25 RIVEROS TULA, Anibal M. Historia de la Colonia del Sacramento…, p. 81-82. 26 Tratado Provisional de 1681. Revista do IHGB, vol. 352, p. 914-928, 1986. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 49 se nas diferentes interpretações do Tratado de Tordesilhas. Os espanhóis defendiam que as 370 léguas estipuladas pelo tratado fossem contadas a partir da ilha de São Nicolau, a mais central do arquipélago de Cabo Verde, enquanto que os portugueses, ao contrário do que haviam defendido na junta de 1524, quando queriam garantir um avanço a leste, agora insistiam que a contagem deveria começar a partir da ilha de Santo Antão, a mais ocidental delas, a fim de assegurar o máximo avanço a oeste.27 Outra discussão que não teve consenso referia-se à forma de contar as léguas. Nessa época existiam diferentes tipos de contagem das léguas, variando em cada país e até mesmo entre os pilotos de uma mesma nação.28 Se as grandes variações verificadas nos mapas deviam-se antes à dificuldade de precisar corretamente as medidas e não a uma falsificação premeditada, como foi apontado por alguns historiadores de países vizinhos, não podemos deixar de observar que os cartógrafos e cosmógrafos portugueses pareciam estar mais engajados na defesa dos interesses de seus soberanos que os seus colegas espanhóis, já que sempre defenderam o domínio português sobre o Rio da Prata. Entre os espanhóis notamos uma vacilação considerável. Consultados pela Coroa espanhola em agosto de 1680, o cosmógrafo D. Alonso de Bacas Montoya deu seu parecer de que a linha de Tordesilhas cortava ao meio a ilha de Maldonado,29 enquanto o piloto-mor da Casa de Contratação de Sevilha defendia que a linha passava por São Vicente.30 Nesse momento, a diferença de atitudes entre os cosmógrafos portugueses e espanhóis pode ser explicada pelo engajamento dos primeiros numa política expansionista agressiva que visava alargar ao máximo o domínio da Coroa em direção às minas do Alto Peru enquanto que os espanhóis, donos das minas e sem grande interesse em um alargamento territorial que não prometia grandes riquezas, mantiveram-se numa postura defensiva, mas decidida a deixar os portugueses fora do Rio da Prata, o principal caminho para as minas a partir do Atlântico. Embora não se chegasse a um acordo com respeito ao alcance da linha de Tordesilhas, o Tratado Provisional permitiu a reconstrução de Sacramento pelos portugueses. Para povoá-la, um decreto real, assinado em 29 de outubro de 1689, ordenou que os homens e as mulheres condenados ao degredo no Brasil podiam ter 27 CORREA LUNA, Carlos. Campaña del Brasil. Buenos Aires: Archivo General de la Nación, 1931, t. 1, p. LXI. 28 GARCIA, Fernando Cacciatore de. Fronteira Iluminada. Porto Alegre: Sulina, 2010, p. 30. 29 Informe del Catedratico de Cosmografía Don Alonso de Bacas Montoya. Sevilla, 9 de Agosto de 1680. In: CORREA LUNA, Carlos. Campaña del Brasil…, p. 285-287. 30 Informe de Don Juan Cruzado de la Cruz y Messa. Sevilla, 13 de Agosto de 1680. In: Ibidem, p. 287-288. ISBN 978-85-61586-70-5 50 IV Encontro Internacional de História Colonial suas sentenças comutadas para a Colônia do Sacramento,31 para onde foram enviados quinze homens em 25 de janeiro de 1690.32 Além da Coroa, o governo do Rio de Janeiro também costumava enviar degredados para lá. Em 1685, um bando do governador condenou ao degredo para Sacramento qualquer pessoa que fosse apanhada mascarada nas ruas do Rio, devido ao grande número de abusos e violências causadas pelos mascarados.33 Em 1690, o governador D. Francisco Naper de Lencastre enviou do Rio de Janeiro doze mulheres solteiras, “algumas degredadas pela justiça e outras desimpedidas e escandalosas, para lá casarem, como já o vão fazendo”.34 Esperava-se que na Colônia do Sacramento as mulheres solteiras, condenadas ao degredo por pequenos crimes, prostituição ou “comportamento escandaloso”, se casassem com os soldados, dando origem a famílias estáveis que garantissem o sucesso da política de povoamento. Em 1699, o governador Sebastião da Veiga Cabral reclamou ao rei que, dos soldados que pedira ao Rio de Janeiro, “só doze eram capazes, e os mais inúteis, por despidos e descalços, e outros mulatos”. O preconceito de Veiga Cabral contra os soldados mulatos não deixou de ser severamente reprovado pela Coroa, que estranhou a atitude do governador de Sacramento, respondendo-lhe que “ainda que fossem mulatos, como destes se componha a maior parte do Brasil, e não haverem muitos outros de diferente qualidade, e neste Reino, em que podia haver muito maior escrúpulo, serviram muitos, e ocuparam postos”.35 A falta de apreço pelos soldados brasileiros ia mais além do que o simples preconceito dos oficiais e governadores, reinóis em sua maioria. O recrutamento compulsório que visava à obtenção da maior quantidade de homens possível no menor tempo, ao mesmo tempo em que tinha por objetivo livrar as cidades dos elementos indesejados, foi o principal elemento responsável pela baixa qualidade do soldado recrutado na América portuguesa. Entretanto, as expectativas de aumentar a presença lusa no Prata estavam destinadas a malograr em consequência da mudança da política europeia. Em 1700, com a morte de Carlos II, terminou o ramo espanhol da dinastia de Habsburgo e deu-se a ascensão dos Bourbons ao trono da Espanha. Um novo tratado buscou o apoio de Portugal à nova dinastia espanhola em troca de concessões no Rio da Prata. 31 ALDEN, Dauril. Royal Government in Colonial Brazil with Special Reference to the Administration of the Marquis of Lavradio. Berkeley - Los Angeles: University of California Press, 1968, p. 70. 32 MONTEIRO, Jonathas da Costa Rego. A Colônia do Sacramento…, vol. 2, p. 54. 33 COARACY, Vivaldo. O Rio de Janeiro no Século XVII…, p. 201. 34 D. Francisco Naper de Lencastre ao rei, 30/05/1690. In: ALMEIDA, Luís Ferrand de. A Diplomacia Portuguesa e os Limites Meridionais do Brasil… p. 524. 35 D. Pedro II a Sebastião da Veiga Cabral, 22/11/1699. In: Ibidem, p. 560. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 51 O Tratado de Aliança entre Portugal, França e Espanha foi assinado em 18 de junho de 1701. Entre outras coisas, D. Pedro II garantia o testamento de Carlos II, comprometendo-se a fechar os portos portugueses aos navios das nações que contestassem sua legitimidade. Em compensação, Portugal assegurou pleno direito a Sacramento, independentemente da discussão sobre os limites da linha de Tordesilhas. Pelo Tratado, Filipe V cedia a D. Pedro II a Colônia do Sacramento, mas o item que especificava “como ao presente a tem” criou margem para que o governador de Buenos Aires e o vice-rei do Peru entendessem que o reconhecimento do domínio português não deveria se estender além dos campos adjacentes à fortaleza. Isso criava dificuldades para a concretização dos planos de ocupação de Montevidéu e Maldonado, que a Coroa portuguesa entendia fazer parte do território de Colônia o qual, na sua interpretação, abrangia toda a margem norte do Rio da Prata, ligando-se ao Brasil pelo sertão e incluindo até mesmo as missões do Uruguai, que se pretendiam manter após a troca dos jesuítas espanhóis por portugueses.36 O Tratado de Aliança não durou muito tempo, pois foi anulado quando os portugueses mudaram sua política de alianças e passaram a apoiar o candidato austríaco à coroa espanhola, rompendo com Filipe V. Apesar das pressões da Inglaterra e da Holanda, a adesão portuguesa ao lado dos austríacos fez-se somente após longas negociações, sendo assinada em 16 de maio de 1703. Pelo acordo, em caso de vitória dos aliados, a França seria forçada a renunciar às suas pretensões sobre as terras situadas entre os rios Oiapoque e Amazonas e a Espanha cederia algumas cidades da Estremadura e da Galícia e reconheceria a soberania portuguesa sobre toda a margem norte do Rio da Prata, o qual passaria a servir de limite aos domínios de ambas as Coroas.37 A troca de alianças deu origem a um novo ataque do governador de Buenos Aires à Colônia do Sacramento, que foi abandonada aos espanhóis em 1705, quando a população e guarnição foram embarcadas rumo ao Rio de Janeiro. Porém, dez anos após, o Tratado de Utrecht, que selou a paz entre Portugal e Espanha, ordenou a sua devolução aos portugueses. Os plenipotenciários portugueses na Holanda foram o conde de Tarouca e D. Luís da Cunha. Tarouca buscou mais do que simplesmente a devolução de Colônia na negociação com os espanhóis, pois visava garantir a expansão da colonização portuguesa no Rio da Prata: Porque escrevendo ouvi da parte de El Rei de Castela que se não dissesse no tratado Colônia, pois já não havia tal Colônia, 36 ALMEIDA, Luís Ferrand de. A Colônia do Sacramento na Época da Sucessão de Espanha…, p. 213-221. 37 Ibidem, p. 255-256. ISBN 978-85-61586-70-5 52 IV Encontro Internacional de História Colonial mas dissemos o terreno donde estava a Colônia, daqui tirei a ocasião para uma grande negociação, e nesta água em volta, como se diz vulgarmente encaixei um plural dizendo o território e a Colônia; esta malícia não percebeu o Duque de Osuna38 [plenipotenciário espanhol], nem o embaixador de França e assim passou o plural; e assim direi a VS.ª o desígnio com que o fiz. El Rei nosso senhor não possuía mais que a Colônia simplesmente, antes quando ultimamente lha cedeu Felipe 5º pôs-lhe uma cláusula dizendo como al presente la tiene – de sorte que não possuíamos de jure um palmo de terra fora da Colônia, mas presentemente em virtude desta paz há de El Rei entrar de posse, há de fortificá-la, há de começar a lograr toda a campanha e terra que lhe parecer e se os castelhanos quiserem embaraçar-lhe há de responder-lhes que aquele território lhe há de ser cedido juntamente com a Colônia e que não põem em dúvida a que se faça a demarcação pois que no tratado de paz se vê que não só lhe deram a Colônia mas o território.39 Contudo, a notícia da entrega da “Colônia do Sacramento e seu território”, segundo os termos do tratado, não foi bem recebida em Buenos Aires. O cabildo escreveu ao rei que a devolução de Colônia aos lusos resultaria num gravíssimo prejuízo à coroa espanhola e aos habitantes das províncias de Buenos Aires, Paraguai e Tucumã, assim como também aos índios das missões jesuíticas.40 Para o governador de Buenos Aires, o território de Colônia, não delimitado pelo Tratado de Utrecht, era somente o coberto pela artilharia da praça. Segundo ele, se antes os portugueses tinham o usufruto da campanha, o mesmo não passava de roubo, o que seria evitado com o povoamento da margem norte do Rio da Prata pelos espanhóis.41 38 O colega de Tarouca em Utrecht, D. Luís da Cunha, considerava Osuna “ignorante incapaz de conduzir os interesses que representava porque ‘não havendo jamais lido um só tratado, não devia expor-se a fazê-lo”. In: CLUNY, Isabel. D. Luís da Cunha e a ideia da Diplomacia em Portugal. Lisboa: Horizonte, 1999, p. 37. 39 CLUNY, Isabel. O Conde de Tarouca e a Diplomacia na Época Moderna. Lisboa: Horizonte, 2006, p. 319. Sobre a diplomacia em Portugal durante a Idade Moderna consultar: FARIA, Ana Leal de. Arquitectos da Paz: A Diplomacia Portuguesa de 1640 a 1815. Lisboa: Tribuna, 2008. 40 Resolución capitular de pedir a S. M. que en vez de la Colonia se entregara ‘otra cosa de menos atraso y perjuicio a sus reales haberes. Buenos Aires, 20/11/1715. In: In: CORREA LUNA, Carlos. Campaña del Brasil…, p. 452-453. 41 Carta de D. Balthasar García Ros, gobernador interino de Buenos Aires al rey… Buenos Aires, 07 /12/1715. In: CORREA LUNA, Carlos. Campaña del Brasil…, p. 453-457. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 53 Na tomada de posse, o governador Manuel Gomes Barbosa expôs o que os portugueses entendiam como sendo o território de Colônia: “tanto para a parte do norte, por onde se continua atualmente o domínio de Portugal, como para a parte do leste, e foz do Rio da Prata”.42 Por isso pediu aos comissários espanhóis a retirada da guarda do rio San Juan, situada a cinco léguas de Sacramento. Recebeu uma negativa com base no argumento de que o território da Colônia do Sacramento se restringia ao alcance de um tiro de canhão disparado da fortaleza, ideia do governador de Buenos Aires aprovada pela coroa espanhola. Seguindo as ordens de Lisboa, Gomes Barbosa fez registrar seu protesto contra a limitação imposta pelos espanhóis e deu início às obras de reconstrução da fortaleza. Para povoar a região, a Coroa promoveu a ida de sessenta casais de imigrantes da província portuguesa de Trás-os-Montes. Os homens foram incorporados ao regime de ordenanças, mas para manter os efetivos da tropa de linha continuava-se a depender dos homens recrutados no Rio de Janeiro. Em 1718, o governador Manuel Gomes Barbosa queixava-se ao vice-rei do Brasil que muitos dos seus soldados eram aleijados e doentes.43 Escreveu também à Coroa sobre a grande quantidade de desertores que resultava da má qualidade da tropa, composta por soldados novos e mulatos, sendo em sua maioria “degredados, uns por ladrões e outros por vários crimes”. Por isso achava melhor que se fizesse o recrutamento em Portugal e nas ilhas. Ainda achou necessário acrescentar que os recrutas não deveriam desembarcar no Rio de Janeiro “por não tomarem a língua da terra, que só desta sorte me parece não desertarão, por não saberem o viver do Brasil”.44 Um decreto, datado de 1722, suspendeu o exílio para o Estado do Brasil, incluindo a Colônia do Sacramento.45 Talvez esse decreto tenha sido expedido em resposta ao pedido que o governador Manuel Gomes Barbosa fez à Coroa no ano anterior para que cessasse o envio de degredados para a Colônia do Sacramento, “por ser esta casta de gente os que desinquietam e reduzem todos os mais a que fujam”.46 Entretanto, embora cessasse o envio de exilados do Reino para Colônia, até a década de 1770 os governadores do Rio de Janeiro, e depois os vice-reis que viviam nessa cidade, continuaram a remeter civis e soldados como degredados para 42 Protesto do governador da Colônia do Sacramento, Manuel Gomes Barbosa, feito a D. Balthasar Garcia Ros, governador de Buenos Aires, 29/01/1721. In: MONTEIRO, Jonathas da Costa Rego. A Colônia do Sacramento…, vol. 2, pp. 58-59. 43 Gomes Barbosa ao marquês de Angeja, 16/04/1718. In: MONTEIRO, Jonathas da Costa Rego. A Colônia do Sacramento…, vol. 2, p. 67. 44 Gomes Barbosa ao rei, 15/12/1718. AHU, Colônia do Sacramento, cx. 1, doc. 40. 45 COATES, Timothy J. Degredados e Órfãs: Colonização Dirigida pela Coroa no Império Português (1550-1755). Lisboa: CNCDP, 1998, p. 143-144. 46 Consulta do Conselho Ultramarino de 06/031722. IHGB, Arq. 1.1.21, ff. 67-67v. ISBN 978-85-61586-70-5 54 IV Encontro Internacional de História Colonial Sacramento.47 Como exemplo de um crime punido com o exílio em Colônia, citamos um bando do governador Aires de Saldanha de Albuquerque que, em 1724, condenava a três anos de degredo os negros forros que vendessem peixe sem licença nas praias do Rio de Janeiro.48 A política da colonização por meio do envio de casais, patrocinada pela coroa portuguesa, não supriu o problema do desequilíbrio entre os sexos, gerado pela grande concentração de soldados numa pequena povoação. A prática de forçar as pessoas que chegavam ao Rio de Janeiro sem passaportes (com a intenção de seguir para Minas Gerais) a emigrar para Colônia foi iniciada a partir do acordo feito no Rio entre o governador nomeado de Sacramento, Antônio Pedro de Vasconcelos, e Aires de Saldanha, governador do Rio de Janeiro, como uma forma de incrementar o número de agricultores em Colônia, sem criar novas despesas para Fazenda Real. Vasconcelos argumentava que, como era grande o número de pessoas que continuamente chegavam àquele porto em busca de novas oportunidades no Brasil, “nenhuma violência se lhes fazia de os mandarem para esta terra”.49 Com a aplicação desse método, Aires de Saldanha conseguira prender muitas pessoas e, se libertou algumas delas, ainda assim Vasconcelos conseguiu levar consigo para o Prata trinta ilhéus. A ideia de Antônio Pedro de Vasconcelos acabou por tornar-se prática comum entre os governadores do Rio de Janeiro, que continuaram a enviar os imigrantes indesejados para Colônia. Em novembro de 1724 chegaram mais sete casais50 e, em1728, o governador do Rio de Janeiro remeteu para Colônia uma nova “leva de ilhéus”, em compensação pelo envio do soldado José de Nunes.51 Essa política de incrementar o povoamento de Colônia através do envio de casais, voluntários ou não, teve novo desdobramento quando a coroa portuguesa decidiu fundar uma nova povoação no Rio da Prata. Ao saber “do intento que tinham os castelhanos de fortificarem Montevidéu, com o que fica cortada e exposta a dita Colônia [do Sacramento]”, D. João V ordenou ao governador do Rio de Janeiro o envio de uma fragata guarda costa a fim de fortificar o local, se ele ainda não estivesse ocupado. As instruções eram precisas: se os espanhóis já tivessem ocupado Montevidéu, mas não pudessem se defender da expedição, reforçada pela tropa de Sacramento, o rei ordenava que “os faça desalojar e se meta da posse do dito sítio […] por pertencer sem disputa alguma aos domínios desta coroa”. Porém, se a força espanhola fosse maior que a portuguesa, a fragata “dissimulará o intento com que ia, 47 ALDEN, Dauril. Royal Government in Colonial Brazil with Special Reference to the Administration of the Marquis of Lavradio…, p. 70, n. 32. 48 Bando do governador Aires Saldanha, 16/11/1724. ANRJ, cód. 60, vol. 14, ff. 84v.-85. 49 Vasconcelos ao rei, 25/09/1722. AHU, Colônia do Sacramento, cx. 1, doc. 76. 50 Consulta do Conselho Ultramarino de 21/01/1726. IHGB. Arq. 1.1.21, f. 346v. 51 Vahia Monteiro a Vasconcelos, 24/09/1728. ANRJ. Cód. 87, vol. 3, f. 155. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 55 cruzando alguns dias naquelas costas e fazendo entender aos mesmos castelhanos [que] lhe fora preciso chegar àquele sítio a dar caça aos piratas que o infestavam”.52 Embora disposto a expandir seus domínios no Rio da Prata, D. João V não garantiu ajuda ao governador do Rio de Janeiro como havia previsto seu pai, quando do primeiro projeto de ocupação de Montevidéu. O governador Aires de Saldanha e Albuquerque comunicou ao rei que escolheu os melhores soldados da guarnição para embarcar na fragata: cento e cinquenta soldados e alguns oficiais. Escusava-se dizendo não se atrevia a enviar mais gente, embora soubesse da necessidade, por que a guarnição do Rio de Janeiro compunha-se de somente seiscentos homens, “entre os quais há muitos velhos quase estropiados e muitos soldados novos”.53 Para o comando da expedição foi escolhido o mestre de campo Manuel de Freitas da Fonseca. Quando chegaram à enseada de Montevidéu, em novembro de 1723, os portugueses encontraram uma lancha espanhola que não tardou a levar a Buenos Aires a notícia da presença dos lusos na região. Ao tomar conhecimento da ocupação portuguesa, o governador de Buenos Aires escreveu ao governador de Sacramento protestando contra o fato, mas não perdeu tempo em iniciar os preparativos para desalojar os portugueses da nova fundação.54 Por isso, os portugueses não tiveram tempo de concluir a fortificação, mesmo que tivessem os materiais necessários, pois no dia seguinte ao seu desembarque apareceu uma tropa de trinta índios missioneiros e, em dois de dezembro, chegaram cerca de duzentos soldados espanhóis, os quais recebiam constantes reforços no cerco aos portugueses. Por sua vez, o governador de Colônia enviara somente quarenta cavaleiros, dos quais pedia de volta dez e avisava que a comunicação por terra era perigosa e que os espanhóis tratavam de cortar a ligação fluvial entre a Colônia do Sacramento e Montevidéu. A fome atormentou os expedicionários depois que os inimigos tomaram os cavalos e o gado enviados pelo governador de Colônia. Segundo Fonseca, dos mantimentos que havia, “achou-se que só vinte dias podiam durar, dando só meia ração, porque além de irem poucos, tinha apodrecido parte deles”. As informações do mestre de campo mostram como estava mal organizada a expedição, não somente por falta de apoio logístico como também por falta de pessoal, “pois só tinha 150 soldados e poucos artilheiros, uns sem terem visto fogo e outros sem nenhum 52 D. João V para Aires de Saldanha, 29/06/1723. In: Revista do IHGB, tomo 32, p. 22-25, 1869. 53 Aires de Saldanha para o rei. Ibidem, p. 23. 54 MONTEIRO, Jonathas da Costa Rego. A Colônia do Sacramento…, vol. 1, p. 186. ISBN 978-85-61586-70-5 56 IV Encontro Internacional de História Colonial exercício”.55 Com poucas forças e sem apoio naval, Manuel de Freitas da Fonseca decidiu abandonar Montevidéu em 19 de janeiro de 1724, decisão aprovada pelos oficiais da expedição. Ao desembarcar no Rio de Janeiro, Fonseca e seus oficiais foram presos na fortaleza de Santa Cruz por ordem do governador. Ao escrever ao Secretário de Estado, o governador do Rio de Janeiro pôs a culpa do fracasso da expedição na “desordenada retirada que o mestre de campo Manuel de Freitas da Fonseca fez de Montevidéu”. Dizia que tinha enviado um navio de socorro com soldados, mantimentos e munições, mas que ao chegar ao destino encontrou-o já ocupado pelos espanhóis.56 A coroa portuguesa procurou então recuperar Montevidéu através da diplomacia. Porém, a conjuntura internacional de então lhe era desfavorável. As principais potências europeias estavam reunidas na conferência de Cambrai (1720-1725), numa tentativa de resolver as discórdias criadas pelo Tratado de Utrecht, que provocaram uma guerra entre a Espanha e a Quádrupla Aliança (Inglaterra, França, Holanda e Áustria) em 1719. O fato de Portugal ter permanecido neutro no conflito gerou preocupações de que não seria aceito na conferência. Entretanto, foram enviados para representar o monarca português os mesmos diplomatas que estiveram em Utrecht, o conde de Tarouca e D. Luís da Cunha. Em 1724, Tarouca defendia que se deveria “fechar o Brasil entre dois grandes rios Amazonas e Prata e, por esse modo preservar toda aquela costa”. Sua atuação no congresso visava garantir a posse do litoral, mesmo que deixando a campanha da Banda Oriental aos espanhóis.57 Em Lisboa, o secretário de Estado, Diogo de Mendonça Corte Real, insistia nas suas instruções que a margem norte do Rio da Prata deveria ser considerada domínio exclusivo de Portugal. Escreveu ao conde de Tarouca dizendo que por “baliza dos domínios de uma e outra coroa a dita Colônia e de tudo que ficava para a boca do Rio da Prata ficava pertencendo a esta coroa, pois nós nunca pretendemos que Castela nos desse nos seus domínios praça alguma, mas que nos deixassem edificar nos que nos pertenciam” [grifo nosso].58 Apesar dos esforços, a diplomacia portuguesa não conseguiu o que queria em Cambrai. Porém, a recusa de Luís XV em se casar com a infanta espanhola provocou uma mudança completa nas relações luso-espanholas. A mão da infanta foi então oferecida ao príncipe do Brasil, futuro D. José I. Por sua vez, Portugal ofereceu a mão da infanta portuguesa ao príncipe das Astúrias, futuro Fernando VI. Nas 55 Carta de Manuel de Freitas Fonseca, 20/03/1724. In: CORTESÃO, Jaime. Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid. Rio de Janeiro: Instituto Rio Branco, parte III, tomo I, 1950, p. 123-128. 56 Aires de Saldanha a Corte Real, 30/05/1724. In: CORTESÃO, Jaime. Ibidem, p. 129-130. 57 CLUNY, Isabel. O Conde de Tarouca e a Diplomacia na Época Moderna…, p. 411. 58 Corte Real ao Conde de Tarouca, 04/07/1724. In: CORTESÃO, Jaime. Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid…, p. 253-254. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 57 instruções a José da Cunha Brochado, enviado a Madri a fim de negociar o casamento dos príncipes, em 1725, D. João V insistiu para que ele obtivesse o reconhecimento do domínio português sobre a margem norte do Rio da Prata, dizendo que “só da Colônia para a parte do ocidente é que se há de limitar o distrito dela, até o tiro de canhão da sua fortaleza, e por que da dita fortaleza para a mesma parte começa o território de Castela”. Da Colônia do Sacramento para o Oriente começava o domínio português: “e [como] no sobredito território se inclui Montevidéu, deveis solicitar que El Rei Católico mande expedir as ordens necessárias ao governador de Buenos Aires para que retire a gente que ainda ocupa injustamente aquele sítio”.59 Entretanto, as negociações para os casamentos dos príncipes incluíam a proposta de uma aliança ofensiva e defensiva entre Espanha e Portugal, coisa que não agradava à coroa portuguesa. Por sua vez, não era do agrado da coroa espanhola a entrega da Banda Oriental aos portugueses. Cunha Brochado encontrou muita dificuldade em conseguir concessões da Espanha no Rio da Prata e confessou em carta ao Cardeal da Cunha que era melhor “largar a Colônia que não vale nada e não tem utilidade nem serventia mais que para dar-nos desgostos e cedo ou tarde hão de tomá-la”. Por isso, era de opinião de que “para largar a Colônia com mais decoro podia El Rei dizer que a dava em dote a sua filha e que logo celebrado o desposório [sic] a mandaria largar a El Rei católico, ainda que o matrimônio não se seguisse”.60 Porém, para D. João V a conservação da Colônia do Sacramento tornara-se “um ponto de Estado e de honra”.61 As negociações arrastaram-se até 1729, quando se deram os matrimônios, sem que eles representassem uma maior aproximação entre as coroas ibéricas. Um incidente diplomático em Madri, sem maiores consequências na Europa, forneceu aos espanhóis um motivo para tentar desalojar os portugueses do Rio da Prata, dando início ao cerco de Colônia, que se estendeu de outubro de 1735 a setembro de 1737. O envio de reforços conseguiu impedir a retomada de Sacramento, mas não teve sucesso em romper o cerco espanhol, que foi mantido após o armistício, marcando o fim da crescente expansão portuguesa pelo interior do território. Entretanto, as expedições de socorro fizeram mais do que impedir a conquista de Colônia pelos espanhóis, pois deram início à fortificação do Rio Grande de São Pedro, impedindo assim a expansão espanhola na região. 59 Instruções de D. João V a Cunha Brochado, 24/05/1725. In: CORTESÃO, Jaime. Ibidem, p. 133-142. 60 Cunha Brochado ao Cardeal da Cunha, 09/08/1725. In: CORTESÃO, Jaime. Ibidem, p. 150-151. 61 CORTESÃO, Jaime. O Tratado de Madrid. Brasília: Edições do Senado Federal, 2001, p. 310. ISBN 978-85-61586-70-5 58 IV Encontro Internacional de História Colonial Se os casamentos reais não serviram para aproximar as coroas ibéricas no momento da sua concretização, futuramente dariam seus frutos, pois, a ascensão de Fernando VI ao trono espanhol possibilitou a redação do Tratado de Madri, que traçaria novos limites entre os domínios espanhóis e portugueses na América, deixando de lado a discussão sobre o alcance da Linha de Tordesilhas e a delimitação do território da Colônia do Sacramento. Fundada com o objetivo explícito de levar a fronteira sul do Brasil ao Rio da Prata, não podemos descartar os objetivos econômicos que levaram à criação de Sacramento nas proximidades da ilha de São Gabriel, um dos pontos mais favoráveis ao contrabando com Buenos Aires. Embora muitas vezes aventado na correspondência de autoridades do Rio de Janeiro com Lisboa, o comércio com os espanhóis não deveria ficar explícito nas justificativas da nova fundação, pois seria uma afronta direta ao exclusivo comercial pretendido pela coroa espanhola nos seus domínios ultramarinos. Durante todo o período de ocupação portuguesa a Colônia do Sacramento esteve em estreita dependência do Rio de Janeiro, de onde vinham povoadores, militares, mantimentos, munições para a praça e mercadorias para a venda aos espanhóis, embora ela tenha sido fundada nas “terras da capitania de São Vicente, nas margens do Rio da Prata”.62 Sérgio Buarque de Holanda afirmou que a criação de um caminho terrestre entre a Colônia do Sacramento e o Brasil cedo despertou a atenção das autoridades, a fim de corrigir “o insulamento em que se encontrava o presídio platino”.63 O primeiro roteiro de um caminho terrestre para Sacramento é de 1703. Desde então várias tentativas foram feitas até que, em 1731, Cristóvão Pereira de Abreu conduziu a primeira tropa de gado com destino ao mercado consumidor de Minas Gerais. Mas esse era um caminho de tropeiros que não servia para garantir a manutenção da Colônia do Sacramento, que manteve sua dependência da rota marítima e das remessas do Rio de Janeiro até sua entrega aos espanhóis em 1777. 62 Para justificar seus direitos sobre a região platina, a coroa de Portugal mandou publicar, em 1681, em português, francês e espanhol, um manifesto intitulado: “Notícia e justificação do título e boa fé com que se obrou a Nova Colônia do Sacramento, nas terras da capitania de São Vicente, nas margens do Rio da Prata”. In: Revista de História. São Paulo, vol. LXVIII, 1977, p. 1-32. 63 HOLANDA, Sérgio Buarque de. A Colônia do Sacramento e a Expansão no Extremo Sul. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de (org.). História Geral da Civilização Brasileira Período Colonial. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1968, vol. 1, p. 359. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 59 “É de minha conquista e cabe debaixo de minha demarcação”: o Prata na gestão da monarquia portuguesa (1640-1680) Marcello José Gomes Loureiro1 Em abril de 1529, portugueses e castelhanos assinavam a escritura de Saragoça. A avença sanava importantes questões relativas à demarcação dos domínios ibéricos no Oriente: Portugal reconhecia as Molucas como devidas à Espanha, definindo-se assim um local específico para o cruzamento do antimeridiano de Tordesilhas, e as comprava por 350.000 ducados.2 D. João III “se vaió de la necesidad y falta de dineros, en que se hallava el Emperador el año de 1529 y ofreciendo 350 mil ducados por su empeño, se concertaron ambos Principes en que por dicha cantidad quedassen las Islas al Rey de Portugal”.3 Obviamente, quando os portugueses pagaram pelas Molucas, convencionou-se, antes, que elas não pertenciam originalmente a Portugal, mas sim a Castela. O que é o mesmo que dizer que o antimeridiano de Tordesilhas passava originalmente a oeste dessas ilhas. Sendo fixa a distância entre o meridiano e o antimeridiano de Tordesilhas, definia-se implicitamente o local por onde o meridiano de Tordesilhas passava na América. A partir do corolário, uma hipótese que pode ser aventada é a de que pagar pelas Molucas significava definir o meridiano de Tordesilhas de modo que o Prata pudesse estar na América lusa.4 Seja como for, Castela resolveu povoar a Bacia do Prata inicialmente, por meio das ações de D. Pedro de Mendoza, patenteado, para tanto, governador e capitão geral das províncias do Rio da Prata em 1533. Três anos mais tarde, fundava os povoados de Buenos Aires, na margem direita do Prata, Corpus Christi e Buena Esperanza. No ano seguinte, fundava-se o mais importante deles no século XVI, 1 Doutorando e Mestre em História Social (PPGHIS-UFRJ). CORTESÃO, Jaime. História do Brasil nos velhos mapas. Rio de Janeiro: Ministério das Relações Exteriores, vol I, 1965, p. 332. As cláusulas 5ª e 6ª da Escritura asseguravam a Portugal também o monopólio da navegação; a cláusula 12ª confirmava o que fora acordado em Tordesilhas. Cf. Súmula sobre a escritura de Saragoça. Sobre a posse, a navegação e o comércio das Molucas, entre el-rei D. João III e o imperador Carlos V. Lérida, 23 de abril de 1529; ratificada em Lisboa em 20 de junho de 1530. Publicada integralmente em SOARES, José Carlos de Macedo. Fronteiras do Brasil no regime colonial. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1939, p. 99-102. 3 JUAN, Jorge & ULHÔA, Antonio de. Dissertación historica e geografica sobre el meridiano de demarcion de los dominios entre España y Portugal. Madrid: En la Imprenta de Antonio Marin, 1749. Apud SOARES. Fronteiras do Brasil no regime colonial…, p. 89. 4 TAVARES, Luiz Edmundo. O Tratado de Tordesilhas – Contradições. In: LEMOS, Maria Teresa Toríbio (org.). Além do mar tenebroso: Tordesilhas e o novo mundo. Rio de Janeiro: UERJ/PROALC, 1995, p. 25-26, p. 33-37. 2 ISBN 978-85-61586-70-5 60 IV Encontro Internacional de História Colonial Assunção. Os portugueses, no entanto, não estabeleceram povoações nas margens do rio, preferindo instalar ou ampliar, nessa mesma década, os núcleos populacionais de São Vicente, Piratininga e Cananeia.5 Apesar disso, quase vinte anos mais tarde, alguns oficiais régios ainda consideravam pertencer aos domínios de Portugal a região platina, tanto é que Tomé de Sousa, depois de viajar ao Brasil, escreveu a Sua Majestade que “de São Vicente até o Rio da Prata estavão allguas armas de Castela em allguas partes mandeias tirar e deitar no mar e por as de V.A.” Criando nexos explícitos entre o direito sobre o Prata e sobre as Molucas, o governador continuava considerando ser portuguesa a cidade de Assunção: Parece nos a todos que esta povoação está na demarcação de V. A. e se Castela ysto neguar, mao pode provar que he Malluco [Molucas] seu he se estas pallavras parecem a V.A. de mao esperiquo e pior cosmógrafo terá V.A. muita rezão que eu não sey nada disto se não deseyar que todo o mundo fose de V.A. e de vossos herdeiros…6 E D. João III parecia compartilhar dessas ideias; ao menos é o que se percebe quando se observam duas minutas de cartas suas para João Roiz Correia, de novembro e dezembro de 1553. Na primeira, em virtude de uma armada que supostamente partiria de Sevilha para o Prata, escreve que “este Rio da Prata, como sabeys, he de minha comquista e caye debaixo de minha demarcaçam”.7 Na minuta de dezembro, a segunda, refere-se categoricamente à Assunção: “os castelhanos do Peru them feito no Brasil huuma pouoação a que chamam dAsumçam, e sam ymformado que querem eles daly entrar pela terra dentro a conquistar e descobrir, por alguma ymformaçam que them de auer ouro na dicta terra”.8 Em seguida, 5 Para Luís Ferrand de Almeida, D. João optou por não estabelecer povoados nas margens do Rio da Prata por “simples medida de prudência”, temendo assim ações mais contundentes do imperador Carlos V. Cf. ALMEIDA, Luís Ferrand. A diplomacia portuguesa e os limites meridionais do Brasil (1493-1700). Coimbra: FLUC, 1957, p. 28. 6 Carta de Tomé de Souza a D. João III; Bahia, em 1 de junho de 1553. In: DIAS, Carlos Malheiro; GAMEIRO, Roque & DE VASCONCELOS, Ernesto. História da colonização Portuguesa do Brasil. Porto: Litografia Nacional, vol. III, 1924, p. 366. Apud ALMEIDA, Luís Ferrand. A diplomacia portuguesa e os limites meridionais do Brasil (14931700)…, p. 38. (Arquivo nacional da Torre do Tombo, Coleção São Vicente, Vol. 3, fl. 313). 7 Minuta de carta de D. João III a João Roiz Correia. Lisboa, novembro de 1553. In: Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Coleção São Vicente, vol. 3, fl. 93-93v. Publicada integralmente por ALMEIDA. Ibidem, p. 301. 8 Minuta de carta de D. João III a João Roiz Correia. Lisboadezembro de 1553. In: Arquivo nacional da Torre do Tombo. Coleção São Vicente, vol. 3, fl. 49. Publicada integralmente por ALMEIDA. Ibidem, p. 302. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 61 solicitava a João Correia que com toda “desimulaçam posivel”, procurasse saber com algum oficial do Conselho das Índias se essas informações eram verdadeiras.9 A partir da década de 1580, com a União Ibérica, desenvolveram-se linhas mercantis que conectavam de forma mais regular o Prata, pelo porto de Buenos Aires, e as praças atlânticas do Rio de Janeiro, Salvador, Recife e até mesmo de Angola.10 Pode-se mesmo estimar que, por volta de 1584-1585, era razoável o trato entre o Brasil, por meio principalmente de São Vicente, Rio de Janeiro e Salvador, e o Rio da Prata.11 No início do século XVII, esse comércio deveria ter notável regularidade. Ao menos é que se pode depreender da famosa frase do viajante francês Pyrard de Laval: “Nunca vi terra onde o dinheiro seja tão comum, como é nesta do Brasil, e vem do Rio da Prata”.12 Assim, o Prata aparece na agenda política da Coroa portuguesa como um dos elementos constituintes dos circuitos mercantis do Atlântico sul. Se o principal artigo atlântico para venda em Buenos Aires eram os escravos de Angola, a prata remetida por esse porto liquidava parcela do pagamento referente às mercadorias adquiridas no Oriente, a exemplo de tecidos.13 Tais itens, por sua vez, eram empregados para aquisição de mais negros em Angola, iniciando-se dessa feita novamente a engrenagem mercantil atlântica. Dessa maneira, o Prata se vinculava ao tráfico negreiro duplamente: como área receptora de cativos, por um lado; e como fonte de recursos para, indiretamente, viabilizar a aquisição de mão de obra em Angola, por 9 Ibidem. ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O Trato dos Viventes – formação do Brasil no Atlântico Sul – Séculos XVI e XVII. São Paulo: Cia das Letras, 2000, p. 77-116. 11 Sobre os portugueses em Buenos Aires, é fundamental a tese de CEBALLOS, Rodrigo. Arribadas portuguesas: a participação luso-brasileira na constituição social de Buenos Aires (1580-1650). Niterói: Tese de doutoramento apresentada no programa de pós-graduação em história da Universidade Federal Fluminense - UFF, 2007. 12 Cf. LAVAL, Francisco Pyrard de. Viagem de Francisco Pyrard de Laval. Contendo a notícia de sua navegação às Índias Orientais, Ilhas de Maldiva, Maluco e ao Brasil, e os diferentes casos que lhe aconteceram na mesma viagem nos dez anos que andou nestes países (1601 a 1611). Com a descrição exacta dos costumes, leis, usos, polícia e governo; do trato e comércio, que neles há; dos animais, árvores, frutas e outras singularidades que ali se encontraram. Versão portuguesa correta e anotada por Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara. Edição Revista e actualizada por A. de Magalhães Basto. Porto: Livraria Civilização, 1944, p. 230. 13 Sobre a questão dos tecidos: LAPA, José Roberto do Amaral. A Bahia e a carreira da Índia. São Paulo: Hucitec, 2000, p. 253-300; e FERREIRA, Roquinaldo. Dinâmica do comércio intracolonial: Geribitas, panos asiáticos e guerra no tráfico angolano de escravos (século XVIII). In: FRAGOSO, João; BICALHO, M. Fernanda Baptista & GOUVÊA, M. de Fátima (orgs.). O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 330-378. 10 ISBN 978-85-61586-70-5 62 IV Encontro Internacional de História Colonial outro. Não faz sentido pensar a inserção da região na pauta política da Coroa lusa sem pressupor essa lógica. Perceba-se então que América portuguesa, Angola e Buenos Aires faziam parte de uma lógica mercantil, que tinha como eixo axial o próprio tráfico negreiro. Como se pode verificar na documentação, a questão platina aparece freqüentemente vinculada a Angola, ou ao Rio de Janeiro ou ainda a Salvador. Portanto, o Prata somente existia na dimensão política portuguesa se encadeado a outras regiões do seu Império. Contudo, a frágil estabilidade das relações comerciais entre Buenos Aires e as praças atlânticas do império português foi fundamentalmente atingida após a Restauração dos Bragança de 1640.14 O comércio português no Rio da Prata desintegrava-se na década de 1640, o que gerava retração monetária na América portuguesa.15 Sem escravos para comercializar, os agenciadores desse trato não dispunham de seu mais lucrativo item. Com isso, toda a área que dependia economicamente de Buenos Aires ficava menos irrigada pelo metal branco, havendo, pois, impasse na circulação monetária na Bacia do Prata. A carência de escravos também era problema sério para a produção de metal nas minas potosinas.16 De acordo com uma advertência enviada ao monarca sobre a “conseruação do estado do Brazil sem prejuízo de partes com aproueitamento da fazenda Real de Portugal”, a situação monetária da praça de Salvador era alarmante.17 Em 1641, 14 TORGAL, Luís Reis. Ideologia política e teoria do Estado na Restauração. Coimbra: Biblioteca Geral da Universidade, 2 Vols., 1981; ALVAREZ, Fernando Bouza. Portugal no tempo dos Filipes. política, cultura e representações (1580-1668). Lisboa: Cosmos, 2000; VALLADARES, Rafael. Sobre reyes de inverno. El diciembre portugués y los cuarenta fidalgos (o algunos menos, con outros más). Revista d’Historia Moderna. Barcelona: Universitat de Barcelona, no 15, p. 103-136, 1995; do mesmo autor: Portugal y el fin de la hegemonia hispanica. Hispania: revista española de historia. Madri: LVI, núm. 193, p. 517539, 1996; e ainda: De ignorancia y lealdad. Portugueses em Madrid, 1640-1670. Torres de los Lujanes, n. 37, p. 122-134, 1998. 15 MAGALHÃES, p. 66. 16 Informação de Maserati ao rei de Espanha (janeiro de 1680). Arquivo geral de Simancas. Estado, legajo 7058, doc 14. Apud ALMEIDA. A diplomacia portuguesa e os limites meridionais do Brasil (1493-1700)…, p. 91. 17 A carência monetária também era problema sério no Brasil holandês. Exemplo disso é o fato de que, após 1639, era comum que quatro ou cinco soldados da Companhia das Índias Ocidentais que estavam em Pernambuco recebessem uma única moeda de grande valor como soldo, tendo de liquidar a parte que lhes era devida. Nesse mesmo ano, o governador flamengo e seu conselho solicitaram à Cia o envio de 27.000 florins em moedas de baixo valor. O medo das armadas espanholas fazia com que a população enterrasse suas reservas metálicas, agravando a situação. Na tentativa de solução, o governo holandês emitiu ordenanças, ordens de pagamento que seriam liquidadas após o recolhimento dos impostos. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 63 estavam há dezesseis meses e meio sendo sustentados os exércitos de Camarão e Henrique Dias, resultando em uma despesa operacional de mais de cem mil réis por dia.18 Tendo em vista que, no Brasil, subira o preço do açúcar, e no reino baixara, os mercadores não o compravam, remetendo a Portugal dinheiro e o açúcar mínimo, suficiente apenas para a liquidação de dívidas.19 Conforme a advertência, em quatro anos, já havia sido exportado mais de 400 mil reis; e, nesse ritmo, “a dez patacas por cada pessoa”, em breve não haveria nenhum dinheiro no Brasil e, por decorrência, soldados para sua defesa e conservação. Mesmo com os “efeittos” da Fazenda Real, como dízimos, imposições sobre o vinho, baleias, mel e aguardentes, vintenas e outras rendas e donativos, era impraticável se sustentar os soldados, que recebiam trinta réis ao dia, sem “dinheiro, em dinheiro”.20 Apesar das “grandes opresois” que estavam sendo aplicadas a mercadores, a navegantes e, mormente, ao povo, a solução estava em se enviar quinhentos mil cruzados para o Estado do Brasil, uma metade para a Bahia e a outra para as capitanias do sul. Ainda de acordo com o documento, as moedas deveriam ser cunhadas de forma especial, diferentes das do reino, para que somente fossem reconhecidas e valorizadas nesse Estado, não sendo assim dele exportadas. Seriam destinadas a comprar exclusivamente o açúcar, pelo que renderiam cerca entre 50 ou 60% a mais. Ao fim, os quinhentos mil seriam transformados em setecentos e cinquenta mil. Restava apenas obter o dinheiro para o início da operação.21 Na tentativa de por fim à carência monetária, bem como solucionar as principais questões que permeavam a gestão do Atlântico Sul português, o Conselho de Guerra, em um documento de 1643, sugeria que o monarca consultasse Salvador Correia, “que tem grande experiencia e conhecimento das coisas”, para que desse um parecer sobre como não somente “remediar os danos presentes e futuros”, mas ainda sobre o modo de como se fazer entrar pelo Rio de Janeiro “alguma prata neste Reino”.22 Não obstante, elas se desvalorizaram e os especuladores, comprando-lhes a baixo preço, usavam-nas para pagamento dos impostos e produtos vendidos pela própria Cia. Cf. WÄTJEN, Hermann. O domínio colonial holandês no Brasil: um capítulo da história colonial do século XVII. Tradução de Pedro Celso Uchôa Cavalcanti. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1938, p. 324-325. 18 Auertencia pera conseruação do estado do Brazil sem prejuizo de partes com aproueitamento da fazenda Real de Portugal pera se afeitar dentro de hum anno. Limoeiro de Lisboa, a 29 de março de 1644. Papeis Politicos – Cod 987 (K VII 3I), fl. 490-490 v. In: Manuscritos do Arquivo da Casa de Cadaval, doc. 69, p. 33-34. 19 Ibidem. 20 Ibidem. 21 Ibidem. 22 Ibidem. ISBN 978-85-61586-70-5 64 IV Encontro Internacional de História Colonial Salvador defendeu a invasão militar do Prata em seu parecer, mas não sem antes registrar a importância da reconquista de Angola, já que os negros eram “a mercadoria que os castelhanos mais necessitam”.23 Quanto à Angola, o ponto primordial de seu papel incitava a Coroa para que “logo logo mande acudir aquele Reino”, já que era muito sentida “a falta do comercio de Angola porque sem ela se prejudica muito as fazendas do Brasil e se aniquila o aumento da Real fazenda assim no Brasil como neste Reino”.24 Finalmente, quanto ao nordeste, recomendava que se incentivasse o roubo e a destruição da campanha de Pernambuco, para que os flamengos aceitassem dinheiro para deixar a região. O interessante é que os três pareceres dados por Salvador Correia de Sá retornaram para avaliação no Conselho de Guerra que, de modo geral, concordou com os seus alvitres. Divergiram somente na questão dos holandeses no nordeste. Contrariamente ao sugerido por Salvador, o Conselho de Guerra optou por recomendar ao rei que procurasse a solução para a saída dos holandeses, “gente tão prevenida”, por via diplomática. 25 Em sua resposta, o Conselho percebera perfeitamente o ponto nervoso da dinâmica mercantil das rotas do Atlântico, e nesta matéria era sobremaneira taxativo: “porque sem Angola não se pode sustentar o Brasil, e menos Portugal sem aquele Estado”.26 Tal opinião circulava com freqüência na corte por esta época. O Padre Vieira era um dos maiores defensores da importância de Angola. Com uma visão estratégica singular, escreveu ao Marquês de Nisa em agosto de 1648 que “Todo o debate agora é sobre Angola, e é matéria em que não hão de ceder, porque sem negros não há Pernambuco, e sem Angola não há negros”.27 O governador-geral Antônio Teles da Silva reforçava essas impressões ao escrever ao rei: Angola, Senhor, está de todo perdida, e sem ela não tem Vossa Majestade o Brasil, porque desanimados os moradores de não terem escravos para os engenhos, os desfabricarão e virão a perder as alfândegas de Vossa Majestade os direitos que tinham em seus açúcares.28 António Paes Viegas, secretário particular de D. João IV, e um dos mentores do golpe de 1640, também escreveu dois papéis acerca da problemática imperial. No 23 Ibidem. Ibidem. 25 Ibidem. 26 Ibidem. 27 Cf. Carta ao Marquês de Niza, a 12 de agosto de 1648. In: Cartas de António Vieira. São Paulo: Globo, 2008, p. 190-192. 28 Cf. Ibidem, p. 222. 24 ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 65 primeiro, lembrava que os holandeses estavam muito seguros em Angola, não havendo quem os “inquietasse”.29 No segundo, defendia que D. João IV deveria enviar o quanto antes uma armada ao Rio de Janeiro e dar ordens a Salvador Correia para que procurasse não apenas “entabolar as minas e ouro de lavagem”, mas ainda que amealhasse mantimentos e gente “que melhor aturasse os ares de Angola” para a sua reconquista.30 Se possível, deveria retornar com negros africanos à América portuguesa, mantendo no Rio de Janeiro essa força naval pronta para prestar novos socorros ao outro lado do Atlântico, contra os holandeses ou contra o rei do Congo. Ou, então, a armada poderia saquear Buenos Aires, “com que largamente se pagariam os gastos dela”. Naquele porto poderiam trazer muito cobre, que Salvador Correia dizia haver em abundância. Pouco tempo depois, o padre Vieira pressionava o monarca no mesmo sentido de Salvador Correia e de António Paes Viegas. Segundo o jesuíta, os paulistas deveriam invadir a Bacia do Prata, tomar várias de suas cidades e conquistar as minas do Peru, “com grande facilidade e interesse luso, dano e diversão de Castela”.31 Em uma carta ao Marquês de Niza, Vieira detalhava melhor os seus planos, sugerindo ao Marquês que escrevesse ao Rei, como ele próprio o faria: se pode intentar a conquista do Rio da Prata, de que antigamente recebíamos tão consideráveis proveitos pelo comércio, e se podem conseguir ainda maiores, se ajudados [pelos] de São Paulo marcharmos, como é muito fácil, pela terra dentro, e conquistarmos algumas cidades sem defesa, e as minas de que elas e Espanha se enriquece, cuja prata por aquele caminho se pode trazer com muito menores despesas.32 29 Parecer de António Pais Viegas sobre o socorro a enviar a Angola. Cabo Ruivo, a 27 de abril de 1644. Papeis Politicos – Cod. 987 (K VII 31), fl. 499-499v. In: Manuscritos do Arquivo da Casa de Cadaval, doc. 71, p. 35. 30 Parecer de António Pais Viegas sobre a recuperação de Angola. Cabo Ruivo, a 28 de abril de 1644. Papeis Politicos – Cod. 987 (K VII 31), fl. 500-501. In: Manuscritos do Arquivo da Casa de Cadaval, doc. 72, p. 35-36. 31 Cf. VIEIRA, Antônio. Papel que fez o padre Vieira a favor da entrega de Pernambuco aos holandeses (1648). In: VIEIRA, António. Escritos históricos e políticos. São Paulo: Martins Fontes, 2002. 32 Cf. Cartas do Padre Vieira, coordenadas e anotadas por João Lúcio de Azevedo, p. 122. Vieira apresentou na Corte outras idéias radicais a fim de tentar levar ao fim a crise em Portugal. O padre e outros assessores mais próximos de D. João IV, com o fito de obter ajuda militar da França, assessoravam o rei a vir para o Brasil. A regência de Portugal seria dada ao Duque de Montpensier, cuja filha se casaria com o príncipe português D. Teodósio. Vieira foi inclusive à França com esta finalidade. Sobre isto, conferir CORTESÃO. História do Brasil…, vol II, p. 114-115. ISBN 978-85-61586-70-5 66 IV Encontro Internacional de História Colonial O projeto esboçado por Salvador de Sá, entretanto, não se concretizou neste momento. Divergindo frontalmente do Conselho de Guerra, o Conselho Ultramarino emitiu seu parecer após sete meses. Seus membros Jorge Castilho, Jorge de Albuquerque e João Delgado afirmaram (1644) que quanto a Angola “V. Majestade tem resolvido o que fazer”; sobre Buenos Aires, lembrava-se que Teles da Silva já tentara abrir o comércio, sem consegui-lo. E que não convinha “em tempo de tantos apertos” abrir novas frentes de guerra. Para o Conselho, Portugal deveria direcionar esforços diplomáticos, econômicos e militares para resguardar o que lhe sobrava no ultramar, defendo suas possessões de espanhóis e holandeses. No que concerne ao nordeste, não se mencionou a via diplomática, conforme a orientação prévia do Conselho de Guerra, mas sim o conflito aberto a partir do envio de quinhentos homens das Ilhas Atlânticas.33 No caso particular que se apresentou, ainda que o Conselho de Guerra estivesse envolvido, o assessoramento produzido pelo recém criado Conselho Ultramarino foi o que prevaleceu. Enquanto corriam na corte debates acerca do que se priorizar, na Bahia Teles da Silva escrevia à Câmara de São Paulo, em outubro de 1646, solicitando que se armasse e prontificasse uma expedição naval. Condicionada ao desfecho das negociações com os holandeses, deveria “se empreender com esta armada a conquista do Rio da Prata”.34 Assim, em que pesem as decisões contrárias dos poderes centrais, manifestavam-se intenções de conquista militar do Prata na América. Em meio à crise da ocupação holandesa em Angola, D. João IV chegou a consultar o Conselho Ultramarino acerca da possibilidade da mútua convivência de portugueses e holandeses naquela praça, em portos e locais distintos. Nessa consulta, o voto contrário de Jorge de Albuquerque à permanência dos holandeses foi decisivo. Conforme o entendimento do conselheiro, “para o bem deste Reyno [de Portugal], que por todos os meios, se fizesse o possível, para que os Holandeses Largassem de todo aquele Reino [de Angola], ainda que fosse á custa da fazenda de Vossa Majestade, e da de seus Vassalos, porque com as utilidades dele, em breves 33 Consulta do Conselho Ultramarino sobre os alvitres apresentados por Salvador Correia de Sá para remediar os prejuízos causados pelos holandeses no Brasil e para introduzir o comércio com Buenos Aires. Lisboa, a 10 de junho de 1644. AHU, Rio de Janeiro, Castro e Almeida, Caixa no 2, doc. no. 305. 34 Coleção do Registro Geral da Câmara de São Paulo, Vol II, p. 170. Apud ELLIS Jr., Alfredo. O bandeirismo paulista e o recuo do meridiano. São Paulo: Cia Editora Nacional, 2ª Ed., 1934, p. 207. A expedição não foi enviada, porém, devido à necessidade de se reforçar o Nordeste. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 67 anos se recuperaria”.35 Ou seja, mantinha o Conselho análogo entendimento acerca da importância trivial de Angola nos fluxos mercantis do Império. Outro ponto de destaque nessa gestão se refere ao Nordeste. Muito conhecido é o “papel forte” do Padre Vieira, em que defendeu a entrega de Pernambuco aos holandeses. Pertinente destacar que o padre falava da entrega do nordeste, mas incitava uma invasão militar ao Prata. Contudo, outros eram do mesmo parecer. Por exemplo, em setembro de 1645, Lourenço de Brito Correia, com receio do socorro que a Holanda enviaria para o Nordeste, aconselhou que ele fosse tão logo evacuado pelos portugueses, sob risco de se ampliarem as despesas e de se perderem outras áreas, como a Bahia e as Índias.36 Em 1647, Francisco de Sousa Coutinho prometia aos Estados Gerais, em nome de D. João IV, restituir todas as praças que os rebeldes de Pernambuco haviam tomado.37 Em 1648, muitos papéis tratavam na Corte dos termos em que se assentariam as capitulações com a Holanda. Em outubro, o rei determinava que as condições dessa capitulação fossem analisadas pelo Conselho da Fazenda. O Conselho deveria enviar dois ministros para falar com Sua Majestade e, posteriormente, discutir o assunto com o Padre Vieira com todo o segredo.38 O próprio Conde de Odemira, ao comentar uma das propostas apresentadas por Francisco de Sousa Coutinho a D. João IV, ainda em outubro, indicava a possibilidade de entregar Pernambuco, desde que Portugal ficasse com Angola.39 Diante de vários papéis, o Conselho da Fazenda entendeu que se devia buscar a paz “prepetua firme e segura” com os holandeses, sem que houvesse, entretanto, ofensas a religião e a reputação do monarca.40 Acreditava o Conselho que, primeiro, de nenhuma maneira se deviam restituir as praças do Brasil e África. Sem se devolver as praças, era “ajustado” oferecer dinheiro e drogas para a paz. Concordava que era preferível a guerra à restituição requerida pelos Estados Gerais.41 Não custa lembrar 35 Sobre as conveniençias q. se devem celebrar com os olandeses no Reyno de Angolla. Lisboa, a 17 de fevereiro de 1648. AHU, Consultas Mistas, Códice n 24, fl. 110. 36 Papeis politicos – Cod. 987 (k VII 31), fl. 491-492 v. In: RAU, Virginia & SILVA, Maria Fernanda Gomes da (orgs.). Os Manuscritos do Arquivo da Casa de Cadaval Respeitantes ao Brasil. Lisboa: Acta Universitatis Conimbriensis, volume I, 1956, doc. 78, p. 38-40. 37 Papeis Varios, t. 7 – Cod 947 (k VIII Id), fl. 229v-231v. In: Os Manuscritos do Arquivo da Casa de Cadaval, doc 115, p. 60-62. 38 Ibidem. 39 Papeis Varios, t. 29 – Cod. 874 (K VIII Im) fl. 328v.-331v. In: Os Manuscritos do Arquivo da Casa de Cadaval, doc 134, p. 74-81 40 Consulta do Conselho da Fazenda sobre as capitulações com a Holanda. Lisboa, a 14 de dezembro de 1648. Papeis Varios, t. 2 – Cod. 874 (K VIII Im), fl. 340-341. In: Manuscritos do Arquivo da Casa de Cadaval, doc. 135, p. 81-82. 41 Ibidem. ISBN 978-85-61586-70-5 68 IV Encontro Internacional de História Colonial que Salvador de Sá falara em oferecer dinheiro aos holandeses em seu parecer de 1643. À margem da consulta, D. João IV determinava que se convocasse um tribunal para que em caso de fracasso das negociações com a Holanda fossem examinados os meios de defesa do Reino, “tão exhausto de gente e de cabedal”, frente os Estados Gerais e Castela.42 Em novembro de 1649, Gaspar Dias Ferreira, mercador de muitos anos no Brasil, apresentou uma alternativa para a feitura da paz em uma audiência com o rei.43 Considerava a restituição das capitanias reconquistadas e a reocupação do nordeste opções impraticáveis. Todavia, apostava na “composissão por dinheiro” para a compra dos territórios, o que também não lhe parecia fácil. Como pontos negativos em seu assessoramento, o próprio Gaspar lembrava as dificuldades sérias em se movimentar fundos nessa conjuntura. Por notícia da Holanda, enviadas por seu primo, Francisco Ferreira Rebelo, advertia que os flamengos consideravam a compra dos territórios ocupados uma “inormidade indigna de sua reputasão”, já que o rei apenas não entregava Pernambuco pelas pressões dos vassalos do Brasil.44 Soluções para obtenção de recursos financeiros começavam a ser pensadas. Nesse sentido, por exemplo, Manuel Fernandes Cruz, antigo morador de Pernambuco, escreveu longa exposição de motivos ao monarca.45 Por dedução, especulava Manuel que seria possível incrementar o comércio, única forma de tornar poderoso o Reino, e “sacar” muita prata e ouro do Peru, devido à vizinhança que tinha com Buenos Aires, havendo, para esse porto, caminho já aberto e facilidade de se abrir outros. O fundamento primacial do parecer consistia no seguinte: a Coroa deveria estabelecer o estanco do trato das peças de Angola para a América portuguesa, por um período de cinco anos, trazendo-as às custas da fazenda real. Quinze ou dezesseis mil peças deveriam deixar Angola anualmente, sendo distribuídas cinco mil para Pernambuco, quatro mil para a Bahia, três mil para o Rio de Janeiro, a um preço de sessenta mil réis cada uma, e as demais para o Rio da Prata. Já deduzida a mortandade estimada de escravos, e se considerando somente as que dessem entrada na América 42 Ibidem. Despacho régio à margem. Lisboa, a 24 de dezembro de 1648. Exposição enviada a el-Rei por Gaspar Dias Ferreira, sobre as possibilidades de se fazer a paz com a Holanda. Papeis Varios – Cod. 1090 (K VIII Ia), fl. 47-48v. In: Manuscritos do Arquivo da Casa de Cadaval, doc. 146, p. 87-89. 44 Ibidem. 45 Arbítrio em benefício comum que inculca o modo conveniente para se haver o resgate desta praça [de Pernambuco] em caso que o holandês a largue por preço de dinheiro; ou bem se posssa sustentar a guerra, quando pelas armas se liberte; e se socorra com um grosso empréstimo aos moradores para levantarem os seus engenhos, e os fabricarem sem dispêndio da fazenda real. Pernambuco, a 20 de agosto de 1650. Papeis Varios, t. 2 – Cod. 1091 ( K VIII Ib), fl. 1-5v; fl. 18-22; Papeis Varios, t. 34 – Cod. 976 (K VIII Ir), fl. 171-175v. In: Manuscritos do Arquivo da Casa de Cadaval, doc. 149, p. 90-96. 43 ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 69 portuguesa, a receita do período deveria perfazer cerca de sete milhões e quinhentos mil cruzados.46 Para que os efeitos negativos do estanco não fossem sentidos, os negociantes reinóis teriam autorização para vender seus artigos em Angola, contando que nos cinco anos poderiam comercializar escravos africanos no Rio da Prata. Tais negociantes deveriam poder vender peças em São Vicente, já que os “peruleiros” costumavam lá negociar. Em decorrência, estaria o Estado do Brasil muito opulento, porque reteria muita prata “pelo emprego dos açúcares que farão os que por aqui passarem de volta de Buenos Aires”. Conforme concluía Manuel Cruz, o parecer buscava de fato o “benefício comum”: não haveria prejuízo a fazenda real; os vassalos da América não protestariam em virtude de o preço de sessenta mil réis ser razoável, além de estarem isentos de décimas, fintas e tributos; enquanto os negociantes do Reino teriam seu prejuízo sanado pela compensação de comercializarem diretamente com o Prata.47 Mais uma vez, o Prata aparece na gestão do Império, porém agora vinculado ao levantamento de fundos para a compra do Nordeste. O fato é que no difícil contexto do pós-restauração, em que D. João VI buscava se conservar no trono, a noção de auto-regulação, associada à preocupação com o bom governo, permeava a complexa definição de prioridades da Coroa. Não sem tensões e fraturas, Conselhos e homens de governo discutiam os caminhos para a administração patrimonial, militar e financeira do Império. Graças a uma circulação de informações, refletiam acerca dos espaços que deveriam ganhar destaque na política ultramarina, explicitando os nexos intrincados de uma monarquia pluricontinental. Assim, alguns defendiam uma invasão a Buenos Aires, outros debatiam a conveniência da guerra, da entrega ou da compra de Pernambuco, mas todos concordavam com a reconquista de Angola. Se o sonho das Índias sobreviveu no pensamento dos grandes conselheiros do Reino até fins do século XVII, a idéia maravilhosa de um comércio português no Rio da Prata, infalivelmente lucrativo e maior responsável pela entrada de moeda na América, perduraria por anos nas narrativas e despachos de muitos outros homens de Estado. Com efeito, muitos conselheiros na corte concordavam que a solução para os problemas portugueses partia da reorganização dos circuitos comerciais do Atlântico. O Prata se conectava a esse desafio de gestão. Sem dúvida, um enorme desafio. Sua transpassava o restabelecimento do trato e tinha início na própria escolha de políticas adequadas para se tentar gerir a região. Afinal, qual a melhor e mais adequada política a ser implementada com a finalidade de garantir o acesso aos metais espanhóis? O controle do Prata era um projeto viável para a monarquia lusa, sobretudo quando experimentava a conjuntura crítica do pósRestauração? A Coroa deveria simplesmente objetivar reter os lucros pulverizados 46 47 Ibidem. Ibidem. ISBN 978-85-61586-70-5 70 IV Encontro Internacional de História Colonial pelos agentes mercantis, sem uma ação direta? Ou deveria, seguindo os conselhos do Padre Antônio Vieira e de Salvador Correia de Sá e Benevides, intervir militarmente na região? Até que ponto uma intervenção dessa natureza não causaria uma desorganização nos fluxos comerciais? De Lisboa, costumavam chegar orientações para que fosse mantida uma reaproximação mais efetiva com o Prata. Por exemplo, um ofício do Conde de Óbidos, datado de 1664, sugeriu ao governador Pedro de Mello que recebesse cordialmente os navios vindos do Rio da Prata. Já Alexandre de Souza Freire, governador geral do Brasil, enviou um patacho a Buenos Aires, a fim de levar a notícia da paz de 1668 com a Espanha; posteriormente, escreveu ao rei que “(…) em Buenos Ayres se dificulta hoje tanto a esperança daquele comercio como quando estava impedido com as guerras: mas os Castelhanos o desejam mais que os Portugueses. O Brasil se perde por falta de moeda; com qualquer meio que possa haver de irem ali embarcações se há de trazer prata…”.48 O fato é que a crise monetária na América portuguesa permanecia. Seja como for, a Coroa, por meio de seus oficiais, estimulava uma reaproximação com os súditos de Castela na América. Por exemplo, no item 50 do Regimento de 23 de janeiro de 1677, dado ao governador geral Roque da Costa, o príncipe regente D. Pedro recomendava que os navios que voltassem “das Índias Ocidentaes, Rio da Prata e Buenos Aires com prata e ouro, e não com outras fazendas de Espanha, lhes mandará dar entrada, e poderão comerciar nos portos deste Estado, levando em troca os gêneros dele”. Acerca disso, “porá o governador todo cuidado e diligência”.49 Texto quase semelhante é reproduzido no Regimento de 1679, dado a D. Manuel Lobo. Conforme explica Antônio Carlos Jucá, as tentativas de reaproximação com o Prata podem ser explicadas pela carência monetária em toda a América Portuguesa. Ainda seguindo a análise do autor, as dificuldades de restabelecimento do trato com Buenos Aires se explicam, dentre outros fatores, principalmente pelas complicações no comércio negreiro entre o Rio de Janeiro e Angola. Com a oferta de escravos reduzida, em face da competição com o Nordeste pelo mercado angolano, a capitania do Rio era incapaz de ampliar suas atividades mercantis no Prata.50 Em 1680, contudo, houve uma inflexão na gestão do Prata: a política estatal retirou da ação particular a responsabilidade maior das iniciativas, determinando ao 48 Carta ao rei de 25 de junho de 1669. Apud ALMEIDA, Luís Ferrand. A Diplomacia Portuguesa e os Limites Meridionais do Brasil (1493-1700). Coimbra: FLUC, 1957, p. 91. 49 ALMEIDA. A diplomacia portuguesa e os limites meridionais do Brasil (14931700)…, p. 91. 50 SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. Na Encruzilhada do Império. Hierarquias Sociais e Conjunturas Econômicas no Rio de Janeiro (1650-1750). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003, p. 143. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 71 governador do Rio de Janeiro que providenciasse a fundação de um centro burocrático-militar, a Colônia do Sacramento, em frente a Buenos Aires, no lado oposto a sua margem no Rio da Prata. O que parecia a pretensão de aquecimento comercial com a hispano-América, todavia, tornou-se longa disputa militar e diplomática.51 51 POSSAMAI, Paulo César. A vida quotidiana na colônia do Sacramento. Lisboa: Livros do Brasil, 2006, p. 126-130. ISBN 978-85-61586-70-5 72 IV Encontro Internacional de História Colonial As missões austrais: os jesuítas e o poder local nas fronteiras Maria Cristina Bohn Martins1 Em uma extensa carta ânua, datada de 1743, o padre Pedro Lozano informou ao Superior da Companhia de Jesus em Roma sobre os trabalhos levados a efeito pelos seus companheiros na Paracuaria, como se chamava então, a Província Jesuítica do Paraguai: “Os anos que se passaram desde que meu antecessor (…) enviou a Vtra Paternidad, em Marzo de 1735, as últimas Cartas, vão descritas nesta, e para que ao menos seja informado o más importante daquilo que a Companhia realizou, eu a repartirei em vários capítulos”.2 A partir deste introito, o autor do texto passou a indicar uma série de pontos que seriam objeto de sua atenção, figurando entre eles, de maneira especial, as missões de guaranis, as de chiquitos e as “novas e antigas estações missionárias entre os infiéis”. Ao dar notícias sobre estas últimas, Lozano se acercava de um tema que era especialmente caro aos seus superiores, uma vez que, destarte a importância de sua obra educativa e da atenção que mereciam dos jesuítas as populações hispano-criollas, o trabalho junto aos índios se constituía em um diferencial da presença do Instituto nos territórios de além mar. Talvez mais do que em qualquer outro ponto, era neste que confluíam os interesses da Monarquia e da Ordem, haja vista a importância de sua ação de vanguarda nas fronteiras, ali onde lindavam os territórios dos reinos ibéricos, como era o caso, por exemplo, das reduções de Maynas ou do Paraguai. O mesmo valia, podemos dizer, para as “fronteiras internas”, isto é, para regiões em que as vilas e povoados dos “brancos” se encontravam “na borda” do mundo dos “selvagens”, caso das novas missões entre infiéis a que Lozano se refere no documento. Isto não significou, como veremos, que os interesses das autoridades civis e dos padres, ou da Sociedade de Jesus e da Coroa, fossem sempre convergentes e suas ações sempre coordenadas. Ao contrário, a coerência não era um compromisso inegociável quando se tomavam decisões de governo e administração relativas a estas distantes periferias. Efetivamente, o mundo das missões era marcado por contradições e ambiguidades que se manifestavam em vários níveis,3 entre eles, o das difíceis mediações estabelecidas entre os jesuítas, a sociedade local e as autoridades 1 CNPq/ PPGHistória – Unisinos, RS LOZANO, Pedro de. Cartas Anuas de la Provincia del Paraguai. Año 1735-1743. Traducción de Carlos Leonhardt, S. J. Buenos Aires, 1928. Filme 4683. Tradução digitada, São Leopoldo: Instituto Anchietano de Pesquisas/ UNISINOS, 1994. 3 É claro que as maiores tensões residiam nas relações estabelecidas entre os missionários e as populações indígenas que eles queriam doutrinar, tema, contudo, que não poderá ser tratado no escopo desta reflexão. 2 ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 73 governamentais às quais eles deveriam se reportar. É a partir de considerações neste âmbito, que encaminho minha contribuição ao que foi solicitado aos integrantes da Mesa intitulada “As missões o serviço da Igreja ou da Coroa? A experiência jesuíta nas Américas.”4 “Y lograrian los misioneros el fruto de su zelo, haciéndoles hijos de Dios, y vassalos de España”5 Na oportunidade em que se instituiu o Vice-Reinado do Rio da Prata, isto é, em 1776, Buenos Aires era, dentre as capitais vice-reinais, aquela que estava mais próxima das terras sob controle de “índios independentes”.6 Na fronteira meridional do Império, por exemplo, para além do rio Salado ficava a região que os contemporâneos chamavam de “tierras adentro”, sendo que as missões jesuíticas aí erigidas foram projetadas, em certo sentido, para serem um portal de acesso até elas. Em meio às notícias sobre o trabalho com os índios, Pedro de Lozano informou, na sua carta, sobre os progressos da redução de Ntra Sra de la Concepción de los Pampas, recém fundada (1740) às margens do referido rio, a aproximadamente 150 km ao sul da cidade. Este espaço, uma extensa planície que é parte da “campanha bonaerense”, havia se convertido, ao longo do século XVIII, em palco de intensa competição em torno da apropriação dos rebanhos “cimarróns”, o gado selvagem cuja proliferação natural fora favorecida pelas especiais condições ambientais do pampa. De acordo com Lozano, três anos após as tratativas conduzidas com um grupo de caciques7 para o início da missão, o povoado prosperava: os índios cooperavam na edificação do “pueblo” e, mais que tudo, participavam da instrução religiosa com raro afinco. Juntavam-se todos pela manhã e pela tarde e se lhes explicava a doutrina. Para que ela fosse melhor absorvida, faziam com que rezassem em voz alta. […] os adultos por desejarem também receber o sacramento, se aplicavam com entusiasmo a aprender (…), instigando que fizessem o mesmo os seus filhos e até 4 Talvez correndo o risco de não atender exatamente aos termos mais estritos da questão proposta pela Mesa, estarei refletindo sobre as relações entre a Companhia -entendendo-a como esfera do poder religioso-, e as autoridades civis da cidade e da governação, pensando nestes como representantes da sociedade local e da monarquia, respectivamente. 5 SANCHEZ LABRADOR, Jose. Paraguay Cathólico. [1772] Los indios pampa-puelchespatagones. Buenos Aires: Imprenta de Coxi Hermanos, 1910, p. 149. 6 WEBER, David. Bárbaros. Los españoles y sus salvajes en la era de la Ilustración. Barcelona: Crítica, nota 47, p. 101. 7 Da parcialidade dos “pampas”, Don Lorenzo Machado, Don José Acazuzo, Don Lorenzo Massiel e Don Pedro Milán; da parcialidade dos “serranos”, o cacique Don Yahati. ISBN 978-85-61586-70-5 74 IV Encontro Internacional de História Colonial castigando-os se era preciso (…) Assim, já em suas casas de noite, repetiam as lições do dia, as vezes procurando o padre, mesmo que fosse muito tarde, para que lhes explicasse o que não entendiam.8 Os religiosos estavam assim, “maravilhados (…) com os bons resultados obtidos, e isto com gente que por dois séculos tinha sido mas dura que rochas; parecía agora haver chegado o momento (…) para sua conversão”.9 Seguindo a sua narrativa, encontramos que as principais ameaças que pesavam sobre a missão, proviriam dos ataques de grupos indígenas a ela contrários, informação que nos remete para o complexo e heterogêneo panorama étnico da pampa-patagônia nesta época. Neste ponto a ajuda do governador se mostrava essencial, tendo o mesmo destacado 40 “soldados” para defender os missionários e seus catecúmenos. Sabemos entretanto, que 12 anos passados da sua fundação, a redução foi abandonada e não faltaram queixas dos jesuítas relacionando o ocaso da sua “missão austral”, à falta do necessário apoio por parte das autoridades de Buenos Aires, especialmente de seu cabildo e dos “vecinos” que este representava. Sugiro aqui que esta situação - a princípio particular e episódica - pode nos ajudar a refletir sobre a dificuldade de encontrarmos respostas unívocas para a questão estabelecida por esta Mesa: isto é, sobre como podemos localizar o trabalho da Companhia de Jesus, como estando a serviço da Coroa ou da Igreja. Se é certo que as políticas coloniais das monarquias ibéricas contaram com o apoio da Ordem para a “pacificação” e catequese dos índios - para a sua “conquista espiritual” -, também o é que a relação entre o Instituto e as autoridades civis esteve submetida a tensões. Assim devemos levar em conta aqui, como alertou Marshall Sahlins, que a prática “tem uma dinâmica própria”, capaz de alterar significados tradicionais.10 O que proponho é justamente perscrutar a razão pelas quais as formas e condições específicas em que se desenvolveu a chamada “missão austral” não tenham permitido que este projeto se desenvolvesse nos termos em que foi pensado. Tampouco, que ele reproduzisse, como se desejava, a estabilidade alcançada pelos chamados “Trinta Povos” em que, também pela ação missionária jesuítica, foram reduzidos os índios guaranis. Antes disto contudo, quero esclarecer que tenho plena consciência de que os desdobramentos experimentados por esta missão estão irrevogavelmente conectados às circunstâncias das sociedades indígenas às quais ela se dirige. “Pampas” e “serranos”11 como eram chamados estes grupos, tinham, na 8 LOZANO. Cartas Anuas de la Provincia del Paraguai…, p. 599- 600. Ibidem.. 10 SAHLINS, Marshall. Ilhas de história. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985, p. 7. 11 “Desconcertante” é o termo usado por David Weber para descrever a prodigiosa variedade de nomes com que os cronistas e estudiosos espanhóis classificaram os grupos indígenas da atual Argentina. Ver: WEBER. Los españoles y sus salvajes en la era de la Ilustración…, 9 ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 75 década em questão, uma larga experiência para com a sociedade colonial,12 e seus movimentos de aproximação ou rechaço das missões são igualmente essenciais para compreendermos a forma como elas existiram e porque foram finalmente abandonadas. Esta análise todavia, sem a qual a admito que a compreensão deste tema é parcial e incompleta, exigiria um exame que não cabe nos termos propostos por esta Mesa. Missões para “poner freios a los índios del sur” De acordo com vários testemunhos,13 a missão austral iniciou a partir de um pedido de proteção feito às autoridades de Buenos Aires por um grupo de caciques pampas, cujos acampamentos (“tolderias”) se viam ameaçados pelo panorama de violência desatado na campanha buenairense nas décadas centrais do XVIII.14 O cabildo da cidade por sua vez, encaminhou as negociações para o governador, confiando “en el conocido celo [dos jesuítas] para al servicio de ambas Majestades”.15 p. 434. Concordando com ele, creio ser imporatnte assinalar que as “etiquetas” étnicas criadas naquela oportunidade, atendiam ao imperativo de nomear por parte dos conquistadores, missionários, administradores, etc. Isto é, elas simplesmente não levavam em conta as formas pelas quais compreendiam a si próprios, os grupos que estavam sendo nomeados. Como não é nosso interesse discutir aqui este delicado problema da nominação dos grupos indígenas americanos, questão complexa e que retém a atenção de diversos especialistas, indicamos apenas que, em linhas gerais, os “pampas” correspondiam aos ocupantes dos vastos campos ao sul de Buenos Aires, enquanto como “serranas” eram identificadas as sociedades que, mais próximas da Cordilheira dos Andes, compartilhavam muitos traços com a cultura dos grupos daquela região. Já o termo “aucaes”, no mais das vezes, se refere aos índios da cordilheira. 12 Esta experiência havia contribuído para operar profundas transformações na sua cultura material e simbólica, sendo a adoção do cavalo apenas a parte mais visível de um processo muito mais amplo. Sobre este tema ver: MANDRINI, Raúl J. Las transformaciones de la economía indígena buenairense. In: Huellas en la Tierra. Indios, agricultores y hacendados en la pampa bonaerense. Tandil: IEHS, 1993, p. 45-74. 13 LOZANO. Cartas Anuas de la Provincia del Paraguai…; SANCHEZ LABRADOR. Paraguay Cathólico…; FALKNER, Tomas SJ. [1774] Descripción de la Patagonia y de las partes contiguas de America del Sur. Buenos Aires: Hachette, 1974. CARDIEL, Jose. Diario de viaje y Misión al Río Sauce realizado en 1748. Buenos Aires: Imprenta y Casa Editora Coni, 1930. 14 Embora incorrendo em risco de grosseira simplificação, podemos apontar que a rarefação do gado selvagem impulsionou a expansão das estâncias de criação sobre os territórios em que eles costumavam ser “caçados” por brancos e índios. Estes últimos por sua vez, passaram a realizar assaltos (“malones”) às propriedades dos colonos em busca do recurso que era item de grande importância em sua vida material e práticas simbólicas. 15 Acuerdos del Extinguido Cabildo de Bs As, Apud: BRUNO, Cayetano. Historia de La Iglesia en la Argentina. Buenos Aires: Editorial Don Bosco, v. 5, 1740-1778, p. 58. ISBN 978-85-61586-70-5 76 IV Encontro Internacional de História Colonial Em resposta a isto, D. Manuel de Salcedo, se dirigiu ao Provincial Antonio Machoni, que aceitou a solicitação das autoridades civis. Esta decisão não deve ter sido tomada sem que os padres ponderassem sobre a sua conveniência diante do crescente tensionamento nas relações entre a Ordem e a Monarquia, especialmente por conta das medidas regalistas ditadas pelos Bourbons espanhóis. Talvez como em nenhuma outra região das Índias de Castela, a política missionária dos jesuítas no Prata era alvo de detida atenção por parte das autoridades metropolitanas. Novas e velhas denúncias do excesso de autonomia e autoridade de que desfrutavam os padres junto aos índios de suas reduções, do uso indevido que fariam do trabalho destes, bem como de que as missões geravam riquezas canalizadas em prol da Ordem e não da Coroa, contribuíam para intensificar o “anti-jesuitismo” e preparar o ambiente em que ela acabou expulsa dos domínios espanhóis na América (1767).16 É muito provável que considerações em torno da oportunidade de melhorar o trânsito de que desfrutavam no momento junto aos poderes civis, tenham pesado para a decisão de levar adiante a catequese destes índios que eram tidos como “la pesadilla de Buenos Aires”,17 numa missão que os jesuítas, embora autorizados por cédula real datada de 21 de maio de 1684, ainda não haviam promovido. O fato é que, provavelmente equilibrando o interesse em expandir o raio de ação da Companhia, com a necessidade de capitalizar ações que a promovessem diante do governo, o Provincial aceitou o apelo para a “redução” dos pampas mediante o cumprimento de algumas condições: que os índios fossem assinalados “en cabeza del Rey”, isto é, que não estivessem sujeitos ao trabalho servil; que para que isto fosse assegurado, o “pueblo” não fosse instalado muito próximo de Buenos Aires; que aos moradores da cidade não fosse permitido o trato direto com os índios reduzidos; e que, em caso de necessidade, o governador enviasse ajuda militar para a defesa do povoado. As primeiras condições assinaladas permitem compreender que, tal como nas missões de guaranis, os padres entendiam que a missão só teria sucesso se eles fossem um elemento de interposição entre os colonos -e seu interesse sobre o trabalho servil dos nativos- e os índios. Se lembrarmos que as missões são um elemento da política colonial espanhola, esta parece ser um primeiro elemento de 16 O ambiente assim descrito não estava, é claro, restrito à Espanha. Como se sabe, também em Portugal muitas vozes creditaram o atraso do país à influência dos jesuítas. A mais destacada delas, do Marquês de Pombal, era especialmente crítica quanto à situação das populações indígenas que, no Brasil, viviam sob a tutela dos padres. Tendo ele determinado a expulsão dos jesuítas em 1769, a nova orientação para as regiões coloniais foi a de assimilação dos índios à sociedade colonial. Por parte da monarquia espanhola a medida de expulsão resultou do Decreto de 27 de Fevereiro de 1767 de Carlos III. 17 BRUNO. Historia de La Iglesia en la Argentina…, p. 57. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 77 incongruência e fonte de conflito entre os interesses civis e religiosos. Os êxitos alcançados pela Ordem na política de fronteiras dos espanhóis, contudo, recomendavam os jesuítas e suas missões como alternativa para a crescente conflitividade da região da pampa bonaerense nestes meados do XVIII. Numa época em que as autoridades metropolitanas conduziam várias ações de reconhecimento do espaço, expansão e defesa das fronteiras do império, também as autoridades de Buenos Aires estavam rompendo com a política de caráter mais defensivo que ofensivo, e de lentos movimentos em direção ao sul, adotada tradicionalmente para com os grupos nativos da região. Até então, diferentemente de Asunción, por exemplo, Buenos Aires tivera pouca tradição na política de evangelização, não se envolvendo diretamente na catequese dos nativos das regiões austrais. As condições de uma paz cada vez mais precária com os índios, contudo, e as dificuldades de uma política militar para a fronteira, vão indicar que as missões se constituíam um recurso bastante próprio para lidar com o problema e instituir a presença branca nas áreas em litígio. Acolhidas as condições ditadas pela Ordem por parte do governador e dos “regidores do cabildo” da cidade, os padres Manuel Querini e Matias Strobel foram encarregados de fundar aquela que seria Concepción de los Pampas, reunindo 300 índios, entre homens, mulheres e crianças. Durante alguns meses, donativos foram coletados entre os principais da cidade e, em maio de 1740, as estruturas do povoado começaram a ser erguidas. Muito simples, elas se limitaram inicialmente aos tradicionais “toldos” [tendas] dos índios que foram distribuídos em ruas demarcadas a partir da praça central, espaço que uma cruz de madeira assinalava ser o mais importante da localidade e onde os padres localizaram seu primeiro “altar”. O fosso defensivo ao redor do “Pueblo” e dois pequenos canhões doados pelo governador, indicavam a precariedade de sua situação. Uma carta do Pe Strobel de outubro daquele ano, informava que já estavam ali 350 índios, e que algumas casas de madeira e adobe iam sendo erigidas, assim como uma igrejinha que substituiria a primitiva capela, que fora feita de um toldo de couro.18 Ao mesmo tempo, dera-se início ao trabalho de catequese que, como já vimos, despertava otimismo: grandes e pequenos frequentam a igreja, ouvem a missa, rezam a doutrina cristã e o rosário da Virgem; na quaresma deste ano de 1742, todos os adultos cristãos se confessaram e os mais capazes também comungaram. (…) Muitos tem se confessado por devoção e pelo desejo que têm de viver na graça de Deus.19 18 Apud: Ibidem, p. 59-60 Memoria de los PP Querini y Strobel, Concepción de Nuestra Señora, 20.XI.1742. Buenos Aires, AGN, Documentos de la Biblioteca Nacional, leg 189, ms 1827. 19 ISBN 978-85-61586-70-5 78 IV Encontro Internacional de História Colonial Notícias desta natureza contribuíram para a expedição de cédulas reais (novembro e dezembro de 1741, novembro de 1743) apoiando as iniciativas até então levadas adiante, e estimulando os missionários a ampliar sua ação “por los campos dilatados del sur”,20 de forma que nos anos seguintes seriam fundadas Nra Señora del Pilar (1746) e Nra Sra de los Desamparados (1750). O apoio do governador Don Miguel de Salcedo fazia crerem os padres na possibilidade de expandir as reduções até o estreito de Magalhães.21 Este dinamismo contudo, logo encontrou seus limites e, no período de pouco mais de uma década em que transcorreu a “missão austral”, podemos localizar repetidas informações sobre as várias dificuldades que conduziram ao seu abandono. A melhor compreensão sobre estes desdobramentos implica, sem dúvida, tomar em conta as respostas indígenas ao que lhes era solicitado para viver em redução: adotar a fé cristã, os códigos morais e culturais dos brancos, o sedentarismo, etc. Sobre isto os registros dos padres apontam para o que podemos entender como o desinteresse dos índios, tanto para com os povoados e suas necessidades materiais, quanto para com a doutrinação e compromissos religiosos que teriam que assumir. Os jesuítas traduziram a tudo isto como decorrência de um apego irracional às suas “superstições”, bem como de seu “genio andariego” e pouca inclinação ao trabalho e à disciplina. Confirmavam assim, antigos conceitos sobre as populações nativas, às quais eram acrescentados novos qualificativos depreciadores típicos do XVIII. Para os espanhóis desta época, aqueles que não haviam sido submetidos não eram apenas índios: eram “selvagens” e “bravios”. Sabemos que o propósito de transformar os indígenas destas periferias em “vassalos produtivos” da Coroa era elemento central no desenho das políticas metropolitanas. Ao lado disto se buscava estabelecer relações comerciais pacíficas com eles, e garantir que não entabulassem alianças com inimigos da Espanha. Por sua vez, os moradores da cidade, ao lado de incluí-los em relações de comércio, queriam dar fim aos ataques que levavam pânico para a sociedade colonial. Entretanto, em agosto de 1745, o Provincial Bernardo de Nusdorffer escrevia que o fruto do trabalho “no era correspondiente al cuidado con que se han aplicado los dos 20 SANCHEZ-LABRADOR. Paraguay Cathólico…, p. 90. É preciso considerar que as iniciativas dos padres envolveram, também, a realização de viagens de exploração, como aquela que conduziu a Fragata Real San António pelo litoral sul da atual Argentina, entre dezembro de 1745 e abril de 1746. Três jesuítas -os Padres Quiroga, Strobel e Cardiel -, acompanhados de cerca de 80 soldados, marinheiros e tripulantes- , deveriam verificar as possibilidades de expandir missões pelo território da pampa-patagônia, bem como as potencialidades econômicas de tais regiões, segundo os interesses e necessidades metropolitanos. Sobre este tema ver: CARDIEL. Diario de viaje y Misión al Río Sauce realizado en 1748… 21 LOZANO. Cartas Anuas de la Provincia del Paraguai…, p. 591. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 79 padres que les asisten, por ser gente vagabunda, inconstante, ingrata y muy dada a la embriaguez”.22 Este entendimento porém, não implicava em deixar de atribuir responsabilidade a outros fatores que, para os padres, contribuíam com que as missões austrais não alcançassem sucesso, sendo o primeiro deles a ação dos “pulperos”, os comerciantes de aguardente. Segundo os jesuítas, o desejo de adquirir bebidas alcoólicas mobilizava os índios em prejuízo da catequese e do trabalho. Além disto, a bebida lhes turvava o juízo, acirrava conflitos e estimulava a desobediência. Mais do que se queixar, os padres solicitam medidas que pudessem alterar esta situação. Foi assim que, segundo informa o Pe Sanchez Labrador, o cabildo eclesiástico de Buenos Aires impôs a excomunhão aos comerciantes “que vendiesen aguardiente á dichos índios ó se llevasen á sus tierras, ó les hablasen mal de la conducta de los Misioneros”.23A iniciativa contudo, encontrou forte oposição e o cabildo civil apresentou petição para supressão da pena, “por el justo rezelo que se tiene que esta prohibición sea causa de que se quebrante la Paz que con dichos Indios se tiene, la que sirve de sosiego para todo el Vecindatario”.24 Diante disto, as pressões se avolumaram até que a medida foi anulada”.25 Quero chamar a atenção para o embaralhamento das posições entre as autoridades religiosas e civis e, dentre estas últimas, entre o governador e o conselho da cidade. Isto é, se havia consenso de que o “perigo indígena” deveria ser contido e que os “selvagens” deveriam ser submetidos, o mesmo não se observa quanto às estratégias de ação para tanto, nem quanto a que interesses deveriam ser contornados para apoiar os padres em sua “missão por redução”. Mais ainda, se para os estancieiros a presença de missões nas proximidades da cidade era motivo de desconforto, para os pequenos comerciantes ela era vantajosa. Passados pouco mais de dez anos da fundação da primeira delas, as três missões estavam abandonadas. Ataques de grupos indígenas inimigos foram o motivo direto da renúncia de levar adiante a missão austral, mas os padres também lamentaram amargamente aquilo que entenderam como falta de apoio da cidade para colocar obstáculo ao comércio de bebidas, bem como para organizar a defesa de “Concepción”, “Pilar” e “Madre de los Desamparados” . Escrevendo posteriormente aos acontecimentos acima narrados, Jose SanchezLabrador recapitulou os últimos dias de “Nuestra Señora de la Concepción de los Pampas” e os assaltos que o povoado sofreu determinando seu abandono. Segundo descreve, assediados pelos homens do cacique Felipe Yahati, os jesuítas enviaram pedidos de 22 Apud BRUNO. Historia de La Iglesia en la Argentina…, p. 61. SANCHEZ-LABRADOR. Paraguay Cathólico…, p. 43 e 207 respectivamente. 24 Acuerdos del Extinguido Cabildo de Buenos Aires, apud: SANCHEZ-LABRADOR, op. cit., p.207 25 Apud SANCHEZ-LABRADOR. Paraguay Cathólico…, p. 207-208, nota 53. 23 ISBN 978-85-61586-70-5 80 IV Encontro Internacional de História Colonial socorro ao governador. Enquanto muitos de seus oficiais aproveitavam para demonstrar posição contrária aos jesuítas,26 o dirigente determinou que o Mestre de Campo Don Lázaro Mendinueta e um grupo de milicianos, fossem resgatar os padres e as 25 famílias de índios cristãos que permaneciam na missão, providenciando sua escolta até Buenos Aires. Sanchez-Labrador indica estar muito ciente da fragilização política da Companhia naquele momento e assinala que os esforços de reverter a situação dos povoados foram prejudicados pelas “inumeráveis calúnias” que se levantavam contra os jesuítas. Parecia, segundo ele, que “el infierno se había conjurado para mover a los españoles que debían proteger la misión, a que por todos los modos se enpeñasen en perseguirla”.27 O sacerdote reclama que enquanto as missões existiram os opositores dos jesuítas acusavam-nos de usá-las para enriquecimento próprio e de que agiam de acordo com os índios para “saltear los caminhantes”; depois, com o seu abandono, os missionários foram incriminados de tê-las desamparado por não extraírem dali suficientes proventos. O quadro geral de acusações aos jesuítas e das respostas que eles davam a elas, não era, portanto, significativamente diferente do que se observava em outras áreas de missão. Em 13 de fevereiro de 1753 a escolta retirou os últimos habitantes de “Concepción”; em 12 de agosto do mesmo ano, uma carta do Padre Barreda escrita desde Córdoba, sede do mais importante colégio da Companhia no Prata, trazia as derradeiras notícias sobre estes povoados: La redución de los Pampas se perdió por no haber acudido a tiempo los gobernadores con tropas, conforme ordenaban las reales cédulas (…). Y sucedió que, cuando quisieron ejecutarlo, fue con tan poca prudencia y ninguna caridad, que antes de perseguir a los infieles os soldados mataram alguns índios cristãos e, por causa disto, os demais (…) se uniram com os infiéis, desampararam o povoado e destruíram a redução, sem que as rogativas dos padres pudesse conter a imprudência dos soldados … 26 “Concurrieron los oficiales al Fuerte en el que habita el Gobernador para enterarse de la novedad. Al oír que era petición de Socorro para la Reducción de los Pampas, todo se redujó a chanzas festivas, por las species que tenian con dicha Reducción; y sus misioneros”. SANCHEZ-LABRADOR. Paraguay Cathólico…, p. 159-160 27 SANCHEZ-LABRADOR. Ibidem, p. 160 ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 81 “el Gobernador se acordó que era soldado, y con desden respondio que el Rey no estaba para hacer gastos”28 Efetivamente, em 1752, pouco antes de ser abandonado o último dos povoados austrais, o cabildo de Buenos Aires havia criado uma “divisão de guerra” com três companhias de 50 homens cada, de forma a sustentar a pugna contra os índios.29 A relação com as populações nativas da campanha bonaerense orbitava definitivamente para a esfera da guerra, com os fortins substituindo as missões e acompanhando a política metropolitana de efetivar o controle do Estado sobre os territórios de fronteira. Evidências desta nova orientação já podiam ser sentidas nos anos imediatamente anteriores. Quando o padre Manuel Arnal, procurador dos jesuítas para a Missão Austral, solicitou ao governador Don Jose de Andonaegui que este intercedesse junto ao Rei, em favor das missões, que “eran pobríssimas por ser las tierras esteriles (…) [y] que era necessario tener varias cosillas con que agasajar à los Infiles”, este respondeu como autoridade militar que era: Oyendo esto el Governador se acordo que era soldado, y con bastante desden respondió, que el Rey no estaba para hacer gastos; y encarandose con muestras de algun e ojo à los índios, les dijo: que no faltaban sables con que cortarles las cabezas; ni pólvora, y balas con que hazerles guerra, en caso que buenamente, y sin gastos del Rey, no se hiciesen cristianos.30 O fracasso das missões de “pampas e serranos” apenas confirmou a noção que a ciência do XVIII vinha cunhando acerca dos “selvagens” americanos (e que a historiografia acompanhou até muito recentemente), isto é, de que faltava a estes índios “aptidão” para a vida civilizada. Para além da recusa a esta conclusão dado o seu óbvio caráter etnocêntrico, sugiro que devamos atentar para a complexidade do panorama em que se situaram estas missões, o qual não permite respostas fáceis para a questão do seu insucesso. Mesmo que olhemos exclusivamente para o campo dos colonizadores, não há como deixar de perceber a existência de interesses variados e, no mais das vezes, discordantes sobre elas. 28 Ibidem, p. 144. IGLESIAS, Mirian. Misiones jesuiticas al sur del Rio Salado. Sociedad indigena bonaerense y politica de frontera colonial. In: NORMANDO CRUZ, Enrique. Anuario del Iglesia, Misiones y religiosidade colonial. ACEI 1. Jujuy, 2000, p. 60-79, p. 64. 30 SANCHEZ-LABRADOR. Paraguay Cathólico…, p. 144. O missionário está se referindo ao pedido feito aos jesuítas por uma “embaixada” de cinco caciques “patagões” [Quilusquil, Taychoco, Chanal, Pagá e Sacachu] em dezembro de 1751, para “fundarles pueblo”. 29 ISBN 978-85-61586-70-5 82 IV Encontro Internacional de História Colonial A começar pelo interior da própria sociedade de Buenos Aires, é possível verificar que o interesse de certos setores, como o dos “pulperos” por exemplo, não coincidia com os dos estancieiros e grandes comerciantes. Os pequenos negociantes conformaram aí um espaço comum ao dos indígenas no qual, ainda que a paz fosse volátil e as posições sempre arriscadas, entabularam-se relações comerciais que eram satisfatórias para ambos os lados. Já os demais compreenderam o perímetro com o mundo autóctone como uma divisória entre a selvageria e a civilização, a qual deveria ser anulada com a eliminação do “perigo indígena”, noção que dirigiu a política de fronteiras da Argentina no século seguinte. O interesse das autoridades civis orientou-se no sentido de estabelecer a jurisdição do Estado nestas áreas, e quando a colaboração com os padres da Companhia não resultou nos frutos esperados, o apoio às missões foi cancelado. De outra parte, os jesuítas haviam assumido a proposta de constituir uma nova área de catequese nestes territórios certamente movidos pela sua “missio”, isto é, pelo compromisso de anunciar o Evangelho e contribuir para a salvação das almas. Entretanto, pesava também nas decisões dos Superiores da Ordem, a consideração sobre a melhor forma de atender a esta obrigação. Desta maneira, o critério da necessidade deveria ser avaliado quando se dava início a um novo campo de missão como fizeram os jesuítas do Colégio de Buenos Aires por volta de 1739. Isto sgnificava sopesar sobre como e onde melhor se poderia repartir a “vinha do Senhor”, tomando em conta critérios como necessidade, urgência e meios para tanto. Embora os jesuítas tivessem permissão, desde 1684, para evangelizar nos territórios da pampa-patagônia, suas iniciativas na área passaram a ter sistematicidade, como vimos, apenas a partir de 1740.31 Como sabemos, também, embora a ação jesuítica nos territórios castelhanos do Novo Mundo se afirmasse na busca de conjugar o serviço a Deus e ao Rei, tal compatibilidade nem sempre foi tranquila. Nestas décadas centrais do XVIII, em que se avolumavam as dúvidas sobre a lealdade da Companhia aos monarcas e sobre a contribuição que seus membros aportavam à política colonial, a ideia de atender ao pedido do governador de contribuir para a “redução” dos índios austrais deve sido um forte estimulador. 31 Segundo uma Carta do padre Antonio Machoni, este retardamento se deveu às dificuldades de obter apoio por parte do Governador de Buenos Aires. Ver: Carta de Antonio Machoni, desde Córdoba ao Padre Francisco Retz, datada de janeiro de 1739. O documento também considera o fato de terem os padres concentrado suas atenções nas sociedades chaquenhas que estavam situadas no centro da Província. Cf. Transcrição de um fragmento de la Carta de Antonio Machoni al P. Francisco Retz, Prepósito Geral da Compañía de Jesús (Roma). Apud: MARTÍNEZ MARTÍN, Carmen. Las reducciones de los pampas (1740-53): aportaciones etnogeográficas al sur de Buenos Aires. Revista Complutense de Historia de América. Madrid: Editorial Complutense, n. 20, p. 145-167, 1994. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 83 Uma cédula real de 1741, expedida depois da fundação de “Madre de los Pampas” portanto, assinalava o apoio da monarquia ao esforço dos padres em “fundar una nueva República Cristiana en aquella vasta extension de terreno, que limita por el sur el Estrecho de Magallanes”.32 No mesmo sentido, segundo a Ânua de Pedro de Lozano a que fizemos menção no início deste texto, o governador de Buenos Aires concluiu que esta seria “una ocasión excelente para los Padres probar que no buscaban otra cosa sino servir a Dios y al Rey”.33 Provavelmente as autoridades jesuíticas em Buenos Aires pensaram o mesmo. Contudo, esta coincidência de interesses não foi suficiente para garantir o alcance dos objetivos assinalados. Outros fatores intervenientes, especialmente aqueles dos atores locais, testaram os limites da política oficial assim desenhada. Quando foram alvo de ataques de grupos indígenas contrários às missões, os padres não encontraram o apoio que demandaram para manter os povoados que foram abandonados progressivamente entre 1751 e 1753. As datas são sugestivas, e se localizam entre os anos da assinatura do Tratado de Madrid e o início da guerra que moveram os guaranis das missões do Paraguai contra as disposições do acordo negociado por Portugal e Espanha. Sabemos que os jesuítas discordaram publicamente do Tratado e que foram tidos como responsáveis diretos pela insubordinação dos nativos. As ordens que receberam de forçar a evacuação dos índios cristãos dos territórios assinalados pelo Tratado de como sendo portugueses doravante, devem ter parecido muito duras de serem cumpridas pelos homens que viam nos “pueblos” de guaranis o exemplo mais bem sucedido da “missão por redução”. O quanto se debateram entre atender ao que ditava o Rei e o que pediam suas consciências, pode ser apenas aventado a partir da documentação. Mas podemos sim calcular a repercussão deste panorama nas tão menos expressivas missões austrais, que nunca haviam sido completamente aceitas pelos moradores e autoridades da capital da governação. O Padre Jose Quiroga chega a insinuar que o abandono à própria sorte das missões austrais deve ser entendido a partir desta conjuntura. Afirma ele: “Con ocasión de la demarcación proyectada entre las dos Coronas de España y Portugal, no pudiendo el Gobernador (…) enviar soldados para la defensa, fueron desamparados y destruídos los pueblos que esaban hacia al sur a cargo de los Padres de la Compañía”.34 Durante o curto tempo em que existiram, os povoados foram vistos como indesejáveis e perigosos “pontos avançados” dos indígenas, de onde os “selvagens poderiam passar informações estratégicas sobre as defesas da cidade à seus parentes. 32 Apud: IGLESIAS. Misiones jesuiticas al sur del Rio Salado. Sociedad indigena bonaerense y politica de frontera colonial…, p. 71. 33 LOZANO. Cartas Anuas de la Provincia del Paraguai…, p. 590-591. 34 SANCHEZ-LABRADOR. Paraguay Cathólico…, p. 249. ISBN 978-85-61586-70-5 84 IV Encontro Internacional de História Colonial Do ponto dos proprietários de terra bonaerenses, com a manutenção de Concepción de los Pampas, Pilar e Madre de los Desamparados, os padres prestavam um desserviço ao Rei e à ordem colonial. Para os jesuítas de outra parte, certamente, a defesa das missões os colocava ali onde eles sempre defenderam estar: a serviço do Rei e da Igreja, operando para trazer os índios para a seara da cristandade e civilização. Este papel entretanto, tão bem definido na teoria, na prática mostrava um forte potencial de ambiguidade, ao qual a análise não pode se furtar se levar em consideração, para além do que dita a norma, as experiências dos atores e o peso da cena local. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 85 Daniel Concina e Diego de Avendaño: dominicanos e jesuítas no debate sobre o probabilismo jurídico na América do século XVII Rafael Ruiz1 Contexto histórico O probabilismo surgiu como uma tentativa de resposta ao impasse criado perante um texto do dominicano Bartolomé Medina com um comentário sobre a Prima Secundae de Tomás de Aquino afirmando que lhe parecia lícito seguir, quando em estado de dúvida, uma opinião provável em detrimento de outra mais provável.2 Este comentário irrompeu de tal modo na sociedade do século XVII que dividiu a Igreja em diversos sistemas morais, que defendiam formas distintas de se proceder em relação à dúvida.3 Para entender esse impasse, é preciso considerar que muitos funcionários reais, dentre eles aqueles que tinham de administrar a justiça, com frequência encontravam-se diante de um enorme número de leis, e, mais, de opiniões, doutrinas e glosas, muitas vezes opostas, com relação a uma mesma lei. Diante dessa circunstância, os juízes não sabiam qual delas seguir e pediam, não propriamente aos juristas, mas aos teólogos, orientações concretas sobre como proceder diante de um estado de dúvida ou incerteza com relação a saber qual deveria ser não só a opinião a ser seguida, mas a conduta certa à hora de prolatar as suas sentenças. Logicamente esse problema com relação ao estado de dúvida da consciência não era algo apenas restrito ao campo jurídico. Em geral, qualquer fiel católico poderia encontrar-se nessa situação com relação ao tipo de conduta que deveria ser seguido, numa situação concreta, para fazer a coisa certa e não pecar. Contudo, o problema que nos interessa aqui está circunscrito à esfera da administração da justiça na América. 1 Agradeço à FAPESP pelo auxílio JP concedido para a realização desta pesquisa. Prof. de História da América da Universidade Federal de São Paulo. 2 CONCINA, Daniel. Historia Del Probabilismo y Rigorismo. Dissertaciones theologicas, morales, y criticas, en que se explican, y defienden de las sutilezas de los modernos probabilistas los principios fundamentales de la TheologiaChristiana. Dividida em dois volumes, Traducida al idioma castellano y añadida en muchas partes de las obras del mismo autor por el P. D. Joseph Sánchez de la Parra, Tercera Impresión, en Madrid, en la oficina de la viúda de Manuel Fernández, 1773, p. 9. 3 Cf. PINCKAERS, Servais Théodore. Las fuentes de la moral cristiana: su método, su contenido, su historia. Navarra: Ediciones Universidad de Navarra, 2000, p. 329-333 e DELUMEAU, Jean. A confissão e o perdão: as dificuldades da confissão nos séculos XIII a XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 104-110. ISBN 978-85-61586-70-5 86 IV Encontro Internacional de História Colonial Os teólogos moralistas posicionaram-se a partir de três sistemas morais, que poderiam ser resumidos nos seguintes tipos: Probabiliorismo (do latim: o mais provável) era a tendência que seguia a mais provável das opiniões; Tuciorismo (do latim: o mais seguro), a que apenas seguia a opinião favorável à lei; e, por fim, aquela tendência que aceitava que uma opinião apenas provável pudesse ser a correta mesmo havendo outra mais provável era chamada de Probabilismo. Resumindo brevemente os princípios do Probabilismo, poderíamos dizer que consistia no entendimento de que - a prudência, considerada a virtude por excelência dos juízes, só seria bem exercida se aqueles que tinham a obrigação de dar sentenças agissem com probabilidade; - o agir prudente e provável por parte dos juízes implicaria ter em consideração a ocasião, as pessoas e as circunstâncias concretas de cada caso a ser julgado;4 - as leis precisariam ser interpretadas antes de serem aplicadas e, sendo que existiam inúmeros comentários, glosas e interpretações diferentes com relação a uma mesma lei, poderia concluir-se que uma lei duvidosa não teria força de lei. Na prática, como era quase que impossível aplicar as leis de forma geral aos casos americanos, os quais se mostravam bem específicos,5 era muito fácil encontrar jurisprudentes com opiniões diferentes acerca de uma mesma lei e, portanto, a praxe de relativizar o conteúdo das leis e interpretá-las seguindo qualquer uma das opiniões possíveis, permitia aos juízes uma enorme margem de negociação, flexibilização e composição dos seus próprios interesses, dos interesses das elites locais e os da Coroa. É dentro desse âmbito e desse contexto que me parece interessante aprofundar no debate sobre o Probabilismo. Para tanto, e para facilitar a sua compreensão neste trabalho, procurarei falar primeiro da obra de Concina, já na metade do século XVIII, quando o debate estava arrefecendo, e, depois, analisar a obra de Avendaño, tido por todos os autores como um probabilista do mundo americano, na metade do XVII. Antes disso, parece-me necessária uma explicação metodológica: quando o debate historiográfico em torno à história colonial se desenvolve nos diferentes trabalhos, pesquisas e Congressos, parece-me que sempre se parte da ideia de que as leis, os regimentos, as cartas régias e quaisquer outros documentos legislativos tinham autoridade por si próprios e, consequentemente, os historiadores tendem a analisar 4 RUIZ, Rafael. Duas percepções da justiça nas Américas: Prudencialismo e Legalismo. In: Anais eletrônicos do VII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória. Vitória: VII Encontro Internacional da ANPHLAC, 2008. 5 Ibidem. Os espaços da ambiguidade: os poderes locais e a justiça na América espanhola do século XVII. Revista de História. São Paulo, 163, p. 81-101, ago/dez 2010. . ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 87 essas leis e a verificar o seu cumprimento ou não, tecendo a partir daí as suas próprias considerações. Contudo, não me parece que seja levado em consideração o fato de que durante um longo tempo, entre os séculos XV e metade do XVIII, pelo menos, a praxe judiciária dava uma extrema atenção às glosas, os comentários e, em resumo, às diferentes interpretações que, sobre uma mesma lei, os juristas e teólogos foram estabelecendo ao longo dos séculos. Nesse sentido, o importante seria não propriamente a lei, mas a lei comentada, a lei glosada ou a lei interpretada. Por isso, esta comunicação procurará mostrar a importância desse aspecto específico da juridicidade moderna, principalmente quando se estudam questões relacionadas com a norma e a praxe no mundo americano. Daniel Concina e a sua crítica ao Probabilismo Em 1773, no mesmo ano em que foi suprimida a Companhia de Jesus pelo Papa Clemente XIV, foi publicada na Espanha a obra do dominicano Daniel Concina, Theologia Christiana Dogmático-Moral, compendiada en dos tomos, traduzida para o castelhano. Na introdução, o tradutor da obra queixava-se de que a maior parte dos juristas e teólogos eram partidários da interpretação probabilística da lei, que, na sua opinião, era a responsável pelo estado de corrupção e de decadência em que se encontravam não apenas os indivíduos, mas também os Estados, de tal forma que se podia afirmar que “passaram os séculos de ouro, e sucederam-lhes os de barro e corrupção”.6 Para Daniel Concina, entre 1620 e 1656 configura-se o período de auge e decadência desse sistema moral.7 Trata-se do período da internacionalização do probabilismo, que foi acompanhado pelo florescimento de uma literatura especializada em casos de consciência, na qual a vertente probabilística preponderou. Delumeau afirma que o sucesso foi tão grande a ponto de se configurar como uma revolução moral, pois construiu-se um novo paradigma a respeito da teologia moral, quando esta passou a ser discutida em graus de probabilidade.8 A partir de 1640, para Concina, a crítica anti-probabilística tomou força graças ao probabiliorismo, principalmente na Espanha e na França.9 Como falei acima, este sistema moral defendia que, em caso de dúvida, devia-se optar sempre pela mais provável das opiniões. Nesse caso, portanto, não servia qualquer uma das opiniões, mas apenas a que fosse tida como mais provável. Os probabilioristas, assim como Concina, consideravam que os probabilistas socavavam a força coativa da lei, porque, para eles –para os probabilistas- era suficiente uma única opinião de algum 6 CONCINA, Daniel. Historia Del Probabilismo y Rigorismo…, p. I, n. 1. Ibidem, p. 10-17. 8 DELUMEAU, Jean. A confissão e o perdão…, p. 107. 9 CONCINA, Daniel. Historia Del Probabilismo y Rigorismo…, p. 15-16. 7 ISBN 978-85-61586-70-5 88 IV Encontro Internacional de História Colonial doutor, teólogo, canonista, ou jurista, para interpretar de forma mais suave ou mais relativa o texto da lei. E sempre podia –e, de fato assim aconteceu- ser encontrada uma opinião que legitimasse a probabilidade de um juiz decidir se não à margem da lei, pelo menos, de uma forma adaptada às suas conveniências. A partir de 1656, sempre seguindo a Concina, a crítica ao probabilismo tornou-se preponderante. Este é o ano da publicação das Provinciais de Pascal, nas quais a quinta e a sexta epístola foram dedicadas a uma crítica feroz e satírica ao probabilismo.10 Para além dessa obra, que se tornou referência no que diz respeito à crítica ao dito sistema, os dominicanos proibiram o ensino da doutrina probabilista e se seguiram diversas condenações papais a proposições probabilistas. Segundo Concina, em 1665, o Sumo Pontífice Alexandre VII condenou 28 proposições, no ano seguinte foram mais 17 condenadas; em 1679, o então Papa Inocêncio XI condenou 65 proposições probabilistas de diversas áreas.11 A questão central que me interessa tocar neste trabalho é perceber em que medida um sistema teológico-moral teve consequências na praxe judiciária na América do século XVII, ou, por outras palavras, perceber a estreita e intrincada relação existente entre o fenômeno religioso-teológico e o fenômeno políticojurídico. De acordo com o dominicano, os probabilistas colocavam-se numa cômoda situação, porque, de acordo com a sua doutrina, não era necessário seguir nem a opinião sobre a qual não pairasse dúvida alguma (um juízo absolutamente certo da lei), nem a opinião que fosse tida como mais provável (nem sequer aceitam aquele juízo que nos apresenta a obrigação mais verossímil). Para eles bastava com decidir conforme à sua própria consciência (porque colocam a certeza da saúde no testemunho da própria consciência).12 Para seguir a própria consciência, os probabilistas defendiam a necessidade de que os juízes (e as pessoas, em geral) fossem prudentes, porque a conduta adequada em cada caso concreto somente poderia ser vista por meio do exercício da virtude da prudência. Tratava-se, portanto, de uma tradição aristotélica, posteriormente retomada por Tomás de Aquino, também dominicano, para quem a prudência era “uma virtude da razão prática e não da razão especulativa”,13 de maneira que, para que um juiz fosse prudente e acertasse a decisão justa, era preciso não apenas que conhecesse a lei em geral e os princípios jurídicos universais, mas principalmente os casos e as circunstâncias concretas de cada caso: “E assim é necessário que a 10 DELUMEAU, Jean. A confissão e o perdão…, p. 110. CONCINA, Daniel. Historia Del Probabilismo y Rigorismo…, p. 17-44. 12 Ibidem. 13 AQUINO, Tomás de. A prudência: a virtude da decisão certa. Tradução, introdução e notas de Jean Lauand. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 5. 11 ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 89 prudência conheça os princípios universais da razão e também que conheça esses singulares sobre os quais versam as ações”.14 Parece-me que é interessante destacar que, conforme Concina, mesmo depois das inúmeras proibições pontifícias, havia um grande número de teólogos – por volta de 70 -, e alguns de muito renome, que continuavam defendendo o probabilismo, dentre os quais cabia destacar, porque era unanimidade entre todos esses teólogos, o Pe. Diana que, de acordo com Concina, além de defender esse sistema, “ensinava que o juiz poderia escolher, dentre duas opiniões prováveis, aquela que fosse mais do gosto do seu amigo, mesmo que a mais provável fosse a contrária”,15 contudo, o dominicano, na sua obra, não mencionava nenhuma citação em que Diana, ou qualquer um de seus seguidores, defendesse exatamente a possibilidade de escolher a opinião da pessoa amiga, mas é fato que Diana era considerado um dos grandes autores probabilistas e que suas posições defendiam a possibilidade de os juízes escolherem qualquer uma das opiniões que fossem consideradas como prováveis. Parece-me que não é difícil de perceber como essa forma de pensar, atribuindo à consciência dos magistrados locais o poder de decidirem prudentemente sobre as formas de aplicação ou não aplicação das leis metropolitanas, permitindo que se interpretasse uma lei régia de acordo com a convicção em consciência do juiz tornava-se um instrumento legal, que colocava nas mãos das autoridades locais o poder não apenas de executar e adaptar as leis, mas principalmente o poder de ignorá-las e, inclusive, de não obedecê-las.16 Penso que essas questões levantadas foram suficientes para entender os parâmetros dentro dos quais se desenvolveu o debate sobre o Probabilismo. Gostaria, agora, de mostrar como um teólogo probabilista,ou pelo menos assim considerado pela maioria dos autores, posicionava-se dentro desse debate. Diego de Avendaño e o Probabilismo O jesuíta Diego de Avendaño (1592-1688) foi um teólogo, jurista e filósofo hispano-peruano, considerado como um dos principais representantes do pensamento colonial ibero-americano. Nas bibliotecas dos colégios jesuítas das cidades de Lima, Arequipa, Trujillo, Ica, Huamanga, Huancavelica, Potosi, La Paz e Cochabamba, um século depois da publicação da sua obra Thesaurus indicus, foram encontrados um total de 82 exemplares das suas obras, colocando-o, portanto, entre 14 Ibidem, p. 5-6. CONCINA, Daniel. Historia Del Probabilismo y Rigorismo…, p. 95. 16 RUIZ, Rafael. Hermenêutica e justiça na América do século XVII. In: XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH, São Paulo, Julho 2011. http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1300290841_ARQUIVO_Hermeneutic aejusticanaAmericadoseculoXVII(ANPUH).pdf 15 ISBN 978-85-61586-70-5 90 IV Encontro Internacional de História Colonial os autores encontrados com mais frequências nessas bibliotecas, entre Platão, Aristóteles, São Tomás de Aquino, Santo Agostinho e Suárez.17 Avendaño tinha um profundo conhecimento das circunstâncias locais, fruto da sua posição na cidade de Lima no século XVII. Fora discípulo de um grande jurista, Solórzano Pereira, famoso autor da Política indiana, e foi reitor do colégio San Pablo, de Lima e Presidente da Real Audiência de Lima. Thesaurus indicus é uma obra de fôlego.18 São seis tomos, que foram publicados em Amberes, em latim, em 1668, e que apenas recentemente foram traduzidos ao castelhano pelo historiador Ángel Muñoz García. O seu conteúdo dá uma boa panorâmica da sociedade peruana e a sua dinâmica social e econômica, bem como da administração de justiça, tratando da função e da figura dos corregedores, juízes, Cabildos, encomenderos, mercadores, mineiros, protetores de índios, etc… Pareceme que basta conhecer um dos títulos da sua extensa obra para entendermos melhor qual seria o seu ponto de vista. Assim, por exemplo, Oidores y Oficiales de la hacienda (De los oidores régios, o senadores de las cancillerias de Indias y de las obligaciones que pesan sobre sus conciencias e Sobre los oficiales reales para la administración del patrimônio real em Indias, y sus obligaciones em el fuero de la consciencia). Um dos pontos mais relevantes para entender a figura de Avendaño e a sua obra consiste em perceber que estamos lidando com um período histórico em que a moral individual está intrinsecamente ligada à sua função pública ou, por outras palavras, estamos num período em que não era concebível que uma figura pública, um juiz, por exemplo, tivesse uma vida particular à margem da sua função e da sua consciência privada. Portanto, o público e o privado coligavam-se e misturavam-se de tal forma que, como afirma Paolo Prodi, “ainda não existia uma separação entre o pecado e o delito, entre a desobediência à lei da Igreja e à do Príncipe”.19 Um dos pontos que mais chama a atenção quando lemos a sua obra (por exemplo, nesse volume dedicado aos Ouvidores) é a insistência e a preocupação do autor com a figura do juiz, principalmente com tudo aquilo que diz respeito ao âmbito da moralidade e da consciência do mesmo. Dessa forma, além de elencar uma série de condições e de requisitos que, hoje e agora poderíamos denominar de “ordem pública”: não ter nascido na jurisdição da audiência; não casar-se com mulheres de sua jurisdição, nem com familiares de seus companheiros de audiência; 17 GARCÍA, Angel Muñoz. Diego de Avendaño, filosofía, moralidad, derecho y política en el Perú colonial. Lima: Fondo editorial de la Universidad Nacional Mayor de San Marcos, 2003, p. 14. 18 AVENDAÑO, Diego de. Oidores y oficiales de hacienda – Thesaurus Indicus. Navarra: Ediciones Universidad de Navarra, (EUNSA), Vol. I, Tìt. IV y V, 2003. 19 PRODI, Paolo. Uma história da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 182. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 91 não casar seus filhos dentro de seus distritos; não ter dois ofícios nas audiências; não conferir ofícios a seus parentes, etc, Avendaño preocupava-se também com a conduta moral ou religiosa dos ouvidores e dos juízes, com a sua assistência à Missa, as suas confissões, as suas virtudes e qualidades que, também hoje e agora, poderíamos denominar de “ordem privada”. Não é muito de se estranhar porque, por exemplo, uma alegoria publicada por Juan de Matienzo, famoso relator da Chancelaria de Valladolid e, mais tarde, ouvidor da Audiência de Charcas, e mais conhecido por sua obra Gobierno del Perú, de 1567, pode dar uma ideia do que se pensava e se esperava de um “bom juiz”, justo e honesto.20 Sua obra Dialogus Relatoris et Advocati Pintiani Senatus, publicada em Valladolid em 1558, teve uma boa difusão ao ponto de ter tido uma terceira edição em Francfort-sur-le Main, em 1623:21 o juiz era como a árvore, onde o solo fértil seria a nobreza de linhagem; as raízes seriam o temor a Deus, a ciência do direito e a experiência da prática processual; o tronco estava formado pela fortaleza, o desprendimento dos bens, a imparcialidade e a suspicácia; a crostra da paciência e da humildade; a seiva da verdade, da fidelidade e o segredo; os galhos seriam os oficiais e servidores do juiz que executavam as suas ordens; o fruto maduro da eloquência, da afabilidade e da cortesia ; as folhas da prudência e, finalmente, o fruto maduro da justiça e da equidade. Desenhava-se assim a ideia de que as sentenças justas nasceriam, quase que de forma natural e espontânea, como resultado do conjunto de virtudes morais que teria o juiz ou, se quisermos de outra forma, pensava-se que para que a justiça fosse possível não bastavam as leis nem as Cédulas reais, mas que era absolutamente necessário que os juízes tivessem virtudes e qualidades morais. E ainda no fim do século XVIII, em 1785, publicava-se em Madri a obra do jurista Guardiola y Sáez, El Corregidor perfecto y juez exactamente dotado de las calidades necesarias y convenientes para el buen Gobierno,22 onde o autor recorrendo a toda a tradição 20 Acompanho nesta questão a interpretação de Eduardo Martiré, na sua obra Las Audiencias y la Administración de Justicia en las Indias. Del iudex perfectus al iudex solutus. Buenos Aires: Librería Histórica, 2009, onde analisa o artigo de VALLEJO, Jesús. Acerca del fruto del árbol de los jueces. Escenarios de la cultura del ius commune. In: Anuario de la Facultad de Derecho de la Universidad Autónoma de Madrid, vol. 2, p. 19-46, 1998. 21 MARTIRÉ, E. Las Audiencias y la Administración de Justicia en las Indias. Del iudex perfectus al iudex solutus. Buenos Aires: Librería Histórica, 2009, p. 75. 22 A obra completa tem um título mais minucioso: GUARDIOLA Y SÁEZ, L., El Corregidor perfecto y juez exactamente dotado de las calidades necesarias y convenientes para el buen Gobierno económico y político de los pueblos y la más recta administración de justicia en ellos, y avisado, entre otras cosas, de las muchas cargas y obligaciones de su Oficio: conforme todo a las Leyes Divinas, Derecho Real de España, y Reales Resoluciones hasta ahora publicadas sobre la nueva Planta y ISBN 978-85-61586-70-5 92 IV Encontro Internacional de História Colonial anterior, e traçando uma linha de continuidade com as Siete Partidas entendia que “o juiz, de acordo com as nossas leis pátrias é o homem bom, que é colocado para mandar e fazer direito e julgar os pleitos”.23 E, sendo assim, Guardiola entendia que o juiz deveria ser sóbrio, modesto, agradável, benigno, cortês e afável. Não devia ser iracundo, altivo, nem cruel nem excessivamente duro e severo com os súditos; grave e temperado e com medida, nos gestos, passos e palavras, no asseio, adorno e compostura. Nem muito falador, nem jactancioso de si próprio, cauto e distante dos erros dos seus antecessores. Nem pomposo, nem presunçoso; não devia ser amigo de novidades, nem precipitado ou negligente, nem crédulo, nem excessivamente incrédulo. Deveria ser recatado e não suspeitoso, nem malicioso, nem astuto. Casto, pouco dado a convites, especialmente convites privados, sem ter amizades estreitas, desculpando-se por não participar dos jogos, bailes e outras diversões impróprias do seu ofício. Não devia ser orgulhoso, austero, nem muito triste ou melancólico. Nem extremado, nem singular nas suas deliberações. E, em definitivo, devia procurar que a sua meta fosse o bem comum da República, a observância das leis e a defesa dos súditos, sem esquecer o socorro dos pobres, o amor dos órfãos, a veneração dos templos, a proteção das virtudes, o rápido despacho dos negócios e demandas, julgando sempre o justo sem distinção de pessoas cuidando ao mesmo tempo da fidelidade, diligência, limpeza e bondade dos oficiais “24. Ou seja, desde o código das Siete Partidas, de meados do século XIII, até, pelo menos, a metade do século XVIII, pensava-se que o juiz, para cumprir sua função de dar sentenças justas, deveria ser, antes de tudo uma pessoa possuidora de todas as virtudes morais. E, tendo todas essas virtudes, o juiz deveria sentenciar de forma prudente, tendo em conta as circunstâncias do caso e os costumes do local, por isso que, normalmente, haveria soluções e sentenças diferentes dependendo de cada caso concreto. Alguns exemplos, citados por Avendaño, poderiam ser ilustrativos. Analisemos, primeiro, o clássico exemplo de aceitar ou não presentes e gratificações. Avendaño, particularmente, achava que, para a imagem do juiz, não seria bom aceitar nenhum Escala admirable de los Corregimientos y Alcaldías Mayores de estos Reynos. Madrid: Imprenta y Librería de López, 1785. 23 Ibidem, p. 32-33. 24 Ibidem, p. 129-131. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 93 tipo de presente. As leis eram bastante duras sobre isso, mas Avendaño alertava que, por se tratar das Índias, era preciso se observar o que demonstrava o costume. E o costume indicava que as únicas pessoas que não podiam de jeito nenhum presentear aos ouvidores eram os advogados, procuradores e relatores, porque isso denotaria suborno (ou, no minimo, comprometeria o julgamento do juiz, forçando de alguma forma a imparcialidade) e seria um escândalo e, mais ainda, obrigaria a sua consciência, de forma que teoricamente nenhum ouvidor decente conseguiria dormir sabendo que estava sendo aliciado, chantageado ou subornado. Por outro lado, qualquer ouvidor sabia que era costume entre os índios oferecer presentes e que eles se ofendiam sobremaneira se estes fossem recusados. E causaria, ainda por cima, na opinião de Avendaño, um grande mal para a republica ofender tão gravemente aos índios. Portanto, concluía o jesuíta, sabe-se que a intenção de um advogado ao presentear um juiz é torta, porém, a intenção de um índio, ao seguir o seu costume de presentear qualquer um que seja, inclusive um juiz, não é torta nem contém malícia e, por isso, os presentes dos índios poderiam, sim serem aceitos.25 Parece-me que, com este exemplo, fica claro como, nos juízos, era preciso ter em conta as intenções, as pessoas e as circunstâncias de todos os envolvidos e essa percepção, e consequente decisão, necessariamente flexibilizava a aplicação da lei. Outro exemplo bastante comum nas Índias era a questão do casamento dos Ouvidores reais. A lei era bastante clara e rigorosa: o Ouvidor não poderia casar com mulheres que morassem dentro do território da sua jurisdição. Se casasse, perderia o cargo. Avendaño, porém, considerava que, de fato, os Ouvidores não poderiam contrair casamento com mulheres que tivessem vínculos de parentesco e de moradia dentro do espaço geográfico da sua própria jurisdição, contudo, como casar não era pecado, os Ouvidores que não levassem em conta essa proibição poderiam perder o cargo, mas nem por isso cometeriam pecado. A partir dessa proposição, o teólogo e jurista jesuíta passava a discutir os motivos de por que não poderiam casar (ou seja, quais seriam as razões de conveniência para viver de acordo com essa norma legal) para, depois, considerar que, dependendo do lugar onde o caso acontecesse, os motivos seriam mais ou menos graves, mais ou menos coativos. Dessa forma, acabava concluindo que, dependendo da situação e do lugar, daria até para casar e continuar no cargo. Interessa-me aqui mostrar a forma do raciocínio de Avendaño, utilizando, ele mesmo, um tipo de argumentação – por meio de citações de autores e de doutores, que já em si é claramente probabilista: Puede objetarse además que tal opinion opuesta es probable, 25 AVENDAÑO, Diego de. Oidores y oficiales de hacienda – Thesaurus Indicus…, p. 88 e seguintes. ISBN 978-85-61586-70-5 IV Encontro Internacional de História Colonial 94 cosa que sostiene com otros el P. Molina, supra § Contrariam sententiam; y el P. Sánchez aduce en su favor varios autores en la citada Disp. 25, afirmando que es probabilísima. Pero esto no es objeción; pues, según el mismo P. Molina, la opinión opuesta es más común, tal como dijimos; y, según el P. Sanchez, más probable, defendiéndola innumerables autores; luego quien actúa de acuerdo con ella cuida suficientemente su conciencia, como para que no debamos condenarlo como reo de pecado mortal”.26 Outra questão delicada era tudo o relacionado com o pagamento de impostos nas minas. A lei geral também era conhecida: as minas pertenciam aos Reis, pois, por natureza, estavam destinadas ao uso comum e não ao privado. Os Reis entregavam-nas aos particulares, reservando para si o quinto e, em alguns casos, o décimo. Tudo isso era claro e conhecido, mas a partir daí é que começava a argumentação do jesuíta para dizer que de acordo com muitos doutores, umas vez que as minas eram entregues pelo Rei, então, passavam a ser dos particulares, não estando estes, portanto, obrigados em consciência a pagar os impostos. Por outro lado, também havia muitos doutores que afirmavam que se o Rei as entregava com a condição do pagamento do quinto, então, sim, deveriam pagar o imposto. Como vemos, a argumentação jurídica seguia os princípios da retórica probabilista: alguns autores opinavam de uma forma, e, outros, opinavam o contrário. Dentro desse espectro de opiniões, qual delas deveria ser seguida? A opinião de Avendaño seguia a do célebre jurista Solórzano Pereira: “No siendo las circunstancias las mismas, no debe observarse el rigor de las contribuiciones: lo pide la equidad, la razón lo pone de manifesto y lo confirma también la autoridad de los autores”.27 Por outras palavras, e apenas para deixar mais claro o entendimento da questão: os Ouvidores e juízes deveriam atentar para as circunstâncias de cada caso e, então, tendo em conta o princípio da equidade e as diferentes opiniões dos diferentes doutores sobre a matéria, poderia decidir sem observar o rigor da lei. Gostaria de me referir a um último caso para mostrar como o probabilismo abria uma grande margem de ambiguidade, permitindo que os juízes decidissem de uma maneira ou de maneira contrária, sem nenhum tipo de problema: trata-se dos casos em que se discutia o que fazer com a herança de um clérigo defunto. Avendaño explicava que, embora a lei fosse explícita determinando que os bens deveriam ser encaminhados para obras pias na Espanha, ele entendia que havia muitos costumes diferentes no Peru, onde muitas províncias costumavam declarar que os bens de clérigos defuntos deveriam ficar ou para a paróquia local ou para o colégio dos padres. Diante desse impasse, considerava que se fosse feito como em Lima, onde um juiz, 26 27 Ibidem, p. 259-261. Ibidem, p. 353. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 95 decidindo conforme à prudência, sentenciara que se entregasse metade dos bens do defunto para saldar as dívidas e a outra metade para o herdeiro legal, se agiria corretamente, e que se fosse decidido que prevalecesse o costume local e que os bens, portanto, fossem destinados na íntegra para a paróquia local, também se agiria corretamente.28 Ou seja, numa situação frequente e comum como era a repartição da herança dos bens dos clérigos defuntos, Avendaño opinava pela multiplicadade de soluções e sentenças, dado que as variáveis que deveriam ser levadas em conta não se reduziam apenas ao indicado na lei, mas era preciso também atender aos costumes locais, à opinião dos jurisconsultos e, principalmente, à deliberação prudente do juiz, mesmo que isso significasse agir de uma forma em um caso e de outra forma diferente em outro caso. É importante entender que o que Avendaño defendia não era o que hoje chamaríamos de “arbitrariedade”. O probabilismo não defendia a ideia de que os juízes julgassem acintosamente ou conforme suas preferências pessoais. O que estava em questão era precisamente que as leis não eram a única fonte que estabelecia o direito (o que era justo) e que normalmente sempre era necessário interpretar a lei conforme ao caso concreto. Talvez o que melhor possa resumir a posição do que seria um juiz probabilista seja a afirmação que García Muñoz fez sobre Diego de Avendaño: “Basta que uma opinião seja provável, para que, sem mais, Avendaño a aceite, e, na maioria dos casos, a siga”.29 Considerações finais Espero ter mostrado como o Probabilismo foi um debate que se desenvolveu principalmente no âmbito da Teologia moral católica e que, por isso mesmo, seria conveniente desenvolver mais estudos que não deixassem de lado essa esfera do conhecimento teológico. Também espero ter mostrado como as consequências desse debate não ficaram restritas apenas ao campo moral, religioso e teológico, mas exerceram profunda influência na esfera jurídica e, especificamente, no campo da administração da justiça e nas decisões judiciais sobre o que seria justo ou injusto, de maneira que se poderia afirmar que a Teologia moral católica foi responsável pelo estabelecimento das relações sociais, econômicas e políticas na construção da sociedade americana. As categorias de “prudência”, “consciência”, “arbítrio”, “circunstância” e “costume” não eram apenas simples conceitos morais, mas principalmente jurídicos, permitindo aos administradores da justiça, na América do XVII, uma ampla margem de negociação, adaptação e flexibilização das leis régias, de acordo com os seus interesses locais. 28 29 Ibidem, p. 175. Ibidem, p. 30. ISBN 978-85-61586-70-5 IV Encontro Internacional de História Colonial 96 Antônio Vieira e a diplomacia da Restauração portuguesa Ronaldo Vainfas1 Guerra ou paz: os impasses de 1648 “É melhor ter com eles (holandeses) guerra declarada do que paz fingida”. Foi o que escreveu Manoel de Moraes, em outubro de 1648, emitindo um dos mil pareceres que o hesitante rei D.João IV solicitava aos que tinham experiência em assuntos holandeses.2 Era tempo de pareceres solicitados pelo rei sobre se convinha ou não ceder o Brasil às Províncias Unidas dos Países Baixos em troca da paz. Aliás, como escreveu Evaldo Cabral de Mello, em O negócio do Brasil, quem hoje compulsa os códices seiscentistas nas bibliotecas e arquivos portugueses, “topa invariavelmente com manuscritos sobre as pazes da Holanda”.3 O texto de Manoel de Moraes apresenta os ingredientes de um parecer formal sobre a questão. Manoel se dirigiu ao rei: “Isto escrevo como fiel vassalo de Sua Magestade, como quem correu todas aquelas terras, tratou todas aquelas gentes, e lhes conhece de experiência as condições”. Texto oficial e segredo de Estado: “sob censura”. Sendo o assunto a famigerada “paz com a Holanda, Manoel começa o texto louvando a paz, enquanto princípio, nela vendo a raiz da prosperidade dos povos. Mas não a paz com os holandeses, dizia, que eram povos “variáveis, inquietos e mal intencionados”. Só fazem a paz enquanto lhes convêm – acrescentou - e ao menor descuido “quebram as leis dela”. O mote do seu texto se pode resumir no argumento citado no início: “é melhor ter com eles (holandeses) guerra declarada do que paz fingida”. Manoel refutou, portanto, o que considerava os quatro pontos essenciais do tratado “entreguista” que Portugal negociava com os holandeses, afirmando que na Europa, se fosse possível, a paz era benvinda. Mas no sul, isto é, no Brasil, somente a guerra resolveria o impasse. Considerou inaceitável que Portugal cedesse aos holandeses território tão rico em engenhos de açúcar, tabaco, pau-brasil e mantimentos variados. Alegava que Portugal não precisava da Holanda para nada, pois tudo que vendiam no Brasil vinha de outras partes, a aguardente da França, as munições da Dinamarca ou Hamburgo, o ferro da Suécia. Em contrapartida, a Holanda não podia viver sem o sal 1 Universidade Federal Fluminense. 2 A “Resposta aos holandeses” foi descoberta por Eduardo Prado na Secção de Manuscritos da Biblioteca Nacional de Lisboa. Códice 1551, fls 59 a 63. Eduardo Prado fê-la copiar na íntegra, sendo o texto mais tarde publicado por Afonso de Taunay nos Anais do Museu Paulista. São Paulo, tomo I, p. 119-143, 1922. Há outra cópia do mesmo documento na Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional de Lisboa. Códice 2694, fls 37-42. 3 MELLO, Evaldo Cabral de. O negócio do Brasil: Portugal, os Países Baixos e o Nordeste, 1641-1669. Rio de Janeiro: Topbooks, 3a ed. revista, 2003, p. 143. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 97 de Setúbal e sem a riqueza do Brasil. Considerou também absurda a exigência de indenização de guerra ao rei, pois não fora D.João IV quem ordenara o “levantamento da terra” contra os holandeses. A rebelião havia sido iniciativa dos moradores em “boa consciência”. Tão boa consciência quanto a que os mesmos holandeses haviam mostrado, ao se rebelarem contra a tirania dos castelhanos, como eles gostavam de repetir. De modo que, se a revolta dos holandeses contra a Espanha havia sido justa, também o era a rebelião movida pelos luso-brasileiros contra a Holanda. Manoel de Moraes retomou o argumento usado à farta pelos embaixadores de d.João IV em Haia, a saber, o de que os holandeses haviam conquistado aquelas partes do Brasil no tempo em que Portugal era cativo de Castela. Cativeiro injusto, pois a legítima sucessão, em 1580, cabia à Casa de Bragança (e nisto Manoel de Moraes repetiu um dos argumentos de seu texto pró-restauração de 1641. Quase deu vivas, ao saudar o “Duque de Bragança, hoje por graça de Deus, o poderoso monarca El Rei D. João, o quarto, nosso senhor”. E se os holandeses alegassem, como alegavam, que a insurreição feria a trégua estabelecida em 1641, valia lembrar que foram eles os primeiros a rompê-la, tomando Angola, São Tomé e o Maranhão. Manoel de Moraes também pôs em xeque a superioridade militar holandesa, inclusive a naval, embora admitisse que o inimigo tinha mais navios. Mas a madeira usada nos navios portugueses era melhor, ajuizou. Quanto ao combate em campo raso, os holandeses eram, Segundo ele, um desastre. Ilustrou seu argumento citando a batalha do Monte das Tabocas, de que ele mesmo havia participado; a vitória facílima dos portugueses no Maranhão, em 1643; o fracasso de Nassau na Bahia, em 1638; o triunfo de Salvador Correa de Sá em Angola, em 1648. Aos holandeses, de fato, só restava a posse de Olinda e do Recife no início de 1649. Manoel de Moraes fez o seu parecer. Tinha larga experiência em assuntos holandeses, pois vivera oito anos em Harderwijk, Leiden e Amsterdã a serviço da Companhia das Índias Ocidentais, antes de regressar a Pernambuco, como contratador de pau-brasil. Era ex-jesuíta, expulso da Companhia de Jesus por ter se passado aos holandeses, em 1635, razão pela qual seria preso e processado pela Inquisição, acusado de calvinismo. Quando escreveu seu parecer, tinha saído há poucos meses no auto-defé celebrado no Terreiro do Paço, vestindo hábito penitencial com insígnias de fogo. Estava nas últimas, mas arrependido de seus erros passados e na expectativa de, quem sabe, ser recrutado como conselheiro do rei ou capitão nas guerras pernambucanas. Tudo, é claro, em troca de alguma modesta mercê.4 A guerra liderada por João Fernandes colheu vitórias decisivas de 1645 a 1649. As duas batalhas dos Guararapes, em especial, travadas entre abril de 1648 e fevereiro de 1649, confinaram os holandeses em Olinda e Recife. O mais estava perdido. Entrementes, em agosto de 1648, Salvador Correia de Sá tinha reconquistado Angola, 4 VAINFAS, Ronaldo. Traição: um jesuíta a serviço do Brasil holandês processado pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. ISBN 978-85-61586-70-5 98 IV Encontro Internacional de História Colonial partindo do Rio de Janeiro. O império holandês na África e no Brasil estava ferido de morte.5 Voltando a 1641: entre negociações e conspirações Nos começos da Restauração, porém, a situação de Portugal era periclitante. O próprio Manoel de Moraes, quando estava na Holanda, teve a oportunidade de acompanhar as primeiras negociações entre Portugal e os Estados Gerais dos Países Baixos. Corria o ano de 1641, a restauração portuguesa era recentíssima, a guerra contra a Espanha estava deflagrada. D.João IV enviou embaixador para Haia negociar com os holandeses. Estando em curso Guerra dos Trinta Anos, e sendo a Holanda inimiga histórica da Espanha, contra a qual Portugal então lutava, os conselheiros de D.João IV julgaram razoável propor aos holandeses a devolução dos territórios que outrora pertenciam a Portugal antes da União Ibérica. O embaixador Tristão de Mendonça Furtado chegou em Haia no início de 1641. Era homem de nobreza e de guerra que tinha esposado a causa da restauração desde o início. Mas como diplomata era fraco ou pelo menos foi esta a impressão que dele ficou, em Portugal, por suas gestões em Haia. O máximo que conseguiu foi assinar um tratado, em 12 de junho de 1641, em cujo artigo 24 os holandeses admitiam, vagamente, que os territórios do ultramar outrora portugueses poderiam ser objeto de futura partilha ou troca. Futuro incerto. Estabeleceram, ainda, neste tratado, uma trégua de dez anos, fixando, porém, que, em caso de hostilidades, os súditos do Príncipe de Orange não poderiam ser levados à Inquisição por motivo de sua confissão religiosa. Portugal também cedeu neste ponto, e vale dizer que os tais súditos da Casa de Orange protegidos pelo acordo eram basicamente os judeus portugueses transferidos de Amsterdã para o Brasil. A sólida Talmud Torá, congregação dos judeus portugueses em Amsterdã, pressionou os Estados Gerais, que por sua vez pressionaram o embaixador português, e até a isto se vergou a diplomacia portuguesa em 1641. Quanto à trégua de dez anos, os holandeses a romperam no mesmo ano do tratado. Entre agosto e novembro de 1641, as armas de Maurício de Nassau conquistaram Angola, incluindo Luanda, Benguela e os portos satélites de São Tomé e Ano Bom.6 5 BOXER, Charles. Salvador de Sá e a luta pelo Brasil e Angola, 1602-1886. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1973. 6 Sobre as conquistas holandesas na África, ver ALENCASTRO, Luis Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, cap. 6, p. 188-246; RATELBAND, Klaas. Os holandeses no Brasil e na costa africana: Angola, Kongo e São Tomé, 1600-1650. Lisboa: Vega, 2003, p. 109-145; SILVA, Alberto da Costa e. A manilha e o libambo: a África e a escravidão de 1500 a 1700. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002, p. 407-450. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 99 No mesmo mês de novembro, os holandeses tomaram o Maranhão. O domínio holandês no Brasil atingiu, o apogeu, abarcando território do Sergipe ao Maranhão, além do conrole dos portos africanos essenciais para o tráfico de escravos. A colaboração das elites luso-brasileiras no Pernambuco, por sinal, nunca foi tão intensa como nesta época. Tempo da chamada pax nassoviana. Tudo corria muito mal para os portugueses neste início da Restauração. Felipe IV se armava até os dentes para esmagar a rebelião portuguesa, embora estivesse às voltas com a revolta catalã. Não fosse a revolta da Catalunha e as coisas ficariam ainda piores para Portugal. Estava derrotado no ultramar, o império oriental esfrangalhado, e no Brasil também se perdera o Maranhão. E, mais grave, tinha perdido Angola. Um desastre. Até os mais fervorosos adeptos da Casa de Bragança consideravam difícil manter a soberania portuguesa sem recursos ultramarinos para combater a Espanha. Não admira que a fação pró-hispânica da nobreza lusitana, por sinal muito numerosa, tenha tentado derrubar o rei, ainda em 1641, facilitando as coisas para Felipe IV. Afinal, boa parte da “nobiliarquia grande” do reino mantinha-se fiel ao rei de Espanha. Vários deles se tinham estabelecido em Madri durante a União Ibérica e outros tantos se refugiaram na Espanha após a aclamação de d. João IV, por eles julgada um golpe de Estado. Felipe IV de Espanha buscava compensar generosamente tais lealdades com “mimos e promessas”, certo de que tais homens seriam a base para a recuperação do reino rebelde. Da lealdade a Felipe III à conjura contra d.João IV o passo foi curto. Foi conspiração respeitável, cuja liderança foi aribuída a d.Luiz de Noronha e Menezes, marquês de Vila Real e primeiro conde de Caminha, títulos que herdara do irmão d. Miguel Luiz de Menezes. A Casa de Vila Real era antiga, com titulação concedida ainda no início da dinastia de Avis e acrescida do ducado no tempo de Felipe II de Espanha. O marquês de Vila Real era, sem dúvida, o nobre mais titulado entre os conjuradores, mas não foi o grande articulador do golpe contra d. João IV. Os grandes articuladores do golpe foram, antes de tudo, o arcebispo de Braga, portanto Cardeal primaz do reino, D.Sebastião de Matos Noronha, e Belchior Correia de Franca, fidalgo da Casa Real por serviços prestados em Tânger, Pedro Baeça da Silveira, tesoureiro da alfândega de Lisboa e cunhado e outro grande articulador, Diogo Brito Nabo, também fidalgo da Casa Real. As articulações começaram ainda em dezembro de 1640 e se adensaram nos meses seguintes. Em julho de 1641, o grupo de conjurados já incluía Rui de Matos e Noronha, primeiro conde de Armamar; Nuno de Mendonça, segundo conde do Vale dos Reis; Antônio de Ataíde, segundo conde de Castanheira; Jorge de Mascarenhas, vedor da Casa Real no reinado de Filipe IV, filho de d.Jorge de Mascarenhas, marquês de Montalvão e ex-governador do Brasil; d.Agostinho Manuel de Vasconcelos, criado da Casa Real brigantina; João Soares de Alarcão, mestre-sala da Casa Real filipina; Gonçalo Pires de Carvalho e seu filho Lourenço Pires de Carvalho, provedor das obras reais; Antônio de Mendonça, comissário da Cruzada, frei Luis de Mello, bispo de ISBN 978-85-61586-70-5 100 IV Encontro Internacional de História Colonial Malaca, na Índia; Cristovão Cogominho, Guarda-mor da Torre do Tombo; Antônio Correia, oficial da Secretaria de Estado; Diogo de Brito Nabo, ex-alcaide de Ceuta, e Manuel Valente de Vilasboas, escrivão de Setúbal. Enfim, para terminar, sem esgotá-la, a lista de conjurados, vale citar d. Francisco de Castro, ninguém menos do que o Inquisidor geral de Portugal, nomeado no tempo dos Filipes.7 A Inquisição era francamente filipina, tendo se fortalecido imensamente durante a União Ibérica. Basta dizer que o sobrinho de Felipe II de Espanha, o Cardeal-Arquiduque Alberto de Áustria foi, quase ao mesmo tempo, Inquisidor Geral e vice-rei de Portugal, entre 1583 e 1593. D. Pedro de Castilho foi também Inquisidor Geral e duas vezes Vice-Rei de Portugal no reinado de Felipe III de Espanha (15981613). D.Miguel de Castro, por sua vez, além de arcebispo de Lisboa, pertencia aos quadros da Inquisição quando foi nomeado duas vezes presidente da Junta Governativa, instituição que substituiu pro tempore o Vice-Reinado, e terminou a carreira como deputado do Conselho Geral do Santo Ofício, órgão máximo da Inquisição portuguesa. Não é de surpreender, portanto, que a Inquisição tenha se aliado com a Casa de Habsburgo contra as pretensões brigantinas em 1640 e conspirado contra o rei em 1641.8 Em 28 de julho de 1641 foi descoberta a conjura, cujo objetivo era enviar uma Jornada Real (filipina) desde Espanha até as fronteiras do reino, simultaneamente à deposição de d.João IV. Todos os nobres e fidalgos envolvidos na conspiração haviam obtido importantes mercês de Felipe IV de Espanha ou engrandecido as titulaturas, no caso de nobres de cepa antiga. Lideravam ou integravam, em posições estratégicas, importantes redes clientelares ligadas à Casa dos Habsburgos, temendo perder privilégios com a ascensão da nova dinastia em Portugal. A repressão brigantina foi atroz, sobretudo contra os nobres e fidalgos. No caso do clero, o cardeal primaz d. Sebastião de Matos Noronha foi encarcerado na Torre de Belém, morrendo na prisão no mesmo ano de 1641. O inquisidor d. Francisco de Castro foi preso, porém libertado em 1643. Quatro nobres foram degolados em cerimônia pomposa realizada no Rossio, em Lisboa, no dia 29 de agosto de 1641. O primeiro a ser executado foi d. Luís de Noronha, marquês de Vila Real, e logo seu filho d. Miguel de Noronha, jovem de 27 anos que, na verdade, não tinha jogado papel importante na conjura. O conde de Armamar foi o terceiro degolado e, por fim, d.Agostinho Manuel, que custou a morrer porque o cutelo havia perdido o fio. As execuções prosseguiram na Rua dos Escudeiros à frente do Palácio da Inquisição com 7 COSTA, Leonor Freire & CUNHA, Mafalda Soares da. D. João IV. Lisboa: Círculo de leitores, p. 114-117. 8 BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições. Lisboa: Círculo de Leitores, 1994, p. 111. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 101 o enforcamento de dois fidalgos, Manuel Valente de Vilasboas e Diogo de Brito Nabo, que tiveram seus corpos esquartejados e as partes espalhadas pela cidade.9 1642-1645: da negociação à insurreição Ao final de 1641, além da Restauração ter sido frontalmente contestada, Portugal caminhava mal nas chamadas “pazes com Holanda”. Ruim com o tratado, pior sem ele. Os portugueses nunca haviam perdido tanto no Atlântico, nem no tempo da União Ibérica, apesar dela. Tristão de Mendonça Furtado foi removido do posto e não tardou a morrer, sem nenhuma glória. Foi substituído por Francisco de Andrade Leitão, diplomata de carreira do Portugal restaurado, desembargador da Casa de Suplicação, servira na Suécia, na França de Richelieu, e representou Portugal nas negociações de Munster. Francisco de Andrade Leitão chegou em Haia, em 1642, fazendo jogo duro, denunciando nada menos que 13 violações do acordo de 1641, exigindo a pronta devolução dos territórios portugueses no Atlântico, a começar por Angola e pelo Maranhão, as últimas conquistas flamengas. Não conseguiu nada, salvo promessas ainda mais vagas, mas pelo menos fez com que as coisas ficassem claras. Os holandeses não tinham a menor intenção de devolver qualquer território aos portugueses, porque a Companhia das Índias tinha investido fortuna imensa nestas conquistas. Por qualquer devolução, por mínima que fosse, Portugal pagaria preço altissimo: o sal de Setúbal, indenizações elevadas, privilégios comerciais aos holandeses no negócio do açúcar. Francisco de Andrade Leitão foi substituído por Francisco de Souza Coutinho, embaixador realista e prudente. Sabia que o caso era de paciência e que as “pazes com Holanda” não dependiam de acordo bilateral de credibilidade duvidosa. Era preciso considerar o desfecho da Guerra dos Trinta Anos; aguardar se a Espanha reconheceria, enfim, a soberania dos Países Baixos calvinistas; examinar o avanço da guerra de Restauração contra a mesma Espanha; negociar o apoio do Papa Urbano VIII, que não reconhecia D.João IV como rei português, mas tampouco reconhecia o governo dos hereges holandeses; negociar com a França, que emergia como principal potência continental; aguardar o desfecho da guerra civil na Inglaterra, que mais tarde seria uma fiadora mais ou menos discreta da independência portuguesa. Não por acaso, enquanto negociava com Holanda, Portugal multiplicou missões secretas a vários Estados, do que dá notícia detalhada Edgar Prestage no seu clássico As relações diplomáticas de Portugal com a França, Inglaterra e Holanda de 1640 a 1668.10 A prioridade máxima, para os diplomatas portugueses, era garantir a soberania dos 9 COSTA, Leonor Freire & CUNHA, Mafalda Soares da. D. João IV…, p. 127. PRESTAGE, Edgar. As relações diplomáticas de Portugal com a França, Inglaterra e Holanda de 1640 a 1668. Coimbra: Imprensa Nacional, 1928, p. 196-197. 10 ISBN 978-85-61586-70-5 IV Encontro Internacional de História Colonial 102 Braganças, o que implicava guerra na península e diplomacia na Europa. O melhor do Oriente estava perdido. E talvez fosse preciso ceder boa parte do Brasil e da África. Francisco de Souza Coutinho foi embaixador em Haia de 1644 a 1649, e constatou o que já se sabia em Lisboa. Os holandeses não estavam dispostos a ceder, embora o Brasil estivesse começando a dar prejuízo. E, para a Holanda, o Brasil era nada mais, nada menos, que um negócio da Companhia das Índias Ocidentais, a WIC. Na verdade, o comércio exportador do Brasil para a Holanda atingiu seu auge justamente em 1642. A exportação de açúcar branco, por exemplo, que passava das 14 mil caixas, em 1641, caiu para menos de 11 mil, em 1643, e não passou de cerca de 8 mil, em 1644. Cairia ainda mais, de forma vertiginosa, nos anos seguintes.11 A rebelião luso-brasileira no Pernambuco começou a ser urdida em 1644 e explodiu em 13 de junho de 1645, dia de Santo Antônio. Uma das primeiras medidas de João Fernandes foi decretar nulas as dívidas que os rebeldes tinham com os holandeses. Houve grande adesão da “nobreza da terra”, entusiasmada com esta proclamação heróica. Nosso Manoel de Moraes foi um dos que aderiu, embora não pertencesse à tal nobreza, pois nesta altura explorava o pau-brasil sem pagar um tostão aos holandeses. Aderiu com fervor à revolta. Saiu à frente das tropas na batalha do Monte das Tabocas, em agosto de 1645, como capelão da guerra, crucifixo na mão, exortando a soldadesca a entoar a Salve Rainha. Pela Virgem Maria e por Santo Antônio, a insurreição pernambucana haveria de ser uma “guerra da liberdade divina”, grande lema dos rebeldes. Paz declarada, guerra fingida: 1645-1649 Vale inverter, nesta altura, o titulo do presente artigo, pois esta fórmula parece exprimir melhor o novo impasse estabelecido com a irrupção da “guerra da liberdade divina” em Pernambuco. Isto porque, oficialmente, Portugal e Paises Baixos estavam em paz arrastando negociações diplomáticas, sendo que os portugueses custaram a admitir o estado beligerante dos luso-brasileiros, preferindo atribuir as “alterações pernambucanas” à insesatez de poucos rebeldes. Fingia-se não haver a guerra que se travava no Brasil, ao menos enquanto esta farsa era possível de ser encenada. Mas no trancurso da rebelião, os endividados de Pernambuco haveriam de dar enorme ajuda à diplomacia portuguesa, ao deflagrarem a guerra restauradora. Diria mesmo que deram apoio crucial, a médio prazo, para a própria restauração no reino. Mas é claro que tais benefícios não seriam imediatos. Os holandeses protestaram muitíssimo contra a audácia da rebelião pernambucana e exigiram do embaixador português a imediata cessação das hostilidades e punição exemplar dos rebeldes. Neste ponto, a situação se inverteu. Francisco de Souza Coutinho prometia tudo aos 11 WÄTJEN, Hermann. O domínio colonial holandês no Brasil. (original de 1938). Recife: Companhia Editora de Pernambuco, 3a ed., 2004, p. 494 e segs. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 103 holandeses, mas não fazia nada. O governador da Bahia, Antônio Teles da Silva, prometia mandar tropas para conter os rebeldes pernambucanos e, na verdade, enviava reforços para a rebelião. O impasse durou alguns anos mais. Em 18 de setembro de 1645, por exemplo, com a capitulação holandesa no Forte Maurício, em Penedo, 200 prisioneiros de guerra foram enviados a Lisboa. Entre eles, seis judeus portugueses que, como súditos do Príncipe de Orange, estavam protegidos pelo acordo de 1641, e não podiam ser levados ao Santo Ofício. De nada valeu, outra vez, o acordo. D.Pedro da Silva e Sampaio, bispo da Bahia, mandou os presos para a Inquisição, do que resultou tremendo quiprocó diplomático. Pressionados pela Talmud Torá de Amsterdã, os embaixadores holandeses exigiram a imediata liberação dos presos. D.João IV pressionou a Inquisição, sua inimiga, que teimou em não liberar nenhum deles. O rei escreveu duas vezes para os holandeses dizendo que nada podia fazer em matéria de fé, que era foro privativo da Inquisição, prometendo, no entanto, fazer o possível para libertá-los. Os Estados Gerais exigiram a libertação de todos, sem exceção. D.João IV conseguiu liberar a metade. Os outros três judeus que permaneceram presos, saíram no auto-da-fé de dezembro de 1647, o mesmo, aliás, em que saiu o ex-jesuíta Manoel de Moraes. Vieira contestou frontalmente a Inquisição e, com isto, só fez acirrar o conflito entre jesuítas e inquisidores, bem como a oposição do Santo Ofício ao rei. Mas, em matéria diplomática, Vieira era mais prudente. Diante do avanço arrasador dos rebeldes pernambucanos nos Guararapes e da reconquista de Angola pelos portugueses, os holandeses ameaçaram entrar em guerra contra D.João IV. Estavam dispostos a bloquear Lisboa e até mesmo a se aliar com a Espanha. Inimiga histórica dos holandeses, a Espanha havia reconhecido, em 1648, a independência batava. Ainda antes da segunda batalha dos Guararapes, em julho de 1648, Sousa Coutinho recebeu exigências duríssimas dos comissários dos Estados Gerais. Entre outras, a restituição de todos os territórios que possuía a WIC em 1641, mais concessões territoriais na África e até a caução do morro de São Paulo, no litoral baiano; pesadas indenizações de guerra, incluindo o pagamento anual de mil caixas de açúcar, branco e mascavado, pelo prazo de dez anos; pagamento das dívidas que os colonos tinham com a WIC e particulares flamengos; neutralização de uma faixa de dez léguas na fronteira dos territórios holandeses, onde os portugueses não poderiam erigir fortificações. Francisco de Sousa Coutinho amoleceu, apoiado em Antônio Vieira, e resguardando o desejo pessoal de D.João IV. O rei preferia pagar aos holandeses ou perder de vez suas ricas possessões no Atlântico do que arriscar-se a perder a Coroa. De todo modo, o embaixador fez reparos pontuais às exigências holandesas, embora tenha concordado com o essencial delas, em documento firmado a 19 de agosto de 1648. ISBN 978-85-61586-70-5 104 IV Encontro Internacional de História Colonial Souza Coutinho e Vieira foram acusados de “Judas de Portugal” e de vendidos aos holandeses. Manoel de Moraes, embora alquebrado, acusou-os, sem citá-los, de “prendados dos holandeses”, logo ele, que tinha sido funcionário da WIC por oito anos! Manoel de Moraes, sempre atento às circunstânciais, apoiou os valentões liderados por Pedro Fernandes Monteiro, e pelo bispo de Elvas, D.Manoel da Cunha. Aos holandeses só restava fazer a guerra. Soberania brigantina, império possível: o Papel Forte de Vieira Antônio Vieira defendeu a diplomacia portuguesa no célebre parecer conhecido como Papel Forte, no início de 1649, insistindo na entrega do Brasil. Nele Vieira rebate cada um dos argumentos esgrimidos pelos “valentões”, sobretudo os do Procurador da Fazenda Real, Pedro Monteiro Fernandes. O texto distribui a matéria em quatro pontos, correspondentes, cada qual, a uma grande questão envolvida no debate. No primeiro ponto, Vieira defende o tratado firmado com os holandeses, refutando especialmente duas críticas dos “valentões”. Quanto à crítica de que, cedendo Pernambuco aos holandeses, Portugal estaria abandonando seus vassalos aos hereges, Vieira alegou que nem por isso faltariam padres católicos para zelar pelo alimento espiritual dos fiéis, como alias tinha ocorrido durante a maior parte do domínio holandês na região. Quanto à crítica de que a capitulação portuguesa interromperia o trabalho de propagação da fé entre os índios, Vieira replicou alegando que “já antes de lá irem os holandeses, não havia conversões nem propagações da fé por falta de gentios”. As aldeias da região, prossegue Vieira, eram de índios já cristãos e a maior parte deles tinha seguido Felipe Camarão no exílio baiano.12 Vieira certíssimo no primeiro ponto, pois o acordo firmado na Paraíba, firmado em 1634, tinha garantido liberdade de consciência e de culto para os portugueses que permanecessem nas conquistas holandesas. Foi mesmo admitida pelo Conselho Político do Recife, orgão máximo da WIC no Brasil, a presença de clérigos seculares e religiosos de diversas ordens, com exceção dos jesuítas. O célebre frei Manuel Calado do Salvador, autor de O valeroso Lucideno (1646), chegou a ser um dos interlocutores privilegiados, para não dizer amigo, de Maurício de Nassau.13 O mesmo não se pode dizer do argumento vieiriano relacionado à missionação. Antes de tudo porque havia grupos indígenas não catequizados, a exemplo dos tapuias, parte deles aliada dos holandeses na guerra pernambucana. Os tarairius, por exemplo, 12 Papel que fez o Padre Antônio Vieira a favor da entrega de Pernambuco aos holandeses. In: PÉCORA, Alcir (org). Escritos históricos e políticos do Padre Antônio Vieira. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 338-341. 13 MELLO, José Antônio Gonsalves de. Tempo dos flamengos: influência da ocupação holandesa na vida e na cultura do Norte do Brasil. (Original de 1947). Recife: Massangana, 3a ed. Aumentada, 1987. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 105 liderados pelo chefe Janduí, se destacaram no massacre de católicos perpetrado em Cunhaú e Uruaçú, no Rio Grande do Norte.14 Por outro lado, impossível desconhecer uma a cisão entre os potiguares: de um lado Felipe Camarão, de outro Pedro Poti, este último convertido ao calvinismo. A missionação calvinista junto aos índios potiguares e tabajaras tinha avançado bastante no período holandês,15 em parte ancorada nos métodos da Companhia de Jesus.16 Um dos principais jesuítas da missionação pernambucana, o padre Manoel de Moraes, foi talvez o grande artífice desta tradução do jesuitismo para o calvinismo, ao se passar para o lado holandês no final de 1634. Foi Manoel de Moraes quem propôs o Plano para o bom governo dos índios ao conselho diretor da WIC, em Amsterdã, em grande parte adotado pela Igreja Reformada em Pernambuco.17 Antônio Vieira não poderia ignorar esses fatos, sobretudo porque as conseqüências da conquista holandesa no tocante à religiosidade indígena foi matéria de vasta correspondência jesuítica inclusa no Codice Brasile depositado nos arquivos do Vaticano. De todo modo, se Vieira estava mal informado sobre o assunto, não tardaria a inteirar-se do problema como visitador da Companhia de Jesus nas partes do norte, nos anos 1550-1560. Chegaria a chamar a serra de Ibiapaba, no Ceará, de “Genebra dos sertões”, tamanha era a aparente obstinação calvinista dos tabajaras ali refugiados. Ainda na defesa do tratado, Vieira considerava que os insurretos se haviam rebelado por conta própria, sem consultar o monarca, de sorte que d.João IV não tinha nenhuma obrigação de socorrer os rebeldes. Ao argumento de que os rebeldes lutavam para erradicar a heresia da terra, Vieira replicou de modo implacável: os principais que moveram a guerra o fizeram “porque tinham tomado muito dinheiro aos holandeses e não puderam ou não o quiseram pagar”.18 Não resta dúvida de que Vieira estava coberto de razão nesse ponto. Na mesma linha de argumentação, Vieira condenou os pernambucanos por terem aberto nova frente de batalha, quando os portugueses já sofriam para sustentar a guerra contra a Espanha. Radicalizando sua oposição à revolta, desqualificou a tese de que holandeses deveriam restituir Pernambuco porque somente a tinham conquistado quando Portugal era dominado pela Espanha, inimigo comum de lusos e flamengos, 14 BOOGAART, Erns van den. Infernal Allies: the Dutch West India Company and the Tarairiu – 1631-1654. In: J. M. Siegen et al (orgs). A humanist prince in Europe and Brazil. The Hague: The Government Publishing Office, 1979, p. 519-538 15 SHALKWIJK, Frans Leonard. Igreja e Estado no Brasil Holandês. Recife: FUNDARPE, 1986. 16 RIBAS, Maria Aparecida Barreto. O leme espiritual do navio mercante: a missionação calvinista no Brasil holandês. Niterói: Tese de doutorado em História defendida na Universidade Federal Fluminense, 2007. 17 VAINFAS, Ronaldo. Traição…, p. 120-121. 18 Papel que fez o Padre Antônio Vieira…, p. 342. ISBN 978-85-61586-70-5 106 IV Encontro Internacional de História Colonial além de questionar o direito português àquelas capitanias unicamente com base na antiga concessão do papa (ratificada pelo Tratado de Tordesilhas). Adotando posição pragmática, afirmou sem rodeios que “o que dá ou tira os reinos do mundo é o direito das armas, cujas leis ou privilégios são mais largos; e segundo este direito, costumam capitular os príncipes quando um deles é menos poderoso”.19 Estava convencido, nessa altura dos acontecimentos, de que os holandeses tinham mesmo algum direito às capitanias conquistadas no Brasil e o melhor seria reconhecê-lo. Por outro lado, Vieira insistiu no fato de que “o levantamento da terra” tinha destruído boa parte da economia pernambucana, arruinado lavouras e engenhos. Se, antes da revolta, Pernambuco e demais capitanias da WIC produziam cerca de 1/3 as riquezas do Brasil, embora ocupasse território não superior a 10% do território colonial, depois dela tudo se tinha reduzido à metade. Não seria grande dano ceder território tão arruinado aos flamengos, pensava Vieira, além do que, em pouco tempo não haveria mais recursos ou mantimentos para sustentar a guerra no Brasil. O melhor era ceder, como o próprio Vieira fizera no tratado acordado em Haia. Tudo o que se gastasse com indenizações e concessões aos holandeses, inclusive no tráfico de escravos angolanos, seria pouco em relação aos benefícios de que o reino poderia desfrutar.20 No segundo ponto do Papel Forte, dedicado a contraditar os meios propostos pelos “valentões” para inviabilizar a restituição de Pernambuco, Vieira põe em dúvida o pretexto de que os moradores de Pernambuco se recusavam a consentir nela, bem como o presumido perigo dos pernambucanos buscarem o apoio de outro príncipe na falta de socorro português. Tudo isso, segundo Vieira, não passava de falácia. Também julgava inviável, nessa altura, tentar comprar Pernambuco “por três ou quatro milhões de cruzados”, simplesmente porque os holandeses não admitiam mais negociar com os portugueses em matéria territorial. Não confiavam na capacidade portuguesa de honrar a dívida. Não queriam perder as capitanias onde haviam investido tantos recursos. Não queriam ver manchada sua reputação internacional com tamanho vexame.21 A crise tinha chegado a tal ponto, segundo Vieira, que a única saída era aceitar o ultimatum holandês. Isto posto, Vieira não teve dúvida em recomendar a restituição, ao invés da guerra, ao dissertar sobre o terceiro ponto de seu Papel Forte. Considerou que a WIC ainda era muito mais poderosa do que imaginavam os defensores da guerra e, se Portugal insistisse em desafiá-la, os Estados holandeses se aliariam à companhia de comércio para derrotar Portugal e conquistar o Brasil inteiro. Facilmente os holandeses fariam duas Armadas, uma para atacar a costa portuguesa, outra para tomar o Rio de Janeiro 19 Ibidem, p. 346. Ibidem, p. 349-354. 21 Ibidem, p. 364-366. 20 ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 107 e a Bahia.22 Vieira realmente substimava a capacidade de resistência dos lusobrasileiros e superestimava o poderio holandês. Parecia esquecer-se da resistência baiana em 1625, na célebre Jornada dos Vassalos, ou do fracasso da expedição contra a mesma Bahia, em 1638, comandada por Maurício de Nassau. A Bahia, por exemplo, tinha sempre resistido aos ataques holandeses. E os holandeses estavam praticamente reduzidos a Recife e Olinda em 1649. Mas Vieira não estava interessado em valorizar as vitórias de uma guerra condenava. Temia, sim, pela sorte de Portugal, exclusivamente empenhado em preservar a coroa de d.joão IV. Seu grande receio era perder a guerra contra a Espanha, sobretudo se o reino fosse obrigado a enfrentar uma guerra marítima contra a Holanda. Utilizando sua brilhante retórica Vieira afirmou: “O maior reino que tem hoje a Europa, mais rico e mais poderoso, mais unido e menos exposto a seus inimigos, é o de França; o menos rico, o menos poderoso e o mais dividido e mais exposto é o nosso; e é coisa muito para maravilhar que se não atreva França com Castela e Holanda, e que nos atrevamos nós”.23 No quarto e último ponto, Vieira se dedica a enumerar com detalhes as fragilidades militares de Portugal, comentando as condições da Armada e o estado de 87 praças e fortalezas no Brasil, África e Ásia. Descontado o exagero derrotista, Vieira traçou excelente retrato da precariedade defensiva do império português. Neste particular, Vieira não se esqueceu das derrotas, como a da Armada do Conde da Torre, entre outros desastres militares.24 O parecer final que deu ao rei foi, portanto, favorável à entrega de Pernambuco, Paraíba, Itamaracá e Rio Grande do Norte aos holandeses, e mais o Sergipe, exceto uma terça parte dele a ser comprada por dinheiro. Além disso, apoiava o pagamento das dívidas que os moradores tinham contraído junto à WIC, assegurando ser possível renegociá-las em prazos mais largos ou com pagamentos em açúcar. Vieira também recomendava ceder na questão angolana, facilitando o tráfico de escravos para Pernambuco e admitindo que os holandeses erigissem fortaleza em Angola.25 Também os súditos do Príncipe de Orange presos pelo Santo Ofício deveriam ser libertados, se os houvesse, como exigiam os Estados Gerais. No entender de Vieira, Portugal não tinha a menor condição de garantir sua soberania em face da Espanha e, ao mesmo tempo, enfrentar a Holanda nos mares. Não tinha homens, não tinha dinheiro, não tinha navios e, se escolhesse este caminho suicida, não teria juízo também. Mais sensato seria entregar Pernambuco e demais capitanias nordestinas aos holandeses e concentrar esforços na Bahia e capitanias do sul, sobretudo Rio de Janeiro. Vieira considerava que muito bem fariam os senhores 22 Ibidem, p. 367-368. Ibidem, p. 371. 24 Ibidem, p. 379-398. 25 Ibidem, p. 399-400. 23 ISBN 978-85-61586-70-5 108 IV Encontro Internacional de História Colonial pernambucanos ou paraibanos se migrassem para a Bahia ou para o Rio, levando consigo suas fazendas e seus escravos. Garantido o tráfico com Angola, dizia Vieira, esta parte da América continuaria a florescer para o bem de Portugal. Em termos estritamente politicos, Vieira parecia trabalhar com a noção de um “império possível” que nada lembra o Quinto Império por ele anunciado na sua obra providencialista. Estaria Vieira rascunhando, neste arrazoado, a idéia de um império colonial português centrado no Atlântico Sul?26 O desfecho do imbroglio: nobreza da terra, henriques e camarões Poucas palavras para concluir, começando por dizer que este tremendo problema militar e diplomático não foi resolvido na corte portuguesa, entre pareceres e reuniões. Nem com o Papel forte de Vieira, nem com o papel fraco de Manoel de Moraes. Resolveu-o, em primeiro lugar, a Inglaterra de Cromwell, que declarou guerra à Holanda, em 1652, inviabilizando o esforço de guerra holandês no Pernambuco. Salvador Correia de Sá, em segundo lugar, deu também contribuição enorme, ao reconquistar Luanda, Benguela e São Tomé, em 1648, retirando dos holandeses o controle do tráfico africano. E, por fim, os generais da insurreição pernambucana deram o golpe decisivo. João Fernandes Vieira, André Vidal de Negreiros e Martim Soares Moreno, pela nobreza da terra. Felipe Camarão, à frente dos índios potiguares, com o pomposo título de “governador geral de todos os índios do Brasil”. Henrique Dias, general do Terço negro, com seu título barroco de “governador dos negros, crioulos e mulatos do Brasil”. A Insurreição Pernambucana fez pela restauração mais do que todos os diplomatas de D. João IV. 26 Quase um século depois, Nas Instruções Inéditas a Marco António de Azevedo Coutinho, d. Luís da Cunha afirmou que por ser “florentíssimo e bem povoado aquele imenso continente do Brasil”, deveria o rei de Portugal tomar o título de “imperador do Ocidente” indo ali estabelecer-se. E, disse mais, que “o lugar mais próprio para sua residência seria a cidade do Rio de Janeiro que, em pouco tempo viria a ser mais opulenta que a de Lisboa”. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 109 De corpo e alma: o vínculo entre freiras e confessores nos conventos portugueses do século XVIII Georgina Silva dos Santos1 Em 1497, graças a uma conversão coletiva, súbita e involuntária, ordenada pelo rei D. Manoel, os judeus portugueses passaram todos de uma única vez à condição de cristãos-novos. Desde então, as lideranças religiosas de origem judaica atuaram na clandestinidade, com relativa tolerância das autoridades portuguesas, até o estabelecimento da Inquisição, em 1536. Diferentemente do caso espanhol, onde os nichos judaizantes estavam praticamente erradicados nas primeiras décadas do século XVI, devido à repressão inquisitorial iniciada em 1480, em Portugal, os núcleos criptojudaicos mantiveram-se ativos durante o Quinhentos. A perseguição implacável do Santo Oficio levou muitos cristãos-novos à fogueira e condenou centenas ao degredo no ultramar, deflagrando uma diáspora. Para escapar das malhas da Inquisição, muitos descendentes dos judeus espanhóis exilados em Portugal, em 1492, buscaram abrigo na Espanha quando se deu a União Ibérica (1580- 1640);2 outros atravessaram a fronteira em direção ao Império Otomano; alguns partiram para o norte da África; uns se estabeleceram na América; outros tantos se deslocaram para o norte da Europa, radicando-se em Amsterdã, onde regressaram ao judaísmo.3 Nos limites do Império português, o culto à lembrança dos ancestrais perpetuouse na recordação das vicissitudes sofridas pela imposição do batismo cristão e pela manutenção de práticas e crenças de origem judaica, transmitidas pelo grupo familiar. Restrito aos domínios da oralidade, confinado ao espaço privado e aos limites da ilegalidade, o judaísmo foi paulatinamente reduzido à celebração de certas datas comemorativas, à observância de interdições alimentares e de ritos funerários. Neste circuito, as mulheres desempenhavam papel importantíssimo. Fosse porque no Antigo Regime o gênero feminino definia-se, essencialmente, pela condição de esposa e mãe, fosse porque a desarticulação dos pólos de doutrinação do judaísmo flexibilizou a divisão dos papéis masculino e feminino na transmissão da Lei. 1 Universidade Federal Fluminense. A eficácia dos tribunais espanhóis em erradicar os nichos judaizantes no século XV havia abrandado a onda de perseguições e deixado como legado um marranismo residual que ganhou novo fôlego com o afluxo de criptojudeus portugueses. A chegada destes grupos desencadeou, entretanto, nova vaga de prisões e condenações que atravessou os séculos XVI e XVII. 3 KAPLAN, Yosef. Judíos Nuevos em Amsterdam – estudio sobre la historia social e intelectual del judaismo sefardí em el siglo XVII. Barcelona: editorial Gedisa, 1996. 2 ISBN 978-85-61586-70-5 110 IV Encontro Internacional de História Colonial A base doméstica do criptojudaísmo permitiu às mulheres o exercício de uma liderança religiosa estranha à religião hebraica. Distantes da parentela de origem, simularam o papel de “rabi” na família que formaram, em educandários ou em conventos, onde reproduziram o que viram e ouviram na casa paterna. Circulando entre espaços regulados pelo Estado ou pela Igreja, estas mulheres atuaram como “intermediários culturais” e foram agentes fundamentais na produção da linguagem religiosa marrana. A sobrevivência material, a intenção de superar a indigência social e a necessidade imperiosa de escapar às garras da Inquisição levaram muitos cristãos-novos a fraudar genealogias, a casar suas filhas com cristãos-velhos ou encaminhá-las para ordens religiosas. A trajetória de freiras de origem judaica revela estratégias de integração social das famílias de cristãos-novos em Portugal durante o século XVII e traços de uma religiosidade híbrida, tipicamente marrana, que encontrou no ambiente conventual um espaço privilegiado para sua propagação. A memória oficial descreveu, no entanto, a população feminina residente nos conventos portugueses como mulheres de origem fidalga, obedientes à regra monástica e célebres por sua reputação impoluta. As leis da cancelaria régia, as visitas episcopais e os fundos documentais dos tribunais da Inquisição lusa, onde a questão do judaísmo foi preocupação central, superando de longe quaisquer das outras práticas heréticas perseguidas pelo Santo Ofício, revelam, porém, outra face da vida conventual destes tempos. As conversações com homens e mulheres estranhos às comunidades religiosas nas grades do locutório e a existência de casas particulares nos domínios dos mosteiros, facultavam o descumprimento dos votos de obediência, pobreza e castidade, facilitando, inclusive, a formação de conventículos compostos por freiras de origem cristã-nova, divididas entre a religião judaica e a cristã. Entre 1605 e 1674, pelo menos 76 freiras cristãs-novas, de véu preto, foram levadas aos cárceres do Santo Ofício. Ou seja, entre o perdão geral de 1605 concedido pelo papa em benefício da comunidade de cristãos-novos e negociado a peso de ouro ( 1 milhão e 700 mil cruzados), pelo rei Filipe III - e a suspensão do tribunal do Santo Ofício pelo sumo pontífice, em 1674, no reinado de d. Afonso VI, a maioria das investidas da Inquisição no ambiente conventual foram motivadas pela busca e apreensão de religiosas judaizantes. Com a reputação arranhada após a suspensão das atividades até 1681, o tribunal refreou a perseguição às freiras cristãsnovas, até mesmo porque muitos conventos passaram a adotar a limpeza de sangue como um dos critérios de admissão das internas. O marranismo conventual, ao que tudo indica, foi um fenômeno seiscentista, estimulado pelos perdões gerais e inibido posteriormente pelo triunfo da segregação racial imposta às cristãs-novas. Mas o interesse da Inquisição sobre o ambiente monástico feminino manteve-se no século seguinte. Concentra-se, em fins do século XVII e na primeira metade do século XVIII, na disseminação da doutrina ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 111 molinosista, decorrente muitas vezes da relação que as freiras mantinham com seus confessores. Ao contrário do pietismo, corrente religiosa que sublinhava a importância da autodisciplina, do rigor ascético, da obediência aos preceitos da Igreja tridentina para atingir a santidade e obter a comunhão com Deus, o molinosismo baseava-se no quietismo. Tinha, portanto, como princípio a completa submissão à vontade divina, enxergando o homem como um produto passivo da vontade de Deus, razão pela qual seria inútil seu esforço pessoal para obter a santificação. Para atingir um estado completo de paz e de arrebatamento espiritual, o Guia Espiritual do teólogo Miguel de Molinos ( 1628-1696), publicado, em Roma, em 1675, recomendava a oração mental, a suspensão da palavra e a contemplação para alcançar a união mística. Molinos punha em cheque assim “a indolência da tradição”, ou melhor, o ascetismo severo e a repetição mecânica de fórmulas tradicionais para atingir a comunhão espiritual com Deus. Embora sua intenção fosse apenas “abstratizar ao máximo a relação teofânica”,4 dispensando os condicionamentos formais da devoção, ou seja, a ascese repetitiva e mortificante, sua doutrina foi considerada herética. A bula pontifícia que condenou o molinosismo, em 1687, acusou seu mentor de fomentar o desprezo à prática das virtudes e de estimular a ociosidade espiritual por valorizar em demasia a passividade. Acusou-o também de suspender o freio moral dos fiéis estimulando-os à irresponsabilidade, à desobediência e ao desregramento sexual. Submetido à torturas, Molinos capitulou diante dos inquisidores e admitiu as acusações que lhe eram imputadas. Foi condenado por imoralidade e heterodoxia e recebeu por sentença recitar, diariamente, as orações do credo e do terço, além de confessar-se quatro vezes por ano e de se manter em reclusão perpétua. Forçado a cumprir as práticas que contestara e julgava inúteis, Molinos acabou por falecer nove anos depois nas masmorras de um monastério romano. O Guia Espiritual assinado por Molinos foi interpretado de maneira diversa pelos jesuítas que urdiram sua prisão e que viram no discurso do padre aragonês a completa desculpabilização da união sexual, inclusive, entre aqueles que envergavam o hábito de uma ordem monástica. Seus algozes não foram os únicos a interpretarem deste modo os ensinamentos de Molinos, reduzindo sua doutrina à erotização da vida religiosa. Em Portugal, o molinosismo conventual foi reduzido ao descumprimento dos votos de obediência e castidade assumidos por homens e mulheres ao ingressarem em sua congregação. Em 1720, pelo menos quatro monjas do Convento de Santa Clara do Porto já haviam sido seduzidas pelo discurso do sacerdote molinosista Frei João de Deus: Madre Anna do Rosário, Madre Maria da Piedade, Madre Joana de Jesus e Madre 4 DE LA FLOR, Fernando Rodriguez Apud TAVARES, Pedro Villas Boas. Beatas, Inquisidores e Teólogos - reação portuguesa a Miguel de Molinos. Porto: Edição do Centro Inter-Universitário de História da Espiritualidade, 2005, p. 92. ISBN 978-85-61586-70-5 IV Encontro Internacional de História Colonial 112 Luzia das Chagas.5 Em juízo, perante os inquisidores do tribunal do Santo Ofício de Coimbra, o padre confessou que em certa ocasião tocou o “vaso natural” da Madre Joana de Jesus, “famosa na virtude, tida e havida e por tal reputada”, à vista de outras religiosas. Advogou que não procurava escândalo e se o fizera fora para alívio de sua natureza e como “remédio” e “medicina espiritual”, tal como faziam os cirurgiões, que nos casos de enfermidade apalpavam e molhavam a mão no “vaso natural” das mulheres. Para justificar a intimidade, o frei lembrou aos inquisidores que por serem freiras, as senhoras sentiam-se mais à vontade com seu “padre espiritual” para tocar em secreto suas partes pudendas do que com um médico propriamente. As práticas heterodoxas de medicina espiritual empreendidas pelo sacerdote para curar as clarissas do Porto repetiram-se com outras freiras de outras congregações religiosas do Minho. Em todas as circunstâncias, frei João de Deus identificou-se como um “padre”espiritual que ministrava remédios espirituais às senhoras que se diziam doentes da madre, em geral, com mais de 60 anos. Tendo ele mesmo 73 anos de idade pode-se supor que o tratamento dispensado às freiras não fossem apenas molícies de um jogo erótico. É possível que se tratasse de fato de uma leitura simplificada das idéias de Molinos, cujos ensinamentos “democratizavam”o acesso à santidade. Frei João de Deus tinha pretensão de taumatúrgico e dizia ser capaz de operar milagres. Por isso senhoras sexagenárias deixavam-se tocar por ele. Em um de seus depoimentos, o sacerdote afirma que Madre Joana das Chagas e Madre Luiza das Chagas levaram espontaneamente sua mão às suas partes pudendas e que “lhe saíra a mão toda cheia de peçonha, das mesmas matérias que já têm expelido as pessoas de espírito”. O frei defendia, portanto, que lhes havia curado de algum mal apenas com o toque. A mística do Frei João de Deus substituía a ascese rigorosa pelo afago ligeiro no sexo feminino. A intenção era a de aliviar o corpo de alguma tensão ou mal estar de modo a apascentar o espírito. Seria precoce estender esta análise além do exposto, tendo em vista que os processos ainda não foram lidos integralmente e que há ainda muito a investigar. Entretanto, cabe aqui registrar um dado que merecerá atenção futuramente. Os processos que descrevem práticas religiosas típicas do molinosismo são classificadas pelo Santo Ofício como “molinismo”. Sabe-se, entretanto, que os dois vocábulos não são sinônimos. O molinismo, doutrina propagada pelo jesuíta espanhol João de Molina ( 1535-1600), tentava conciliar o livre arbítrio à graça e à onisciência divinas e nada tinha a ver com a doutrina de Miguel de Molinos. Resta saber se a troca dos termos foi acidental e deve ser atribuída à ignorância dos inquisidores nesta matéria ou à desconfiança de que os processos envolvendo as freiras não se encaixavam por algum motivo na heresia condenada por Roma. 5 ANTT, Inquisição de Coimbra, processo 8893. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 113 Seja como for, o molinosismo se disseminou, em Portugal, entre os dois gêneros, em diferentes etnias e status social, mas alcançou, em especial, os membros das ordens religiosas regulares e congregações seculares sob o patrocínio das ordens terceiras, mesmo depois de sua condenação por Roma, em 1687. Cabe considerar que os membros do clero feminino e masculino ingressavam no clero, em sua maioria, a contragosto e a leitura enviesada da doutrina de Molinos facultava o erotismo da vida religiosa, pois o padre aragonês afirmara que Deus permitia ao demônio entrar nos corpos de certos homens puros, levando-os a cometer o pecado carnal, para humilhá-los e conduzi-los à verdadeira transformação. Uma vez que se tratava de uma “invasão”, “as ações não constituíam pecado, pois não havia consentimento”.6 Explica-se assim a superposição entre a acusação de molinosismo e pacto demoníaco, que se encontra no caso da terceira Madre Joana Maria de Jesus, natural e residente em Viseu, provavelmente em algum recolhimento, de 40 anos, e processada pelo Santo Ofício em janeiro de 1719. Madre Joana confessou ao seu diretor espiritual, o padre Amaro de Almeida, que sofria com o assédio do demônio , que a “perseguia com luxurias e lhe fazia poluções”. Segundo o confessor, a terceira pretendia que ele ajudasse nas perseguições, colocando sua mão em suas partes pudendas para que se apoderasse dela. 7 O desconforto provocado pela observância das horas canônicas, pelos exercícios de mortificação impostos como penitência espiritual, assim como a observância da ascese nem sempre foram observados, como demonstram as visitas episcopais aos conventos femininos.8 A liberdade concedida ao uso e (abuso) do espaço conventual recorda ao observador que embora o objetivo primevo das casas religiosas fosse a oração e o trabalho, sua função para a sociedade portuguesa era outra: a de evitar a partilha dos bens de raiz entre os filhos, garantindo o direito de morgadio ao varão primogênito.9 A separação involuntária da casa paterna provocava tristeza nas jovens e às vezes também nos próprios pais. O ingresso de uma moça no convento era considerado, no século XVIII, uma espécie de morte civil. Ao escrever para o irmão, em 1728, o 4O Conde de Tarouca expressou-se assim ao lamentar a partida da filha para um mosteiro: “para o gosto e trato é quase a mesma coisa estar freira ou estar morta”.10 6 HUNERMMAN, Peter & HOFMMAN, Joseph Apud BELLINI, Ligia. Cultura religiosa e heresia em Portugal no Antigo Regime: notas para uma interpretação do molinosismo. Estudos Ibero-Americanos, vol. XXXII, n. 2, p. 193, 2006. 7 ANTT, Inquisição de Lisboa, processo 8280. 8 ANTT, Mosteiro de Sant’Anna de Coimbra – Livro de Visitas do Bispo. 9 MONTEIRO, Nuno Gonçalo. As famílias e os indivíduos: casa, casamento e nome. In: História da Vida Privada em Portugal. Lisboa: Círculo de Leitores, 2010, p. 137 10 Ibidem, p. 141. ISBN 978-85-61586-70-5 114 IV Encontro Internacional de História Colonial Embora os mosteiros fossem instituições totais, portanto, reguladas por normas fixas e habitadas por uma população com horários definidos e funções específicas,11 os critérios utilizados para a admissão das internas eram, muitas vezes, incompatíveis com a natureza dos serviços conventuais, que exigiam uma postura calcada na devoção espiritual e na instrução religiosa. É sabido que muitas freiras e recolhidas redefiniram o espaço de confinamento a que estavam sujeitas, dando-lhe outro sentido com a conivência das autoridades religiosas. Cientes da falta de talento de muitas internas para os ofícios divinos, bispos e prelados das ordens regulares eram tolerantes com o comportamento heteróclito das freiras, fazendo vista grossa para as visitas masculinas na grade, no coro e no ralo do convento. O amor freirático, tantas vezes cantado e criticado por Frei Lucas de Santa Catarina,12 era um produto das regras matrimoniais vigentes na sociedade lusa e por isso era alimentado gerações a fio pelos membros da nobreza e segmentos intermédios. Os conventos portugueses da época moderna abrigaram desregramentos de variado tipo e infratores de variegado jaez, obrigando a Coroa a arbitrar sobre a matéria. No rol de leis da chancelaria régia do século XVII (1653) estão previstas penas graves para quem perturbasse a paz conventual, aliciando as freiras.13 Qualquer pessoa, de qualquer qualidade ou condição, que fosse achada em algum mosteiro ou fosse acusada com provas de nele ter estado, durante o dia ou à noite, ou que fosse surpreendida noutra parte com alguma religiosa em cópula carnal, pagaria com a própria vida pela ousadia, depois de pagar 500 cruzados ao convento pela ofensa. Os que levassem recados e cartas para arranjar encontros também pagariam caro pela alcovitagem. Seriam primeiro açoitados publicamente e, após o castigo, sendo homens passariam sete anos nas galés e se mulheres cumpririam sete anos de degredo no Brasil. Aqueles que abrigassem freiras fujonas teriam destino semelhante: dois anos de degredo nas partes da África, além de pagar duzentos cruzados. A metade cabia ao acusador e outra seria destinada aos cativos. O trânsito das freiras era também terminantemente proibido sem a licença do prelado, mesmo que o objetivo fosse a visita à casa dos pais ou dos irmãos. O rigor das penas é um indício do quanto eram habituais as transgressões às normas conventuais no Seiscentos e demonstram o quanto as instituições totais produzem, por si mesmas, focos de resistência, quando o ingresso do novato é involuntário. As fugas, os encontros amorosos às escondidas e mesmo o 11 GOFFMAN, Erwin. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Editora Perspectiva, 2003, p. 17-18. 12 RODRIGUES, Graça de Almeida. Literatura e Sociedade na Obra de Frei Lucas de Santa Catarina ( 1660-1740). Lisboa: Imprensa Nacional- Casa da Moeda, 1983. 13 BNL. Lei sobre o comportamento durante as visitas aos conventos de freiras, [s.l:s.n], 1653. Título factício. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 115 molinosismo revelam a total inadequação das internas à vida nos conventos ou um ajuste às imposições do claustro. O controle das visitas, mais ou menos espaçadas, a proibição do contato com o mundo externo, sem a supervisão devida, a obrigatoriedade da touca branca sob o véu cobrindo a testa, o pescoço e as queixadas,14 visavam a ruptura da noviça com sua história pregressa, com os papéis sociais exercidos anteriormente e sua completa adaptação à nova realidade. O uso de novas vestimentas, a tonsura, a rotina de confissões e a mea culpa procuravam sublinhar todo o tempo a semelhança entre as integrantes do corpo conventual, facilitando às dirigentes o controle sobre o grupo. No limite, pode-se dizer que o cotidiano nos claustros portugueses engendrou, ideais de santidade e de expressão religiosa nada ortodoxos, ajustados à realidade da vida conventual feminina. Criminalizados pela Inquisição, esses comportamentos suscitaram atenção diferenciada do Santo Ofício, ocupando tempos distintos na cronologia persecutória do tribunal. Os casos de criptojudaísmo ocorreram entre o perdão geral comprado ao rei Filipe III, em 1605, e a suspensão das atividades do tribunal, em 1674, seguida da adoção da limpeza de sangue como critério para ingresso nas casas monásticas femininas. A medida levou à diminuição dos casos de criptojudaísmo nos conventos e voltou a atenção da Inquisição para a heresia molinosista. O molinosismo grassou entre os conventos femininos no setecentos, numa versão simplificada, que desculpabilizava a vida sexual das freiras, pois ajustava-se ao perfil da esmagadora maioria das internas, cujo ingresso desconsiderava a vocação das postulantes para o ofício religioso. 14 Constituiçoens Geraes pera todas as freiras e religiosas sojeitas a obediencia da Ordem de N.P.S. Francisco… fls. 32, 39 e 41. ISBN 978-85-61586-70-5 116 IV Encontro Internacional de História Colonial Jesuítas: “os mais perigosos inimigos” da West Indische Compagnie na América Portuguesa (1624-1654) Mário Fernandes Correia Branco1 Em fins de maio de 1624, o padre Domingos Coelho, Provincial da Companhia de Jesus no Brasil, então exercendo seus últimos dias de mandato, voltava à capital colonial acompanhado de outros religiosos. O Provincial encerrava uma viagem de inspeção às sedes dos jesuítas situadas nas capitanias ao sul da colônia. A fragata na qual viajava já se encontrava no litoral da Bahia, quando foi capturada por uma nau holandesa, pertencente à esquadra enviada pelas Províncias Unidas, cujas tropas haviam ocupado a cidade de Salvador, poucos dias antes. Durante todo o tempo em que ficou aprisionado no porão de uma das embarcações holandesas, fundeadas no porto de Salvador, o Provincial dos jesuítas foi mantido sob a mais estrita e severa vigilância e submetido a vários interrogatórios. Durante uma daquelas intermináveis sessões, o padre Domingos Coelho dirigiu-se a um de seus captores e perguntou-lhe a razão para a prisão dos jesuítas. O holandês retrucou prontamente, ‘vocês sabem demais, vocês escrevem demais. ’ Esta comunicação trata exatamente destes padres que sabiam demais e da repressão que os religiosos da Companhia de Jesus sofreram por parte das tropas das Províncias Unidas, enviadas ao nordeste brasileiro em 1624 e 1630.2 A história da presença holandesa no Brasil do século XVII tornou-se um tema bastante frequentado, graças, sobretudo, à vasta e qualificada bibliografia que suscitou. Do mesmo modo, a disponibilidade de fontes impressas contribuiu para que novas e instigantes abordagens fossem desenvolvidas, particularmente no que tange às nuances daquele período que constam dos registros produzidos durante as lutas que matizaram o Brasil holandês entre 1624 e 1654. Quanto às fontes jesuíticas, desde os primeiros momentos de sua existência canônica, as determinações emanadas pela alta direção da Companhia de Jesus, em Roma, contribuíram decisivamente para o estabelecimento de uma vasta e eficiente rede de informações, cuja abrangência geográfica alcançava todos os quadrantes de sua expansão. De fato, a partir de 1556, nas Constituições da Companhia de Jesus, foram estabelecidas institucionalmente e normatizadas a frequência da circulação das cartas e a relevância dos assuntos que deveriam ser prioritariamente enviados para a sede dos inacianos em Roma. Tal iniciativa concedeu às cartas jesuíticas o status de documentação chave para a compreensão das dinâmicas administrativas e missionárias dos inacianos. 1 Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense. Bolsista de Pós-Doutorado (PAPD – Capes / Faperj). Professor Visitante na Universidade Federal Fluminense. 2 Archivum Romanum Societatis Iesu. Códice Brasilia 8, 352,355. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 117 Por conseguinte, seus missionários tornaram-se os agentes e os observadores privilegiados da expansão jesuítica, cuja abrangência, nos séculos seguintes, alcançou escala planetária. Nesse sentido, os jesuítas constituíram-se nos verdadeiros postos de vanguarda do avanço missionário da Igreja Católica. No entanto, penso que outro fator merece destaque na correspondência dos Companheiros de Jesus. Refiro-me à eficiência que os seus integrantes demonstraram para a coleta e o registro sistemático de informações. Essa característica se desenvolveu ao máximo, graças ao elevado grau de conhecimento que os inacianos adquiriram acerca das peculiaridades do cotidiano, da língua e dos costumes das populações nativas, que habitavam originalmente as terras onde os religiosos passaram a atuar. Já no século XVII, diante da conjuntura de enfrentamento armado contra os holandeses no Brasil, não só em 1624, na Bahia, mas principalmente, a partir de 1630, na capitania de Pernambuco e nas demais regiões produtoras de açúcar do nordeste brasileiro, o sistema de informações dos jesuítas foi levado ao limite. De fato, durante a guerra de conquista desencadeada pelas tropas e navios das Províncias Unidas, as cartas dos jesuítas tiveram de cumprir um papel muito mais amplo do que aquele que se poderia esperar de um simples meio de comunicação institucional interna. Os missionários da Companhia de Jesus constituíram-se nos elementos primordiais para a montagem de um eficiente serviço de inteligência, que atuou infiltrado nas áreas dominadas pelos invasores calvinistas, contribuindo decisivamente para a expulsão dos holandeses em 1654. Como se sabe, a maior parte da documentação produzida pelos missionários da Companhia de Jesus repousa atualmente no Archivum Romanum Societatis Iesu. Dentre todo este acervo, destaco os códices Brasilia 5 e Brasilia 8, nos quais se pode consultar boa parte das cartas escritas pelos missionários que viveram o período das lutas contra os holandeses. No entanto, alguns destes documentos jesuíticos também podem ser encontrados nos Anais da Biblioteca Nacional. Esse é o caso, por exemplo, da Relaçam Verdadeira da tomada da Villa de Olinda e lugar do Recife. Ao que tudo indica, foi provavelmente escrito por um dos jesuítas que então viviam do Colégio de Olinda.3 Afortunadamente, no entanto, a exemplo do que também ocorreu com as cartas escritas pelos jesuítas que missionaram no Brasil do século XVI, boa parte da correspondência jesuítica produzida entre 1600 e 1630, encontra-se publicada graças ao profícuo trabalho do insigne historiador jesuíta, o padre doutor Serafim Leite 3 Relaçam Verdadeira e breue da tomada da Villa de Olinda e lugar do Recife na costa do Brazil pellos rebeldes de Olanda, tirada de huma carta que escreveo hum Religioso de muyta authoridade, & que foy testemunha de vista de quase todo o socedido: & assi o affirma, & jura; & do mais que depois disso socedeo té os dezoito de Abril deste prezente & fatal anno de 1630. [original de 1630]. Annaes da Bibliotheca Nacional do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, vol. 20, p. 125-132, 1898. ISBN 978-85-61586-70-5 118 IV Encontro Internacional de História Colonial (1890-1969). Em sua monumental História da Companhia de Jesus, Assistência de Portugal, 1549-1760, podem ser consultadas algumas cartas escritas pelos jesuítas que testemunharam o ataque desfechado pelos holandeses sobre a cidade de Salvador. Do mesmo modo, também podem ser consultadas outras cartas que trazem os relatos, em primeira mão, acerca das lutas pela reconquista da cidade de Salvador em 1625. De fato, a análise destas cartas permite perceber, numa chave de leitura religiosa, o testemunho vivo dos missionários, pois, apesar de todas as vicissitudes que enfrentaram, buscaram realçar em seus escritos o favor divino concedido aos Companheiros de Jesus e seus aliados, nas lutas contra as hostes dos invasores calvinistas.4 Os religiosos da ordem inaciana participaram de todas as fases da guerra de resistência movida contra as tropas das Províncias Unidas. Na verdade, é preciso reconhecer que desde 1624, quando do primeiro ataque à cidade de Salvador pelos soldados da West Indische Compagnie, os jesuítas apoiaram incondicionalmente as forças coloniais que se defrontaram com os holandeses. Um inestimável auxílio que se manteve até que a capital colonial do Brasil fosse reconquistada, em 1625. Posteriormente, já a partir de 1630, os missionários da Companhia de Jesus atuaram de maneira semelhante na ‘guerra de Pernambuco’. Durante aquele longo conflito, é forçoso reconhecer que, apesar de todas as atividades realizadas pelos inacianos, durante as lutas contra a dominação holandesa, inúmeros cronistas das guerras de Pernambuco pouco, ou quase nada, relataram sobre as ações dos religiosos da Companhia de Jesus. As poucas referências que eventualmente surgem, aqui e ali, nos textos produzidos naquela época, quando muito, se referem apenas às atividades dos jesuítas ligadas mais diretamente aos encargos específicos dos religiosos, tais como confissões, missas e procissões. Desde então, permaneceu o silêncio e a omissão acerca das ações que foram inspiradas, conduzidas ou realizadas pelos Soldados de Cristo. Todavia, desarmados os espíritos, creio que não se pode menosprezar a contribuição ao trabalho dos historiadores, a partir dos relatos escritos pelos cronistas e pelos religiosos. De fato, foi a partir das informações contidas em suas obras, muitas delas escritas no calor dos acontecimentos, que se tornou possível aos historiadores desenvolverem suas análises, permitindo-lhes entender, explicar, e resgatar, na medida do possível, as nuances daquela realidade distante. Numa abordagem mais propriamente histórica, também é possível notar que as cartas escritas pelos padres da Companhia de Jesus, são documentos preciosos sobre o cotidiano daquela época conflituosa. Graças à riqueza de detalhes divulgados pelos missionários em suas cartas, é possível ao leitor atento, vislumbrar, para além do pano de fundo do cenário colonial, o ambiente de incertezas, dificuldades e perigos 4 LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil, Assistência de Portugal, 1549-1760. Lisboa: Portugália; Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1938-1950. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 119 que matizou a atividade dos jesuítas. Do mesmo modo, também podem ser contextualizadas as ações de todos aqueles homens e mulheres que combateram as tropas holandesas. Quanto à West-Indische Compagnie, [Companhia das Índias Ocidentais], desde sua criação, em junho de 1621,ela sempre se manteve fiel aos seus objetivos de colonização e comércio mediante conquista. Seu alvo prioritário era a ocupação dos territórios pertencentes à coroa espanhola nas Américas. Por conseguinte, em 1624, a WIC atacou e ocupou a cidade de Salvador, sede da administração colonial. No entanto, a permanência de suas tropas foi efêmera, pois, a capital foi reconquistada em 1625, no episódio que passou à história com o pomposo título ‘Jornada dos Vassalos’, cujo comando coube ao fidalgo, D. Fradique de Toledo Osório. Dentre os inacianos que viveram aquele período conturbado encontrava-se Antônio Vieira, que embora tenha nascido em Portugal no ano de 1608, veio para o Brasil ainda criança. A partir de então, Vieira seguiu a mesma trajetória da maior parte dos filhos dos colonos e dos funcionários da administração régia, tornando-se aluno externo dos inacianos. Contra o desejo paterno, segundo afirmam alguns de seus biógrafos, aos quinze anos de idade solicitou seu ingresso formal na Companhia de Jesus, sendo recebido no Colégio da Bahia pelo padre Fernão Cardim.5 Em 1624, Antônio Vieira iniciava sua vida religiosa como escolástico no Colégio da Bahia quando a cidade de Salvador foi tomada pelos holandeses. Em virtude da fragorosa derrota sofrida pelos defensores da capital colonial e perante o inexorável avanço das tropas da West Indische Compagnie, Vieira, a exemplo dos demais jesuítas que ali viviam, teve que abandonar a cidade. A retirada foi realizada durante a noite e sob uma forte comoção popular, agravada pelo incontrolável pânico que se estabeleceu, inclusive entre os soldados das tropas coloniais que deveriam defender a cidade contra a investida dos holandeses. Após inúmeras peripécias os religiosos da Companhia de Jesus finalmente conseguiram refúgio nas aldeias indígenas de São João e Espírito Santo, localizadas a poucas léguas de distância de Salvador. A debandada dos jesuítas em direção às aldeias que mantinham no interior da capitania seguiu um modus operandi previamente estabelecido. De fato, basta lembrar que desde o início de suas atividades nos trópicos em meados do século XVI, os missionários da Companhia de Jesus se notabilizaram pela adoção do aldeamento tutelado dos nativos, que veio a se tornar o locus privilegiado para catequese e conversão dos brasis ao catolicismo. No entanto, as aldeias e seus habitantes desempenharam outro papel decisivo para o sucesso do processo de colonização iniciado nos trópicos. Refiro-me de modo particular à função militar que os índios flecheiros passaram a desempenhar no sistema defensivo estabelecido pelos agentes da colonização. Por conseguinte, desde a década de 1550, os nativos das aldeias 5 AZEVEDO, João Lúcio de. História de Antônio Viera. São Paulo: Alameda, 2008, 2 v. ISBN 978-85-61586-70-5 120 IV Encontro Internacional de História Colonial jesuíticas participaram de inúmeras expedições punitivas contra as tribos que se mostraram hostis ao avanço da colonização. Do mesmo modo, os flecheiros também se mostraram decisivos para a consolidação da presença lusitana, particularmente nos enfrentamentos às investidas de corsários e aventureiros europeus. Esse foi o caso, por exemplo, dos temiminó de Araribóia, cujo auxílio foi imprescindível na guerra movida contra os franceses e seus aliados tamoio, os quais, em meados do século XVI, sob o comando e inspiração de Villegaignon, tentaram estabelecer na baía de Guanabara a França Antártica. Já na Bahia do século XVII, ao se refugiarem nas aldeias do entorno da cidade de Salvador os jesuítas valeram-se da aliança que haviam estabelecido com as lideranças nativas. Os aldeamentos jesuíticos mostraram-se suficientemente seguros e deles partiram inúmeras surtidas de emboscada contra os soldados holandeses que ocupavam a capital colonial. No entanto, o padre Domingos Coelho e os seus companheiros de infortúnio não presenciaram aqueles acontecimentos. De fato, após dois meses de confinamento nos navios da esquadra holandesa, foram extraditados para a Holanda em julho de 1624. Ali o grupo de prisioneiros jesuítas foi dividido, parte seguiu para Dordrecht, outros, dentre eles o provincial, foi recolhido ao cárcere em Amsterdam. O cativeiro perdurou até 1627, quando os sobreviventes foram libertados mediante o pagamento de resgate, seguindo então, para Roma e Lisboa. O Provincial retornou ao Brasil no ano seguinte. Apesar do tempo que permaneceu prisioneiro em Amsterdam, o padre Domingos Coelho conseguiu enviar uma carta ao Geral dos jesuítas em Roma, o padre Múcio Vitelleschi, na qual informava todas as peripécias que enfrentou desde sua captura. A carta é datada de 24 de outubro de 1624. A narrativa do chefe dos jesuítas do Brasil segue rigorosamente a ordem cronológica dos acontecimentos a partir de sua captura. Nesta carta Domingos Coelho teceu amplos comentários sobre as providências tomadas pelos holandeses no sentido de cooptar o apoio da população de Salvador, permitindo aos beneditinos, franciscanos e carmelitas que retornassem à cidade e aos seus mosteiros. Com o mesmo intuito, os comandantes das tropas de ocupação concederam que os ofícios religiosos dos católicos fossem realizados, desde que as missas e demais cerimônias fossem celebradas com as portas das igrejas fechadas. Com indisfarçável orgulho, o Provincial dos jesuítas relatou que os únicos excluídos das benesses oferecidas aos religiosos pelos invasores, foram os padres da Companhia de Jesus. Além disso, para regozijo máximo do provincial dos inacianos, os padres das outras ordens religiosas também não aceitaram as condições impostas pelos holandeses. O padre Domingos Coelho descreveu saque que a cidade de Salvador sofreu pelas mãos dos soldados da West Indische Compagnie, ressaltando a destruição que se abateu sobre as igrejas, os mosteiros e o próprio Colégio da Companhia de Jesus. Essas ações foram creditadas pelo jesuíta ao intenso ódio que os calvinistas ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 121 holandeses manifestavam contra a Igreja de Roma. No entanto, embora todos os templos católicos tenham sido saqueados e todas as suas imagens sacras destruídas, numa clara manifestação de odio fidei, cabe destacar que, para os padrões daquela época, o saque das praças conquistadas era o modus operandi adotado pelas tropas qualquer que fosse a crença religiosa de seus soldados. De todo modo, as razões para a inegável perseguição movida pelas tropas da West Indische Compagnie aos religiosos da Companhia de Jesus tinham raízes mais profundas e foram claramente expostas nesta carta. O Provincial do Brasil relatou as conversas que teve com inúmeros holandeses durante o tempo em que permaneceu aprisionado no litoral baiano. Domingos Coelho destacou especificamente um de seus interlocutores, que se apresentou como mercador em Amsterdam. Esse homem acusou os religiosos da Companhia de Jesus de se envolverem em assuntos da alçada dos governantes, pois, segundo suas palavras, os jesuítas ‘escreviam muitos livros que incentivavam e convenciam os príncipes cristãos a perseguirem e fazerem guerra contra os calvinistas’. Em resposta a tais acusações, o superior dos inacianos negou que assim fosse, alegando que as Constituições da Companhia de Jesus proibiam seus integrantes de participar dessas atividades. É óbvio que o mercador de Amsterdam não se deixou levar pelos argumentos do Provincial. Afinal, historicamente as imputações que este fizera aos jesuítas tinham sua razão de ser. De fato, desde o século anterior, os religiosos da Companhia de Jesus destacaram-se pela defesa da ortodoxia católica, frente aos postulados reformistas de Lutero e Calvino. O mesmo se pode dizer quanto à inegável influência que seus confessores exerceram sobre as consciências dos membros das casas reais da Europa. Por outro lado, ainda que o Provincial tenha escrito que esses assuntos foram abordados em ‘conversas que teve com o comerciante de Amsterdam’, cujo nome não declinou nessa carta, essas ‘conversas’ eram, na verdade, interrogatórios. Muito embora tenham sido conduzidos em latim, o que pode indicar que o tal holandês possuísse alguma instrução de nível superior. Deve-se destacar que o jesuíta não referiu que tenha sofrido, por parte de seu misterioso interlocutor, qualquer forma de violência física. Certamente o padre Domingos Coelho não teria deixado esse tipo de informação fora de sua narrativa, afinal, ele sabia dos riscos que corria naquela ocasião. Durante aquele interrogatório estabelecera-se um impasse. Por um lado, o holandês que não acreditava nas alegações do padre acerca das proibições institucionais que vedavam aos jesuítas a intromissão em assuntos de natureza política. Por outro lado, em sua defesa, o chefe dos jesuítas do Brasil, jamais poderia admitir a veracidade de tais acusações, pois as consequências seriam funestas. Entretanto, destaco outra informação preciosa do Provincial, que ajuda a compreender as origens europeias da perseguição dos holandeses aos jesuítas no Brasil. Refiro-me à descrição de um painel que as tropas invasoras colocaram em posição de destaque no interior Colégio da Companhia de Jesus, mais exatamente na ISBN 978-85-61586-70-5 122 IV Encontro Internacional de História Colonial Capela dos Noviços. Segundo a descrição de Domingos Coelho, no quadro estava pintado o Duque de Alba, ‘com um diabo sobre o sombreiro, mandando justiçar muitos flamengos, e um jesuíta com uns foles na mão, assoprando com eles nas orelhas do mesmo Duque’.6 O quadro significava, portanto, que todas aquelas injustiças o Duque fizera persuadido pelos jesuítas. Sem dúvida alguma, uma imagem vale mais que mil palavras… . Como se sabe, o Duque de Alba, em fins do século XVI, foi enviado por Filipe II como o ‘pacificador dos Países Baixos’. Posteriormente, já no século XVII, os pormenores de suas ações na Guerra de Independência dos Países Baixos, bem como a participação de jesuítas espanhóis naquela conturbada e violenta campanha, foram descritas pelo jesuíta italiano, Famiano Strada (1572-1649), professor de Retórica no Colégio Romano da Companhia de Jesus, em seu livro De Bello Belgico.7 Durante a ocupação da capitania de Pernambuco, que se estendeu de 1630 a 1654, os invasores reconheceram o perigo que os missionários da Companhia de Jesus, e as notícias que faziam circular através de suas cartas, representavam para a sobrevivência do Brasil holandês. Posteriormente, em agosto de 1635, os Herren XIX, dirigentes máximos da West Indische Compagnie, numa carta enviada aos integrantes do Conselho Político da WIC no Brasil, determinaram claramente que a presença dos jesuítas não seria tolerada nas áreas ocupadas pelas tropas das Províncias Unidas. ‘O perigo dos eclesiásticos’ sempre assombrou o sono dos dirigentes holandeses. Por conseguinte, os missionários da Companhia de Jesus eram acusados, com razão devo dizer, de serem os mais perigosos inimigos do Brasil holandês. Na verdade, porém, boa parte dessas acusações devia-se à atuação daqueles religiosos nos ataques contra as tropas holandesas. De fato, os jesuítas sempre estiveram na vanguarda, fosse animando os soldados da resistência através da assistência religiosa que prestaram aos combatentes; ou em grupos combatentes, constituídos de índios flecheiros que viviam nos aldeamentos jesuíticos. Os flecheiros se tornaram indispensáveis nas surtidas que realizaram contra os soldados da West Indische Compagnie, graças ao destemor com que combatiam. Nessas ações alguns jesuítas se destacaram como comandantes dos flecheiros, como foi o caso, por exemplo, do padre Manuel de Moraes e de seus flecheiros da aldeia de São 6 Archivum Romanum Societatis Iesu. Códice Brasilia 8, 352,355. Famiano Strada. Famiani Stradae… De bello Belgico de cas prima ab excessu Caroli V Imp. usque ad initia perfecturae Alexandri Farnesii... Editio novissima, emendatior et accuratior. Juxta exemplar Romae: impressum apud Hermannum Scheus, 1648. 7 ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 123 Miguel do Muçuí, e do padre Lopo do Couto, que terá atuação destacada no Maranhão na década de 1640.8 Por conseguinte, as informações que veiculavam através de suas cartas, bem como as ações dos missionários jesuítas, serviram como justificativas para as severas determinações dos Herren XIX, quanto ao tratamento que lhes seria dispensado pelos soldados holandeses. As ordens dos dirigentes da WIC foram diretas e objetivas, determinando que todos os jesuítas, sem exceção, ‘deveriam ser mantidos à distância das nossas terras e proibida a comunicação com os moradores’.9 Os jesuítas da Província do Brasil pagaram um alto preço por seu envolvimento nas lutas contra as tropas da West Indische Compagnie. As dificuldades e os riscos que enfrentaram foram registrados em sua correspondência, o que tornou as cartas daquele período fontes preciosas. De fato, através delas, podemos acompanhar o cotidiano das lutas contra os holandeses. Dentre todas as cartas escritas durante aquela época conflituosa, uma delas possui especial importância, permitindo avaliar a extensão dos danos, em ‘sangue vidas e fazenda’, causados aos jesuítas pelos invasores holandeses. Refiro-me, particularmente, à carta anua de 1631, na qual foram relatadas as ações dos religiosos da Companhia de Jesus, que se encontravam no Colégio de Olinda, quando do ataque da WIC em 1630, e daqueles que missionavam nas aldeias estabelecidas pelos jesuítas na capitania de Pernambuco. Esta carta indica com exatidão quantos e quais eram os padres e irmãos coadjutores que se defrontaram com as tropas holandesas. Permite, portanto, avaliar a extensão das ações de guerrilha realizadas pela resistência pernambucana, da qual os jesuítas participaram desde os primeiros momentos da luta. A tabela número 1, elaborada a partir das informações contidas nesta carta e demais fontes jesuíticas, traz informações relevantes acerca do número de missionários da Companhia de Jesus que atuaram na capitania de Pernambuco entre 1630 e 1635, quando foram expulsos pelas tropas holandesas. Não deixa de causar espanto o fato de que durante todo aquele período conturbado, apenas 35 religiosos da Companhia de Jesus se defrontaram com milhares de soldados das tropas de ocupação das Províncias Unidas. 8 VAINFAS, Ronaldo. Traição: um jesuíta a serviço do Brasil holandês processado pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 9 Carta do Conselho dos XIX ao Conselho Político. [Amsterdam, 1 de agosto de 1635]. MELLO, José Antônio Gonsalves de. Tempo dos Flamengos: influência da ocupação holandesa na vida e na cultura do norte do Brasil. Recife: Secretaria de Educação e Cultura Departamento de Cultura, 2 ª edição, 1979, p. 244. (Coleção Pernambucana volume XV). ISBN 978-85-61586-70-5 IV Encontro Internacional de História Colonial 124 Tabela n. 1 Companhia de Jesus em Pernambuco 1630 - 1635 Estabelecimento Padres Irmãos Total Colégio de Olinda 13 10 23 Aldeia de São Miguel do Muçuí Aldeia de Assunção 2 - 2 1 1 2 Aldeia de Santo André 2 2 4 Aldeia de Nossa Senhora da Escada 2 - 2 Aldeia de São Miguel de Uma 2 - 2 22 13 35 Total Fonte: Archivum Romanum Societatis Iesu.. Códices Brasília 5, ff.135,137; Lusitania 74, f.270. Em fins de 1635, tornou-se evidente a supremacia das tropas holandesas que conseguiram expulsar da capitania as forças de defesa comandadas por Matias de Albuquerque. Por conseguinte, encerrou-se a primeira fase da guerra de resistência. Nos últimos meses daquele fatídico ano não restava nenhum vestígio dos religiosos jesuítas nos arredores de Pernambuco. Os missionários sobreviventes seguiram dois caminhos distintos, a retirada ou a captura. A maior parte deles preferiu acompanhar as tropas que haviam se retirado para a Bahia, conforme as determinações do Provincial Domingos Coelho, que naquela ocasião exercia o seu segundo mandato. Por outro lado, àquela altura dos acontecimentos, um pequeno grupo havia resolvido permanecer na capitania totalmente ocupada pelas tropas da WIC. No entanto, acabaram presos e desterrados para as Províncias Unidas. Depois de mais de cinco anos de luta, ‘Pernambuco estava acabado’, conforme assegurou um dos religiosos aprisionados pelas tropas holandesas naquela ocasião, o padre Francisco Ferreira, na carta que enviou do cárcere, em Antuérpia, nas Províncias Unidas.10 A tabela número 2, produzida a partir das informações coligidas na correspondência jesuítica, apesar da frieza dos números, permite visualizar a devastação causada pelas tropas holandesas sobre o efetivo de missionários da Companhia de Jesus na capitania de Pernambuco e nas adjacentes. 10 Carta do padre Francisco Ferreira ao Padre Geral Múcio Vitelleschi, Antuérpia, 26 de setembro de 1636. Archivum Romanum Societatis Iesu. Códice Lusitania 74, p. 270. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 125 Tabela n. 2 Missionários da Companhia de Jesus em Pernambuco – 1635 Quantidade % Retirados para Salvador 11 31,43% Cativos e Desterrados 7 20,00% Cativos e Desterrados Mortos no Exílio Mortos em decorrência dos achaques sofridos nos cárceres Mortos por causas naturais entre 1630-1635 9 25,71% 4 11,43 3 8,57% Mortos em Ação 1 35 2,86% 100% Situação Total Fonte: Archivum Romanum Societatis Iesu. Códices Brasília 8, ff.517,530 Como se pode perceber, dos 35 jesuítas que participaram da guerra de Pernambuco, entre 1630 e 1635, apenas 11 deles, ou seja, 31,43% retornaram à Bahia. Durante o mesmo período, outros 20 religiosos da Companhia de Jesus foram capturados e desterrados para as Províncias Unidas. Desse total de prisioneiros, 13 missionários, representando mais da metade dos jesuítas que caíram nas mãos dos soldados da West Indische Compagnie, morreram no exílio. Quanto aos demais 4 jesuítas que morreram em Pernambuco durante a campanha contra os invasores holandeses, as fontes jesuíticas indicam que três deles acabaram seus dias vitimados pelas vicissitudes impostas pelo cotidiano dos combates. Apenas um jesuíta foi relacionado na situação de ‘morto em combate’. Trata-se do padre Antônio Bellavia (1593-1633). Nascido na Sicília foi admitido na Companhia de Jesus, em Palermo, no ano de 1610. Concluídos os estudos regulares partiu de Lisboa para o Brasil em 1622. Mestre em Humanidades e perito na língua geral era missionário na aldeia de São Miguel de Muçuí, quando do ataque da WIC à Pernambuco. Posteriormente, durante a guerra de resistência, o padre Bellavia tornou-se o capelão das tropas que guarneciam o Arraial do Bom Jesus. No dia 5 de agosto de 1633, durante uma incursão contra as tropas holandesas, realizada pelos guerrilheiros comandados por Luiz Barbalho, o padre Antônio Bellavia, conforme consta na certidão assinada pelo general Matias Albuquerque, ‘acabou morto ISBN 978-85-61586-70-5 IV Encontro Internacional de História Colonial 126 gloriosamente, às cutiladas, ao confessar um soldado ferido e lhe não morrer entre o inimigo herege sem confissão’.11 Os registros inacianos permitem identificar os missionários que pagaram com suas vidas o pesado tributo cobrado pelos soldados das Províncias Unidas, notadamente durante a primeira fase da guerra de Pernambuco. Refiro-me à relação intitulada, Religiosos Mortos no Desterro da Holanda que traz o nome de treze jesuítas capturados em Pernambuco no ano de 1635, conforme se pode ver na tabela número 3. Tabela n. 3 Religiosos Mortos no Desterro da Holanda n°° 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 Nome Local Padre Gaspar de Samperes Cartagena de Índias Padre Manuel Tenreiro No mar Irmão Francisco Martines No mar Irmão Afonso Rodrigues Amsterdam Irmão Pedro Álvares Pichilinga Irmão Afonso Luiz Flandres Padre Francisco Ferreira Cantábria Padre José da Costa No mar Padre Leonardo Mercúrio No mar Irmão Manuel Pereira No mar Padre Antônio Antunes Rio de Janeiro Padre Simão [Pero] Castilho Santo Antão Padre Manuel [Gonçalves] Rio de Janeiro Ano 1636 1636 1636 1636 ? ? 1637 1637 1637 1637 1638 1642 1648 Fonte: Biblioteca Nazionale Vittorio Emanuele . Fondo gessuitico. 3492/1363, n° 6. Cabe destacar que do mesmo modo que aconteceu com outros documentos produzidos pelos religiosos da Companhia de Jesus, esta relação dos Religiosos Mortos no Desterro da Holanda, não se encontrava sob a guarda do Archivum Romanum Societatis Iesu. De fato, embora se trate de uma fonte preciosa para o entendimento da 11 Testemunho de Matias de Albuquerque, 20 novembro de 1635’. LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil… volume V, p. 352. A carta jesuítica que narra em detalhes as ações, e a morte em combate do padre Antônio Bellavia, pode ser consultada na íntegra In: BRANCO, Mário Fernandes Correia. ‘Para a Maior Glória de Deus e Serviço do Reino’: as cartas jesuíticas no contexto da resistência ao domínio holandês no Brasil do século XVII. Niterói: Tese de Doutorado em História - Universidade Federal Fluminense, 2010, 294p. Anexo A - ‘Carta do padre Manuel Fernandes, Visitador de Pernambuco, ao Geral Múcio Vitelleschi, Prepósito Geral da Companhia de Jesus em Roma. 5 de outubro de 1633.’ p. 269, 272. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 127 participação dos missionários jesuítas nas lutas contra os invasores holandeses no Brasil do século XVII, o códice, no qual foi inserida esta relação nominal, repousava, desde data incerta, em Roma, no acervo da Biblioteca Nazionale Vittorio Emanuele. Sua localização somente foi possível em fins da década de 1930, graças aos incansáveis esforços do insigne historiador jesuíta, o padre doutor Serafim Leite.12 Todavia, apesar da relevância das informações que contém, até o presente momento, não foi possível saber quem teria sido o autor deste documento. De todo modo, é possível supor que foi produzido em finais da década de 1640, pois o último ano registrado é 1648. Mas ainda não foi possível determinar, com exatidão, o local em que foi escrita, quem a escreveu e qual província jesuítica encaminhou esta listagem a Roma. Apesar de todos esses obstáculos, foi possível cotejar as informações contidas neste documento com outras fontes jesuíticas do período da dominação holandesa no Brasil. Desse modo, podem ser destacadas destacar algumas particularidades. A primeira delas se refere ao título abrangente: ‘Religiosos Mortos no Desterro da Holanda’, todavia, quatro dos jesuítas, cujos nomes estão listados, faleceram quando já se encontravam fora das Províncias Unidas. Esse foi o caso, por exemplo, do padre Francisco Ferreira, líder dos jesuítas que haviam decidido permanecer em Pernambuco, mesmo depois da retirada das tropas de Matias de Albuquerque para a Bahia. Na verdade, segundo o que consta nos catálogos da Companhia de Jesus, vitimado pelas sequelas decorrentes dos males contraídos nos cárceres holandeses, o padre Francisco Ferreira morreu em 1637, no Colégio da Companhia de Jesus em Santander, na Cantábria, quando se encontrava a caminho de Portugal.13 Quanto ao outro jesuíta, o padre Simão Castilho, relacionado na mesma categoria, ou seja, ‘morto no desterro da Holanda’ foi possível determinar com exatidão que ele conseguiu chegar ao Colégio de Santo Antão em Lisboa, onde faleceu, no dia 1 de novembro de 1642. No entanto, cabe destacar que seu nome correto é Pero Castilho. Este religioso escreveu um opúsculo intitulado: Partes do Corpo Humano Pella Língua do Brasil [original de 1613].14 O próximo caso é o do padre Antônio Antunes, que segundo o que consta no catálogo da província do Brasil de 1631, teria nascido na capitania do Espírito Santo por volta de 1573. O missionário vivia na aldeia de Santo André, em Pernambuco no ano de 1630. Sabe-se que o padre Antunes foi capturado pelos soldados da West Indische Compagnie em 1635. Antunes foi um dos primeiros jesuítas banidos pelas 12 Biblioteca Nazionale Vittorio Emanuele. Fondo gessuitico. 3492/1363, n° 6. A Companhia de Jesus no Brasil e a Restauração de Portugal. In: LEITE, Serafim. Anais da Academia Portuguesa da História. Lisboa, volume VII, p. 125-161, 1942. [1a série]. 13 Archivum Romanum Societatis Iesu. Códice Brasília 8, f.518. 14 LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil…, volume V, p. 384; volume VIII p. 157,158. ISBN 978-85-61586-70-5 128 IV Encontro Internacional de História Colonial tropas holandesas que conseguiu retornar ao Brasil, onde desembarcou em fins de 1637. Todavia, restava-lhe pouco tempo de vida. De fato, o padre Antônio Antunes morreu no Colégio do Rio de Janeiro no dia 20 de janeiro de 1638.15 Já o caso do padre Manuel Gomes, ilustra as vicissitudes e as duras condições enfrentadas pelos jesuítas que caíram nas mãos dos holandeses. Nascido em Évora, por volta de 1570 e admitido na Companhia de Jesus no ano de 1586, Manuel veio para o Brasil em 1595. Já se tornara padre Professo de 4 votos em 1609, quando participou da Armada de Alexandre de Moura e da conquista do Maranhão, em 1615. Posteriormente, se transferiu para a Aldeia de Nossa Senhora da Escada, em Pernambuco, e ali vivia quando os holandeses atacaram a capitania em 1630. O padre Gomes passou a viver no Arraial do Bom Jesus, onde participou da luta até ser capturado em 1635. Logo a seguir foi desterrado para as Índias de Castela. Apesar dos relevantes serviços que prestou a Companhia de Jesus, é incerta a data em que o padre Manuel Gomes retornou ao Brasil. O seu nome somente reaparece na documentação jesuítica no Catálogo do Colégio do Rio de Janeiro de 1646, no qual consta que o jesuíta residia naquele estabelecimento. O padre Manuel enfrentava os achaques típicos de sua idade, pois, beirava os 75 anos de idade. No entanto, outra informação existente na mesma fonte é mais reveladora ao indicar, que devido aos ‘tratos’ que o religioso recebera durante o tempo em que foi prisioneiro dos holandeses, o padre Manuel Gomes ficara louco. De todo modo, segundo se pode verificar nesta ‘Relação dos Jesuítas Mortos… .’, seus sofrimentos chegaram ao fim em outubro de 1648.16 Como se pode perceber, os religiosos da ordem inaciana participaram de todas as fases da guerra de resistência movida contra as tropas das Províncias Unidas. Nesse sentido, penso que durante o longo período das lutas contra os holandeses, as cartas dos jesuítas cumpriram um papel muito mais amplo do que simples missivas institucionais. Tornaram-se, na verdade, elementos primordiais de um serviço de coleta e difusão de informações estratégicas e militares que, muitas vezes, atuou infiltrado nas áreas dominadas pelos calvinistas. De fato, ‘o perigo dos eclesiásticos’ sempre assombrou o sono dos dirigentes holandeses, no Brasil e na Europa. Os missionários da Companhia de Jesus foram acusados pelos holandeses, com toda a razão devo dizer, de serem ‘os mais perigosos inimigos’ do Brasil holandês. Por fim, ainda que se possa escrever a história das guerras contra os holandeses sem fazer qualquer menção à participação dos inacianos, penso que a narrativa estará irremediavelmente comprometida e incompleta. Por conseguinte, a omissão da 15 Ibidem, volume V, p. 387. Biblioteca Nazionale Vittorio Emanuele. Fondo gessuitico. 3492/1363, n° 6. A Companhia de Jesus no Brasil e a Restauração de Portugal. In: LEITE, Serafim. Anais da Academia Portuguesa da História… LEITE. História da Companhia de Jesus no Brasil…, volume V, p. 388; volume VIII p. 270, 271. 16 ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 129 participação jesuítica naqueles confrontos dificulta e empobrece o entendimento e a análise dos pormenores acerca dos acontecimentos cruciais daquela conjuntura. Afinal, se por um lado, é necessário reconhecer que os cronistas daqueles episódios enfrentaram inúmeras limitações de acesso às informações sobre os acontecimentos, por outro lado, não menos importante, também é correto afirmar que alguns daqueles homens tiveram motivações pessoais para exaltar os feitos de uns e calar as realizações de outros. ISBN 978-85-61586-70-5 130 IV Encontro Internacional de História Colonial O corpo eloquente da palavra divina: pressupostos e métodos para o estudo dos aspectos não verbais da pregação (séculos XVI-XVIII) Guilherme Amaral Luz1 Na “época moderna” (séculos XVI-XVIII), a pregação tornar-se-ia um dos principais temas com os quais a Igreja Católica pós-tridentina iria se preocupar. Desde o Concílio de Trento, a Igreja Católica confiou aos bispos atenta vigilância das pregações. Em Portugal e, em especial, na América Portuguesa, tal necessidade de vigilância ver-se-ia reforçada e detalhada em diversas Constituições Episcopais, como as de Porto (1585) e Coimbra (1591), ainda no século XVI; de Lisboa (1640) e Algarve (1674), no século XVII; e a da Bahia (1707), já no século XVIII.2 No âmbito da retórica, neste mesmo período, centenas de “manuais” e preceptivas tratariam com destaque a respeito da “eloquência do púlpito” e não poucas seriam as tendências da parenética, dependendo, sobretudo, dos ensinamentos das diversas ordens religiosas.3 Se somarmos a isso tudo as referências à pregação nas hagiografias, nas cartas entre missionários das diversas ordens, nas vidas de sacerdotes do reino ou do ultramar e nos diversos textos de polêmica do período, o resultado seria uma documentação gigantesca, ainda a ser completada por um sem numero de sermões que circulavam editados ou em manuscritos por toda a Europa. O objetivo desta apresentação é desenvolver uma hipótese inicial de pesquisa futura sobre os aspectos não verbais da pregação no Novo Mundo (especialmente no que diz respeito à atuação da Companhia de Jesus), partindo, inicialmente, de um estudo (a se iniciar) da iconografia na arte europeia e católica a respeito da eloquência sagrada entre os séculos XVI e XVIII. A iconografia da pregação é um universo vasto e variado destinado, entre outras coisas, à educação do olhar, dos gestos e dos modos para o que deveria ser uma pregação cheia de “eloquência e sabedoria divinas” e uma audição edificante. Serão considerados os pressupostos a guiar um estudo da arte e da natureza do pregar católico na “época moderna”, focalizando a necessidade, a viabilidade e a pertinência da consideração dos seus aspectos gestuais, cênicos, fisionômicos, quironômicos, imagéticos e “performativos” ao menos no âmbito das práticas mais ortodoxas, afinadas com as determinações da Igreja. O que 1 Instituto de História – Universidade Federal de Uberlândia. PAIVA, J. P. Episcopado e pregação no Portugal Moderno: formas de actuação e vigilância. Revista Via Spiritus, n. 16, 09-44, 2009. 3 KENNEDY, G. A. Classical Rhetoric and its Christian and Secular Tradition from Ancient to Modern Times. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 1999, p. 265-266. Sobre o caso específico das preceptivas de pregação que circulavam na América portuguesa e informavam o clero da região, sugere-se: MASSIMI, M. A Pregação no Brasil Colonial. Varia Historia, n. 21, v. 34, 417-436, 2005. 2 ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 131 se irá apresentar, portanto, é ainda uma pesquisa em estágio inicial com todas as imperfeições e indefinições de um projeto. A sequência deste texto é a reelaboração de partes de um projeto de pesquisa de pós-doutorado que executaremos ao longo do ano que vem no Departamento de História da Arte da Universidade de Warwick (Reino Unido), em parceria com o professor Lorenzo Pericolo. Nas últimas décadas, os estudos sobre a “Retórica Renascentista” (normalmente localizada entre os séculos XIV e XVII, compreendendo a Europa cristã como um todo) tem sido alvo de interesse renovado. Nesse sentido, destacam-se os atualizados trabalhos de Lawrence Green sobre o percurso das recepções da Retórica aristotélica na Renascença4 e os de caráter mais geral, como o mais recente livro de Peter Mack5 e estudos de autores tais como Tom Conley,6 Brian Vickers,7 Francis Goyet8 e diversos outros. Em meio a esta renovação dos estudos da Retórica na Renascença, Heinrich Plett, em seu Rhetoric and Renaissance Culture, demonstra que as artes de Retórica se entrelaçaram com artes relativas a diversas mídias de comunicação não somente de caráter visual, mas também acústico e “performático”, tais como no caso das artes do teatro e da quirologia.9 Especialmente no campo da pregação, neste mesmo período, alguns trabalhos vêm explorando as conexões entre imagens e palavras em contextos espaciais dos mais diversos. Bons exemplos são os trabalhos de Lina Bolzoni10 sobre as impressões de sermões de Bernardino de Siena e de Mujica Pinilla a respeito da pregação no “Barroco peruano”.11 Dentre as conclusões que os estudos sobre as imagens nos sermões nos permitem tirar, está a de que elas colaborariam com o objetivo de tornar a teologia simbólica e sensivelmente visível e recodificada para os auditórios da época. Esta estratégia pode 4 GREEN, L. D. John Rainolds's Oxford Lectures on Aristotle “Rhetoric”. Newark: University of Delaware Press, 1986; GREEN, L. D. The Reception of Aristotle’s “Rhetoric” in the Renaissance. In: FORTENBAUGH, W. W. & MIRHADY, D. C. (ed.). Peripatetic Rhetoric after Aristotle. Oxford and New Brunswick NJ: Transaction Publishers, 1994, p. 320-48; GREEN, L. Aristotle’s “Rhetoric” and Renaissance Views of the Emotions. In: MACK, P. (ed.). Renaissance Rhetoric. London: Macmillan, 1994, p. 1-26. 5 MACK, P. A History of Renaissance Rhetoric. Oxford: Oxford University Press, 2011. 6 CONLEY, T. M. Rhetoric in the European Tradition. Chicago: University of Chicago Press, 1990. 7 VICKERS, B. In defence of Rhetoric. Oxford: Clarendon Press, 1988. 8 GOYET, F. Le sublime du “lieu commun”: l’invention rhetorique dans la Antiquité et la Renaissance. Paris: Honoré Champion, 1996. 9 PLETT, H. Rhetoric and Renaissance Culture. Berlin and Washington: Library of Congress, 2004, p. 295-411. 10 BOLZONI, L. The web of images: vernacular preaching from its origin to St. Bernardino da Siena. Aldershot: Ashgate, 2004. 11 MUJICA PINILLA, R. El arte y los sermones. In: El Barroco Peruano. Lima: Banco de Crédito del Perú, 2002, p. 219-323. ISBN 978-85-61586-70-5 132 IV Encontro Internacional de História Colonial ser compreendida em sua longa duração como voltada à produzir vivacidade ou evidência, sugerindo esquemas mentais para práticas de imaginação e de memória, bem como para a mobilização de afetos e humores adequados aos conceitos pregados. Um artigo recente de Antonio Alberte aponta que teólogos cristãos da Antiguidade e do Medievo, como Tertuliano, Agostinho, Ambrósio e Gregório Magno, interpretaram que recursos plásticos possuíam valor didático, tal como percebiam a partir da leitura da “Retórica pagã”, e adaptaram tais recursos ao campo da pregação cristã. O autor argumenta que o uso do visual na pregação fundamentase na concepção de que o visível é uma imagem do invisível e, portanto, tem a propriedade de instruir e educar. Tal instrução, baseada nesta perspectiva de tornar o mistério invisível das coisas de Deus percebido pelos sentidos, nunca deixou, também, de atender às outras funções da eloquência: deleitar – por meio do prazer da contemplação das imagens – e mover as emoções – por meio daquilo que elas suscitam na alma.12 As relações entre pregação e artes visuais foram particularmente férteis na Renascença, em especial no âmbito da pintura, e tem atraído interesse de analistas da arte do período. É o caso de Michael Baxandall, por exemplo, que, tratando das representações dos gestos na pintura do Renascimento Italiano, refere-se aos pregadores coevos como “hábeis especialistas do visual”, uma vez que dominavam o conhecimento de um conjunto de gestos decodificados capazes de serem compreendidos em toda a Europa. Baxandall defende que os pintores do quattrocento e do cinquecento aprenderam com os pregadores a expressar estados emocionais fisicamente nos corpos e faces representados nas suas obras.13 Os pregadores daquele tempo preocupavam-se com a relação harmônica a se obter entre gestos e o estilo da pregação, conforme o decoro, adaptando-se às prescrições a respeito da actio ou da hypocrisis nas artes retóricas da Antiguidade. Mas, além disso, eles também estavam atentos quanto às reações emocionais de seus ouvintes, que poderiam se expressar fisionomicamente. Podemos citar, como exemplo, uma passagem de Claude d'Abbeville referida por Marina Massimi, na qual o frade Capuchinho, em missão no Maranhão, reconhece, nos índios, tamanha atenção e afirma que suas emoções alcançavam de tal modo o âmago de suas almas que elas chegavam a “brilhar em suas fisionomias”.14 Mas se as artes de pregar, sobretudo no que diz respeito à sua actio, tiveram implicações sobre o domínio das artes, é possível perguntar e hipotetizar a respeito do caminho inverso, qual seja: em que sentido as próprias artes visuais permitiram a 12 ALBERTE, A. Relevancia de los recursos plásticos en las artes medievales de predicación. Rhetorica, vol. XXIX, n. 2, 119-150, spring 2011. 13 BAXANDALL, M. O olhar renascente: pintura e experiência social na Itália da Renascença. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1991, p. 68. 14 MASSIMI, M. A Pregação no Brasil Colonial…, p. 420. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 133 circulação de um saber sobre a comunicação gestual e facial útil aos pregadores e modelar para os seus auditórios, educando seus gestos e expressões aos estados emocionais e aos comportamentos esperados, conforme as demandas de cada circunstância de pregação/audição. Pode-se conjecturar que tais imagens artísticas desempenharam papéis em um fenômeno mais amplo de “economia dos gestos” ou “reforma dos gestos”, que tomou lugar no mundo cristão da primeira modernidade. Peter Burke foi um dos historiadores a dar importância a este fenômeno, estudandoo em autores tais como Gianmatteo Giberti, Carlo Borromeu, Francesco Barbaro, Paolo Cortese, Baldassare Castiglione, Giovanni Della Casa, Giovanni Battista Della Porta, Stefano Guazzo, Hieronymus Turler, Joseph Addison, Antoine Courtin, Francesco Borromini, Carlos García e muitos outros. Burke identifica em tais autores não somente um esforço de compreender um “vocabulário psicológico” dos gestos, mas um esforço, ainda mais importante, de estabelecer ou descobrir uma “gramática dos gestos”, significando com isso as regras e convenções para a expressão apropriada.15 No âmbito particular da retórica, a expressão máxima desta “reforma dos gestos” é aquilo que George Kennedy chama de Movimento Elocucionário nos séculos XVII e XVIII (abrangendo obras de autores como John Buwler, Thomas Sheridan, Michel Le Faucher, Louis de Cressoles e outros), que, segundo as palavras do autor, buscava “atingir alto nível de proferimento (delivery) na pregação e no teatro”.16 As articulações entre as artes de pregar e as artes visuais também constituem uma temática bastante adequada à discussão a respeito daquilo que, na historiografia da arte, vem sendo nomeado como o “Barroco”. Costuma-se reconhecer em Heinrich Wölfflin o primeiro historiador da arte a conceituar o “Barroco” como uma concepção de estilo. Em sua obra Renascimento e Barroco,17 o termo indicava um estilo de pintar oposto ao formalismo “Renascentista” (ou também “Maneirista”), focalizando mais na expressividade das cores do que no desenho bem delineado. Wölfflin reconheceu, nos trabalhos de (Peter Paul) Rubens, o paradigma do “estilo barroco”, enquanto, para a “Renascença”, Rafael (Sanzio) foi considerado o maior modelo no âmbito da pintura. Esta divisão da arte na primeira modernidade entre “Renascimento” e “Barroco” como paradigmas opostos é baseada na noção de “estilo de época”, por sua vez, dependente da concepção de matriz hegeliana – compartilhada também por outros historiadores contemporâneos a Wölfflin, como 15 BURKE, P. A linguagem do gesto no início da Itália moderna. In: Variedades de História Cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 93-112. 16 KENNEDY, G. A. Classical Rhetoric and its Christian and Secular Tradition from Ancient to Modern Times…, p. 278. 17 WÖLFFLIN, H. Renaissance and Barroque. Ithaca: Cornell University Press, 1966 [1888]. ISBN 978-85-61586-70-5 134 IV Encontro Internacional de História Colonial Jacob Burckhardt18 – de “espírito de época”. Nesta direção, era o “Barroco italiano”, muito mais do que, por exemplo, o “holandês”, aquele que se considerava a verdadeira “expressão do espírito de sua época”. Ele era, assim, tratado como epifenômeno da psique social em um momento particular da História, quando mudava a relação estabelecida entre o “indivíduo” e o “mundo”, um tempo em que se abria um novo universo para as emoções relativas à aspiração pela redenção das almas, diante do incomensurável, do infinito, do transcendente.19 Se admitimos a existência de algo como o “espírito do Barroco” ou o “espírito da Renascença” (ou do “Classicismo”), temos que presumir uma descontinuidade entre os séculos XVI e XVII não somente em termos de estilo, mas também (e em nível mais profundo) em termos de psicologia coletiva. Para autores como Benedetto Croce,20 tal mudança “psico-estilística” (a expressão é nossa) da “Renascença” ao “Barroco” foi considerada como decadência de uma atitude crítica para outra conformista diante das realidades naturais e civis e significou uma regressão à cosmovisão religiosa. Por outro lado, a partir da década de 1970, vários autores, como, por exemplo, José Antônio Maravall21 e Giulio Carlo Argan,22 vêm criticando a abordagem tradicional da cultura do Barroco em termos de estilo ou de psicologia. Ambos admitem que as artes visuais do século XVII devem ser interpretadas como politicamente articuladas com as práticas civis de persuasão (voltada às “massas”) nas esferas dos Estados modernos e das mais variadas Igrejas. Isto que poderíamos nomear uma “virada retórica” no entendimento das artes visuais de fins do século XVI e do século XVII enfraqueceu as abordagens estéticas e psicológicas a respeito delas. A partir de então, compreender as conexões entre a cultura visual e a sua teorização como artes de persuasão derivadas da tradição retórica – tanto de matriz ciceroniana quanto aristotélica – tem se tornado crescentemente importante. Neste ponto, a História da Arte tem se articulado à História da Retórica. Se houve qualquer impacto da Retórica na teorização e nos princípios das artes visuais do século XVI em diante, alguém poderia se perguntar quais vertentes da sua tradição estavam em circulação de modo a possibilitar esta operação. Assim, pode-se hipotetizar que as diferenças entre as artes “Renascentista” e “Barroca” (e também entre as suas diversas variantes) poderiam ser entendidas nem tanto como de natureza estilística ou psicológica, mas como reações diferentes a um campo variado 18 BURCKARDT, J. A Cultura do Renascimento na Itália. São Paulo: Companhia das Letras, 2009 [1860]. 19 WÖLFFLIN, H. Conceitos fundamentais de História da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 1989 [1915], p. 12-3. 20 CROCE, B. Storia dell’età Barocca. Bari: Laterza, 1929. 21 MARAVALL, J. A. A cultura do Barroco: análise de uma estrutura histórica. São Paulo: EDUSP, 1997 [1975]. 22 ARGAN, G. C. Imagem e persuasão. Ensaios sobre o barroco. São Paulo: Companhia das Letras, 2004 [1986]. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 135 de concepções retóricas disponíveis naqueles tempos. Até certo ponto – sem simplesmente reduzir as artes visuais à arte retórica – é justo considerar que houve uma profunda comunicação entre os campos das artes do verbal e do visual na primeira modernidade, ambas sendo compreendidas como artes de persuasão, ambas percebidas como meios pelos quais se poderia educar/instruir, agradar/deleitar e despertar/mobilizar emoções nos seus auditórios. Considerando a articulação entre Retórica e artes visuais na primeira modernidade, a arte de pregar desempenhou um considerável papel em, pelo menos, dois sentidos. Primeiramente, porque ela própria pode ser entendida como uma arte de persuasão que envolve tanto meios verbais como visuais. Em segundo lugar – e provavelmente mais relevante – a pregação era uma das práticas que estavam no centro das preocupações que levaram as pessoas letradas daquela época a investigar a tradição retórica da Antiguidade. Como argumenta Christian Mouchel, a Igreja póstridentina dedicou um espaço privilegiado para a pregação como instrumento para os padres darem uma expressão própria ao saber teológico e ao ardor religioso, destinada à “edificação” de seus auditórios. Reconsiderar o estilo nos quadros ciceronianos ou da “Segunda Sofística” foi uma maneira de alcançar tal propriedade de expressão. Outra – às vezes complementar ou radicalmente distinta – foi reforçar a simplicidade de estilo da “eloquência divina” tal como era lida a partir das autoridades de São Paulo e de Santo Agostinho. Enfim, de maneira mais geral, a regra aristotélica da justa medida, no caso, entre a simplicidade e a “veemência digna” lançou as bases para a conciliação entre a eloquência católica e a profana.23 Nesta direção, Anne Régent-Susini argumenta que “mesmo um [Jacques] Bossuet celebrará São Paulo como um mestre paradoxal: 'um pregador sem eloquência e sem aprovação' que se recusa a 'misturar a sabedoria humana com a sabedoria do Filho de Deus'“. O célebre pregador francês, ao falar da eloquência de Jesus Cristo, “corrige” São Paulo: “nos admiramos, em Nosso Salvador, a baixeza misturada com a grandeza”.24 Como se pode perceber, a Retórica da Antiguidade (latina ou helênica) foi apropriada pela Igreja como um meio através do qual a “eloquência divina” poderia ser adaptada para uma forma/estilo atrativa aos homens. A fonte de autoridade e de sabedoria e eloquência verdadeiras ainda continuava sendo compreendida como efeitos do Espírito Santo sobre o pregador, mas mediada pela eloquência humana. Tal mediação entre eloquência humana e divina é algo subestimado na História da Arte na primeira modernidade, especialmente na perspectiva católica. Em outros 23 MOUCHEL, C. Les Rhétoriques Post-tridentines (1570-1600): la fabrique d'une société chrétienne. In: FUMAROLI, M. (ed.). Histoire de la Rhétorique dans l’Europe moderne (1450-1950). Paris: Presses Universitaires de France, 1999, p. 431-433. 24 RÉGENT-SUSINI, A. L'Eloquence de la chaire. Les sermons de Saint Augustin à nos jours. Paris: Seuil, 2009, p. 64. ISBN 978-85-61586-70-5 136 IV Encontro Internacional de História Colonial termos, nossa proposta é investigar como as artes visuais lidaram com certos aspectos da eloquência que não eram possíveis de verbalizar nos termos exclusivos de uma Retórica humana e “pagã”, mas somente nos termos da relação entre eloquência humana e divina. Em tal contexto, ser persuasivo é tanto uma questão de lidar com os preceitos da arte Retórica quanto com os aspectos mais “espirituais” ou “pneumáticos” da eloquência nas suas possíveis expressões visuais. Na direção em que propomos, a iconografia da pregação deve ser pensada no interior de uma teologia do visível ou de uma cultura teológica do visual. Estudando tal questão em teólogos como Gabriele Paleotti e Roberto Bellarmino, Jens Baumgarten mostra que a Igreja da Contrarreforma postulava que sem os sacramentos a arte religiosa não seria possível, bem como os sacramentos não seriam concebíveis sem a arte. Em outros termos, as artes visuais eram entendidas como meios sacramentais pelos quais o conhecimento a respeito dos sacramentos poderiam ser acessados sensível e sensorialmente. Portanto, os artistas se submeteriam a desempenhar um papel análogo a de um pregador tácito e a agir como um exemplo pessoal de devoção.25 Baumgarten conclui o seu artigo com uma afirmação capaz de resumir isto a que estamos chamando de cultura teológica do visual. Para ele, a nova percepção católica dos séculos XVI e XVII relaciona os efeitos emocionais das imagens com os seus aspectos racionais, quais sejam, aqueles referentes à sua análise e controle.26 Quando falamos de uma Europa Católica da primeira modernidade, pensamos em um espaço-tempo particular no qual esta cultura era efetiva e produtiva nas suas dimensões políticas e religiosas. Numa cultura como esta, em que o pregador é ele mesmo um modelo para o artista, a pregação não poderia ser ignorada como tema central para a História da Arte e esta como perfeita contraparte da História da Retórica. Resumindo os nossos objetivos, o principal é explorar as interconexões entre a arte retórica de pregar, os seus componentes visuais e a sua representação nas artes da Europa da Contrarreforma (sécs. XVI-XVIII), considerando a concepção artística da “eloquência divina”, particularmente, no interior de uma cultura teológica do visual. Isso envolve compreender uma gramática de gestos relativos à pregação tal como artisticamente representada na Europa católica da primeira modernidade e investigar a simbologia da “eloquência divina” e da “Retórica pagã” como aspectos da pregação e as suas funções nas artes da Contrarreforma. Com isso, espera-se estabelecer as bases teóricas para uma próxima investigação dos aspectos não verbais da pregação e as suas representações visuais pela ordem dos Jesuítas no Novo Mundo. Um dos caminhos importantes para a nossa pesquisa será o foco sobre os tópicos convencionais relativos à iconografia da pregação. Especialmente, deveremos prestar 25 BAUMGARTEN, J. A teologia pós-tridentina da visibilitas e o Laocoonte. In: MARQUES, L (ed.). A Fábrica do Antigo. Campinas: Editora da UNICAMP, 2008, p. 206. 26 Ibidem, p. 212. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 137 grande atenção nas relações entre a representação visual e as suas fontes escritas, sobretudo, aquelas de origem bíblica e/ou hagiográfica. Ao mesmo tempo, deveremos interpretar os arranjos particulares dessas convenções, atentando para aquilo que Baxandall nomeia “hábitos visuais” de uma cultura em particular.27 No caso, tais hábitos estão fortemente relacionados ao que já expusemos como cultura teológica do visual, presente na espiritualidade e na “estética” da Contrarreforma. Assim procedendo, será possível especular a respeito dos sentidos culturais mais amplos da pregação, o seu lugar em relação a outras práticas correlatas e as analogias que assumiu com outros campos da experiência social e religiosa. Apesar da importância central de tomarmos a análise de cada imagem como um todo para a nossa metodologia, ela não é suficiente para os nossos objetivos. Consideramos cada imagem como arranjo particular de motivos e convenções iconográficas, o que nos leva a ter em conta os três níveis de significado que Erwin Panofsky identificou para os estudos de “Iconologia”.28 Isto quer dizer que os simbolismos de cada representação não podem ser interpretados sem referência à sua iconografia e à sua combinação particular de motivos. Por outro lado, também indica que os papéis de iconografia e dos motivos estão imbricados na função mais profunda de um artefato artístico-religioso: a produção de um significado na sua relação com a fé. Neste sentido, por exemplo, um conjunto de movimentos ou expressões faciais convencionalmente representado numa cena iconográfica, quando se tem em conta os seus potenciais observadores, pode produzir certos efeitos, capazes de agir sobre suas paixões, seus sentidos, seu intelecto e sua vontade. As referências comuns compartilhadas por artistas e públicos conformam aquilo que define os efeitos próprios que cada gesto sugerido na cena pode produzir. Estas referências precisarão ser descobertas e compreendidas no caso específico das imagens da pregação, o que só se conseguirá por meio da consideração efetiva de um número significativo de imagens e da comparação entre elas. A iconografia da pregação forma um enorme universo repleto de uma variedade estonteante de temas e subtemas. Contudo, em pesquisa prévia por imagens em alguns bancos de dados on-line (Art and the Bible, Artstor, Biblical Art on the WWW, British Museum, Europeana, Matriz Net and WGA), percebemos uma ligação forte entre o tema da pregação e a iconografia de alguns santos principais. É o caso de São João Batista e de sua pregação no deserto (também representado muitas vezes como bosques e florestas). Outro caso é o de São Paulo, especialmente a sua pregação aos atenienses no Areópago, cujo principal exemplo é o cartão de Rafael (Cf.: fig. 01), concebido em 1515 ou 1516 para servir de modelo a uma tapeçaria que hoje encontra-se abrigada na Pinacoteca do Vaticano, e que recebeu 27 BAXANDALL, M. O olhar renascente… PANOFSKY, E. Estudos de iconologia. Temas humanísticos na arte do Renascimento. Lisboa: Estampa, 1995. 28 ISBN 978-85-61586-70-5 138 IV Encontro Internacional de História Colonial diversas versões em desenho e gravuras ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII. A importância bíblica de ambos para a pregação é enorme. O primeiro aparece nos evangelhos como o último dos profetas e o primeiro a pregar a Boa Nova de Cristo, preparando o caminho de seu Mestre. Junto à atividade da pregação, dedicava-se ao batismo para a remissão dos pecados, o que o lança também para o início do livro do Atos dos Apóstolos, no qual o batismo de João vê-se realizado em sua plenitude pelo “batismo no Espírito Santo”, pelo Pentecostes, que torna os apóstolos divinamente eloquentes com as suas “línguas de fogo”. Também no Atos dos Apóstolos, São Paulo e sua pregação são fortemente enfatizados. Já nas suas Epístolas, elabora-se uma das mais autorizadas concepções de “eloquência e sabedoria divinas” no interior da Igreja. Acreditamos, assim, que o foco na iconografia destes dois santos pregadores, sem simplesmente negligenciar outros, poderá fornecer paradigmas gerais para a consideração da “eloquência divina” no conjunto do corpus de imagens com o qual iremos lidar. No caso das missões jesuíticas no Novo Mundo, o modelo apostólico paulino é, particularmente central, conforme elucida, entre outros, John O'Malley: O chamado mais urgente [dentre as prioridades da missão jesuítica] era para agir entre aqueles que não eram cristãos ou entre aqueles que podiam abandonar o catolicismo por causa da heresia. Desse modo, assim como o evangelizador Paulo e os primeiros discípulos de Jesus foram modelos operativos mais poderosos na auto-imagem do jesuíta do que o modelo do soldado cristão, sua vocação, como as Constituições colocavam, era “viajar através do mundo e viver em qualquer parte dele, onde houvesse esperança de maior serviço a Deus e de ajuda às almas”. [Jerônimo] Nadal disse-o mais sucintamente: “Paulo significa para nós o nosso ministério”.29 São João Batista também é significativo como modelo para a pregação jesuítica. Deve-se considerar, neste caso, a relação que se constitui entre o “batismo de João” e o batismo pelo Espírito Santo no livro Atos dos Apóstolos. Se o apostolado presente nas primeiras comunidades cristãs e, especialmente, em São Paulo é um modelo para a Companhia de Jesus, não é de se espantar que, no âmbito da eloquência, perceba-se a centralidade dos dons recebidos pelo batismo como meios de comunicar a Boa Nova a todos os povos. Dois exemplos podem bem ilustrar o que defendemos aqui. Um deles é a tela de 1690, pintada pelo pintor genovês Baciccio (Giovanni Battista Gaulli) para os Jesuítas de Roma, a partir de um desenho anterior de (Gian Lorenzo) Bernini, com 29 O’MALLEY, J. Os primeiros jesuítas. São Leopoldo: Editora da Unisinos; Bauru: EDUSC, 2004, p. 118. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 139 quem trabalhava (Cf.: fig 02). Nesta imagem, São João Batista é representado como homem de idade viril, de compleição física bem proporcionada e robusta, pregando ao povo em uma paisagem selvagem e de relevo acidentado. Entre os personagens que compõem o auditório, além de mulheres lactantes, crianças, homens de posses e militares (todos muito comuns e com sentidos particulares na iconografia da pregação deste santo), observam-se mais ao plano central quatro figuras masculinas provavelmente a representarem os apóstolos André, João (Evangelista), Pedro e Tiago, oriundos da Galileia, e que se tornaram seguidores de Jesus após o seu batismo por São João Batista no Rio Jordão. Chegando à cena, ao lado esquerdo, observa-se Jesus radiante em dourado sobre um cavalo branco bem iluminado. João Batista, empunhando uma cruz com as inscrições convencionais “ecce agnus Dei” (“eis o cordeiro de Deus”), aponta seu indicador direito para o céu, num gesto, em si, repleto de significados. Um deles e o que mais importa ao nosso argumento aqui é aquele que deriva das Escrituras, em especial, Lc 20, 1-8. Nesta passagem, Jesus é confrontado por sumos sacerdotes, escribas e anciãos do Templo que lhe perguntam com que autoridade pregava. Jesus lhes responde com uma outra pergunta, a que os fariseus preferiram dizer não conhecer a resposta: de onde vinha o batismo de João, do céu ou dos homens? Ao ouvir o “não sabemos” como resposta, Jesus, então, também se nega a responder de onde vinha a sua autoridade, deixando subentendido que tanto o batismo quanto a autoridade de pregar vinham do céu, o que pode ser facilmente lido a partir da chave do Pentecostes. Ao apontar para o céu, uma das mensagens de São João Batista no quadro é a de que sua pregação e, consequentemente, sua eloquência têm origem divina no poder que vem do Espírito Santo. São João Batista, como ícone da “eloquência divina”, modelar para os Jesuítas, é algo que se confirma no outro exemplo que gostaríamos de mencionar. Nos referimos ao frontispício do manuscrito seiscentista de Mário Alberico da obra De contexenda orationis libri duo, do Pe. Famiano Strada, S.J., que se encontra no Arquivum Romanum Societatis Iesu (ARSI), em Roma.30 Strada, conforme autores como Marc Fumaroli e Aldo Scaglione, representa uma vertente tipicamente jesuítica de preceitos para a pregação que, ao dar ênfase no apelo às paixões, afasta-se relativamente de uma postura agostiniana (e jansenista) de pura inspiração divina do pregador e se aproxima da proposição de um aprendizado correto de aparatos 30 MS. ARSI OPP. NN. 13. Agradeço à professora Hanne Roer por me fornecer informações sobre este frontispício, quando apresentou a comunicação “Jesuit Rhetoric and the Eloquentia Divina”, na XVIII Biennal Conference da International Society for the History of Rhetoric (ISHR), Bolonha, 18 a 22 de julho de 2011. Não reproduzimos a imagem do frontispício neste texto em função de direitos de imagem. ISBN 978-85-61586-70-5 140 IV Encontro Internacional de História Colonial retóricos e lugares comuns advindos do “paganismo”, especialmente da tradição ciceroniana.31 Neste frontispício, observa-se uma composição similar àquela presente como abertura a outra obra coeva sobre retórica escrita por um padre jesuíta, Eloquentiae sacrae et humanae parallela libri XVI, de Nicolau Cassino.32 Importa-nos, em ambos os casos, as representações da eloquência humana (associada às artes retóricas do mundo pagão) e da eloquência divina. Em Cassino, a eloquência humana, representada por uma velha, porta um rolo de papel à mão direita e, com a esquerda, apresenta um homem viril à sua frente, que simboliza a eloquência divina. Abaixo dos pés da “velha retórica”, representam-se sereias com livros às mãos, como se os oferecessem. Abaixo dos pés da viril “eloquência divina”, representa-se uma cena de raios que caem sobre a terra, onde localizam-se uma casa e uma torre. Acima disso tudo, representa-se uma personificação da eloquência, que, entronada, segura um símbolo de Mercúrio com a mão esquerda e uma árvore de frutos com a direita. À esquerda da eloquência surge outra representação feminina da retórica antiga que, acompanhada de um pavão, traz uma coroa. À sua direita, surge mais uma representação masculina da eloquência divina, que, com os olhos vendados, traz uma oferenda. A alegoria presente no manuscrito de Strada é mais simples. Ao lado direito, representa-se a eloquência humana como figura feminina acompanhada por um casal de pequenos pássaros, com uma flor (aparentemente um lírio) na mão direita e apontando ao chão com a mão esquerda. Do seu lado oposto, representa-se a eloquência divina e é nela que pretendemos chegar. Segurando uma concha com a mão esquerda, um longo cajado com a mão direita e acompanhado por um cordeiro aos seus pés, esta personificação masculina da eloquência divina nada mais é do que um ícone de São João Batista. Na simbologia do “Grande Estilo” jesuítico de pregação, portanto, a viril, cega, frutífera e natural eloquência divina concilia-se com a velha, sedutora, vaidosa e pagã arte da Retórica. São João Batista parece ajustar-se muito bem como simbologia da primeira, representando a força que advém dos céus para os frutos da conversão, a mesma força que tomou São Paulo e os demais seguidores de Cristo batizados no Espírito Santo para levarem a Boa Nova a toda criatura. Cabe, assim, perceber os atributos visuais que revelam a presença de tal força nas configurações artísticas dos pregadores, realizadas nos séculos XVI, XVII e XVIII, de modo a compreender em 31 SCAGLIONE, A. D. The liberal arts and the Jesuit College System. Filadélfia: John Benjamins Publishing Company, 1986, p. 108. 32 CAUSSIN, N. Eloquentiae sacrae et humanae parallela libri XVI. Paris: Flexiae/Sebastiani Chappelet, 1619. Disponível em: http://www.europeana.eu/portal/record/03486/F77E943719312F74D704D1309246A8 87D302A0A1.html. Não reproduzimos cópia do frontispício em virtude de direitos de imagem. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 141 que sentido eles se apresentam como preceitos da actio retórica católica, em particular, e jesuítica, de modo específico. Ilustrações Figura 1 – Rafael, São Paulo Pregando em Atenas, 1515-6. Cartão (desenho em carvão colorido sobre papel, guarnecido sobre tela). Victoria & Albert Museum, Londres, Inglaterra. Disponível em: http://www.vam.ac.uk/users/node/7928 Fig. 2 – Baciccio, Pregação de São João Batista, 1690. Óleo sobre tela 181 X 172 cm. Musée du Louvre, Paris, França. Disponível em: http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/0/01/Baciccio__The_Preaching_of_St_John_the_Baptist_-_WGA01117.jpg ISBN 978-85-61586-70-5 142 IV Encontro Internacional de História Colonial Os Mártires Jesuítas na Ocupação Espiritual do Território, Séculos XVI a XVIII: América e outras partes Renato Cymbalista1 Introdução Sofreram a morte estes bem-aventurados Irmãos pela santa obediência, pela pregação do Evangelho, pela paz, e pelo amor e caridade dos seus próximos, a quem foram prestar auxílio […]. Agora sim acreditamos que o Senhor há-de estabelecer aqui a Igreja, tendo já lançado nos alicerces duas pedras banhadas em sangue tão glorioso […] serão inundados da maior suavidade ao verem a Igreja de Deus começar a edificar-se, nestas partes de infiéis, sobre o fundamento dos Apóstolos e sobre duas pedras banhadas no sangue de dois Irmãos que viviam na mesma profissão de vida que eles.2 O trecho acima integra a carta de Anchieta a Inácio de Loyola escrita em março de 1555, em que relata os primeiros martírios de jesuítas ocorridos no Brasil. Em 24 de agosto de 1554, Pedro Correia despediu-se de seus colegas de Piratininga com lágrimas de alegria “que parece adivinhava-lhe o coração a boa ventura que por aquelas matas lhe tinha guardado o céu”. Acompanhado do Irmão João de Souza, chegando a uma aldeia Tupi em Cananéia, logrou libertar alguns prisioneiros, já prestes a serem sacrificados, entre eles um castelhano. De lá, rumou à terra dos Carijós, onde foi bem recebido e obteve a promessa de paz e até mesmo conversão à fé cristã. Mas entrou em cena o Demônio, “invejoso de tão grandes princípios”: sob a liderança do espanhol que o Padre havia libertado dos Tupis, os Carijós amotinaram-se contra os padres, terminando por matá-los, flechados “qual outro mártir, São Sebastião”.3 Na carta, Anchieta explicita um dos mecanismos associados à conquista espiritual do mundo para a Igreja Católica pelos missionários da Companhia: o sangue dos mártires, derramado sobre o solo, era elemento de conversão das terras pagãs para a cristandade. O instrumento do “batismo de sangue” é quase tão antigo quanto a Cristandade Já no século I o martírio assumiu para os cristãos conotações que foram exploradas 1 Renato Cymbalista é arquiteto e urbanista, doutora pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e professor do Departamento de História da Arquitetura e Estética do Projeto da FAU-USP. 2 “Carta do Ir. José de Anchieta ao Pe. Inácio de Loyola. São Vicente, fim de março de 1555”. In: LEITE, Serafim. Cartas dos primeiros jesuítas do Brasil. Vol. II, p. 202-204. 3 VASCONCELLOS, Simão. Vida do venerável Padre José de Anchieta. Vol. I, p. 42-45. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 143 nos séculos seguintes (e em parte até os duas atuais): o mártir garantindo recompensas no após morte e reconhecimento coletivo em escala e qualidade desconhecida de outras culturas.4 A narrativa do “Martírio de Policarpo”, contemporânea ao martírio ocorrido em Esmirna em meados do século II, atribuía ao mártir o poder de encerrar as perseguições aos cristãos,5 e associava características maravilhosas ao seu corpo durante e apos o martírio.6 No final do século II, em plenas perseguições, Tertuliano consolida em sua apologia a imagem do mecanismo que estabelecia uma relação de causa e efeito entre o martírio e o triunfo da cristandade, aplicável genericamente e, também sobre territorialidades específicas: “o sangue dos mártires é a semente da cristandade”, ou seja, as perseguições nada mais gerariam do que novos cristãos, fundados sobre os sacrifícios dos seus mártires.7 No século IV, quando o cristianismo passa a ser tolerado, dando fim às perseguições, as fontes primárias e narrativas de martírios quase cessam, iniciando-se um novo período no culto aos mártires. Conforme a fé cristã tornava-se dominante, as narrativas foram cada vez mais monumentalizadas, os locais de repouso dos mártires eram utilizados como lugares de culto e recebiam edifícios suntuosos. Multiplicavam-se os relatos de milagres ocorridos por força dos mártires e nos lugares de seu descanso. Amadurecia o culto às relíquias dos mártires e iniciavam-se os processos de traslado de corpos de mártires e sua fragmentação. A documentação sobre os martírios instala-se no território da hagiografia, os lugares de martírios e de sepultamento de mártires adquirem centralidade nas cidades, os gestores dos lugares 4 BOWERSOCK, G. W. Martyrdom and Rome. Cambridge: University Press, 1995, p. 123. 5 “Escrevemos a vós, irmãos, um relato do que passou com aqueles que sofreram o martírio, especialmente o abençoado Policarpo, que suspendeu a perseguição, como que lacrando-a com seu martírio.” Martírio de Policarpo, 1:1. Disponível em http://wesley.nnu.edu/biblical_studies/noncanon/fathers/ante-nic/polycarp/polmart.htm. Acesso em 10 de maio de 2012. 6 “Quando ele finalizou sua prece, os guardas acenderam o fogo. E uma poderosa chama brilhou. Nós, que assistimos, vimos a maravilha, e fomos preservados para podermos relatar a todos o que ocorreu. O fogo assumiu a forma de uma abóbada, como a vela de um navio inflada pelo vento, formando uma parede ao redor do mártir. E ele estava no centro, não como carne queimada, mas como […] ouro e prata sendo purificados em uma fornalha. Sentimos uma fragrância tão perfumada, como um cheiro tão perfumado, como um incenso ou outra especiaria preciosa. Finalmente, os homens sem lei, vendo que seu corpo não poderia ser consumido pelo fogo, mandaram um carrasco esfaqueá-lo com um punhal. Quando isso foi feito, o corpo soltou uma quantidade tão grande de sangue, que apagou o fogo.” Martírio de Policarpo, 15:1 a 16:2. 7 “Nec quicquam tamen proficit exquisitior quaeque crudelitas vestra; illecebra est magis sectae. Plures efficimur, quotiens metimur a vobis: semen est sanguis Christianorum”. TERTULIANO. Apologeticum, cap. 50:13. Disponível em: http://www.tertullian.org/latin/apologeticum_becker.htm. Acesso em 15 de maio de 2012. ISBN 978-85-61586-70-5 144 IV Encontro Internacional de História Colonial e das relíquias assumem posições de poder. Se na época de Constantino os cristãos celebravam cerca de 30 martírios em seu calendário, em breve todos os dias do ano estavam ocupados por celebrações de martírios. A igreja pós-constantiniana esforçava-se em legitimar-se como a herdeira da cristandade das perseguições.8 O mecanismo do “batismo de sangue” perpassou os séculos da era cristã e revelou-se de uma incrível utilidade e resiliência, adaptando-se e sendo acionado de uma forma ou de outra em todos os contextos geográficos, politicos, econômicos e teológicos. É ele – sem dúvida instrumentalizado em um contexto específico, mas intocado em sua essência espiritual – que identificamos na carta de Anchieta a Loyola. A seguir mostro como o instrumento da consagração do território foi intensivamente acionado pelos padres da Companhia de Jesus nos séculos XVI a XVIII em sua missionação em todo o mundo, não mais evocando os antigos mártires das primeiras perseguições, mas aplicado às dezenas de jesuítas sacrificados em todos os continentes no período. Trata-se de uma externalidade específica da cultura martirológica do início da Idade Moderna, que já foi abordada por diversos autores, mas aque ainda merece ser mais explorada no contexto da missionação jesuítica.9 Certamente, dentre todos os atores envolvidos no processo de globalização do Ocidente e da Cristandade, os jesuítas foram os mais propensos a arriscar e perder a vida em prol de sua fé, em múltiplas interfaces missionárias com povos de todos os continents. A diversidade e variedade de contextos e de relações interétnicas entre os jesuítas e seus algozes de diversas nações – incluindo cristãos protestantes – dificulta sobremaneira a explicação dos significados e correlações de forces envolvando cada episódio e martírio, presunção desde já abortada. O que pretendo ressaltar é a recorrente utilização do instrumento do “batismo de sangue” em um aspecto muitas vezes mencionado – mas poucas vezes estudado em profundidade – da ação da Companhia de Jesus: seu caráter global.10 Mostro também como tal processo de caráter globalizante explicitou-se também na América Portuguesa que – ainda que não tenha sediado grande número de martírios – revela também um componente martirológico na forma como os padres da Companhia relacionaram-se com a ocupação do território. 8 MARKUS, Robert. The end of ancient christianity. Cambridge: University Press, 1990, p. 99. 9 BURSCHEL, Peter. Sterben und Unsterblichkeit. Zur Kultur des Martyriums in der frühen Neuzeit. München: Oldenbourg Verlag, 2004. GREGORY, Brad S. Salvation at stake: Christian martyrdom in early modern Europe. Cambridge, Mass: Harvard University Press, 1999; NEBGEN, Christian. O renascimento do ideal de martírio no início da Época Moderna. Revista Lusófona de Ciências da Religião, n. 15, p. 129-145, 2009. 10 CLOSSEY, Luke. Salvation and Globalization in the Early Jesuit Missions. Cambridge: University Press, 2008. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 145 Mártires jesuítas, sementes da cristandade na globalização missionária da Idade Moderna Em 1549, o italiano Antonio Criminale foi morto pelos badegás na costa da Pescaria, na Índia, inaugurando a série de mais de 300 jesuítas sacrificados e celebrados como mártires. Sua morte foi comparada à de Santo Estevão e reiteradas vezes associada à frutificação da empreitada cristã: sendo santo, conservou e aumentou a santidade entre bárbaros, infiéis, maus e pecadores dando claro testemunho de suas heróicas virtudes e constancia no bem nos areais e praias da Pescaria, nas quais liberalmente derramou seu sangue por defensam da fé católica, oferecendo a Deus a vida como primícias da fecunda árvore de mártires (da Companhia de Jesus digo), sendo o primeiro que, em toda ela, assim como na primitiva Igreja S. Estevam, ofereceu a sua [vida] em testemunho de fé a Christo N. Redemptor e Senhor.11 Dom João III mandou celebrar na corte portuguesa o martírio de Antonio Criminal. Comunicou o martírio ao Papa – “que o festejou com júbilos de alegria” – na mesma carta que informou a conversão do rei de Tamor.12 No mesmo ano de 1549, o bispo de Goa João de Albuquerque, manda carta à rainha D. Catarina comunicando sobre as atividades dos padres do cabo de Comorim. Andam em todas estas partes, e as tingiram com o sangue do cordeiro, com a fé católica convertendo aos infiéis, trazendolhes à memória a paixão de Jesus Cristo, que é o verdadeiro cordeiro, as quais doutrinas em tempos passados eram muito apartadas dos corações dos gentios. Neste ano presente teve por bem Noso Senhor que um Padre desta Congregação de Jesus, por nome o Padre Antonio, italiano, foi martirizado no Campo 11 “Primeira Parte da Historia dos Religiosos da Companhia de Jesus e do que fizeram com a divina graça na conversão dos infieis a nossa sancta fee catholica nos reynos e provincias da India Oriental”. Composta pello Rev. Sebastiam Gonçalvez religioso da mesma Companhia, portugues, natural de Ponte de Mila. Publicada por WICKI, José S.I. Historia da Companhia de Jesus no Oriente. Coimbra: Atlântida, vol II, 1960 [1614], p. 28-29. 12 “Primeira Parte da Historia dos Religiosos da Companhia de Jesus e do que fizeram…”, p. 43. ISBN 978-85-61586-70-5 146 IV Encontro Internacional de História Colonial do Comorin por uns gentios, que se chamam a sua casta os badeguás, vassalos do Rei de Bisnaguá.13 O Padre Henrique Henriques, superior da Costa da Pescaria após a morte do Padre Criminal, também associa a morte e as virtudes do padre ao crescimento da cristandade na região: Foi mui grande a vida do Padre Antonio, integerrimo e castíssimo, […] nunca vi menosprezo do mundo, nem obediência, como a que elle tinha; assim como em vida foi pobre, assim na morte quis Nosso Senhor que o fosse, que nem um lençol houve para o enterrarem. Cá temos para nós que morreu martir, e pelo serviço que ao Senhor Deus tinha feito mereceu que o Senhor o agalardoasse de tal morte, porém ficamos os Padres e Irmãos muito sés e órfãos sem ele. Nele tinhamos exemplo de todas as virtudes. Os cristãos o sentiram muito: tinhão eles nele pai […] as novas dos christãos desta Costa, Deus seja louvado, são boas: vão eles em crescimento. Cada vez mais vão conhecendo mais as mentiras dos gentios e a verdade de nossa fé.14 Dali a três anos, outro jesuíta, o Irmão Luiz Mendes, foi também martirizado na mesma região, motivando novas associações entre o martírio e o crescimento da cristandade no Cabo de Comorim, como o relato do estado das missões na índia dos padres Francisco Henriques e André de Carvalho: El Cabo de Comorin es una costa de setenta leguas poco más o menos […] y en Punicale, que es uno de los principales lugares della, situaron los portugueses su habitación, en que nunca uvo más de hasta sessenta dellos, y de alli, con dos catures por la mar y algunas pieças de artellaria que tenian en tierra, hizieron tributaria la principal parte de la costa. Y por tiempo casi toda ella se convertió, a principio por ministerio de aquellos dos y otros sacerdotes, y despues en el año de 542 empeçó el P.e Maestro Francisco [Xavier] con un compañero […] y siempre continuaron hasta agora los de la Compañia en aquel menisterio; y dizesse que es ésta la más y mejor christiandad que hasta agora ay en las partes de la India, por ser de continuo ayudada y doctrinada. En esta costa han ya martyrizado dos de la 13 Documenta Indica I. Ioannes de Albuquerque Episcopus Goanus, D Catharinae, Lusitaniae Reginae, Goa, 25 Octobris 1549, p. 532-548. 14 Documenta Indica I. P.H. Henriques, Superior Piscariae, P.Ignatio de Loyola et Sociis. Punicale 21 novembris 1549, p. 579-580. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 147 Compañia, scilcet, el Padre Antonio Criminal, a lançadas, y al Hermano Luis Méndez, degollado.15 Sobre esses dois mártires refere-se o Padre Sebastião Gonçalves: Diz o santo Job que hum sangue toca outro sangue. E o real profeta David que hum abismo chama outro abismo. O sangue que o bem-aventurado P. Antonio Criminal derramou […] tocou ao Irmão Luis Mendes de nossa Companhia pera que liberalmente vertesse o seu pello augmento e defensão da christandade; o abismo da misericordia, de que Deos usou com o primeiro martyr de nossa Companhia, chamou o segundo na mesma Costa da Pescaria.16 Enquanto o martírio de Luis Mendes circulou principalmente dentro da Companhia, vimos que o martírio de Antonio Criminale ressoou junto ao Rei D. João III, a rainha D. Catarina e ao Papa, possivelmente por ser o primeiro, mas também por uma posição mais alta e por uma trajetória mais destacada na Ordem. Mas o martírio de Gonçalo da Silveira, ocorrido em 1561, transformou-se em política de estado, revelando que a relação entre o martírio e a conversão do território podia ir além de uma figura de linguagem. Gonçalo da Silveira, de família nobre portuguesa, pregou em Portugal e foi mandado a Goa em 1555 como Provincial da Companhia. Ao cabo de alguns anos decidiu ir como missionário ao lendário reino do Monomotapa, correspondente aos atuais territórios de Moçambique e Zimbábue. Após converter o rei e sua família, teria sido vítima de uma conspiração. Mouros que viviam na região inspiraram a ira do rei contra o padre, e este mandou matá-lo. Sobre ele relata o seu biógrafio Bernardo de Cienfuegos: “Dexò su pátria como otro Abrahão, passo a las Índias Del Oriente por sembrar la Fe, labrò los cãpos de la infidelidad con su própria sangre, y remato su Carrera co glorioso martírio”.17 De Trento, onde provavelmente participava da última sessão do Concílio, o geral da Companhia Diego Lainez escreveu ao Padre Provincial da Índia tratando os jesuítas mortos como parceiros na conversão das almas. De Francisco Xavier, “que 15 Documenta Indica V. Relatio [PP.Francisci Henriques S.I. et Andreae de Carvalho S.I.] de missionibus S. I. in Oriente, p. 181. 16 Primeira Parte da Historia dos Religiosos da Companhia de Jesus e do que fizeram…, p. 46. 17 Dedicatória da Vida del bienaventurado Padre Gonzalo de Sylveira, sacerdota de la Compañia de JESUS martirizado en Monomotapa, ciudad en la Cafraria, de Bernardo de Cienfuegos. Madrid: Por Luiz Sanchez, 1614. ISBN 978-85-61586-70-5 148 IV Encontro Internacional de História Colonial morreu nesta empresa, é de esperar que ajudará do céu com sua intercessão para o bom sucesso dela”. E o mesmo digo do bem-aventurado Padre Don Gonzalo, cujo sangue naquele reino esperamos será como semente, da qual se há de colher muito fruto pelos que lá depois forem, na conversão daquelas almas. Com isto V.R. deverá olhar para estas, assim como para as demais partes, [para] que se empreguem os nossos poucos operários onde se crê […] será deles mais servido Deus N.Senhor. 18 Aos jesuítas em missão na África, Lainez envia mensagem semelhante: Soubemos da mercê que fez Deus N.S. nessas partes ao P.e Dom Gonçalo, coroando seus trabalhos e virtudes com um fim tão ditoso. E entendendo que se enviava de novo gente a este reino, onde ele derramou seu sangue pela ajuda das almas, nos alegramos in Domino esperando que os enviados hão de colher muito copiosos frutos do que ele começou a semear.19 O martírio de Gonçalo da Silveira provocou a reação do próprio rei D. Sebastião, que interpretou o evento como ofensa ao reino e – investido do espírito de cruzada que caracterizou outras de suas ações – iniciou uma campanha para conquistar o reino do Monomotapa. Em 23 de janeiro de 1569, um parecer da Mesa de consciência de Portugal declarou que o Rei, tinha como obrigação defender a sua república e seus vassalos de injúrias, declarando a investida militar como guerra justa, destacando que com aquela iniciativa D. Sebastião tinha a intenção de promover a conversão e a salvação das almas, e “não amplificação de império nem honra própria ou proveito do príncipe, nem outros particulares respeitos”.20 Três meses depois, zarpava de Lisboa a armada de Francisco Barreto com a intenção de conquistar o Monomotapa. A ida de Francisco Barreto foi vista pelo biógrafo de Gonçalo da Silveira como resposta divina ao martírio: viniendo despues cõ grande exercito a aquellas partes de Monomotapa Frãcisco Barreto, Capitã Portugues, hizo q por decreto del Rey fuessen echados dela Corte de Monomotapa, 18 Documenta Indica V. P I. Lainez Praep. Gen. S. I. P. Antonio de Quadros S. I., Provinciali Indiae. Tridento, 1-2 Ianuarii 1563, p. 693-699. 19 Documenta Indica V. P. I. Lainez Praep. Gen. S. I. Sociis in Cafrariam vel Armuziam. Tridento 6 januarii 1563, p. 700-701. 20 Determinação de Letrados, Almeirim, 23 de janeiro de 1569. Apud CRUZ, Maria Augusta L. D. Sebastião. Lisboa: Temas e Debates, 2009, p. 180. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 149 todos los Moros, que en ella viviã; y entrado en Sena buscò, por ordẽ del Rey de Portugal, a todos os que avian cõcurrido en aquella muerte del P. Gõçalo: y cogiendolos a todos, los cõdenò a muerte infame, despues de muchos y extraordinarios tormentos que les dio para terror y exẽplo de otros. Y es tan grande la benignidad y misericordia de nuestro Dios, que muchos de aquellos fueron muertos, conociendo la verdad de nuestra Fê, y mirando por la salvacion de sus almas, pidieron ser baptizados: y despues de aver recebido el santo baptismo se fuerõ el cielo, como es de creer. El primero destos fue el Xeque Ampeo, mas noble de todos, y el mas doctor y aficionado a su supersticiõ: a este llamavã los Portugueses Can Perro, y quãto al parecer de todos era mas cõtrario a la ley de Christo, tãto parece devemos atribuir a las oraciones y sangre del santo P. Gõçalo, aver recebido nuestra santa ley […] Afirmavan todos, y teniase por muy cierto, que la bendita alma del santo P. Gonçalo, dese el cielo avia alcançado de Dios, que Ampeo se apartasse de la inorancia en que vivia, y fiesse alumbrado con la luz de su verdad, y en fin de la vida le concediesse dichosa muerte, aunqueen la vida avia sido tan malo.21 [em 1569, Francisco Barreto] partiu no mês de Novembro de Lisboa para Moçambique com o titulo de Governador, e Conquistador das minas de Sofala. Além da nau em que vinha, trazia outras duas, […] muito bem fornecidas de soldados e dos mais aprestos necessarios para cavar as minas e prosseguir a conquista. E porque não quis partir sem Religiosos da Companhia, os pediu com instância ao Padre Provincial de Portugal, que com esperanças de ver cultivado aquele campo regado com o sangue do venerável Padre Gonçalo da Silveira, lhe concedeu o Padre Francisco de Monclaro, Teólogo e pregador, o Padre Estevão Lopez Coadjutor espiritual, e dois Irmãos leigos, Gonçalo Diniz e Domingos Gonçalves [grifo meu].22 No fim de 1561, uma carta de um padre de Goa aos irmãos portugueses em que implora por operários para as missões aos irmãos portugueses – “os clamores de Japão e as necessidades de Maluquo, estrago da China, os suspiros de Timor e Solor, e necessidades de Camboja, Sião, Panaruqua, Java, e todas as mais da banda do sul, desejar o lume e conhecimento de seu Criador” – refere-se à África como mais bem 21 Dedicatória da Vida del bienaventurado Padre Gonzalo de Sylveira, sacerdota de la Compañia de JESUS martirizado en Monomotapa, ciudad en la Cafraria…, p. 72-74. 22 SOUZA, Francisco. Do Oriente Conquistado (Lisboa, 1710). In: REIS, João C. (org.) Empresa da conquista do senhorio do Monomotapa. Lisboa: Heuris, 1984, p. 129. ISBN 978-85-61586-70-5 150 IV Encontro Internacional de História Colonial atendida: “[a] Cafraria, onde o grão da palavra do Senhor já está começado de semear, regado com o sangue do nosso bendito Padre Dom Gonçalo.”23 O primeiro jesuíta martirizado na Etiópia nas mãos dos mouros, o padre André Gualdanes, morto em 1562, tornou segundo Baltasar Telles aquela missão “mais brilhante e apetecida”: mataram-no atraiçoadamente de noite, como se o sol não quisesse com suas luzes ver e alumiar tão horrendo sacrilégio; em falta do sol, assistiram as estrelas para acompanhar esta nova estrela que do jardim da igreja que se fundava em Etiópia, subia para ser transplantada no céu, que assim chama São Basílio aos mártires, dizendo que são estrelas do céu e flores da igreja. Grande foi a crueldade dos mouros, maior era a caridade do padre, eles deram muitas feridas, porque desejavam dar-lhe muitas mortes, ele suspirava por oferecer infinitas vidas, porque nos consta que a tudo vinha oferecido, com ânimo mui liberal, pelo bem daquela cristanade. E estas foram as primícias que a missão desta Etiópia mandou ao céu, este o primeiro religioso da Companhia que em serviço daquela cristandade acabou a vida e com a finíssima escarlate de tão precioso sangue começou a sair mais brilhante e a ser mais apetecida esta missão, desejando muitos dar as vidas para alcançar tal morte, a qual, por ser morte por obediência em serviço e bem daquelas almas, como principalmente por sem em ódio de Cristo dada a ferro, traçada e executada por inimigos de Cristo, podemos com muito fundamento piamente crer que aquele Senhor, por cujo amor o padre se ofereceu a perigos tão evidentes, o premiaria no céu entre aqueles que, por derramar seu sangue, mereceram as mais preciosas auréolas [grifo meu].24 O obituário do jesuíta inglês George Gilbert, patrono das pinturas de mártires do colégio inglês de Roma morto em 1583, explicava porque havia tomado a iniciativa de promovê-las, em meio às intensas perseguições de jesuítas (e de católicos em geral) naquele reino: Ele costumava dizer que não apenas havia procurado isto [realizar a série de pinturas de martírios] por honra daqueles gloriosíssimos mártires e para manifestar ao mundo a glória e o esplendor da Igreja [católica] da Inglaterra, mas também para 23 Documenta indica V. Fr. Onuphrius do Caso S. I. Fr. Melchiori Afonso S.I. Conimbricam Goa 11 Decembris 1561, p. 322. 24 TELES, Baltasar. História de Etiópia. Lisboa: Alfal (Biblioteca da Expansão Portuguesa, vol. 22), 1989 [1660], p. 276-277. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 151 que os estudantes naquele colégio se espelhassem nos exemplos de seus predecessors. E, além disso, que com aquelas imagens dos novos martírios o estado miserável se sua patria [Inglaterra] seria colocado ante os olhos de todos, movendo-os a rezar a Deus em favor dela.25 O poeta Henry Walpole esteve presente no martírio do jesuíta Edmund Campion, quando foi respingado com gotas de sangue do mártir, teria sido profundamente tocado pelo episódio e escrito o poema “why do I use my paper, ink and pen”, que foi a ele atribuído e circulou na forma impressa e também em versão musicada por William Byrd. O poema argumenta: “você pensou que talvez após a morte de Campion / sua pena cessaria, sua língua adocicada silenciaria / mas você esqueceu como a sua morte é lamentada / muito além do som da língua e da pena / Você não sabia que era um imenso privilégio / ter seus talentos preciosos escritos em sangue”. O impressor do poema teve suas orelhas cortadas e Walpole teve que fugir da Inglaterra, filiando-se posteriormente à Companhia de Jesus, sendo ele também martirizado em 1595.26 Às vésperas de ser martirizado juntamente com Rodolfo Acquaviva e outros três companheiros em Salsete (nas imediações de Goa) em 1583, o padre Pedro Berna, “cansando já de três anos a plantar nos corações duros daqueles bárbaros a Fé Cristã”, reclamava que um terreno tão estéril “não demandava apenas o suor, mas também o sangue de seus agricultores”,27 afirmando que: [o Salsete] nunca produziria flores de Cristandade, se não fosse regado com o sangue de Mártires, cuja auréola havia esperado em algunas ocasiones, com as revoluções de armas desnudas.28 Com efeito, após o martírio dos cinco jesuítas a cristandade começou a florescer naquelas terras, e milhares de pagãos converteram-se: Ed egli dunque, ed i Compagni ve lo sparsero abbondantemente; e non passò un’ anno, che di que’ Barbari 25 ARSI, Angl. 7, 44a-b. Apud BAILEY, Gauvin A. Between Renaissance and Baroque: Jesuit art in Rome. Toronto: University of Toronto Press, 2003, p. 324-325. 26 KERMAN, Joseph. William Byrd and Elisabethan Catholicism. In: Write all this down: essays on music. Berkeley/Los Angeles: University of Califórnia Press, 1994, p. 79. 27 Segni Maravigliosi co’quali si é compiacuito iddo di autorizzare il martírio de’ vener. Servi di Dio Ridolfo Acquaviva, Alfonso Pacheco, Pietro Berna, Antonio Franceschi, e Francesco Araña Della Companhia di Gesu. Roma, Per Antonio de Rossi, 1745, p. 39-40. 28 Los cinco martires de Salsete de La Companhia de Jesus (1701), p. 182. BNP H.G. 2761 P, 1701. ISBN 978-85-61586-70-5 152 IV Encontro Internacional de História Colonial vennero Allá Feder oltre a mille e cinquecento. A questi si aggiunsero nel 1586, e 1587 cinque Popolazioni intere, e quatro altre nel 1588, battezzandovisi mille e novecento; e lasciandovi per essere istruiti duemila Catecumeni: con gran giubilo, e maggiore maraviglia de’ Fedeli, poichè tra quelle Popolazioni una ve n’era si ostinata nell’idolatria, che il parlavi alcuno di farsi Cristiano, ed esser subito ammazzato, era tutt’uno. In Coculin apertasi già Chiesa, un giorno, mentre vi si celebrava il divin Sacrificio, vennero in truppa i Nobili tutti di un Aldea, e protesti avanti l’Altare domandarono d’essere istruiti nella Fede di Cristo, e battezzati. Nel 1590 il numero de’ nuovamente battezzati fu di tre mila ottocensessantacinque, facendovisi Christiane alcune altre Aldee, e con tan fervore, che in una d’esse cinquecento in un giorno battezzaronsi.29 O Padre Andrea Budrioli, autor do depoimento acima, afirmava em meados do século XVIII: “E é coisa notável que as cartas, que ano após ano mandavam-se daquela província, e ainda se conservam em Roma, quase todas ao relatarem de tantas conversões adicionam sempre que são fruto do sangue daqueles benditos mártires derramado naquele terreno”.30 A água do poço onde os mártires foram atirados foi considerada sagrada, e em 1635 foi edificada por um nobre local uma pequena igreja no local, com um altar sobre o poço onde foram colocadas imagens dos mártires.31 O Padre Antonio Francisco Cardim, procurador do Japão, celebra os milhares de convertidos à cristandade no Japão, após o seu solo ser regado dos sangue dos jesuítas Paulo Miki, Jacob Kisai e João de Goto, martirizados com outros 23 religiosos em 1597 pelo imperador Taicosama: Do ano de mil quinhentos e noventa e oito, no qual morreu o tirano Taicosama, até o ano de mil seiscentos e quatorze, em que a Igreja do Japão tomou alento, e respirou das perseguições passadas, se escreveram nas listas de Cristo cento cinquenta e dois mil novecentos e nove japoneses. Nem vos espanteis do Japão acudir com tão dobrados ganhos e frutos, porque no ano de mil quinhentos e noventa e nove, quarenta mil almas receberam água do santo Batismo, e no de seiscentos mais de trinta mil. É de crer que as searas de Cristo no Japão saíram com esta fertilidade, e abundância, por serem regadas com o sangue dos Mártires, 29 Segni Maravigliosi co’quali si é compiacuito iddo di autorizzare il martírio de’ vener…, p. 40-41. 30 Ibidem.., p. 42. 31 Ibidem, p. 145. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 153 que o tirano Taicosama no ano de mil quinhentos noventa e sete coroou com o título de verdadeiros mártires, tomando para si por gloriosa empresa aquelas palavras, que da primitiva Igreja afirmou gloriosamente Tertuliano: Plures efficinur quoties mettimur à vobis, semen est sanguis Christianorum. […] Que valem o mesmo que dizer: Mais crescemos quando mais somos perseguidos, porque o sangue dos Cristãos é semente, que dá fruto [grifo meu].32 O Padre Antonio Francisco Cardim comparava o martírio de Paulo Miki, crucificado, ao de Cristo, tendo seu sangue da mesma forma semeado o território: Diríamos se levantássemos os olhos, que no monte de Nagasaki Christo outra vez fora crucificado, & alanceado, pera de novo resgatar os Japões […]; morrendo com os olhos pregados no Céu, já que o corpo estava pregado na cruz, com seu sangue precioso borrifou as penedias vizinhas a aquele monte, como espalhando semente de Cristãos, que daquele sangue e daquella morte sua haveriam de nascer gloriosamente.33 Mesmo com o sangue dos mártires, o século XVII foi cruel para a cristandade no Japão, que acabou por ser proibida e perseguida. O Padre Cardim termina a apresentação do seu livro com esperanças de que o sangue derramado no Japão ajude na reconquista daquele território: Fico por isso mesmo cheio de esperanças de vindouras felicidades, pois a uma noite escura sucede o dia alegre, e formoso; ao inverno rigoroso o verão aprazível: vejo com esperança, que os olhos de Deus se dobram já, e inclinam cheios de misericórdia pera o Japão; vejo que os muros de diamante, com que aqueles Reinos se cercam, vêm caindo obrigados da força divina, e se abrem as portas ao Evangelho, o comércio se restitui àquela cidade afligida, a Fé desterrada se torna a chamar, os campos regados com sangue de Mártires se desfazem em copioso fruto. Esta única esperança me sustenta, esta consolação me dá alentos de vida [grifo meu].34 32 CARDIM, Antonio Francisco. Elogios, e ramalhete de flores borrifado com o sangue dos religiosos da Companhia de Jesus: a quem os tyrannos do Imperio de Jappão tirarão as vidas. Lisboa: por Manoel da Sylva, 1650, p. 4. 33 Ibidem, p. 30-31. 34 Ibidem, p. 11. ISBN 978-85-61586-70-5 154 IV Encontro Internacional de História Colonial Os algozes do Padre Marcelo Mastrilli, martirizado no Japão em 1637, esforçaram-se por desmaterializar seu corpo e dispersá-lo, mas o discurso do Padre Antonio Francisco Cardim busca provar que esses esforços foram em vão: Os algozes executaram sua crueldade ainda contra seu corpo morto, provando cada um nele os fios de suas catanas; nem foi muito mostrarem-se crueis nas espadas, porque se mostraram mais bárbaros ainda no fogo, porque desfizeram em cinzas aqueles despojos sagrados, que deixou sua tirania, e a estas cinzas espalharam pelos campos, e pelos rios caudalosos. Bem está Marcello glorioso, jazeis por lugares diversos, e apartados, porque estas cinzas vossas não cabem em um só sepulcro; jazeis desenterradas pelas praias, pera que vos sepultem em si corações humanos: sois espalhados como semente, pera que esperemos que hão de nascer daqui tantos Marcellos, quantas gotas de vosso sangue foram derramadas, e quantas cinzas foram semeadas de vossa fogueira [grifo meu].35 Ivan Garcia Infanzon associa o mártir Padre Diego Luis de San Vitores, morto em 1672 nas Ilhas Marianas, com os antigos apóstolos, que com seus exemplos edificaram a antiga igreja em diversas partes do mundo, na apresentação do livro que dedica à vida e morte do mártir: El Señor Omnipotente, y misericordioso […] no cessa de embiar al mundo, en todos los siglos, Varones Apostolicos imitadores de los primeros Apostoles, que con su santidad edifiquen la Iglesia con su exemplo, afervoricen los Fieles, y conviertan los pecadores. Uno de los que ha dado en este siglo [XVII] à la Companhia de Jesus, fecunda madre de semejantes hijos […] es el V. P. Diego Luis de Sanvitores, […] verdaderamente un nuevo Apostol de barbaras gentes, un glorioso Martyr, un insigne Doctor, un purissimo Virgen, à quien adornò el Señor de tantas gracias, y prerrogativas, para que fuesse digno vaso de eleccion, que llevasse su nombre à nuevas islas, y pueblos, donde nunca avia sonado la trompeta da la verdad.36 35 Ibidem, p. 231-232. GARCIA, Francisco. Vida, y Martirio de el venerable padre Diego Luis de Sanvitores, de la Compañia de Iesus, primer apostol de las Islas Marianas, y sucessos de estas islas, desde el año de mil seiscentos y sessenta y ocho, asta el de mil seiscentos y ochenta y uno. Madrid: Por Ivan Garcia Infanzon, 1683, p. 1-2. 36 ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 155 Mártires jesuítas na América: conversão do gentio, reconhecimento do território e representação cartográfica A América não foi território diferente do restante do Globo no que diz respeito à conversão do território pelo sangue dos mártires. Em 1646, com muita dificuldade na cristianização dos violentos Iroqueses e Hurones no Canadá, os jesuítas expressavam que apenas com o sangue dos mártires a empreitada seria viável: “Acreditamos que os planos que temos contra o Império de Satã para a salvação desse povo só dará frutos se ensopado com o sangue de alguns mártires”37 Com efeito, os martírios se cumpriram a partir de 1648, motivando a celebração do jesuíta Paul Raguenau no ano seguinte: Aceitamos todos esses eventos e dificuldades, pois eles nos fornecem abundantemente aquilo que viemos buscar neste canto remoto do mundo. Muitas vezes os selvagens nos repreendem com a afirmação de que a nossa fé era a única causa de suas calamidades. É verdade que essa crença sem fundamento nos causou muito sofrimento, e despertou em muitos desses bárbaros as hostilidades contra os Padres que foram assassinados recentemente, ainda assim vemos claramente que a Cruz que causou a morte do Filho de Deus, dá vida a essas pessoas, e que as perseguições geraram a Fé. Desde a morte do Padre Antoine Daniel, que ocorreu em quatro de julho do ano passado, 1648, até as mortes dos Padres Jean de Brebeuf e Gabriel Lallemant, que foram queimados e comidos em 16 e 17 do mês de Março do presente ano, 1649, nós batizamos mais de 1300 pessoas, e depois dos assassinatos até o mês de agosto, batizamos mais de 1400. Assim, a Igreja cristã foi aumentada em mais de 2700 almas em treze meses, sem contar […] aqueles que foram feitos cristãos em outros lugares. Então, são verdadeiras aquelas palavras, Sanguis Martyrum semen est Christianorum, “O sangue dos mártires” – se eles podem ser assim chamados – “é semente e germe de cristãos”.38 37 Relations des Jésuites. Montreal: Éditions du Jour, vol. 3, 1972. Apud PERRON, Paul. Isaac Jogues, from martyrdom to sainthood. In: GREER, Allan e BILINKOFF, Jodi (eds) Colonial saints: discovering the holy in America. New York/London: Routledge, 2003, p. 156. 38 Paul Raguenau, “Relation of what occurred in the Mission of the Fathers of the Society of JESUS among the Hurons, a country of New France, in the years 1648 and 1649 to the Reverend Father Hierosme Lalemant, Superior of the Missions of the Society of Jesus in New France”. In: THWAITES, Reuben Gold (ed) The Jesuit Relations and Allied Documents. Cleveland: The Burrows Brothers Company, vol. 34, 1898. Disponível em: ISBN 978-85-61586-70-5 156 IV Encontro Internacional de História Colonial Ao tomar conhecimento do martírio dos padres Horacio Cechi e Martin de Aranda em Elicura, na região de Arauco, no Chile em 1612, o padre superior Luis de Valdívia animou-se ainda mais a catequizar a região: No desistió el generoso i esforzado pecho del padre Luis de Valdivia por la muerte de los padres de proseguir los intentos de proponer los médios de paz a las províncias como cosa que lês estaba tan bien. Antes, teniendo estas muertes i martírios por gran dicha i principio de mayor felicidad, sabiendo que la sangre de los mártires siempre habia sido Riego que fecundaba la tierra de los infieles, confiado en que desde el cielo ayudarian mas con sus oraciones e intercesión a sus santos intentos i al buen deseo del rei nuestro señor que predicando con su viva voz a los índios, llamó luego para sí al padre Modolell, que estaba en Buena-Esperanza, que era misionero fervoroso i de espírito apostólico, para que con otro compañero quedase en Arauco [grifo meu].39 Se a associação entre o martírio e a ocupação do território aproximava a América dos demais continentes de missionação, em um aspecto a cultura martirológica americana se diferenciou: os mártires tornaram-se parte da cartografia jesuítica. Vários dos mapas que os jesuítas produziram como reconhecimento do território expressam sinais do sangue dos mártires. É o caso do mapa “Paraquaria Provinciae Soc. Jesu Cum Adiacentib Novíssima Descriptio”, publicado em 1732 por Johannes Petroschi (figura 1), que reeditava outro mapa de 1726 e seria ainda reeditado no mesmo ano pelo Padre Antonio Machoni, em Veneza em 1760 e em língua alemã em 1761.40 A própria dedicatória do mapa ao Geral da Companhia, Padre Francisco Retz, expunha a relação entre o sangue dos jesuítas e o território (figura 2): “A Província da Companhia de Jesus no Paraguai, dedica ao pai em Cristo, o Rev. Padre Francisco Retz, décimo-quinto Geral da Sociedade de Jesus, o mapa dos territórios cultivados e regados com o suor e o sangue de seus filhos.”41 A menção ao sangue dos jesuítas vai além da metáfora, evocando episódios reais. O mapa apresenta marcado o local do martírio de Lucas Caballero, evangelizador http://puffin.creighton.edu/jesuit/relations/relations_34.html. Acesso em 13 de maio de 2012. 39 OLIVARES, Miguel. Los jesuítas en la Patagônia: las misiones en la Araucanía y el Nahuelhuapi. Buenos Aires: Ediciones Continente, 2005 [1736], p. 70-71. 40 XAVIER, Newton R. A representação cartográfica da Província Jesuítica do Paraguai no século XVIII. Anais do V Congresso Internacional de História. Maringá, 2011, p. 2462. Disponível em http://www.cih.uem.br. Acesso em 18 de maio de 2012. Exemplar digital do mapa em alemão disponível no site da Biblioteca Nacional de Portugal em: http://purl.pt/103/1/catalogo-digital/registo/209/209.html. 41 Adaptado da tradução de XAVIER, Newton R. Ibidem, p. 2463. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 157 dos índios Manacicas da Missão de Chiquitos e fundador do aldeamento de Concepcion na Bolívia, morto em 1711. A sinalização é mais do que um sinal técnico, marca um sítio consagrado pelo próprio mártir. Neste local, Caballero encontrava-se em missão entre os índios Puyzocas, quando foi traído e ferido de morte por uma flechada nas costas. Recusou ajuda de um índio convertido que o acompanhava, pedindo-lhe que o deixasse ali. y clavando luego en tierra una cruz, que llevaba en las manos, se puso de rodillas delante de ella ofreciendo la sangre que derramaba por sus mismos matadores, é invocando los dulcísimos nombres de Jesús y de María, quebrada y deshecha la cabeza á grandes golpes de macana, entregó su espíritu en manos de su Criador el día 18 de Septiembre del año 1711.42 A morte do Padre Caballero motivou uma incursão de soldados vindos de Santa Cruz de la Sierra, aos modos de “Guerra Justa”. Ao chegarem ao local de martírio do Padre, En la mayor oscuridad de la noche vieron, no muy lejos de donde se habían acampado, una llama en forma de antorcha, que muchas veces se encendía y apagaba. Maravillados de esto, apenas amaneció cuando fueron á reconocer aquel lugar, y hallaron que resplandecía aquella antorcha sobre el cuerpo del Venerable Padre «que estaba en un pantano en una admirable postura, hincada en tierra la rodilla izquierda, extendido el pie derecho en un hoyo del pantano, la cabeza reclinada sobre la mano siniestra, y delante plantada la cruz, como mirándola.» Esta vista les acrecentó el asombro y veneración, y más hallándole entero, fresco é incorrupto, sin despedir mal olor, que parecía cosa más que natural, habiendo pasado tanto tiempo de soles ardientísimos, y por otra parte, la humedad del lugar, que como dije, era un pantano; fuera de que los cuerpos de sus compañeros estaban ya corrompidos.43 42 FERNANDEZ, Juan P. Relacion historial de las misiones de indios chiquitos que en el Paraguay tienen los padres de la Compania de Jesus. Asuncion: A. de Uribe, Vol II, 1896 (reedição da primeira edição de 1726 por Geronimo Herran), p. 108. 43 Ibidem, p. 110. Uma outra versão da descoberta maravilhosa do corpo incorrupto de Lucas Caballero encontra-se relatada em carta ânua da década de 1750, trecho reproduzido em PAGE, Carlos A. El P. Francisco Lucas Cavallero y su primera experiencia misional con la reducción de indios pampas. Revista de la Junta Provincial de Historia de Córdoba (Argentina), nº 24, p. 429-454, 2007. Disponível em http://www.carlospage.com.ar/?page_id=16, acesso em 19 de maio de 2012. ISBN 978-85-61586-70-5 158 IV Encontro Internacional de História Colonial O mesmo mapa aponta os locais, nas proximidades de Jujuy, na atual Argentina, onde foram martirizados os padres Gaspar Osório e Antonio Ripario, assassinados pelos Chiriganos em 1639; e Juan Antonio Solinas e Pedro Ortiz de Zarate (este um sacerdote não jesuíta), mortos em 1683 pelos índos do Chaco (figura 5). Assinala também o local onde Alberto Romero foi morto com um golpe de machado na cabeça pelos índios Zamucos em 1718 (figura 6).44 Na parte inferior de um mapa de 1713 que descreve a missão de Mojos, na atual Bolívia (Figura 6), são destacadas as biografias de dois jesuítas, acompanhadas de imagens de seus martírios. Na parte inferior do mapa (figura 7), encontram-se imagens dos martírios dos padres Cipriano Barace, martirizado pelos Baures em 1702, e Baltasar de Espinosa, martirizado pelos índios Movimas em 1709. As imagens encontram-se acompanhadas de biografias dos dois padres, destacando-se que foram fundadores de povoados – Trinidad (Barace) e São Lourenço (Espinoza) – evocando assim a milenar relação do mártir fundando uma comunidade cristã. Legendas similares existem também no mapa que consta da obra de Miguel Venegas sobre a Califórnia (figura 8),45 em que são representados os martírios ocorridos nas mãos dos índios Pericús em outubro de 1934 na Baixa Califórina, território do México: Lorenzo Carranco, morto em Santiago de Los Coras (figura 9); e Nicolas Tamaral, morto na Missão de São José perto do Cabo de São Lucas (figura 10). O jesuíta italiano Francesco Giuseppe (Ou François-Joseph) Bressani foi enviado ao Canadá em 1642, e foi capturado pelos iroqueses a caminho do território dos índios Hurones. Foi torturado e mutilado, mas conseguiu escapar. É de sua autoria um mapa do Canadá, de 1657(figura 11),46 que traz informações sobre o território, sobre a vida dos índios do local e também uma imagem do martírio de Jean de Brebeuf e Gabriel Lalemant, ocorridos em 1649 também nas mãos dos Iroqueses (figura 12). 44 Dados obtidos em DOBRIZHOFFER, Martin. An Account of the Abipones, an equestrian people of Paraguay. London: John Murray, vol III, 1822, p. 410-415. 45 VENEGAS, Miguel. Noticia de la California, y de su conquista temporal, y espiritual hasta el tiempo presente. Madrid: Viuda de M. Fernández, 1757. 46 http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/8/87/Jesuit_map_NF.jpg. Acesso em 12 de maio de 2012. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 159 Figura 1 – Mapa da província jesuítica do Paraguai, 1732. Fonte: ARSI, Piante 2, 004. Figura 2 – Detalhe da fig 1 ISBN 978-85-61586-70-5 160 IV Encontro Internacional de História Colonial Figuras 3, 4 e 5 – detalhes da figura 1, assinalando o local nas proximidades do povoamento de Concepción onde Lucas Caballero foi martirizado em 1711; o local onde foi martirizado Alberto Romero e os locais onde foram martirizados Juan Antonio Salinas, Pedro Ortiz de Zarate e Antonio Ripario. Figura 6 – mapa que relata a história da missão de Mojos da Companhia de Jesus (Peru), 1713. Na parte inferior do mapa, imagens dos martírios dos padres Cypriano Barapide e Baltasar de Espinosa, martirizados nesse território no início do século XVIII. Fonte ARSI, Piante 2, 005. Figura 7, detalhe do mapa da missão de Mojos de 1713. Martírios dos padres Cipriano Barace e Baltasar de Espinosa. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 161 Figura 8 – Mapa que consta do livro Noticia de La Californa, de Miguel Venegas, publicado em 1757.47 47 http://www.raremaps.com/maps/medium/21643.jpg. Acesso em 15 de maio de 2012. ISBN 978-85-61586-70-5 162 IV Encontro Internacional de História Colonial Fig. 9 – martírio de Lorenzo Carranco, Missão de Santiago de los Curas, 1734 e Fig. 10 – martírio de Nicolas Tamaral, nas imediações do Cabo de São Lucas, 1734. Mapa de Venegas, 1757 (detalhes) Figura 11 – Mapa de François-Joseph (Francesco Giuseppe) Bressani do Canadá, 1657. Fonte: Wikimedia Commons. Figura 12 – Martírio de Jean de Brebeuf e Gabriel Lalemant, ocorrido em 1649 nas mãos dos Iroqueses (detalhe do mapa de Bressani). ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 163 Não são conhecidos mapas apontando locais de martírios na América Portuguesa, mas os martírios ocorridos no Brasil, e a caminho do Brasil, foram também acionados como instrumentos de justificação da ocupação católica do território. Voltando ao depoimento de Anchieta que abre este texto, fica evidente que Anchieta tratou os martírios de Pedro Correa e João de Souza dentro de uma série, como um, dentre muitos, exemplos que conectavam os mártires jesuítas com a conquista espiritual do mundo pela Igreja católica, especialmente apoiada pela Companhia de Jesus. Sobre esses mártíres, Simão de Vasconcellos comenta: Oh almas ditosas! Oh mártires felizes! Primícias do Brasil, espelho de missionários, lustre de confessores, esmalte dos que pregam, honra dos Irmãos, glória da Companhia: com vosso sangue fertilizastes aquelas matas, com vosso exemplo ficam apetecíveis; e virá dia, em que este sangue brote em grandes colheitas d’esta gentilidade.48 O martírio de Inácio de Azevedo e seus 39 companheiros nas Ilhas Canárias em 1570, que ficaram conhecidos como os “Quarenta Mártires do Brasil”, foi peculiar, pois apontava para a conquista não do território onde foram martirizados, mas das partes aonde se dirigia o grupo para a evangelização, o Brasil. Louis Richeome constrói explicitamente a relação entre o martírio do grupo e a missionação no Brasil: O mesmo Deus pode reparar o estrago que eles fazem, e no lugar de um justo morto, ele coloca dois, ou mais, que farão o que os caídos deveriam fazer, como ele realizou após o ano deste massacre, quando mais de oitenta vestiram a batina em Roma, e recuperaram à Companhia aquilo que os bárbaros tentaram destruir. Nos tempos antigos, a cristandade crescia à medida que os cristãos eram perseguidos e martirizados, como um doutor antigo disse, o sangue dos mártires é a semente da cristandade e do campo da Igreja de Deus. E quem pode duvidar, meus caros irmãos, que as preces e méritos desses mártires fará surgir muitas quarentenas de outros operários para o Brasil, e que não tirarão tanto proveito de suas intercessões naquele país em que não chegaram a se fazer presentes? [grifo meu]49 Um dos companheiros de Azevedo que sobreviveu ao massacre foi Pero Dias, que seguiu viagem chefiando um grupo de doze jesuítas, mas um ano após o martírio 48 VASCONCELLOS, Simão. Chronica da Companhia de Jesus no Estado do Brasil e dos que obraram seus filhos nesta parte do Novo Mundo. Livro I, p. 101. 49 RICHEOME, Louis. La peinture spirituelle Apud: LESTRINGANT, Frank (ed). Le Theatre dês cruautés. Paris: Chandeigne, 2007, p. 188. ISBN 978-85-61586-70-5 164 IV Encontro Internacional de História Colonial de Azevedo, em 1571, foram eles também martirizados. Depois de ter avistado o Brasil, o navio de Pero Dias foi arrastado por correntes marítimas até as Antilhas. Retomando a rota rumo ao Brasil, foi atacado pelo corsário João Capdeville, sendo os doze jesuítas assassinados. Um auto foi composto por Anchieta para celebrar o martírio, o Diálogo do P. Pero Dias Mártir. Na ausência dos restos mortais dos mártires, especula-se se o auto foi composto em louvor ao recebimento de uma imagem do mártir, substituto – e não simples alegoria – ao seu corpo. O terceiro ato do Diálogo é cantado durante a introdução de uma imagem na igreja. No auto, escrito em forma de diálogo entre Cristo e o Mártir, o martírio apresenta similaridade com a referência bíblica ao apóstolo Pedro (Mateus 16:18). Anchieta atribui ao mártir o atributo de ser uma pedra, sobre a qual se edifica a Igreja Católica. No diálogo, Cristo afirma: “Pedro Dias pedra é / membro da pedra viva / de onde o edifício deriva / de toda divina fé”.50 O sangue dos mártires sacralizando o território surge também em um depoimento do Padre Antonio Vieira, sobre a Ilha dos Joanes (Marajó), em 1654, onde haviam sido martirizados treze padres da Companhia de Jesus: “Eu vi de longe a ilha, e confio em Nosso Senhor que cedo se há-de colher nela o fruto, que de terra regada com tanto sangue e tão santo se pode esperar”.51 Em 1687, em um contexto de exploração do sertão do Cabo do Norte (Amapá) e de disputas entre portugueses e franceses pelo domínio daquele território, os jesuítas padres Bernardo Gomes e Antonio Pereira foram deixados na aldeia de Camonixari para evangelizar os índios. Os índios da aldeia aceitaram bem os padres, mas alguns índios de aldeias vizinhas revoltaram-se contra a sua presença, Os índios chamados Oivaneca invadiram a aleia, destruíram e queimaram as casas e mataram os padres com mais quatro índios, roubando uma canela do Padre Bernardo Gomes para fazer uma gaita.52 Ao saber do que havia acontecido, o governador Artur Sá de Meneses enviou uma tropa ao local para conquistar o Cabo do Norte aos índios. A morte dos jesuítas justificaria a chamada “Guerra Justa”, por ofensa aos súditos do Rei, aos moldes da reação de Dom Sebastião um século antes daquele acontecimento, ao tomar conhecimento do martírio de Gonçalo da Silveira. Esse foi o início do processo de ocupação sistemática daquela região pelos portugueses.53 50 ANCHIETA, José. Diálogo do P. Pero Dias Mártir. In: Teatro de Anchieta. São Paulo: Loyola, 1977, p. 194-200. 51 VIEIRA, Antônio. Carta ao Padre Provincial do Brasil, 1654. In: HANSEN, João Adolfo (Organização e introdução). Cartas do Brasil. São Paulo: Hedra, 2003, p. 173-174. 52 BETTENDORFF, João F. Crônica da missão dos Padres da Companhia de Jesus no Maranhão. Belém: Secretaria da Cultura, 1990 [1698]), p. 431. 53 CHAMBOULEYRON, Rafael, BONIFÁCIO, Monique S., MELLO, Vanice. Pelos sertões ‘Estão todas as utilidades’: trocas e conflitos no sertão amazônico (século XVII). Revista de História USP, 162, p. 13-49, 1o semestre de 2010. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 165 Considerações Finais Entre os mais argumentos da santa igreja católica, com que a sua verdade manifestamente se demonstra, o principal é o sangue dos mártires constantemente derramado em todo o mundo, pela série continuada dos séculos que foram correndo desde os seus princípios até os tempos presentes.54 O trecho acima, apresentado como parte do processo de beatificação de um mártir da Companhia de Jesus na Sagrada Congregação dos Ritos no início do século XVIII, expressa a notável resiliência do instrumento do “batismo de sangue” para a Cristandade, mecanismo em plena vigência mais de 1500 anos após sua cristalização no final da Antiguidade. Os muitos exemplos trazidos por este texto revelam os padres da Companhia de Jesus como protagonistas privilegiados da generalização do instrumento da conversão do território mediante o sangue dos mártires. A auto-representação dos jesuítas como novos apóstolos foi, portanto, fortemente lastreada na vocação martirológica da Companhia. Louis Richeome explicita essas relações ao comentar as imagens de mártires sacrificados no mundo todo pintadas nas paredes do Noviciado da Sant’Andrea al Quirinale: “Eles deram suas vidas em nome de Cristo, e tingiram terras e mares com seu sangue, para que o Sol pudesse nascer e olhar para os diversos lugares do mundo inabitável”.55 Os exemplos de martírios evocados neste texto não poderiam vir de contextos mais diversos entre si, e compreender cada um deles em toda a sua complexidade significa enfrentar um rosário de desafios que excede em muito a capacidade de um só pesquisador. Ainda assim, tomados em série a partir da forma como os jesuítas os trataram, essas histórias tão díspares revestem-se de uma notável coerência, desde que estejamos dispostos a assumir duas características da ação jesuítica: Em primeiro lugar, a sua dimensão global, ou seja, agências que não pertencem a um ou alguns contextos específicos, mas que só podem ser compreendidas como fenômeno que ocorre em todos os lugares, pressupondo leituras trans-territoriais para as quais estamos pouco treinados; em segundo lugar, a milenar durabilidade – adaptada por certo, mas preservada em seu sentido básico – da ferramenta do “batismo de sangue” como instrumento de conversão de territórios para a Cristandade, situando-se em um campo quase acrônico e desafiando as nossas formas de representar a passagem do tempo. 54 GALLERATO, João B. Compendio do nascimento, vida e martyrio do servo de Deus João de Britto (Roma, 1714). História do nascimento, vida e martyrio do Beato João de Britto da Companhia de Jesus. Lisboa: Typographya de A. S. Monteiro, 1852, p. 197. 55 RICHEOME. La peinture spirituelle, p. 237 Apud BAILEY. Between Renaissance and Baroque…, p. 66. ISBN 978-85-61586-70-5 166 IV Encontro Internacional de História Colonial Carreiras e trajetórias da magistratura letrada que atuou nas Minas Setecentistas: relações de poder, possibilidades de progressão e corrupção Maria Eliza de Campos Souza1 Essas trajetórias dependiam muito de um conjunto de relações de poder que eram tecidas a partir de vínculos criados com grupos de poderosos locais e sua permeabilidade aos grupos de poder no centro. O ouvidor deveria intermediar eficazmente no exercício de suas funções os seus próprios interesses, os da Coroa e os dos poderosos locais. Atuar de forma “virtuosa” nesse intrincado jogo político da Minas não era tarefa fácil e conforme já amplamente salientado pela historiografia sobre as Minas, o mais comum era que quase sempre os ouvidores se envolvessem em conflitos com os diferentes grupos locais e outras autoridades administrativas na Capitania. Fiscalizar, arrecadar para os cofres da Coroa e administrar a justiça sem desencadear insatisfações coletivas ou de outras autoridades régias, mantendo-se a par e como parte, muitas vezes, dos grupos de interesses nos locais eram condições indispensáveis para a ascensão e enriquecimento e para outros aumentos com o cargo de ouvidor de comarca nas Minas. Os conflitos envolvendo estes ministros régios nas Minas, sempre referidos pela historiografia como indício da desorganização administrativa na região, serão aqui analisados mais como indicadores das negociações de interesses dos diferentes grupos de poder em questão numa região, e, sobretudo, como um mecanismo para reajustarem-se interesses divergentes. Quanto ao início da carreira e a trajetória até a ocupação do cargo de ouvidor em uma das quatro comarcas mineiras, o percurso para a maioria dos ministros esteve relacionado ao acúmulo de experiências em várias localidades do reino, Ilhas e ultramar. Eram nomeados para ocuparem os ofícios denominados de “primeira entrância” (instância), ou seja, para exercerem a justiça em âmbito local, junto à pequenos conselhos ou câmaras como juízes de fora ou também em alguns casos como juízes de órfãos, juízes do cível e crime, ouvidores, provedores no reino e em menor número para todos esses cargos no ultramar. Para os ouvidores mineiros a experiência necessária era adquirida em pequenas localidades no reino. O período gasto na ocupação desta primeira nomeação, feita geralmente para três anos, podia ser ampliado já que, embora não tenha sido muito comum reconduções neste grupo, serviam tempo a mais até que não fossem nomeados substitutos. As provisões régias para os cargos criavam mecanismos para o prolongamento do exercício do magistrado, uma vez que, elas eram feitas com as seguintes recomendações aos ministros para atuarem “…por tempo de três anos e além deles o 1 Doutoranda do programa de Pós-graduação em História da UFMG, bolsista CAPES/20102011 e FAPEMIG 2011/2012. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 167 mais que houver enquanto não mandar o cotrário” ou “enquanto não mandar tirar residência”.2 Até meados do século XVIII, era praxe ocorrerem nomeações em conjunto por períodos regulares, assim permaneceu até o decreto de 23 de outubro de 1759 em que se permitia fazer nomeações para os cargos à medida em que fossem ficando vagos, produzindo maior agilidade nas nomeações e também menor tempo de espera para os ministros que aguardavam a ocupação dos mesmos e ou a progressão na carreira sem ter que permanecer tanto tempo em cargos menores.3 Traço marcante no percurso dos ouvidores de Minas é que tiveram como primeira ocupação no serviço régio o cargo de juiz de fora no Reino predominantemente, sendo menos expressivos os que iniciaram suas carreiras como juízes de fora no ultramar, como demonstra o quadro que se segue. A maioria dos ministros chegavam às Minas para exercício como ouvidores de comarca após a 2ª ou 3ª ocupação em outros cargos, o que confirma ser a experiência um critério importante para a escolha dos bacharéis além dos aspectos já mencionados quanto à qualidade como estudantes. Ao todo, 68 ministros que foram para a Minas acumularam experiências no exercício de uma a quatro ocupações anteriores, além disso pelo menos quatro ouvidores de Minas possuíam não só a experiência do acumúlo de outras ocupações anteriores como foram nomeados desembargadores para terem exercício no lugar de ouvidor das Minas. Apenas doze bacharéis foram nomeados diretamente para o cargo de ouvidores depois do exame no Desembargo do Paço, o que implicava custos elevados para o bacharel e riscos para a administração da justiça conforme será discutido adiante. Por outro lado também são pouco expressivos os ouvidores que chegaram às Minas, depois de terem exercido quatro ocupações anteriores, e, portanto, no final de suas trajetórias como ministros régios, ou já com quase vinte anos de serviços. Esse foi o caso de João Lopes Loureiro, que leu no desembargo em 1692 e iniciou carreira como Juiz de fora de Esposende em que foi encarregado da superintendência do Forte e Fortificações da Marinha, do qual deu boa residência em 1705. Em seguida foi nomeado ouvidor de Barcelos, cargo em que permaneceu até dar boa residência em 1709, com nota para os serviços que prestou tendo feito muitos soldados pagos e predendo desertores deu pronta execução às ordens que lhe foram passadas. Depois desse período recebe mercê de Cavaleiro Fidalgo,4 pelos serviços mencionados em 1712 e serviu de Provedor de Guimarâes e deu boa residência em 1718. Mesmo 2 ANTT, RGM, D. João V, liv. 06, f.42v. SILVA, António Delgado da. Collecção da Legislação Portugueza. Lisboa: Typografia Maigrense, 1828, p. 722 - 723. Disponível em: http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt. 4 ANTT, RGM, D. João V, liv. 5, fl. 495. Mercê de Cavaleiro Fidalgo pelos serviços prestados por João Lopes Loureiro, com $750 réis de moradia ao mês e um alqueire de cevada dia. 1711-1712 3 ISBN 978-85-61586-70-5 IV Encontro Internacional de História Colonial 168 considerando os intervalos que teve que esperar entre uma nomeação e a outra, o ouvidor já contava em 1718 com quase vinte anos de atuação no serviço régio. Recebe a mercê do cargo de ouvidor da Comarca de Vila Rica e Ouro Preto, em 1721, onde faleceu em fins de 1722.5 Quadro 1 Trajetória dos ministros régios até chegarem a Ouvidores de Minas. Cargos Auditor Geral ; Auditor de Infantaria e regimentos Corregedor no Reino Desembargador com exercício no lugar de ouvidor de capitania no ultramar Desembargador com exercício no lugar de ouvidor de comarca em Minas Intendente Juiz de Fora em Reino Juiz de Fora nas Ilhas Juiz de Fora no ultramar Juiz das propriedades, crime, cível e dos órfãos no Reino Ouvidor em Minas Gerais Ouvidor no Reino Ouvidor no ultramar Provedor no Reino Provedor no ultramar Ordem de ocupação dos cargos 1ª 2ª 3ª 4ª 5ª 2 1 2 1 1 2 4 1 46 6 5 6 1 13 1 6 2 12 6 1 33 3 4 1 2 27 6 3 1 1 1 4 1 Fonte: ANTT, DP, Leituras de Bacharéis; Assentos de Leitura, Registro Geral de Mercês; Chancelarias Régias. A historiografia tem apontado como razão para a predominância de início da carreira como juiz de fora de pequenas localidades no reino, o fato de serem do ponto vista político e demográfico menos importantes e com critérios de admissão de bacharéis menos rígidos do que para localidades mais importantes, como cabeças de Comarca, sendo por isso, lugares ideais para iniciar a carreira.6 Contudo, há um 5 6 ANTT, DP, Livros de assentos de Leitura de bacharéis, n.129, fl.184v CAMARINHAS, Nuno, p. 266-267 ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 169 outro aspecto, ainda pouco explorado, mas certamente muito relevante para se entender os percursos da magistratura no reino e no ultramar, sobretudo em início de carreira. Como já foi salientado, o caminho que levava até a entrada para o serviço régio era longo e dispendioso para as famílias. Entrar para o serviço régio demandava um esforço em estratégias para conseguir uma nomeação, uma vez que os critérios de acesso vincunlavam-se a uma ordem burocrática-profissional mas também a uma ordem político-social, e também grandes investimentos em quantias que deveriam ser pagas à Coroa, como novos direitos, para que se exercesse um cargo no serviço régio. No caso da primeira nomeação, certamente esses valores seriam cobertos pelas famílias dos ministros, que eram por ocasião de entrada no serviço régio quase sempre solteiros, e ainda dependentes da fortuna de seus ascendentes. Apenas quatro desses ouvidores já estavam casados quando fizeram o exame de Leitura de bacharéis. A composição dos valores cobrados como novos direitos, por cargos ocupados pelos ministros, levava em conta uma avaliação dos redimentos que poderiam ser alferidos através da atuação em cada um desses lugares. Os redimentos, emolumentos e salários acabavam por definir um valor que deveria ser pago todas a vezes em que se recebia a mercê de nomeação para exercerem cargos na magistratura régia. Para muitos cargos em que não era possível fazer o cálculo dos rendimentos totais em função de propinas e emolumentos variáveis, os ministros assinavam fiança dos novos direitos a pagar sobre os rendimentos a mais que houvesse. Não se trata de uma avaliação propriamente dita do cargo, uma vez que não são patrimonializaveis,7 como eram muitos outros ofícios, mas sim de uma espécie de imposto calculado sobre os rendimentos que se poderia obter com o exercício do mesmo. E quando se passava de um cargo cujos rendimentos não propiciavam melhoras, não se pagavam os Novos direitos. Os cargos de primeira entrância, em particular aqueles das pequenas vilas no Reino eram os que demandavam menores quantias em novos direitos, os quais ficavam mais elevados para as judicaturas em cidades e vilas principais e ainda mais elevados em determinadas localidades no ultramar. Como exemplo, temos o pagamento de 288$465 mil réis, mais fiança da mesma quantia, em Novos Direitos pagos pelo ministro nomeado como juíz de fora da cidade de Mariana em 1747,8 na 7 Não se está falando de ofícios, serventias, que se tinham como propriedade vitalícia e que em muitos casos eram legados aos filhos, e para os quais muitas vezes se nomeavam serventuários, em troca de rendimentos. Sobre os quais recaiam também os Novos Direitos e mais donativos e terças-partes, e que podiam ser concedidos muitas vezes como mercês em remuneração de serviços prestados ao rei. Discute-se aqui apenas os cargos com provimento régio trienal e não patrimonializáveis, pois era imprescíndivel para ter acesso a eles uma formação letrada e a aprovação do Desembargo. 8 ANTT, Chancelarias Régias, D. João V, liv.116, fl. 69, Carta de juiz de fora de Mariana concedida a Francisco Ângelo Leitão, 6-5-1747 ISBN 978-85-61586-70-5 IV Encontro Internacional de História Colonial 170 Comarca de Vila Rica de Ouro Preto, em Minas. Valor exorbitante se comparado com o que se pagava para assumir o mesmo cargo em qualquer outra localidade no reino, em média 30$000 mil réis em novos direitos, sendo que em muitas pequenas localidades o valor não passava de 20$000 mil réis, conforme levantamento feito para valores pagos em novos direitos ao assumirem os cargos citaddos antes de serem nomeados para o cargo de ouvidores nas Minas. Quadro 2 Valores pagos em novos direitos para os cargos de juiz de fora ocupados pelos ouvidores que atuaram em Minas Cargo Juiz de Fora da Cidade de Funchal Juiz de Fora da Cidade de Loanda Juiz de Fora da Cidade de Ponta Delgada Juiz de Fora da Ilha de Santa Maria Juiz de Fora da Vila de Alcacer do Sal Juiz de Fora da Vila de Cea Juiz de fora da Vila de Couruche Juiz de fora da Vila de Fayal Juiz de Fora da Vila de Figueira Juiz de fora da Vila de Mafra Juiz de fora da Vila de Mourão Juiz de fora da Vila de Paracatu Ano Valor pago de Novos direitos 1798 31$303 1772 95$000 1717 20$000 1790 43$250 1800 100$000 1730 35$000 1739 10$000 1784 30$00 1778 26$666 Fiança de outra tanta quantia fiança do valor total dos novos direitos Pagou Novos direitos do tempo que serviu a mais no cargo 20$000 1742 100$000 16$542 X 1748 30$000 1799 129$059 ISBN 978-85-61586-70-5 189$748 Encontros com a história colonial Juiz de fora da Vila de Paracatu Juiz de Fora da Vila de Santa Marta Juiz de Fora da Vila de Santos Juiz de Fora da Vila de Terena Juiz de Fora da Vila de Viana Juiz de fora de Almada 171 1802 115$000 1776 X 1786 98$750 1786 26$666 1707 7$500 1722 14$635 Juiz de Fora de Almada 1723 14$625 Juiz de Fora de Almodovar Juiz de Fora de Castelo Branco Juiz de Fora de Couruche 1716 12$750 1708 13$813 1764 23$333 Juiz de Fora de Guimarães 1715 35$000 Juiz de Fora de Landroal 1728 12$875 Juiz de Fora de Mariana 1788 72$416 Juiz de Fora de Mariana 1747 288$465 Juiz de Fora de Mariana 1776 98$750 Juiz de Fora de Monsaraz Juiz de Fora de Montemor-velho Juiz de Fora de Ourique 1782 12$875 288$465 145$176 1794 80$269 1720 17$500 Juiz de Fora de Pinhel Juiz de Fora de Ponte de Lima Juiz de Fora de Portimão Juiz de fora de Rio de Janeiro Juiz de Fora de São Miguel 1759 41$666 1720 13$750 13$750 1717 11$250 11$250 1739 69$625 69$625 1720 12$500 12$500 Juiz de Fora de Satarém 1780 26$666 Juiz de Fora de Setubal 1742 39$250 Juiz de Fora de Setubal 1722 13$750 Juiz de Fora de Soure 1721 24$500 ISBN 978-85-61586-70-5 11$908 IV Encontro Internacional de História Colonial 172 Juiz de Fora de Valença do Minho Juiz de Fora de Vila de Campo Maior Juiz de Fora de Vila de Castelo Rodrigo Juiz de Fora de Vila Nova de Cerveira Juiz de fora de Viseu 1798 45$947 1731 30$000 1728 25$500 1771 31$666 1730 16$825 Juiz de Fora do Porto 1739 52$500 Juiz de Fora do Porto Juiz de Fora do Rio de Janeiro Juiz de Fora e dos Órfãos de Salvador Juiz do Crime da Bahia Juiz dos Feitos da Coroa e Fazenda da Casa da Suplicação (após cargo de ouvidor) Juiz dos órfãos da cidade da Guarda Juiz dos órfãos do Bairro Alto Juiz Geral das Coutadas(após cargo de ouvidor) 1748 87$500 1716 37$500 20$660 5$677 16$825 1727 24$548 X 1794 114$686 1758 155$00 1751 50$000 1778 1767 X 13$415 43$333 Nesse sentido, cabe ressaltar que muitos destes ministros iniciavam suas carreiras no reino também por serem postos mais acessíveis do ponto de vista financeiro. Para suas famílias, que já haviam suportado o peso da manutenção ao longo da formação e mais todos os encargos com atos e exames de formatura e no Desembargo do Paço, arcar ainda com novos direitos elevados era para muitas delas investimento improvável. Assim, começavam pelos lugares menores no Reino, permaneciam neles por um período entre 3 a 5 anos, e somente na segunda ou terceira nomeação iam para lugares em que os rendimentos eram mais elevados mas para os quais também se pagavam novos direitos maiores, como era o cargo de ouvidor nas Minas. Para o grupo de ovidores das Minas, esse período como juizes de fora em várias localidades no reino foi essencial no desenvolvimento futuro de suas carreiras. Nessas ocupações estruturavam suas famílias e redes sociais e de poder, também ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 173 muito importantes para assegurar nomeações futuras, já que dar boa residência9 ao final do exercício nesses cargos dependia duplamente dos serviços prestados e das testemunhas que no processo acabavam definindo a qualidade dos serviços do magistrado. Para os que entravam no serviço régio sem se casarem, geralmente o faziam em sua primeira ou segunda nomeação. E quando se casavam com mulheres da região onde exerciam a judicatura precisavam de autorização régia, o que muitas vezes constituia impecilho e atraso nas núpcias desses ministros, os quais somente recebiam a autorização para depois terminassem o exercício do cargo na localidade de onde provinha a noiva. Na verdade, muitas provisões de cargo, especialmente no ultramar, determinavam que os ministros não se casassem naquelas localidades, sob pena de verem nulas as promessas de acederem aos postos mais elevados como os de desembargadores de tribunais superiores. Embora fossem cargos cujos rendimentos não eram muito elevados como os de outros postos no ultramar, foi a partir deles que esses magistrados acumularam o necessário para investirem na carreira ultramarina, tanto do ponto de vista social como financeiro, já que os novos direitos pagos para aceder aos cargos em Minas Gerais eram sensivelmente mais elevados e no caso das ouvidorias demandavam quantias avultadas conforme tabela seguinte. Apesar de no início do século XVIII, quando ocorreram as primeiras nomeações para o cargo, o valor do novos direitos pagos serem baixos e equivalentes aos de outras regiões, logo foram elevados e depois sofreram variações relativamente pequenas ao longo do século e com tendência ao aumento dos valores. 9 As residências eram processos de inquirição de testemunhas, abertos na localidade onde atuaram os ministros régios, conduzido geralmente pelo sucessor que abria a sindicância e depois enviava aos tribunais superiores que julgavam as residências e aprovavam ou não os ministros. Ver: SUBTIL, José. O Desembargo do Paço (1750-1833). Lisboa: UAL, 1996, p. 311-320. ISBN 978-85-61586-70-5 IV Encontro Internacional de História Colonial 174 Quadro 3 Novos direitos pagos pelos nomeados ao cargo de ouvidores Cargo Ouvidor da Comarca de Vila Rica e Ouro Preto Ouvidor da Comarca de Vila Rica e Ouro Preto Ouvidor da Comarca de Vila Rica e Ouro Preto Ouvidor da Comarca de Vila Rica e Ouro Preto Ouvidor da Comarca de Vila Rica e Ouro Preto Ouvidor da Comarca de Vila Rica e Ouro Preto Ouvidor da Comarca de Vila Rica e Ouro Preto Ouvidor da Comarca de Vila Rica e Ouro Preto Ouvidor da Comarca de Vila Rica e Ouro Preto Ouvidor da Comarca de Vila Rica e Ouro Preto Ouvidor da Comarca de Vila Rica e Ouro Preto Ouvidor da Comarca de Vila Rica e Ouro Preto Ouvidor da Comarca do Rio das Mortes Ouvidor da Comarca do Rio das Mortes Ouvidor da Comarca do Rio das Mortes Ouvidor da Comarca do Rio das Mortes Ouvidor da Comarca do Ano Valor pago de Novos direitos Fiança de outra tanta quantia 1748 342$875 342$875 1739 337$500 1721 56$250 56$250 1723 172$875 172$875 1744 333$675 1765 689$167 1758 692$500 1801 250$687 1711 60$000 60$000 1715 16$900 16$900 1718 157$500 1733 847$000 1775 425$000 1718 52$500 1758 425$000 1747 212$500 212$500 1723 57$500 57$500 Fiança do valor total dos novos direitos Pagou Novos direitos do tempo que serviu a mais no cargo X 52$500 ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 175 Rio das Mortes Ouvidor da Comarca do Rio das Mortes Ouvidor da Comarca do Rio das Mortes Ouvidor da Comarca do Rio das Mortes Ouvidor da Comarca do Rio das Mortes Ouvidor da Comarca do Rio das Mortes Ouvidor da Comarca do Rio das Mortes Ouvidor da Comarca do Rio das Mortes Ouvidor da Comarca do Rio das Mortes Ouvidor da Comarca do Rio das Velhas Ouvidor da Comarca do Rio das Velhas Ouvidor da Comarca do Rio das Velhas Ouvidor da Comarca do Rio das Velhas Ouvidor da Comarca do Rio das Velhas Ouvidor da Comarca do Rio das Velhas Ouvidor da Comarca do Rio das Velhas Ouvidor da Comarca do Rio das Velhas Ouvidor da Comarca do Rio das Velhas Ouvidor da Comarca do Rio das Velhas Ouvidor da Comarca do Rio das Velhas Ouvidor da Comarca do Rio das Velhas Ouvidor da Comarca do 1802 128$000 1733 198$750 1761 337$500 1731 193$200 1779/1791 330$000 1807 204$000 1711 37$500 1740 183$375 1779 388$333 1748 180$000 180$000 1744 6$800 6$800 1713 68$500 1758 425$000 1725 68$572 1802 466$000 198$750 37$500 68$572 1789 X 1729 67$875 1772 425$000 1752 168$750 1720 147$475 1742 195$500 67$875 168$750 195$500 ISBN 978-85-61586-70-5 IV Encontro Internacional de História Colonial 176 Rio das Velhas Ouvidor da Comarca do Rio das Velhas Ouvidor da Comarca do Serro do Frio Ouvidor da Comarca do Serro do Frio Ouvidor da Comarca do Serro do Frio Ouvidor da Comarca do Serro do Frio Ouvidor da Comarca do Serro do Frio Ouvidor da Comarca do Serro do Frio Ouvidor da Comarca do Serro do Frio Ouvidor da Comarca do Serro do Frio Ouvidor da Comarca do Serro do Frio Ouvidor da Comarca do Serro do Frio Ouvidor da Comarca do Serro do Frio Ouvidor da Comarca do Serro do Frio Ouvidor da Paraíba (anterior a Minas) Ouvidor da Paraíba (anterior a Minas) Ouvidor de Vila do Príncipe Ouvidor de Vila do Príncipe Ouvidor do Azeitão (Portugal, anterior a Minas) Ouvidor Geral da Capitania do Maranhão (anterior a Minas) 1738 197$875 1758 294$066 1738 137$500 137$500 1726 62$500 62$500 1720 90$000 1798 222$083 1790 208$384 1765 275$370 1747 152$500 1783 275$840 1772 301$666 1778 266$666 1755 282$500 1705 20$000 1711 18$087 1744 147$500 1732 202$300 1711 27$500 27$500 1733 39$625 39$625 X 152$500 20$000 147$500 ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 177 A partir dos dados coletados nos dois quadros anteriores percebe-se a diferença entre o que era necessário investir para ocupação de cargos no reino e no ultramar, particularmente nas Minas no século XVIII. Além dos novos direitos serem muito mais elevados para os cargos nas Minas, e, sobretudo, para o de ouvidor de comarca, é preciso considerar também os custos com a viagem até as localidades. Muitos magistrados, nesta ocasião de irem para as Minas, já estariam com suas familias constituídas e não era raro que os familiares os acompanhassem. Também era comum receberem mercês de ajuda de custo para as viagens, mas também chegavam a contrair empréstimos para tal fim. Este foi o caso do ouvidor João Gualberto Pinto de Moraes Sarmento, que recebeu uma mercê para tomar empréstimo de 6 mil cruzados para seu transporte e estabelecimento nas Minas, como ouvidor da Comarca do Rio das Velhas, com sua mulher, sete filhos e cunhados.10 Deu como garantia no empréstimo os rendimentos sobre o ofício de escrivão da mesa do Sal de Lisboa, do qual era proprietário, por um período de dez anos. Anteriormente havia exercido o cargo de juiz de fora de Santarem, mas já era proprietário do ofício citado mesmo antes de entrar para o serviço régio, o que lhe assegurava rendimentos e uma condição diferenciada de outros ministros régios. Apesar do cargo de juiz de fora e órfãos em outras localidades do Brasil demandarem investimentos superiores aos necessários para os mesmos cargos no reino, os valores que eram pagos em novos direitos para ocuparem os mesmos cargos nas Minas superavam os demais. Para o caso do cargo de ouvidor as diferenças são ainda mais significativas conforme visto, e levando-se em conta que esses valores se compunham com base nos rendimentos dos cargos, está claro que os investimentos, por mais elevados que fossem, seriam devidamente recompensados, como será discutido no capitulo 3, através uma remuneração de serviços generosa. Pode-se dizer que a trajetória mais comum entre os ministros régios nomeados para exercerem o cargo de ouvidores nas Minas esteve associada ao exercício do cargo de Juiz de fora no reino, locais onde acumularam as experiências administrativas necessárias e o saberes quanto ao funcionamento dos poderes locais, tão úteis ao contexto das Minas. Além disso, acumulavam valores necessários ao pagamento dos novos direitos, visto que um número significativo deles pagou o valor correspondente sem dar fiança, e outros deram fiança apenas da metade do valor. Para os que constituiram famílias, a maioria o fez ainda quando exerciam esses cargos e, portanto, criavam laços de sociabilidade nesses locais. Quase não houve ouvidores que casaram-se em Minas. Raramente o seu percurso passou por outras áreas do Império, e são poucos os casos de exercício de cargos em outras capitanias no Brasil com destaque para Paraíba, Bahia e Rio de Janeiro, Pernambuco e Maranhão. Outra questão a pontuar é que poucos exerceram o cargo de ouvidores em outras localidades antes de o exercerem nas Minas, assim como poucos 10 ANTT, RGM, D. Maria I, liv. 1, fl.371v. 14-12-1779. ISBN 978-85-61586-70-5 178 IV Encontro Internacional de História Colonial ocuparam o posto de corregedores no reino, e cujas as funções eram desempenhadas nas Minas pelos ouvidores de comarca. Se para o caso das primeiras nomeações ao serviço régio, eram importantes as informações sobre os ministros repassadas pela Universidade e todo o processo de exames no desembargo, para as nomeações seguintes a essas primeiras era fundamental que o ministro apresentasse comprovações sobre o seu bom desempenho nos cargos anteriores. Para todos os ouvidores nomeados para as Minas encontramos a referência de que estavam sendo nomeados por terem servido bem e dado boa residência dos cargos anteriores, pelas suas qualidades de bom ministro. Sempre que possível, mencionavam nas petições que dirigiam ao rei nos concursos de bacharéis outras qualidades importantes na escolha, como ser filho legitímo de outro ministro e desembargador, fazer menção aos serviços prestados por parentes, todos aspectos levados também em conta nas nomeações. Entretanto, o traço mais visível no grupo de ouvidores mineiros era o de serem magistrados já com experiência anterior e da qual deram boa residência, além disso, como antes foi mencionado a qualidade de suas formações, e o bom desempenho na Leitura do Desembargo. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 179 Ouvidores régios e as redes comerciais locais: negócios e conflitos na capitania do Ceará no século XVIII Reinaldo Forte Carvalho1 Introdução A partir do século XVII a grande conveniência das terras dos sertões do Ceará para a criação do gado, proporcionou rapidamente a ocupação e conquista desta região através da divisão das sesmarias na capitania para inúmeros representantes da Coroa portuguesa. A ocupação aos poucos foi acontecendo com a inserção de algumas famílias que passaram a consolidar a formação de importantes núcleos familiares dentro do processo de organização social na capitania do Ceará. A formação dos primeiros núcleos familiares na capitania do Ceará é o ponto de partida para compreensão de determinados fenômenos referente à organização dos principais grupos que detinham o poder de mando sobre as terras da capitania. Partindo desta perspectiva, se descortina assim dados preciosos sobre as formas de composição, formação e organização social dos poderes locais na capitania do Ceará. Portanto, estudar a formação das famílias no pano de fundo de suas historicidades regionais, significa ainda um esforço de síntese, no sentido de compor um quadro mais amplo, abarcando ao mesmo tempo a reconstituição de suas experiências de vida local, e nuanças ou conjunturas de inserção nas redes de sociabilidade e poderes da sociedade colonial. Em meio a esse contexto de concessão de terras e o processo de povoamento progressivo na capitania através dos primeiros núcleos familiares que foram sendo incorporados ao longo das ribeiras do Jaguaribe, Acaraú e Salgado, surgiram diversos conflitos envolvendo colonos, jesuítas, administradores régios e as populações indigenas. No processo de ocupação da capitania as populações indígenas passaram a ser inicialmente inseridas dentro da dinâmica da política colonizadora, no entanto devido a resistência indígena grande parte das comunidades foram sendo exterminadas nas “guerras justas” por determinação do poder administrativo da Coroa portuguesa que ficou marcado na historia como a “guerra dos bárbaros”. O ímpeto do colonizador português proporcionou o avanço e a expansão da pecuária para o interior da capitania cearenses através da instalação dos criatórios de gados as margens das ribeiras tanto do Jaguaribe como do Acarau. Segundo Almir Leal de Oliveira a expansão da pecuária para o interior da capitania intensificou o processo colonizador definido pelas diretrizes de povoamento emanadas da política metropolitana. 1 Professor efetivo UPE. Doutorando UFPE. Bolsista CAPES. ISBN 978-85-61586-70-5 180 IV Encontro Internacional de História Colonial Durante a conquista e colonização, a expansão dos interesses metropolitanos seguiu assim o desenvolvimento da atividade pastoril: abriram-se os caminhos pelo o sertão, pelas ribeiras dos rios, gerando povoamento rarefeito e formando as fazendas de criar. Desta forma se formaram as principais rotas de boiadas, sendo que a principal se iniciava na foz do Jaguaribe e penetrava o sertão pela ribeira deste rio até o Cariri, onde se integrava com outros caminhos coloniais.2 A organização da atividade pastoril e das oficinas de carne seca intensificou gradativamente o interesse por parte dos criadores na aquisição de mais terras para a criação de gado no interior da capitania. De acordo com Francisco José Pinheiro que analisa a formação social do Ceará esse processo consolidou a estrutura do poder local na capitania através dos principais núcleos familiares que se caracterizavam dentro do principio “predominantemente agrário, onde o acesso a terra se transformou em importante elemento de poder”.3 A posse da terra era um elemento fundamental dentro do processo de ocupação e conquista da capitania devido à exigência da política mercantil no processo de inserção das fazendas de gado nas ribeiras do Jaguaribe, Acaraú e Salgado. A adaptação e criação de gados “vacuns e cavalares” às margens das ribeiras da capitania estrategicamente promoveram a formação e consolidação dos primeiros núcleos familiares que passaram a definir elementos típicos de organização de uma sociedade marcada pelos elementos representativos do domínio dos potentados locais e da exacerbação da prática da violência social. Outro fator importante na expansão da pecuária, é que, não só a mesma contribuiu com o processo de povoamento da capitania, como também supria a necessidade econômica das capitanias que careciam do consumo interno da produção da carne seca e da salga e secagem do couro. Este fator proporcionou o surgimento das principais rotas das boiadas que se entre cortavam pelos sertões adentro das capitanias, interligando-as a outros pólos produtores da economia interna colonial. De vassalos do império a senhores das terras nos sertões do Ceará 2 OLIVEIRA, Almir Leal de. “A dimensão atlântica da empresa comercial do charque: o Ceará e as dinâmicas do mercado colonial (1767-1783)”. In: Anais do I Encontro Nordestino de História Colonial: Territorialidades, Poder e Identidades na América Portuguesa – séculos XVI a XVIII. Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2006, p. 2 3 PINHEIRO, Francisco José. Notas sobre a formação social do Ceará (1680-1820). Fortaleza: Fundação Ana Lima, 2008. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 181 Na ocupação das terras da Capitania do Ceará na primeira metade do século XVIII, a pecuária teve um papel de suma importância no processo de povoamento e fundação das primeiras vilas e núcleos urbanos que passavam a surgir ao longo deste período. A margem da ribeira do Jaguaribe foi se estabelecendo inúmeras vilas e as primeiras fazendas de gados e as oficinas de carne seca. A expansão que a pecuária promoveu chamou a atenção e o interesse da administração portuguesa para a Capitania do Ceará em relação ao aumento das exportações de carne seca para outras capitanias. A partir da regularização da ocupação da capitania do Ceará, surgiram as primeiras vilas dentre elas Aquirás, Fortaleza e Aracati. A vila de Aquirás que em principio serviu de cabeça de termo, e da comarca rivalizava-se com Fortaleza pela disputa da sede da capitania. As precárias condições, a falta de um porto para ancorar as naus da Coroa e o pouco adiantamento que teve a vila Fortaleza excitara pela remoção da sede para a então vila de Aracati que se localizava nas margens da ribeira do Jaguaribe, principal acesso que interligava facilmente o percurso entre o litoral e o sertão da capitania. De acordo com a historiografia cearense o processo de ocupação e povoamento do território cearense se deu fundamentalmente devido o avanço da atividade da pecuária nos sertões da capitania que chamou a atenção e o interesse da Coroa portuguesa que efetivamente passou a distribuir inúmeras cartas de sesmarias. Segundo Francisco José Pinheiro, a partir da distribuição e doação das cartas de sesmarias se acentuou predominantemente a inserção dos núcleos familiares nos sertões da capitania, promovendo assim, o avanço da pecuária. Para o autor, esse processo contribuiu decisivamente na formação da estrutura fundiária e na organização dos principais potentados locais nos sertões da capitania do Ceará. De acordo com Pinheiro, “das 2.472 (duas mil quatrocentos e setenta e duas) cartas/datas solicitadas, num período de mais de um século e meio, 91% tinham como justificativa a necessidade de terra para ocupá-la com a pecuária”.4 O avanço da pecuária no interior do Ceará não só contribuiu para acelerar o processo de povoamento desta região, como também definiu a forma que o governo metropolitano exerceu na prática seu poder de ocupação, esquadrinhando as terras da capitania através da distribuição das doações em prol dos interesses mercantilistas, como cita Pedro Théberge: Ao passo que os Missionários iam estendendo suas missões para o interior da capitania, os colonos iam também se apoderando das terras próprias para a criação do gado, e solicitavam dos Monarcas portugueses doações ou datas de sesmaria delas. Esta penetração para o centro sempre se fazia seguindo o curso dos 4 Ibiden, p. 24 ISBN 978-85-61586-70-5 182 IV Encontro Internacional de História Colonial rios. O Jaguaribe e o Acaraú foram os que se prestaram primeiramente à estas povoações; por isto é dificílimo adquirirse hoje documentos destas concessões feitas pelos Reis.5 Conforme Théberge o processo de povoamento seguia a risca as regras da Coroa portuguesa. Pois, o processo de ocupação das terras da capitania do Ceará inicialmente definiu uma organização social que tem como base na estrutura do tripé: família, poder e propriedade. Sobre esta questão João Brígido, relata que na proporção que a capitânia foi se desenvolvendo, a riqueza tornava os grandes proprietários insolentes, e em verdadeiros tiranos do sertão: Dominando hordas selvagens, que tinham reduzido á obediência, com as armas na mão, longe da autoridade, cuja acção enfraquecida pela distancia mal se fazia sentir, taes homens viviam em perfeita licença e dominavam os outros colonos do modo o mais completo. Nos pontos mais longínquos, sobre tudo, uma só vontade dominava, era a do mais rico e mais afamiliado: a lei e o dever eram cousas inteiramente ignoradas.6 No contexto da ocupação das terras ao sul da capitania, duas famílias se sobressaem em relação à demonstração de seu poder, prestigio e riqueza. Segundo o Dr. Pedro Théberge, entre as “mais notáveis famílias que occupavam o interior, duas merecem a nossa attenção pelo numero de seus membros, pela sua riqueza, pela clientela que souberam crear, e pela rivalidade calamitosa que as desuniu: são as dos Montes e dos Feitosas”.7 A trajetória destas famílias ficou marcada nos anais da história do Ceará devido às práticas de poder exercida por estes grupos que ao longo do processo de organização foram se constituindo como os principais representantes das elites locais, que “de modo semelhante aos senhores de engenho, os barões do gado e os magnatas do interior – os “poderosos do sertão”, como eram chamados – tendiam a se constituir na própria lei”.8 THEBERGE. P. (Dr.). Esboço histórico sobre a província do Ceará. Edição fac-sim (1895). – Fortaleza: Fundação Waldemar Alcântara, 2001, p. 86 5 6 BRÍGIDO, João. Apontamentos para a história do Cariri. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora Ltda, 2007, p. 34 7 THEBERGE. P. (Dr.). Esboço histórico sobre a província do Ceará…, p. 127. 8 BOXER, Charles R. O império marítimo português, 1415-1825. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 322 ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 183 Nestes potentados locais as práticas de poder se constituíam num elemento integrante no cotidiano social das famílias do sertão do cearense que se enfrentaram pelos mais torpes motivos. Segundo Antonio Otaviano Vieira Junior, “violência e família se complementavam num cenário marcado pela fragilidade da presença do Estado e por um acentuado, quadro de miséria; onde elementos culturais, como honra e propriedade, forjavam álibis que faziam da família um lócus aglutinador de demandas violentas”.9 Em um relato marcante sobre a família Feitosa, o viajante inglês Henry Koster na sua passagem pelo Ceará em 1810 destacou o poderoso prestigio que esta família detinha na estrutura político-administrativa da região, destacando a violenta ação militar empregada pelos membros da mesma para resolver as inúmeras querelas: A família Feitosa ainda existe no interior desta Capitania (do Ceará) e na do Piauí, possuindo vastas propriedades, cobertas de imensos rebanhos de gado. No tempo de João Carlos (Augusto de Oeynhausen Gravenburg, capitão-mor governador do Ceará de 1803 a 1807), o chefe dessa família chegara a tal poder que supunha estar inteiramente fora de alcance de qualquer castigo, recusando obediência às leis, tanto civis como criminais, fossem quais fossem. Vingavam pessoalmente as ofensas. Os indivíduos condenados eram assassinados publicamente nas aldeias do interior. O pobre homem que recusasse obediência às suas ordens estava destinado ao sacrifício e os ricos, que não pertencessem ao seu partido, eram obrigados a tolerar em silencio os fatos que desaprovam. Os Feitosas são descendentes de europeus, mais, muitos dos ramos têm sangue mestiço e possivelmente raros são os que não teriam a coloração dos primitivos habitantes do Brasil. O chefe da família era coronel de milícias, e podia, ao primeiro chamado, pôr em ermas cem homens, o que equivale a dez ou vinte vezes esse número numa região perfeitamente despovoada.10 Em um estudo especifico sobre as relações de poder das famílias locais, Billy Jaynes Chandler afirma que a família dos Feitosas “estava bem fortalecido pela sólida 9 VIEIRA Jr, Antonio Otaviano. Entre paredes e bacamartes: história da família no sertão (1780-1850). Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, Hucitec, 2004, p. 20 10 KOSTNER, Henry. Viagens ao Nordeste do Brasil. Tradução, prefácio e comentários: Luis da Câmara Cascudo. 12ª Ed. V, I. Rio de Janeiro, São Paulo, Fortaleza: ABC Editora, 2003, p. 189 ISBN 978-85-61586-70-5 184 IV Encontro Internacional de História Colonial estirpe e riqueza em terras o suficiente para colocá-lo entre os potentados dos Inhamuns”.11 Portanto, o processo de organização e ocupação e conquista da região os primeiros núcleos familiares do sertão cearense se caracterizaram a partir do modelo de família que é definida pelo nível de dominação local com base nas relações de poder que envolvem a grande propriedade, as redes familiares e na violência das ações. O comércio de carne seca: elites e comerciantes locais nas redes de conexões mercantis No inicio do século XVIII, a dinâmica do povoamento do território do Ceará se intensificou com as expedições de colonos que se dirigiam para o interior da capitania com o fim de explorar as riquezas das terras dos sertões cearenses. A implantação das fazendas de gado junto às ribeiras do Jaguaribe e Acaraú proporcionou rapidamente o desenvolvimento do comércio e organização de núcleos familiares possibilitando gradativamente o surgimento das primeiras aldeias, vilas, câmaras municipais e instalação da primeira ouvidoria e provedoria da fazenda real na capitania do Ceará. A grande conveniência das terras dos sertões do Ceará para a criação do gado proporcionou rapidamente a ocupação e conquista desta região através da divisão das sesmarias na capitania para inúmeros representantes da Coroa portuguesa. A ocupação aos poucos foi acontecendo com a inserção de algumas famílias que passaram a consolidar a formação de importantes núcleos familiares dentro do processo de organização social na capitania do Ceará. O processo de ocupação e povoamento do território cearense se deu fundamentalmente devido o avanço da atividade da pecuária nos sertões da capitania que chamou a atenção e o interesse da Coroa portuguesa que efetivamente passou a distribuir inúmeras cartas de sesmarias. Segundo Francisco José Pinheiro que faz uma analise da formação social no Ceará a partir da distribuição de sua estrutura fundiária, afirma que a doação das cartas de sesmarias e o avanço da pecuária contribuíram decisivamente na organização da capitania. Para o autor, “das 2.472 (duas mil quatrocentos e setenta e duas) cartas/datas solicitadas, num período de mais de um século e meio, 91% tinham como justificativa a necessidade de terra para ocupá-la com a pecuária”.12 A adaptação e criação de gados “vacuns e cavalares” às margens das ribeiras da capitania estrategicamente promoveram a formação e consolidação dos primeiros 11 CHANDLER, Billy Jaynes. Os Feitosas e o sertão dos Inhamuns: historia de uma família e uma comunidade no Nordeste do Brasil – 1700-1930. Fortaleza: Edições UFC: Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1980, p. 50 12 PINHEIRO, Francisco José. Notas sobre a formação social do Ceará…, p. 24 ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 185 núcleos familiares que passaram a definir elementos típicos de organização de uma sociedade marcada pelos elementos representativos do domínio dos potentados locais e da exacerbação da prática da violência social. Outro fator importante na expansão da pecuária, é que, não só a mesma contribuiu com o processo de povoamento da capitania, como também supria a necessidade econômica das capitanias que careciam do consumo interno da produção de carne seca. Este fator proporcionou o surgimento das principais rotas das boiadas que se entrecortavam pelos sertões adentro das capitanias, interligandoas a outros pólos produtores da economia interna colonial. Neste processo de ocupação a pecuária teve um papel de suma importância no processo de povoamento e fundação das primeiras vilas e núcleos urbanos que passavam a surgir ao longo deste período. A margem da ribeira do Jaguaribe foi se estabelecendo inúmeras vilas e as primeiras fazendas de gados e as oficinas de charqueadas. A expansão que a pecuária promoveu chamou a atenção e o interesse da administração portuguesa para a Capitania do Ceará em relação ao aumento da venda de carne seca para outras capitanias. De acordo com Rafael Ricarte da Silva, a pecuária teve uma importância fundamental na ocupação da capitania do Ceará como elemento de integração entre os espaços. Segundo o autor, esse processo de integração “possibilitou aos sujeitos históricos envolvidos no trato da atividade pecuarista uma movimentação entre as estradas e ribeiras, em suas investidas às concessões de terras, nas negociações do gado e nas idas e vindas destes para as fazendas e feiras onde as transações aconteciam”.13 A partir da regularização da ocupação da capitania do Ceará, surgiram as primeiras vilas dentre elas Aquirás, Fortaleza e Aracati. A vila de Aquirás que em principio serviu de cabeça de termo, e da comarca rivalizava-se com Fortaleza pela disputa da sede da capitania. As precárias condições, a falta de um porto para ancorar as naus da Coroa e o pouco adiantamento que teve a vila Fortaleza, excitara nos grupos de elites de comerciantes de carne seca pela remoção da sede para a então vila de Aracati que se localizava nas margens da ribeira do Jaguaribe, principal acesso que interligava facilmente o percurso entre o litoral e o sertão da capitania. De acordo Gabriel Parente Nogueira a criação da vila de Santa Cruz do Aracati em 1748, foi o único caso que tinha como “justificativa a busca do controle das atividades econômicas desenvolvidas na localidade, neste caso específico, a produção 13 SILVA, Rafel Ricarte da. Formação da elite colonial dos Sertões de Mombaça: terra, família e poder (século XVIII). Fortaleza: UFC (Mestrado), 2010, p. 73 ISBN 978-85-61586-70-5 186 IV Encontro Internacional de História Colonial e comercialização de carnes-secas e couro que se fazia na localidade do porto dos barcos, próxima à foz do rio Jaguaribe.14 Conforme Leonardo Cândido Rolim que analisa a produção de carne seca na ribeira do Jaguaribe afirma que os “fretadores e donos de barcos que ali aportavam trazendo produtos que já haviam chegado de outras partes da América Lusa, ou até mesmo do outro lado do atlântico, inseriam a vila de Santa Cruz do Aracati numa dinâmica do império Português, representando assim o enraizamento de interesses dos agentes mercantis de Pernambuco naqueles sertões”.15 Segundo Gabriel Parente Nogueira, a partir do processo de criação de vilas na capitania entre os anos 1699 e 1802, percebe-se de que forma as elites locais, foram sendo gradualmente incorporadas na dinâmica colonizadora em termos políticos, às malhas de poder do Império português ao longo do século XVIII. Entretanto para o autor, a criação das vilas “constituiu-se como um instrumento de controle do Estado português sobre as elites locais que foram se formando ao longo do processo de conquista da terra”. Para Gabriel Parente Nogueira esse processo foi se efetivando como uma “forma de disciplinar o poder local, como um instrumento de arregimentação de vassalos à lógica política do Império, por meio da qual, o acesso aos postos de poder camarários se constituíam como um meio privilegiado de arregimentação de poder e distinção pelos membros destas elites”.16 Segundo Gabriel Parente Nogueira, a lógica política do Império definia desta forma a hierarquização dos poderes locais no contexto da capitania: Tendo como referencial o processo de criação de vilas na capitania entre os anos 1699 e 1802, pudemos perceber de que forma a capitania do Siará grande e suas elites locais, foram sendo gradualmente incorporadas, em termos políticos, às malhas de poder do Império português ao longo do século XVIII. Observamos, entre outros aspectos, que a criação de vilas na capitania constituiu-se como um instrumento de controle do Estado português sobre as elites locais que foram se formando ao longo do processo de conquista da terra; sendo a criação de vilas uma forma de disciplinar o poder local, como um instrumento de arregimentação de vassalos à lógica política do Império, por meio da qual, o acesso aos postos de poder camarários se constituíam como um meio privilegiado de 14 NOGUEIRA, Gabriel Parente. Fazer-se nobre nas fímbrias do império: práticas de nobilitação e hierarquia social da elite camarária de Santa Cruz do Aracati (17481804). Fortaleza: UFC, 2010, p. 56 15 ROLIM, Leonardo Cândido.“Matar, salgar e navegar: produção e comércio das carnes secas na vila de Santa Cruz do Aracati – Capitania do Siará Grande, 1767-1793”. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011, p. 13 16 NOGUEIRA, Gabriel Parente. Fazer-se nobre nas fímbrias do império…, p. 65 ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 187 arregimentação de poder e distinção pelos membros destas elites. No caso da capitania do Siará grande, pudemos perceber que (excetuando-se caso de Aracati) o desenvolvimento urbano local não se configurou efetivamente como justificativa preponderante para a criação de vilas no Siará grande no período estudado, já que este processo ligou-se a diversas motivações e interesses, em muitos casos mais associados à implementação na capitania de diretrizes políticas gerais que em motivações de caráter fundamentalmente locais.17 O avanço da pecuária no interior do Ceará não só contribuiu para acelerar o processo de povoamento desta região, como também definiu a forma que o governo metropolitano exerceu na prática seu poder de ocupação, esquadrinhando as terras da capitania através da distribuição das doações em prol dos interesses mercantilistas No final do século XVIII a retração das exportações de carne seca para outras localidades e a decorrência de longos e freqüentes períodos de secas na capitania, foram os primeiros sinais mostrando que o ciclo da pecuária começava a diminuir consideravelmente. Neste momento, despontava no horizonte uma nova alternativa econômica: o algodão. Ouvidores e poderes locais: negócios e conflitos A partir do processo de colonização, a gestação dos primeiros núcleos familiares e o surgimento dos principais grupos de potentados locais, a Coroa portuguesa passou a estabelecer as bases do corpo político administrativo na capitania do Ceará, como a criação das primeiras vilas com suas casas de câmaras e pelourinhos, ouvidorias e demais instituições administrativas. Diante deste quadro aumentaram não apenas as queixas contra as violências dos capitães mores, mas os conflitos entre todas as esferas de poder. Explicitando, dessa forma, os múltiplos interesses que se formaram com os quais a Coroa tinha de lidar. A continuidade do estado de injustiça que predominava na capitania adentrou o século XVIII e foi apreendido pelas palavras do desembargador Cristóvão Soares Reimão. Em missão ao Ceará o magistrado verificou uma série de irregularidades como: as ações arbitrárias e parciais dos juízes e do escrivão da câmara, o suborno do escrivão pelo capitão-mor, a facilidade de se cometerem crimes, o furto de mulheres indígenas pelos moradores, a utilização da mão-de-obra indígena mediante o pagamento de animais para o capitão-mor e mais vexações. Além disso, o desembargador protestou contra o procedimento dos oficiais de impedir a medição das terras da ribeira do Jaguaribe e a recusa do capitão-mor em fornecer os livros de registro das sesmarias da capitania. 17 Ibidem, p. 67 ISBN 978-85-61586-70-5 188 IV Encontro Internacional de História Colonial O remédio sugerido por Soares Reimão foi à realização de correições na capitania pelo menos a cada três anos e a criação de um juiz e de um escrivão de notas para a ribeira do Jaguaribe. A resposta régia informava que a incumbência de fazer correições já fora determinada, porém não cumprida, e ratificava a decisão anterior: a suspensão e a sindicância do capitão-mor, além de ordenar a investigação das denúncias. Situação bastante reveladora da dificuldade da Coroa em garantir o exercício da justiça na capitania seja pelo isolamento geográfico ou pela ingerência dos funcionários régios. Para suprir essa demanda político-administrativa foram criadas sob o mesmo cargo a Ouvidoria e a Provedoria do Ceará em 1723, rompendo a dependência em relação à Ouvidoria da Paraíba e à Provedoria do Rio Grande. Em 1725 a capitania ganhou sua segunda vila, Fortaleza, também situada junto à costa e, em 1738, foi instalada a primeira vila no interior do território, Icó. A administração político-administrativa da capitania inicialmente era regida pelo Capitão que exercia a função basicamente militar no resguardo das terras dos ouvidores somente foi criada no século XVIII, mas especificamente no ano de 1723, com a nomeação de José Mendes Machado, conhecido pela alcunha de “Tubarão”. No caso de José Mendes Machado, os problemas de jurisdição contribuíram para uma atuação muito rápida do magistrado, impedido o mesmo de cumprir com o tempo determinado de sua administração, devido a uma sublevação das lideranças locais juntamente com os moradores da ribeira do Jaguaribe e o apoio do Capitãomor. O relato do Dr. Pedro Théberge sobre este caso revela elementos significativos em relação aos conflitos que envolviam o ouvidor. Para o cronista, os conflitos entre o ouvidor e os representantes do poder da capitania são decorrentes da ação enérgica do mesmo em fazer cumprir as devidas prerrogativas da lei na cobrança dos impostos nas correições que realizava por toda a capitania. Segundo o autor, as medidas tomadas pelo ouvidor entravam em choque com os interesses de seus opositores, que segundo o autor “eram acostumados desde muito tempo a exercerem impunemente toda espécie de prevaricações”.18 Segundo Théberge, com a correição na vila do Aquiras, o ouvidor sofreu oposição da parte do Juiz ordinário Zacharias Vidal Pereira, que se opôs, a pretexto de se achar ainda na Ouvidoria da Paraíba, cuja jurisdição tinha cessado de direito por ocasião da posse do novo magistrado. Para o Dr. Pedro Théberge, esta “querela terminou com o juiz ordinário preso, motivo que acirrou os ânimos dos habitantes e potentados locais da capitania contra o Ouvidor da comarca que continuou no exercício de suas funções”.19 As várias denúncias e representações enviadas ao Conselho Ultramarino e ao rei, acusando José Mendes Machado de desmando político contra os habitantes da 18 19 THEBERGE. P. (Dr.). Esboço histórico sobre a província do Ceará…, p. 133 Ibidem, p. 133 ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 189 capitania, acionaram os dispositivos jurídicos da administração metropolitana contra o ouvidor. Estes dispositivos inicialmente tinham caráter investigativo, no decorrer do processo dependendo das informações, chegava a efeito às severas punições. O acionamento dos dispositivos jurídicos se dava através da instituição dos mecanismos de poder quando iniciava as investigações preliminares sobre as denúncias, passando pelas correições, deposição do cargo, retirada dos autos de devassas e residência até, o julgamento final do processo pelo Desembargo do Paço. Em relação ao Ouvidor José Mendes Machado, depois das investigações preliminares, o ouvidor-geral da Paraíba Manuel da Fonseca e Silva em visita a capitania, a mando do rei realizava a primeira correição contra o ouvidor. Em carta de 29 de fevereiro de 1725, o ouvidor da Paraíba denunciava o excesso de violência cometida por José Mendes Machado contra os “miseráveis habitadores”, da capitania onde ocorreram muitas e cruéis mortes, destruições de fazendas, e perda gravíssima dos dízimos a Vossa Majestade. A correição realizada contra o ouvidor revela aspectos interessantes que compunham o cotidiano tenso e conflituoso em que viviam representantes da administração política da capitania do Ceará, apesar de ter sido realizava pelo Ouvidor da Paraíba que mantinha redes de influência e sociabilidades com os poderes administrativos da capitania que eram opositores a José Mendes Machado. No contexto do mundo colonial os conflitos geravam uma atmosfera de vigilância mútua que contribuía com a descoberta de casos escusos e omissos presentes nos discursos proferidos durante as investigações locais e nas cartas enviadas ao rei e ao Conselho Ultramarino, que sempre se transformava em motivos de processos e devassas nas mesas dos conselheiros e inquiridores do Reino. Com o término da investigação inicial sobre os desmandos do ouvidor José Mendes Machado, o Procurador da Coroa Antônio Rodrigues da Costa julgou achando conveniente pela deposição do ouvidor e a prisão dos culpados pelas inquietações. O conselheiro foi mais adiante, e sugeriu a repreensão do governador de Pernambuco por não ter enviado ajuda rapidamente para deter a revolta.20 Era bastante comum haver falha na aplicação da prática das correições, tendo em vista a possibilidade da formação de conchavos entre as partes envolvidas nos casos em que alguma irregularidade viesse a público. A Coroa não hesitava em confrontar os depoimentos dos envolvidos nos mais extensos processos. Sobre esta questão, no caso de José Mendes Machado, encontra-se anexo à documentação uma carta de João Pestana da Távora, morador da capitania que sai em defesa do magistrado informando ter se retirado do Ceará por estar com sua vida ameaçada por uma família, que com apoio do capitão-mor Manuel Francês, andava amotinando e constrangendo o povo21. O denunciante acusava o Capitão mor por proteger grupos locais, e perseguir a aqueles que se contrapunham a estes 20 21 AHU_ACL_CU_006, caixa 2, doc. 87. Ibidem. ISBN 978-85-61586-70-5 190 IV Encontro Internacional de História Colonial potentados. Afirmava também, que naquela ocasião teria solicitado ajuda ao governador de Pernambuco, mas teve seu pedido negado sob a justificativa do mesmo haver prometido aos sublevados prender o ouvidor e seus parciais. No cruzamento dos relatos sobre os conflitos de jurisdição surgem elementos que caracterizam como as redes de influência fortaleciam as relações de cumplicidade entre os indivíduos do mesmo grupo a partir da multiplicidade dos interesses que envolvia a política administrativa da capitania do Ceará. Segundo Barão de Studart, o denunciante “João Pestana da Távora era conhecido como o mais violento partidário que servia ao ouvidor José Mendes Machado, com quem se retirou para a Bahia quando da expulsão do magistrado, chegando depois a ser deportado por determinação régia”.22 No entanto, as investigações se arrastavam por anos a fio pelas mesas dos inquiridores do rei. Em meio a esse processo, José Mendes Machado requeria junto às autoridades metropolitanas rapidez nos Autos de Residência, pois já passavam cinco anos, e essa situação lhe impedia de pleitear novos postos no serviço régio. Nesta ocasião, o ex-ouvidor descreveu os fatos, e atribuiu a revolta dos moradores às famílias dos Montes e Feitosas, que segundo ele: O motivo que tiverão os referidos cabedais para fazerem o levantamento e sublevação e quererem matar o suplicante [ele próprio, ouvidor] e priva-lo assim do seu lugar foi por terem notícia e se acuarem da ordem que levava para tirar devassa de uma injusta guerra que fizeram aos tapuias genipapos, e excessos que cometeram roubando-os e cativando-lhe mulheres e filhos.23 Neste requerimento José Mendes Machado relata que o capitão-mor Manuel Francês, apoiou a atitude dos rebeldes e indeferiu seu pedido de ajuda, além de proibir o registro desse fato pela câmara. Foi então que fugiu para a Bahia, resolvendo voltar para Portugal após receber a notícia que o chefe do levante estava livre e cometendo crimes. As tramas de poder que envolviam as denúncias se multiplicavam a cada carta, requerimento ou petição, sobre os relatos dos desmandos. De um lado, os acusadores; do outro o acusado, que sempre alegava inocência requerendo uma “graça” por ter cumprido as ordens do monarca. Segundo Geovanni Levi, esta seria a “prática do poder como recompensa daqueles que sabem explorar os recursos de 22 STUDART, Barão de. Datas e fatos para a história do Ceará. Fac-sim. – Fortaleza: Fundação Waldemar Alcântara, 2001. Tomo I., p. 167 23 AHU_ACL_CU_006, caixa 2. D. 116. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 191 uma situação, tirar partido das ambigüidades e das tensões que caracterizam o jogo social”.24 Os vários processos que envolviam as investigações de desmando político por parte dos administradores duravam o tempo necessário da devassa realizada sobre os procedimentos tomados na administração do ouvidor antecessor, e enquanto o mesmo não fosse considerado inocente, não poderia ocupar outros postos no serviço real. No caso do ouvidor do Ceará, em 30 de agosto de 1730, o parecer régio nomeava o desembargador da Relação da Bahia, Pedro de Freitas Tavares e, na sua falta, ao também desembargador André Ferreira Lobato para tirar devassa dos referidos acontecimentos como realizar e tirar residência de José Mendes Machado.25 Considerações finais No Ceará a atuação dos bacharéis oriundos de Portugal que exerceram a função de ouvidores na política administrativa da capitania, foi bastante reduzida, em decorrência do pequeno numero desses serventuários do rei que foram enviados para nela desempenharem seus ofícios de ouvidores e provedores do Reino. Os Ouvidores, Provedores e Corregedores quase sempre eram destituídos da titulação de bacharéis em Direito, portando somente formação no estudo eclesiástico, cujas leituras se resumiam no essencial do Direito Canônico. Para Antonio Manuel Hespanha, a partir do século XVIII a Coroa buscou definir dentro da dinâmica da administração colonial uma hierarquia estrita dos oficiais régios, sendo importantes os laços de hierarquia funcional entre vários níveis do aparelho administrativo. O autor destaca que estes laços funcionavam como um meio para fazer o poder do rei chegar à periferia do Império. Contudo, também ressalta a capacidade que estes “oficiais periféricos” tinham para “anular, distorcer ou fazer seus os poderes que recebiam de cima”. Entre estes “oficiais periféricos”, pode-se acrescentar também que estavam os “representantes de diversos nichos institucionais onde o poder se constituía como a Relação, a Igreja, a administração militar e a Fazenda”.26 No entanto, ao analisar a esfera de ação dos indivíduos presente na dinâmica das redes hierárquicas dos poderes institucionais a atenção estar no fato de que estes obedeciam à lógica de um sistema de ordens caracterizado pela circulação das práticas 24 LEVI, Geovanni. A herança imaterial: Trajetória de um exorcista no Piemont do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 33 25 AHU_ACL_CU_006, caixa 2. D. 117. 26 HESPANHA, António Manuel. A constituição do Império português. Revisão de alguns enviesamentos correntes. In: FRAGOSO, GOUVEIA e BICALHO (orgs.), Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (sáculos XVI, XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 174 ISBN 978-85-61586-70-5 192 IV Encontro Internacional de História Colonial sociais presentes nos símbolos, valores e crenças que governavam as instituições do Antigo Regime. Como destaca Edward Shils, a sociedade se constituir de “subsistemas interdependentes” conectados pelos valores afirmados e seguidos por uma rede de organizações ligadas entre si: “uma autoridade comum, um pessoal comum, relações pessoais, interesses afins e até mesmo por uma localização territorial; hierarquizando os indivíduos e definindo graus de proximidade com a autoridade. Contudo, a aceitação desse sistema não é rígida na integração desses valores e crenças”.27 Considerando esta concepção, pensar as relações de poder a partir da ação dos indivíduos dentro das redes de hierarquização na sociedade do Antigo Regime, constituí-se como um elemento de afirmação do vínculo político, como também, de fissuras e rupturas nas relações de poder entre vassalos ultramarinos e o soberano português. Partindo desta lógica, as “relações de poder entre as redes hierárquicas devem ser pensadas não só como mecanismos de manutenção da centralização do poder régio”.28 Mas, também como “redes de negociação presentes nas tramas pessoais e institucionais do poder, que interligadas entre si, viabilizam o acesso a cargos e a um estatuto político, hierarquizando homens e serviços e garantindo coesão através do caráter globalizante dos mecanismos de poder na governabilidade do Estado”.29 Assim, este estudo mostra que na dinâmica das forças centrífugas do poder metropolitano que atuavam em meio a um movimento gerador de descentralização, justamente no momento em que a Coroa buscava um maior controle nos mecanismos de centralização nas políticas administrativa na América Portuguesa. 27 SHILS, Edward. Centro e Periferia. Lisboa: Difel, 1992, p. 17 PEGORARO, Jonas Wilson. Ouvidores régios e centralização jurídico-administrativa na América portuguesa: a comarca de Paranaguá (1723-1812). Curitiba: UFPR, 2007, p. 5 28 HESPANHA, Antonio M. (Org.). Poder e instituições na Europa do Antigo Regime. Lisboa: Calouste Gulberkian, 1984, p. 42 29 ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 193 Os governadores gerais e os governos das capitanias: governação no Estado do Brasil, 1654-16811 Francisco Carlos Cosentino2 Nosso objetivo é analisar a gestão do Estado do Brasil reconstruindo as relações entre os governadores gerais e os governos das capitanias em meados do século XVII.3 Partindo do pressuposto de que cabia ao governo geral a governação da conquista como um todo, já que era ele, o representante do monarca no Estado do Brasil, detentor de regalias transferidas pelo rei, deviam eles gerir a conquista e, nesse momento, para realizarem a governação dessa parte do império, enfrentaram uma conjuntura difícil para o reino e para a conquista seja pelas pressões decorrentes das guerras e ocupações estrangeiras, seja pelas indefinições existentes quanto às jurisdições dos diversos poderes atuantes na governação do Estado do Brasil decorrentes da ausência de regulamentos atualizados – regimentos – para esse momento do período pós-Restauração. Esse trabalho está inserido num momento de reanimação e renovação dos estudos da história política e para a qual pretendemos contribuir com a nossa investigação a respeito do governo geral no Brasil e o seu relacionamento com os governantes das capitanias em meados do século XVII. Por isso, consideramos necessário, enfrentar algumas questões que estão colocadas para o debate como a organização política e administrativa do Estado do Brasil e uma das suas instâncias de poder, as capitanias. Pretendemos fazer isso dimensionando os poderes dos governadores gerais e dos governantes das capitanias, governadores e capitães mores, identificando os temas tratados e as fontes de conflito entre essas autoridades políticas do Estado do Brasil, uma das conquistas americanas de Portugal.4 1 Esse trabalho tem o auxílio da Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de Minas Gerais. Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense. Professor Adjunto – Universidade Federal de Viçosa (Campus Florestal - MG). 3 Os governos de D. Jerônimo de Ataíde (1654/57); Francisco Barreto de Meneses (1657/63); D. Vasco Mascarenhas (1663/67); Alexandre de Souza Freire (1667/71); Afonso Furtado de Mendonça (1671/75); e, Roque da Costa Barreto (1678/82) que governaram o Estado do Brasil entre a expulsão dos holandeses e a elaboração do regimento do governo geral em 1677utilizado até 1808. 4 Uso a expressão Estado do Brasil para respeitar as particularidades das conquistas ultramarinas portuguesas e também em respeito à forma como essa conquista era tratada na documentação a partir do início do século XVII. Com isso, estou distinguindo essa parte do Estado do Maranhão. A expressão América portuguesa é genérica e induz a uma compreensão historiográfica dicotômica com a qual não concordo. Ver COSENTINO, Francisco Carlos. Governadores gerais do Estado do Brasil (séculos XVI-XVII): ofício, regimentos, governação e trajetórias. São Paulo: Annablume/FAPEMIG, 2009, p. 220-221. 2 ISBN 978-85-61586-70-5 194 IV Encontro Internacional de História Colonial Governo geral e capitanias: patentes, regimentos, poderes e hierarquias Os governadores gerais exerciam um ofício régio superior com funções delegadas de jurisdição inferior.5 A natureza superior de seu ofício deve-se ao fato de esse servidor exercer alguns dos poderes próprios do ofício régio e suas funções são de qualidade inferior na medida em que, além de exercê-las por delegação temporária, tem suas decisões submetidas, em última instância, à decisão do monarca. A fundamentação jurídica dessas afirmativas resulta da legislação seguida por Portugal no momento da criação do ofício de governador geral que conferia ao rei o monopólio da constituição de ofícios e de seus respectivos campos de atuação. Assim sendo, toda a jurisdição exercida pelos diversos ofícios de governo, se constituía numa delegação da jurisdição do soberano, pois “a jurisdição é considerada em geral, como um atributo real, pelo que toda a jurisdição exercida pelos corpos, pelos senhores ou pelos magistrados, representa uma mera delegação da jurisdição do soberano”,6 por isso, dispunha o soberano, pelas Ordenações, de amplos poderes de revogação da jurisdição concedida, já que, “toda a jurisdição inferior pressupõe uma doação ou privilégio expresso (doação régia, carta, foral), não podendo, entre nós, ser sequer adquirida por prescrição”.7 Some-se a isso o fato de que, como nas capitanias hereditárias brasileiras, “a existência de jurisdições confiadas a particulares, efectivamente nunca contradisse em absoluto o exercício da suprema jurisdição do Monarca”,8 implicando que, o poder “dos capitães-donatários, se exerceu em clara consonância e patente subordinação ao mando real”.9 Ou seja, as capitanias hereditárias, desde a criação do governo geral, estavam enquadradas pelas leis e pela vontade real manifestada pelos seus representantes maiores que no Estado do Brasil era o governador geral. Intervinha a Coroa portuguesa na vida interna das capitanias “seja na sua faceta política, como na económica ou jurisdicional em termos que não admitem dúvidas quanto a limitação profunda que sofreu a ação dos donatários”10 tornando essas capitanias um senhorio Ver também: SANTOS, Fabiano Vilaça dos. O governo das conquistas do Norte. Trajetórias administrativas no Estado do Grão-Pará e Maranhão (1751-1780). São Paulo: Annablume, 2011. 5 HESPANHA, António Manuel. As vésperas do Leviathan. Coimbra: Almedina, 1994, p. 160. 6 Ibidem. História das Instituições. Épocas medieval e moderna. Coimbra: Almedina, 1982, p. 216. 7 Ibidem, p. 216-217. 8 SALDANHA, António Vasconcelos de. As capitanias do Brasil. Antecedentes, desenvolvimento e extinção de um fenômeno atlântico. Lisboa: CNCDP, 2001, p. 364. 9 Ibidem, p. 364. 10 Ibidem, p. 365. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 195 de “contentamento do Donatário”,11 terras que propiciavam “renda por sua doação e pelo estado da terra, acrescentando-se também o que podia valer o jurisdicional e honorífico”.12 Como vamos ver nesse trabalho, com a criação do governo geral as atividades de governação das capitanias, particularmente após 1640, passaram a ser exercidas por governadores e capitães-mores nomeados pelos reis de Portugal ou pelos governadores gerais. Boxer, também tem essa compreensão ao constatar que a diferenciação “entre as capitanias pertencentes à Coroa e as que tinham donatários não tinha importância sob o ponto de vista administrativo”,13 com os direitos “dos donatários restringindo-se à arrecadação de certos impostos e tributos, e ao direito de voto na nomeação dos funcionários de baixa categoria”.14 Desde a nomeação de Tomé de Sousa para o governador geral das terras do Brasil, a monarquia portuguesa, inclusive durante a União Ibérica, teve a preocupação de, nas cartas patentes dos governadores, revogar poderes concedidos aos donatários hereditários. Na patente de Tomé de Sousa o monarca informa aos “capitães e guovernadores das ditas terras do Brasil ou a quem seus carregos tiverem e aos officiaes da justiça e de minha fazenda em ellas e aos moradores das ditas terras e a todos em geral e a cada hum em especial”15 que reconheçam Tomé de Sousa como “capitão da dita povoação e terras da Baya e governador geral da dita capitania e das outras capitanias e terras da dita costa”16 e que o “obedeção e cumprão e facão o que lhes o dito Thomé de Sousa de minha parte requerer e mandar segundo forma dos regimentos e provisões minhas que pêra isso leva e lhe ao diante forem enviadas”.17 Em seguida, lista o monarca os poderes que detinham os donatários afirmando que “nas terras de suas capitanias não entrarião em tempo algun corregedores, alçadas, nem outras alguas justiças pera nellas usarem per algua via e modo que os ditos capitães fossem suspenços de suas capitanias e jurisdição delas”,18 além de terem esses donatários “alçada nos casos civeis, assym por aução nova como 11 Posição do Procurador da Coroa sobre os direitos dos marqueses de Cascais sobre a capitania de Itamaracá e, conforme Saldanha, repercutiu nas incorporações das outras capitanias de donatários do Estado do Brasil. SALDANHA, António Vasconcelos de. As capitanias do Brasil…, p. 409. 12 Ibidem. 13 BOXER, C. R. Salvador de Sá e a luta pelo Brasil e Angola, 1602-1686. São Paulo: Editora Nacional/EDUSP, 1973, p. 306. 14 Ibidem, p. 306. 15 ANTT – Chancelaria de D. João III – Livro 55, fol. 120v. 16 ANTT – Chancelaria de D. João III – Livro 55, fol. 120v. 17 ANTT – Chancelaria de D. João III – Livro 55, fol. 120v. 18 Carta Patente de Gaspar de Sousa (1612), ANTT - Chancelaria Felipe II. Livro 29. O conteúdo e os termos usados nas cartas são praticamente os mesmos, por isso, vamos usar patentes diversas. ISBN 978-85-61586-70-5 196 IV Encontro Internacional de História Colonial por apellação e agravo”.19 Explica então que por quanto “muitas e yustas causas e respeitos que me aysso movem o hey ora por bem de minha certa ciencia por esta ves e nestes casos pera aver effeito todo o conteudo na alçada regimentos e provisoens que [o governador] leva e ao diante lhe mandar”20 e conclui que derrogava, “como de effeito hey pro derogadas as ditas doaçoens e todo o contheudo nellas emquanto forem contra as cousas declaradas nesta carta e na dita alçada regimentos e provisoens”21 que os governadores levam. Em todas as patentes de 1548 a 1621, sustenta o direito de revogação de direitos concedidos recorrendo ao direito e as ordenações que estabeleciam que se fizesse “expreca menção hey especial derogação as quaes hey por expressas e declaradas como se de verbo ad verbum fossem nesta carta imcorporadas sem embargo de quaesquer direitos leis e ordenações que aja em contrayro e da ordenação do 2º Lº tittº 44”.22 A carta patente do Marques de Montalvão (1640) apresenta um conteúdo diferente e não traz as colocações apresentadas pelas cartas anteriores. A derrogação dos poderes concedidos aos donatários, presente até então, foi substituída por uma fórmula na qual todos estavam submetidos ao poder de Montalvão,23 conforme a passagem de sua carta patente a seguir, 19 ANTT - Chancelaria Felipe II. Livro 29. Carta patente de Diogo de Mendonça Furtado. ANTT - Chancelaria Felipe III. Livro 2, fol. 157v. 21 Carta patente de Diogo de Mendonça Furtado. ANTT - Chancelaria Felipe III. Livro 2, fol. 157v. 22 Carta patente de Diogo de Mendonça Furtado. ANTT - Chancelaria Felipe III. Livro 2, fol. 157v. A lei que consta da Ordenação, “diz que se não entenda ser pro mim derogada ordenação algua se da sustancia della se não fizer expressa menção e declaração”. No regimento de Tomé de Sousa as Ordenações utilizadas são as Manuelinas que, no seu Livro II, título XLIX, indica que: “nunca se entenda deroguada ninhua’ Nossa Ordenaçam, nem a tal clausula geeral obre efecto alguu’ contra disposição de qualquer Nossa Ordenaçam; salvo se expressamente por Nós for deroguada a dita Ordenaçam, fazendo mençam sumariamente da substancia dela”. Ordenaçoens do Senhor Rey D. Manuel. Coimbra: Real Imprensa da Universidade, 1797, Livro II, p. 242. Nas outras cartas patentes, temos as Ordenações Filipinas que afirmam a mesma coisa no título XLIV. Codigo Philippino. Rio de Janeiro: Typographia do Instituto Philomathico, Tomo II, 1870, p. 467. 23 Montalvão foi enviado como vice-rei e tem-se dito que trouxe esse título para negociar em igualdade com Maurício de Nassau. Acreditamos que os Felipes pretendiam instituir essa forma de governo como podemos ver pela sua carta patente: “e tudo o que por ele de minha parte vos for mandado cumprais e façais intrªmente com aquella diligencia e cuidado que de vos confio como fizereis se por mim em pessoa vos fosse mandado” (ANTT - Chancelaria Felipe III. Livro 28, fol. 297). Essa era a fórmula empregada para os vice-reinados espanhóis: “nuestra Real persona”. Recopilacion de Leyes de los Reynos de las Índias. Madrid: INBOE, Tomo I, libro III, tit. II, 1998, p. 543. 20 ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 197 faço saber aos capitaes’ das minhas fortalezas do Estado do Brasil e capitanias delle generaes’ mestres de campo, e a todos e quaesquer capitaes’ e officiaes’ da guerra que no dito estado me servem assi’ na terra como no mar, e aos menistros e officiaes’ da justiça, e de minha fazª e a todas as mais pessoas que nelle asistem de qualquer calidade estado o condição que sejão.24 Por toda a carta patente de Montalvão a fórmula utilizada é a de poder superior sobre todos no que diz respeito às questões militares, de fazenda e de justiça, sem menção direta aos direitos desfrutados pelos donatários hereditários, como nas cartas patentes dos governadores enviados até então. Nessa mesma direção apontam as cartas patentes dos governadores gerais enviados ao Estado do Brasil após a Restauração, pelos monarcas da dinastia dos Braganças.25 As cartas patentes posteriores a Restauração, reconhecendo a proeminência dos governos oriundos de nomeação régia e a crescente secundarização da autoridade governativa dos donatários hereditários, não seguem a fórmula empregada até o marquês de Montalvão e inauguram um formato e conteúdo diferente. Começo com a carta patente de António Teles da Silva, primeiro governador geral enviado pelo governo bragantino. A carta indica que o governador usara da “jurisdição alcada poderes preheminencias liberdades & prerrogativas que lhe tocam & que tiveram & que uzaram os outros governadores do dito Estado do Brazil seus antecessores”.26 Em seguida, afirma que o governador poderá “usar dos mesmos regimentos & provizoes de q’ eles uzaram [os outros governadores] e dos mais q eu lhe mandar dar”.27 O trecho mais importante é aquele onde está indicado que “todos capitaens & governador das capitanias do dito Estado & aos mestres de campo sargentos mores Capitaens de infantaria soldados & gemte de guerra officiaes de justica e de minha fazenda q’ hora nelle me estam servindo & ao diante serviram”28 devem obediência 24 ANTT - Chancelaria Felipe III. Livro 28, fol. 297. Os mesmos termos da patente de Montalvão estão na do conde de Óbidos: “como o fizeres se por my em pesoa vos fora mandado” (BNRJ – SM. 1, 2, 5). Óbidos veio como vicerei, pois, havia sido no Estado da Índia e não poderia vir com um cargo menor, seria humilhante e ofensivo. 26 ANTT – Chancelaria de D. João IV, Livro 10, 354v. 27 ANTT – Chancelaria de D. João IV, Livro 10, 354v. O conteúdo das cartas dos governadores que o sucederam é o mesmo até Roque da Costa Barreto. Esse governador trouxe um novo regimento, empregado até 1808, e a forma e conteúdo da sua carta patente é diferente, como veremos a seguir. Sobre esse regimento ver: COSENTINO, Francisco Carlos. Governadores gerais do Estado do Brasil…, p. 245-303. 28 Carta patente de António Teles de Meneses – BNRJ – SM. 1, 2, 5. Estou mesclando trechos de cartas de governadores diferentes para demonstrar ser o conteúdo absolutamente o mesmo. 25 ISBN 978-85-61586-70-5 198 IV Encontro Internacional de História Colonial ao governador geral e “cumpram & guardem inteyramente seus mandados & ordens como devem & sam obrigados”.29 Esse formato foi interrompido na carta patente de Roque da Costa Barreto, para ter continuidade, depois dele, com António de Sousa de Meneses e os que o sucederam no século XVII. A carta de Roque da Costa, por ter ele trazido o novo regimento para o governo geral que seria utilizado até a vinda da corte portuguesa em 1808, dizia que ele não era enviado “com a mesma autoridade jurisdição e prileminensias que tem os governadores e capitães gerais do mesmo Estado”30 e que, em razão disso, estes “lhe obedecerão e guardarão suas ordens assim no militar como no civil e político”,31 assim como, “os ministros e officiais de justiça guerra e fazenda, chanceler, desembargadores, e governadores do Rio de Janeiro, e Pernambuco e das mais capitanias subordinadas ao governador geral tudo na forma de meus regimentos”.32 Em linhas gerais mantém o conteúdo que vem desde 1640. O que podemos perceber é que desde a Restauração os donatários hereditários não eram mais figuras proeminentes na ação de governo das capitanias ou os seus locotenentes, mesmo que esses senhorios ainda existissem e pudessem gerar rendimentos aos seus senhores.33 Todas as cartas patentes sinalizam para a supremacia da autoridade governativa dos governadores gerais sobre todos os outros servidores providos ou não pela monarquia portuguesa no Estado do Brasil. Quando analisamos os dois regimentos utilizados para o governo geral após 1640, o de Diogo de Mendonça Furtado,34 elaborado em 1621, utilizado até o de Roque da Costa Barreto (1677), observamos que a supremacia indicada nas cartas patentes, se completa com as instruções desses regimentos. As instruções apresentadas no regimento de Diogo de Mendonça Furtado estabeleciam como obrigações do governador geral, abordando as orientações de caráter mais geral,35 a suspensão dos capitães das capitanias em caso de “alguma 29 Carta patente de D. Jerônimo de Ataíde – ANTT – Chancelaria de D. João IV, Livro 26, fol. 23. 30 ANTT – Registro Geral das Mercês. Chancelaria de Afonso VI. Livro 29, fl.116v. 31 ANTT – Registro Geral das Mercês. Chancelaria de Afonso VI. Livro 29, fl.116v. 32 ANTT – Registro Geral das Mercês. Chancelaria de Afonso VI. Livro 29, fl.117. 33 A monarquia portuguesa assumiu as diversas capitanias hereditárias passando a consideralas como reais. Os diversos donatários iniciaram uma longa pendenga judicial com a monarquia e tiveram seus direitos reconhecidos, obrigando a monarquia portuguesa a indeniza-los de formas diversas até o período pombalino que aboliu esses senhorios. Ver SALDANHA, António Vasconcelos de. As capitanias do Brasil…, p. 134-138 e 387-435. 34 Arquivo Público do Estado da Bahia, S. C., estante 1, caixa 146, livro 264. 35 Os regimentos tinham instruções estruturais associadas a orientações conjunturais que visavam resolver situações de momento. No regimento de Mendonça Furtado, com esse conteúdo temos as instruções referentes à organização da administração da capitania do Rio Grande do Norte e a definição de suas fronteiras com a capitania da Paraíba. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 199 força violencia, ou extorsão publica e notória”36 e a provisão “na governança e guarda das Capitanias pessoas de confiança”.37 Outra orientação, existente nesse e em todos os regimentos conhecidos, era aquela que estabelecia que a bem do serviço do monarca, o governador não deveria permitir que os donatários tivessem “mais jurisdição da que lhe pertencer por suas doaçoens”.38 Deveria o governador ter vigilância para não usurpar direitos aos donatários nem permitir que os servidores da justiça o fizessem, pois, deveriam, quanto aos donatários, não permitir que “lhe tomem nem quebrem seos privilegios e doaçoens antes em tudo o que lhe pertencer lhe fareis cumprir e guardar”.39 Em algumas instruções o governador geral era orientado a substituir, prender e/ou envia-lo para o reino os officiais das diversas atividades envolvidos na atividade de governação que “fazem o que não devem em seos regimentos, ou são negligentes no que cumpre o meo serviço ou despacho das partes”.40 O regimento de Roque da Costa Barreto, síntese dos regimentos anteriores, ordenou a ação dos governadores gerais a partir de então. Em caso de vacância em cargos de justiça, guerra e fazenda, o governador geral poderia provê-los, inclusive “nos mais Govêrnos, e Capitanias daquele Estado, e segundo o disposto nos mais Regimentos dos Governadores e Capitães-Mores seus subordinados”,41 exceto para “o de Pernambuco por três meses sômente, e o do Rio de Janeiro por seis”42 que, por regimento, devido os inconvenientes de sua falta, estão autorizados a faze-lo, entretanto, “assim que seja passado êste tempo, serão obrigados a darem posse aos que êle [o governador geral] prover, o que se não entenderá nos cargos de Guerra”.43 Cabia ao governador geral ainda admoestar, repreender e “se depois de serem admoestados se não emendarem; hei por bem que os possa suspender, e tirar dos ofícios pelo tempo que lhe parecer, dando-lhes o mais castigo que merecerem”44 aos “Oficiais fazem o que não devem a seus Regimentos, ou são negligentes, e não cumprem o meu serviço, ou despacho das partes”.45 O regimento era explícito quanto à autoridade dos governadores gerais e os governadores das capitanias principais do Rio de Janeiro e Pernambuco e estabelecia que “os ditos governadores são subordinados ao Governador Geral, e que hão-de-obedecer a tôdas as ordens 36 Arquivo Público do Estado da Bahia, S.C., estante 1, caixa 146, livro 264. APEB, S.C., estante 1, caixa 146, livro 264. 38 APEB, S.C., estante 1, caixa 146, livro 264. 39 APEB, S.C., estante 1, caixa 146, livro 264. 40 APEB, S.C., estante 1, caixa 146, livro 264. 41 MENDONÇA, Marcos Carneiro de. Raízes da Formação Administrativa do Brasil. Rio de Janeiro: IHGB/Conselho Federal de Cultura, 1972, p. 753. 42 Ibidem, p. 803. 43 Ibidem, p. 803-804. 44 Ibidem, p. 818. 45 Ibidem, p. 818. 37 ISBN 978-85-61586-70-5 200 IV Encontro Internacional de História Colonial que êle lhes mandar, dando-lhe o cumpra-se, e executando-as”,46 da mesma forma que “aos mais Ministros de Justiça, Guerra, ou Fazenda”. Por fim, ressaltamos que no governo do conde de Óbidos, enviado em 1663 como vice-rei foi elaborado por ele o “Regimento que se mandou aos Capitãesmores das Capitanias deste Estado”47 porque eram “grandes os inconvenientes que resultam de os Capitães-mores das Capitanias deste Estado não terem Regimento que sigam”.48 Nesse regimento a submissão das capitanias, fossem elas reais ou de donatários, a autoridade do governador geral era encontrada em várias passagens e, explicitamente no seu parágrafo 3º onde encontramos, “Terá o Capitão-mor entendido, que nenhuma Capitania das do Estado, ou seja Del-Rei meu Sr ou Donatario é subordinada ao Governo de outra Capitania de que seja vizinha: e todas são imediatas e sujeitas a este geral: por cujo respeito só dele há de aceitar o Capitãomor as ordens”.49 Essa submissão dos governadores das capitanias ao governador geral e, logicamente ao monarca, que a todos subordina, estava no regimento do governador do Rio de Janeiro, Manuel Lobo de 1679.50 Em síntese, as cartas patentes e os regimentos, nos vários contextos em que foram elaborados, estabeleciam a supremacia do poder dos governadores gerais sobre os governadores das capitanias e dos donatários, particularmente durante os séculos XVI e XVII. Os governadores enviados ao Estado do Brasil no século XVIII, que não são objeto de nosso estudo, incluídos os que vieram com o título de vice-reis, tinham pelas suas cartas patentes51 e regimento, o mesmo de 1677, os mesmos poderes que os governadores gerais que os antecederam nos séculos anteriores. Essa constatação de base empírica questiona as conclusões que afirmam que governadores gerais e vice-reis tinham os mesmos poderes que os governadores de capitanias. Conforme Caio Prado Junior, só “o título do governador diferia: 46 Ibidem, p. 804. Documentos Históricos da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro: Augusto Porto & C., vol. V, 1928, p. 374. 48 Ibidem, p. 374. 49 Ibidem, p. 375-6. 50 De acordo com Veríssimo Serrão, o regimento dado ao governador do Rio de Janeiro, Manuel Lobo, em 1679 (Revista do IHGB. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, Tomo LXIX. Iª Parte, 1908, p. 99-111), foi elaborado com as mesmas preocupações ordenadoras e perenes que nortearam o regimento de Roque Barreto, utilizado até o século XIX. O mesmo aconteceu com o regimento dos governadores de Pernambuco, conforme observação que pode ser encontrada nessa mesma revista. SERRÃO, Joaquim Veríssimo. História de Portugal. A Restauração e a Monarquia Absoluta (1640-1750). Lisboa: Editorial Verbo, vol. V, 2ª ed., 1982 51 As patentes dos governadores gerais e vice-reis do século XVIII eram, no que diz respeito as suas relações com os outros servidores régios no Estado do Brasil, inclusive os governadores das capitanias, iguais a dos governadores gerais enviados após 1640. 47 ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 201 capitão-general e governador, nas [capitanias] principais, capitão-mor de capitania (não confundir com capitão-mor de ordenanças), ou simplesmente governador, nas demais”,52 pois, o governador do Rio de Janeiro (e antes o da Bahia) que “tinha o título altissonante mais oco de Vice-Rei do Brasil”,53 detinha “poderes, em princípio, [que] não eram maiores que os de seus colegas de outras capitanias, e não se estendiam, além da sua jurisdição territorial de simples capitão-general”.54 As análises que fizemos anteriormente nos leva a outra conclusão. Os governadores gerais eram o poder superior no Estado do Brasil e os representantes dos reis de Portugal nessa conquista. Receberam regalias por jurisdição delegada e, em razão disso, submetiam, de acordo com as regras da dinâmica política e governativa da monarquia pluricontinental portuguesa, as capitanias dessa conquista americana. O governo geral e o governo das capitanias no Estado do Brasil O relacionamento entre o governo geral e os governos das capitanias do Estado do Brasil é um tema pouco frequentado pela historiografia. A identificação da natureza donatorial das capitanias hereditárias e o desenvolvimento desses senhorios, inclusive sua extinção, está bem desenvolvida no trabalho referência de António Vasconcelos de Saldanha. Entretanto, existem outros aspectos que cercam a vida das capitanias, particularmente sua relação com o governo geral que precisam de tratamento histórico, inclusive com uma abordagem historiográfica que incorpore percepções originárias do desenvolvimento da pesquisa contemporânea já que as análises elaboradas à algumas décadas atrás,55 se mostram limitados diante dos progressos da pesquisa histórica.56 Criadas como hereditárias, senhorios doados pelos monarcas para realização inicial da atividade de povoamento e colonização, da segunda metade do século XVI em diante, as poucas capitanias colonizadas pelos seus donatários e que continuaram hereditárias e a maioria das regiões, que se tornaram capitanias régias por diversas razões, se submetem a dinâmica governativa dos governadores gerais, conforme 52 PRADO JUNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 14ª ed., 1976, p. 306. 53 Ibidem, p. 306. 54 Ibidem, p. 306. 55 Ver nesse sentido DIAS, Manuel Nunes. O sistema das capitanias do Brasil. Boletim da Biblioteca da Universidade de Coimbra, volume XXXIV, 3ª parte, 1980. 56 Esse é o caso da caracterização como feudal, “Em suma, convicto da necessidade desta organização feudal, D. João III”. ABREU, Capistrano. Capítulos de História Colonial. São Paulo: Publifolha, 2000, p. 67; ou “de engenho imaginativo do capitalismo régio português”, segundo Nunes Dias. ISBN 978-85-61586-70-5 202 IV Encontro Internacional de História Colonial indicamos anteriormente. Em linhas gerais a situação é a que se segue quanto a situação das capitanias do Estado do Brasil após 1640.57 CAPITANIAS DO ESTADO DO BRASIL, século XVII POSIÇÃO CAPITANIA TIPO DONATÁRIO HIERARQUICA Rio Grande Capitania da Subalterna (anexa à Bahia) (Norte) coroa Capitania da Subalterna (anexa a Paraíba coroa Pernambuco) Capitania de Subalterna (anexa a Itamaracá Marques de Cascais donatário Pernambuco) Capitania de Pernambuco Principal Conde do Vimioso donatário Capitania da Subalterna (anexa a Alagoas coroa Pernambuco) Sergipe del Capitania da Subalterna (anexa à Bahia) Rey coroa Rio de São Capitania da Subalterna (anexa à Bahia) Francisco coroa Capitania da Bahia Principal coroa Capitania de Ilhéus Subalterna (anexa à Bahia) Almirante do reino donatário Capitania de Porto Seguro Subalterna (anexa à Bahia) Duque de Aveiro donatário António Luís da Câmara Coutinho Capitania de herdeiro do 1º Espírito Santo Subalterna (anexa à Bahia) donatário donatário vendeu Francisco Gil de Araújo (1675). Capitania da Subalterna (anexa ao Rio Cabo Frio coroa de Janeiro) Capitania da Rio de Janeiro Principal coroa Capitania de Subalterna (anexa ao Rio Paraíba do Sul Visconde de Asseca donatário de Janeiro) Capitania de Subalterna (anexa ao Rio São Vicente Marques de Cascais donatário de Janeiro) 57 Boxer procura apresentar a situação das capitanias após 1640 mas comete alguns enganos. Ver BOXER, C. R. Salvador de Sá e a luta pelo Brasil e Angola, 1602-1686…, p. 307. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 203 Temos também duas ordens de capitanias: as capitanias principais e as subalternas. Caio Prado Junior, um dos poucos a tratar disso,58 afirmou: As capitanias que formavam o Brasil são de duas ordens: principais e subalternas. Estas são mais ou menos sujeitas aquelas; muito, como as do Rio Grande do Sul e Santa Catarina ao Rio de Janeiro, ou a do Rio Negro ao Pará; pouco, como a do Ceará, e outras subalternas de Pernambuco.59 Assim como são reduzidos os estudos a respeito da natureza das capitanias, mais ainda das relações entre as principais e subalternas ou anexas, apesar de encontrada na documentação, particularmente nas décadas seguintes da Restauração portuguesa, correspondência que trata de conflitos de jurisdição envolvendo capitanias principais e subalternas. Alguns autores que reconhecem essa divisão remetem-se ao século XVIII, início do século XIX, e tratam indiscriminadamente o Estado do Brasil e o Estado do Maranhão, mesmo quando ainda não estavam unidos, antes do período pombalino, e identificam algumas dessas capitanias,60 entretanto, essas listagens são imperfeitas, e, ao deixarem de fora diversas regiões, identificadas na documentação, nos servem apenas como uma referência. O período que se inicia após a Restauração portuguesa se caracteriza pela sua complexidade e instabilidade oriunda da conjuntura vivida pela monarquia portuguesa e o seu império ultramarino: a guerra e expulsão dos holandeses do Nordeste, os conflitos nas partes africanas e orientais do império português, a guerra contra Espanha e Holanda na Europa. A insegurança do momento e da nova 58 Essas expressões são encontradas na documentação. Caio Prado Junior afirma sua existência e diferença sem entrar em detalhes. O trabalho de Saldanha, simplesmente não trata dessas questões. Sem muito acrescentar temos os trabalhos de SOUSA, Augusto Fausto de. Estudo sobre a divisão territorial do Brasil. Revista do IHGB, vol 43, 2, p. 42-44, 1880; e de VIANA, Hélio. Liquidação das donatarias. Revista do IHGB, vol 273, p. 148-149, out/dez. de 1966. 59 PRADO JUNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo…., p. 305-306. O autor trata do Brasil como se apenas essa unidade política existisse – conforme percepção de cunho nacionalista vigente no seu tempo – ignorando as particularidades do Estado do Maranhão. 60 Segundo Sousa, na véspera da independência, governadas por Capitães-Generaes existiam: “Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro, S. Paulo, Rio-Grande do Sul (compreendendo o governo das Missões do Uruguay), Minas Gerais, Matto-Grosso e Goyaz”. SOUSA, Augusto Fausto de. Estudo sobre a divisão territorial do Brasil…, p. 44. Além delas, administrados por simples Governadores ou Capitães-móres: “(…) Ceará, Rio-Grande do Norte, Parayba, Alagôas, Sergipe, Espírito-Santo e Santa Catharina”. Ibidem, p. 44). Hélio Viana diz que as capitanias gerais (principais) foram: Pernambuco, Bahia de todos os Santos, Rio de Janeiro e São Paulo e as subalternas: Rio Grande do Norte, Paraíba (autônoma desde 1799), Espirito Santo, Santa Catarina. VIANA, Hélio. Liquidação da donatarias…, p. 148. ISBN 978-85-61586-70-5 204 IV Encontro Internacional de História Colonial dinastia ocasiona problemas diversos, inclusive no império ultramarino e decisões, muitas vezes dúbias, foram tomadas, algumas delas com a intenção de não desagradar grupos locais, estratégicos para manutenção do reino e do império no Atlântico Sul e na Ásia. A isso, soma-se um descompasso político e jurisdicional decorrente da necessidade de ajustes não realizados na ordem política e administrativa da monarquia portuguesa, particularmente no Estado do Brasil, depois de sessenta anos de desenvolvimento e ampliação da ocupação portuguesa na América e de governo dos Austrias espanhóis. Acrescenta-se ainda a esse quadro, as trajetórias sociais percorridas antes e depois de 1640, responsáveis pela construção de hierarquias sociais que, cônscias da sua importância política no reino e na conquista, reivindicam posições e privilégios.61 O governo do Estado do Brasil era uma atividade atribulada, repleta de conflitos, marcada pela necessidade de negociação para solução de problemas variados, onde se destacaram os conflitos de jurisdição. Esses conflitos prosperam numa ordem política como a da monarquia pluricontinental portuguesa que tem seu ordenamento político fundado na 2ª escolástica, onde prevalecem regras jurisdicionais, que, em função da incapacidade governativa de momento, não conseguem criar ou reafirmar regras jurídico-políticas ordenadoras. Assim sendo, os conflitos de jurisdição62 que acontecem, particularmente após 1654 e se estendem até a década de 80 do século XVII, ocasionados pelas situações tratadas anteriormente, são um material importante para compreendermos o relacionamento dos governadores gerais e os governantes das capitanias. Costa Acioli63 destaca que após a expulsão dos holandeses resolve a coroa portuguesa dividir o governo do Estado do Brasil em 3 partes, “a saber: a parte sul com sede no Rio de Janeiro; o governo da Bahia, ‘cidade cabeça dele’, a quem deveriam obedecer Sergipe del Rei, Ilhéus, Porto Seguro; o governo de Pernambuco 61 Estamos analisando uma sociedade fundada em valores corporativos onde cada um recebe e é respeitado pelo que é socialmente. Assim sendo, estamos analisando relações entre indivíduos que são socialmente iguais, apesar de estarem exercendo cargos hierarquicamente diferentes e que se movem segundo regras de direito – falamos de uma sociedade que é jurisdicional – expressas nos seus regimentos onde as posições de mando são diferentes e hierarquizada. Ou seja, algumas vezes, governadores gerais e de capitanias tem origens sociais iguais apesar de ocuparem posições de poder diferentes. Muitas vezes, nos conflitos de jurisdição, essa origem social e as normas da sociedade de corte estão presentes. 62 Ver: COSENTINO, Francisco Carlos. Governo geral do Estado do Brasil: governação, jurisdições e conflitos (séculos XVI e XVII). In: FRAGOSO, J.; GOUVÊA, M.F.S.(Org.). Na Trama das Redes. Política e negócios no império português. Séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 401-430. 63 ACIOLI, Vera Lúcia Costa. Jurisdição e conflitos. Aspectos da Administração colonial. Recife: EDUFPE/EDUFAL, 1997. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 205 que se estenderia desde o Rio S. Francisco até o Rio Grande”64 e que, talvez, “tal decisão tenha sido o fundamento dos conflitos de jurisdição que ocorreram entre os governadores gerais do Estado do Brasil e os da capitania de Pernambuco”, com o que concordamos, estendendo porém, para as outras capitanias do Estado do Brasil. As necessidades de defesa do Nordeste explicam os poderes alargados recebidos por Francisco Barreto e as do sul, por Salvador Correa de Sá e Benevides no Rio de Janeiro.65 Os governos que sucederam os dois primeiros pós-expulsão dos holandeses – D. Jerônimo de Ataíde e Francisco Barreto – até Roque da Costa Barreto, cujo regimento proclama a supremacia dos governadores gerais, a monarquia portuguesa foi superando a insegurança e a instabilidade inicial e passou a tomar iniciativas voltadas para restabelecer a autoridade do seu representante na conquista. A nomeação de Francisco Barreto para o governo geral e a abolição dos poderes extraordinários que tinha no Nordeste, a nomeação e a posse de Pedro de Mello no governo da capitania do Rio de Janeiro em abril de 1662 e a anulação dos poderes de Salvador Correa de Sá e o envio do conde de Óbidos como vice-rei para o Estado do Brasil, foram às primeiras iniciativas no sentido de ajustar a hierarquia de poderes tendo na cabeça do Estado do Brasil, seus governadores gerais. Entretanto, se a monarquia portuguesa faz movimentos voltados para retomar controles e restabelecer a hierarquia de poderes, inclusive regulamentando por meio de regimento elaborado pelo conde de Óbidos, os governos das capitanias, que tratamos anteriormente, a situação política e internacional do reino e do império, inclusive o Estado do Brasil, exige atitudes conciliatórias e, às vezes, dúbias. Não atribuímos isso a uma situação de confusão jurídica e política ou uma aparente e irracional superposição de poderes. E, se a monarquia pluricontinental portuguesa tinha uma organização política fundada em regras jurisdicionais, onde predominavam os fundamentos do direito (costumeiro, régio, religioso, etc.), ao mesmo tempo em que o novo governo bragantino procurava recompor a ordem no reino e no império ultramarino, o momento exigia, mais do que nunca, curvar-se a dinâmica da política, negociar, contemporizar, punir quando necessário, perdoar quando possível, agraciar quando dos merecimentos, prender quando no limite, como veremos a seguir. Nesse contexto, os conflitos de jurisdição que afloraram, foram alimentados, em parte, conforme Acioli ressaltou, pela conjuntural divisão do Estado do Brasil, mas também, pela necessidade de conceder poderes excepcionais e atender aos interesses 64 Ibidem, p. 61. Acioli trata o Estado do Brasil como ele se tornou na segunda metade do século XVIII ao absorver o Estado do Maranhão. Por isso fala de 4 partes e não três. Conforme já afirmamos, não concebemos as terras de Portugal na América como uma única unidade política antes do período pombalino. 65 Ver BOXER, C. R. Salvador de Sá e a luta pelo Brasil e Angola, 1602-1686…, p. 306340. ISBN 978-85-61586-70-5 206 IV Encontro Internacional de História Colonial dos grupos sociais essenciais para a manutenção da soberania portuguesa em regiões estratégicas da conquista americana. Assim sendo, se a reordenação e o direito avançam no pós-1640, as decisões políticas presidem essa conjuntura. Muitos foram os conflitos envolvendo jurisdições e, representativos, foram aqueles envolvendo o governo geral e o governo da capitania de Pernambuco sobre os quais vamos nos estender nesse trabalho e onde poderemos perceber a complexidade das decisões políticas adotadas pelos diversos atores presentes: a monarquia portuguesa, o governo geral, o governador da capitania, os diversos grupos sociais envolvidos. De certa forma, os conflitos tem início com a saída de Francisco Barreto do governo da capitania de Pernambuco para o governo geral do Estado do Brasil. Quando da expulsão dos holandeses, Barreto foi nomeado governador de Pernambuco e das regiões que se estendiam do Rio São Francisco ao Rio Grande. Segundo o Conselho Ultramarino podemos entender que a gestão dessa extensa área se daria no militar, pois, conforme a manifestação do Conselho, “E no modo referido lhe parece que dividindo-se o governo do Brasil na parte militar, poderia na civil ficar unido, como se tem dito, deixando em a propia e antiga jurisdição e autoridade o govor da Bahia”.66 O sucessor de Barreto, André Vidal de Negreiros, liderança da luta contra os flamengos, reivindicou os poderes que Barreto havia exercido.67 Vários foram os atritos entre eles. André Vidal de Negreiros não acatava as ordens de Francisco Barreto e “vay exccedendo em todas as mais de seu Governo, que podem tocar a jurisdicam deste, como se aquelle estivera separado, e independente do Estado”.68 Do ponto de vista de André Vidal de Negreiros, ao ser nomeado governador da capitania, havia recebido jurisdição para prover quem quisesse nos cargos que vagassem naquela capitania já que os seus antecessores detinham esta jurisdição. No entanto, para a monarquia portuguesa, esse não era o momento para ações que dessem origem “a tumultos e guerras civis, entre meus vassalos que nas conquistas são mui perigosas e para temer e muito mais no tempo presente em que com os holandeses não está ainda assentada a paz e em que não faltam outros inimigos vigilantes”69 e as iniciativas de Barreto contra Vidal de Negreiros são condenadas e o governador recriminado. Esse não era o momento de “inovar coisa 66 Consulta do Conselho Ultramarino sobre a forma do governo político da capitania de Pernambuco (31/03/1654). Projeto Resgate – Avulsos de Pernambuco. AHU – ACL – CU, 015, cx. 6, doc. 466. 67 Conforme MENDES, Caroline Garcia, COSENTINO, Francisco Carlos. “Ele valia um exército…”. Carreira, trajetória social e governação de Francisco Barreto de Meneses, governador geral do Estado do Brasil. LPH. Revista de História. Ouro Preto, nº 20-1, p. 258-312, 2010. 68 Projeto Resgate – Avulsos da Bahia. AHU – ACL – CU, cx. 14, doc. 1703-1704. 69 Documentos Históricos da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro: Augusto Porto, volume LXI, 1929, p. 162. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 207 alguma”,70 devendo Barreto repor “tudo no primeiro Estado”.71 A conjuntura vivida pela monarquia portuguesa e seu império ultramarino e a necessidade de contemporizar e negociar com os grupos sociais importantes das conquistas, como era Vidal de Negreiros e a nobreza da terra de Pernambuco, e Francisco Barreto ao ser desautorizado, afirma que “foi mais prompto e publico o castigo para mim, do que entendo mereciam minhas ações”72 e que, “humildemente prostrado aos pés de Vossa Real Magestade se sirva mandar logo tirar-me o posto que occupo, porque (não) me atrevo a servil-o entre desobediencia(s) applaudidas, e supostas culpas castigadas”.73 Barreto continuou no governo geral74 e Vidal de Negreiros foi sucedido por Francisco de Brito Freire (1661) passado o tempo de seu governo, mas, os problemas envolvendo a jurisdição sobre as capitanias do Nordeste se estende pelos outros governos que sucedem o de Francisco Barreto. Os problemas continuaram e o provimento dos ofícios para as capitanias reivindicadas por Pernambuco como suas anexas, Paraíba, Rio Grande e Itamaracá, geraram desacordos nos governos que se sucederam. O regimento dos capitães mores de Óbidos foi uma tentativa de ordenar o relacionamento entre os governos do Estado do Brasil. Afonso Furtado de Mendonça (1671-1675), que trouxe a tarefa de ordenar a documentação que existia acerca do governo do Estado do Brasil,75 trocou extensa correspondência com o governador de Pernambuco Fernão de Souza Coutinho por ter ele prendido o capitão mor de Itamaracá.76 Em carta de 16 de fevereiro de 1672, diz Mendonça, 70 Ibidem, p. 162. Ibidem, p. 162. 72 Ibidem, volume IV, p. 367-368. 73 Ibidem, p. 326-331. 74 Francisco de Brito Freire, sucessor de Negreiros, entrou em conflito com Francisco Barreto devido a capitania da Paraíba. A omissão do governador geral, temeroso de outra admoestação do rei, levou, no entanto, a outra censura, dessa vez por não ter interferido e resguardado as jurisdições. ACIOLI, Vera Lúcia Costa. Jurisdição e conflitos…, p. 103-104. 75 O visconde de Barbacena foi instruido a enviar informações para a elaboração de novo regimento: “E por quanto no tempo prezente se tem alterado as couzas de maneira que para o bom Governo do Brazil convem reformar-se o Regimento do Governador e Capitão Geral, como dos governos e Capitanias de todo o Estado, ordenareis as pessoas a que tocar, vos enviem os traslados, e dem as noticias necessárias, e todos os regimentos e ordens antigas e modernas que houver pertencentes ao governo, Fazenda, Justiça, e Guerra, que facão a este cazo, e os haja nos Livros antigos da Secretaria desse estado, Livros de minha fazenda e Relação, e Câmaras, ordens pró e contra dos Senhores Reys meus Predecessores, ou dos Governadores, ou de outras pessoas que tivessem faculdade pa as passar”. BNRJ-SM. 9, 2, 20. 13. 76 Em carta de novembro de 1671 de Afonso Furtado de Mendonça argumenta sobre a jurisdição de Itamaracá e que as “anexas [de Pernambuco] são as Capitanias do Rio de São Francisco, Lagôas, Serinhaem, Porto Calvo, e Iguaraçú, que antes da guerra não eram 71 ISBN 978-85-61586-70-5 208 IV Encontro Internacional de História Colonial nem Vossa Senhoria tinha poder, para mandar prender a Hieronymo da Veiga, sendo elle provido por este Governo, e tendo dado homenagem de uma Capitania em que Vossa Senhoria não tem jurisdição: e quando elle obrasse algum excesso, não devia Vossa Senhoria passar a mais que dar-me conta delle; pois só a este Governo toca a prisão, e castigo de todos os Capitães-mores do Estado.77 Em maio desse mesmo ano, Afonso Furtado de Mendonça chama o governador de Pernambuco à responsabilidade, afirmando, Vossa Senhoria não pode negar que é súbdito deste Governo, e que aos subditos ainda que tenham muita justiça, não toca defender a sua opinião senão obedecer as ordens de seus Generaes: e se ellas são violentas, ou injustas, o principe é que as decide, e os castiga: mas emquanto a sua Real determinação, não existe sempre hão de subsistir, e ser obedecidas dos subditos as ordens de seus Generaes.78 A decisão régia recupera a posição adotada quando da nomeação de Francisco Barreto79 e Afonso Furtado de Mendonça foi informado em carta de dezembro de 1672 que, “por conveniência muito do meu serviço”80 o monarca resolvia que a Capitania de Itamaracá seja subordinada ao Governo de pernambuco, em quanto ao militar, e que no que toca ao Governo ordinário da Justiça e Fazenda hão de seguir a dita Capitania o mesmo que executavam até agora nos autos judiciais os ministros da Justiça como faziam para a Relação da Bahia, e os da fazenda ao Provedor mor dela.81 A carta régia instrui o governador geral agir contra Fernão de Sousa Coutinho repreendendo-o os “excessos com que se houve, estranhando-lhos muito, por Capitanias-mores: e por occasião dela se constituíram taes, como essa e ficaram anexas á de Pernambuco”. Documentos Históricos da Biblioteca Nacional, volume X. Rio de Janeiro: Augusto Porto, 1929, p. 12. 77 Ibidem, p. 43. 78 Ibidem, p. 57. 79 Projeto Resgate – Avulsos de Pernambuco. AHU – ACL – CU, 015, cx. 6, doc. 466. 80 Documentos Históricos da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro: Typ. Baptista de Souza, volume LXVII, 1945, p. 195. 81 Ibidem, p. 195-196. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 209 mandar prender ao Capitão de Itamaracá por guardar a Vossa Ordem”82 e orienta a “proceder com todo o rigor contra quem o merecer”.83 A década de 60 e 70 do século XVII foi crucial para a dinastia dos Braganças e para a monarquia pluricontinental portuguesa, pois, foi o período dos desfechos da insegura situação internacional e ultramarina vivida desde a Restauração de 1640: a “paz definitiva foi concluída entre as Províncias Unidas e Portugal em Junho de 1669, a perda de Pernambuco foi oficialmente reconhecida pelos Estados Gerais, e a de Ceilão pela Coroa de Portugal”.84 Também a paz com a Espanha (1668) deu estabilidade ao reino de Portugal e a dinastia reinante, eliminou os empecilhos para o reatamento das relações com o papado “e o reconhecimento da monarquia portuguesa pela Santa Sé devolviam a legitimidade jurídica e política a Portugal”.85 Ou seja, estamos num momento onde, por um lado, a superação da instabilidade e insegurança começava a ganhar forma com os acordos de paz. Além disso, iniciativas ordenadoras começavam a ganhar forma, exemplificadas na instrução recebida por Afonso Furtado de Mendonça, entretanto o quadro ainda era complexo e a monarquia portuguesa precisava de cautela e assim o exigia a dinâmica governativa do Estado do Brasil. Por isso, as decisões que apresentamos nos parágrafos anteriores. Ou seja, o monarca agindo com base no direito, inspirado nas proposições próprias da 2ª escolástica, arbitrou o conflito e garantiu os espaços jurisdicionais próprios de cada um. Esse era o seu papel como cabeça do corpo político, “o trabalho do monarca envolvia diversas obrigações, e entre esses imperativos o mais importante era, sem dúvida, servir as necessidades do reino, ou seja, preservar a paz e manter os direitos e as prerrogativas dos corpos do reino”.86 82 Ibidem, p. 196. Ibidem, p. 196. 84 BOXER, Charles R. Reflexos da Guerra Pernambucana na Índia Oriental, 1645-1655. In: Boletim do Instituto Vasco da Gama. Bastora, Goa: Tipografia Rangel, 1957, p. 36. 85 FARIA, Ana Leal de. Arquitectos da paz. A diplomacia portuguesa de 1640 a 1815. Lisboa: Tribuna, 2008, p. 130. 86 CARDIM, Pedro. A Casa Real e os órgãos centrais de governo no Portugal da segunda metade de Seiscentos. Tempo. Rio de Janeiro: Sette Letras, 2002, p. 14. 83 ISBN 978-85-61586-70-5 210 IV Encontro Internacional de História Colonial Os governadores e a prática do contrabando na Capitania de Mato Grosso (1752-1793) Nauk Maria de Jesus1 A proximidade da capitania de Mato Grosso (1748) das missões espanholas preocupava a Coroa portuguesa que instruiu os seus governadores sobre como agirem e estes aos seus sucessores. Vale lembrar que a segunda metade do século XVIII foi marcada pela reconfiguração na administração da América portuguesa e naquelas circunstâncias, diante das disputas por Sacramento, as autoridades lusas voltaram os interesses para a fronteira oeste. Nesse contexto, ao criar a capitania de Mato Grosso em 1748 e estabelecer a sua capital Vila Bela da Santíssima Trindade (1752) nas raias da fronteira, a Coroa portuguesa buscava efetivar as suas conquistas, ao mesmo tempo em que visava deter o avanço das missões jesuíticas espanholas nas suas tentativas de se estabelecer na margem direita do rio Guaporé. A capitania possuía uma vasta extensão territorial e era constituída por duas vilas, localizadas em dois distritos, isto é Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá (1727), situada no distrito do Cuiabá, e a capital Vila Bela da Santíssima Trindade (1752), no distrito do Mato Grosso. Distantes uns dos outros, eles evidenciam como aquela capitania localizada na região central do continente também simbolizava a clivagem entre os Estados do Brasil, o qual o distrito do Cuiabá esteve vinculado, e o Estado do Grão-Pará, a quem o Mato Grosso, manteve maiores contatos. Assim sendo, a instrução passada em 1749 ao primeiro governador e capitãogeneral, Antonio Rolim de Moura, recomendava que ele deveria evitar as queixas e os distúrbios que pudessem ocorrer entre os súditos dos governos português e espanhol, pois a capitania era muito próxima das missões de Chiquitos, de Moxos e do governo de Santa Cruz de La Sierra.2 Nessas instruções, a importância da parte noroeste onde estava localizada a capital Vila Bela, no distrito do Mato Grosso, foi enfatizada pela Coroa, quando expressou que Mato Grosso é a chave do propugnáculo do sertão do Brasil pela parte do Peru.3 Esta capitania esteve no cerne das discussões do Tratado de Madri (1750), sendo definida em vários níveis como a sua principal fronteira. Identificada, várias vezes, como chave ou fecho da América portuguesa, ela ao mesmo tempo podia “fechar” o interior da colônia por meio da defesa ou “abrir” as negociações com os territórios hispânicos em direção às províncias do Peru, quando fosse conveniente à Coroa portuguesa. Apesar da Colônia de Sacramento ter sido a moeda de troca nas negociações do Tratado de Madri, a capitania de Mato 1 Professora Adjunta na Universidade Federal da Grande Dourados. Instruções aos capitães-generais. Cuiabá: IHGMT, 2001, p. 14. 3 Ibidem, p. 11. 2 ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 211 Grosso era o espaço simbólico da coesão entre o norte e o sul da colônia, por meio das bacias platina e amazônica, delimitando o circuito da conquista territorial de Portugal.4 Para o seu sobrinho João Pedro da Câmara, que o sucedeu no governo da capitania, Antonio Rolim de Moura recomendou que se os padres da Companhia de Jesus, estabelecidos nos domínios hispânicos, não provocassem distúrbios, deveria manter a boa harmonia com eles. Mas em setembro de 1768, João Pedro da Câmara informou ao Secretário de Estado da Marinha e Ultramar, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, da retirada dos jesuítas das mais de quinze missões espanholas localizadas nas raias da fronteira.5 Após a expulsão deles, outros religiosos assumiram as antigas missões e participaram ativamente do comércio ilegal com os domínios portugueses. Em diversos momentos esses clérigos foram denominados pelos governadores portugueses de religiosos contrabandistas.6 Já o governador Luís Pinto de Souza Coutinho em sua instrução ao seu sucessor, Luis de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres, foi enfático ao tratar do comércio de contrabando pelas províncias de Moxos e Chiquitos. Isto tudo feito debaixo do completo sigilo, pois as instruções dadas a Antonio Rolim de Moura proibindo o comércio com os castelhanos continuavam em vigor. Segundo Souza Coutinho, o comércio de contrabando se reduzia à compra de algum gado vacum e cavalar, mas se esperava que novos contatos fossem estabelecidos com a cidade de Assunção, para facilitar a entrada do tabaco.7 Chama-nos atenção e merece ser investigado, além do descaminho de ouro, o de diamantes que saía da capitania de Mato Grosso, bem como as relações com os ingleses para efetivação dessa prática. Uma das comunicações “oficiais sigilosas” feitas com a província de Moxos ocorreu no ano de 1769, quando o tenente Francisco José de Figueiredo se dirigiu as antigas missões com o motivo de entregar cartas aos governadores espanhóis e oferecer auxílio para a expulsão dos jesuítas, conforme instruções do governador Luis Pinto de Souza Coutinho. Mas o objetivo de tal viagem era fazer o reconhecimento do local, descobrir caminhos de terra e fluviais que ligassem as missões, verificar a defesa espanhola, a população, a produção, as pedras preciosas, as autoridades existentes e a possibilidade de estabelecimento do comércio. Ao chegar a uma das missões, o tenente Francisco acertou o negócio do gado com o religioso do local com cautelas e segredos. Em troca, o padre queria como pagamento para contentar os índios: bretanhas, fitas, missangas, verônicas, facas, navalhas e alguns chapéus e o 4 ARAÚJO, Renata Malcher. A urbanização do Mato Grosso no século XVIII: discurso e Método. Lisboa: Tese de Doutoramento em História da Arte – FCSH - Universidade Nova de Lisboa, 2000, p. 41- 48. 5 Cd ROM 4, rolo 12, doc. 411 - AHU-MT. 6 Ibidem. 7 Instruções aos capitães-generais…, p. 41 e 42. ISBN 978-85-61586-70-5 212 IV Encontro Internacional de História Colonial excesso em ouro, mas que este lhe devia ser entregue ocultamente… Sobre as missões de Moxos, informou, dentre outros aspectos, que safiras e pérolas encontradas nos domínios hispânicos eram comercializadas pelos espanhóis com os holandeses.8 O governador Luis Pinto de Souza Coutinho temia que o comércio com os religiosos espanhóis não tivesse longa duração por ser volumoso e conduzido por várias pessoas. Por isso seria impossível conservá-lo no segredo, principalmente entre índios que nunca souberam guardá-lo, sendo muito provável que o governador tomasse medidas no sentido de coibi-lo.9 Por meio das viagens realizadas pelos oficiais dos domínios portugueses até os de Castela, a Coroa portuguesa ficava informada da localização, força e intenções dos espanhóis. Além do mais, muitas informações acerca das relações diplomáticas entre Espanha e Portugal eram trocadas entre os homens que viviam na fronteira e muitas vezes chegavam à capitania de Mato Grosso antes da correspondência oficial do Reino português. Introduzir com disfarce, debaixo do segredo, cautelas e segredos, missão secreta, sigilo são expressões evocadas na correspondência das autoridades. Segredo ou sigilo que será invocado logo no título do documento referente ao comércio com as capitanias do Pará, de Mato Grosso e com os domínios hispânicos: a Instrução secretíssima, com que Sua Majestade manda passar à capital de Belém do Grão – Pará. O segredo era uma das armas importantes no estabelecimento do comércio clandestino, de caráter oficial, como ocorria em Sacramento. Com essas ações, cujas instruções partiam de ministros lisboetas e eram seguidas pelos governadores da capitania de Mato Grosso, a Coroa desenvolvia certa política de comércio clandestino. Quando era conveniente à Coroa, ele o autorizava e incentivava, contando para a sua efetivação com uma rede envolvendo diferentes pessoas da administração régia e local, assim como militares e pessoas comuns, unidas por laços familiares, comerciais ou de dependência, de ambos os domínios ibéricos. Cada indivíduo dava sentido a esse empreendimento e tinha um papel a desempenhar. Por sua vez, o governador Luis de Albuquerque de Melo e Cáceres foi convocado a promover o contrabando. O secretário de estado, Martinho de Melo e Castro, o instruiu a embaraçar o comércio com os castelhanos pelo caminho terrestre, permitindo-o somente pelo rio e que era conveniente promover, por todos os meios que fossem possíveis, o comércio com as aldeias castelhanas. Isso deveria ser feito com todo cuidado e com tal disfarce que não parecesse que o governador promovesse e tivesse ordem para assim agir.10 No ano de 1774, o governador entrou em contato com diferentes pessoas estabelecidas próximo à Missão de Moxos e demonstrou o interesse com contrabando a ser realizado com as partes de Chuquesaca ou Potosi, que pela sua 8 CD ROM 4, rolo 13, doc. 252 - AHU - MT. (relatório anexo). Ibidem. 10 Instruções aos capitães-generais…, p. 81. 9 ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 213 riqueza e abundância, possibilitaria concretizar os interesses das Paternais Providências de Sua Majestade.11 A fronteira oeste era uma alternativa a Colônia de Sacramento para acessar as terras de Castela e os governadores importantes interlocutores na efetivação do contrabando. O alferes Manoel José da Rocha do Amaral também se dirigiu aos domínios de Espanha em diferentes circunstâncias, como em 1775, quando regressou a província de Moxos, encarregado de levar alguns mimos ao presidente da Real Audiência de La Plata, ao governador e capitão-general de Santa Cruz de La Sierra, ao bispo da mesma localidade, ao governador de Moxos e aos vários religiosos das Missões subordinadas à Santa Cruz. Manoel foi escolhido por ser hábil em tal serviço e freqüentemente realizá-lo. Ele deveria introduzir nos domínios hispânicos alguns efeitos com disfarce.12 Não sabemos o resultado dessa viagem, mas como as demais, a intenção era fechar acordos comerciais, sempre secretos. À medida que os territórios iam sendo percorridos novas alianças eram acertadas. As missões eram a porta de entrada para os domínios hispânicos e para a obtenção de gado vacum, cavalar, prata e quem sabe o tabaco, como apontou Souza Coutinho. Por meio dos religiosos espanhóis os portugueses trocavam mercadorias européias, ouro e diamante da capitania de Mato Grosso, e os clérigos a prata lavrada ou aglomerada, além de gado. Contudo, ainda merece ser investigado o comércio de escravos por meio da fronteira oeste, cujo dilema sobre a sua comercialização ou não com os comerciantes castelhanos são notáveis durante o governo de Luis Albuquerque. E foi durante a sua que foi aprovada a Instrução Secretíssima com que Sua Majestade manda passar à capital, o governador e capitão general João Pereira Calda.13 Os impactos da Instrução secretíssima As investidas portuguesas nos domínios hispânicos, realizadas nas décadas de 1760 e 1770, por meio das expedições secretas que reconheciam rotas terrestres e as possibilidades de navegação, além de serem importantes no processo de demarcação dos limites entre os domínios ibéricos, foram úteis na proposta da Instrução secretíssima por possibilitar a prática do comércio licito.14 Essa Instrução tinha dois objetivos: 1º) 11 CD ROM 8, rolo 79, doc. 560 - AHU-PA. CD ROM 4, rolo 143, doc. 279 - AHU- MT. 13 CD ROM 7, rolo 77, doc. 72 - AHU -PA. 14 Na região do Pará, em 1722, o rei ordenou ao governador e capitão-general João da Maia Gama abrir comércio com Potosi por meio dos afluentes do rio Amazonas. Na década de 1740, o capitão-general Mendonça Gorjão também foi encorajado a incentivar o contrabando entre Belém e Quito, com ordens régias para obter a prata espanhola. Na segunda metade do setecentos, as ações de Pombal, por meio das Instrução Secretíssima, seriam mais incisivas e abarcariam outros territórios. DAVIDSON, David Michel. Rivers & Empire. The Madeira 12 ISBN 978-85-61586-70-5 214 IV Encontro Internacional de História Colonial que o Pará aumentasse o comércio ao longo do rio Madeira, alcançando a capitania de Mato Grosso e mais mercados da costa; 2º) regular o contrabando entre Belém e partes das vastas províncias hispânicas de Orinoco, Quito e Peru. Trataremos, especificamente do primeiro, observando que esse plano estava assentado em três pontos: contrabando, construção de feitorias e o comércio com Rio de Janeiro, Bahia e Pará. No plano ficavam expressos os interesses em dilatar as atividades da Companhia do Grão-Pará para a Capitania de Mato Grosso e Cuiabá a outras do Brasil e pode introduzir na maior parte das Províncias do Orinoco, de Quito e Peru com grandes vantagens ao que antes se fazia pela Colônia de Sacramento sem que os governadores confinantes possam impedir.15 Caberia, portanto, ao governador da capitania de Mato Grosso viabilizar as medidas propostas no documento. Quanto ao contrabando passava a ser regulado pela Coroa a partir da reestruturação nos parâmetros do comércio ilegal e a companhia ficaria responsável pelos produtos a serem comercializados pelos domínios ibéricos. O comércio ilegal fazia parte da sociedade colonial e envolvia diferentes grupos que competiam e cooperavam entre si, estabelecendo redes a partir de suas participações no contrabando. Segundo Ernst Pijining, essa prática afirmava e não contradizia a autoridade real. Neste sentido, o comércio ilegal tolerado era um comércio controlado, permitido pelas pessoas cujas funções oficiais pressupunham exatamente combatê-lo. Isto significa dizer que era mais importante quem praticava o comércio e não o quanto era praticado. Administradores, clérigos e oficiais militares dificilmente eram processados e se o fosse raramente o processo correria até o seu final. Além do mais, ter posses e boas conexões no reino e no ultramar poderia determinar o grau de punição.16 Deste modo, o rei controlava as diferentes instâncias do governo, o comércio e a estrutura administrativa, elaborava sistemas de fiscalizações e legislações, decidia judicialmente, mudava os oficiais de postos e lugares quando lhe parecesse conveniente, dinamizando dessa forma o comércio ilegal e evitando que autoridades régias escapassem do seu controle. Havia uma simbiose de interesses e negociações entre os contrabandistas, muitas vezes pertencentes ao corpo administrativo, e o rei. route and the incorporation of the brazilian far west, 1737-1808. New Haven: Tese de Doutoramento em História - Yale University, 1970, p. 159 e 160. 15 CD ROM 7, rolo 77, doc. 72 - AHU -PA(grifos meus). 16 PIJNING, Ernest. Controlling contraband: mentality, economy and society in eighteenth-century- Rio de Janeiro. Baltimore: Tese de Doutoramento, 1997, p. 02, p. 226. No capítulo 6, o autor discute a política de punição com base em estudos de casos de pessoas condenadas por comércio ilegal. Ver também MOUTOUKIAS, Zacarias. Burocracia, contrabando y autotransformacion de las elites. Buenos Aires en el siglo XVII. Anuario del IEHS. Tandil, 1988. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 215 Quando as ações dos contrabandistas escapavam do controle régio, as atividades ilícitas passavam a fazer parte do comércio condenado.17 A Instrução secretíssima evidencia que com as disputas em torno da Colônia de Sacramento, as autoridades lusas se voltaram para as fronteiras norte e oeste, na tentativa de manter o comércio ilícito tolerado com os domínios hispânicos. Segundo Alcir Lenharo, o fluxo de contrabando não se estabelecia numa só direção, pois o ouro era cobiçado pelas povoações espanholas e a prata pelos portugueses, gerando um contra-fluxo orientado para esses núcleos.18 Esses dados possibilitam refletir sobre a relação entre a Instrução secretíssima, a Companhia de Comércio do Grão-Pará e o contrabando. A Instrução de 1772 dizia respeito, ainda, à criação de sete feitorias localizadas na rota do comércio. Elas deveriam estar próximas à cidade de Belém, à Vila Bela do Mato Grosso e à capital do Rio Negro.19 Acreditava-se que pelo trajeto fluvial Madeira/Guaporé os comerciantes da companhia gastariam menos tempo e teriam menor custo no transporte de suas mercadorias. Inicialmente, dúvidas pairaram sobre o local onde seria erguida a feitoria da capitania de Mato Grosso e as ruínas do Forte de Conceição - destruído na década de 1760 pelos espanhóis - chegaram a ser cotadas. No entanto, ao final foi decidido que a feitoria deveria ser construída no distrito do Mato Grosso, especificamente na construção do Real Forte Príncipe da Beira (1776). No entanto, enquanto este não ficasse pronto, algum armazém deveria ser colocado dentro do forte arruinado.20 O forte Príncipe da Beira contou com financiamento da Companhia de Comércio do Grão-Pará e estava localizado a 900 quilômetros de Vila Bela e a 3.600 do Pará. Além do caráter defensivo, ele armazenaria os produtos comercializados pela companhia, atuando como entreposto comercial na rota do contrabando.21 Com a Instrução a Coroa buscava novo canal de comunicação e negociação comercial com os domínios hispânicos, e para tanto se fazia preciso abarcar o comércio do distrito do Cuiabá, já que por Vila Bela, devido à proximidade com o Pará, tais negociações eram mais facilitadas. Além disso, vale destacar que os moradores da Vila Real do Cuiabá, desde 1740, conheciam as rotas que acessavam as terras de Castela por meio da Província de Chiquitos. 17 PIJNING, Ernst. Controlling contraband…, p. 8. LENHARO, Alcir. Crise e mudança na frente oeste de colonização. Cuiabá: Ed. UFMT, 1982, p. 37. 19 CD ROM 7, rolo 77, doc. 72 - AHU -PA. 20 CD ROM 8, rolo 81, doc. 11 – AHU-PA. 21 FERNANDES, Suelme Evangelista. O Forte Príncipe da Beira e a fronteira noroeste da América portuguesa (1776-1796). Cuiabá: Dissertação de Mestrado em História – PPGH - Dep. de História – ICHS - UFMT, 2003, p. 45. 18 ISBN 978-85-61586-70-5 216 IV Encontro Internacional de História Colonial Desde a primeira metade do século XVIII o intercâmbio comercial era realizado via Vila Real do Cuiabá, que por meio das rotas fluviais e terrestres mantinha contato com São Paulo, Rio de Janeiro, Goiás e Bahia, com esta última por meio de um caminho de terra, com atalho derivado em Goiás.22 Com a abertura de uma nova rota de comércio na região onde estava localizada a capital Vila Bela, controlada pela Companhia do Grão-Pará, intencionava-se provocar o deslocamento dos negócios, minimizando os contatos do distrito do Cuiabá com os portos litorâneos do Rio e da Bahia - o que gerou apreensões entre os comerciantes que negociavam com aquelas praças - e ao mesmo tempo, possivelmente, ampliar as alternativas de acesso aos domínios hispânicos. Para que esse objetivo tivesse bom resultado era preciso que o comércio efetuado pela Companhia fosse dirigido com prudência e se destruísse o abuso dos excessivos preços a que eram vendidos os negros e fazendas oriundos do Rio e da Bahia. O comércio do Pará deveria suplantar todo o comércio até aquele momento existente: desterre o abuso dos excessivos preços, a que até agora se venderam os negros e das ditas fazendas que vem do Rio de Janeiro e da Bahia…É necessário, que se degrade toda a idéia de cobiça insaciável; entendendo-se por uma parte que o barateamento das mercadorias do Pará há de ser a espada aguda, com que se cortem todos os referidos comércios, que até agora se fizeram.23 Nota-se a proposta da Companhia de suplantar o comércio litorâneo com o Rio e a Bahia, destituindo os homens de negócios vinculados a essas praças das rotas comerciais da qual a capitania de Mato Grosso fazia parte. Se isso ocorresse, os moradores e comerciantes, estabelecidos principalmente em Vila Real do Cuiabá, seriam forçados a efetivar o comércio na capital Vila Bela para alcançar os representantes da Companhia do Grão-Pará. Segundo David Davidson, entre 1769 e 1776, as atividades comerciais na capital Vila Bela foram intensificadas e, por volta de 1776, ao menos 55 comerciantes já tinham conduzido algum negócio com a Companhia. Para atrair os comerciantes e assegurar o comércio periódico, a 22 O parágrafo 13º do capítulo 3º dos Estatutos ou posturas municipais de Vila Bela do ano de 1753, aprovados um ano após a fundação da vila, referia-se às despesas que deveriam ser feitas, no futuro, para a condução de gado de Goiás ou dos currais da Bahia. Na Vila Real esses contatos já eram efetuados desde a abertura do caminho de terra na década de 1730. ROSA, Carlos Alberto e JESUS, Nauk Maria de. Estatutos municipais ou Posturas de Vila Bela da Santíssima Trindade - 1753. Territórios e Fronteiras - Revista do PPGH da UFMT. Cuiabá, vol. 3, n. 1, 2002. 23 CD ROM 7, rolo 77, doc. 72 - AHU -PA. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 217 Companhia ampliou-lhes os créditos e remeteu um volume maior de mercadorias nas monções anuais.24 No entanto, no interior da política de regulação do comércio, o golpe maior que atingiu os comerciantes vinculados ao Rio e Bahia que negociavam primeiramente com a Vila Real e depois com a capital, foi a determinação de que os preços das mercadorias vendidas pela Companhia fossem mais baixos do que os vindos daquelas localidades. Proposta concretizada no ano de 1774, quando o governador e capitão-general do Pará, João Pereira Caldas, enviou uma pauta de preços a capitania de Mato Grosso, com ordens para regular, barateando, a venda dos produtos. A publicação da pauta e sua recepção na capitania de Mato Grosso merecem breves comentários e por isso fazemos uma pausa no tocante a Instrução. Destacamos que o documento secretíssimo criticava os exorbitantes preços dos escravos e gêneros secos e molhados que eram comercializados em Vila Bela e defendia o barateamento dos produtos. Seus defensores acreditavam que desse modo seria possível propagar e dilatar as atividades da companhia a outras regiões vizinhas. Antes de publicar a pauta de preços, o governador da capitania de Mato Grosso, Luis de Albuquerque, na tentativa de amenizar os seus impactos, reuniu-se com os comerciantes que sugeriram ajustes nos preços de acordo com as condições locais. Ele também entregou o documento ao ouvidor Miguel Pereira Pinto Teixeira que, após leitura, fez advertências nos termos propostos. Segundo o ouvidor, o preço base poderia alijar o comércio da capitania de Mato Grosso com os portos. Para ele, eliminar ou limitar o comércio com o litoral deixaria a região inteiramente nas mãos da Companhia do Grão-Pará, prejudicando a capitania. Além disso, comerciantes da rota da Madeira viriam a ser simples agentes da Companhia e o lucro seria desta última e não deles. Argumentava também que tinha dúvidas se a Companhia conseguiria prover a demanda da fronteira oeste com as suas importações. Por fim, considerou que os preços propostos, abaixo dos praticados pelos mercadores do Rio e Bahia, até agradariam os consumidores, mas seriam a ruína da capitania, que ficaria completamente dependente da Companhia.25 A pauta de preços perturbou os comerciantes, sobretudo aqueles que comercializavam com os portos do Rio e da Bahia, gerando diversas queixas. Segundo Luis de Albuquerque: Os referidos barateamentos e justas moderações estabelecidas, me persuado que seguramente desviaram de todo o comércio, que aqui se vinha fazer antes, com fazendas secas e molhadas do dito Rio de Janeiro, e em parte da Bahia, segundo 24 25 DAVIDSON, David Michel. Rivers & Empire…, p. 169-170. Ibidem, p. 175. ISBN 978-85-61586-70-5 218 IV Encontro Internacional de História Colonial expressamente insinua o Espírito das Ordens de Sua Majestade.26 Contrariados com tal política, em 1778, já com a revogação da Instrução secretíssima, vinte e quatro comerciantes que se identificavam como homens de negócio ou em uma única passagem como homens de comércio enviaram uma carta à rainha D. Maria pedindo para serem recompensados dos prejuízos causados pelos deputados e interessados da Companhia.27 Na carta, eles expressaram o risco que os homens de negócio vinculados às praças do Rio de Janeiro e da Bahia tinham ao se deslocar para Vila Bela após passarem pela Vila Real, por causa das poucas chances de lucro a ser obtido devido à pauta de preços. Segundo eles, tiveram a infelicidade de dispô-las nesta Vila Bela pelos ruinosos preços da Pauta, que os deputados e interessados na Companhia Geral do Pará fizeram estabelecer e publicar nestas minas…28 Ainda, assumiam a responsabilidade pela manutenção da capitania, pois com especialidade e nem as mais do Brasil… tem sido inteiramente estabelecida, conservada e aumentada pelos seus comerciantes. Essa responsabilidade é mencionada em outro trecho, Intentaram, pois, arruinar e destruir a capitania, porque sendo esta, com especialidade entre a mais fundada estabelecida e aumentada pelos negociantes.29 Nessas passagens é eliminada toda e qualquer referência aos primeiros paulistas que se deslocaram para a fronteira oeste. Do mesmo modo, a única menção à figura do minerador aparece no trecho miseráveis ascendentes daqueles bons vassalos.30 No documento de 1778, os comerciantes assumem o papel de principais responsáveis pela conquista. Eles argumentavam que se a capitania fosse arruinada, eles também seriam destruídos e tal não seria justo, porque saindo das praças marítimas, enfrentavam caminhos árduos e arriscados, rios caudalosos, cachoeiras e ainda as nações bárbaras, tudo em nome do aumento da agricultura e da povoação. Iam além, alegando que com as próprias pessoas, já com as fazendas para pagamento dos militares e obreiros dos fortes, e ainda com o próprio ouro, tinham defendido a capitania das invasões inimigas, sem nunca terem se queixado, pois como fiéis vassalos devem e querem suprir e concorrer para tudo o que for bem e aumento da Real Casa do Público e da Capitania.31 Procuravam 26 CD ROM 4, rolo 83, doc. 402 - AHU-MT. Carta, CD ROM 4, rolo 18, doc. 105 – AHU – MT. Embora o documento tenha sido elaborado em Vila Bela, não significa os comerciantes que assinaram estivessem estabelecidos na capital, mesmo porque, eles se referem à Vila Real em várias passagens do texto. Neste momento, eles falavam enquanto grupo de comerciantes. 28 Ibidem. 29 Ibidem. 30 Ibidem. 31 Ibidem. 27 ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 219 resguardar os direitos de fiéis vassalos, ao mesmo tempo em que evidenciavam a riqueza da comunidade mercantil que representavam.32 Prosseguindo na explanação do documento de 1778, os comerciantes ainda destacaram que à sua custa conheceram a navegação do Pará, abriram o caminho de terra de Goiás (1736), financiaram bandeiras nas diligências de descobertas de novas minas, sendo que nessas investidas, Luis Rodrigues Villares, principal comerciante deste Estado, havia feito enormes gastos na Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá e seu termo.33 A carta dos comerciantes representava o fortalecimento de um grupo mercantil responsável pela preservação e desenvolvimento da fronteira oeste. Em meio às queixas contra as ações da companhia, e relembraram que após quatro ou cinco anos da criação da companhia de comércio, foi divulgada uma ordem proibindo o: primeiro, principal e antigo caminho dos rios que da Capitania de São Paulo vem a estas; caminho por onde se descobriu, povoou e estabeleceu todo este sertão do poente, e por onde os miseráveis ascendentes daqueles bons vassalos,vêem algum pequeno lucro do trabalho. Explicavam que suprimindo essa rota, teriam que se lançar à do Madeira/Guaporé, fazendo com que os comerciantes desta vila – Vila Bela - cultivassem o comércio do Pará e, paulatinamente, fossem deixando o comércio com o Rio de Janeiro.34 Com base nesses argumentos, suplicavam à soberana que não fossem obrigados a pagar os juros de suas dívidas para com a companhia até o ano de 1783, assim como pediam que tal graça fosse estendida aos devedores da Praça do Rio de Janeiro, que diante da pauta dos preços de 1775, tinham perdido vultosas quantias. Em segundo lugar, solicitavam a restituição dos homens de negócio do Rio e da Bahia na capitania. Por último, clamavam mais tempo para comercializarem as fazendas estocadas, não permitindo a entrada de novas.35 32 Sobre esse aspecto ver FRAGOSO, João, BICALHO, Maria Fernanda B. e GOUVEA, Maria de Fátima Silva. Uma leitura do Brasil colonial: bases da materialidade e da governabilidade no Império. Penélope. Fazer e desfazer a História. Lisboa, n.º 23, p. 6788, 2000. BICALHO, Maria Fernanda B. As representações da câmara do Rio de Janeiro ao monarca e as demonstrações de lealdade dos súditos coloniais. Séculos XVII e XVIII. In: O município no mundo português. Seminário Internacional. Centro de Estudos de História do Atlântico, Funchal, p. 523-564, 1998. 33 Carta, CD ROM 4, rolo 18, doc. 105 – AHU – MT. 34 Ibidem. 35 Ainda estamos levantando os dados e verificando se o pedido dos comerciantes foi atendido. ISBN 978-85-61586-70-5 220 IV Encontro Internacional de História Colonial Apesar dos prejuízos apontados pelos homens de negócios vinculados ao Rio e a Bahia, o maior envolvido pela Companhia foi o distrito do Mato Grosso. Isto, porque as atividades da Companhia envolvendo o Cuiabá apresentaram dificuldades. As despesas nos transportes das mercadorias, as distâncias entre as duas vilas e a preferência dos moradores por buscar escravos no Rio e na Bahia, cujos preços eram melhores e as opções de escolhas entre os numerosos lotes dos muitos e bons que ali se vendem contribuíram para que a Companhia de Comércio do Grão-Pará não alcançasse o Cuiabá plenamente, pois os seus moradores optavam por manter o comércio já existente.36 A situação no final da década de 1770 não era das mais tranqüilas. Em 1777, os gêneros e escravos remetidos pela Companhia à capitania não chegaram, fazendo com que o governador Luis de Albuquerque receasse que o plano de abastecer o comércio tivesse sido alterado. Com efeito, em dezembro, recebeu o aviso da Secretaria de Estado dos Negócios Ultramarinos, de 3 de junho de 1777, revogando a pauta de preços de 1775, determinado que o comércio em grosso e retalho ficassem livres como antes.37 Em 1778 o plano secretíssimo foi cancelado. Essas ações estavam relacionadas à saída de Pombal do poder e a subida ao trono de D. Maria I. Na capitania de Mato Grosso, Luis de Albuquerque expressou sua dúvida sobre a continuidade ou não da promoção do contrabando, visto que as novas resoluções reais desaprovavam o Plano de comércio chamado secretíssimo. Mas ele faria o que fosse do Real agrado.38 Sendo assim, a Instrução propunha a consolidação da rota Madeira/Guaporé e o incremento das atividades comerciais no e por meio do oeste da América portuguesa. Essa situação reafirma a existência da clivagem entre os Estados do Brasil e do GrãoPará e a importância da capitania de Mato Grosso no contexto imperial português por propiciar a conexão entre os dois Estados e por sua localização fronteiriça possibilitar a abertura de novas rotas comerciais em direção aos domínios hispânicos. Nesse contexto, os governadores e capitães-generais da capitania de Mato Grosso foram os promotores e ao mesmo tempo o termômetro do comércio de contrabando desenvolvido, pois deles partiam as avaliações e informações oficiais a respeito de tão sigilosos negócios. Assim, se ao primeiro governador, Antonio Rolim de Moura, foram feitas restrições quanto à efetivação do comércio ilícito, a Luis de Albuquerque a questão foi enfatizada e incentivada e a Instrução é um documento a ser considerado no conjunto de práticas ilícitas adotadas na gestão desse governador. 36 CD ROM 8, rolo 83, doc. 404 - AHU - PA. LEVERGER, Augusto. Apontamentos cronológicos da Província de Mato Grosso. Cuiabá: IHGMT, 2001, p. 82. 38 CD ROM 4, rolo 18, doc. 99 - AHU-MT. 37 ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 221 Os homens de negócio da colônia do Sacramento e o contrabando de escravos para o Rio da Prata (1749-1777) Fábio Kühn1 O grupo mercantil da Colônia do Sacramento e o contrabando no Rio da Prata Nas últimas décadas os comerciantes coloniais foram objeto da atenção da historiografia brasileira recente, dando origem a uma série de trabalhos sobre a atuação dos homens de negócio residentes na América portuguesa, o que ajudou a compor um novo enquadramento da questão, onde se verificou que os comerciantes compuseram a elite colonial no século XVIII.2 No caso do Rio de Janeiro do século XVIII – de onde saíram ou mantinham contato diversos comerciantes com atuação em Sacramento – os homens de negócio constituíram-se em uma elite verdadeiramente nova, apartada em sua maioria da antiga nobreza da terra.3 Em termos hierárquicos, os comerciantes coloniais dividiam-se basicamente em duas categorias: os mercadores e os homens de negócio. Embora se dedicassem ao mesmo tipo de atividades, a diferença estaria na escala destes empreendimentos, sendo que os “homens de negócio” se constituíam na elite comercial propriamente dita.4 Sabe-se também que os comerciantes coloniais eram homens que no mais das vezes tinham origens sociais modestas e sobre os quais ainda pesava a visão negativa existente na sociedade portuguesa de Antigo Regime sobre o comércio, além da sua associação com o indesejável “defeito mecânico”, que denunciava as modestas 1 Universidade Federal do Rio Grande do Sul Porto Alegre, Brasil. FRAGOSO, João L. R. Homens de Grossa Aventura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2ª ed. revista, 1998 [1ª ed.: 1992]. Ver também FURTADO, Júnia Ferreira. Homens de Negócio – A interiorização da Metrópole e do comércio nas Minas setecentistas. São Paulo: Hucitec, 1999; OSÓRIO, Helen. O Império português no sul da América – Estancieiros, lavradores e comerciantes. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007; RIBEIRO, Alexandre V. O comércio de escravos e a elite baiana no período colonial. In: FRAGOSO, João (org.) Conquistadores e Negociantes – História de elites no Antigo Regime nos trópicos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007; BORREGO, Maria Aparecida M. A teia mercantil – Negócios e poderes em São Paulo colonial (1711-1765). São Paulo: Alameda, 2010. 3 SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. Famílias e negócios: a formação da comunidade mercantil carioca na primeira metade do setecentos. In: (org.) FRAGOSO, João Luís Ribeiro; ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de; SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. Conquistadores e negociantes…, p. 253. 4 SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. Na encruzilhada do Império: hierarquias sociais e conjunturas econômicas no Rio de Janeiro (c.1650 - c.1750). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003, p. 233. 2 ISBN 978-85-61586-70-5 222 IV Encontro Internacional de História Colonial origens sociais, quase sempre vinculados ao trabalho braçal. No entanto, a elite mercantil em formação gozava de uma vantagem apreciável, mesmo sendo de origem humilde, pois tinha a denominada “limpeza de sangue”, muito necessária para a promoção social dos mercadores e homens de negócio. A obtenção da carta de familiatura era uma prova de ascendência limpa e sinônimo inequívoco de honra e status social, pois “dinheiro, os comerciantes e mercadores já possuíam; faltava-lhes o enobrecimento”. Não por acaso, ao longo dos Setecentos, os comerciantes estabelecidos no Brasil procuraram com afinco fazer parte do aparelho burocrático inquisitorial.5 Cabe lembrar também que justamente no período aqui estudado, ocorreu o processo de nobilitação dos comerciantes lusitanos, notadamente durante o período pombalino, quando toda uma legislação específica foi dedicada ao acrescentamento social dos homens de negócio.6 O grupo mercantil da Colônia do Sacramento mudou bastante ao longo de quase um século de dominação lusitana na região. No início do povoamento (1680-1705), os negócios eram controlados pelos governadores e seus sócios.7 Durante a segunda fase (1716-1749), os portugueses tiveram que enfrentar a concorrência direta dos ingleses, estabelecidos com o Asiento na região, o que não impediu que os homens de negócio e mercadores atuantes aumentassem significativamente.8 Mesmo na última fase da cidadela (1750-1777) , quando a Colônia já parecia condenada ao fim, em função das disposições decorrentes do Tratado de Madri, o grupo mercantil continuava bastante dinâmico, direcionando suas atividades para o trato negreiro.9 Os comerciantes da praça podiam ser diferenciados quanto à sua inserção efetiva na sociedade sacramentina: uns assemelhavam-se aos “comissários volantes” e não residiam efetivamente na praça, somente o tempo necessário para fazer seus negócios, voltando em seguida ao Rio de Janeiro. No final da década de 1760, referindo-se a essa categoria, o governador da Colônia explicava que “por serem os paisanos desta Praça a maior parte deles sem domicílio certo nela”, eles “são homens que concorrem ao seu negócio e imediatamente tornam a fazer regresso para outras 5 CALAINHO, Daniela. Agentes da Fé: familiares da Inquisição portuguesa no Brasil colonial. Bauru: Edusc, 2006, p. 96-99. Ver também KÜHN, Fábio. As redes da distinção: familiares da Inquisição na América Portuguesa do século XVIII. Varia Historia, vol. 26, nº 43, p. 177-195, 2010. 6 PEDREIRA, Jorge M. Negócio e capitalismo, riqueza e acumulação: os negociantes de Lisboa (1750-1820). Tempo, vol. 8, nº 15, p. 37-69, 2011. 7 JUMAR, Fernando A. Le commerce atlantique au Rio de la Plata (1680-1778). Villeneuve d’Ascq: Presses Universitaires du Septentrion, vol. 1, 2000, p. 222. 8 PRADO, Fabrício P. Colônia do Sacramento – O extremo sul da América portuguesa. Porto Alegre: Fumproarte, 2002, p. 146-168; POSSAMAI, Paulo. A vida quotidiana na Colônia do Sacramento. Lisboa: Editora Livros do Brasil, 2006, p. 352-362. 9 SANTOS, Corcino Medeiros dos. O tráfico de escravos do Brasil para o rio da Prata. Brasília: Edições do Senado Federal, 2010, p. 147-154. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 223 partes”.10 Mas também havia outra categoria, possivelmente minoritária, mas bastante influente, que se refere aos comerciantes efetivamente residentes na praça (e não somente assistentes), radicados em famílias sacramentinas estabelecidas há uma ou duas gerações e muitas vezes casados com mulheres também locais.11 No que tange à dimensão do grupo mercantil aqui estudado, temos informações recolhidas em diversas fontes (registros paroquiais de batismos e óbitos, relações e representações de mercadores e homens bons, habilitações de familiares do Santo Ofício), que permitem uma estimativa plausível. Os dados encontrados para o período 1749-1777 indicam a existência de pelo menos 105 agentes mercantis atuantes na praça nessa conjuntura, dos quais praticamente dois terços (71) são denominados como “homens de negócio”. Pelo menos um quinto dos comerciantes (21) eram também familiares do Santo Ofício, habilitados tanto na Colônia, como também no Rio de Janeiro. Cabe lembrar que o acesso à familiatura era uma forma de distinção social muito apreciada na Colônia do Sacramento, ainda mais pelo fato dela não dispor de uma Câmara que pudesse servir de espaço de representação e nobilitação para a comunidade mercantil.12 Por outro lado, temos o pertencimento às companhias de ordenança, que na Colônia do Sacramento foram criadas em 1719. As informações disponíveis para os comerciantes do Rio de Janeiro na primeira metade do século XVIII, “indicam uma forte correlação entre o ‘título’ de homem de negócio e o posto de capitão”.13 Esta correlação parece ser confirmada no caso da Colônia do Sacramento, pois 25 dos 40 homens que ostentavam patentes de oficiais de ordenanças tinham patente de capitão. É preciso notar ainda que alguns destes capitães eram responsáveis pelo controle das estratégicas ilhas situadas no rio da Prata, a uma pequena distância da praça sacramentina, como nos casos do capitão da ilha de São Gabriel, José de Barros Coelho, do capitão da ilha Rasa, Simão da Silva Guimarães, do capitão da ilha de Fornos, João de Freitas Guimarães, do capitão da 10 AHU-CS, Cx. 7, nº 591. Ofício do governador da Colônia do Sacramento, Pedro José Soares de Figueiredo Sarmento ao Vice-rei Conde de Azambuja, 28.10.1769. 11 Um exemplo, entre outros, seria o caso do capitão da ilha de São Gabriel, o homem de negócios José de Barros Coelho, estabelecido na praça desde 1728. Após casar, constituiu família e viveu na Colônia por cerca de quatro décadas, falecendo em 1769. 12 Agradeço a Paulo Possamai por esta sugestão, que ajuda a explicar o número relativamente elevado de familiares inquisitoriais na praça platina. 13 SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. Os homens de negócio e a coroa na construção das hierarquias sociais: o Rio de Janeiro na primeira metade do século XVIII. In: (org.) FRAGOSO, João & GOUVÊA, Maria de Fátima. Na Trama das Redes: política e negócios no Império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 470. ISBN 978-85-61586-70-5 224 IV Encontro Internacional de História Colonial ilha dos Ingleses, Francisco José da Rocha e do capitão da ilha das Duas Irmãs, José de São Luís.14 Se compararmos a comunidade de comerciantes da Colônia do Sacramento com àquelas existentes nas principais praças mercantis da América Meridional, percebemos que o número de negociantes era proporcionalmente avultado, em relação às dimensões da povoação. Em Lima, por volta de meados do século XVIII, a comunidade mercantil chegava a 135 indivíduos, ao passo que em Buenos Aires, o grupo de comerciantes poderosos e prestigiosos alcançava 178 pessoas no período entre 1775 e 1785.15 Na América portuguesa, a cidade de Salvador contava com 120 comerciantes em 1757, dos quais praticamente a metade estava envolvida com o comércio transatlântico de escravos. A praça do Rio de Janeiro contava com pelo menos 199 homens de negócio atuantes no período 1753-1766.16 Embora a Colônia do Sacramento não se constituísse numa praça mercantil à altura das grandes cidades sul-americanas da época, ela chegou a possuir um grupo de comerciantes relativamente autônomos, que tinha diversos graus de vinculação com os homens de negócio do Rio Janeiro. Ademais, eles eram favorecidos pela proximidade e facilidade de comunicação com os domínios espanhóis, o que facilitava o contrabando. Um grupo que teria no seu auge por volta de uma centena de pessoas, embora nem todos fossem poderosos homens de negócio: quando a praça foi tomada pelas forças espanholas em 1762, o governador de Buenos Aires, Pedro de Cevallos, apresentou duas opções para o grupo mercantil estabelecido na Colônia. Poderiam retirar-se levando consigo “todos sus efectos de Comercio” ou então permanecer nos domínios de Sua Majestade Católica, desde que apresentassem um inventário exato dos seus gêneros, para que fossem taxados pela Real Fazenda. Não obstante a elevada alíquota de 45% cobrada dos negociantes que quisessem 14 O denominado arquipélago de São Gabriel compreendia, além da ilha do mesmo nome, onde existiu uma fortificação portuguesa, as ilhas das Duas Irmãs, as ilhas de Fornos, a ilha dos Ingleses e a ilha Rasa. Atualmente, algumas dessas ilhas fluviais possuem denominações diferentes. 15 TURISO SEBASTIÁN, Jesús. Comerciantes españoles en la Lima borbónica: anatomía de una elite de poder (1701-1761). Valladolid: Universidad de Valladolid/Secretariado de Publicaciones e Intercambio Editorial, 2002, p. 57-58 e SOCOLOW, Susan. Los mercaderes del Buenos Aires virreinal: família y comercio. Buenos Aires: Ediciones de la Flor, 1991, p. 26. 16 RIBEIRO, Alexandre V. O comercio das almas e a obtenção de prestígio social: traficantes de escravos na Bahia ao longo do século XVIII. InLocus – Revista de História. Juiz de Fora, vol. 12, nº 2, p. 16, 2006 e CAVALCANTI, Nireu. O comércio de escravos novos no Rio setecentista. In: (org.) FLORENTINO, Manolo. Tráfico, cativeiro e liberdade – Rio de Janeiro, séculos XVII-XIX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 67-72. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 225 permanecer, um número significativo, que chegou a noventa e um indivíduos, decidiu permanecer.17 Apesar do seu caráter de fortaleza militar, a Colônia do Sacramento era também – e fundamentalmente – uma praça mercantil, onde desde o princípio estavam presentes os interesses da elite fluminense: “Sacramento era a corporificação de uma demanda repetida da Câmara carioca pela fundação de uma colônia que incrementasse as tradicionais relações entre o Rio de Janeiro e a região do Rio da Prata”.18 As atividades comerciais da praça são bem conhecidas para a primeira metade do século XVIII, especialmente durante o período do governador Antônio Pedro de Vasconcelos (1722-1749), que fazia parte de uma rede envolvida em negócios ilícitos, onde o prestígio da autoridade régia associava-se à influência dos burocratas e homens de negócio.19 Também foram investigadas as atividades da rede mercantil liderada pelo poderoso homem de negócios lisboeta Francisco Pinheiro, que tinha um agente na Colônia, o comerciante José Meira da Rocha. Todavia, neste período, os ingleses obtiveram como concessão o Asiento de escravos na América espanhola (1713-1739), tornando-se os principais concorrentes dos portugueses na região platina, já que além dos negros escravizados eram introduzidas mercadorias britânicas.20 Após o período crítico do cerco espanhol de 1735-1737, quando a praça foi sitiada durante vinte e dois meses e os negócios foram duramente afetados, o comércio sacramentino voltou a florescer, atingindo seu auge na conjuntura compreendida entre 1739 e 1762. Nesses anos, não houve maiores hostilidades entre as Coroas ibéricas, o que permitiu uma maior aproximação oficial entre ambos os governos. Essa situação acabou facilitando o intercâmbio comercial, incrementando 17 JUMAR, Fernando A. Le commerce atlantique au Rio de la Plata (1680-1778)…, p. 315. 18 SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. Na encruzilhada do Império…, p. 146-147. 19 PRADO, Fabrício P. Colônia do Sacramento…, p. 168-185. 20 Não obstante os trabalhos recentes de Fernando Jumar e Fabrício Prado tenham comprovado a cooperação de setores ou facções mercantis da Colônia com mercadores ingleses, existem evidências de que nem todos se beneficiavam com a presença britânica na região. Em finais de 1732, com a chegada dos navios do Asiento uma carta do negociante José Meira da Rocha informava que “se suspendeu o comércio desta praça, de qualidade que se acha ao presente tudo parado, sem aparecer castelhano algum a procurar gêneros”. Carta de Meira da Rocha a Francisco Pinheiro, Colônia, 31.01.1733. In: LISANTI Fº, Luis. Negócios Coloniais – Uma correspondência comercial do século XVIII. Brasília: Ministério da Fazenda, 1973, vol. 4, p. 360 citado em POSSAMAI, Paulo. A vida quotidiana na Colônia do Sacramento…, p. 396. Para detalhes sobre o asiento inglês na região platina, ver STUDER, Elena. La trata de negros en el Rio de la Plata durante el siglo XVIII. Buenos Aires: Universidad de Buenos Aires-Departamento Editorial, 1958, p. 201-238. ISBN 978-85-61586-70-5 226 IV Encontro Internacional de História Colonial as possibilidades de contrabando.21 Durante a década de 1740, terminado o Asiento inglês, as relações comerciais entre Colônia e Buenos Aires foram fortemente retomadas, especialmente no que dizia respeito ao trato negreiro. As relações diretas entre os territórios hispânicos e a Colônia do Sacramento se ampliariam a partir de 1749, com a assinatura de um convênio que abriria brechas para o comércio ilícito. O governador português Antônio Pedro de Vasconcelos alegava não ter possibilidades de abastecimento de víveres e lenha para a subsistência da praça.22 Diante da situação de harmonia que vigorava entre as Coroas ibéricas, os espanhóis autorizaram a obtenção de víveres, porém os únicos portos autorizados seriam os do Riachuelo (Buenos Aires) e o de Montevidéu. As embarcações particulares seriam revistadas pelos oficiais espanhóis, mas não seriam inspecionadas as faluas reais, o que abria uma brecha considerável, que seria bastante utilizada pelo governador Bivar. Para tentar coibir o contrabando, a tripulação das embarcações portuguesas não poderia desembarcar no território espanhol.23 Nessa mesma época, durante os anos de 1748 e 1749, graças às suas conexões atlânticas, quatro navios desembarcaram diretamente da África 1654 escravos na Colônia do Sacramento, dos quais 205 (12,4%) eram crianças.24 Porém, esse profícuo comércio procurou ser restringido no âmbito das negociações decorrentes do Tratado de Madri. Esse foi o objetivo do alvará de 14 de outubro de 1751, que determinou a exclusão dos lusobrasileiros das colônias espanholas, mas na prática resultou somente na transição entre o contrabando feito diretamente de Angola para um comércio indireto nominalmente legal feito pelo Rio de Janeiro para a Colônia do Sacramento nos anos 1750.25 A década de 1750 – que coincide aproximadamente com o governo de Luiz Garcia de Bivar - parece ter sido mesmo o auge da atividade mercantil na Colônia, muito em função das transformações decorrentes da execução do Tratado de Limites 21 PAREDES, Isabel. Comercio y contrabando entre Colonia del Sacramento y Buenos Aires en el período 1739-1762. In: Colóquio Internacional Território e Povoamento. Instituto Camões, p. 3, 2004. 22 As clausulas de autorização a busca de víveres em Buenos Aires aparecem desde 1737, após o final das hostilidades entre portugueses e espanhóis, quando da perda do entorno agrícola da Colônia do Sacramento. Em 1749 estas práticas são oficializadas, o que favoreceu o incremento do comércio ilícito. 23 PAREDES, Isabel. Comercio y contrabando entre Colonia del Sacramento y Buenos Aires en el período 1739-1762…, p. 11-12. 24 PRADO, Fabrício P. In the Shadows of Empires: Trans-Imperial Networks and Colonial Identity in Bourbon Rio de La Plata (c. 1750-c.1813). Atlanta: Tese de doutorado - Emory University, 2009, p. 73 e 75. O autor se valeu dos dados disponibilizados pelo Slave Trade Database: www.slavevoyages.org. 25 MILLER, Joseph. Way of Death – Merchant Capitalism and the Angolan Slave Trade, 1730-1830. Madison: The University of Wisconsin Press, 1988, p. 485. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 227 entre Portugal e Espanha. Enquanto os demarcadores permaneceram no território meridional e foram levadas a cabo as operações nas Missões, aumentaram bastante as possibilidades de contrabando, facilitadas ademais pela maior quantidade de navios oficiais, o que aumentava o movimento portuário.26 Em 1752, os negociantes espanhóis afirmavam que “é constante que este lugar por sua natureza inútil o mantém os portugueses sem outro objetivo que o comércio”, visto que “anualmente em toda a classe de embarcações passam de cem”.27 Esta afluência de embarcações, algumas delas envolvidas no comércio ilícito de escravos, chegou a gerar preocupação com a difusão de epidemias. Em uma resolução tomada em 1755 pelo governador Bivar, ele ordenava que para “evitar os danos, que resultam à saúde deste povo, ocasionados com os males contagiosos” que “introduziram-se com a chegada das embarcações, vindas de portos de barra fora, com gente [e] escravatura de comércio”, os oficiais da Alfândega fossem inspecionar as embarcações que entravam no porto e levassem consigo um cirurgião, que deveria passar uma certidão atestando a inexistência de enfermidades nos tripulantes e demais passageiros dos navios.28 Registrando esta movimentação comercial, um autor anônimo escreveu um manuscrito intitulado Discursos sobre el comercio legítimo de Buenos Aires com la España y el clandestino de la Colonia del Sacramento, onde expressava a sua impressão sobre os moradores da praça portuguesa: “todos são animados e vivem do comércio clandestino que fazem com a cidade de Buenos Aires e sua jurisdição” Os espanhóis compravam na Colônia toda espécie de mercadorias europeias e brasileiras, além de uma “grande quantidade de negros que por via do [Rio de] Janeiro conduzem de Guiné, no que fazem um considerável comércio”, que atingía na década de 1760 em torno de seiscentos escravos introduzidos por ano. Segundo o autor, os africanos seriam os verdadeiros “fondos vivos de la contravención”. Observou ainda que no período entre 1740 a 1760, o comércio clandestino se realizou quase sem repressão, sendo que nessas circunstâncias o número de escravos introduzidos havia sido no mínimo o dobro, ou seja, cerca de mil e duzentos escravos por ano.29 Esse comércio 26 PAREDES. Comercio y contrabando entre Colonia del Sacramento y Buenos Aires en el período 1739-1762…, p. 12. 27 VILALOBOS, Sergio. Comercio y contrabando em el Rio de la Plata y Chile. Buenos Aires: Eudeba, 1965, p. 19. 28 ANRJ (Arquivo Nacional – Rio de Janeiro). Cód. 94, vol. 5. Ordem do governador Luiz Garcia de Bivar. Colônia do Sacramento, setembro de 1755. 29 Talvez os números do autor dos Discursos possam estar superestimados. Entre 1744 e 1745, quando governou interinamente a praça, o brigadeiro José da Silva Pais procurou aumentar a arrecadação da Fazenda Real e instituiu uma “contribuição” de sete mil e quinhentos réis por cada escravo adquirido na praça pelos espanhóis. Segundo uma certidão passada no final de 1745 pelo escrivão da Fazenda Real da Colônia do Sacramento, tal taxação havia arrecadado em cerca de um ano o montante de 3:262$500 réis, o que equivalia à transação de 435 cativos ISBN 978-85-61586-70-5 228 IV Encontro Internacional de História Colonial movimentaria anualmente de dez a dezoito navios de cem a trezentas toneladas, além de muitas embarcações menores, sendo que o grosso das cargas era de manufaturados europeus, produtos brasileiros (como açúcar, tabaco e aguardente) e escravos africanos. Em troca, os espanhóis levavam à Colônia a desejada prata, além de víveres, carnes, trigo, farinha e couros.30 Dada a extensão desse contrabando, não surpreende que os dados disponíveis mostrem que 58% dos habitantes da Colônia eram escravos em 1760, sem que houvesse uma ocupação econômica viável para tantos trabalhadores cativos.31 Diante desses números e levando em conta a existência de uma comunidade mercantil fortemente vinculada ao Rio de Janeiro, os dados sugerem que este elevado número de cativos eram habitantes temporários, à espera de serem comercializados com os mercadores buenairenses. Não estamos descartando evidentemente a possibilidade de que uma parcela significativa desses cativos – pelo menos a metade deles estivesse à serviço dos moradores da praça, ocupados em atividades domésticas, na produção agrícola em pequena escala e nas atividades marítimo-portuárias. Mas uma parte significativa deles parece realmente ter sido destinada ao contrabando com o rio da Prata. Dessa forma, como notou Fabrício Prado, percebe-se um duradouro e ativo papel dos comerciantes sacramentinos nos negócios negreiros, com um papel de destaque no complexo portuário platino.32 Qual seria o envolvimento direto dos homens de negócio e mercadores da Colônia do Sacramento no contrabando de escravos? Por se tratar de atividade supostamente ilícita, os registros são escassos, pois não temos os despachos de escravos para Buenos Aires, por exemplo. Temos, quando muito, o registro das apreensões feitas pelas autoridades espanholas.33 Apenas indiretamente podemos para os domínios espanhóis. Cf. PIAZZA, Walter F. O Brigadeiro José da Silva Paes – Estruturador do Brasil Meridional. Florianópolis: Ed. da UFSC; Rio Grande do Sul: Editora da Furg/Edições FCC, 1988, p. 106. 30 O texto dos Discursos foi parcialmente divulgado em um artigo publicado em 1980, pelo historiador argentino Enrique Barba. O documento original pertence a Colección Ayala da Biblioteca do Palácio Nacional de Madri. Consultamos somente a transcrição existente na Academia Nacional de la Historia, em Buenos Aires. 31 AHU-CS, Cx. 6, nº 513. Ofício do governador da Nova Colónia do Sacramento, Vicente da Silva Fonseca, ao secretário de estado da Marinha e Ultramar, Tomé Joaquim da Costa Corte Real, sobre a sua posse do governo da Colônia (15.04.1760). Segundo o mapa populacional em anexo a este ofício, em 1760 viviam na praça 2693 pessoas (1588 homens e 1105 mulheres), estando incluídos nesse número os brancos livres, pardos e negros forros, além dos escravos. Estes últimos somavam a quantidade de 1575 indivíduos (941 homens e 634 mulheres). 32 PRADO, Fabrício. In the Shadows of Empires…, p. 72 e 77. 33 Pelo menos 207 escravos foram apreendidos pelas autoridades espanholas de Buenos Aires entre 1753 e 1760. Conforme STUDER, Elena. La trata de negros en el Rio de la Plata ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 229 saber um pouco mais sobre quem eram os envolvidos com o comércio ilegal de escravos para Buenos Aires. Um indício neste sentido aparece nos registros de batismos de escravos na Colônia, no período compreendido entre 1747 e 1759. Durante esses doze anos foram batizados 583 escravos na praça, sendo que 105 constam como “adultos” (18%). A esmagadora maioria destes 105 escravos era formada por cativos de grupo de procedência Mina, que saíam dos portos africanos sem terem recebido o sacramento do batismo, por isso tinham que comparecer diante dos párocos colonenses. Foi possível identificar a presença de ao menos 17 comerciantes, que compareceram 29 vezes diante da pia batismal trazendo africanos recém-chegados ao rio da Prata. 34 Certamente que nem todos os escravos adquiridos e batizados pelos negociantes seriam revendidos aos domínios espanhóis, mas provavelmente a maioria era objeto de transações mercantis e indicam a existência de contatos com traficantes baianos e fluminenses.35 Essa prática reiterada do comércio ilícito nos mostra que os conceitos de contrabando e corrupção precisam ser repensados para as sociedades de Antigo Regime, onde a separação da esfera pública e da esfera privada era praticamente inexistente.36 As ações corruptas não eram praticadas somente pelos governantes, mas também por aqueles que se serviam destes funcionários para obter benefícios econômicos ou sociais, como alguns membros das elites locais.37 A própria distinção entre práticas legais e clandestinas parece ser anacrônica, se nós considerarmos o universo do contrabando não como um mundo delituoso, mas como uma espécie de fronteira social em relação às representações jurídicas, com suas regras bem estabelecidas e aceitas. Assim, as práticas descritas podem revelar uma lógica social global partilhada pelos súditos dos Impérios ibéricos que somente nosso olhar durante el siglo XVIII…, p. 260. Evidentemente este número representa aquela pequena parcela que não conseguiu ser introduzida ilicitamente. 34 ACMRJ (Arquivo da Cúria Metropolitana – Rio de Janeiro). Livro 4º de batismos de escravos – Colônia do Sacramento (1747-1774); SOARES, Mariza. Os devotos da cor – Identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro, século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 111. Nos assentos de batismos de escravos adultos da cidade do Rio de Janeiro a grande maioria dos batizandos era de origem mina, pois os cativos oriundos da região congo-angolana já viriam batizados dos seus portos de embarque. 35 Alguns destes homens de negócio eram figuras de destaque na comunidade mercantil local, como os capitães Simão da Silva Guimarães e Manuel Gonçalves Machado. Também apareciam nomes como o já citado Diogo Gonçalves Lima e João Ivo dos Santos Chaves, todos eles apoiadores do governador Bivar. 36 FERREIRA, Roquinaldo. ‘A arte de furtar’: redes de comércio ilegal no mercado imperial ultramarino português (c. 1690-c.1750). In: FRAGOSO, João & GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). Na Trama das Redes…, p. 221. 37 PERUSSET, Macarena. Contrabando y Sociedad en el Rio de la Plata colonial. Buenos Aires: Dunken, 2006, p. 116. ISBN 978-85-61586-70-5 230 IV Encontro Internacional de História Colonial contemporâneo dissocia.38 No mundo português setecentista, os contrabandistas seriam empreendedores que pertenciam ao sistema, com boas conexões com as elites governantes. O comércio ilegal tolerado era um comércio controlado, permitido pelas mesmas pessoas cujas funções oficiais pressupunham exatamente combatê-lo. Mais ainda, “a ideia de que o comércio ilegal era imoral e errado era vista com perplexidade. Se o comércio ilegal era por vezes estimulado pela Coroa portuguesa, como no caso do comércio com o rio da Prata, como poderia ser considerado imoral?” 39 Os anos finais do contrabando sacramentino A Colônia do Sacramento, depois de 1763, constituía-se em um exemplo de anacronismo político, foco de agudas tensões que tornavam sua manutenção quase impossível e que somente subsistiu por mais alguns anos por ser uma rentável realidade comercial.40 As “conivências” que permitiram o contrabando de escravos na Colônia do Sacramento parece que se mantiveram bastante ativas ao longo da década de 1760. Mas essa situação se alteraria em seguida, graças a algumas medidas restritivas. Do lado português, em 10 de outubro de 1770, o vice-rei Marquês do Lavradio proibiu o despacho de escravos para o Sul, que constituía um dos fundamentos do contrabando entre a Colônia e Buenos Aires. Da parte dos espanhóis, esse continuado estado de coisas levou a que no final de 1770, o novo governador buenairense, Vértiz y Salcedo (1770-1776), publicasse um bando condenando a persistência do comércio espanhol com a praça portuguesa. O 38 Para uma discussão sobre o tema da corrupção no mundo ibérico, ver o trabalho pioneiro de PIETSCHMANN, Horst, Burocracia y corrupción en Hispanoamérica colonial: una aproximación tentativa. Nova Americana, 5, p. 11-37, 1982. Segundo este autor, a corrupção seria sistemática na América hispânica, devido a uma tensão permanente entre o Estado metropolitano, a burocracia real e a sociedade colonial. Ver também os trabalhos de MOUTOUKIAS, Zacharias. Power, corruption, and commerce: the making of the local administrative structure in seventeenth-century Buenos Aires. Hispanic American Historical Review. 68:4, p. 771-801, 1988 e Réseaux personnels et autorité coloniale: les négociants de Buenos Aires au XVIII siècle. Annales ESC, nº 4-5, p. 889-915, 1992. Uma reavaliação do tema pode ser encontrada em PIETSCHMANN, Horst. Corrupción en las Indias españolas: Revisión de un debate en la historiografía sobre Hispanoamérica colonial. In: Manuel González Jiménez, Horst Pietschmann, Francisco Comín y Joseph Pérez (coords.). Instituciones y corrupción en la Historia. Instituto Universitario de Historia Simancas, Universidad de Valladolid, 1998, p. 31-52. 39 PIJNING, Ernst. Contrabando, ilegalidade e medidas políticas no Rio de Janeiro do século XVIII. Revista Brasileira de História. São Paulo, vol. 21, nº 42, p. 398-399 e 407, 2001. 40 RIVEROS TULA, Anibal. Historia de la Colonia Del Sacramento (1680-1830). Revista del Instituto Histórico y Geográfico del Uruguay. Montevidéu, XXII, p. 205, 1959. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 231 bloqueio espanhol foi apertado, pois o governador determinou que embarcações guardacostas patrulhassem o acesso ao porto e as ilhas próximas ao entreposto, inspecionando todas as embarcações portuguesas e apreendendo as que tivessem mercadorias espanholas. O bloqueio certamente restringiu a quantidade de embarcações que adentravam na praça lusitana. Não existem dados exatos para o período, mas o governador da Colônia, Pedro José de Figueiredo Sarmento (17631775) freqüentemente reclamava sobre a escassez de provisões e de lenha, devido à ausência de embarcações que traziam tais produtos de Santa Catarina ou Rio de Janeiro.41 Todavia, mesmo com o aperto espanhol e proibições, os negócios ilícitos continuavam. Em 1º de maio de 1772, o governador de Buenos Aires, Vértiz y Salcedo escrevia para o governador da Colônia, Pedro José de Figueiredo Sarmento, afirmando que “é notório que nas vastas carregações de efeitos e negros que conduzem a essa Praça, o principal objetivo é introduzi-las nesta Cidade, e demais partes do Reino”. Além de confirmar a persistência do contrabando de escravos, o governador ainda apontava as conivências que envolviam o seu colega português, que era acusado de “facilitar a todos os transgressores os precisos auxílios para resistir a seu apresamento, procedendo-se com tal liberdade, que se lhes permite, que assim armados, entrem e saiam francamente desse Porto”. Diante da manutenção desse quadro, Vértiz estreitaria ainda mais o cerco, não somente por terra, mas também mediante embarcações corsárias encarregadas de interceptar as naves portuguesas, tentando sufocar o movimento portuário sacramentino. Para evitar as apreensões, as embarcações que chegavam do Rio de Janeiro carregadas de mercadorias destinadas ao comércio ilícito, sacavam na Colônia do Sacramento supostos “despachos” com destino as costas do Brasil, para no caso de serem abordadas pelas embarcações corsárias, ter como persuadi-los que não se dirigiam ao contrabando.42 O militar e geógrafo espanhol Francisco Millau, que esteve na praça em 1772, não fez observações específicas a respeito do contrabando de escravos, mas reparou que “o trato que fazem os vizinhos da Colônia com os de Buenos Aires é agora muito distinto do que era praticado em tempos passados, quando [os portugueses] o executavam com suas embarcações bem armadas, encobrindo suas freqüentes vindas 41 ALDEN, Dauril. Royal Government in Colonial Brazil. Berkeley e Los Angeles: University of California Press, 1968, p. 117-119. 42 STUDER, Elena. La trata de negros en el Rio de la Plata durante el siglo XVIII…, p. 260-261. De fato, os números dos comisos (confiscos) indicavam que o contrabando de escravos não havia arrefecido. Entre 1760 e 1769, foram apreendidos pelo menos 478 cativos; no período 1770-1776, as apreensões foram um pouco menores: 215 escravos. A autora observou que em muitos documentos somente é mencionada “uma partida de negros”, o que faz com que seja impossível saber com precisão o número de escravos apreendidos. ISBN 978-85-61586-70-5 232 IV Encontro Internacional de História Colonial a essa Cidade com vários pretextos”. Ele registrou que essa prática havia deixado de existir, pois agora eram os habitantes de Buenos Aires que vendiam e permutavam os gêneros que levam eles mesmos à Colônia, o que lhes garantia grandes lucros, vendendo pelo dobro ou triplo do preço os produtos que traziam aos portugueses. Mas isso não significava que os contrabandistas sacramentinos tivessem deixado de atuar, apenas que tinham modificado seus procedimentos, visando maior segurança. Saindo da Colônia, para evitar a ação das embarcações corsárias, dirigiam-se ao delta do Paraná, onde faziam os desembarques em qualquer parte da costa. Em seguida, a introdução se fazia passando as mercadorias pouco a pouco, durante a noite, de umas fazendas para outras, utilizando carretas ou cavalos, até chegar em Buenos Aires. Millau ainda observou que, muitas vezes, quando a carga era grande e de consideração, os contrabandistas valiam-se “dos mesmos sujeitos que o deviam impedir”. 43 O contrabando de escravos na década de 1770 aparentemente manteve em parte a sua vitalidade, muito embora perturbado pelas crescentes hostilidades lusoespanholas.44 Seja como for, as medidas restritivas parecem ter surtido pelo menos algum efeito durante os anos finais da Colônia do Sacramento. Tornaram-se comuns as apreensões feitas pelas corsárias espanholas de pequenas embarcações, especialmente canoas com escravos “pescadores”. Além disso, havia o problema das deserções (ou fugas) de escravos para o lado espanhol. Assim, em 20 de dezembro de 1775 foi enviada ao governador Francisco José da Rocha uma “Representação dos moradores da Praça”, onde se queixavam do grave problema do roubo dos escravos, “que daqui se passam para o Campo de Bloqueio, aonde lhes dá o comandante do mesmo Campo liberdade, de sorte que aliciados e atraídos com este injusto indulto, são quotidianos e freqüentes as deserções dos escravos”, o que estaria reduzindo os moradores à extrema pobreza… Teriam sido roubados mais de mil escravos desde 1760.45 De todo modo, a presença portuguesa estava com os dias contados na Colônia do Sacramento, que seria tomada definitivamente pelos espanhóis em 1777.46 43 MILLAU, Francisco. Descripción de la província del Río de la Plata (1772). Buenos Aires: Cia. Editora Espasa-Calpe, 1947, p. 114-115 e 117. 44 MILLER, Joseph. Way of Death…, p. 486. Este autor minimiza a importância das restrições colocadas ao comércio clandestino na década de 1770, argumentando que prevaleceu a política bulionista por parte dos portugueses nesse momento, marcado pelo declínio da produção aurífera no Brasil. Assim, era vantajoso manter o contrabando de escravos através da Colônia, pois assim continuava-se captando a prata espanhola. 45 Biblioteca Nacional – Lisboa. Cód 10855: Cartas do governador Francisco José da Rocha, 1776. Agradeço a Fabrício Pereira Prado, da Roosvelt University pela disponibilização desta fonte. 46 ALDEN, Dauril. Royal Government in Colonial Brazil…, p. 238-246. Para um relato contemporâneo da perda definitiva da praça, ver MESQUITA, Pe. Pedro Pereira Fernandes ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 233 Mas a perda da “Gibraltar do Prata” pouco afetaria o contrabando de escravos para a região, apenas o deslocaria da Colônia para Montevidéu, que passou a ter uma importância muito significativa, ao lado de Buenos Aires. A recuperação definitiva da Colônia do Sacramento por parte dos espanhóis significou, por um lado, a legitimação da maior parte dos avanços territoriais lusitanos reconhecidos no Tratado de Santo Ildefonso, em particular no Continente do Rio Grande. Mas, por outro lado, a nova conjuntura abriu um novo período de clandestinidade, deslocado agora para o porto de Montevidéu, que se consolidava como o terminal exclusivo do grande centro econômico da região, que era Buenos Aires. No que se refere ao trato negreiro, a situação se tornaria ainda mais favorável aos luso-brasileiros em 1791, quando uma Real Cédula autorizou o livre ingresso de escravos no rio da Prata, fossem em embarcações espanholas ou estrangeiras, acabando, na prática, com o comércio ilegal. Consolidou-se, assim, uma “via brasileira”, que era muito vantajosa para o comércio negreiro montevideano, que nela encontrava uma boa alternativa. Tratava-se de uma viagem simples, que não exigia o uso de embarcações de grande calado, onde era possível comprar números menores de escravos. Também não era necessário dispor dos artigos de troca normalmente exigidos na África, pois os “frutos do país” serviam para pagar as aquisições, o que era bastante vantajoso para os negociantes platinos. Os portos brasileiros ofereciam, ademais, a possibilidade de diversificar as compras com produtos coloniais (aguardente, açúcar) sempre bemvindos. 47 Em uma carta enviada para o Conselho Ultramarino, o vice-rei Luis de Vasconcelos e Sousa, reconhecia em 1780 que da Colônia do Sacramento os escravos sempre foram exportados para os domínios espanhóis sem que nenhuma ação contrária a estas atividades tenha sido empreendida pelas autoridades. Esse seria o motivo pelo qual o alvará de 14 de outubro de 1751 teria sido publicado: para satisfazer os estrangeiros que criticavam o comércio de contrabando de escravos. Mais ainda, longe de ser prejudicial ao Estado, a existência de muitos mercadores de escravos – em um momento de expansão econômica – produziria o crescimento desse ramo de comércio, que não era de pouca importância, na opinião do vice-rei.48 de. Da relação da conquista de Colônia (1778). RIHGB. Tomo XXXI, 1ª parte, p. 350-363, 1868. 47 BENTANCUR, Arturo A. El proceso de legitimación de las relaciones mercantiles entre la ciudad puerto colonial de Montevideo y el território brasileño (1777-1814). In: HEINZ, Flávio & HERRLEIN JR., Ronaldo. (org.) Histórias Regionais do Cone Sul. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2003, p. 104-107. 48 PRADO, Fabrício. In the Shadows of Empires…, p. 146, nota 204. Para a posição do vice-rei diante do contrabando no Rio Grande de São Pedro, que era lesivo à Coroa, diferentemente daquele praticado no Prata, ver GIL, Tiago. Infiéis Transgressores – Elites e contrabandistas nas fronteiras do Rio Grade e do Rio Pardo (1760-1810). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2007, p. 73-80. ISBN 978-85-61586-70-5 234 IV Encontro Internacional de História Colonial Segundo os números levantados por Corsino dos Santos, no período 1779-1810 foram introduzidos 49.176 cativos no Rio da Prata, sendo que a esmagadora maioria veio através do Rio de Janeiro. Já Alex Borucki contabilizou 60.393 escravos remetidos para a região entre 1777 e 1812.49 Portanto, nas décadas finais do século XVIII, a “trata de negros” introduzia algo em torno de 1600 a 1700 escravos por ano na região, suplantando os ingressos das décadas de 1740 e 1750, quando cerca de 1200 cativos eram contrabandeados anualmente. O que isso representava no conjunto do comércio de escravos para o Brasil? Sabemos que uma pequena parte dos escravos introduzidos na Colônia vinha da Bahia, mas numericamente ela era muito pouco expressiva. A grande maioria dos escravos que vinha para o Sul entrava pelo Rio de Janeiro, sendo pouquíssimos os desembarques de escravos vindos diretamente da África para Sacramento.50 Dessa forma, se levamos em conta que a média anual de entrada de escravos novos no porto do Rio foi de pouco mais de 8000 cativos no período entre 1759-1792, o peso relativo do contrabando para o rio da Prata pode ser minimamente dimensionado. Nos melhores anos do contrabando, correspondentes ao período final do governo de Antônio Pedro de Vasconcelos (1722-1749) e a todo o período de Luiz Garcia de Bivar (1749-1760), a Colônia do Sacramento absorvia algo em torno de 15% dos escravos introduzidos através do Rio de Janeiro.51 Se compararmos com os números disponíveis para o Rio Grande de São Pedro, mais ou menos na mesma época, podemos avaliar melhor o tamanho relativo do contrabando de escravos em Sacramento. Os dados das guias de transporte de escravos para o Rio Grande do Sul para o período 1788-1794 mostram ingressos de somente cerca de trezentos escravos por ano.52 Enquanto existiu, a Colônia do Sacramento foi uma localidade singular. Praça forte, marcada pela vida castrense e também “ninho de contrabandistas”, a cidadela platina jamais foi elevada à condição de vila, com a instalação de uma Câmara, símbolo do poder local no Império português. Tampouco se constituiu em uma 49 SANTOS. O tráfico de escravos do Brasil para o rio da Prata…, p. 86-96; BORUCKI, Alex. Las rutas brasileñas del tráfico de esclavos hacia el Río de la Plata, 1777-1812. 4º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, Curitiba, 2009, p. 5. 50 Foram enviados somente 211 cativos para a Colônia do Sacramento entre 1760 e 1770, vindos da Bahia. RIBEIRO, Alexandre V. O comércio de escravos e a elite baiana no período colonial. In: FRAGOSO, João Luís R.; ALMEIDA, Carla Maria C. de; SAMPAIO, Antônio Carlos J. de (orgs.) Conquistadores e Negociantes – História de elites no Antigo Regime nos trópicos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 320. 51 CAVALCANTI, Nireu. O comércio de escravos novos no Rio setecentista…, p. 56. No total, foram introduzidos 281.323 escravos no porto do Rio de Janeiro entre 1759 e 1792. 52 BERUTE, Gabriel. Dos escravos que partem para os portos do Sul – Características do tráfico negreiro do Rio Grande de São Pedro do Sul, c. 1790 – c.1825. Porto Alegre: Dissertação de mestrado - Programa de Pós-Graduação em História/UFRGS, 2006, p. 40, Tabela 1. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 235 capitania, visto que seu território foi quase sempre muito circunscrito territorialmente. Situada muito ao sul dos domínios lusos, surgida no final do século XVII como fortaleza militar que marcava a disposição portuguesa em estender seus territórios até o Rio da Prata, ela tornou-se ao longo do século XVIII um importante entreposto comercial. Após o cerco de 1735-1737, com a imposição do Campo de Bloqueio pelos espanhóis, os habitantes de Sacramento ficaram confinados a um espaço vigiado e restrito, com um território muito reduzido, situação que se agravaria a partir da década de 1760, quando o bloqueio terrestre e marítimo foi aumentado e intensificado, especialmente a partir da criação do Real de San Carlos.53 Mas, paradoxalmente, tal cerceamento, ao invés de desestimular o comércio ilícito, foi talvez o catalisador da decidida opção pelo contrabando, fazendo a praça destacar-se no terceiro quartel do século XVIII pela introdução de escravos africanos no Rio da Prata e nos domínios espanhóis na América Meridional. 53 O casco urbano da Colônia apresentava um tamanho extremamente reduzido na fase final, sendo suas dimensões bastante restritas. O comprimento da muralha era de somente 550 metros, sendo que da muralha até as margens do rio da Prata a extensão alcançava meros 410 metros. Cf. MOREIRA, Cecília Porto Gaspar. Colônia do Sacramento – Permanência urbana na demarcação de novas fronteiras latino-americanas. Rio de Janeiro: Dissertação de mestrado - Programa de Pós-Graduação em Urbanismo, 2009, p. 70. Para um estudo sobre a cartografia da Colônia, ver a obra de CAPURRO, Fernando. La Colonia del Sacramento. Revista de La Sociedad “Amigos de La Arqueologia”, Montevidéu, p. 43-97, 1928. ISBN 978-85-61586-70-5 236 IV Encontro Internacional de História Colonial Un Emblema Volante…! A Adaptação da Tradição Emblemática nas Missões Jesuíticas da América Latina (séculos XVI-XVIII) Renata Maria de Almeida Martins1 Desenvolver uma pesquisa sobre a Emblemática e a História da Arte, pode até ainda surpreender pela novidade no Brasil, mas não no que se refere à Europa, aos Estados Unidos, e à América Hispânica. Basta verificar o considerável número de estudiosos dedicados à questão, e a grande profusão de textos, livros, projetos e encontros acadêmicos organizados exclusivamente sobre o tema dos emblemas nas localidades mencionadas. Mas, de fato, surpreendente mesmo é constatar a que mais alto nível os Livros de Emblemas foram difundidos e utilizados como fontes na arte e na arquitetura latino-americanas do período colonial (séculos XVI-XIX): esculpidos nas fachadas e nas naves de igrejas, pintados em tetos de casas, sacristias, túmulos (piras ou catafalcos) e arcadas de claustros, na arte efêmera dos arcos triunfais e dos carros alegóricos, entalhados nos retábulos e cadeirais, representados nos polípticos, nos monumentos públicos, na azulejaria, nas pinturas de retratos, etc. Nem sempre na forma mais tradicional e conhecida do Emblema (mote, inscrição e sub-inscrição), fundada pelo Emblematum Liber (1531) de autoria do milanês Andrea Alciati, os Emblemas foram fontes de inspiração e modelo; citando aqui, o que inspirou o título de nosso trabalho, e o que consideramos o mais curioso exemplo de que temos notícia do possível emprego da emblemática, o balão em forma de dragão, com o mote Ira Dei [Lat. Ira de Deus],2 colocado nos céus de Roma pelo jesuíta Athanasius Kircher (1602-1680), como uma espécie, do que Ingrid Rowland chamou, emblema volante [it. emblema voador].3 Imaginemos, então, as infinitas possibilidades que se encontravam à disposição dos artistas no Novo Mundo. Seria possível, então, tentar delimitar o alcance da linguagem emblemática na arte e na arquitetura da América Latina do período colonial? Um “mundo de símbolos”, ou ainda, citando Victor Serrão, em seu estudo sobre os brutescos, um “receituário 1 Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, FAU-USP / Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, FAPESP / Projeto Temático “Plus-Ultra: A Transferência e a Recepção da Tradição Artística Clássica da Europa Mediterrânea para a América Latina”. 2 Em ROWLAND, Ira. [m] Dei [Fugite]. [Lat. Fujam da ira de Deus]; ver ROWLAND, Ingrid. L’Emblematica di Athanasius Kircher. In: BOLZONI, Lina; VOLTERRANI, Silvia (Org.). Con Parola Brieve e con Figura: Emblemi e Imprese fra Antico e Moderno. Pisa: Edizione della Normale, n. 15, 2008, p. 553-576 [Giornate di Studio. Pisa, Scuola Normale Superiore, 9-11 dezembro, 2004]. Cf. IRA DEI. Experimentum XIV. Fabrica Machine Volatis. In: KESTLER, Johann. Physiologia Kircheriana Experimentalis. Amsterdam: Officina Janssonio Waesbergiana, 1680, p. 118. 3 ROWLAND, Ingrid. L’Emblematica di Athanasius Kircher…, p. 563. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 237 simbólico-decorativo,4 transplantado do Velho ao Novo Mundo. Símbolos muitas vezes reinterpretados, “mesclados” entre si, e quase sempre adaptados às diferentes realidades culturais latino-americanas, como veremos. Da Europa à América: a transferência e a recepção de um “mundo simbólico” Marcello Fagiolo dell’Arco5 no prólogo do livro “El barroco Iberoamericano: mensaje iconográfico”6 de autoria de Santiago Sebastián,7 ilustre estudioso espanhol que também viveu e lecionou em Cali na Colômbia entre 1961 e 1965, exalta que a obra em questão se constitui quase em um tratado enciclopédico acerca do que chamou, “mundo simbólico del Barroco”, ou ainda, “El Mundo Simbólico de Sebastián”.8 Fagiolo está fazendo uma referência direta à importante obra do Abade Filippo Picinelli, Mondo Simbolico o sia Università d`imprese scelte, spiegate ed illustrate, con sentenze ed erudizioni sacre e profane, publicada pela primeira vez em Milão no ano de 1653, como também aos escritos do jesuíta Juan Eusebio Nieremberg;9 concluindo que o Mundo Simbólico do Barroco Iberoamericano se abre diante de nossos olhos utilizando diversas categorias que vão desde a cosmologia aos reinos terrestres, das grandes alegorias morais aos comportamentos individuais do homem. Trata-se, então, de reconstruir esse Mundo Simbólico da Arte Ibero-Americana mediante seus temas essenciais. A questão que então se coloca: como compreender este verdadeiro universo de símbolos da arte barroca “transplantados” da Europa à América? Como nos diz Fagiolo: Está claro que no basta ya saber ver correctamente el arte barroco, sino que hace falta saber ler en la profundidad de sus raíces culturales, situando las obras de arte en el contexto de su época, tramada por experiências diferenciadas y, en buena parte, reconstruibles tanto en sus modelos visuales como en sus fuentes escritas.10 4 SERRÃO, Vitor. A Pintura Protobarroca em Portugal, 1612-1657. Lisboa: Edições Colibri, 2000, p. 359. 5 Roma, 1941. 6 SEBASTIÁN, Santiago. El Barroco Iberoamericano: Mensaje Iconográfico. Madrid: Ediciones Encuentro, 2007. [1a ed. 1990. Prólogo de Marcello Fagiolo dell’Arco]. 7 Teruel, 1931-Valencia, 1995. 8 FAGIOLO DELL’ARCO, Marcello. Prólogo. In: SEBASTIÁN, Santiago. Ibidem, p. 15. 9 Madrid, 1595-1658. 10 Ibidem, p. 14. ISBN 978-85-61586-70-5 238 IV Encontro Internacional de História Colonial “Saber Ver y Saber Leer”: Santiago Sebastián demonstra, como relata Fagiolo, que as vias de representação e da persuasão passam, sobretudo, pela transmissão de imagens e textos do Velho ao Novo Mundo; destacando-se como fontes visuais as estampas religiosas e alegóricas elaboradas no ambiente da Contra-Reforma. Ainda segundo Fagiolo, a maior contribuição deste volume de Santiago Sebastián seria a reconstrução do tecido que conecta os emblemas ao substrato do universo de imagens ibero-americano, transmitido sobretudo pelos ensinamentos dos jesuítas, que induziam os alunos dos seus cursos de Retórica à exercitassem na leitura e na elaboração de emblemas e divisas (ou impresas), como podemos constatar através dos estudos, por exemplo, de Lydia Salviucci Insolera: “Il termine emblema si trova espresso concretamente nelle varie stesure dell`ordenamento didattico dei collegi, la Ratio Studiorum, alla voce riguardante i tipi di attività consigliati nei corsi di umanità e di retorica”;11 ou no artigo de Nigel Griffin, onde são relatadas as inúmeras atividades, que envolviam tanto a elaboração, a exibição (inclusive com apresentações dos alunos, contando com cuidadosas ornamentações e ricos figurinos), e a leitura/interpretação de emblemas realizados pelos estudantes dentro dos Colégios jesuíticos.12 Santiago Sebastián foi um dos nomes mais importantes da emblemática e da cultura do hieróglifo na Espanha e na América, impulsionando a criação de uma escola espanhola de emblemática e de iconografia, com estudos tantos da emblemática na Europa, quanto na América Hispânica.13 Sebastián foi o autor de estudos fundamentais sobre a emblemática na América, como por exemplo, o do 11 INSOLERA, Lydia Salviucci. L’Imago Primi Saeculi (1640) e il significato dell’immagine allegorica nella Compagnia di Gesù. Genesi e Fortuna del Libro. Roma: Editrice Pontificia Università Gregoriana, 2004, p. 26-27. 12 GRIFFIN, Nigel. Enigmas, Riddles, and Emblems in Early Jesuit Colleges. In: GOMES, Luís (Org.). Mosaics of Meaning Portuguese Emblematics. Glasgow: Glasgow Emblem Studies, 2008, p. 21-39. 13 Ramón Gutiérrez nos conta que entre 1965 e 1966, portanto, após a “aventura americana” na Colômbia, Sebastián trabalhou em Yale com George Kubler, e ali pode conhecer os trabalhos de Martín Soria, cujas pesquisas sobre a pintura do século XVI na América, abriram novas portas para que Sebastián pudesse circular simultaneamente, entre fontes de gravuras e estampas. Ainda de acordo com Gutiérrez, teriam sido estas leituras iconográficas, que projetaram Santiago Sebastián a um intenso conhecimento do campo da emblemática com um assombroso domínio das fontes editadas durante os séculos XVI e XVII, valendo aqui acrescentar que Sebastián também colaborou com o casal José de Mesa e Teresa Gisbert, na Bolívia; e com Graziano Gasparini, na Venezuela. Tudo isso aliado a uma forte “vocación americanista”, como também destacou Gutiérrez, fez com que Sebastián se tornasse um dos maiores estudiosos de iconografia e de emblemática na América. Cf. GUTIÉRREZ, Ramón. La vocación americanista de Santiago Sebastián [Prólogo]. In: SEBASTIÁN, Santiago. Estudios sobre el arte y la arquitectura coloniales in Colombia. Bogotá: Corporación La Candelaria/Convenio Andrés Bello, 2006, p. 41-49. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 239 programa iconográfico da pintura da “Casa del Fundador” em Tunja na Colômbia (fundada em 1538, Tunja foi a primeira cidade da região central andina, facilitando a fundação de Bogotá um ano mais tarde),14 pintura emblemática que pela sua importância – a obra em si, e o estudo de Sebastián – merecem ser aqui mencionados.15 A pintura emblemática da “Casa del Fundador”, Gonzalo Suaréz de Rendón, em Tunja na “Nueva Granada”, foi realizada em meados do século XVII, e talvez seja a mais importante e conhecida obra da pintura de tradição emblemática na América do Sul. Segundo Sebastián, esta decoração com emblemas revela o elevado ambiente humanístico da sociedade “tunjana”, que em nível intelectual era comparável às mais refinadas da Europa.16 Sebastián, nos diz que além das pinturas da “Casa del Fundador”, várias outras casas dos séculos XVI e XVII contavam com pinturas murais (como por exemplo a “Casa del Escribano Juan de Vargas” ou a “Casa de Juan de Castellanos”, ambas do século XVI), onde provavelmente nasceram as primeiras manifestações de pintura emblemática da América; e que através do inventário das Biblioteca de Fernando de Castro, padre-reitor da Catedral de Bogotá entre 1648 e 1664, ao qual teve acesso, pode verificar que os clássicos da cultura emblemática circulavam nos meios intelectuais de Tunja. Compunham, portanto e por exemplo, comprovadamente o acervo da Biblioteca de Fernando de Castro em Tunja: o Hieroglyphica de Piero Valeriano, três exemplares da Declaración Magistral sobre los Emblemas de Alciati, com tradução e comentários de Diego López, e os Emblemas Morales de Sebastián de Covarrubias y Orozco (publicada em Madrid em 1610). No programa emblemático da “Casa del Fundador” em Tunja, Sebastián encontrou correspondências da decoração pictórica com os Livros de Emblemas de Alciati, Valeriano e Covarrubias, como também com os Emblemas Morales de Juan de Borja. Em uma das obras mais essenciais da boliviana Teresa Gisbert, “Iconografía y mitos indígenas en el arte”,17 a arquiteta trata diretamente da questão dos aportes indígenas na arte europeia, também no que se refere à tradição emblemática. Belo e explicativo sobre a questão da transferência das imagens dos Livros de Emblemas europeus para a decoração de espaços religiosos latino-americanos, é o estudo de Teresa Gisbert sobre a permanência do mito da sirena na arte andina do chamado 14 GUTIÉRREZ, Ramón. Arquitectura y Urbanismo en Iberoamérica. Madrid: Ediciones Cátedra, 1992, p. 47. 15 SEBASTIÁN, Santiago. La pintura Emblemática de la Casa del Fundador de Tunja. In: Estudios sobre el arte y la arquitectura coloniales in Colombia… p. 324-328. [Publicado originalmente em: GOYA. Revista de Arte, número 166, p. 178/173, Janeiro-Fevereiro, 1982. O mesmo artigo pode ser encontrado em: Revista Apuntes, vol. 16, no 19, maio de 1982] 16 Ibidem, p. 325. 17 GISBERT, Teresa. Iconografía y Mitos Indígenas en el arte. La Paz: Editorial Gisbert y Cia, 2008. [4a ed./1a. ed. 1980]. ISBN 978-85-61586-70-5 240 IV Encontro Internacional de História Colonial período Virreinal, já que há uma grande profusão de sereias na decoração arquitetônica de igrejas dentro da chamada “rota lacustre”,18 entre o Peru e a Bolívia; por exemplo, na cidade de Puno às margens do Lago Titicaca, na fachada principal da sua Catedral. A Sirena, nos diz Gisbert, é símbolo do pecado tanto na interpretação ocidental, quanto no contexto indígena, onde, portanto, “la supervivencia del mito puede explicarse mediante un largo processo que se vale tanto de la fuerza tradicional indígena como del afán moralizador de los humanistas, empeñados en dar un sentido ético y Cristiano a los mitos paganos”.19 Teresa Gisbert cita Andrea Alciati, Peréz Moya, e Sebastián de Covarrubias, para dizer que as obras emblemáticas destes autores, facilitam a transposição de valores em um jogo constante, onde a América entraria neste esquema com os seus próprios símbolos. Neste sentido, e para uma questão que envolve, mais vai muito “mais além” (Plus Ultra), do que apenas a iconografia da emblemática, que seria “a transferência e a recepção da tradição artística clássica da Europa para a América Latina”,20 estamos de acordo com Santiago Sebastián: Mucho se ha discutido acerca de si este barroco colonial es o no una manifestación americana, pero, desde el momento en que fue expresión de la sociedad colonial de los imperios español y portugués en el Nuevo Mundo, hay que responder afirmativamente. Las formas pictóricas, escultóricas y espaciales que fueron adoptadas eran en su origen europeas, pero al transpantarlas al medio americano se tranformaron en sus proporciones y en su sentido de la decoración y composición; por tanto, el carácter americano de este arte no reside en las formas mismas, sino en cómo éstas fueron interpretadas (…) En Iberoamerica repercutieron las tendencias nacidas en Europa, adquiriendo una vida paralela pero diferente, y surgieron creaciones personales que se apartaron de los modelos europeos.21 18 GISBERT, Teresa. Iconografía y Mitos Indígenas en el arte…, fig. 44 [“La Difusión de la sirena en la zona andina sobre la ruta lacustre”]. 19 Ibidem, p. 13. [Introducción]. 20 Citando o projeto temático financiado pela FAPESP ao qual se insere a nossa pesquisa de pós-doutorado (“Das Bibliotecas Europeias às Oficinas Missioneiras: A Circulação de Livros de Emblemas e a decoração dos espaços religiosos na America Portuguesa, séculos XVI a XVIII)”: Projeto Temático “Plus-Ultra: A recepção e a transferência da tradição artística clássica entre a Europa Mediterrânea e a América Latina [coordenador do Projeto Temático Plus-Ultra e supervisor de nosso pós-doutorado: Prof. Dr. Luciano Migiaccio, FAU-USP]. 21 SEBASTIÁN, Santiago. El Barroco Iberoamericano…, p. 32. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 241 Não seria diferente com a emblemática. Por exemplo, tendo como claro modelo o Imago Primi Saeculi (1640), o mais conhecido livro de emblemas produzido pela Companhia de Jesus, elaborado por jovens jesuítas provenientes do Colégio da Antuérpia, em razão da comemoração do primeiro centenário da Companhia; os emblemas que decoram a nave e a capela doméstica da Igreja de Córdoba na Argentina, foram objetos de estudos de Rafael Mahiques (Universidad de Valencia), e de Sérgio Barbieri.22 Na Iglesia de la Compañía, século XVII, os Emblemas entalhados em madeira (policromada e dourada), aos quais nos referimos, são em número de cinquenta, e estão localizados à dez metros de altura, decorando em alternância com outras mais cinquenta pinturas, todo o perímetro da Igreja jesuítica de Córdoba. Sendo que quarenta e oito deles estão na Igreja, e dois decoram a Capela Doméstica. Como observou Barbieri, na Igreja de Córdoba, temos por exemplo, um emblema que copia exatamente a figura do “Emblema I” do frontispício do Imago Primi Saeculis,23 e outro emblema que se utiliza da mesma inscrição: Omnia Solis Habet (Todo lo tiene del sol), porém com a figura retirada do “Emblema II” do Imago. No mesmo emblema, como também destacou Barbieri, a moldura ornamentada com grottesche, foi copiada do “Emblema LIb” (51b) que compõe uma das tábuas de Emblemas do Imago. Notase, portanto, que houve uma fusão de diferentes elementos, e de distintos emblemas do Imago, na composição do Emblema de mote Omnia Solis Habet da Igreja de Córdoba. Procedimento que também ocorreu em outros emblemas da dita Igreja. O hibridismo do barroco colonial americano, e o emprego das grotescas, como um gênero decorativo mais apartado da iconografia da Igreja Católica, onde os nativos americanos teriam sentido mais liberdade para impor elementos de sua própria cultura e iconografia,24 tem sido alvo de estudos recentes por reconhecidos especialistas, como Luciano Migliaccio,25 Claire Farago,26 Alexander Gauvin Bailey,27 e Serge Gruzinsky.28 No Brasil colonial, nas obras dos jesuítas em suas Missões, 22 BARBIERI, Sérgio. Empresas Sacras Jesuíticas: Córdoba, Argentina [Colección Historia de la Arquitectura de Córdoba, n. 5]. Córdoba: Fundación Centro, 2003. 23 Ver INSOLERA, Lydia Salviucci. L’Imago Primi Saeculi (1640) e il significato dell’immagine allegorica nella Compagnia di Gesù. Genesi e Fortuna del Libro… 24 BAILEY, Gauvin Alexander. The Andean Hybrid Baroque: Convergent Cultures in the Churches of Colonial Peru. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 2010, p. 305. 25 MIGLIACCIO, Luciano. De Guevara a Vico: funções do ornamento no sistema figurativo híbrido da América Colonial. Colóquio Internacional A Arquitetura do Engano entre Europa e Brasil: Redes de Difusão e o Desafio da Representação Perspéctica no Setecentos. Belo Horizonte, dezembro de 2011 [não publicado]. 26 FARAGO, Claire. Gabriele Paleotti on the grotesque on painting: Stretching old cultural horizons to fit a brave new world. Medieval Feminist Forum, 16, n. 1, p. 20-23, 1993. 27 BAILEY, Gauvin Alexander. The Andean Hybrid Baroque… 28 GRUZINSKI, Serge. O Pensamento Mestiço. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. ISBN 978-85-61586-70-5 242 IV Encontro Internacional de História Colonial encontramos ao menos três exemplos da utilização da pintura de tradição emblemática, no século XVIII, que empregam além dos emblemas, as grotescas e/ou os brutescos; todos eles em sacristias de Igrejas jesuíticas: a da antiga Igreja de São Francisco Xavier em Belém, a da Igreja de Nossa Senhora da Madre de Deus em Vigia, ambas no Pará, Amazônia; e a sacristia da Igreja de Nossa Senhora do Rosário do Embu, em M`Boi Mirim, São Paulo, que além de grotescas e brutescos, traz também chinoiseries. Outro exemplo em Belém, que merece ser mencionado, é o da pintura da sacristia do Colégio de Santo Antônio de Lisboa, realizada no ano de 1774, que utiliza a emblemática e também a arquitetura pintada. Porém, quanto às obras de arte brasileiras estudadas a partir do emprego dos emblemas na América Portuguesa, a única constante, mencionada por Mário Praz,29 e objeto de estudo de Santiago Sebastián30 e também de Luís de Moura Sobral,31 é o programa emblemático dos painéis de azulejos portugueses no claustro do Convento de São Francisco de Assis (1737), em Salvador na Bahia, região nordeste do Brasil. Ali, clarividente é o emprego dos emblemas do livro de Otto Van Vaenius, Theatro Moral (1607);32 acrescentando-se o fato da originalidade da obra quanto ao cenário mundial da emblemática, representada pelo emprego dos emblemas na azulejaria de tradição portuguesa. Algumas Verdades Pintadas e Escritas:33 A Emblemática em Portugal e no Brasil Santiago Sebastián e Teresa Gisbert, como dissemos, e como também é de conhecimento geral, são estudiosos que contribuíram enormemente para o campo do estudo da tradição emblemática na América Latina, mas há de se ressaltar que trabalharam sobretudo com o território hispânico. Hoje, os grandes centros de estudos de emblemática se concentram na Itália, na Espanha, na Holanda, na Escócia, nos Estados Unidos e em alguns poucos países hispano-americanos. Muito 29 PRAZ, Mário. Imágenes del Barroco: Estudios de Emblemática [Studies in SeventeenthCentury Imagery, 1964]. Madri: Siruela, 2005. 30 SEBASTIÁN, Santiago. Emblemática e História del Arte. Madrid: Cátedra, 1995. 31 SOBRAL, Luís de Moura. Occasio and Fortuna in Portuguese Art of the Renaissance and the Baroque: a Preliminary Investigation. In: GOMES, Luís (Org.). Mosaics of Meaning Studies in Portuguese Emblematics…. 32 Ver “La Influencia de Vaenius en Iberoamérica”. In: SEBASTIÁN, Santiago. Emblemática e Historia del Arte…, p. 262-275. 33 “Verdades Pintadas e Escritas” é o título de uma coleção de emblemas do século XVII, de autoria do famoso polígrafo português Francisco Manuel de Melo, que é citada por Barbosa Machado na sua Biblioteca Lusitana, porém o manuscrito da coleção não foi até hoje localizado. Cf. AMARAL JR., Rubens. Portuguese Emblematics: an overview. In: GOMES, Luís (Org.). Mosaics of Meaning Studies in Portuguese Emblematics…, p. 12. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 243 pouco foi realizado em Portugal sobre o tema dos Emblemas, e ainda muito menos no Brasil, ficando este fato muito claro quando comparamos a produção de trabalhos em língua espanhola com aqueles em língua portuguesa, quase inexistentes. Rubem Amaral Junior, em “Portuguese Emblematics: an overview,34 deixa transparecer alguns pontos importantes a serem considerados acerca da presença de Livros de Emblemas nascidos em território português. Em primeiro lugar, esclarece que, assim como a maioria dos países europeus, Portugal não ficou imune à paixão pela cultura emblemática durante os quase dois séculos e meio em que este gênero literário floresceu, porém no que se refere à produção de livros de emblemas, ao seu ver, a contribuição portuguesa seria “modesta, atrasada, frustrante e derivada”.35 Modesta: poucos livros, qualidade distante de ser excepcional, edições limitadas e com mercado restrito. Atrasada: a maioria dos livros foram produzidos a partir da segunda metade do século XVII. Frustrante: a maior parte dos livros não eram ilustrados, muitos não foram publicados, e alguns manuscritos foram inclusive perdidos. Verdades Escritas e Pintadas, é o título de um destes manuscritos desaparecidos.36 Derivada: No sentido que a maioria eram cópias que imitavam, adaptavam ou traduziam livros de emblemas estrangeiros. Tudo isso, segundo Amaral Jr., deve estar na raiz do problema de que tão poucos portugueses tenham direcionado a sua atenção em direção a este campo de estudo. Não é de se espantar, portanto, que os estudos de emblemática também tenham sido, de certa forma, deixados de lado no Brasil. Mas e apesar destes fatos elencados por Amaral Jr., o mesmo defende que valeria a pena recuperar esta história, também pelo motivo de que Portugal foi capaz de criar uma forma muito original de expressão artística, que seria o emprego da tradição emblemática na azulejaria. Mas, aproveitando, e expandindo “além-mar” a defesa de Amaral Jr., destacamos, que na América Portuguesa, além de emblemas na azulejaria, como mencionamos, admiravelmente representado pelo conjunto de azulejos do claustro dos franciscanos em Salvador da Bahia, quanto ao extenso patrimônio jesuítico no Brasil, por exemplo e como citamos anteriormente, podemos encontrar também no território das antigas Missões da Companhia de Jesus no antigo Estado do Maranhão e Grão-Pará duas sacristias setecentistas que fizeram claramente emprego da emblemática na pintura de seus tetos: a sacristia da Igreja de São Francisco Xavier do Colégio de Santo Alexandre em Belém, e a sacristia da Casa-Colégio da Nossa Senhora da Madre de Deus em Vigia, que foram as duas principais fundações dos jesuítas no Grão-Pará. Nas duas principais igrejas jesuíticas no rio Amazonas, assim como na Igreja Jesuítica de São Roque em Lisboa, em diferentes programas iconográficos, os Livros de 34 Ibidem, p. 1-20. Ibidem, p. 2. 36 Ibidem, p. 12. 35 ISBN 978-85-61586-70-5 244 IV Encontro Internacional de História Colonial Emblemas foram igualmente as fontes eleitas, e utilizadas como modelo pelos jesuítas para ornamentar os tetos das sacristias de suas igrejas. Em período anterior, século XVII, os Livros de Emblemas também parecem ter servido de modelo para o programa da decoração do arco concêntrico do retábulo seiscentista da Igreja de São Luís do Maranhão, desenhado pelo jesuíta luxemburguês, vindo da província jesuítica Gallo-Belga, que seria o arquiteto e pintor João Felipe Bettendorff (1627-1698), um dos missionários mais importantes e atuantes na Amazônia, vindo para São Luís por influência do Padre Antonio Vieira. O retábulo desenhado por Bettendorff, segundo documentos, foi entalhado por um índio maranhense de nome Francisco, e por um entalhador português chamado Manuel Mansos. Podemos afirmar que Bettendorff conhecia os Livros de Emblemas, já que ele mesmo foi o autor de um “arco triumphal” decorado com emblemas, exposto nas ruas de São Luís em 1680. Bettendorff nos relata sobre um “bello arco triumphal”, decorado com emblemas, que mandou fazer em homenagem à chegada do Bispo, colocando-o em frente à Igreja de Nossa da Luz em São Luís.37 Após a festa, os 20 (vinte) emblemas teriam sido solicitados pelo Bispo para serem enviados a Portugal.38 No mesmo período em que Bettendorff comandava as obras de arquitetura e decoração das igrejas das Missões no Maranhão e no Pará; era altamente influente e intensamente participativo da vida política e cotidiana das Missões do Maranhão e Grão-Pará, o missionário português Antonio Vieira. Ao que nos interessa, Vieira em alguns de seus Sermões, fez uso de elementos da Emblemática, como ressalta Isabel Almeida,39 após verificar diversas menções, diretas ou não, à tradição de emblemas (como também às suas origens e derivações) nos sermões, como: Orapollo, Piero Valeriano, Andrea Alciati, e Cesare Ripa.40 Vale a pena trazer o trecho do “Sermão Décimo Segundo – Rosário”, em que Vieira descreve um emblema do mais celebrado e conhecido livro de Emblemas, como já dissemos, a obra fundadora deste gênero literário, o Emblemata de Andrea Alciati:41 Pintou um enxame de abelhas que no oco do capacete fabricavam os seus favos, e por título deste emblema, ‘ex bello 37 BETTENDORFF, João Felipe SJ. Crônica dos Padres da Companhia de Jesus no Estado do Maranhão. Belém: Fundação Cultural do Pará Tancredo Neves / Secretaria do Estado da Cultura do Pará, 1990, p. 328. 38 Ibidem, p. 329. 39 ALMEIDA, Isabel. Alciatus in Parnassus: Emblematic Elements in Vieira’s Sermons. In: GOMES, Luís (Org.). Mosaics of Meaning Studies in Portuguese Emblematics…, p. 65-88. 40 Ibidem, p. 73. 41 Ver ALCIATI, Andrea. Emblemata. Padova, 1621, p. 737. Emblema 178. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 245 pax’ [da guerra vem a paz]. A letra diz que da guerra nasce a paz e o corpo da pintura a nenhuma paz se pode aplicar com maior propriedade, qual à do Brasil. Os favos são os doces frutos desta terra singular entre todas as do mundo bênção de doçura com que Deus a enriqueceu (…) Este é o sentido natural do mistério do Evangelho, a que poderão servir de elegante comento o capacete e abelhas do emblema, se o capacete for o de David, e as abelhas de Salomão.42 O tema das abelhas e da doçura, representado de forma diversa, aparece em um dos quatro emblemas da pintura que decora o teto da Sacristia da Igreja de São Francisco Xavier em Belém do Pará, na Amazônia brasileira.43 Uma sineta toca, atraindo as abelhas, e o lema diz: Sonum Dulcedo Seqvetur [“Que a doçura siga o som”]. A armadura também se faz presente em outro emblema pintado no teto da mesma sacristia, porém o capacete dá lugar ao escudo, retratado com flechas que são partidas ao toca-lo, o lema é: Rejicit Aut Frangit [“Repele ou quebra”]. São inúmeros os livros de Emblemas que trazem abelhas, assim como armaduras e flechas; e é válido mencionarmos aqui ao menos um breve exemplo. Na importante obra de emblemática Teatro d` Imprese,44 publicada pela primeira vez em Veneza no ano de 1623, e de autoria do abade Giovanni Ferro (1582-1630), no tópico por ele intitulado “scudo, brocchiere, rotella/targa, targone”,45 encontra-se um emblema com um escudo, com a seguinte inscrição, mote ou lema: Aut Repellit Aut Frangitur, que expõe o mesmo conceito de um dos emblemas da Igreja de Belém do Pará [Rejicit Aut Frangit]; porém, deixamos bem claro, este é apenas um exemplo. A imagem do emblema é suscetível de uma interpretação literal, de uma alegórica, como figura moral, que pode motivar associações com os mais variados contextos; e da mesma forma, vale dizer que o tema das flechas que se quebram ao tocarem um escudo, foi abordado pelo jesuíta português João Daniel (1722-1766), no seu 42 VIEIRA, Antonio SJ. Sermão do Décimo Segundo – Rosário. Ver ALMEIDA, Isabel de. Alciato in Parnassus…, p. 75-76. [Ver Sermão na íntegra na Biblioteca Brasiliana da Universidade de São Paulo - USP online]. 43 Os quatro emblemas possuem os seguintes motes: 1) Sonvm Dulcedo Sequetur (“Que a doçura siga o som”), e Nomen Delectabile (“Nome Aprazível”); 2) Rejicit Avt Frangit (“Repele ou quebra”), e Nomen Invincibile (“Nome Invencível”); 3) Lux Cibus et Medicina (“Luz, Alimento e Remédio”), e Nomen Admirabile (“Nome Admirável”); 4) “Emblema do Sol”: Fvgat Ut Fvlget (“Afugenta ao brilhar”), e Nomen Terribile (“Nome Terrível”). Ver MARTINS, Renata Maria de Almeida. Tintas da Terra, Tintas do Reino: Arquitetura e Arte nas Missões Jesuíticas do Grão-Pará (1653-1759). São Paulo: Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, 2009, p. 433-456. 44 FERRO, Giovanni. Teatro d’Imprese. Veneza: Giacomo Sarzina, 1623. [ver Google Books: livro digitalizado pela University of Illinois]. 45 Ibidem, p. 624-626. ISBN 978-85-61586-70-5 246 IV Encontro Internacional de História Colonial “Tesouro Descoberto no Máximo Rio Amazonas”, uma das mais importantes obras sobre a Amazônia do século XVIII. João Daniel nos fala do “peito de aço”, do “capacete”, da “saia de malha”, que são a “roupeta da Companhia”, as “armas do Evangelho” e de Antonio Vieira, contra as “agudas e horrendas frechas e taquaras” dos índios nheengaíbas; conhecida nação guerreira da Ilha do Marajó no Pará, que finalmente foi aldeada pelos jesuítas, após 20 anos de guerras, resistindo às investidas dos colonos portugueses. Já em relação à presença de Livros de Emblemas nos acervos das Bibliotecas dos Colégios Jesuíticos da América Portuguesa, é parte do inventário da expulsão dos jesuítas das colônias portuguesas, em 1759, o único manuscrito remanescente de uma antiga Livraria de Colégio jesuítico na Amazônia brasileira, conservado no Arquivo Histórico da Companhia de Jesus em Roma: O Catálogo da Livraria da Casa-Colégio da Madre de Deus no Pará.46 Composta por cerca de 1010 volumes, como nos diz o padre jesuíta Serafim Leite em sua obra essencial, “A História da Companhia de Jesus no Brasil”: “aquela livraria imersa como foco de luz nas selvas coloniais do Brasil tinha um pouco de tudo”.47 Deve-se acrescentar a Serafim Leite, que inclusive, aquela livraria em plena selva tropical, possuía em seu variado acervo, importantes obras de tradição emblemática. Andrea Alciati, Sebastián de Covarrubias, Don Juan de Solorzano, Francisco Sanchez de las Brozas (comentarista de Alciati), e Filippo Picinelli, certamente ficariam estupefatos ao verem seus Livros, depositados em uma Biblioteca a menos de um minuto da linha do Equador! Importa saber, segundo os documentos originais estudados por Serafim Leite, que a livraria do Colégio de Salvador da Bahia possuía cerca de 15000 volumes; a do Rio de Janeiro 5434; a de Belém cerca de 2000; a de São Luís do Maranhão 5000. As Bibliotecas jesuíticas, como no caso de Vigia, não se restringiam apenas aos centros mais importantes; como também sabemos quanto às missões na América de domínio espanhol: La destinazione finale dei libri portati dai gesuti non erano soli i centri accademici o le residenze. Migliaia di essi anadarano a costituire importante biblioteche nei villagi indios (…) In ogni villagio c`era una biblioteca: a San Borja 716 volumes, a San Pedro 834, a Itapua 530, a Santos Mártires 382, a Candelaria più 46 A livraria da Casa-Colégio da Madre de Deus em Vigia no Grão-Pará teria à época da expulsão dos jesuítas (1759-1760), segundo o seu inventário, cerca de 1010 volumes. Ver “Catálogo da Livraria da Casa da Vigia”. ARSI, Brasiliae 28, fl. 18v-23r. Segundo a somatória de Leite, seriam na verdade 1006 volumes. Ver LEITE, Serafim S.J. História da Companhia de Jesus no Brasil…, p. 160-167. Cf. transcrição do catálogo com anotações da autora e da Profa. Sylvie Deswarte em MARTINS, Renata Maria. Tintas da Terra, Tintas do Reino…, p. 280-285. 47 LEITE, Serafim S.J. História da Companhia de Jesus no Brasil…, p. 167. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 247 di 3700, nelle missioni dei Chiquitos più di 2000 volumi e in quella di Mojos 5200. I libri esistente nelle missioni dei fiume Uruguay erano circa 3600 e in quelle del Paranà 7000.48 Duas obras de Filippo Picinelli (em três volumes) estavam comprovadamente na Biblioteca dos jesuítas do Casa-Colégio da Madre de Deus em Vigia no Pará, o citado Mundus Simbolicus, e ainda o Lumina Reflexa. A Capela jesuítica de São Miguel Arcanjo em São Miguel Paulista, século XVII, foi recentemente objeto de restauro, e durante as obras, foram colocados em exposição antigos retábulos pintados, que estavam ocultados por retábulos de madeira de período não jesuítico. Nos “singelos” desenhos do sol, da estrela e da lua, que ocupam a parte interna e superior do nicho do retábulo do lado da epístola, teriam sido utilizados modelos já consagrados oriundos dos Livros de Emblemas? De fato, e por exemplo, pode-se notar que o sol foi retratado de forma muito semelhante ao do emblema de mote Toglie il Lume col Lume do Mondo Simbolico de Picinelli (1653).49 Na sacristia da Igreja de Vigia, também foram elaborados emblemas com o tema do sol, da lua e das estrelas,50 porém, desta vez, o programa iconográfico é totalmente dedicado à Virgem Maria, não somente na pintura emblemática do seu teto, mas também nos painéis com a vida de Nossa Senhora que ornamentam o retábulo. Na pintura, temos quatro emblemas, colocados em quatro caixotões distintos. A interpretação das figuras e motes, são de mais fácil leitura do que a da Igreja de Belém, visto que são conhecidas as inscrições, Electa ut Sol [“Eleita como o sol”], Pulchra ut Luna [“Bela como a Lua”], Stella Maris [“Estrela do Mar”], Stella Mattutina [“Estrela da Manhã”]. Segundo Sebastián, Monterrosa e Terán; o tema vem desde o século XV, onde a Virgem aparece rodeada de símbolos, alegorias e inscrições, que seriam imagens do Antigo Testamento que anunciariam a pureza imaculada de Maria, cristalizando uma tipologia chamada Tota Pulchra.51 Os símbolos marianos seriam: o espelho, a cidade, o poço, a árvore, o lírio, o templo do Espírito Santo, a porta do céu, a roseira, a fonte, a palma, o jardim fechado, a torre ou 48 MORALES, Martín María SJ (Org.). La Libreria Grande: Il Fondo Antico della Compagnia di Gesù in Argentina. Roma: Institutum Historicum Societatis Iesu, 2002, p. 16. 49 PICINELLI, Filippo. El Mundo Simbolico (Mondo Simbolico, 1653). Zamora, Michoacán: El Colegio de Michuacán, 1997. [Trad. do Lat. e do It. para o espanhol. Tradutor: Eloy Gómez Bravo]. 50 A autora trabalhou o tema dos astros na Emblemática em MARTINS, Renata Maria de Almeida. La Compagnia sia, come un cielo: o sol, a lua e as estrelas dos Livros de Emblemas para a decoração das Igrejas das Missões jesuíticas na América Portuguesa (séculos XVIXVIII). Colóquio Internacional A Arquitetura do Engano entre Europa e Brasil… 51 SEBASTIÁN, Santiago; MONTERROSA, Mariano; TERÁN, José Antonio. Iconografía del Arte del Siglo XVI en México. Zacatecas: Editorial UAZ, 1995, p. 60. ISBN 978-85-61586-70-5 248 IV Encontro Internacional de História Colonial fortaleza, e o sol (Electa ut Sol; Cant. cant. 6, 9), a lua (Pulchra ut Luna; Cant. cant. 6, 9), e a estrela (Stella Maris, Hino Litúrgico). Segundo Luís de Moura Sobral, um grande número de emblemas nas Igrejas de Portugal relatariam a Virgem Maria, refletindo a importância da Mãe de Deus na crença católica em geral, e na portuguesa em particular. Assim como Sebastián, Sobral também traz em seus estudos a associação da emblemática mariana ao “Cântico dos Cânticos”, Tota Pulchra: Tota Pulchra es amica mea et macula non est in te.52 Luís de Moura Sobral nos diz que, em torno do século XVII, dezenas, senão centenas, de tetos com caixotões de madeira (cassoni) são decorados com as imagens de Maria, de longo tempo associadas com as Litaniae Lauretanae, como é o caso de Vigia no Pará. Sem o emprego de “motes”, com simples motivos marianos, no centro de festões, florões, brutescos e/ou grotescas; pintados em têmpera ou à óleo, diretamente na madeira, seriam aqueles emblemas encontrados no teto em caixotões da sacristia da Igreja de São Roque em Lisboa, e também do santuário da Igreja do Colégio Jesuítico de Funchal na Ilha da Madeira. Não com motivos marianos, mas com símbolos cristianos; podemos encontrar modelo semelhante ao de Lisboa e ao do Funchal (caixotões de madeira, decorados com motivos simples, sem motos, no centro de festões e florões), na sacristia jesuítica da Igreja de Nossa Senhora do Embu em São Paulo, antiga Aldeia de M`Boy Mirim. De mais elaborada composição decorativa (como os de Vigia), seriam aqueles emblemas que ornamentam o teto da sacristia das Igrejas dos Cistercienses em Bouro, norte de Portugal; que utiliza em sua decoração “motos” e motivos figurativos de proveniências diversas.53 Na antiga Igreja de Nossa Senhora da Luz em São Luís, o arco concêntrico do retábulo do altar-mor desenhado no século XVII pelo jesuíta João Felipe Bettendorff, como já mencionamos, também está decorado com motivos marianos. O arco foi repartido em seis partes, cada qual destacando um símbolo associado à Maria. Estão no arco concêntrico retratados (da esquerda para a direita): a palma, o cálice, o sol, a lua, a estrela e a rosa. Fica bastante claro, então, a transferência da tradição portuguesa de Emblemas com símbolos marianos (entre eles, o sol, a lua, as estrelas) ao menos para a Amazônia. Do artigo de Luís de Moura Sobral,54 dedicado às pinturas de emblemas na azulejaria em Portugal e no Brasil, podemos retirar algumas fontes, sobre o tema Mariano, que seriam as obras de Jacques Callot, Herman Hugo, Joachim Camerarius, Henry Hawkins, Hendrik Engelgrave. Conluindo, as obras por nós estudadas, de tradição emblemática, fazendo parte de todo um sistema decorativo que imperava no Novo Mundo, dialogam e vão ao encontro das pesquisas mais atuais sobre a arte barroca do período colonial na 52 SOBRAL, Luís de Moura. Occasio and Fortuna…, p. 106. Ibidem, p. 102. 54 Ibidem, p. 102. 53 ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 249 América; e o seu conhecimento traz uma contribuição importante sobre os estudos da transferência cultural, das artes e da arquitetura nas Missões Jesuíticas, e do Barroco no território latino-americano. Lista de Imagens Imagem 1: Belém do Pará, Amazônia, Brasil, Igreja de São Francisco Xavier do Colégio Jesuítico de Santo Alexandre, pintura do teto da Sacristia contendo em cada um dos quatro cantos da composição, emblemas dedicados ao nome de Jesus, além de brutescos e grotescas, século XVIII. Fotografia: Ricardo Medrano, julho de 2008. Imagem 2: Vigia, Pará, Amazônia, Brasil, Igreja Jesuítica da Casa-Colégio da Madre de Deus, pintura do teto da Sacristia contendo em cada um dos quatro caixotões, emblemas dedicados à Virgem Maria, além de flores e brutescos, século XVIII. Fotografia: Ricardo Medrano, julho de 2008. ISBN 978-85-61586-70-5 250 IV Encontro Internacional de História Colonial Imagem 3: Belém do Pará, Amazônia, Brasil, Igreja do Colégio Franciscano de Santo Antônio de Lisboa, detalhe central da pintura do teto da Sacristia contendo emblema e arquitetura pintada, 1774. Fotografia: Renata Martins, janeiro de 2012. Imagem 4: São Miguel Paulista (zona leste da cidade de São Paulo), São Paulo, Brasil, Capela de São Miguel Arcanjo, detalhe do retábulo pintado (lado da Epístola) contendo desenhos do sol, da estrela e da lua na parte superior interna do nicho, s/d. Fotografia: Renata Martins, janeiro de 2012. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 251 Imagem 5: Embu das Artes, São Paulo, Brasil, Igreja da Residência de Nossa Senhora do Rosário do Embu (M`Boy Mirim), pintura do teto da sacristia contendo símbolos da Paixão de Cristo, brutescos, grotescas, flores e chinoiseries, detalhe da pintura de um dos caixotões [contendo os pregos da crucificação], séc. XVIII. Fotografia: Renata Martins, fevereiro de 2012. ISBN 978-85-61586-70-5 252 IV Encontro Internacional de História Colonial Grotescas, Emblemas, Empresas: Funções do Ornamento no Sistema Figurativo Híbrido da América Colonial Luciano Migliaccio1 Nas decorações de ambientes religiosos pintadas na América portuguesa, observa-se frequentemente a presença ao mesmo tempo da arquitetura fingida, da grotesca, do emblema ou da empresa, e a prevalência do elemento decorativo e emblemático em relação à figuração narrativa, fenômeno este que é comum a numerosas realidades do mundo colonial. Se até certo ponto, tal fenômeno é justificado por motivos práticos, quais a falta de artífices preparados para a realização das tarefas necessárias à pintura narrativa, por outro lado, forma parte de um gosto, configurando a formação de uma sintaxe visual diferente daquela do sistema prevalente nos modelos europeus, e permite fazer algumas reflexões visando uma reconsideração do fenômeno da transmissão e da tradução das formas artísticas européias para outras culturas. Estudiosos quais Philippe Morel2 e Claire Farago3 destacaram a importância do papel da decoração, e particularmente da grotesca, nos fenomênos de hibridação e contaminação entre culturas figurativas diversas. Como é sabido, a palavra grotesca define um tipo de ornamento formado por figuras íbridas, antropomorfas, zoomorfas e vegetais, e outros elementos quais festões, guirlandas, candelabras, nós, nascido da imitação dos estuques que decoravam as construções de Roma antiga, e que foram redescobertas a partir do final do século XV e colocadas na moda pelo ateliê de Pinturicchio. Entre os primeiros exemplos desta tipologia decorativa podem ser citados os aposentos do papa Alexandre VI Borgia, mas também a capela Carafa em Santa Maria sopra Minerva em Roma e a cappella Strozzi em Santa Maria Novella em Firenze, por Filippino Lippi. Este tipo de ornamentação conheceu depois uma difusão europeia na versão criada pelo ateliê de Rafael, em particular por Giovanni 1 Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, FAU-USP. MOREL, Philippe. Il funzionamento simbólico e la crítica delle grottesche nella seconda metà del Cinquecento. In: FAGIOLO, Marcello (ed.). Roma e l'antico nell'arte e nella cultura del Cinquecento. Roma: Istituto della Enciclopedia Italiana, 1985, p. 149-178; L'art des grotesque et les marges de la nature: l'hybride et le monstrueux entre science et imaginaire a la fin de la Renaissance. In: OLMI, Giuseppe, TONGIORGI TOMASI Lucia (ed.) Natura-Cultura: l'interpretazione del mondo fisico nei testi e nelle immagini. Firenze: Olschki, 2000, p. 57-62; Ver também LAROQUE Francois, LESSAY Franck (ed.). Esthétiques de la nouveauté à la Renaissance. Paris: Presses de la Nouvelle Sorbonne, 2001. 3 FARAGO, Claire (ed.). Reframing the Renaissance: Visual Culture in Europe and Latin America. 1450-1650. New Haven: Yale University Press, 1995. 2 ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 253 da Udine, nos estuques das galerias vaticanas, em que as possibilidades abertas pelo gênero permitiam mixturar a erudição arqueológica, científica e a fantasia poética na busca de uma prazerosa divagação da imaginação. Por meio da atividade de artistas como Perin Del Vaga, Francesco Salviati, Giorgio Vasari, na segunda metade do século XVI, as grotescas penetraram amplamente nos espaços profanos, como naqueles religiosos: capelas, refetórios de mosteiros, oratórios de irmandades, sendo sinônimo de cultura em dia com as tendências humanísticas da aristocracia das cortes, não sem se confundir com outros tipos de imagens com funções didáticas e de edificação moral como os hieróglifos, os emblemas, as divisas. As grotescas eram consideradas como o lugar da invenção livre por parte da fantasia do artista, mas, por isso mesmo foram associadas a uma atividade mental fora dos limites da razão. No contexto colonial é possível sugerir uma hipótese que vai num sentido contrário à idéia de uma inspiração direta em modelos teóricos e fontes européias e mais no sentido indicado por Santiago Sebastián de pensar que o caráter específico da recepção americana dos modelos europeu seja sobretudo a diferente recombinação e composição das formas procedentes dos centros metropolitanos. Não tanto a invenção então de formas novas, mas uma nova “dispositio” que quebra frequentemente os limites fixados entre os gêneros na cultura originária.4 Nas imagens de decorações pintadas como as da Casa do Fundador de Tunja, na Colômbia,5 do Colégio de Santo Alexandre e da sacristia do mosteiro de Santo Antônio de Belém, da sacristia da igreja dos jesuítas de Vigía,6 há frequentemente a presença da arquitetura fingida, da grotesca, do emblema e da “impresa”, que em falta de uma melhor tradução ao português, designaremos com a palavra italiana, ou com a palavra lusa divisa. Tanto o emblema como a divisa são associações livres de imagens e motes. Eles distinguem-se apenas pela função, sendo a divisa um emblema (no sentido da etimologia grega de objeto a ser contemplado) que é adotado por um indivíduo para expressar uma intenção moral e pode mudar no tempo, a diferença do brasão e do emblema que possuem uma função de identificação dinástica ou de ensino moral sem se identificar com um indivíduo em particular. Por exemplo, na casa do fundador de Tunja, na Colômbia, um falso pórtico, definido por arcos sustentados por colunas, abre-se mostrando animais e vegetação das diversas partes do mundo: o rinoceronte, representando a África o cachorro, o 4 SEBASTIÁN, Santiago. El barroco iberoamericano: mensaje iconográfico. Madrid, Encuentro, 1990. 5 SEBASTIÁN, Santiago. La pintura emblemática de la Casa del Fundador de Tunja. Goya, n. 163/168, p. 178-183, 1982. 6 Sobre as decorações jesuíticas de Belém e Vigía, ver MARTINS, Renata Maria. Tintas da terra, tintas do reino: arquitetura e arte nas missões jesuíticas do Grão Pará (1653-1759). São Paulo: Tese de doutorado – FAU/USP, 2009. ISBN 978-85-61586-70-5 254 IV Encontro Internacional de História Colonial cavalo representando a Europa, podem ser vistos como uma das primeiras manifestações de um exotismo de um ponto de vista americano. Na casa de Juan de Vargas o mesmo tema é declinado mediante o uso do repertório da grotesca: o cavalo e o rinoceronte reproduzido fielmente da famosa gravura de Durer, aparecem ao lado dos seres íbridos, dos nós, dos festões típicos dos modelos europeus. Ao lado dos animais e dos seres monstruosos, eis os emblemas do nome de Jesus e de Maria, o brasão familiar. Já no século XVIII, no claustro do mosteiro de São Francisco em Salvador da Bahia, a arquitetura falsa, incluíndo tarjas e emblemas, forma a moldura de figurações narrativas, enquanto os motivos da grotesca à antiga foram substituídos pela rocaille em que sobrevivem do repertório do passado apenas cabeças de anjinhos alados. Os casos de Belém do Pará também parecem estabelecer uma espécie de diálogo permanente entre pintura de arquitetura, emblema e grotesca (ou brutesco em português) que sugere algumas considerações sobre o papel da arte decorativa na cultura figurativa colonial da América Latina. A decoração, em particular o emblema e a grotesca, por serem imagens que se aproximam ao pictograma ou por terem uma ligação menos estreita com a tradição mimética típica da arte clássica, foi o lugar privilegiado onde foi possível o surgimento de uma atitude mais aberta em relação às tradições iconográficas locais, em virtude da combinação entre erudição científica e religiosa, didática moral e divagação fantástica que é característica da grotesca utilizada nos espaços comuns de edifícios monásticos, quais refetórios, sacristias, na Europa já durante a Renascença . Algo deste caráter se transmitiu à maneira de interpretar os modelos de pintura decorativa procedentes da Europa na segunda metade do século XVIII, particularmente no Brasil. Esta ideia é sugerida também da leitura de um trecho dos Veri precetti della pittura de Giovan Battista Armenini publicado em 1587. No capítulo dedicado aos temas adequados para decoração das galerias e dos pórticos, Armenini louva a variedade das escolhas temáticas possíveis nestes ambientes destinados ao recreio e ao entretenimento do espírito. Acrescenta que, posta a diversidade das formas arquitetônicas que são na maioria dos casos arcos e pilares, a pintura precisa adequarse escolhendo uma grande variedade de formatos “de maneira que neles toda extravagante invenção é adequada desde que crie riqueza e ornamento”. Passando aos exemplos cita as Logge de Rafael e de Giovanni da Udine, a galeria da vila Doria de Fassolo em Gênova por Perin del Vaga, louvando a erudição arqueológica e científica dos dois primeiros e a capacidade de domínio da perspectiva e da figuração do segundo. No entanto, termina com um louvor do uso da pintura de arquitetura e perspectiva: Vi, não há muito, viajando na Lombardia, muitos pórticos que dão vista para as montanhas e os bosques e além dos belos frisos que há feitos, em estuque e dourados, nas paredes estão ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 255 pintados, na frente daqueles reais, as mesmas ordens dos arcos e das colunatas que existem, de forma que pintando entre eles perspectivas com edifícios, bosques e fontes, e ao redor paisagens e montanhas muito belas, se tornam muito alegres e agradáveis à vista, pois de um lado se enxergam os montes e as florestas reais, do outro se vêm outros pintados diversos e alegres, assim que o olho e a mente gozam de uma dupla vista.7 Na passagem do artista emiliano parece estar contida a possibilidade de, em nome do encantamento dos sentidos e da fantasia, aliar a extravagância erudita da grotesca, o saber científico e a perspectiva no ideal de um entretenimento adequado ao ambiente da aristocracia laica e religiosa. Naturalmente estas sugestões elaboradas no meio da sociedade italiana do final do século XVI que ia perdendo a sua característica configuração mercantil e urbana e se transformando numa sociedade de corte, passarão a ser elaboradas de acordo com os específicos contextos locais. Num texto publicado como parte da introdução à coletânea “Reframing Renaissance”, de 1995, que contem estudos e reflexões muito importantes para uma reconsideração do fenômeno da transmissão e da tradução das formas artísticas européias para outras culturas, em particular as culturas da América centromeridional, Claire Farago chama a atenção sobre a importância do papel da decoração, e particularmente da grotesca, nos fenomênos de hibridação e contaminação entre culturas figurativas diversas. Baseando-se nas colocações do cardeal Gabriele Paleotti, publicadas em 1582, em sua obra De sacris et profanis imaginibus, libri V, Claire Farago mostra como, neste momento histórico, de recepção das normas emitidas pelo Concílio de Trento no campo figurativo, de um lado há uma repulsa contra a excessiva liberdade dos artistas na decoração dos espaços religiosos, identificada sobretudo com o uso da grotesca, largamente praticado nas décadas anteriores. O cardeal Paleotti, então bispo de Bolonha, pretendia contribuir para corrigir os abusos dos artístas da época. Estabelecia limites às possibilidades de representação baseado no pressupposto de que não podia ser admitido introduzir na figuração fantasias arbitrárias que não tivessem correspondência com objetos existentes no mundo real. Os limites postos pelo prelado privilegiavam o naturalismo baseado na representação verossimilhante da realidade visível, se colocando ao lado da nova orientação na pintura religiosa proposta pela academia dos Carracci, fundada justamente em Bolonha no mesmo ano da publicação dos escritos do cardeal. Contudo, por outro lado, ele tomava em consideração tipos de decoração que poderiam conter figuras imaginárias, mas que não seriam realmente tais porque fundamentadas em novas combinações de temas realmente existentes na natureza. É 7 ARMENINI, Giovanni Battista. De veri precetti della pittura. Torino: Ed. Marina Gorreri, 1988, p. 181. ISBN 978-85-61586-70-5 256 IV Encontro Internacional de História Colonial a posição já defendida por Francisco de Holanda, no IV dos seus Diálogos da Pintura, num discurso que ele atribui a Michelangelo, mas que substancialmente reflete as posições teóricas do artista português. Depois de ter afirmado que não se podem definir monstros seres compostos por elementos naturais combinados conforme a razão da proporção e da conveniência ao decoro e ao lugar, Holanda conclui: E melhor decora a razão quando se mete na pintura alguma monstruosidade (para variação e relaxamento dos sentidos e cuidado dos olhos mortais que às vezes desejam ver aquilo que nunca ainda viram nem lhes parece que pode ser) mais que a habitual figura, (posto que mui admirável) de homem e de alimárias. E daqui tomou licença o insaciável desejo humano de aborrecer alguma vez mais um edifício com suas colunas e janelas e portas que outro fingido de falso grotesco em que as colunas tem feições de crianças que saem de gomos de flores, com arquitraves e fastígios de ramos de murta e as portadas de canas e de outras coisas, que muito parecem impossíveis e fora de razão, o que tudo até é mui grande se é feito por quem entende.8 Da mesma forma, Paleotti acabava por desvincular o ornamento da sua necessária relação com a realidade visual. Em 1563 o Concílio de Trento adotara uma resolução em que censurava todas as formas de ornamentação não necessária para as imagens sacras, demonstrando uma atenção particular em relação ao problema. Contudo, Paleotti opinava que os artistas tinham direito de inventar livremente os ornamentos na medida em que estas figurações prazerosas não fossem apenas ficções fruto da imaginação e dirigidas à sedução dos sentidos, mas possuissem uma relação com a realidade natural e tivessem uma função moral. Durante a elaboração das suas idéias, Paleotti consultou o amigo Ulisse Aldrovandi, famoso naturalista e colecionador de materiais procedentes do Novo Mundo, autor ele também de um tratado sobre a arte antiga e de outro, inédito, sobre a pintura. Aldrovandi respondeu defendendo a liberdade da fantasia do artista na invenção dos ornamentos, inclusive contra a autoridade dos textos antigos, como Vitrúvio, desde que esta invenção fosse conforme a uma realidade existente, como no caso dos objetos inéditos presentes na sua coleção de artefatos e objetos naturais e exóticos. Paleotti adotou a visão do amigo a respeito da liberdade dos artistas em alguns momentos do seu texto, por exemplo, ao valorizar elementos explicitamente 8 DE HOLANDA, Francisco. Díalogos em Roma (1548). Introdução e notas de José da Felicidade Alves. Lisboa: Livros Horizonte, 1984, p. 65. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 257 mencionados pelo naturalista bolonhês. Coisa remarcável para um prelado da sua época, Paleotti coloca que aos pintores deveria ser permitido representar objetos que poderiam parecer fora da ordem da natureza, desde que a existência deles seja documentável, incluíndo monstros e outros elementos abnormes. Os ornamentos que possuem referências na natureza são, portanto, conformes à razão, segundo Paleotti, enquanto seriam condenáveis as grotescas que representam meros fantasmas, coisas que nunca existiram e que não poderiam existir na forma em que foram representadas. Mas como distinguir entre as grotescas produto de uma imaginação sem freios e os ornamentos baseados em elementos naturais que são úteis para extender o conhecimento científico e moral do ponto de vista visual e ontologico? A distinção de origem tomista entre dois tipos de linguagens figurais, as verdades divinas e as ficções dos poetas ganha novos limites. Paleotti faz remontar a origem das grotescas aos hieróglifos egípcios opondo ao arbítrio da imaginação humana as alegorias e os mistérios da revelação. Neste ponto, ele seguia os passos de teóricos como o pintor e arquiteto Pirro Ligorio e como o pintor milanês Giovan Paolo Lomazzo, que num trecho muito significativo, falando das grotescas, coloca: “de propósito eram feitas como enigmas ou cifras ou figuras egípcias, que são chamadas de hieróglifos, para significar alguma noção ou pensamento sob outra figuras, como nós usamos nos emblemas ou nas divisas”.9 A explícita aproximação da grotesca com o hieróglifo e com o uso moderno do emblema ou divisa “impresa” é muito sugestiva para entender as possíveis leituras dos sistemas decorativos pictoricos. As imagens associadas livremente de forma instigante com a escrita de maneira a sugerir conceitos morais permitem ultrapassar os limites do naturalismo e, ainda que, na categoria menor do fantástico, ou até do ridículo, resgatar elementos de tradições não europeias e não vinculada à verossimilhança na representação do mundo. O teórico espanhol Felipe de Guevara, conselheiro de Carlos V, nos seus Comentários de la pintura, publicados só em 1788, mas destinados provavelmente à educação do futuro Felipe II, escreveu: Esta suerte de pintura (os hieróglifos) y el declarar con ella su conceptos parecen haber imitado los Indios ocidentales, y del nuevo orbe, especialmente de la Nueva España, ahora sea que por antigua tradición les venga de los Egípcios, lo qual podria haber sido, hora sea que los naturales de estas dos naciones concuriesen en unas mismas imaginaciónes. Asi, todo lo que los dichos indios quieren significar de sus mayores, lo muestran en 9 LOMAZZO, Giovanni Paolo. Trattato dell'arte della pittura, scoltura et architettura. Milano: Paolo Gottardo Ponzio, 1585, p. 423. ISBN 978-85-61586-70-5 258 IV Encontro Internacional de História Colonial la pintura, y ellos entre ellos declaran sus conceptos por medio de la misma pintura.10 A escritura pictográfica dos aztecas acaba por ser aproximada ao hieróglifo egípcio e como tal revalorizada como transmissora de uma antiga sabedoria: Es de notar la extraña devoción que los dichos indios a todo genero de pintura tienen y creo cierto que si la imitativa imaginaria, no tan pulida, que el hábito de la continua vista de sus cosas le acarea, no lo impidiese, que se adelantarian en dicha arte con facilidad y aprovechamiento grande. Son dichosos en colores, ahora sean de tierra, ahora de zumos de yerbas varias, sin contar en la cochinilla que es carmin rarísimo. Justo es también haber traido a la pintura algo de nuevo y raro, como es la pintura de las plumas de aves, variando ropas, encarnaciones y cosas semejantes con diversidad de plumas que por allá cria la naturaleza, y ellos con su industria escogen, dividen, apartan y mezclan.11 Guevara provavelmente conhecia o escudo à moda mourisca usado na Andalusia chamado de adarga decorado com pinturas plumárias, hoje na armeria do Palacio Real de Madri, realizado para Felipe II pelo índios amantecas do México, por volta de 1575, representando as históricas vitórias militares da monarquia espanhola contra os árabes , a partir de modelos italianos e flamengos, e a mítra doada ao Escorial por Felipe segundo em 1576, também com imagens realizadas em técnica plumária. Guevara defendeu também a conveniência das extravagantes figurações de Hieronimus Bosch, de que foi um colecionador: Nunca pintó cosa fuera de natural en su vida si no fuese en materia de infierno o purgatorio como dicho tengo. Sus invenciones estrivaran en buscar cosas rarisimas pero naturales… haber sido observantisimo del decoro y haber guardado los limites de la naturaleza cuidadosisimamente, tanto y mas que otro ninguno de su arte…12 É possível pensar que o interesse para a ornamentação grotesca a partir da doutrina classicista presente nos escritos italianos mencionados permita aos teóricos do meio ibérico como Guevara e Francisco de Holanda de abordar com olhar mais atento as manifestações da arte dos indígenas americanos e dos orientais com os 10 DE GUEVARA, Felipe. Comentários de la pintura. Madrid, 1788, p. 236. Ibidem, p. 237 12 Ibidem, p. 41-43. 11 ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 259 quais espanhóis e portugueses tiveram contato. Guevara seria capaz de atribuir algum valor para a pintura plumária e a arte dos tecidos dos mexicanos a partir das extravagâncias de Bosch e da função moral do grotesco? A discussão sobre a função e o valor para o conhecimento do artifício pictórico teve uma função importante não apenas em estabelecer limites para a liberdade de invenção dos artistas, mas no contexto do Novo Mundo e de povos com uma sua própria tradição religiosa mas também em criar as condições dentro as quais era possível ou não inserir dentro de um contexto cristão referências a tradições figurativas autóctones dentro de uma visão condicente com as disposições da igreja. Neste sentido, era possível aproximar a figuração fantástica do mundo pagão na grotesca romana e os hieróglifos egípcios às imagens das culturas extra-européias, africanas e americanas, à ilustração dos provérbios e das fábulas própria da tradição decorativa chinesa ou hindu, e até às referências aos ornamentos plumários das culturas indígenas da América, desde que fossem finalizadas à criação de um contexto destinado a dar riqueza e ornamento adequado à imagem sacra. Talvez uma confirmação desta capacidade sincrética da decoração possa ser identificada em obras como a Capela do Rosário na igreja de San Domingos de Puebla e de Santa Maria de Tonantzintla, antiga sede de cultos indígenas da fertilidade na mesma província mexicana. Nestes dois casos a grotesca invade as paredes envolvendo as molduras das pinturas religiosas, e dos retábulos, executadas de maneira muito mais conforme às convenções ocidentais, e convive com o estilo Churriguera e o neoclássico mais tardio procedente da Espanha. Na Capela do Rosário alguns elementos são claramente retomados da arte pre-colombiana, inserindo, por exemplo na decoração vegetal fragmentos antropomorfos na forma de cabeças de guerreros com capacetes formados por cabeças de onças, e anijnhos plumados.13 Na igreja de Tonantzintla até o pequeno Cristo no trono que encima o arco do cruzeiro possui um ornamento de plumas.14 A fachada da igreja de San Carlos Borromeo, hoje catedral de Puno, datada de 1757 oferece um exemplo diverso de utilização do ornamento a grotesca e do emblema no contexto indígena, desta vez na região do lago Titicaca, no Peru: onde os artistas indígenas ou mestiços interpretavam a figuração de origem européia na base de convenções artísticas não compatíveis com a tradição naturalista clássica, a 13 RUBIAL GARCIA, Antonio. Domus Aurea. La Capilla del Rosario de Puebla: un programa iconográfico de la Contrarreforma. Ciudad de México: Universidad Iberoamericana, 1991. 14 BAIRD, Joseph Armstrong. The churches of Mexico 1530-1810. Berkeley: Los Angeles, California University Press, 1962, p. 121. ISBN 978-85-61586-70-5 260 IV Encontro Internacional de História Colonial liberdade de invenção e de composição permitida pela grotesca tornava o ornamento o lugar ideal para formas de sincretismo iconográfico e estilístico.15 Naqueles mesmos anos, a meados do século XVIII, no âmbito do império lusitano, um trecho muito interessante do padre João Daniel, jesuíta ativo nas missões do Maranhão e do Pará, na época da expulsão da Companhia, nos permite de perceber uma nova apreciação em relação à produção artística dos indígenas. Escreve Daniel no seu livro Tesouro Descoberto no Máximo Rio Amazonas, redigido provavelmente entre 1741 e 1757: E assim os mais nos seus ofícios, em que se acham imaginários, cujas obras se trazem à Europa por admiração, e com a circunstância que alguns, para pôr as imagens no maior primor, não usam nem de medidas nem de compasso: porque na fantasia a delineiam conforme o modelo que antes viram. Olham para o madeiro que tem diante, e já com o machado, já com a enxó, e depois com os mais instrumentos, logo ou com brevidade a dão perfeita.16 Daniel escreve o seu Thesouro Descoberto no Máximo Rio Amazonas durante os anos em que ficou recluso nas prisões portuguesas por resistir à ordem de expulsão da Companhia dos territórios da coroa (1757-1776), a partir das experiências vividas na região entre 1741 e 1757. Trata-se, portanto, de um relato de memória, visando destacar e enaltecer as capacidades inatas dos índios evangelizados pelos jesuítas. Ele não ressalta a obra educativa das oficinas jesuíticas na prática artística dos nativos. Estas só servem para disciplinar um povo que não possui o hábito do trabalho sistemático. Daniel quer mostrar a disposição inata dos indígenas e suas habilidades manuais espontâneas. Daí ele não vê a maneira instintiva dos artistas indígenas como um fato negativo, pelo contrário, admira a criação imediata como uma característica da mentalidade deles. É claro que para o jesuíta isso indica ainda apenas uma disposição à aprendizagem da regra, mas numa certa medida, a observação de Daniel se contrapõe a consideração totalmente negativa da disposição mental dos indígenas presente em escritos de outros padres. Para isso, Daniel lança mão da categoria da “fantasia” e elogia a capacidade criativa a partir da manipulação direta dos materiais da escultura, com utensílios primitivos (o esboço) para acabar depois com 15 FRISANCHO PINEDA, Inacio. La catedral de Puno: historia documentada. Lima: CONCYTEC, 1999; BAILEY, Gauvin Alexander. The Andean Hybrid Baroque: convergent cultures in the churches of colonial Peru. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 2010. 16 DANIEL, João SJ. Thesouro Descoberto no Máximo Rio Amazonas. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1976. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 261 instrumentos mais refinados, e ressalta a rapidez com que a imagem idealizada pela fantasia, é traduzida pela mão do artista indígena. Ao fazer isso, ele parece se aproximar a motivos da critica de arte e da pintura, em particular, de grande atualidade na Europa do seu tempo: se pense nas noções de “fantasia”, de toque, de colorito, utilizadas por eruditos como De Piles, Algarotti, Caylus.17 Posto isso, é possível perceber na posição de Daniel uma valorização consciente destes aspectos da produção indígena, não apenas como parte de uma disposição inata à aprendizagem das regras da arte, mas como característica positiva da produção artística em geral a ser valorizada na criação particular dos artífices índios. Daniel estaria então em dia com correntes da crítica da época que ressaltam o valor do elemento da espontaneidade e da fantasia não como “primitivos”, mas como caráter da própria atividade estética, destacadamente presentes na produção dos “primitivos”. Cabe lembrar que em 1720 Giambattista Vico começa a elaborar a sua obra Principi di una Scienza Nuova, fundando uma visão da história que valoriza as primeiras fases da história da humanidade, consideradas como o momento da primeira apreensão do mundo mediante a fantasia poética e a linguagem. Para Vico os primeiros povos foram poetas que falaram por meio da poesia: a linguagem entendida como criação e expressão da fantasia foi essencialmente poético porque os homens daquela idade se expressavam por imagens e metáforas; formas do saber tecidas com universais fantásticos ou caracteres poéticos que estão na base dos grandes mitos dos povos primitivos, possuindo, portanto, valor histórico de conhecimento. Naqueles mesmos anos, o lombardo Lorenzo Boturini Benaduci, leitor da obra de Vico, no México desde 1736, recolheu um grande acervo de documentos sobre a civilização azteca, publicou em Madri em 1746 a obra Idea de una nueva história de la América Septentrional fundada sobre material copioso de figuras, símbolos, caracteres y jeroglíficos cantares y manuscritos de autores Indios ultimamente descobiertos aplicando pela primeira vez à história antiga americana os métodos da pesquisa antiquaria de Montfaucon, baseada na consideração filológica dos documentos materiais.18 17 PUTTFARKEN, Thomas. Roger de Piles' theory of art. New Haven: Yale University Press, 1985; ERCOLI, Giuliano. Francesco Algarotti e la nuova critica d'arte nella seconda metà del Settecento. In: Nuove idee e nuova arte del Settecento italiano. Roma, Accademia dei Lincei, 1977, p. 409-425; DÉMORIS, René. Le comte de Caylus entre théorie et critique d'art. In: CRONK, Nicholas, PEETERS Kris (ed.). Le comte de Caylus. Amsterdam, 2004, p. 17-41. 18 Sobre a figura de Lorenzo Boturini Benaduci, ver GHELARDI, Maurizio. L'oratio ad divinam sapientiam del vichiano Lorenzo Boturini. In: Giornale Critico della Filosofia Italiana, 1984, p. 406-419; CODAZZI, Angela. Boturini Benaduci, Lorenzo verbete, Dizionario Biografico degli Italiani. Roma, Istituto dell'Enciclopedia Italiana, vol. 13, 1971. ISBN 978-85-61586-70-5 262 IV Encontro Internacional de História Colonial O trecho do Armenini citado no começo desta comunicação parece demonstrar que, ao lado da sua função simbólica e racional de moldura da figuração histórica, desde o começo, a pintura decorativa estabeleceu uma relação importante também com a categoria do ornamento e da grotesca na decoração de espaços caracterizados como áulicos. Seria possível, portanto, um diálogo entre a pintura de arquitetura e a livre combinação de imagens presente no hieróglifo e no emblema, uma interpretação que, privilegiando a maravilha da experiência visual, o deleite fantástico em detrimento da seriedade da teoria perspectiva e científica, permitiria a coexistência de sistemas visuais diferentes em função da produção da riqueza e do alegre fausto do ambiente religioso. Esta tendência se harmonizaria com a interpretação das formas da decoração barroca e, em seguida, do rococó, no mundo colonial luso-brasileiro e latinoamericano em geral. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 263 A Paisagem Política em Frans Post: A Pax Nassoviana e a guerra pelo Atlântico Sul Daniel de Souza Leão Vieira1 Introdução: a historicização da representação de paisagem Os desenhos de Frans Post, 1645, foram feitos para as gravuras do livro Rerum per octennium in Brasilia, 1647, de Caspar Barlaeus, sobre o governo de João Maurício de Nassau no Brasil. Uma análise formal e iconográfica demonstrou que a composição dos desenhos foi feita nos moldes das vistas topográficas de lugares pátrios, relativas à cultura visual neerlandesa do século XVII. Tratou-se, portanto, da estruturação de uma visão da Nova Holanda através de uma retórica visual associada à paisagem política.2 Porém, os resultados dessa análise põem um problema historiográfico, uma vez que a representação da topografia da Nova Holanda, construída como imagens da Pax Nassoviana, não tinha correspondência com a realidade social vivida. Ao contrário de seus antecedentes iconográficos - as séries de gravuras paisagísticas holandesas relacionadas ao contexto da Trégua dos Doze Anos com a Espanha, de 1609 a 1621, o conjunto de vistas topográficas de Frans Post representava uma paz que não existia de fato. Sabe-se que o período histórico de que elas tratam – o governo de Nassau, não deixou de conhecer conflitos armados, pois que eram constantes as incursões dos guerrilheiros luso-brasileiros. Para não mencionar o fato de que Frans Post executava os desenhos e ajudava Jan van Brosterhuyzen a preparar as gravuras ao tempo em que o território representado caía sob o cerco dos insurretos pernambucanos.3 Como compreender esse deslocamento de sentido, entre um real vivido e uma realidade representada? Essas imagens operavam a visibilidade do projeto político orangista do stadhouder [lugar-tenente] Frederik Hendrik para a legitimação de poder dos neerlandeses no Brasil e no Atlântico, uma vez que, assegurando a posse do 1 Licenciado e Mestre em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Doutor em Humanidades pela Universiteit Leiden. Bolsista CNPq de Pós-Doutorado Júnior - Programa de Pós-Graduação em História Universidade Federal de Pernambuco. 2 Cf. VIEIRA, Daniel de Souza Leão. Topografias Imaginárias: a Paisagem Política do Brasil Holandês em Frans Post, 1637-1669. Leiden: Tese de Doutorado em Humanidades, Leids Universitair Instituut voor Culturele Disciplines, Faculteit der Geesteswetenschappen, Universiteit Leiden, 2010. 3 BOOGAART, Ernst van den. A Well-Governed Colony. Frans Post’s Illustrations in Caspar Barlaeus’s History of Dutch Brazil. The Rijksmuseum Bulletin. Amsterdam, vol. 59/3, p. 236-271, 2011. ISBN 978-85-61586-70-5 264 IV Encontro Internacional de História Colonial território que ia do São Francisco ao Potengi, mantinha-se uma cabeça-de-ponte crucial para a geopolítica neerlandesa no Atlântico. Porém, com a morte do stadhouder em 1647 e o crescimento da liderança civil em favor da paz com a Espanha, a posição orangista-nassoviana enfraqueceu-se; e com ela, a proposta de manutenção do Brasil. A plutocracia mercantil de Amsterdã preferiu rever sua participação no Atlântico: abandonou seus territórios produtores centrais – Nova Holanda e Nova Neerlândia, e privilegiou assim o comércio com os produtos ibéricos.4 Portanto, a iniciativa de João Maurício - de mandar publicar a história de seus feitos no Brasil - foi uma defesa da ideologia orangista, relevante tanto para as Províncias Unidas quanto para os próprios territórios ultramarinos no Atlântico. Nesse sentido, a paisagem política da Nova Holanda nos desenhos de Frans Post deve ser entendida como a contraparte visual desse projeto político, e não como meras ilustrações do texto de Barlaeus. Trata-se aqui, nesta pesquisa, entretanto, de uma investigação ainda em andamento. É bem verdade que, por um lado, é já a emergência de uma questão baseada nos resultados de uma investigação concluída. Mas, por outro, a própria inovação da problemática exigiu uma nova investigação que tanto revesse a pesquisa anterior quanto fizesse avançar na verticalização analítica de uma iconografia que lhe é relativa. Refiro-me à relação de semelhança iconográfica entre, de um lado, o conjunto de vistas topográficas que Frans Post criou em 1645 para a preparação das pranchas do livro de Caspar Barlaeus, e, de outro, as séries de desenhos impressos com paisagens dos arredores da cidade de Haarlem nos anos 1610. No caso específico desta investigação, a comparação iconográfica inicial, acima mencionada, se desdobra em outros níveis. Para que possamos estudar a recepção dos desenhos de Post em 1647 – quando vieram a público, é preciso se ater a três variáveis presentes no contexto histórico de então: 1) o papel da topografia na cultura visual de ambos os períodos; 2) a relação desse repertório visual a ambos os momentos políticos dos Países Baixos Unidos; e 3) o imaginário do “Brasil holandês” no interior dessa paisagem política de fins da década de 1640. Cabe aqui alertar que não se trata de expormos, a seguir, os resultados dessa nova investigação, mas a armação de suas questões centrais. É na reflexão que busca entender a natureza da relação entre as práticas sociais e as construções simbólicas que concebemos uma história comparada das imagens, nas encruzilhadas de um 4 Cf. BOXER, Charles. Os Holandeses no Brasil, 1630-1654. Recife: CEPE, 2004; Ibidem, The Dutch Seaborne Empire: 1600-1800. New York: Alfred A. Knopf, 1965; SPRUIT, Ruud. Zout en Slaven. De Geschiedenis van de Westindische Compagnie. Houten: De Haan, 1988; e ISRAEL, Jonathan. I. Dutch Primacy in World Trade, 1585-1740. Oxford: Oxford University Press, 1989. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 265 objeto constituído entre continuidades iconográficas, descontinuidades políticas e diferenças atlânticas. Iconografia de topografia pátria e ideologia de Estado nos anos 1610 Como afirmara J. L. Price, os anos de 1618 e 1650 foram críticos para o corpo político da República dos Países Baixos Unidos.5 Ambos foram precedidos pela criação imagética de representações de paisagem em séries de impressos com temática topográfica. Porém, houve uma assimetria dupla em relação aos dois conjuntos caros aqui a esta análise. Os impressos dos anos 1610 focavam os lugares pátrios holandeses, sobretudo Haarlem; as gravuras de 1645, de Frans Post, tinham como tema central o território da Nova Holanda. Ademais, por um lado, o primeiro conjunto, relacionando-se à ideologia de estado orangista, tal como aventada a partir do coup d’état de Maurício de Nassau, em 1618, marcou o advento da identificação da iconografia emergente a uma paisagem política específica. Por outro, o segundo conjunto foi talvez uma última defesa dessa ideologia durante a crise que terminou por pender a balança política da república a favor do governo civil e da ideologia do livre comércio. Para que esta hipótese adquira validade, é preciso, entretanto, que demonstremos a correlação entre a criação imagética das séries e as contingências históricas dos períodos em que elas foram urdidas. Comecemos com as séries dos anos 1610. Após a retomada espanhola da cidade de Antuérpia, centro comercial e financeiro de grande expressão no cenário europeu, metade de sua população, identificada com a causa protestante, migrou para os Países Baixos do norte. Isso significou que, ao longo dos últimos anos do século XVI, 40 mil cidadãos de Antuérpia se juntaram a, pelo menos, mais outros 100 mil flamengos e brabanteses, na sua maioria, numa onda migratória que marcou decisivamente a sociedade e os rumos da revolta ao norte dos rios Reno, Mosa e Escalda.6 A maioria desse fluxo migratório dirigiu-se para Amsterdã, contribuindo, com o estabelecimento de capitais e redes de contatos, para a consolidação dessa cidade como a sucessora de Antuérpia no comercio e nas finanças, tornando-se já em fins dos 1590 no centro de uma nova economia-mundo. Entretanto, parte dessa corrente dirigiu-se para as cidades fabris de Leiden e Haarlem. Foi nessa última que vários artistas gráficos se instalaram, levando não só toda uma tradição pictórica, associada 5 Cf. PRICE, J. L. Holland and the Dutch republic in the seventeenth century. The politics of particularism. Oxford: Clarendon Press, 1994. 6 Cf. ISRAEL, Jonathan I. The Dutch Republic. Its Rise, Greatness and Fall, 1477-1806. Oxford: Oxford University Press, 1995. ISBN 978-85-61586-70-5 266 IV Encontro Internacional de História Colonial a uma linguagem visual considerada “realista” (naer ‘t leven), como também os objetivos de constituir um mercado editorial sólido no norte.7 Assim, teóricos, como Karel van Mander, e artistas, como Hendrick Goltzius, de origem flamenga, contribuíram para tornar a Guilda de São Lucas, em Haarlem, o cerne de uma escola de representação imagética de paisagem. Não foi coincidência que ainda no início do século, em 1603, Goltzius compôs desenhos com vistas panorâmicas da região de Haarlem. Tidas como as inauguradoras da paisagem “realista” holandesa,8 essas composições aliavam os temas paisagísticos a um modo de construir a espacialidade figurativa de forma que o espectador pudesse a associar com o aspecto visível da localidade representada. No ano seguinte, em 1604, Karel van Mander publicou seu Schilder-boeck [livro do pintor], compilação de preceitos teóricos e história de vidas dos artistas neerlandeses que acabaria por se tornar o primeiro cânone da arte neerlandesa do século XVII. Nele, Van Mander incentivava os jovens artistas, sobretudo interessados em paisagens, a acordar com a aurora e cultivar passeios matinais para tomar esboços no campo, ao vivo, para dispor de ideias com as quais executar as composições depois, já de volta ao estúdio.9 Apesar de Van Mander ter feito a distinção entre, de um lado, uma paisagem de exortação poética não necessariamente associada a representação de lugar, e, de outro, uma paisagem estreitamente vinculada à tarefa visual de fazer ver localidades específicas, é indubitável que ambas as linguagens visuais foram empregadas quando da necessidade de recorrer à produção de imagens para a construção das identidades.10 É já um lugar-comum na historiografia, sobretudo depois de Simon Schama, destacar o fato de que a necessidade de criação de mediações simbólicas - como a identificação de lugares comunais através de sentimentos urdidos como pátrios - e sua correlata dimensão ideológica para a construção de um novo Estado, foi uma consequência da revolta e da resultante ruptura com a soberania Habsburg; e não o 7 Cf. GIBSON, Walter. Pleasant Places: the rustic landscape from Bruegel to Ruisdael. Berkeley: University of California Press, 2000. 8 Cf. Catálogo de Exposição. Dutch Landscape: The Early Years: Haarlem and Amsterdam, 1590-1650. Curadoria de Christopher Brown. London: The National Gallery Publications, 1986. 9 Sobre a tradução do latim original para a língua inglesa do Capítulo VIII do Livro Primeiro do Schilder-boeck, sobre a pintura de paisagem, cf. Idem. Sobre a importância para que o Schilder-boeck viesse a constituir parte dos cânones da arte neerlandesa de princípios do século XVII, cf. MELION, Walter S. Shaping the Netherlandish Canon. Karel van Mander’s Schilder-Boeck. Chicago: The University of Chicago Press, 1991. 10 Cf. MELION. Ibidem.; e LEVESQUE, Catherine. Journey through landscape in seventeenth-century Holland: the Haarlem print series and Dutch identity. University Park. Pennsylvania: The Pennsylvania State University Press, 1994. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 267 contrário.11 Esse processo, já iniciado antes mesmo do início do século XVII, tomou mais corpo, engajando a sociedade e seus artífices, durante os anos da Trégua dos Doze Anos, de 1609 a 1621. Pausado o conflito com o inimigo estrangeiro, os neerlandeses se viram diante da tarefa de, diante do “espelho do tempo”, se perguntar “quem eram”, “de onde vinham” e “para onde iriam”. A produção de imagens, sobretudo a paisagística e a cartográfica, tornou-se o lugar privilegiado para essa construção simbólica.12 Assim, ainda em 1607, Claes Jansz. Visscher compôs alguns desenhos que retomam a linguagem visual dos desenhos de Goltzius, mas em outra escala de representação da paisagem observada: ao invés da distância panorâmica, Visscher escolheu o close up de um aspecto de um caminho em curva, com casas e árvores ao lado. A composição foi retomada posteriormente, entre os anos de 1612-13, para integrar a série de impressos Plaisante Plaetsen. Algumas figuras humanas foram adicionadas e uma legenda ajudava o espectador a situar a localidade: Aende Wegh na Leiden [no caminho para Leiden].13 No mesmo ano de 1607, Karel van Mander pintou uma paisagem que, embora sem ser representação topográfica, trazia no centro do plano médio uma alusão à passagem bíblica da adoração do bezerro de ouro.14 Eram duas maneiras distintas de relacionar a criação de imagens de paisagem às circunstâncias históricas da construção identitária. De um lado, Van Mander, ao fazer uso de uma alegorização da paisagem política, deixava ver uma crítica ao grupo social que, preocupado com a lucratividade comercial, apoiava Oldenbarneveld – o líder civil da república depois da morte de Guilherme de Orange – a fechar as negociações da trégua com os papistas espanhóis. De outro, Visscher usava a estratégia de representação topográfica a fim de construir uma imagem de identificação com os lugares pátrios. Examinemos mais detalhadamente o caso do último, que está mais diretamente ligado ao nosso próprio objeto de estudo aqui nesta investigação. A série de Visscher, Plaisante Plaetsen, é composta por doze páginas impressas, sendo a primeira para a página título e as onze subsequentes contendo vistas de localidades no 11 SCHAMA, Simon. O desconforto da riqueza: A cultura holandesa na época de ouro, uma interpretação. [1987] São Paulo: Cia. das Letras, 1992. 12 Cf. LEVESQUE. Journey through landscape in seventeenth-century Holland…; e ADAMS, Ann Jensen. Competing Communities in the ‘Great Bog of Europe’: Identity and Seventeenth-Century Dutch Landscape Painting. In: MITCHELL, W. J. T. (org.). Landscape and Power. Chicago: The University of Chicago Press, 1994, p. 35-64. 13 Cf. LEVESQUE. Journey through landscape in seventeenth-century Holland…; e Catálogo de Exposição. Dawn of the Golden Age. Northern Netherlandish Art, 1580-1620. Curadoria de Ger Luijten et al. Amsterdam/Zwolle: Rijksmuseum/Waanders Uitgevers, 1994. 14 Cf. MELION. Shaping the Netherlandish Canon… ISBN 978-85-61586-70-5 268 IV Encontro Internacional de História Colonial entorno da cidade de Haarlem. Assim, surgem cenas como a de pescadores à beira mar em Zantvoort; viajantes pelo caminho para Leiden; carroças transportando produtos por caminhos próximos a estalagens; trabalhadores nos campos de branqueamento de tecidos nas dunas próximas a Haarlem; e, por último, trigais nas proximidades das ruínas da Huis te Kleef.15 Catherine Levesque chamou a atenção para o fato de que há uma dupla operação discursiva associada à criação dessa identificação das localidades representadas a lugares pátrios. Tratava-se de construir uma representação de topografia ao evocar, através dessa linguagem visual do “realismo”, os topoi discursivos de paz, trabalho e prosperidade. Por outro lado, essa constituição imagética da paisagem se fundamentava como representação de lugares pátrios ao fazer também referência à história recente da revolta contra os espanhóis. Como o castelo Huis te Kleef foi usado pelos espanhóis como sede e quartel militar durante as operações do cerco a Haarlem em 1573, na interpretação dessa autora, tratou-se da concepção de uma retórica visual de persuasão com o fim pedagógico de alertar a nova geração, que via e se identificava com a paisagem pátria de abundância, para o fato de que essa paz havia sido conquistada com o sangue da geração passada. E, nesse sentido, o lembrete histórico servia como admoestação para o futuro: a paz próspera só poderia continuar existindo mediante uma paz vigilante.16 Destaquemos aqui dois aspectos dessa construção de sentido histórico, pelos contemporâneos neerlandeses de início do século XVII, para os eventos em curso. O primeiro deles, e o mais circunstancial, foi o de chamar a atenção para o debate político em torno do futuro da trégua: se se haveria de conduzir as negociações aos termos de uma paz duradoura; ou se retomariam as hostilidades contra o inimigo, retomando a guerra. E um dos problemas cruciais aqui foi exatamente o das fronteiras. Os imigrados, e parte da sociedade do norte, queriam a inclusão das províncias sulistas no interior da soberania da república. O que implica que havia um grupo, relativamente numeroso, descontente com a decisão política da assinatura da trégua com a Espanha. Daí porque a cartografia do período também se tornou palco de embate dessa definição de uma territorialidade no interior da paisagem política.17 Mapas murais eram confeccionados para fazer ver a totalidade das Dezessete Províncias dos Países 15 Para as referências iconográficas completas, cf. Catálogo de Exposição. Dawn of the Golden Age…; e DE GROOT, Irene. Landscape Etchings by the Dutch masters of the seventeenth century. The Hague: Lummus Nederland B.V., 1954-1979. 16 Cf. LEVESQUE. Journey through landscape in seventeenth-century Holland… 17 Sobre esse aspecto, cf. SCHAMA. O desconforto da riqueza…; LEVESQUE. Journey through landscape in seventeenth-century Holland…; e ADAMS. Competing Communities in the ‘Great Bog of Europe’: Identity and Seventeenth-Century Dutch Landscape Painting… ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 269 Baixos, inclusive em arranjos próprios dos mesmos elementos iconográficos e escritos de que se compunham as paisagens. Assim, era comum que em torno da representação cartográfica central viessem dispostas vistas topográficas, tipos humanos representando as populações locais de cada província, cartuchos decorativos com alegorias e textos contendo narrativas com alusões históricas.18 Foi o caso de mapas elaborados por Pieter van der Keere e Abraham Goos. E aqui, novamente, Claes Jansz. Visscher teve participação importante, pois sua gráfica e editora, à Kalverstraat, bem no coração de Amsterdã, tornou-se um centro de publicações cartográficas. E, vale a pena lembrar, também de impressos paisagísticos.19 O que nos traz ao segundo aspecto dessa construção de sentido histórico para o problema da definição da paisagem política: não somente as fronteiras militares, mas a natureza do Estado e de sua relação com a sociedade no interior dessas mesmas fronteiras. Ou seja, aquilo que Simon Schama se referiu como a Geografia Moral. Nesse sentido, se, por um lado, o período da Trégua dos Doze Anos aliviou as pressões externas às fronteiras; por outro, foi uma época de tensão e ansiedade internas. As divergências religiosas que se iniciaram em torno do debate teológico no interior da Universidade de Leiden terminaram por se associar a questões ideológicas e políticas. O que começou como divergência nos púlpitos terminou como confrontos armados nos anos de 1616 a 1618. De um lado, os seguidores de Jacobus Arminius defendiam uma visão mais humanista e heterodoxa da doutrina de Calvino, aproximando-se, pela aceitação da ideia de que a salvação era para todos. Havia aí, então, um lugar central para a sugestão de que o cristão deveria se diferenciar por condutas morais, aproximando assim os “remonstrantes” de outros grupos confessionais, como menonitas, anabatistas e mesmo dos católicos. De outro, os seguidores de Frans Gomarius contra-atacavam com uma veemente defesa da teologia da predestinação. A implicação ideológica de tal desavença tornou-se também política quando entrou em debate a questão da natureza da relação entre a Igreja Reformada Neerlandesa e o Estado que se criava então. Novamente as trincheiras se ergueram: de um lado, os arminianos defendiam preceitos espirituais mais brandos, desde que a instituição religiosa estivesse mais submetida ao Estado; e, 18 Para uma descrição formal dos mapas, cf. WELU, James A. The Sources and Development of Cartographic Ornamentation in the Netherlands. In: WOODWARD, David. Art and Cartography. Six Historical Essays. Chicago: The University of Chicago Press, 1987. Para uma interpretação dos mesmos, cf. o capítulo “O impulso cartográfico na arte holandesa” em ALPERS, Svetlana. A Arte de Descrever: A Arte Holandesa no Século XVII. São Paulo: Edusp, 1999. 19 Cf. GIBSON. Pleasant Places… ISBN 978-85-61586-70-5 270 IV Encontro Internacional de História Colonial do outro lado, os gomaristas vociferavam em favor da autonomia da Igreja desde que sob as bases de uma teologia socialmente mais rígida.20 Essa clivagem religiosa amplificou uma heterogeneidade social e cultural, dificultando, embora ao mesmo tempo tornando mais ainda necessária, a construção simbólica das identidades. Nesse sentido, a cartografia e a paisagística seriam não só uma iconografia útil em representar o corpo político sem aludir a cabeças-de-estado que não condiziam com uma república oligárquica apoiada na consulta e no consenso como forma de respeitar as diversas comunidades em jogo; mas também foram tipos de repertórios imagéticos que permitiram a construção de valores e sentimentos comuns a essa variedade cultural. De um lado ou de outro da clivagem religiosa, ou da ideológica, fossem adeptos ou críticos da paz com os espanhóis, muito provavelmente todos se veriam identificados com suas comunidades civis, sendo o burgo associado à ideia de gemeenteschap [comunidade cívica]. Assim, enquanto as vistas nas séries paisagísticas constituíam de perto essa recepção através da construção do sentimento pátrio pela identificação com o lugar da comunidade civil, a inclusão das vistas das principais cidades provinciais nos mapas murais que representavam a proposta da unificação política era já a fabricação de uma comunidade nacional que respeitava a base cívica da soberania provincial. Foi importante que esse processo social de construção das identidades fosse tornado viável por uma circulação das imagens ampla o suficiente para que se atingisse uma classe média de artesãos e/ou mesmo de jornaleiros especializados. Daí que um editor como Claes Jansz. Visscher tenha preferido investir na técnica de impressão por água-forte, e não tanto por gravura.21 Mesmo a gravação de imagens por buril em placas de cobre era mais lenta do que a gravação pela agulha através do processo químico. Assim, com placas mais rapidamente obtidas e de maior versatilidade estilística, Visscher conseguiu colocar no mercado de arte uma produção mais barata e mais impactante.22 Os estereótipos da paisagem pátria, em linguagem realista e articulando topografia à ideia de paz próspera e vigilante, terminaram por constituir o repertório visual de um imaginário popular. Não tardou e, depois de Visscher, outros artistas criaram também suas séries de desenhos paisagísticos ao longo dos anos 1610, como Esaias van den Velde, Willem Buytewech e Jan van de Velde; alguns dos quais tiveram seus desenhos impressos pelo próprio Visscher. Neles, vemos a recorrência de mesmas estratégias visuais para 20 Cf. ISRAEL. The Dutch Republic… Cf. GIBSON. Pleasant Places… 22 Sobre a relação diretamente proporcional entre o tempo de trabalho e o valor final da obra de arte na Holanda do século XVII, cf. BOK, Marten Jan. Pricing the Unpriced: How Dutch Seventeenth-Century Painters determined the Selling Price of their Work. In: NORTH, Michael & ORMROD, David. Art Markets in Europe, 1400-1800. Aldershot: Ashgate, 1998. 21 ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 271 fazer o espectador remeter a imagem representada às localidades observadas. A triangulação entre o observador, o vilarejo de Sparnewoude e a igreja de St. Bavo, em Haarlem, à distância, num desenho de Jan van de Velde, criando o efeito de uma espacialidade figurativa que coincidia com a espacialidade geográfica das localidades em questão, estava novamente a serviço da retórica de persuasão pela lembrança. Sparnewoude, uma pequena localidade, contígua aos pôlderes adjacentes ao dique que levava de Haarlem a Amsterdã, fora rota de passagem das tropas espanholas na década de 1570. O mesmo vilarejo era visto, no entanto, no desenho de 1616, com a tranquilidade dos pastos e das plantações.23 Em todas as séries, abundavam as referências a ruínas, sobrevivências tornadas alegoricamente em testemunhas oculares de uma história patriótica escrita com sangue. Foi mesmo Jan van de Velde quem introduziu, em meio a uma série de impressos que representavam os arredores de Haarlem, uma prancha com o motivo de uma fortaleza na Zelândia. A suposta incongruência geográfica era o deslocar do motivo alegórico da vigilância para sugerir que a paisagem do pôlder fértil e próspero, tornada típica da Holanda, só podia ser pacifica e diligentemente cultivada porque as fronteiras longínquas (ao menos para o viajante da poltrona ao lado da lareira que se aprazia com as vistas impressas) eram vigiadas; constituíam mesmo os baluartes da liberdade adquirida.24 E se esse tipo de estratégia visual, própria da retórica de imagens dispostas como uma série iterativa, era sutil e muitas vezes só indiretamente cognoscível, então era o caso de usar outra estratégia combinada, a de personificações, onde os conteúdos alegorizantes eram mais explícitos. Foi o caso da página-título do Merckt der wysheidt [O Mercado da Sabedoria], de Willem Buytewech. Nela, a topografia cedia espaço a uma paisagem alegórica visualizada como o Hollandse Tuin [Jardim Holandês], alegoria que dramatizava a espacialidade figurativa para designar a paisagem política através do ideário de “Bom governo”. O jardim era delimitado por uma cerca e tinha o Leo Belgicus a defender-lhe o portão. Em seu interior, a Dama da Holanda recebia as mesuras tanto da nobreza local quanto das lideranças civis. Nos canteiros, a laranjeira ostentava um galho partido e outro, verdejante, com duas laranjas, representando o falecido Guilherme I e seus dois filhos, Maurício e Frederik Hendrik, respectivamente. Do lado de fora, com duas caras, e ladeada pelo traiçoeiro jaguar e por tropas armadas, a personificação da Espanha.25 23 Cf. DE GROOT. Landscape Etchings by the Dutch masters of the seventeenth century…; e LEVESQUE. Journey through landscape in seventeenth-century Holland… 24 Cf. LEVESQUE. Journey through landscape in seventeenth-century Holland… 25 Para a descrição e interpretação da página-título de Buytewech, cf. tanto SCHAMA. O desconforto da riqueza…, quanto LEVESQUE. Journey through landscape in seventeenth-century Holland… ISBN 978-85-61586-70-5 272 IV Encontro Internacional de História Colonial Nessa imagem, vemos a tentativa de Buytewech em propor, frente à ameaça constante dos espanhóis, uma conciliação dos diversos grupos em jogo. Assim, para que o jardim continuasse a dar frutos copiosos, era preciso que o Leão Neerlandês unisse as províncias mediante o comum acordo das facções holandesas, sem se esquecer de dar destaque central ao stadhouderschap [lugar-tenência] dos OrangeNassau. Mas não era exatamente isso que se via nos tensos anos de meados dos 1610. Apesar de tentar a conciliação, era óbvio que as posições tanto do líder civil – Oldenbarneveld - quanto de sua base de sustentação política - a plutocracia das cidades mercantis holandesas e sua influência nos Estados da Holanda e, através desses, nos Estados Gerais da República - estavam mais para o lado dos “remonstrantistas” arminianos. Ademais, tentando se desvencilhar das limitações institucionais que Oldenbarneveld lhe impusera, Maurício de Nassau procura então se aliar aos “contra-remonstrantistas” gomarianos, de um lado, e ao apelo popular de outro.26 Assim, o stadholder aglutinou junto à sua causa o assim chamado Partido da Paz, o grupo confessional mais próximo da ortodoxia calvinista e as cidades e as províncias descontentes com a hegemonia das cidades holandesas comerciais, dentre as quais a principal era, de longe, Amsterdã, no interior dos Estados Gerais. Nesse sentido, para combater a força desses grupos através da preponderância econômica e política dos Estados da Holanda, a alternativa política de Maurício de Nassau foi a do discurso de respeito às diferentes comunidades civis e provinciais, propondo o próprio posto de stadholder como mediação para a conciliação desses particularismos, unindo a multifacetada soberania das províncias em torno de sua própria prerrogativa aristocrática. Para tanto, a utilização do repertório de vistas topográficas era crucial. Sem fazer alusão a soberania de um nobre, mas enfatizando o lugar de cada comunidade civil, assim geralmente amalgamando as diferenças no interior das clivagens de interesses diversos, bastava ao orangismo se associar a essa iconografia para se difundir como imagem do país como um todo, sem, no entanto, deixar o rastro de que essa associação era tão construída como qualquer outra. Nesse sentido, artistas como Visscher, sabidamente orangista e notório “contra-remonstrantista” – chegou a ser diácono na Nieuwe Kerk em Amsterdã,27 tiveram um papel social preponderante na criação de produtos culturais que ajudaram a usar a imaginação da paisagística para naturalizar um projeto ideológico de Estado. 26 Cf. ISRAEL. The Dutch Republic…; PRICE. Holland and the Dutch republic in the seventeenth century…; e ROWEN, Herbert H. The Princes of Orange. The stathouders in the Dutch republic. Cambridge: Cambridge University Press, 1988. 27 Sobre a primeira caracterização, cf. LEVESQUE. Journey through landscape in seventeenth-century Holland…, Sobre a segunda, cf. GIBSON. Pleasant Places… ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 273 A associação entre a topografia pátria e o orangismo passou a ser mais reforçada quando da subida ao poder de Maurício de Nassau, com o golpe de estado que pôs fim aos conflitos religiosos nas ruas e depôs o Advogado da Holanda, Oldenbarneveld. Com o novo regime, as vistas topográficas não só continuaram a ser usadas com a identificação pátria como engendraram toda uma nova escola de pintura de paisagem, a partir da década de 1620. Eis a fórmula ideológico-imaginária que inventou o período de ouro dos Países Baixos no século XVII. Iconografia de topografia pátria e o contexto atlântico nos anos 1640 Quando Frans Post viajara para o Brasil, no início de 1637, a linguagem visual do “realismo” já estava associada ao imaginário de topografia pátria na paisagística neerlandesa. A sua primeira tela, Vista de Itamaracá, já apresenta essa característica. E se a segunda tela, O Carro de bois, representa a paisagem pernambucana em alegoria de abundância açucareira sem fazer menção à topografia, tratou-se de uma estratégia que não voltou a se repetir nas telas que ele pintou depois e que chegaram até nosso conhecimento hoje. Todas as cinco, datadas até 1640, foram compostas respeitando o motivo da topografia das localidades oficiais da Nova Holanda.28 A conclusão a que chegamos na nossa tese de doutorado foi a de que se tratou do uso daquele repertório de topografia pátria, como constituído pelas séries de impressos na década de 1610, de forma que Frans Post estava representando, por analogia no tratamento do tema, a Nova Holanda como terra pátria, como parte integrante do corpo político neerlandês. Fazer a paisagem política do Brasil surgir da relação entre vistas topográficas dispostas em série era privilegiar uma maneira de conferir, através do cuidadoso acuro da representação, uma distinção política que João Maurício pôde ter querido e conseguiu fazer vigorar na corte de Vrijburgh; mas que pode não ter encontrado muitos entusiastas na Holanda, sobretudo porque seus conflitos com a WIC se agravaram após 1644, a despeito da iniciativa de mandar publicar o Rerum per octennium in Brasilia. O cuidado em representar cada câmara municipal, com seu brasão, através da topografia paisagística, pode ter sido tomado como uma tentativa de representar a Nova Holanda e suas localidades em equivalência direta entre o modo com que se representava os Países Baixos Unidos e suas localidades, como vimos, sobretudo, no uso de perfis topográficos para representar a base municipal da soberania neerlandesa. Então, a construção de uma imagem oficial da colônia em Frans Post se relacionou a uma questão que passava pelo estatuto político da Nova Holanda e seu relacionamento para com a soberania neerlandesa, tal como nas imagens identitárias 28 Cf. VIEIRA. Topografias Imaginárias… ISBN 978-85-61586-70-5 274 IV Encontro Internacional de História Colonial construídas na e pela cartografia. Mas então, nesse ponto, emerge um problema crucial para essa construção cultural neerlandesa e atlântica: deveria a Nova Holanda ser tratada como parte da soberania ou como conquista ultramarina? A resposta dependia de uma outra: para quem? A estratégia de representar a paisagem típica sem especificidade topográfica correspondia a uma construção imaginária de lugar que operava outra visão política para o território da colônia. A simplificação no emprego dos motivos açucareiros, por exemplo, era uma forma estilizada de evocar o Suikerrijk, um território, literalmente, “rico em açúcar”. No sentido desta análise, essa estratégia visual, relativa ao período da paz nassoviana no Brasil, corresponde ao panorama encontrado na composição de O carro de bois, de 1638, na qual a manipulação do observado extrapolou a conformação visual do sítio de Sirinhaém a fim de fazer sugerir genericamente a paisagem do Suikerrijk. Se essa mesma estratégia não se repetiu ao longo da produção subsequente de Post para João Maurício, o foi como indício de que não se tratava da paisagem política que o governador-general queria para a Nova Holanda, tal como condizente com a ideologia orangista do Stadhouder Frederik Hendrik. Daí porque a prancha do livro de Barlaeus que é correspondente ao tema representa Sirinhaém nos mesmos modos da linguagem visual de vista topográfica. O mesmo não aconteceu nas vinhetas do mapa de 1647, elaborado a partir de levantamento geográfico de Georg Marcgraf e editado por Joan Blaeu, e não por Claes Jansz. Visscher.29 Herman Wätjen argumentou que, quando do debate de se saber o que viria a ser melhor para o negócio do Brasil holandês, se manter o monopólio do comércio à WIC ou se abri-lo à livre iniciativa dos particulares, entre 1637 e 1638, a decisão ocorreu sob o embate de pelo menos duas posturas divergentes. Assim, baseado na observação de Wätjen, podemos afirmar que a Câmara da Zelândia era dominada pelo grupo a favor do monopólio da W.I.C., enquanto a Câmara de Amsterdã, pelos grupos em prol do livre comércio.30 Apesar de, por um lado, Wätjen ter afirmado que João Maurício fora “cético” em relação a esse debate; por outro, Jonathan Israel sugeriu que as impressões do governador-general terminaram por pesar a balança em favor do livre comércio.31 Em 1638 ficara decretado que a W.I.C. retinha o monopólio sobre alguns outros 29 Cf. VIEIRA, Daniel de Souza Leão. A Topografia Ausente: A Paisagem Política da Nieuw Holland nas Vinhetas de Frans Post para o Mapa Mural BRASILIA qua parte paret BELGIS, 1643-1647. Clio - Revista de Pesquisa Histórica. Recife: UFPE, n. 29.1, vol. 1, 2011. 30 Cf. WATJEN, Hermann. O Domínio Colonial Holandês no Brasil: um Capítulo da História Colonial do Século XVII [1938]. Recife: CEPE - Companhia. Editora de Pernambuco, 2004. 31 Cf. ISRAEL. Dutch Primacy… ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 275 produtos, mas o açúcar, o produto mais rentável da colônia, esse ficara aberto ao livre comércio. Porém, se João Maurício sublinhou os aspectos do livre comércio que trariam benefícios ao negócio do Brasil (de interesse a ambos os acionistas da WIC e os Estados Gerais), o deve tê-lo feito mais pela necessidade imposta pela situação conjuntural da economia da colônia do que pela convicção de uma política econômica. Detenhamo-nos neste ponto a fim de investigar as implicações políticas que se relacionavam com os dois interesses econômicos em jogo. Ao se ater sobre a questão histórica do debate entre uma posição monopolista e outra, liberalista, por assim dizer, em torno do comércio do açúcar do Brasil holandês, W. J. Van Hoboken afirmou que foram os interesses de Amsterdã que decidiram o sucesso do debate. No entanto, cabe aqui ressaltar que Hoboken havia demonstrado que os interesses no livre comércio estavam relacionados à emergência do partido libertino, que, sendo mais ligado ao republicanismo, propunha a diminuição do papel do stadhouderschap dos Orange no arranjo político das forças na governança. Nesse sentido, o orangismo e o republicanismo, as duas correntes do pensamento político neerlandês do século XVII, poderiam se antagonizar a ponto de trazer “tensões latentes” e “conflitos” que podiam ameaçar o equilíbrio do “comportamento político”; assim como ocorreu em 1650, quando do embate entre o stadhouder e os Estados da Holanda em 1650. Ora, o episódio da tentativa de coup d’état de Willem II em 1650 foi o clímax de um impasse entre as duas posições de que falava J. L. Price; impasse esse que já vinha se agravando desde o começo das negociações que levaram à Paz de Münster, em 1648.32 De fato, a confirmação da paz foi uma vitória dos Estados da Holanda sobre a Casa de Orange. Sobretudo porque a nova situação em relação à política internacional (as negociações de paz com a Espanha apontando para o fim das hostilidades militares) permitiu que os Estados Gerais apoiassem a proposta de diminuição do efetivo militar da República, o que poderia ser uma forma de minar o poder do stadhouder, uma vez que um dos atributos de sua posição de liderança era justamente a função de comando em guerra. Essa mesma manobra, a da diminuição do efetivo das tropas, já tinha sido executada pela WIC após a saída de João Maurício do posto de Governador-General da Nova Holanda, em 1644. Com o stadhouder Frederik Hendrik adoentado, e Willem II ainda apenas tentando ganhar o comando das tropas, em 1645-6, quem “dirigia efetivamente a República” eram os irmãos Bickers, de Amsterdã, líderes que eram do partido da paz e principais membros da plutocracia mercantil.33 Nesse sentido, a feitura das pranchas para o livro de Barlaeus tornou-se, durante os anos de sua feitura, de 1645 a 1647, uma 32 33 Cf. PRICE. Holland and the Dutch republic in the seventeenth century… Cf. ISRAEL. The Dutch Republic… ISBN 978-85-61586-70-5 276 IV Encontro Internacional de História Colonial arena de embate político em prol de Frederik Hendrik. Cabe lembrar que, a essa altura dos acontecimentos, o Orangismo, estava cindido em três, uma vez que à posição conciliatória de Frederik Hendrik, opunham-se os extremos de Willem II, mais a favor do partido da guerra, e de Amalia von Solms, mais adepta do partido da paz.34 Enquanto uma mescla de soberania provincial com prerrogativas de linhagem principesca, a paisagem política proposta pelo discurso orangista-nassoviano para o Brasil implicava a construção de alegorias de prosperidade em termos de vista topográfica. Ao assim fazer, esse discurso operava em três níveis: 1) fazia do particularismo de origem municipal, tão típico da soberania neerlandesa ao século XVII, a base imaginária do corpo político; 2) removia a referência a uma cabeça desse corpo político, a fim de evitar a evocação ao stadhouder como soberano, articulando então as topografias como partes de um todo político que era sugerido pela cartografia do país; e 3) ao propor a aplicação dessas categorias discursivas e imaginárias a fim de elaborar uma geografia do Brasil, incluindo para isso motivos tropicais, estava-se então procedendo a uma assimilação cultural da terra do Brasil ao corpo político neerlandês. Em outras palavras, tratava-se de um projeto colonial. Por outro lado, enquanto proposta republicana pautada nas noções de livre comércio, a paisagem política proposta para o Brasil holandês mantinha os motivos tropicais que aludiam e/ou conotavam a alegoria de prosperidade sem, no entanto, querer precisar inseri-los numa estrutura de iconografia topográfica. Evitando as implicações de inclusão política dessa última, a imagem do Brasil holandês simplificou-se em estereótipo generalizante que exotizou o Outro, fazendo da paisagem não especificamente um corpo político, a Nova Holanda; mas um corpo apolitizado, considerado imaginariamente nos termos de um suikerrijk. Em outras palavras, não constituía um projeto de colonização, mas uma visão que propunha imaginar a terra do Brasil em termos de conquista a uma colônia portuguesa. Nesse sentido, o que se propunha era a manutenção de uma mínima infraestrutura local (embora de relevância geopolítica para todo o Atlântico) que, permitindo a continuidade da produção açucareira por portugueses, permitiria também a manutenção do comércio holandês. Ora, essa proposta republicana e liberal para a paisagem política do Brasil holandês emergiu pela primeira vez na obra de Frans Post na tela O carro de bois, de 1638, ano em que um regime de chuvas benfazejas trouxe uma excelente safra, justamente coincidindo com a promulgação da abertura do comércio do açúcar à livre iniciativa.35 Num contexto tido como promissor, o imaginário da terra abundante foi associado à paisagem ficcionalizada na tela de Post. 34 Ibidem. Sobre os dados acerca das safras, cf. MELLO, Evaldo Cabral de. Olinda Restaurada: Guerra e Açúcar no Nordeste, 1630-1654 [1974]. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998. Sobre a 35 ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 277 Porém, se por um lado João Maurício deixara que os interessados decidissem a sorte do debate em torno do Monopólio vs. Comércio Livre; por outro, afinado com a proposta política do orangismo de Frederik Hendrik, o Governador-General não podia permitir que tal imagem viesse a ser a imagem oficial da Nova Holanda. Daí porque todas as telas subsequentes de Post que chegaram até hoje demonstram um retorno à estruturação imaginária da terra em vistas topográficas. Porém, o contexto histórico mudara em 1647, e em ambas as margens do Atlântico. Com a posição do stadhouder fragilizada, os Bickers de Amsterdã puderam imprimir a paisagem política para o Brasil que interessava ao republicanismo liberal. O partido da paz tornara o projeto colonial de uma geografia neerlandesa para o Brasil em uma imagem estereotipada. Conclusão: a imagem do Outro como representação de si Representar a terra do Brasil através de um repertório de vistas topográficas associada à paisagem política neerlandesa teve, então, como viemos argumento em nossas pesquisas, o efeito de incluir a Nova Holanda no interior da soberania neerlandesa. E que essa construção cultural de sentido histórico foi parte do projeto ideológico de estado proposto pelo orangismo. No entanto, há um duplo desdobramento nessa atitude. O primeiro é o de chamar a atenção para o fato de que o território açucareiro da Nova Holanda seria um novo baluarte na guerra contra os ibéricos. A sua manutenção era a condição para a permanência da prosperidade e da paz doméstica nos Países Baixos. Como se àquele forte em Tholen, representado por Jan van de Velde nos anos 1610, tivesse sido levado agora para os rincões das fronteiras da Nova Holanda, como o Forte Keulen, no Rio Grande, ou o próprio Forte Mauritij no Rio São Francisco. Assim, em plenas negociações com a Espanha, a ideologia orangista ainda se agarrava ao seu lastro: a união e a mitigação das diferenças sob a bandeira da guerra e sob a liderança do príncipe de Orange. Ao mesmo tempo, representar o Brasil dessa maneira era também reforçar o imaginário desse projeto para a própria sociedade neerlandesa. Era manter esse imbricar de interesses provinciais diversos numa síntese entre a elite civil e a pequena nobreza, a ortodoxia calvinista e a heterodoxia dos outros grupos confessionais, todos apoiados no apelo popular do orangismo. Mas o grupo social formado em torno das elites mercantis das cidades holandesas, sobretudo de Amsterdã, ascenderam economicamente a um ponto que lhe era difícil demover a vontade política quando fosse preciso. O desfecho das negociações da paz com a Espanha, a instalação de um governo civil depois da morte relação entre a tela de Frans Post e a safra de 1638, cf. LAGO, Bia e Pedro Corrêa do. Frans Post {1612-1680}. Obra Completa. Catalogue Raisonné. Rio de Janeiro: Capivara, 2006. ISBN 978-85-61586-70-5 IV Encontro Internacional de História Colonial 278 prematura de Willem II e o malogro da guerra atlântica pelo Brasil o demonstram muito bem. • Não se trata aqui de reduzir o fenômeno cultural da fabricação da imagem ao determinismo das relações socioeconômicas. Mas, por outro lado, de demostrar que aquela produção não é isenta dessas últimas; não acontece fora delas. Se, por um lado, uma leitura da arte neerlandesa do século XVII em sua relação com a cultura e a sociedade é crucial aqui; por outro, é igualmente importante tomar cuidado com possíveis generalizações, presas fáceis do reducionismo. É preciso cuidado ao estabelecer a correspondência entre as mudanças nas relações sociais e políticas após 1650 e as mudanças de gosto, com suas nítidas implicações de tratamentos figurativos aos motivos pictóricos. Em J. L. Price vemos a ideia de que a pintura neerlandesa – e esse argumento se conforma ao gênero mais popular de pintura que era a paisagística, própria da classe de artesãos que emergiu no início do século XVII, se enfraquece na medida em que a alta burguesia introduz valores neoclássicos estrangeiros.36 Apesar da virada cultural na proposta de abordar a arte neerlandesa nesses termos, esse modelo explicativo concebe o autêntico e o vernáculo como intrinsecamente coincidentes com um generalizante âmbito popular e nacional. A agenda de estudar culturalmente a arte neerlandesa do século XVII pôde ser relativizada e reelaborada na abordagem de Mariët Westermann. Segundo ela, na primeira metade do século, as camadas populares e a burguesia mercante se aproximam entre si e da nobreza orangista, fruto de uma mesma contingência histórica para todos: a guerra de independência ao inimigo comum, o espanhol, e a subsequente tarefa de construir interna e externamente um novo estado. No entanto, depois de 1648, com o fim da guerra com a Espanha, o reconhecimento dos Países Baixos Unidos pela comunidade de estados europeus, e o impressionante crescimento do comércio global neerlandês, a burguesia mercante não precisava mais se ver como par da nobreza ou das camadas mais pobres. Ao contrário, seu papel de liderança pós-1650, com a abolição do stadhouderschap da casa de Orange, tornava necessária essa diferenciação, o que exigia, porém, uma construção identitária mais específica, com a criação de uma imagem própria de seu (novo) mundo social e político.37 36 PRICE, J. L. Culture and Society in the Dutch Republic During the 17th Century. New York: Charles Scribner’s Sons, 1974. 37 WESTERMANN, Mariët. A Worldly Art. The Dutch Republic, 1585-1718. New Haven: Yale University Press, 2007. ISBN 978-85-61586-70-5 Encontros com a história colonial 279 No entanto, esse processo não foi nem de longe homogêneo e dicotômico. A “economia da dádiva”, tida como “aristocrática”, e a “mercadorização” da arte, supostamente “burguesa”, não foram fenômenos culturais isolados e excludentes um do outro, mas algo muito mais complexo. É nesse sentido que devemos considerar a “aristocratização” dos gostos burgueses pós-1650, de que falava Westermann. Mais ainda, é nesse quadro que devemos pensar o fenômeno da disseminação cultural do modelo das Kunst e Wonderkamers, inicialmente relativas à nobreza, e depois estendida às coleções particulares da burguesia mercante nos Países Baixos da segunda metade do século XVII. ISBN 978-85-61586-70-5