REFLETINDO SOBRE A VIVÊNCIA DE DISCENTES NO PROCESSO SAÚDE E CIDADANIA: RELATO DE EXPERIÊNCIA Marcela Paulino Moreira da Silva Fernanda Beatriz Batista Lima e Silva Dândara Nayara Azevêdo Dantas Déborah Raquel Carvalho de Oliveira Bertha Cruz Enders INTRODUÇÃO A temática de cidadania tem sido frequentemente debatida em sua relação com a consciência e a expansão dos direitos das pessoas para a consolidação da democracia, tendo a sua conceituação se modificados ao longo do tempo (1). Historicamente, o exercício da cidadania era considerado como um privilégio de poucos, dos nobres e proprietários de terra da época, e esteve fortemente arraigado à noção de direitos, especialmente os direitos políticos (BYDLOWSKI, 2007) (2). Essa concepção de cidadania como sendo regalia de alguns sofreu modificação apesar dos vários problemas ainda existentes, de tal modo que, atualmente, o termo indica igualdade de direitos para todos os indivíduos de determinado espaço. Isso quer dizer que, conceitualmente, não há mais indivíduos excluídos dos direitos de cidadania, não sendo mais necessários pré-requisitos para ser cidadão. Entretanto, o que é visto na prática deste conceito ainda é muito deficiente em vários países, principalmente nos que estão em desenvolvimento, como o Brasil (2). Assim, a discussão da cidadania no país, tem se expandido para a saúde e a educação, campos meio para o seu exercício. Em 1986 realizou-se a VIII Conferência Nacional de Saúde considerada um marco na saúde pública envolvendo um conceito abrangente de saúde, seu reconhecimento como direito de cidadania e dever do Estado e a unificação do sistema. Essas diretrizes envolvem princípios de igualdade e controle social, entre outros, que incentivam o exercício da cidadania e que passaram a fundamentar e orientar as ações no campo da saúde. Contudo, é na educação que a cidadania assume um papel fundamental no desenvolvimento de um país. Embora o processo educacional não seja sinônimo de cidadania, é ele que dissemina instrumentos básicos para o seu exercício, servindo como uma via de constituição da cidadania. A educação tem como finalidade na formação do cidadão contribuir para a construção do desenvolvimento intelectual, aumentando a compreensão do educando para a formação de um indivíduo crítico reflexivo, conhecedor dos seus direitos e deveres agindo como sujeitos ativos dentro da sociedade. Essa concepção está em concordância ao que é estabelecido na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) (2,3). Na formação dos profissionais de saúde, porém, observam-se impasses que dificultam os avanços da cidadania, o que fragiliza o conceito como elemento constituinte do processo educacional (3). Nesse entendimento, a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) buscando por mudanças na formação profissional dos seus graduandos dos diversos cursos de saúde instituiu em 2000 a disciplina Saúde e Cidadania (SACI). Essa disciplina tem o intuito de proporcionar aos alunos dos cursos da saúde, um primeiro contato com os serviços de atenção primária à saúde. Tal atividade é fruto da necessidade do novo paradigma da atenção à saúde, discutido desde a década de 70 com o Movimento da Reforma Sanitária Brasileira, que desta a necessidade de transformar a formação do profissional de saúde. Este trabalho aborda a disciplina enquanto uma experiência de ensino vivenciada no processo de formação. OBJETIVO Relatar a experiência de discentes do curso de graduação na disciplina Saúde e Cidadania (SACI), como processo educacional multiprofissional vivenciado na atenção primária à saúde e as suas contribuições para a formação acadêmica em saúde e cidadania. METODOLOGIA Trata-se de uma reflexão sobre a experiência vivenciada por umas acadêmicas do curso de graduação em enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte na disciplina de Saúde e Cidadania ofertada no 2° período do referido curso. Entende-se reflexão como um movimento de volta do pensamento sobre si mesmo para conhecer-se a si mesmo, para indagar como é possível o próprio pensamento. Sendo assim, a reflexão fornece oportunidades para voltar atrás e rever acontecimentos e práticas, estando associada ao modo como se lida com os problemas da prática, à possibilidade da incerteza, estando aberta a novas hipóteses, dando forma a esses problemas e descobrindo novos caminhos, chegando então às soluções (4). Inicialmente faz-se uma descrição da disciplina enquanto os seus objetivos, posição no Projeto Político do curso, e a forma de sua implementação. Em seguida faz-se uma descrição da experiência das acadêmicas na disciplina. Por ultimo, tecem-se considerações acerca das contribuições para a formação em enfermagem, a partir das reflexões das acadêmicas sobre a experiência. RESULTADOS E DISCUSSÕES Descrição da disciplina Esta Disciplina parte de um programa que integra ações de ensino, pesquisa e extensão e se coloca como iniciativa estruturante no espaço da flexibilização dos Projetos Políticos Pedagógicos dos Cursos da Área da Saúde da UFRN. A SACI contempla as propostas de mudança na formação, configurando-se em um processo de ensino-aprendizagem voltado para o desenvolvimento de habilidades no campo das relações interpessoais, o estímulo ao trabalho em equipe, a articulação ensino-serviçocomunidade; aprendendo a identificar e priorizar problemas de uma dada comunidade; refletindo sobre os princípios e valores, que orientam o aprimoramento do comportamento ético e cidadão. Acrescenta-se ainda a oportunidade de inserção precoce do aluno em cenários de aprendizagens reais e, ainda, oportunizando ao aluno uma visão crítica da realidade (5). A disciplina ao discutir e trabalhar os problemas com a comunidade através de ações de saúde e cidadania tem estimulado a participação não apenas dos alunos e docentes, mas também de profissionais de saúde que integram os serviços de atenção primária a saúde e da sociedade nas atividades planejadas. A disciplina é optativa para alguns cursos da área da saúde, onde o aluno pode integralizá-la como uma atividade complementar de ensino no currículo dos cursos de graduação existentes no Centro de Ciências da Saúde-UFRN. Todos os alunos matriculados no primeiro ou segundo período dos cursos de Medicina, Enfermagem, Nutrição, Farmácia, Fisioterapia, Odontologia da UFRN são potenciais alunos da Disciplina. Para alguns cursos, como o de enfermagem, a disciplina tornou-se obrigatória no componente curricular dado a sua importância na formação acadêmica. A disciplina é ofertada nos diversos serviços de atenção primária à saúde do município de Natal- RN. Conta com a contribuição de profissionais dos serviços, docentes, discentes e a comunidade para o bom desempenho das atividades planejadas, com o objetivo de através de seu conteúdo programático proporcionar ao aluno o conhecimento da organização do Serviço Básico de Saúde. Território, área e processos de trabalho. Processo Saúde-Doença e problemas de saúde. Perfil epidemiológico: seleção e estabelecimento de prioridades e atores sociais. Planejamento estratégico local e vigilância à saúde. Ética e trabalho social. Participação e controle social. Com carga horária de 45 horas (5). Durante o desenvolvimento das atividades, o aluno tem a oportunidade de exercitar habilidades e desenvolver atitudes participando das ações programadas para aprender a trabalhar em e com grupos; vivenciar a realidade; selecionar e trabalhar um problema identificado e discutido com a comunidade, numa programação semanal que contemple atividades que se realizarão ao longo do semestre. Assim a disciplina SACI é considerada como sendo a primeira experiência institucional de flexibilização curricular na área da saúde, utilizando estratégia de inserção dos alunos em atividades de extensão em comunidades, desde o primeiro ano de curso. Articula ensino e pesquisa através da extensão universitária na UFRN e tem como principal propósito constituir-se em espécie de “laboratório” para viabilizar mudanças paradigmáticas na formação profissional em saúde. A experiência discente na disciplina SACI No decorrer da disciplina nós fazemos a leitura e discussão textos demonstrando nosso ponto de vista sobre a temática em questão e, com isso, é despertado o senso crítico de cada um; conhecemos a unidade de saúde à qual estamos vinculadas, em seguida tomamos ciência do bairro no qual ela está inserida e também da comunidade que é contemplada por ela. Isso através de visitas pelas ruas, equipamentos sociais (igrejas, escolas, casas de apoio) e residências do bairro. Após isso, elegemos um problema principal, visto que dificilmente é identificado um único problema, para que possamos intervir durante nossa passagem pela disciplina, e para isso planejamos ações capazes de solucionar ou, ao menos, amenizar o problema diagnosticado. No planejamento e implementação da intervenção outras habilidades, ainda, podem ser despertadas – especialmente as artísticas, como desenho, teatro, música – que devem ser valorizadas, pois podem também ser úteis na nossa prática profissional. A experiência aqui foi realizada nas Unidades de Saúde de Aparecida, Cidade Praia e Nova Cidade correspondendo aos três serviços aos quais as alunas estavam integradas para cursar a disciplina no ano de 2009. Durante o desenvolvimento das atividades foram abordados os temas correlatos a Saúde e Cidadania, tais como: trabalho em equipe; processo saúde-doença; participação e controle social; ética; interdisciplinaridade; intersetorialidade; organização dos serviços básicos de saúde; planejamento e vigilância a saúde; educação e cidadania. O método utilizado nas atividades instituídas estabelece o papel do docente como facilitador do processo ensino-aprendizagem, e o aluno como sujeito ativo do referido processo, parte da própria percepção que o educando tem sobre o assunto, seguido de observações, reflexões e intervenções Reflexões sobre a experiência na disciplina SACI Para Dorigon e Romanowski a experiência reflexiva, o pensar sobre uma ação e o efeito desta, possibilita a reflexão sobre a ação e sua conseqüência, tal elemento de pensar permite uma experiência de maior qualidade, mais significativa (4). A experiência vivenciada na disciplina de SACI oportunizou nossa primeira relação com a prática, isto é, um contato inicial com um serviço de saúde e com os usuários, ela foi de fundamental importância, na medida em que permitiu uma ampla visualização da realidade das comunidades e dos serviços, além de consentir um contato entre discentes das mais diferentes áreas, já principiando o futuro trabalho multiprofissional. Além da interação com alunos de outras áreas, nessa disciplina torna-se possível um contato inicial com os profissionais da atenção primária à saúde e, com comunidades carentes que, em sua maioria têm realidade completamente distinta da nossa. Esse contraste de realidades permitiu um crescimento pessoal, pois nos faz refletir sobre cada coisa simples que temos e que, muitas vezes não valorizamos. As pessoas com as quais convivemos na comunidade não possuíam muitas das coisas materiais que tínhamos em nossa realidade socioeconômica, ou nenhuma delas e ainda lhes faltam outras, mas mesmo assim elas ainda conseguem sobreviver, sustentar famílias bem maiores que as nossas, em sua maioria, e algumas ainda conseguem sorrir. Mais que qualquer livro ou experiência complexa, essas pessoas nos ensinaram uma lição de vida que levamos para a nossa vida inteira. Lições que somente a vida é capaz de mostrar. No inicio da disciplina acreditávamos que a ela fosse contribuir bem mais no aspecto “saúde”, mesmo porque estávamos no início do curso, e essa seria nossa primeira oportunidade num serviço de saúde. Ao contrário, em nossa visão, ainda limitada de “calouros”, focados no aspecto biologicista da saúde o que vimos dela foi somente a estrutura física da unidade e os serviços oferecidos por ela, e logo partimos para o que de mais importante a disciplina tinha a nos oferecer: a interação saúde e cidadania através do conhecimento da realidade da comunidade com identificação de problemas. Ficou perceptível, então, que o foco da disciplina era outro, bem mais importante e num momento bastante oportuno, inclusive: no ingresso dos alunos (primeiros períodos). Ao considerar a disciplina enquanto ferramenta educacional do curso, acreditamos que ela coaduna com a educação cidadã que se propõe a estimular a visão crítica dos indivíduos nos domínios político, econômico e social; cultivando competências para capacitar os indivíduos a agir como sujeitos nos relacionamentos sociais, desenvolvendo habilidades para ações de fortalecimento do capital social dos profissionais, além do próprio desenvolvimento humano. Através da disciplina nós somos estimulados a desenvolver as relações interpessoais, o senso crítico, a identificar e a priorizar os problemas, principalmente, refletindo na prática sobre a realidade da comunidade avaliada. Essa vivência contribui enormemente para o crescimento pessoal e profissional de cada discente que futuramente será um profissional. Existe Embora alguns não queiram enxergar ou reconhecer, existe uma contribuição na formação do ser ético e cidadão de cada aluno, na medida em que fomos introduzidos a um novo olhar daqueles submetidos a cuidados realizados em serviços muitas vezes desprovidos das condições ideiais para a devida atenção. Acredita-se que a disciplina, como componente curricular contribui para a formação de “profissionais detentores, portanto, de habilidades, conhecimentos e valores capazes de fazer funcionar um sistema de saúde relativo à vida de todas as pessoas, estando a qualidade de vida na antecedência de qualquer padrão técnico a apreender ou a exercer”. (3) A educação tem poder, embora não seja sinônimo, da distribuição da cidadania. Sendo a disciplina de saúde e cidadania um instrumento de educação, ela também tem o poder de orientar e exercitar a cidadania nos alunos, para que esta seja consolidada para que uma melhor qualidade de saúde e de vida sejam atingidas (2). Por outro lado, é sabido que o mercado de trabalho exige profissionais cada vez mais capacitados, e não somente tecnicamente, mas numa esfera ética-política, comunicacional e de inter-relacões pessoais (6) . Acredita-se que experiências do tipo oportunizadas pela disciplina SACI poderão auxiliar na construção dessas competências nos discentes da saúde. O trabalho multiprofissional, também estimulado pela SACI, é uma importante ferramenta do trabalho em saúde tanto para os profissionais, quanto para pacientes e familiares, o que não exclui as dificuldades desta prática, especialmente as relações interpessoais e de políticas de poder (7). CONSIDERAÇÕES FINAIS A experiência da disciplina de saúde e cidadania nos possibilitou um crescimento profissional especialmente com relação aos serviços de saúde e o caráter multiprofissional da atenção à saúde. A vivência inicial com os serviços de saúde e o contato com discentes de outros cursos permitem o trabalho multiprofissional com respeito mutuo. Por outro lado, o contato com profissionais das unidades de saúde e principalmente a visualização da realidade da comunidade à qual nos inserimos, em sua maioria, comunidades carentes, propiciam a reflexão realista das condições dos serviços de saúde e das pessoas que aí são atendidas. Destarte, a disciplina de Saúde e Cidadania tem imensas contribuições para a formação dos discentes na medida em que desperta o desenvolvimento do senso crítico do indivíduo, dos relacionamentos inter-pessoais e da cidadania, ética e política. REFERÊNCIAS 1. Martins MF. Uma “catarsis” no conceito de cidadania: do cidadão cliente à cidadania com valor ético-político. Rer de Ética jul – dez 2000; 2( 2): 106-118. 2. Bydlowski CR. Saúde e cidadania. O mundo da saúde 2007 jul/set; 31(3): 419-25. 3. Ceccim RB, Ferla AA. Educação e saúde: ensino e cidadania como travessia de fronteiras. Trab Educ Saúde 2008nov/2009fev; 6(3): 443-56. 4. Dorigon TC, Romanowski JP. A Reflexão em Dewey e Schön. Intersaberes 2008; 5: 1-17. 5. Rocha NMF; Calado CLA; Bezerra IWL. Projeto Pedagógico do curso de nutrição. Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal- RN; 2008. 6. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de gestão de investimentos em saúde. Qualificação, competências e certificação: visão do mundo do trabalho. Formação Humanizar cuidados de saúde: uma questão de competência 2001 maio; 2: 7-17. 7. Macedo PCM. Desafios atuais no trabalho multiprofissional em saúde. Rev SBPH 2007 dez; 10(2): 33-41.