2 2 3 FLÁVIA DA COSTA QUEIROZ NÚMEROS RELATIVOS: UMA ANÁLISE DE NATUREZA EPISTEMOLÓGICA DE ALGUNS LIVROS DIDÁTICOS NACIONAIS DO TERCEIRO CICLO DO ENSINO FUNDAMENTAL Monografia apresentada ao Curso de Especialização em Matemática para Professores de Ensino Fundamental e Médio da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do Grau de Especialista. Orientador: Prof . Dr. Wanderley Moura Rezende Niterói 2006 3 4 FLÁVIA DA COSTA QUEIROZ NÚMEROS RELATIVOS: UMA ANÁLISE DE NATUREZA EPISTEMOLÓGICA DE ALGUNS LIVROS DIDÁTICOS NACIONAIS DO TERCEIRO CICLO DO ENSINO FUNDAMENTAL Monografia apresentada ao curso de Especialização em Matemática para Professores de Ensino Fundamental e Médio da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do Grau de Especialista. Aprovada em de 2006. BANCA EXAMINADORA Prof. Dr. Wanderley Moura Rezende – Orientador Universidade Federal Fluminense Profª. Dra. Solimá Gomes Pimentel Universidade Federal Fluminense Profª. Me. Lúcia Maria Aversa Villela Universidade Severino Sombra NITERÓI 2006 4 5 AGRADECIMENTOS A Deus pela vida e proteção e ao Prof. Dr. Wanderley Moura Rezende pelo comprometimento e paciência ao orientar-me neste trabalho. 5 6 SUMÁRIO INTRODUÇÃO 9 CAPÍTULO 1: A história dos números relativos 12 CAPÍTULO 2: Obstáculos epistemológicos relacionados ao conceito de número relativo 2.1. Obstáculos Epistemológicos 2.2. A epistemologia dos números relativos por Georges Glaeser 24 26 CAPÍTULO 3: Análise dos livros didáticos 33 Conclusão 48 Obras citadas 53 Obras consultadas 55 6 7 RESUMO Os Parâmetros Curriculares Nacionais revelam que os resultados do ensino dos números relativos na sexta série do ensino fundamental tem sido bastante insastisfatório. Tempos atrás, o educador matemático francês Georges Glaeser observou, através de uma investigação de natureza histórica e epistemológica, que os matemáticos tiveram dificuldades em compreender as regras dos sinais, principalmente no que diz respeito ao produto de dois números negativos ser um número positivo. Em sua pesquisa, Glaeser nomeou seis obstáculos epistemológicos dos números relativos. Diante deste cenário, optamos por investigar como o tema “número relativo” é abordado em dez livros didáticos nacionais do terceiro ciclo do ensino fundamental, procurando analisar, sobretudo, como os autores dos livros respondem a questão “por que menos vezes menos dá mais”, tendo como referência a pesquisa desenvolvida por Glaeser. Esta monografia está estruturada em três capítulos: um inicial, em que se faz uma breve revisão histórica dos números relativos; um segundo capítulo, em que se desenvolve um estudo dos obstáculos epistemológicos relacionados ao conceito de números relativos tendo como referência o trabalho de Glaeser; no terceiro e último capítulo desenvolvemos a análise dos livros didáticos. Palavras-chave: Números relativos, obstáculos epistemológicos, história da matemática, educação básica, livro didático. 7 8 ABSTRACT The “PCN’s” shows that the teaching of relative numbers in the sexth grade has not reached the expectations. Times ago, the french mathematician educator Georges Glaeser noticed, throughof anahistoric and epistemologic investigation, that the mathematician educators have had difficulties in understanding the signs rules, mainly related to the product of two negative numbers result in a positive number. In his research, Glaeser named these facts, we decided to make a study of the “relative number” and its approach in ten national textbooks of the third cycle of the secondary school, analysing, above all, how the authors of these books answer the question “why minus times minus is igual to plus”, making reference to Glaeser’s research. This monography has three chapters: the first where there is a brief historic review of relative numbers. The second, where there is a study of the epistemologics obstacles related to the concept of relative numbers to be based in Glaeser’s word and the third and last chapter we develop na analysis of the texlbooks. Key words: relative numbers, epistemologics obstacles, history of mathematics, basic education, didatic book. 8 9 INTRODUÇÃO O uso do número é comum em nossas vidas, porém quando nos referimos aos números há uma frase de Wells (1866 - 1946) que define perfeitamente a dificuldade em torno do seu aprendizado, que é “Nada no mundo é tão revoltante como os algarismos. Aparentemente não passam de pequeninos rabiscos negros; mas que golpes terríveis podem nos deferir!” 1 . Neste trabalho buscaremos explicar uma grande descoberta humana em relação aos números, que é a regra dos sinais dos números relativos, “o porquê que menos vezes menos é igual a mais”. Este tema, no ensino básico, se resume às vezes apenas à memorização de “regras” para efetuar operações matemáticas. No entanto, uma grande quantidade de anos, e mesmo de séculos, foi necessária para justificar todo o seu entendimento. Vários matemáticos revelaram em seus textos incompreensão a respeito dos números relativos. D’Alembert, por exemplo, escreveu um artigo intitulado “Negativo”, onde mostrava-se confuso em relação ao conceito de número negativo: “(...) dizer que as quantidades negativas estão abaixo do nada é afirmar uma coisa que não se pode conceber (...)”. Assim como D’Alembert, tantos outros célebres matemáticos tiveram dificuldades no uso dos números relativos. Tal fato é evidenciado no artigo “Epistemologia dos Números Relativos” (Traduzido e publicado no boletim GEPEM, nº 17, 1969) do professor e historiador Georges Glaeser. Neste trabalho o educador matemático identificou seis obstáculos epistemológicos relacionados ao conceito de número relativo. Ao fazer isto, Glaeser recupera, tal e como sugere o epistemólogo Gaston Bachelard (1996), o verdadeiro espírito do epistemólogo que é o de estudar nas sínteses progressivas das ciências as dificuldades 9 10 intrínsecas ao conhecimento, determinando, ou melhor, tecendo a rede de significações que caracteriza e dá sentido ao mesmo. Segundo Bachelard (1996), “para um espírito científico, todo conhecimento é uma resposta a uma questão. Se não pode haver questão, não pode haver conhecimento científico. Nada é natural. Nada é dado. Tudo é construído”. Por outro lado, observa-se que, curiosamente, as dificuldades encontradas no decorrer da história quanto à compreensão dos números relativos repetem-se em sala de aula quando da introdução desses números na sexta série do Ensino Fundamental. Muitos são os professores e pesquisadores que têm discutido e apresentado novas metodologias que possam levar os alunos a compreender e utilizar números negativos e suas operações com facilidade. Como exemplo, podemos citar o professor Baldino (1990) que, em seu texto sobre a epistemologia dos números relativos, faz referência a três jogos a fim de facilitar a aprendizagem dos alunos. Os Parâmetros Curriculares Nacionais ratificam essa dificuldade, segundo os PCN’s o ensino dos números relativos costuma ser cercado de dificuldades, e os resultados, no que se refere à sua aprendizagem ao longo do Ensino Fundamental, tem sido bastante insatisfatórios. Os PCN’s alertam que a ênfase na memorização de regras para efetuar cálculos, geralmente descontextualizados, costuma ser a tônica da abordagem dada aos números no terceiro e quarto ciclos. Como decorrência disso é que muitos alunos não chegam a reconhecer os números relativos como extensão dos naturais e apesar de memorizarem as regras de cálculo, não as conseguem aplicar adequadamente, por não terem desenvolvido uma maior compreensão do que seja o número negativo. E aí surge uma questão: Como pode uma criança, conceber algo que seja menor que o nada, e, além disso, achar natural que o produto de duas coisas que são menores que o nada ser maior que o próprio nada? Diante deste cenário, optamos por investigar como o tema “número relativo” é abordado nos livros didáticos. Ou seja, Como os autores dos livros didáticos explicam o porquê que “menos vezes menos é igual a mais”. 1 apud Tahan, 1965. 10 11 A fim de analisar a compreensão dos números relativos e mais especificamente “o porquê que menos vezes menos é igual a mais” desenvolvemos esta monografia em três capítulos. No primeiro capítulo fizemos uma breve revisão histórica dos números relativos. No segundo desenvolvemos um estudo dos obstáculos epistemológicos relacionados ao conceito de número relativo tendo como referência o trabalho de Glaeser e por fim no último capítulo apresentamos o resultado da nossa pesquisa. 11 12 Capítulo I A história dos números relativos Ao que parece os números negativos surgiram pela primeira vez na China antiga. Os chineses calculavam com duas coleções de barras – vermelha para os números positivos e preta para os números negativos. Contudo, não aceitavam a idéia de um número negativo poder ser solução de uma equação. Sabe-se que outros povos do Oriente tinham conhecimento dos números negativos. Os matemáticos indianos, por exemplo, descobriram os números negativos quando tentavam formular um algoritmo para a resolução de equações quadráticas. As regras sobre grandezas eram já conhecidas através dos teoremas gregos sobre subtração, como por exemplo: (a – b )( c – d ) = ac + bd – ad – bc, mas os hindus converteram-na em regras numéricas sobre os números negativos e positivos. Na obra de Brahmagupta ( 628 d.C aproximadamente ), encontra-se pela primeira vez a aritmética sistematizada dos números negativos. A origem da regra dos sinais é atribuída entretanto a Diofantes ( fim do século III d.C. ) por diversos autores como Boyer ( 1996 ), Glaeser ( 1969 ) e Talavera ( 2001 ). No início do livro I da sua aritmética o matemático grego faz referência ao desenvolvimento do produto de duas diferenças, escrevendo: “ O que está em falta multiplicado pelo que está em falta dá o que é positivo; enquanto que o que está em falta multiplicado pelo que é positivo, dá o que está em falta”. (Diofanto apud Glaeser, 1969, p.47 ). 12 13 A aceitação dos números negativos bem como as operações com estes tipos de números foram lentas e bastante polêmicas. Os algebristas árabes, por exemplo, só consideravam raízes positivas, o mesmo ocorrendo entre os matemáticos da Europa Medieval, como Fibonacci. A visão puramente geométrica ( multiplicação ) e comercial ( dívidas e bens ) influenciaram por séculos muitos dos célebres matemáticos. Um exemplo, é a obra de Nicolas Chuquet ( 1445 – 1500 ) denominada “Triparty” ( 1484 ) onde aceita os números negativos como representação de dívida e rejeita-os, em alguns casos, nas soluções negativas de equações. Nicolas Chuquet introduziu o expoente negativo e uma extensiva discussão de equações que, ocasionalmente, admitem soluções negativas. Além disso, define número assim: “Número, na medida em que ele é expediente de nossos propósitos, é tomado aqui num sentido geral, não somente como coisa, que é a coleção de várias unidades, mas também é 1 ou parte e partes de 1, tal como qualquer fração. Todo número, qualquer que ele seja, é compreendido e interpretado em muitos caminhos. (Chuquet apud Nepomuceno, 1999). O matemático Stifel, no início do século XVI, mostrou que conhecia profundamente as propriedades dos números negativos, os quais denominou “números absurdos”. Chegou a imaginar os expoentes negativos, sem contudo dispor de nossa notação atual, mas persistiu em negligenciar as raízes negativas das equações. Os algebristas italianos Cardano ( 1501–1576 ), Scipione del Ferro ( 1465 – 1526 ) e Tartaglia ( 1500 – 1557 ) que tanto contribuíram para o estudo dos métodos de evolução de equações do terceiro e quarto graus evitaram os negativos como coeficientes de equações algébricas. Este processo que renuncia a utilização dos números negativos foi caracterizado por Glaeser ( 1969 ) como um sintoma de evitação. O matemático Stevin ( 1548 – 1620 ) aceita números negativos como raízes e coeficientes de equações, expressa número como aquilo pelo qual explica quantidade de alguma coisa e proclama: “Concluímos, pois, que não existem números absurdos, irracionais, 13 14 irregulares, inexplicáveis, ou surdos; e sim, que, entre eles ( os números ) há uma tal excelência e coerência, que temos meios de medir a noite e o dia, em sua admirável perfeição”. Contudo não afirma nada sobre a existência do número negativo como símbolo de quantidade. Stevin também faz a seguinte proposição : As raízes negativas das equações são as raízes positivas da transformada em – x ( sintoma de evitação ) e apresenta uma demonstração do produto de duas diferenças, dizendo: “ Mais multiplicado por mais dá produto mais, e menos multiplicado por menos, dá produto mais, e mais multiplicado por menos ou menos multiplicado por mais, dá produto menos”. ( Stevin apud Glaeser , 1969, p. 47 ). Abaixo aparece a explicação 2 de Stevin para este resultado: “Seja 8 – 5 multiplicado por 9 – 7, deste modo: - 7 vezes –5 faz +35 ( + 35, porque, como diz o teorema, - por -, faz + ). Depois –7 vezes 8 faz – 56 ( -56, porque, como está dito no teorema, - por +, faz -). E similarmente seja 8 – 5 multiplicado pelo 9, e darão produtos 72 – 45; depois juntem + 72 + 35, fazem 107. Depois juntem os –56 – 45, fazem –101; e subtraído o 101 de 107 resta 6, para produto de tal multiplicação. Da qual a disposição dos caracteres da operação é este: 8 5 9 - - 56 72 7 35 -45 6 Demonstração: O multiplicador 9 – 7 vale 2; mas multiplicando 2 por 3, o Produto é 6, logo , o produto acima também é 6, mas o mesmo é obtido por multiplicação, lá onde dissemos que + multiplicado por + , dá produto +, e – por -, dá produto +, e + por -, ou – por +, dá produto -, portanto o teorema é verdadeiro. Stevin apresenta também uma demonstração geométrica deste resultado: D 2 F 7 5 5 10 B 3 5 35 0 6 21 G 3 14 15 A C 7 E Seja AB 8 – 5( a saber AD 8 – DB 5 ). Depois AC 9 – 7( a saber AE 9 – EC 7 ), seu produto será CB; ou ainda de acordo com a multiplicação precedente ED 72 – EF 56 – DG 45 + GF 35, os quais nos mostrarão serem iguais a CB desse modo. Em suma, ED + GF, subtraído de EF e DG, resta CB. Conclusão: Portanto mais multiplicado por mais, dá produto mais. E menos multiplicado por menos, dá produto mais, e mais multiplicado por menos, ou menos multiplicado por mais, dá produto menos; como queríamos demonstrar”. ( Stevin apud Glaeser, 1969, p.48 e 49). No final do século XVII, surgiu a obra de Viéte ( 1540 – 1603 ), que admitia que as expressões literais pudessem tomar valores negativos. No entanto, a álgebra não teria conhecido um tal avanço se esta generalização do número não tivesse sido acompanhada por uma descoberta igualmente fundamental, realizada em 1591 pelo próprio Viéte e aperfeiçoada em 1637 por Descartes: a notação simbólica literal. Com o passar da história, os matemáticos passaram a praticar cada vez melhor o cálculo dos números relativos. No entanto, o seu entendimento ainda deixou a desejar, confundindo inclusive a mente do “pai” da geometria analítica ( René Descartes ). Rene Descartes ( 1596 – 1650 ) dedica um terço de seu livro “Geometria “( 1628 ), à arte de se livrar das raízes falsas ( valor negativo da incógnita da equação ), o que demonstra um outro sintoma de evitação. Descartes também construiu um sistema de coordenadas “cartesianas”, em que considerou separadamente duas semi-retas opostas: as linhas negativas se dirigem em sentido oposto ao das linhas positivas. Além disso, cabe ressaltar que Descartes desenvolveu a curva x3 + y3 = 3axy restrigindo-a apenas ao primeiro quadrante. Tal curva é conhecida, por esta razão, como Folium de Descartes 3 : 2 In ( Glaeser , 1969 ) x3 + y3 = 3axy 15 16 Outro aspecto interessante de se observar é que a criação dos termômetros contribuiram, de certo modo, para a discussão sobre números negativos. Gabriel Fahrenheit ( século XVIII ), por exemplo, criou o primeiro termômetro e tomou como origem de sua escala não o ponto de fusão do gelo, como fizeram Réaumur e Celsius que vieram após ele, mas escolheu a temperatura mais baixa que conhecera: o frio do inverno de 1709. Como segundo ponto fixo tomou a temperatura do corpo humano, dividindo o intervalo correspondente em 100 graus. Seu termômetro foi o primeiro a conter mercúrio como corpo termométrico. Esse mercúrio, anos após seria a causa de grande curiosidade. Um frio na região fez o mercúrio encolher-se na esfera do vidro, descendo abaixo do marco zero da escala, abaixo do começo dela. Fahrenheit foi obrigado a reconhecer a continuação da existência de temperaturas, e defendeu-se criando novas temperaturas: graus de calor e graus de frio. O que caracterizou um sintoma de evitação. Segundo Colin Maclaurin ( 1698 – 1746 ), o uso do sinal negativo, em álgebra, dá origem a numerosas consequências difíceis de admitir, em princípio, e que propiciam idéias aparentemente sem qualquer fundamento real. Maclaurin enuncia a regra dos sinais, dizendo: 3 Folha de Descartes ( A curva de Descartes tem um formato de uma folha ) 16 17 “Poder-se-ia deduzir daí a regra dos sinais tal como se costuma enunciá-la, ou seja, que os sinais iguais nos termos do multiplicador e do multiplicando dão + no produto, e os sinais diferentes dão -. Evitamos esta maneira de apresentar a regra, para poupar aos iniciantes a revoltante expressão – por – dá +, que, todavia, é uma consequência necessária da regra. Pode-se, como fizemos, disfarçá-la, mas não anulá-la, nem contradizê-la; o leitor, sem perceber , observou todo o seu sentido nos exemplos precedentes. Familiarizado com a coisa, como iria perturbar-se com as palavras? Se ainda conserva alguma dúvida, que preste atenção à seguinte demonstração, que ataca diretamente a dificuldade. + a – a = 0, assim, multiplicando + a – a por qualquer quantidade, o produto deve ser 0; se multiplico por n, terei como primeiro termo + na, portanto o segundo será – na, pois é preciso que os dois termos se destruam. Logo sinais diferentes dão – no produto. Se multiplico + a – a por – n, de acordo com o caso precedente, obterei – na como primeiro termos; logo terei + na como segundo, pois é sempre necessário que os dois termos se destruam. Logo – multiplicado por – dá + no produto ”. ( Maclaurin apud Glaeser, 1969, p. 60 e 61 ). Léonard Euler ( 1707 -1783 ), manipulava os números relativos com engenhosidade e arrojo em seus artigos. Em uma de suas obras destinada a principiantes, ( Euler , 1770 ), tentou justificar a regra dos sinais. Sua argumentação, segundo Glaeser ( 1969 ), pode ser dividida em três partes: “1. A multiplicação de uma dívida por um número positivo não apresenta qualquer dificuldade: Três dívidas de a escudos fazem uma dívida de 3a escudos. Logo b x ( - a ) = - ab. 2. Por comutatividade, Euler deduz daí que ( - a ) x b = - ab . 3. Resta determinar o que é ( grifo nosso ) o produto ( - a ) por ( - b ). - É claro, diz Euler, que o valor absoluto é ab. Trata-se, portanto de decidir entre + ab e – ab. Como ( -a ) x b já vale – ab, a única possibilidade restante é de que ( - a ) x ( - b ) = + ab.” ( Euler apud Glaeser , 1969, p. 64 e 65 ). Euler, usa como exemplo de equação, as equações do 1º grau que tenham apenas raízes positivas. Por outro lado, Euler admitiu em seu texto algumas equações quadráticas com raiz negativa, porém não fez nenhum comentário sobre essas raízes negativas. Parece que a compreensão dos números negativos desafiaram às mentes matemáticas mais privilegiadas. Além de Euler, D`Alembert ( 1717 – 1783 ) também demonstra essa incompreensão como podemos perceber no seu texto “Negativo”, publicado na enciclopédia Francesa: 17 18 “ As quantidades negativas são o contrário das positivas: onde termina o positivo, começa o negativo”. Dizer que as quantidades negativas estão abaixo do nada é afirmar uma coisa que não se pode conceber. Os que pretendem que 1 não é comparável a –1 e que a relação ( razão) entre 1 e –1 incidem num duplo erro: 1ºporque, todos os dias, nas operações algébricas, dividimos 1 por –1; 2º - a igualdade do produto –1 por –1, e de +1 por +1 revela que 1 está para –1, assim como –1 está para 1. Considerando a exatidão e a simplicidade das operações algébricas com quantidades negativas, somos levados a crer que a idéia precisa que se deve fazer das quantidades negativas é uma idéia simples, não dedutível, absolutamente, de uma metafísica presumida. Para tentar descobrir a verdadeira noção, deve-se primeiro, notar que as quantidades a que chamamos negativas e que falsamente consideramos como abaixo de zero, são comumente representadas por quantidades reais, como na geometria, onde as linhas negativas só diferem das positivas por sua situação em relação a qualquer linha no ponto comum. Daí, é natural concluir que as quantidades negativas encontradas no cálculo são, de fato, quantidades reais, mas quantidades reais a que se deve associar uma idéia diferente daquela que fazíamos. Imaginemos, por exemplo, que estamos procurando o valor de um número x, que somado a 100 perfaça 50. Pelas regras de álgebra , teremos x + 100 = 50 e x = - 50. Isto mostra que a quantidade x é igual a 50 e que, em vez de ser acrescida a 100, ela deve ser retirada . Enunciaríamos, portanto, o problema desta maneira: encontrar uma quantidade x que, retirada de 100, deixe como resto 50: enunciado assim o problema, teremos 100 – x = 50, e x = 50, e a forma negativa de x não subsistiria mais. Assim, as quantidades negativas, no cálculo, indicam realmente quantidades positivas que supusemos numa falsa posição. O sinal – que encontramos antes de uma quantidade serve para retificar e corrigir um erro que cometemos na hipótese, como o exemplo acima demonstra claramente. Note-se que estamos falando de quantidades negativas isoladas, como –a, outras quantidades a – b, em que b é maior que a; pois, para aquelas em que a – b é positivo, isto é, em que b é menor que a, o sinal não acarreta qualquer dificuldade. Realmente, pois, não existe absolutamente quantidade negativa isolada. –3 tomado abstratamente, não apresenta qualquer idéia ao espírito; mas se digo que um homem deu a outro –3 escudos, isto quer dizer, em linguagem inteligível, que ele lhe tirou 3 escudos. Eis porque o produto de –a por –b dá + ab; pois o fato de que a e b estejam precedidos, por suposição, do sinal -, é uma indicação de que as quantidades a e b estão misturadas e combinadas com outras às quais nós as comparamos, pois se elas fossem consideradas como sozinhas e isoladas, os sinais – de que fossem precedidas nada apresentariam de claro ao espírito. Portanto, essas quantidades – a e – b, só estão precedidas pelo sinal porque há algum erro tácito na hipótese do problema ou da operação; se o problema fosse bem enunciado, essas quantidades a e b deveriam estar com o sinal + e então seu produto seria + ab, o que significa a multiplicação de –a por –b, onde retiramos b vezes a, quantidade negativa – . Ora, pela idéia que demos acima das quantidades negativas, acrescentar ou impor uma quantidade negativa e retirar uma positiva; portanto, pela mesma razão, retirar uma negativa é acrescentar uma positiva; e o enunciado simples e natural do problema deve ser, não de multiplicar –a por –b e, sim, +a por +b, o que dá o produto + ab. Não é possível desenvolver suficientemente esta idéia em uma obra da natureza desta, mas ela é tão simples, que eu duvido que se possa substituí-la por outra mais clara e mais exata; e creio poder assegurar que, se a aplicarmos a todos os problemas que tivermos de resolver onde apareçam quantidades negativas, jamais lhe atribuiremos falhas. De qualquer modo, as regras das operações algébricas sobre as quantidades negativas são admitidas por todo mundo; e geralmente recebidas como exatas quaisquer idéias que, aliás, possamos atribuir a tais quantidades sobre as ordenadas negativas de uma curva e sua situação em relação as ordenadas positivas”. ( D`Alembert apud Glaeser, 1969, p. 73, 74, 75 e 76 ). 18 19 O leitor mais assíduo de D`Alembert foi Lazare Carnot ( 1753 – 1823 ), que foi considerado no seu tempo um dos maiores matemáticos franceses. Antes de prosseguirmos nossa análise crítica convém comentar alguns aspectos do texto de Carnot. Vejamos alguns fragmentos de sua obra: “Para obter realmente uma quantidade negativa isolada, seria preciso retirar uma quantidade efetiva do zero, privar o nada de alguma coisa: operação impossível. Como, portanto, conceber uma quantidade negativa isolada? (...) As noções até agora conhecida das quantidades negativas isoladas se reduzem a duas: aquela de que acabamos de falar, saber que são quantidades menores que zero; e aquela que consiste em dizer que as quantidades negativas têm a mesma natureza que as quantidades positivas, mas tomadas em sentido contrário. D`Alembert destrói ambas as noções, inicialmente ele refuta a primeira com um argumento que me parece irreplicável. Seja, diz ele, esta proporção + 1 : - 1 = - 1 : 1; se a noção combatida fosse exata, isto é, se –1 fosse menor que zero, com mais razão ele seria menor que 1; assim , o segundo termo desta proporção deveria ser menor que –1; e assim –1 seria ao mesmo tempo menor e maior que 1, o que é contraditório. É necessário, diz ele, demonstrar essa posição (quantidades negativas em sentido contrário das positivas), na medida em que ela nem sempre acontece”. (Carnot apud Glaeser,1969, p.79 ). Segue-se, da mesma obra, uma passagem ainda mais espantosa: “Uma multidão de paradoxos, ou antes de palpáveis absurdos resultaria da mesma noção; por exemplo: -3 seria menor que 2; contudo, ( -3 ) 2 seria maior que 22, ou seja, entre duas quantidades diferentes, o quadrado da maior seria menor que o quadrado da menor, o que afronta todas as idéias claras que se poderiam formar sobre a quantidade. Para à Segunda noção, que consiste em dizer que as quantidades negativas só diferem das quantidades positivas por serem tomadas em sentido oposto. Esta idéia é engenhosa, mas não é mais justa que a precedente. De fato, se duas quantidades, uma positiva, outra negativa, sendo ambas reais e não diferindo senão por sua posição, por que a raiz de uma seria uma quantidade imaginária, enquanto a da outra seria efetiva? Por que raiz quadrada de –a não seria tão real quanto raiz quadrada de a? Pode-se conceber uma quantidade efetiva da qual não se possa extrair a raiz quadrada? E de onde proviria o privilégio da primeira em conceder seu sinal ao produto –a x + a ? ” ( Carnot apud Glaeser, 1969 p.80 e 81 ). Em algumas de suas conferências pedagógias, Pierre de Laplace (1749 – 1827 ), outro “gênio da matemática”, manifestou o mesmo embaraço que seus antecessores, dizendo que a teoria dos números relativos não era considerada matéria fácil, disse: “A regra dos sinais apresenta algumas dificuldades: custa conceber que o produto de –a por –b seja o mesmo que a por b. Para tornar sensível esta idéia, observaremos que o produto de –a por +b é –ab ( porque o produto nada mais é que –a repetido tantas vezes quantas são as unidades existentes em b). Observaremos, a seguir, que o produto de –a por b-b é nulo, pois o multiplicador é 19 20 nulo; assim já que o produto de –a por +b é –ab, o produto de –a por –b deve ser de sinal contrário ou igual a +ab para destruí-lo”. (Laplace apud Glaeser, 1969, p. 94 ). Em consequência a obra de Laplace, aparece um comentário de um professor de uma escola politécnica, dizendo: “Toda demonstração de regras sobre as quantidades negativas isoladas só pode ser uma ilusão, pois não faz nenhum sentido aplicável a operações aritméticas efetuadas com coisas que não são números e não tem existência real”. Isto é, o que falta na demonstração de Laplace. Em 1821, Augustin Cauchy ( 1789 – 1857 ) publicou seu curso destinado a escola politécnica. No início, ele fez uma nítida distinção entre os números ( reais positivos ) e quantidades ( números relativos ), onde disse que do mesmo modo que se vê a idéia de número nascer da medida de grandezas, adquire-se a idéia de quantidade ( positiva ou negativa ), se considerarmos cada grandeza de uma espécie dada capaz de servir para o crescimento ou diminuição de outra grandeza fixa da mesma espécie. Para indicar, indicam-se as grandezas que servem para aumentar por números precedidos do sinal +, e as grandezas que servem de diminuição por números precedidos do sinal -. Isto posto, os sinais + ou – colocados antes dos números podem-se comparar, segundo a observação feita, a adjetivos colocados junto a seus substantivos. Designam-se os números precedidos do sinal + pelo nome de quantidades positivas, e os números precedidos do sinal -, pelo nome de quantidades negativas. Aparecem desta forma, uma confusão entre os sinais ( + ou - ) operatórios e predicativos, onde os primeiros designam uma ação ( aumentar, diminuir ) e os segundos qualificam um estado ( positivo , negativo ). 20 21 Cauchy passa a recorrer a uma metáfora ( positivo = aumento ; negativo = diminuir ) e apresenta a multiplicação de um modo formal e passa a operar com símbolos ( formado por um sinal e um valor absoluto ). O matemático francês demonstra a composição apenas para sinais predicativos e depois aplica-a aos sinais operatórios, sem chamar atenção para esse abuso: “Com base nessas convenções, se representamos por A, seja um número, seja uma quantidade qualquer, e se fazemos: a = + A, b = - A, teremos +a = + A, + b = - A, - a = - A, - b = + a Se, nas quatro últimas equações, atribuírmos a a e b seus valores entre parênteses, obtemos as fórmulas: +(+A)=+A, +(-A)= -A -(+A)=-A , - (-A)= +A Em cada uma destas fórmulas, o sinal do segundo membro é o que chamamos de produto dos sinais do primeiro. Multiplicar dois sinais é formar seu produto. Daí, surge a regra dos sinais enunciada do seguinte modo: O produto de dois sinais iguais é sempre positivo e o produto de dois sinais opostos é negativo.”( Cauchy apud Glaeser, 1969, p. 100). Finalmente, às vésperas do século XX, o alemão Herman Hankel publica “Teoria dos sistemas complexos”, tendo o propósito de definir a teoria dos números complexos – um conceito matemático muito mais recente que o de números negativos – consegue em suas demonstrações desvendar por completo algumas dúvidas relacionadas com os números relativos. Hankel afirmava que os números não são descobertos e sim inventados, imaginados. Sob esta linha de raciocínio ele abandonou o ponto de vista “concreto” baseado em exemplos práticos passando a adotar uma perspectiva totalmente diversa e mais “formal”. O matemático propõe estender a multiplicação de R+ a R, respeitando um princípio de permanência. A existência e a unicidade dessa extensão resulta do seguinte teorema: A única multiplicação em R, que estende a multiplicação usual em R+, respeitando a distributividade ( à esquerda e à direita) , está de acordo com a regra dos sinais. 21 22 Uma vez formulado o problema, a demonstração é trivial: 0 = a . 0 = a . ( b + op . b) = ab + a . ( op . b ) 0 = 0 . ( op. B ) = ( op. A ) . ( op. B ) + a . ( op. B ) Donde: ( op.a ) . ( op. B ) = ab. Assim, ao recusar a busca de um bom modelo que justificasse a adição e a multiplicação dos números relativos, Herman Hankel, consegue ultrapassar a barreira de todos os obstáculos 4 dos números relativos. Apesar de todo o estudo voltado para os números relativos, a legitimação dos números relativos poderia ter ocorrido antes, para isso, bastaria que se dispusesse de um bom modelo, familiar à época de modo que fosse possível ilustrar todas as principais propriedades do sistema numérico. Segundo Glaeser ( 1969 ), um modelo eficaz deveria satisfazer às seguintes condições: 1 – Explicar simultaneamente a adição e a multiplicação dos números relativos, bem como as interações dessas operações. 2 – Basear-se em operações internas. 3 – Ser suficientemente familiar aos que ainda ignoravam os números relativos. Observa-se, por exemplo, que o modelo comercial dos ganhos e dívidas é um obstáculo à compreenssão das propriedades multiplicativas. Se considerarmos os números negativos como dívidas, temos que o produto de duas dívidas daria um lucro. A citação de D’ Alembert que nos revela que “é difícil conceber que o produto de dois números negativos é um número positivo” demonstra as dificuldades de alguns matemáticos sobre a compreensão do produto dos números negativos. A demonstração formal sobre a regra dos sinais desenvolvida por alguns matemáticos é que permitiu o avanço dos números relativos. 4 tal tema será desenvolvido no próximo capítulo 22 23 Deste modo, o estudo de alguns matemáticos, desde Diofantes até Hankel, é o que nos permite compreender as dificuldades inerentes ao produto dos números inteiros; isto é, o por quê que menos vezes menos é igual a mais? CAPÍTULO II 23 24 OBSTÁCULOS EPISTEMOLÓGICOS RELACIONADOS AO CONCEITO DE NÚMERO RELATIVO. 2.1- Obstáculos epistemológicos A noção de obstáculo epistemológico desenvolvida por Gaston Bachelard 5 (1884 – 1962) é essencial para o entendimento do processo dinâmico de construção do conhecimento científico. O filósofo francês usou o termo “obstáculos epistemológicos” para referir-se a tudo aquilo que impede, impossibilita o progresso da ciência. Em 1938, Bachelard publica uma de suas obras mais importantes, “A Formação do Espírito Científico”, na qual aborda os mais diversos “obstáculos epistemológicos” que devem ser superados para que se estabeleça e se desenvolva uma mentalidade verdadeiramente científica. Segundo Bachelard, o progresso do conhecimento científico se dá no momento em que este supera obstáculos para romper o seu estado inercial. “... é no próprio ato de conhecer, intimamente, que aparece por uma espécie de necessidade funcional, lentidões e pertubações. É aí que mostraremos as causas da estagnação e mesmo do regresso; é aí que nós revelaremos as causas da inércia, que nós chamamos de obstáculos epistemológicos.” (Bachelard, 1970, p.6) Na visão do filósofo é no ato de conhecer que estamos contextualizando os obstáculos. Não queremos com isso negar a influência dos obstáculos externos, principalmente os fatores históricos e sócio-econômicos, no progresso das ciências. O que queremos, isto sim, é isolar 5 Bachelard nasceu em Bar-sur-Arabe de uma modesta família e após acabar os estudos secundários trabalhou nos correios de Remiremont até 1906. Em 1912 formou-se em licenciatura de matemática, mas tinha pretensão de ser engenheiro de telegrafia. Quando iniciou a I Guerra Mundial foi alistado no exército. Depois da desmobilização, foi nomeado professor de física e química. Porém, a teoria da relatividade deita por terra as suas idéias sobre física, o que o levou a estudar filosofia. Concluiu seu doutorado em 1927, com a tese “ensaio sobre o conhecimento aproximado e estudo sobre a evolução de um problema da física, a propagação térmica dos sólidos” ( a tese é premiada ). 24 25 criticamente essas variáveis para que possamos estudar e encontrar no próprio conhecimento as causas de sua inércia. Para um espírito científico, todo o conhecimento é uma resposta a uma questão. Se não pode haver questão, não pode haver conhecimento científico. Nada é natural. Nada é dado. Tudo é construído”. ( Bachelard, p. 166 ). A noção de obstáculo epistemológico pode ser estudada no desenvolvimento histórico do pensamento científico e na prática educativa. É importante ressaltar que tudo que aparece no pensamento científico está longe de servir efetivamente a evolução desse pensamento. Sendo assim, o epistemólogo tem de fazer uma triagem dos documentos recolhidos pelo historiador. Deve julgá-los do ponto de vista da razão, isto é, o epistemólogo tem de tomar os fatos como idéias num sistema de pensamento. No capítulo I ressaltamos o processo histórico de construção dos números relativos. Na próxima seção apresentaremos e analisaremos os obstáculos epistemológicos dos números relativos, tendo como referência o trabalho do epistemólogo Georges Glaeser. 2.2 – A Epistemologia dos números relativos por Georges Glaeser A construção dos números relativos foi um processo lento, que durou mais de 1500 anos – desde Diofantes (300 d. C.) até Hankel (1867 d. C. ). O professor e historiador Georges Glaeser, da Universidade de Estrasburgo, estudou a construção do conhecimento dos números relativos. O método científico empregado pelo pesquisador foi coletar dados de artigos ou livros já publicados e analisar estas informações. Através destas, chegar a conclusões que levem a avanços e identificação de desafios que ainda 25 26 se opõem à compreensão “completa” do problema em perspectiva. Desta forma, percebe-se os obstáculos que fizeram com que os matemáticos trabalhassem com esse assunto. Tendo como base de estudo a tentativa de identificar os principais obstáculos para o entendimento completo dos números relativos e os sintomas de evitação usados pelos matemáticos para contornar suas inseguranças, o professor Georges Glaeser listou os seis principais obstáculos. • Lista de Obstáculos 1 – Inaptidão para manipular quantidades isoladas. Este obstáculo demonstra a rejeição a quantidade negativas. Diofantes de Alexandria ( fim do século III d.C ) é um exemplo, pois no livro I da sua “Aritmética” não faz qualquer referência aos números negativos isolados. Ele simplesmente enuncia que: “O que está em falta multiplicado pelo que está em falta dá o que é positivo; enquanto que o que está em falta multiplicado pelo que é positivo, dá o que está em falta”. 2 – Dificuldade em dar um sentido a quantidades negativas isoladas. Apesar de muitos matemáticos antigos utilizarem os números negativos em seus cálculos como elementos intermediários destes, demorou muito para que as quantidades negativas adquirissem o status de números. 26 27 Um exemplo, é o matemático Stevin 6 , que ao longo de sua obra, trabalha com os números negativos como artifícios de cálculo. O matemático escreve: “Em vez de dizer diminua 3, diga acrescente –3”. 3 – Dificuldade em unificar a reta numérica. Segundo Glaeser ( 1969 ), este obstáculo se manifesta quando se insiste nas diferenças qualitativas entre as quantidades negativas e os números positivos, ou quando se descreve a reta como uma justaposição de duas semi-retas opostas com sinais heterogêneos, ou quando não se consideram simultaneamente as características dinâmicas e estáticas dos números. Até o século XVII o homem comum teve poucas oportunidades de utilizar os números negativos na sua vida cotidiana. Os comerciantes por exemplo faziam suas contas aonde prevalecia o sistema de créditos e débitos. Este obstáculo aparece claramente nos trabalhos de Colin Maclaurin, que em sua obra “Tratado de Álgebra” ( 1748 ) apresenta as quantidades negativas escrevendo: “Chamam-se quantidades positivas, ou afirmativas, as que são precedidas do sinal +, e negativas, as que são precedidas do sinal - . Para se ter uma idéia clara e exata desses dois tipos de quantidades, deve-se notar que toda quantidade pode entrar num cálculo algébrico, acrescentada, ou subtraída, ou seja, como aumento, ou como diminuição; ora a oposição que se observa entre aumento e diminuição ocorre na comparação das quantidades. Por exemplo: entre o valor do dinheiro devido a um homem, e o do dinheiro que ele deve; entre uma linha traçada à direita, e uma linha traçada à esquerda; entre a elevação sobre o horizonte e o posicionamento abaixo dele. Assim, a quantidade negativa, longe de ser rigorosamente menor que nada, não é menos real na sua espécie do que a positiva, mas é tomada num sentido oposto; segue-se daí que uma quantidade considerada isoladamente não poderia ser negativa, pois ela só o será por comparação; e que, quando a quantidade que chamamos positiva não tem outra que lhe seja oposta, não se poderia dela subtrair outra maior. Por exemplo: seria absurdo querer subtrair uma quantidade maior de matéria, de outra menor”. ( Maclaurin apud Glaeser, 1969, p.60). 6 Capítulo 1 ( página 14 ) 27 28 4 – A ambiguidade dos dois zeros. Durante séculos os matemáticos interpretaram o zero como zero absoluto, isto é, abaixo do qual nada se poderia conceber. Com isso, os números negativos eram considerados “absurdos”. Como exemplo dessa “evitação” dos números negativos podemos citar a escala Kelvin de temperatura que adota como ponto de partida ( 0º K ) o zero absoluto. Contrapondo esta idéia podemos imaginar o zero origem que é apenas um referencial sobre um eixo orientado. 5 – Estagnação no estágio das operações concretas ( em confronto com o estágio das operações formais ). Glaeser define este obstáculo como a dificuldade de afastar-se de um sentido “concreto” atribuído aos seres numéricos. Ou seja, de querer sempre justificar as operações matemáticas com experiências do mundo real. 6 – Desejo de um modelo unificador Este obstáculo indica a intenção de fazer funcionar um “bom” modelo aditivo, igualmente válido para ilustrar o campo multiplicativo, em que esse modelo é inoperante. Como exemplo, podemos citar a frase de Stendhal (1783 – 1843): 28 29 “Multiplicando-se 10000 francos de dívida por 500 francos de dívida, como esse homem possuirá, ou conseguirá obter, uma fortuna de 5000000 de francos?” ( Stendhal, apud Glaeser, p. 46 ) O quadro a seguir construído por Glaeser (1969, p. 42) indica a compreensão adquirida pelos pesquisadores já citados. Apesar da genialidade incontestável a cada um deles, todos com exceção de Hankel, não conseguiram atingir seus objetivos. Por exemplo, podemos observar o caso de Maclaurin, que não conseguiu ultrapassar os obstáculos 3 e 4, que são, respectivamente, a dificuldade em unificar a reta numérica e a ambiguidade dos dois zeros. Obstáculos 1 2 3 4 5 6 Autores Diofantes - 29 30 Simon Stevin René Descartes Colin Maclaurin Leonard Euler Jean D`Alembert Lazare Carnot Pierre de Laplace Augustin Cauchy Herman Hankel + - - - - - + ? - ? + + - - + + + + + ? - - + - - - - - + - - - - - + + + ? - ? + + - - + ? + + + + + + • Simbologia usada no quadro construído por Glaeser: ( + ) : Obstáculo ultrapassado; ( - ) : Apesar de pesquisado, o obstáculo não foi ultrapassado; 30 31 ( ? ) : Não há como informar se o autor conseguiu ultrapassar o obstáculo; ( ) : Não houve tentativa por parte do autor em ultrapassar esse obstáculo. Analisando o quadro de obstáculos construído por Glaeser ( 1969 ), podemos verificar que a superação dos obstáculos não representa uma trajetória crescente e linear. Assim, com base nos dados fornecidos pelo quadro, podemos construir um gráfico que indica o número de obstáculos superados ( eixo vertical ) pelos respectivos matemáticos ( eixo horizontal ) citados por Glaeser . Y Nº de obstáculos superados 6 5 4 3 2 1 0 D I O F A N T O Sec III dc S T E V I N 1548 1620 x D E S C A R T E S M A C L A U R I N 1596 1650 1698 1746 E U L E R 1707 1783 D` A L E M B E R T 1717 1783 C A R N O T 1753 1823 L A P L A C E 1749 1827 C A U C H Y H A N K E L 1789 1857 1839 1873 Matemático (tempo) No próximo capítulo analisaremos estas dificuldades no campo pedagógico, tendo como referência os livros didáticos. Além disso, verificaremos como os autores desses livros demonstram o porquê que o produto de dois números negativos resulta em um número positivo. 31 32 32 33 CAPÍTULO III 3 - ANÁLISE DOS LIVROS DIDÁTICOS Em um país como o Brasil em que a educação não possui o seu valor devido é comum um professor ter uma jornada muito grande de trabalho. Mesmo assim, a maioria destes profissionais não possuem uma condição financeira adequada para investir em materiais didáticos para a melhoria do seu conhecimento, bem como para melhorar sua atuação na sala de aula. Assim, diante deste cenário, o livro didático representa uma boa opção – quando muitas vezes é a única opção - de pesquisa para o professor (e também para os alunos). Por esta razão resolvemos investigar como os autores de livros didáticos nacionais apresentam o conteúdo dos números relativos, em especial “o porquê que o produto de dois números negativos é um número positivo” As obras literárias utilizadas nesta pesquisa possuem demonstrações variadas quanto aos números relativos. Analisamos alguns dos principais livros desde 1978 até 2005. São eles: Matemática conceituação moderna de Marcus Brandão, Matemática de Álvaro Andrini, Matemática de Edwaldo Bianchini , A conquista da matemática de Giovanni Castrucci e Giovanni Jr, Matemática na vida e na escola de Ana Lúcia Bordeaux, Cléa Rubinstein, Elizabeth França, Elizabeth Ogliari e Gilda Portela, Matemática hoje é feita assim de Antônio José Lopes Bigode, Matemática para todos de Imenes e Lellis, Matemática uma aventura do pensamento de oscar Guelli, Tudo é matemática de Dante e Vencendo com a matemática de Miguel Asis Name. 33 34 Antes de apresentarmos os resultados de nossa análise dos livros didáticos, convém observar, a título de curiosidade, uma interpretação inusitada do professor Cristovão Colombo dos Santos revelada pelo saudoso mestre Malba Tahan em sua obra didática da matemática. A regra dos sinais é apresentada pelo professor Cristovão, dentro dos princípios cristãos, da seguinte maneira: Ensina a álgebra que: + por + dá + + por – dá - por + dá - por - dá + Considere que, na primeira coluna vertical o sinal + ( mais ) significa precisamente “ganhar”; o sinal – ( menos ) , “perder”. Considere que, na segunda coluna vertical, o sinal “mais” traduz-se por virtude; O sinal “menos” por vício; na terceira coluna, enfim, o sinal “mais” significa “crescer aos olhos de Deus”; e o sinal “menos” significa “desmerecer aos olhos de Deus”. Dentro dessa interpretação, temos: 1º ) ganhar virtude importa crescer aos olhos de Deus; isto é, “mais” por “mais” dá “mais”; 2º ) ganhar vício, é desmerecer aos olhos de Deus; isto é, “mais” por “menos” dá “menos”; 3º ) perder virtude? Ora, quem perde virtude desmerece aos olhos de Deus; isto é, “menos” por “mais” dá “menos”; 4º ) perder vício importa crescer aos olhos de Deus; isto é, “menos” por “menos” dá “mais”. ( Santos apud Tahan, 1965, p. 221). LIVRO 1 : MATEMÁTICA CONCEITUAÇÃO MODERNA ( Brandão, São Paulo: Editora do Brasil, 1978 ) 34 35 Esta obra literária é composta por 251 páginas com pouquíssimas ilustrações. Isto deve ser explicado pelo fato do livro não ser atual. Os números negativos são apresentados através de um referêncial que são: Temperaturas ( acima do ponto zero e abaixo do ponto zero ). Deste modo, acima do zero nomeou-se positivo, abaixo do zero nomeou-se negativo. As operações dos números relativos são explicadas através de regras sem qualquer demonstração, como exemplo, a regra de multiplicação: 1º ) Efetua-se a multiplicação dos valores absolutos dos fatores; 2º ) Conta-se o número de fatores negativos; se for par o produto será positivo e se ímpar, negativo. LIVRO 2: MATEMÁTICA ( Andrini, São Paulo: Editora do Brasil, 1984) A apresentação dos números negativos é realizada através da operação de subtração, colocando os seguintes exemplos: 5–3=2 9–9=0 3–5=? Para tornar possível a última subtração acima, foi criado o conjunto dos números negativos, diz o autor. A multiplicação dos números negativos é apresentada da seguinte forma: 1º ) Multiplicação de dois números de sinais iguais: ( + 5 ) . ( + 2 ) = + 10 ( - 5 ) . ( - 2 ) = + 10 35 36 Conclusão: Se os fatores tiverem sinais iguais, o produto é positivo. 2º ) Multiplicação de dois números de sinais diferentes. ( +3).(-2 )=-6 ( - 5 ) . ( + 4 ) = - 20 Conclusão: Se os fatores tiverem sinais diferentes, o produto é negativo. Percebe-se que não há nenhuma explicação, seja ela concreta ou formal, o autor simplesmente afirma as regras para a multiplicação dos números relativos. LIVRO 3: MATEMÁTICA ( Bianchini, São Paulo: Editora Moderna, 1986) O autor mostra os números negativos de uma maneira semelhante a já realizada na obra anterior, ou seja, é colocada a seguinte situação: 5–8=? 0–6=? 2–9=? Para resolver essas subtrações, passou-se a considerar os números negativos. A multiplicação dos números negativos, em particular o produto de dois números negativos, é explicada com base na seguinte situação: ( - 3 ) . ( - 5 ) = - ( + 3 ) . ( - 5 ) = - [ 3. ( - 5 ) ] = - [ ( - 5 ) + ( - 5 ) + ( - 5 ) ] = - [ - 15 ] = 15 Como consequência do exemplo citado, é afirmado que “menos vezes menos é igual a mais”. LIVRO 4: A CONQUISTA DA MATEMÁTICA ( Giovanni et tal, São Paulo: FTD, 1998 ) 36 37 Os números positivos e negativos são apresentados no 5º capítulo da obra que contém 10 capítulos através da noção de temperatura. Já no capítulo seguinte estes números são apresentados como conjunto dos números inteiros, onde é formada a reta numérica inteira, o que sugere inicialmente a superação do obstáculo “Dificuldade em unificar a reta numérica” citada no capítulo anterior. As operações de adição e subtração são explicadas através da “reta numérica inteira”. A questão da multiplicação de dois números negativos é analisada conforme o esquema abaixo: “ Considere a tabela de multiplicação: X -4 -3 -2 -1 0 +1 +2 -6 Considerando que: (-6).0=0 (-6).(+1)=-6 X -4 -3 -2 ( - 6 ) . ( + 2 ) = -12, temos: -1 -6 0 +1 +2 0 -6 -12 +6 +6 Observando a linha dos resultados, notamos que cada resultado tem seis unidades a mais que o número à sua direita. Aplicando este fato, vamos preencher os quadrados restantes: X -4 -3 -2 -6 +24 +18 +12 -1 +6 0 0 +1 -6 +2 -12 37 38 Neste caso é concluído que: A multiplicação de dois números inteiros negativos resulta em número inteiro positivo”. ( Giovanni, Castrucci & Giovanni Jr., 1998, p. 55 ) um O autor fez uma extensão de uma tabuada numa tentativa de chegar a formalização. LIVRO 5: MATEMÁTICA NA VIDA E NA ESCOLA ( Bordeaux et al, São Paulo: editora do Brasil, 1999) A obra é composta por duzentos e oitenta e oito páginas com conteúdos e muitas atividades. Os números relativos são apresentados através da noção de saldos positivos e negativos. A adição também é explicada com a noção de saldo. Já a subtração utiliza-se a noção de oposto. A multiplicação é ensinada através de atividades propostas para o aluno, conforme o esquema abaixo: “ Copie as sequências abaixo no caderno, observe-as e descubra os números ocultos. 3.3=9 3 . 5 = 15 -1 -3 -1 2.3=6 -5 2 . 5 = 10 -1 -3 -1 1.3=3 -5 1.5=5 -1 -3 -1 0.3=0 -5 0.5=0 -1 -3 -1 (- 1) . 3 = ? -5 (-1). 5 = -5 -1 -3 -5 (-2). 5 = ? -10 Copie as sequências a seguir no caderno, observe-as e descubra o número oculto em cada uma. 3 . (- 4 ) = -12 38 39 -1 +4 2 . (- 4 ) = -8 -1 +4 1 . (-4 ) = -4 -1 +4 0 . (-4 ) = 0 -1 +4 (-1) . (-4) = ? +4 ” ( Bordeaux, Rubinstein, França, Ogliari & Portela, 2002, p. 160 ). O procedimento adotado pelos autores deste livro didático é similar ao autor do texto analisado anteriormente. Livro 6: MATEMÁTICA HOJE É FEITA ASSIM ( Bigode, são paulo: FTD, 2000 ) O livro possui trezentas e duas páginas de conteúdos variados e diversos exercícios com bastantes ilustrações. Os números relativos são apresentados no oitavo capítulo como números negativos e a explicação inicial para esses números é dada através de saldos bancários e temperaturas. Quanto às operações, a adição é apresentada com base no modelo comercial envolvendo ganho e perda. Enquanto que a subtração é apresentada através da noção de oposto no qual o autor chama de escrita simplificada. A multiplicação dos números inteiros é ensinada com a utilização de barras coloridas ( vermelha e preta ) conforme foi utilizado pelos chineses há muitos anos (como foi visto no primeiro capítulo). A operação foi dividida em quatro casos, da seguinte forma: Primeiro foi atribuído um significado ao primeiro fator da multiplicação. O multiplicador vai indicar quantos grupos de barras vamos acrescer ou subtrair. 39 40 “1º caso: Multiplicação de dois números positivos. ( +2 ) . ( + 3) O multiplicador ( +2 ) é positivo. Devemos, portanto, acrescentar dois grupos de três barras pretas. O resultado é 6 barras pretas, ou seja, ( + 2 ) . ( + 3 ) = + 6 . 2º caso: Multiplicação de um número positivo por um número negativo. (+2).(-3) O multiplicador ( + 2 ) é positivo e o multiplicando ( - 3 ) é negativo. Devemos portanto acrescentar dois grupos de três barras vermelhas. O resultado é 6 barras vermelhas, ou seja, ( + 2 ) . ( - 3 ) = - 6. Para explicar melhor o 3º e 4º caso, foi colocado a seguinte ilustração: Figura 2 3º caso: Multiplicação de um número negativo por um número positivo ( -2 ) . ( + 3 ) 40 41 Como aqui o multiplicador ( -2 ) é negativo, devemos tirar dois grupos de 3 barras pretas. Restarão seis barras vermelhas, logo: ( - 2 ). ( + 3 ) = - 6 4º caso: Multiplicação de dois números negativos (-2).(-3) O multiplicador ( - 2 ) é negativo; isto significa que temos que tirar dois grupos de 3 barras vermelhas pois o multiplicando ( - 3 ) também é negativo. Tirando as 6 barras vermelhas, ficam apenas as 6 barras pretas. Daí, ( - 2 ) . ( - 3 ) = + 6”. ( Bigode, 2000, p. 284 ) LIVRO 7: MATEMÁTICA PARA TODOS ( Imenes et tal, 1ª edição, São Paulo, Scipione, 2002 ) A obra literária é composta por quatorze capítulos e as operações com os números relativos são apresentadas em dois módulos. O primeiro recebe o título de números negativos e contabilidade. Este é iniciado mostrando que os números negativos e os positivos já são conhecidos através das escalas termométricas. A operação de adição é demonstrada usando a idéia de lucro e prejuízo, já a subtração é demonstrada usando a noção de dívida. Em um outro capítulo aparece a multiplicação dos números relativos cujo título é multiplicação de números com sinais. O produto de dois números é mostrado através de um conteúdo de física que é força. Neste caso foi considerado que a multiplicação por um número negativo inverte o sentido da força. Então, multiplicando por –1, obtém-se a força simétrica. Segundo o autor: “Uma multiplicação por –3 dá uma força de sentido oposto com o triplo da intensidade. Vejamos o esquema: 41 42 X(-1) X(-3) Desse modo, multiplicações por números negativos passaram a ter sentido, tornando possível formular regras para multiplicar números negativos e positivos. A seguir, vamos ver como se faz isso. x(3) x(2) x(6) Multiplicar uma força por 3 e, depois, multiplicar essa última por 2, equivale a multiplicar a força inicial por 6. Agora, vamos analisar este caso: X(-6) X(2) x(-3) Multiplicar uma força por 2 e, depois, por –3 é equivalente a multiplicar a força inicial por –6 . Concluímos, então, que ( -3 ) x 2 = - 6. De modo resumido, costumamos dizer: negativo vezes positivo dá negativo. 42 43 Pensando sempre em multiplicar a força por um número e, depois, por outro, também concluímos que: positivo vezes negativo dá negativo. Além disso, já sabemos que positivo vezes positivo dá positivo. Somente nos falta examinar um tipo de multiplicação: aquela em que os dois números são negativos. Observe: X(-2) x(6) x(-3) Daí, ( - 2 ) x ( - 3 ) = 6 Temos, então, a seguinte conclusão surpreendente: Negativo vezes negativo dá positivo”. (Imenes & Lellis, 2002, p. 174). Para demonstrar a multiplicação, o autor fez uma analogia à regra dos sinais com a multiplicação do vetor força por um escalar. Nesta demonstração percebe-se uma semelhança à idéia de Cauchy, que considerou A um número e concluiu: Se a = + A, b = - A, tem-se: +a=+A +b=-A -a= -A -b=+A Para o autor multiplicar por um número positivo o vetor continua no mesmo sentido e multiplicar por um número negativo o vetor muda de sentido. LIVRO 8: TUDO É MATEMÁTICA ( Dante, São Paulo: Ática, 2002 ) 43 44 Assim como apareceu em outros livros já mencionados, os números negativos e positivos são apresentados neste trabalho utilizando o conceito de temperatura. A multiplicação dos números inteiros é ensinada através de atividades propostas como exercícios, porém a multiplicação de dois números negativos é apresentada pela seguinte situação: Figura 3 44 45 Com base no quadro colocado na atividade e nas questões propostas como exercícios é ensinado que “menos vezes menos é igual a mais”. O autor apresenta a regra dos sinais através das regularidades presentes no quadro. LIVRO 9: MATEMÁTICA UMA AVENTURA DO PENSAMENTO ( Guelli, 2º edição, São Paulo : Ática, 2002 ) Os números inteiros, como são considerados nesta obra literária, são apresentados em duas unidades que representa aproximadamente 50% de todo conteúdo da obra. No primeiro momento é trabalhada a noção de números negativos, números positivos, as operações de adição e subtração. Já num segundo momento é explicada a multiplicação com o seguinte discurso: “O produto 4 . 3 expressa uma soma de quatro parcelas iguais a 3: 4 . 3 = 3 + 3 + 3 + 3 = 12 ou uma soma de três parcelas iguais a 4: 4 . 3 = 3 . 4 = 4 + 4 + 4 = 12. O produto 4 . ( - 8 ) pode ser interpretado como uma soma de quatro parcelas iguais a – 8: 4 . ( - 8 ) = ( - 8 ) + ( - 8 ) + ( - 8 ) + ( - 8 ) = - 32. No entanto, os produtos ( - 4 ) . ( + 8 ) e ( - 4 ) . ( - 8 ) nos colocam em dificuldade. Não podemos imaginar menos 4 ou menos 8 celulares. Mas podemos imaginar problemas que dêem sentido a multiplicações como essas. Imagine uma caixa-d’água, com capacidade de 720 ℓ, inicialmente vazia, sendo enchida com uma mangueira que despeja 20ℓ de água por minuto. • Após 36 minutos, + 36, a caixa estará cheia: ( + 20 ). ( + 36 ) = + 720 • Há 18 minutos, -18, faltavam 360ℓ para encher a caixa: ( + 20 ) . ( - 18 ) = - 360 Imagine a mesma caixa-d’água, agora cheia, sendo utilizada para irrigar lavouras. Seis litros de água por minuto estão saindo da caixa: -6. •Após 36 minutos, +36, a caixa terá 216ℓ a menos: ( - 6 ) . ( + 36 ) = - 216 •Há 18 minutos, - 18, havia 108ℓ a mais na caixa: ( - 6 ) . ( - 18 ) = + 108 Os exemplos sugerem as seguintes conclusões: •Se dois números diferentes de 0, a e b, têm o mesmo sinal ( ambos positivos ou ambos negativos ), o produto ab é igual ao produto de seus módulos. (+2).(+3)=2.3=6 45 46 ( - 10 ) . ( - 8 ) = 10 . 8 = 80 •Se dois números diferentes de 0, a e b, têm sinais contrários ( um é positivo e o outro negativo ) , o produto ab é igual ao oposto do produto de seus módulos. ( - 2 ) . ( + 5 ) = - ( 2 . 5 ) = - 10 ( + 4 ) . ( - 9 ) = - ( 4 . 9 ) = - 36”( Guelli, 2002, p. 52 ). Através de um exemplo prático, o autor conclui, mas não justifica o porque que o produto de dois números negativos é um número positivo. Em seguida enuncia o seguinte modelo: Se dois números diferentes de 0, a e b, têm o mesmo sinal, o produto ab é igual ao produto de seus módulos. Se dois números diferentes de 0, a e b, têm sinais contrários, o produto ab é igual ao oposto do produto de seus módulos. LIVRO 10: VENCENDO COM A MATEMÁTICA ( Name, 1º edição, São Paulo: Editora do Brasil, 2005 ) Os números relativos são apresentados no primeiro capítulo como o conjunto dos números inteiros num livro formado por 218 páginas. A idéia de número negativo é apresentada através de algumas situações, tais como falta, temperatura e débito. Em relação as operações de adição e subtração utiliza idéia de perdas, ganhos e o conceito de números opostos. Na multiplicação, a regra dos sinais, é justificada a princípio pela própria definição de multiplicar, ou seja, soma de parcelas iguais. Porém, ao justificar a regra dos sinais para o produto de números negativos, o autor utiliza o conceito de números opostos e a propriedade da multiplicação de números com sinais diferentes. Por exemplo: 46 47 ( - 3 ) . ( - 5 ) = - ( + 3 ) . ( - 5 ) = - ( - 15 ) = 15 Desta forma, fica demonstrado para o autor que o produto de dois números negativos é um número positivo. O autor utiliza-se de um processo formal e prático, muito parecido com as fórmulas de Cauchy, para demonstrar a multiplicação dos números relativos. Diante da dificuldade na aprendizagem da regra dos sinais, em especial “menos vezes menos for igual a mais”, diversos matemáticos desde Diofantes até os dias atuais procuraram desenvolver demonstrações para explicá-la. Observamos no primeiro capítulo e neste algumas dessas tentativas. 47 48 CONCLUSÃO Segundo a história da matemática, a aceitação dos números negativos bem como a compreensão do significado de suas operações foram lentas e bastantes polêmicas, tendo durado um longo período da humanidade cerca de 1500 anos. A origem da “regra dos sinais” para a multiplicação dos números inteiros relativos, conforme relata o matemático e historiador Georges Glaeser, é atribuída a Diofantes. Ao estudar a evolução dos números negativos, Glaeser percebeu a rejeição destes números por parte de alguns matemáticos, denominando esta reticência ao uso dos números negativos de “sintoma de evitação”. Em sua análise percebeu dificuldades que estes matemáticos tinham em explicar o significado da regra dos sinais, principalmente em entender o porquê que “menos vezes menos é igual a mais”. D’Alembert (1717 - 1783), por exemplo, deixa transparecer esta dificuldade quando diz que é difícil conceber que o produto de dois números negativos é igual a um número positivo. Stendhal 7 ( 1783 - 1843 ) vai além, colocando a seguinte questão: “multiplicando-se 10000 francos de dívida por 500 francos de dívida, como esse homem possuirá, ou conseguirá obter, uma fortuna de 5000000 francos?” (Stendhal, apud Glaeser, p.46) Inspirado no método histórico e na teoria de conhecimento de Bachelard, Glaeser determinou seis obstáculos epistemológicos com respeito ao conceito de número relativo. Em sua pesquisa, o epistemólogo francês verificou que somente o matemático Herman Hankel ( 1839 – 1873 ) conseguiu ultrapassar todos os obstáculos. 7 Sthendal, escritor francês, que, em autobiografia, se refere a um episódio de sua meninice, datado de fins do século XVIII, pelo qual se vê que suas dúvidas diante dos números relativos eram essencialmente as mesmas ainda exibidas pelos alunos de hoje e pelo escritor Henri Beyle ( 1783 – 1842 ) que frequentou uma das primeiras instituições em que o ensino da matemática foi ministrado e declara que nem a leitura do manual de Bezout (1772) satisfez sua curiosidade quando tentou compreender a origem da regra dos sinais. Na verdade, seus próprios professores não compreendiam. Para Henri a hipocrisia era impossível em matemática, pois percebeu que ninguém podia explicar como que o produto de dois números negativos poderia dar um número positivo. 48 49 E no campo pedagógico: Será que os textos didáticos produzidos para a jornada de um ano letivo conseguem superar os obstáculos determinados por Glaeser? Será que explicam efetivamente a regra dos sinais? Estas são, certamente, as questões que nortearam a nossa pesquisa. No intuito de investigar como os livros didáticos nacionais abordam o ensino de número relativo, analisamos dez livros de 1978 à 2005. Na maioria dos livros os números negativos são apresentados através dos conceitos de dívida e de temperatura. Esta metáfora do número relativo também é usada em alguns livros para explicar a operação de adição e subtração. Porém observamos distintas argumentações quanto às regras dos sinais, algumas mais “concretas” e outras mais “formais” tal e como aconteceu com os matemáticos pesquisados por Glaeser. Assim, a fim de ilustrar resumidamente os resultados de nossa pesquisa no que se refere aos obstáculos epistemológicos determinados por Glaeser, fizemos um quadro semelhante àquele construído pelo pesquisador, onde a primeira coluna representa os autores dos livros didáticos pesquisados e as outras colunas representam os obstáculos epistemológicos citados por Glaeser. OBSTÁCULOS 1 2 3 4 5 6 MARCIUS BRANDÃO + + + + ÁLVARO ANDRINI + + + + BIANCHINI + + + + +/- + GIOVANNE + + + + +/- + BORDEAUX + + + + +/- + BIGODE + + + + - + IMENES + + + + - + DANTE + + + + +/- + OSCAR GUELLI + + + + - + ASSIS NAME + + + + +/- + AUTORES 49 50 Simbologia usada no quadro anterior: ( + ): Obstáculo ultrapassado; ( - ) : Apesar de pesquisado, o obstáculo não foi ultrapassado; ( ? ): Não há como informar se o autor conseguiu ultrapassar o obstáculo; ( ): Não houve tentativa pôr parte do autor em ultrapassar esse obstáculo; ( +/- ): Obstáculo ultrapassado parcialmente. Do mesmo modo, podemos, baseando-nos na tabela anterior, construir um gráfico que indica o número de obstáculos superados ( eixo vertical ) pelos respectivos autores ( eixo horizontal ). Y Nº de obstáculos superados 6 5 4 3 2 1 0 B R A N D Ã O A N D R I N I 1978 1984 B I A N C H I N I 1986 G I O V A N N I 1998 B O R D E A U X B I G O D E 2000 I M E N E S 2002 D A N T E 2002 x G U E L L I N A M E 2005 2002 1999 Matemático (tempo) 50 51 Conforme já observado na quase totalidade dos livros investigados, a noção dos números negativos emerge de experiências práticas, como perder no jogo, constatar saldos negativos, observar variações de temperaturas, comparar alturas, altitudes, etc. Tal fato está em consonância com as diretrizes indicadas nos PCN’s. A sugestão do PCN’s é ensinar a multiplicação dos números relativos através de tabelas que implicam em identificar regularidades e estabelecer relações. Por outro lado, para os PCN’s o ensino dos números relativos não deve se apoiar somente em propostas concretas, pois nem sempre essas concretizações explicam os significados das noções envolvidas. É preciso ir um pouco além e possibilitar, pela extensão dos conhecimentos já construídos para os naturais, compreender e justificar algumas das propriedades dos números relativos. Sendo assim, chegamos a uma conclusão que se identifica com a afirmação do matemático francês George Glaeser (1969 ): “ (...) se proclama de bom grado que a matemática deve ser ensinada com base em exemplos concretos. A didática científica se esforça para evidenciar as vantagens e desvantagens de um ensino baseado em exemplos. O estudo histórico (...) mostra precisamente um caso em que uma pedagogia baseada exclusivamente em exemplos concretos é perniciosa. Além disso, uma aprendizagem satisfatória das propriedades aditivas, apoiadas num “bom modelo”, pode criar bloqueios posteriores, quando for o caso de compreender as propriedades multiplicativas (...)” ( p. 121 ) . Em outras palavras: o esclarecimento da questão dos números relativos, deu-se não somente pela superação dos obstáculos epistemológicos, mas essencialmente pelo salto epistemológico do concreto para o formal. Segundo Caraça (1989 ) “as operações sobre números relativos definem-se por extensão imediata das operações com o mesmo nome estudadas no campo real ( ... ) por exemplo, quanto à adição e subtração: (p–q)+(r–s)=p–q+r–s=p+r–q–s=(p+r)–(q+s) ( p – q ) – ( r – s ) = p – q – r + s = p + s – q – r = ( p + s ) – ( q + r ), de onde facilmente se tiram as regras quando algum dos dados seja negativo. Em particular, tem-se a + ( - b ) = a + ( 0 – b ) = a + 0 – b = a – b; a – ( - b ) = a – ( 0 – b ) = a + b – 0 = a + b. Isto é, 51 52 somar um número negativo equivale a subtrair o número positivo com o mesmo módulo; subtrair um número negativo equivale a somar o número positivo com o mesmo módulo”. Porém, quanto a multiplicação, Caraça considera: ( p – q ). ( r – s ) = p . ( r – s ) – q . ( r – s ) = pr – ps – ( qr – qs ) = pr – ps – qr + qs = pr + qs – ps – qr = ( pr + qs ) – ( ps + qr ) e em particular define: (+a).(+b)=(a–0).(b–0)=+a.b (+a).(-b) =(a–0).(0–b)=-a.b (-a).(+b)= (0–a).(b–0)=-a.b (-a).(-b )= (0–a).(0–b)=+a.b Por outro lado, convém ressaltar que ao desenvolver um tratamento exclusivamente formal com os números relativos aos alunos da Sexta série do ensino fundamental, corre-se o risco de reduzir a regra dos sinais a um formalismo vazio, que pode levar a equívocos e ser facilmente esquecido. Deste modo, fica a seguinte pergunta: não estaria o problema da aprendizagem da regra dos sinais dos números relativos na localização prematura deste conteúdo programático na grade curricular oficial do ensino básico de matemática, ou, de outro modo, será que um aluno possui maturidade intelectual suficiente para interpretar questões abstratas tal como “menos vezes menos igual a mais” numa sexta séria do ensino fundamental? Estas questões ficam pra depois, para uma outra monografia, quem sabe? 52 53 BIBLIOGRAFIAS OBRAS CITADAS BACHELARD, G. A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996. BALDINO, R. R. Sobre a epistemologia dos números inteiros. Educação matemática em revista, São Paulo, SP, v.5, p.4-14, 1996. BOYER, C. B. História da matemática: 2º edição. São Paulo: Editora Edgard Blucher, 1996. BRASIL, Parâmetros Curriculares Nacionais, Ministério da Educação e do Desporto, 1997. CARAÇA, B.de J. 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