Gabinete do Reitor • Coordenadoria de Comunicação da UFRJ • Ano 4 • Nº 48 • Outubro de 2009
Caçadora
de encantos literários
Entrevista
É com fascínio indisfarçável que
Heloísa Buarque de Hollanda,
professora titular da UFRJ, fala
dos seus novos e provocadores
projetos. Desde que, em 1976,
lançou a já clássica antologia 26
poetas hoje, um ícone da poesia
maldita brasileira, ela não para
de desafiar o cânone literário
com experimentos que impressionam pelo arrojo. Um deles é
a antologia digital Enter – lançada em 11 de agosto – que reúne textos, vídeos, fotos e áudios
de 37 poetas contemporâneos.
Tudo o que ela faz sempre dá
o que falar e não foi diferente
quando decidiu entender como
funciona a lógica da percepção
poética no ambiente digital.
Nesta entrevista ao Jornal da
UFRJ, a pesquisadora também
fala sobre o concorrido e único
pós-doutorado em Estudos
Culturais do Brasil, criado há 10
anos.
Para além do
cartão-postal
3a7
Heloísa Buarque
de Hollanda
13a17
Quando o mínimo faz
a diferença
28
Projetos de inclusão visual levam a fotografia para
jovens de baixa renda e apontam a necessidade de
a sociedade modificar o olhar estereotipado sobre
a favela. Assim acontece na Escola de Fotógrafos no
Complexo da Maré, criada em 2004. Ela é responsável
pela formação gratuita de dezenas de jovens
fotógrafos. A ideia é que eles se tornem “porta-vozes
visuais” da sua própria realidade.
O ensino vai aonde o
aluno está
10a12
A cada dia, com o avanço das tecnologias da
informação e comunicação, o conhecimento vem
se desvinculando do espaço físico da sala de aula e
da figura do professor. Ficou para trás a discussão
sobre adotar ou não a Internet como ferramenta de
ensino. A Educação a Distância (EaD) ressurge com
força e se consolida como alternativa para o ensino de
graduação.
Mesmo aquém de uma
justa distribuição de
renda, o país diminui
desigualdade através
de políticas sociais.
Além da unanimidade
político eleitoral, avalia-se que a sociedade
finalmente começa a
perceber o papel do
Estado na luta contra a
exclusão social, gerada pelo capitalismo.
Custando apenas 0,4%
do Produto Interno
Brasileiro (PIB), soma
de todas as riquezas do
país, o Programa BolsaFamília (PBF) está presente em 12 milhões
de lares pelo país.
18a21
Pagú
A estrela esquecida
A vida pessoal de Patrícia Galvão, a eterna
Pagú, e em especial seu envolvimento com
o poeta “antropofágico” Oswald de Andrade,
fugiu aos moldes da sociedade paulista dos
anos 1930. O casal quis chocar os conservadores, a ponto de fazer sua cerimônia de
casamento em um cemitério. O que poucos
sabem é que, para além da beleza e das intrigas pessoais, Patrícia Galvão deixou uma obra
literária plural, marcada pela intensidade. Mulheres como ela, que não tiveram vergonha
de expor o que eram, devem ser recuperadas.
Pagú foi uma estrela, em todos os sentidos.
Zope
2
Jornal da
UFRJ
Outubro 2009
Agenda
Reitor
Aloísio Teixeira
Vice-reitora
Sylvia da Silveira Mello Vargas
Pró-reitoria de Graduação (PR-1)
Belkis Valdman
Pró-reitoria de Pós-graduação
e Pesquisa (PR-2)
Ângela Maria Cohen Uller
Pró-reitoria de Planejamento
e Desenvolvimento (PR-3)
Carlos Antônio Levi da Conceição
Pró-reitoria de Pessoal (PR-4)
Luiz Afonso Henriques Mariz
Pró-reitoria de Extensão (PR-5)
Laura Tavares Ribeiro Soares
Superintendência Geral
de Administração e Finanças
Milton Flores
Chefe de Gabinete
João Eduardo Fonseca
Forum de Ciência e Cultura
Beatriz Resende
Prefeito da Cidade Universitária
Hélio de Mattos Alves
Sistema de Bibliotecas e Informação (SiBI)
Paula Maria Abrantes Cotta de Melo
Coordenadoria de Comunicação (CoordCom)
Fortunato Mauro
JORNAL DA UFRJ é uma publicação MENSAL
da coordenadoria de comunicação da
Universidade Federal do rio de janeiro.
Av. Pedro Calmon, 550.
Prédio da Reitoria – Gabinete do Reitor
Cidade Universitária
CEP 21941-590
Rio de Janeiro – RJ
Telefone: (21) 2598-1621
Fax: (21) 2598-1605
[email protected]
Supervisão editorial
João Eduardo Fonseca
Jornalista responsável
Fortunato Mauro (Reg. 20732 MTE)
Edição e pauta
Antônio Carlos Moreira
e Fortunato Mauro
Redação
Aline Durães, Bruno Franco,
Coryntho Baldez, Pedro Barreto,
Rodrigo Ricardo e Sidney Coutinho
Projeto gráfico
Anna Carolina Bayer,
Jefferson Nepomuceno, Patrícia Perez
e Rodrigo Ricardo
Diagramação
Anna Carolina Bayer
Ilustração
Jefferson Nepomuceno,
Vitor Vanes e Zope
Fotos
A.F.Rodrigues, Agência Brasil, Agência Imagens
do Povo, Bira Carvalho, Fábio Café, Imagem
UFRJ, Marcello Casal Jr, Marco Fernandes, Ratão
Diniz, Ricardo Stuckert e Rousinaldo Lourenço
Revisão
Mônica Machado
Instituições interessadas em receber essa
publicação devem entrar em
contato pelo e-mail
[email protected]
O Jornal da UFRJ publica
opiniões sobre o conteúdo de
suas edições. Por restrições
de espaço as cartas sofrerão
uma seleção e poderão ser
resumidas.
Fotolito e impressão
Esdeva Indústria Gráfica
25 mil exemplares
Aline Durães
E
Trabalho escravo
em debate
mbora oficialmente extinto há mais de um século, o trabalho escravo ainda assombra muitos brasileiros. Para debater a escravidão atual e pensar meios de combatê-la, a UFRJ organiza, entre os dias 21 e 23 de outubro, a terceira
edição da Reunião Científica Trabalho Escravo Contemporâneo e Questões Correlatas.
O evento, promovido pelo Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos (NEPP-DH) do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH) da UFRJ, reunirá especialistas e pesquisadores que, entre outros temas, vão discutir
migração, trabalho e Direitos Humanos.
A Reunião Científica acontece, a partir das 9 horas, no auditório do Anexo do CFCH, localizado na avenida Pasteur, nº
250, campus da Praia Vermelha. Confira abaixo a programação completa do evento.
21 de outubro
22 de outubro
23 de outubro
9h – Abertura
9h – Apresentações
9h – Apresentações
9h30 – Apresentação
Migração e Trabalho
– Representação política do trabalho
escravo no Brasil contemporâneo.
– O combate ao trabalho escravo na
cana de açúcar no estado de São Paulo.
– Manutenção do trabalhador escravizado nos canaviais sem desrespeitar os
direitos trabalhistas.
– Trabalhado escravo como fenômeno
internacional.
– Global Production Networks and the
Problem of Forced .Labour in the European and UK Contexts.
– Espanha. Tráfico de mulheres: expressão de desejo versus realidade dos
fatos.
– Imagens do escravo na literatura romana: Apuleio.
11h30 – Debate
11h20 – Debate.
13h30 – Apresentação
Migração e Trabalho
– Projetos de desenvolvimento, deslocamentos compulsórios e fragilização
de populações locais.
– Novos sentidos da pobreza e refuncionalização da servidão – O trabalho
escravo no Brasil no século XXI.
– Economia da precisão: estratégias de
sobrevivência dos trabalhadores rurais
em Codó, Maranhão.
– Reflexões sobre a violência no processo migratório.
– Mulheres de Atena.
13h30 – Apresentação
Poder público e sociedade civil
– Restrições das liberdades substantivas como indutoras do trabalho análogo à escravidão.
– Trabalho escravo contemporâneo:
crime e conceito.
– MST Relações de trabalho na Zona
da Mata alagoana nas décadas de 40 e a
formação das agendas sociais privadas:
um estudo a partir da questão do trabalho escravo contemporâneo.
– Escravidão rural contemporânea: a
sobrevivência de uma herança histórica do capital nacional.
– Relato sobre a Ação Interinstitucional para qualificação e reinserção profissional dos resgatados do trabalho
escravo em Mato Grosso.
– Denúncias de “Trabalho Escravo”
em Mato Grosso (1972-2005).
– Escravidão contemporânea: relações
existentes e estudo de caso.
– Campanhas educativas para prevenção e combate ao trabalho escravo por
dívida no Brasil rural: primeiras aproximações.
– Geografia do Trabalho Escravo Contemporâneo no Brasil (1985-2006).
– Rompendo grilhões: a função social
da propriedade e o trabalho escravo
como estratégias de desapropriação da
fazenda Cabaceiras.
15h50 - Debate
15h50 - Debate
17h30 – Painel: Direitos Humanos
NEPP-DH/UFRJ e Movimento Humanos Direitos (MHUD).
20h – Entrega do Prêmio João
Canuto.
11h20 – Debate
13h30 – Avaliação da Reunião, discussão sobre novos encontros e sobre a
publicação dos anais da reunião.
Serviço
III Reunião Científica Trabalho
Escravo Contemporâneo e
Questões Correlatas
Data: 21 a 23 de outubro de 2009
Local: Centro de Filosofia e Ciências
Humanas (CFCH), 3º andar. Avenida Pasteur, nº 250, Botafogo, Rio de
Janeiro.
Dia 21, de 9h às 18h. Dia 22, de 9h às
20h. Dia 23, de 9h às 17h,
http://www.nead.org.br/boletim/boletim.php?boletim=467&noticia=2186.
Outubro 2009
Inclusão Social
Jornal da
UFRJ
3
A.F.Rodrigues / Imagens do Povo
Projetos de inclusão
visual levam a
fotografia para
jovens de baixa
renda e apontam a
necessidade de a
sociedade modificar
o olhar estereotipado
sobre a favela.
As fotos que
ilustram esta
matéria são de
alunos da Escola
de Fotógrafos do
Complexo da Maré.
Aline Durães
Aline Durães
F
im de tarde de uma segunda-feira ensolarada. A
atendente do bar Mundo
Lindo serve mais um café expresso
a um cliente. Do lado de fora, sentada em uma das mesas do estabelecimento, a mãe dá de beber a seu
filho, enquanto segue com os olhos
pessoas que retornam, a passos calmos, para casa, depois de um dia de
trabalho.
Para além
do cartão-postal
4
Jornal da
UFRJ
Apesar de não parecer, a pacífica cena acontece em Nova Holanda,
uma das 16 favelas que compõem o
Complexo da Maré. Cenários como
esse, embora comuns nas periferias
da cidade, contrastam com as imagens que bombardeiam a população
diariamente. Acostumados às cenas
de violência, pobreza e tráfico de
drogas, muitos brasileiros acabam
por desenvolver uma visão deturpada — e preconceituosa — das comunidades de baixa inclusão social.
A Declaração dos Direitos Humanos preconiza, há seis décadas,
que a Comunicação é um direito
universal. Entretanto, desde que o
fotógrafo Louis Daguerre apresentou, em agosto de 1839, sua fotografia na Escola de Belas Artes de Paris,
inaugurando, assim, os 170 anos da
história oficial da fotografia, as classes de menor renda são excluídas
do processo de produção da própria imagem. “A visão da nobreza,
da burguesia, da classe média predomina, é hegemônica. A periferia
regularmente é mostrada, mas não
se mostra”, destaca Dante Gastaldoni, professor de Fotojornalismo da
Escola de Comunicação (ECO) da
UFRJ.
Para combater a exclusão visual
que afeta milhões de brasileiros, algumas iniciativas vêm sendo desenvolvidas. Cada vez mais, a periferia
encontra mecanismos de se mostrar
e de combater os preconceitos que
a rondam. Dentre todas as manifestações artísticas, a fotografia possui
força singular.
Gastaldoni explica que, por não
demandar uma infraestrutura cara
e por ser um ato eminentemente
solitário, a fotografia se torna mais
atraente para os jovens de baixa
renda. “Ela tem a característica quase única de ser um trabalho solo e
pleno. Não existe como fazer uma
foto a dois. Ela é solitária na sua essência. Além disso, a estrutura de
execução é fácil e simples. Com a
tecnologia digital, ela passou a ser
mais acessível também. Hoje, é possível fotografar, armazenar as fotos
e veiculá-las a um custo baixo”, conjectura o especialista em Linguagem
Fotográfica.
Por um novo olhar
Em todo o Brasil, multiplicamse movimentos e organizações que
têm como objetivo principal suscitar em jovens e crianças, que vivem em situação de risco social, o
interesse pela fotografia. Guiados
pelo conceito de inclusão visual, a
intenção desses projetos é ensinar
técnicas de foto e levar cidadania
para os moradores de comunidades
populares. Com uma máquina nas
mãos, os jovens fotógrafos mostram
o cotidiano das favelas, aumentam
sua autoestima e, em última instância, combatem a visão propagada
pela grande mídia, que as retrata,
Inclusão Social
Outubro 2009
Rousinaldo Lourenço
A.F.Rodrigues / Imagens do Povo
Fábio Café
Outubro 2009
Ratão Diniz/Imagens do Povo
Bira Carvalho
Ratão Diniz/Imagens do Povo
Inclusão Social
Jornal da
UFRJ
5
na quase totalidade das vezes, como
o lugar da tragédia.
Assim acontece na Escola de Fotógrafos da Maré, criada em 2004,
pelo fotógrafo João Roberto Ripper.
Localizada no Complexo da Maré,
ela auxilia na formação de dezenas
de jovens ao fornecer, gratuitamente, um curso de fotografia. A ideia é
que esses novos fotógrafos tornemse “porta-vozes visuais” da sua própria realidade.
Coordenado por Dante Gastaldoni, o curso de 540 horas-aula tem
duração de 12 meses. “O trunfo da
Escola é justamente ser um local
de excelência, que prima por dar
conhecimento a um grupo de jovens de periferia, na esperança de
que alguns, seduzidos pela paixão
e de posse de informações técnicas,
transformem-se em fotógrafos. Essa
fotografia é nova e poderosa, pois já
sugere a inclusão visual”, enfatiza o
professor.
Para ingressar na Escola, os interessados devem se inscrever e passar
por entrevistas com os coordenadores. As aulas são ministradas das
9h às 13h, de segunda a sexta-feira.
O curso é dividido em três módulos de 180 horas cada – Linguagem
Fotográfica, Informática Aplicada à
Fotografia e Fotografia Documental
e Olhar Autoral. Os critérios principais de seleção são a vontade e a
disponibilidade do candidato para
frequentar as aulas.
Além de modificar o olhar de
jovens acostumados às lentes massificadas da grande imprensa, a Escola abre as portas do mercado de
trabalho e auxilia na inserção social
dos alunos. “A gente não descarta a
empregabilidade como objetivo. Felizmente, eu posso dizer que, entre
os 60 jovens que já passaram pela
escola nos dois últimos anos, mais
de 20 são proprietários de câmeras
digitais profissionais, ou seja, estão
habilitados a executar pautas com
seu próprio equipamento”, sublinha
Dante.
Adriano Rodrigues é um deles.
Nascido e criado na Maré, 30 anos,
foi um dos primeiros alunos da Escola de Fotógrafos. Atualmente, trabalha com fotografia na Prefeitura
do Rio de Janeiro. Ele conta que,
por ter o ensino superior completo,
chegou a ser vetado no curso. Mas
insistiu. “Fui selecionado para uma
Pós-graduação em Campos (RJ),
com direito a bolsa, e abdiquei em
função do curso de fotografia. Eu
tive que escolher e optei pelo que
gostava. Senti dificuldades durante
todo o curso, porque as aulas são
pesadas. Ao contrário dos demais
projetos que participei, a escola o
qualifica em um ano, de forma muito intensa”, avalia Rodrigues.
A influência da mídia
É consenso entre os entusiastas
do conceito de inclusão visual que
6
Jornal da
UFRJ
Inclusão Social
Outubro 2009
Bira Carvalho
Ir além do olhar da
mídia, descortinando
para o mundo o lado
humano da favela, é
uma das principais
lições dos projetos de
inclusão visual.
No lugar das
cenas de conflitos,
as câmeras buscam
apreender momentos
triviais da comunidade.
a imprensa é a grande responsável
pela imagem negativa da favela junto ao imaginário social. Basta abrir
um jornal para verificar que as notícias ambientadas em comunidades
de baixa inclusão social referem-se,
na maior parte das vezes, às temáticas da violência e do tráfico.
Dante Gastaldoni compartilha
dessa opinião, mas pontua que, embora a mídia estigmatize essas localidades, ela não pode ser vilanizada.
Na opinião de Dante, a imprensa
está inserida em um processo histórico que valoriza a fotografia de
tragédia. O fotojornalismo nasceu
com a cobertura de guerras. Tanto o
inglês Roger Fenton quanto o norte-americano Mathew Brady, consi-
derados os dois primeiros repórteres fotográficos da mídia impressa,
cobriram eventos conflituosos. O
primeiro esteve na Guerra da Crimeia (1853 a 1856, Sul da Rússia e
Bálcãs). Já Brady fotografou a Guerra da Secessão (1861 a 1865, entre
os estados norte-americanos do Sul
e os do Norte).
Mas por que a tragédia ocupa
tanto espaço? Para Gastaldoni, a
resposta é simples: “Tragédias são
notícias. Veicular notícia ruim tem
apelo social. Nenhum jornal destina
uma página inteira para divulgar um
prêmio Nobel, mas dá várias páginas
para informar sobre o tsunami, por
exemplo. Então, se existe a mentalidade de que a boa notícia é a tragédia, quando os jornais vão à favela?
Quando acontece algo trágico. Esse
processo reforça a máxima de que
a favela é o lugar do terror, da violência. No entanto, essa é uma das
maiores mentiras com as quais eu já
convivi. Ninguém entende o que é
uma favela até entrar nela. Ao entrar,
você se depara com relações de solidariedade estabelecidas num mundo
onde não há quintais ou cercas. E
percebe também que mais de 99%
da comunidade são pessoas guerreiras, que trabalham, que ganham
a vida em condições adversas. Mas,
na verdade, um pequeno percentual
de transgressores acaba ocupando o
lugar de todos os demais no imaginário social”, pondera o professor.
Gastaldoni alerta, no entanto,
não existir um antagonismo maniqueísta entre os fotógrafos populares e os da grande imprensa.
Pelo contrário, para ele, parte do
sucesso da Escola de Fotografia da
Maré pode ser atribuída às palestras ministradas por profissionais
consagrados do fotojornalismo aos
alunos do curso.
O olhar incluído
Por estarem em contato com renomados fotojornalistas e disporem
de equipamentos de última geração,
os fotógrafos do projeto social da
Maré possuem qualidade técnica
profissional. O diferencial desses jovens reside na subjetividade. “Existem diferenças autorais, de enquadramento e temáticas. Geralmente,
quando um fotógrafo da grande imprensa chega à comunidade, o lugar
está numa situação de tensão e é isso
que ele fotografará. Já os alunos, por
documentarem o dia a dia, priorizam
elementos de sedução, de beleza, de
magia. Tem certas coisas que você
somente percebe se pertence àquele
território”, ressalta Dante Gastaldoni.
Ir além do olhar da mídia, descortinando para o mundo o lado humano da favela, é uma das principais
lições dos projetos de inclusão visual. Adriano Rodrigues narra que,
no lugar das cenas de conflitos, sua
câmera busca apreender momentos
triviais da comunidade: “Fotografo
um cotidiano que não é revelado, o
cotidiano do trabalhador, do lazer,
do esporte. Pretendo mostrar que
aqui tem pessoas interessadas em
transformar-se e em transformar
o mundo delas. Retrato a questão
da violência sim, mas fotografo a
violência da ausência: a violência
do Estado no que se refere à saúde,
quando faltam médicos e remédios
nos postos de atendimento; a violência da ausência nas escolas que
carecem de professores e de carteiras; a ausência do trabalho, da diversão.”
Marcas indeléveis
Para meninos e meninas que
convivem diariamente com o descaso do Estado, os projetos de inclusão visual se constituem em uma nova
maneira de se apresentar ao mundo e
de se enxergar. E iniciativas como essas
deixam marcas. “Quando eu estou fotografando um morador da favela, eu
me vejo ali, tento me colocar no lugar
daquela pessoa para não pecar na hora
do clique. A principal lição é estar sempre de olho aberto para ver o mundo
com a sua multiplicidade de vidas, de
cores, de pessoas. É estar aberto para
enxergar valor nas diferenças”, opina
Adriano Rodrigues.
Já para Dante Gastaldoni, a experiência de suscitar em jovens carentes
a paixão pela fotografia é, no fim das
contas, um ganho de vida para os profissionais envolvidos na coordenação
das atividades do projeto. “Transitar pelas favelas é um exercício de
vida fantástico. Temos que ter uma
visão do Brasil para além do cartãopostal. O rompimento de algumas
barreiras me fez conhecer pessoas
fantásticas e talentosas. Olhando
pra trás, percebo que eu vivia em
uma cidade estereotipada. Esse
projeto me fez mergulhar em uma
cidade mais verdadeira”, finaliza o
fotojornalista.
Outubro 2009
Inclusão Social
Jornal da
UFRJ
7
Ratão Diniz/Imagens do Povo
Para meninos
e meninas que
convivem diariamente
com o descaso do
Estado, os projetos
de inclusão visual são
uma nova maneira
de se apresentar
ao mundo e de se
enxergar.
E iniciativas como
essas deixam marcas.
8
Jornal da
Plano Diretor
UFRJ
Outubro 2009
Inovação
a serviço do meio ambiente
Trunfos tecnológicos em prol de uma cidade energeticamente responsável
Rodrigo Ricardo
I
novação, tecnologia e meio ambiente. A tríade tem valor
sagrado no Plano Diretor UFRJ 2020 para transformar o
campus da Cidade Universitária em espaço ambiental e
energeticamente responsável. Essa meta exige esforços em pesquisa e o compromisso de toda a comunidade acadêmica, além de
uma política que aponte um conjunto de práticas a ser perseguido. E que, quando conquistado, deve manter-se tão vivo e rotineiro quanto a necessidade de respirar.
A versão preliminar do Plano Diretor, em debate e aberto a
contribuições públicas desde abril, encara a proposta como “ambiciosa”, porém, aponta a política e os múltiplos passos e aspectos a serem trilhados. “Uso responsável e econômico dos recursos
materiais, busca de fontes alternativas de energia; gestão e destinação adequada de resíduos sólidos, redução da poluição atmosférica e de emissões de gases de efeito-estufa”, enumera o documento, previsto para ser apreciado já em outubro pelo Conselho
Universitário (Consuni), que deliberará sobre a aprovação final
do conjunto de diretrizes e programas que nortearão os rumos da
UFRJ na próxima década.
Mesmo em ritmo aquém do desejado, parte desse futuro já começa a acontecer no presente com a despoluição dos canais do
Cunha e do Fundão. Depois de passar 15 anos em idas e vindas,
o trabalho, enfim, está em andamento. Segundo Ângela Rocha,
decana do Centro de Ciências e Matemática da Natureza (CCMN)
da UFRJ, o tema integra a agenda da universidade há cerca de
quatro anos. “A revitalização do Cunha e do Fundão melhorará
a qualidade de vida da Cidade Universitária e do Rio de Janeiro”,
frisa a professora, que também preside a comissão que acompanha e fiscaliza as obras, de conclusão prevista para daqui a dois
anos. Tudo graças a investimentos da ordem de R$ 200 milhões
oriundos da Petrobrás, por conta de uma compensação da empresa devida ao estado fluminense. “Os efeitos das obras ainda
não são visíveis, mas a administração estadual tem dito que quer
acelerar o trabalho e concluir as estruturas em setembro de 2010”,
informa Ângela.
Com o fim do assoreamento dos canais, que impede a circulação das águas e prejudica a pesca, as enchentes que atingem a
Vila Residencial da UFRJ, localizada na ala sul do campus, devem
chegar ao fim. Estima-se que 200 milhões de metros cúbicos de
sedimentos sejam retirados por dragas. Após esta etapa, serão utilizados os tubos geotêxteis na separação e descontaminação do
material recolhido. A água tratada será devolvida aos canais e o
material sólido permanecerá no “geobag”. “O pioneirismo do sistema pode permitir que ele seja utilizado como modelo para a
despoluição de outras áreas”, avalia Ângela Rocha.
Vitrine da inovação
“Temos aqui e, em expansão, uma vitrine da inovação”, observa
Ângela Uller, pró-reitora de Pós-graduação e Pesquisa (PR-3) da
UFRJ, analisando a Cidade Universitária como ambiente destinado ao trabalho de inovar e buscar a experimentação. “A existência, nos limites da UFRJ, de três incubadoras de empresas, dois
parques tecnológicos e os mais de 2,5 mil projetos assinados com
Outubro 2009
Plano Diretor
empresas a cada ano não deixam dúvida quanto a sua vocação. Precisamos aplicar em benefício do campus o conhecimento gerado dentro dele”, afirma Ângela Uller, destacando iniciativas de êxito como o
Laboratório de Controle de Dopagem (Labdop) – ligado ao Instituto
de Química (IQ) da UFRJ e credenciado pelo Comitê Olímpico Internacional (COI).
Outro destaque sublinhado pela pró-reitora, organizadora da reunião do Conselho Participativo do Plano Diretor sobre Tecnologia,
Inovação e Meio Ambiente, é o veículo desenvolvido pelo Laboratório
de Hidrogênio do Instituto Alberto Luiz de Coimbra de Pós-graduação
e Pesquisa de Engenharia (Coppe) da UFRJ. “Trata-se de um ônibus
urbano para 70 passageiros, movido de forma híbrida por eletricidade
e hidrogênio, que simplesmente não produz nenhuma emissão de CO2
(dióxido de carbono)”.
De acordo com o coordenador
do projeto, Paulo Emílio Valadão
de Miranda, o diferencial do ônibus encontra-se em sua tecnologia, desenvolvida exclusivamente por pesquisadores brasileiros.
“Criamos um banco de baterias
que pode ser alimentado por conexão a uma rede elétrica externa ou, ainda, com a regeneração
de energia cinética em elétrica.
Enfim, o próprio movimento do
veículo é aproveitado como fonte energética”, explica o cientista,
detalhando que o veículo tem três
portas e o chassi rebaixado para
proporcionar acessibilidade aos
portadores de deficiências físicas.
A adoção de medidas responsáveis no campo ambiental
e energético, ao longo dos anos,
possivelmente se converterá em
enorme economia para as contas da universidade. Estima-se,
por exemplo, que com a construção de uma usina térmica de lixo
poder-se-á reduzir em aproximadamente 40% as futuras contas de
luz. Atualmente, a energia elétrica está entre as maiores despesas
da UFRJ. De acordo com a versão
preliminar do Plano Diretor, um
valor que alcança cerca de R$ 25
milhões por ano. Diante da expansão da universidade, inclusive com aulas noturnas, quando a
tarifa é mais cara, o documento
aponta a necessidade de modelos
racionais, eficientes e recomenda
atenção a alternativas ainda em
fase de desenvolvimento como
energia eólica e solar.
O Plano Diretor estabelece
ainda que quando o Maglev-Cobra (trem de levitação magnética) estiver operando no campus,
os ônibus que hoje respondem
pela circulação interna na Cidade
Universitária poderão ser dispensados, resultando em uma economia que se aproxima de quatro
milhões de reais por ano. Desenvolvido em etapas, o experimento
da Coppe conta com o aporte do
Banco Nacional de Desenvolvimento Social e Econômico (BNDES) para construir os primeiros 150 metros de trilhos. “Ele
é viável em escala real”, destaca
Richard Stephan, coordenador do Maglev, pontuando que o veículo
tem motor elétrico e não polui o meio ambiente. “A tecnologia em
que estamos trabalhando é diferente da executada em outros países.
Jornal da
UFRJ
9
Trata-se de uma alternativa de transporte para os centros urbanos, de
trens saindo a cada três minutos e circulando a uma velocidade de até
70 km/h.”
Catamarã
A partir da economia realizada com a substituição de pelo menos
parte da frota de ônibus, a idéia é estender 4,3 km de trilhos imantados
para que o trem, literalmente, flutue pela Cidade Universitária. Para
Eduardo Gonçalves David, professor da Coppe e também pesquisador
do Maglev, o transporte consome menos energia e ainda apresenta
menores custos de manutenção do que os sistemas metroferroviários
existentes, aplicando sofisticada tecnologia nacional.
“O veículo permitirá a interligação com o metrô de Del Castilho e com a Fiocruz”, avisa David, receando o curso que vem
tomando o projeto de implantação do Trem de Alta Velocidade
(TAV) para ligar Rio de Janeiro
a São Paulo e a Campinas. “A
análise inicial da consultoria inglesa (Halcrow) trouxe diversos e
polêmicos erros de estudo de impacto ambiental e urbanístico. O projeto
da Coppe poderia aproveitar os trajetos das linhas de trem e, por utilizar
vias em elevação, não necessitaria da
escavação nos 15 quilômetros de caminhos subterrâneos, como previsto
pelos britânicos”, critica David.
Maior aposta de infraestrutura do
Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do governo federal,
avaliado em mais de R$ 34 bilhões,
o traçado inicial do TAV, quando
em consulta pública na Agência
Nacional de Transportes Terrestre
(ANTT), cortava o campus da UFRJ.
Itinerário que acabou alterado após
a reação da comunidade acadêmica
ao ser ferida em sua autonomia. “O
TAV Roda-Trilho é uma máquina
de datilografia. O Maglev é um computador. É preciso quebrar paradigmas”, defende Eduardo David.
Outro reforço para a dupla integração proposta pelo Plano Diretor
UFRJ 2020 vem pelo mar. “Estamos
trabalhando no desenvolvimento
de dois barcos”, anuncia Fernando
Amorim, coordenador do Laboratório de Pólo Náutico vinculado à Engenharia Naval e Oceânica da UFRJ.
“Eles contarão com motores elétricos e painéis solares. Inicialmente,
queremos, até o fim do ano, construir uma primeira embarcação com
cerca de 12 metros de comprimento
e com velocidade de 15 nós (cerca de
28km/h) para 40 passageiros.”
O primeiro trajeto a ser experimentado ligaria a Ilha do Governador à Cidade Universitária. “Ainda
estamos analisando, mas o itinerário
seria da Praia da Bica até um local
que permita a integração com o
Terminal Rodoviário que está em
construção. O porto, provavelmente, seria próximo ao Centro
de Ciências da Saúde (CCS)”, explica Amorim, lembrando que o
segundo barco com 30 metros,
velocidade de 25 nós e com capacidade para 200 passageiros está
sendo planejado para ligações com Niterói e com o campus da Praia
Vermelha. “Será um serviço gratuito com o meio hidroviário integrado ao sistema interno de circulação da universidade.”
10
Jornal da
UFRJ
Educação a Distância
Outubro 2009
Sidney Coutinho
V
ai ficando para
trás a discussão acerca
da adoção ou não da
Internet como ferramenta de ensino. A
Educação a Distância (EaD) ressurge com
força e se consolida como alternativa para
o ensino de graduação. É o que demonstram os levantamentos realizados pelo
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep)
apontando que os estudantes dos cursos a
distância estão se saindo, na maioria das
vezes, melhor do que os de cursos presenciais.
Relatório da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico
(OCDE), Education at Glance 2009 (Panorama da Educação, 2009), divulgado
no início de setembro, revela que apenas
10% dos brasileiros entre 25 e 34 anos de
idade têm formação superior. A EaD pode
ser a ferramenta que auxiliará na reversão
do quadro, como acredita Masako Oya
Masuda, bióloga, professora do Instituto
de Biofísica Carlos Chagas Filho (IBCCF)
da UFRJ, presidente do consórcio Cederj
(parceria entre o governo fluminense com
as seis universidades públicas do Estado
do Rio de Janeiro).
Para ela, a possibilidade de acesso a
um curso de graduação em uma das seis
universidades se tornou mais democrática
com a EaD, porque alcança pessoas que vivem não apenas
na capital, mas também no
interior. Hoje, são 33 polos
espalhados pelo estado,
em cidades a 344 km distantes do Rio, como Itaperuna. “Nos vestibulares que
fazemos, específicos para cada
polo e para cada curso, cerca de
70% dos alunos são moradores da região.
Se é importante aumentar o número de
estudantes na universidade, o aumento da
capilaridade territorial da formação supe-
rior também é um fator muito importante
para o desenvolvimento”, afirma a dirigente do Cederj.
Empreitada exitosa
Lembrando “Nos bailes da vida”, de
Milton Nascimento, a EaD vai, literalmente, aonde o aluno está. Segundo Masako,
diferentemente do ensino presencial que
fica aguardando o aluno na sala de aula,
no sistema EaD faz-se de tudo um pouco
para estimular a participação do estudante. “Se ele passou no vestibular, mas tem
dificuldade em determinada área, não
consegue evoluir, pela flexibilidade, a gente consegue colocar elementos para que ele
possa recuperar uma porção de coisa que
ficou para trás. A partir daí, o estudante
consegue caminhar muito bem. Então são
várias alternativas que a EaD oferece para
aumentar o acesso das pessoas à educação
em nível superior”, assegura a professora.
Mas a EaD também é alvo de pesadas
críticas. Um histórico que a associa a curso
por correspondência ainda persiste, sem
contar que há uma forte carga de preconceito em relação à metodologia
de ensino, principalmente
por parte de profissionais
“tecnofóbicos”, que resistem ao contato com
computadores e com a
Internet. Em junho deste
ano, por exemplo, um dos
motivos da greve da Universidade de São Paulo (USP) foi a recusa
em implantar o sistema na instituição. Na
época, Marilena Chauí, filósofa, professora da USP, engrossou o coro dos opositores afirmando que a EaD desqualifica a
formação universitária.
A diretora da Divisão de Educação da
Pró-reitoria de Extensão da UFRJ, Cleide
de Morais Lima, que coordena outro
importante programa de EaD
na instituição, acredita que o
preconceito em relação ao
sistema retardou a entrada
das universidades públicas
na modalidade. “A EaD traz
a possibilidade de atualizar e
acrescentar conhecimentos
em novos contextos e fazer a interação entre os ensinos. É esse o papel das universidades públicas, que, na verdade, têm compromisso com o conhecimento e com sua
formulação. E, no meu ponto de vista, elas
podem fazer isso melhor do que as universidades particulares”, afirma a diretora.
“Todos os indicativos que temos, se
eles são válidos, vão de encontro ao que
Marilena Chauí disse”, contesta Masako
Masuda. Segundo ela, ainda é cedo para
uma avaliação aqui no Brasil, pois os reflexos da graduação do EaD do Cederj
somente poderão ser percebidos ao longo dos anos com a melhoria da qualidade de ensino. No entanto, a aprovação de
estudantes em concursos públicos para
docentes mostra o êxito da modalidade.
“Não há uma prefeitura ou uma secretaria
de Educação que não tenha ex-alunos de
nossos cursos. Sei é que
pessoas que não poderiam estar estudando
em uma universidade estão estudando com a EaD.
E essas mesmas pessoas estão ingressando
no mercado e competindo com outras que
vieram do sistema presencial”, afirma
a educadora, ressaltando ainda que
a qualificação universitária está
beneficiando as cidades, pois as
pessoas procuram fazer concursos para as prefeituras nas localidades
onde moram.
Para Cleide Morais, a EaD tem problemas assim como o ensino presencial,
“mas não fazer EaD nos coloca em uma
posição de elite, até porque é nosso dever, enquanto universidade pública,
pensar sobre as metodologias
de ensino, o que somente
ocorre quando a gente faz,
e é quando são reformuladas. Não adianta olhar e
dizer que é ruim. É preciso
dizer que não cabe por isso
ou por aquilo. Não é bom ter
uma visão preconceituosa e intolerante acerca daquilo que não se conhece.
Acho que é um absurdo completo dizer
que a EaD desqualifica o diploma de
uma universidade.”
De acordo com ela, não basta conteúdo bem formulado, é necessário acompanhar bem todo o processo para que
não vire uma farra. “Não basta a pessoa
entrar e apenas cumprir tarefa. Tem de
ter avaliação, acompanhamento, interação
qualificada. Eu acredito na EaD na formação, na capacitação, na qualificação, no
treinamento profissional, na especialização lato sensu etc.”, opina Cleide.
As ações desenvolvidas pela Pró-reitoria de Extensão datam de 2001 e acontecem em colaboração com a Secretaria de
Educação a Distância do Ministério da
Educação e com a Secretaria de Estado de
Outubro 2009
Educação do Rio de Janeiro. Dessa maneira a UFRJ participa ativamente do processo de capacitação dos educadores da rede
pública de ensino no Estado do Rio
de Janeiro com o objetivo de
integrar os profissionais
de ensino superior e os
professores do ensino
básico.
Gestão é crucial
Para Masako Masuda, a gestão é crucial
na Educação a Distância. Enquanto no modelo
presencial o principal é o professor e a sala de aula, na EaD é preciso saber se cada etapa do processo está
funcionando. Verificar se o material está
chegando, se há um computador disponível para o estudante, se ele está funcionando, se há energia elétrica no polo, “enfim,
o professor continua sendo extremamente
importante, mas se não houver gestão o
estudante fica incomunicável. Por exemplo, eu como professora não posso deixar
de seguir a programação. Não posso dizer
que fiquei doente, que não vou fazer hoje
e amanhã eu faço. Não dá. Tem aluno que
vai andar quilômetros para chegar ao pólo
e fazer a atividade. Não tem chance de ficar mudando as coisas.”
Segundo a presidente do Cederj, todos
se programam. “Grande parte dos nossos estudantes trabalha e quando a gente
afirma que 70% deles reside no entorno
do polo, significa pouco menos de duas
horas de transporte. Se eu marquei uma
prova no sábado, ela tem que acontecer
nesse dia. Se precisar remarcar sempre haverá alguém que não poderá ir. É preciso
cumprir a programação, porque programar todo mundo programa, mas cumprir
é que são elas. Se não fizer isso aqui, não
funciona, perde credibilidade”, garante
Masako Masuda.
No entanto, obedecer rigorosamente
ao cronograma não é tudo. A infraestrutura é fundamental no sistema de EaD.
Recentemente, o Conselho Federal de
Biologia passou a contestar o modelo e baixou uma resolução vedando a
concessão de registro profissional para
alunos que por ele se formam, sob a alegação de que estaria faltando uma parte
importante na formação que é a atividade prática nos laboratórios. Além de a
resolução ser contestada judicialmente
pelo Ministério da Educação, de acordo
com Masako, no Cederj um documento
é preparado para mostrar que o argumento é falho no caso do consórcio, que
realiza atividades presenciais em laboratórios para a disciplina.
Masako Masuda reconhece que há
casos de instituições que negligenciam o
trabalho com a EaD. O Ministério da
Educação, por exemplo, montou uma
lista cobrando qualidade de duas mil
unidades de 11 universidades. Há casos
em que, apesar de oferecer cursos de Ciências Biológicas e Física, não colocam à
disposição dos estudantes laboratórios,
bibliotecas, equipamentos básicos e chegam a ter tutores que levam uma semana para responder dúvidas. No Cederj,
Educação a Distância
o prazo máximo é de 24 horas. “Nesse
caso depende do curso. Assim como há
cursos de EaD que estão abaixo da crítica, conhecemos também muitas
instituições que somente
fazem cursos presenciais e também são
abaixo da crítica.
Aí entra a função
reguladora do
Estado. Por vários motivos, tais
como proteger o
cidadão e garantir
a qualidade, o Ministério da Educação deve ter
um papel importante para definir
regras não apenas para a EaD, mas para
o ensino de forma geral”, aponta a diretora do Cederj.
Ingresso democrático
O Cederj tem 33 polos espalhados
por 31 municípios do Estado do Rio de
Janeiro e realiza dois concursos de ingresso anualmente. Os alunos são matriculados em uma das seis universidades públicas participantes e fazem todo
o curso de graduação em regime semipresencial. Embora as universidades tenham feito a adesão ao sistema
de ingresso pelo Exame
Nacional do Ensino
Médio (Enem),
para o primeiro
semestre
de 2010 está
mantida no
consórcio a
realização do
vestibular.
De acordo com
Masako Masuda, as
mudanças sugeridas pelo
Ministério da Educação para
adesão ao Enem tinham um prazo curto para serem cumpridas. “Não haveria
tempo hábil para divulgar a forma de
ingresso. Essa discussão será retomada.
Para decidir acerca do Enem, fizemos
uma reunião conjunta e ficou acertado
que em 2010 ainda faríamos um vestibular separado”, informa a professora.
Para Masako Masuda, há a possibilidade de adotar uma forma mista de
ingresso dos estudantes nos cursos do
Cederj, que adotaria o Enem para uma
primeira fase, selecionando grande número de candidatos, e depois algo mais
específico. Uma hipótese é realizar na
segunda etapa uma avaliação não apenas
de conhecimento, mas de adequação do
perfil do estudante ao EaD. “Acho que
não é qualquer pessoa que consegue se
adaptar ao sistema”, afirma a dirigente.
Disciplina é a principal característica no perfil de um aluno de EaD.
Uma das principais causas de evasão é
a idéia errônea de muitos que acham
que o curso a distância é realizado por
quem não tem tempo de estudar. Pelo
contrário, é preciso muita dedicação.
De acordo com Cleide de Morais Lima,
da Pró-reitoria de Extensão da UFRJ, a
vantagem da EaD é a flexibilidade para se
encaixar os horários de estudos à jornada
diária das pessoas. Para ela, a Tecnologia
da Informação trouxe um novo impulso
para a EaD. “Como colocar um professor de ensino fundamental no espaço de
uma universidade na qual, na maioria das
vezes, há apenas cursos diurnos? Como
um professor pode frequentar o campus
universitário? A EaD é uma possibilidade
de atualizar conhecimentos, de apresentar
novos contextos e conhecimentos e de fazer interação entre os ensinos”, afirma.
Quando surgiu, em 2001, o Cederj
oferecia apenas 160 vagas para um
único curso de graduação
(Matemática); no último
vestibular para o segundo semestre deste ano
foram 3.696 para os cursos de Matemática, Ciências Biológicas, Física,
Pedagogia, Computação,
Administração, Química,
Turismo e História.
O diploma das universidades do
Cederj é tão válido quanto o do ensino
presencial e a experiência fluminense foi
determinante para a construção da Universidade Aberta do Brasil (UAB). A participação da UFRJ no consórcio, porém, é
ainda tímida, pois apenas oferece três dos
nove cursos existentes (Ciências
Biológicas e licenciaturas
em Física e Química).
Dinheiro pelo
ralo
Uma sangria
de recursos irresponsável. É desta
forma que Roberto
Leher, professor da
Faculdade de Educação (FE) da UFRJ, encara a iniciativa do governo
federal em ampliar o número de vagas nos cursos de graduação pelo modelo
de Educação a Distância (EaD). Para ele,
a iniciativa não resulta em acúmulo de conhecimentos que permitam
melhorar o aparato de formação de
professores nas universidades. “Esse
é o desafio central, nós termos
recursos em ordem de
grandeza
suficiente
que permitam que
o país tenha uma
estrutura básica
de formação de
professores e de
outros profissionais. Temos uma
quantidade significativa de recursos
que estão literalmente
se esvaindo pelo ralo”,
afirma Leher, que também é
vice-presidente da Associação dos Docentes da UFRJ (Adufrj – Seção Sindical).
Para ele, o investimento enorme do
Ministério de Educação para formar tutores em numerosos polos é falho, porque
eles são indicados por critérios como laços
políticos familiares ou de amizade. “Gastase um dinheirão para formar por dois anos
o tutor, aí muda o prefeito ou o secretário
e muda tudo. Na realidade é uma sangria
Jornal da
UFRJ
11
permanente. Não tem vínculo porque não
é uma instituição, não é republicano, não
tem normas, não tem institucionalidade,
não tem regras claras, não tem o pertencimento do tutor à instituição, porque é para
ser volátil”, afirma o docente.
De acordo com Leher, a EaD é uma
forma não institucionalizada de formação,
porque está fora do espaço universitário,
no qual há uma série de mediações específicas de interação com os estudantes,
com professores, com grupos de pesquisa,
com eventos acadêmicos, criando um ambiente geral de
aprendizado inexistente
nos cursos a distância. “Esses cursos são
organizados muitas
vezes com bom material pedagógico, feito pelas universidades
públicas e privadas. Mas
esse material instrucional
é repassado por tutores, pessoas
que, em geral, têm pouca qualificação e
de maneira isolada fazem a mediação com
os estudantes. Na realidade, o estudante
não está recebendo uma orientação de
natureza universitária, ele está recebendo
o material que vem da universidade, mediado por alguém que é um trabalhador
precário, não um professor que tem vínculos orgânicos com a universidade”, alega
Roberto Leher.
De acordo com o professor da FE, o
modelo da Universidade Aberta do Brasil (UAB) é juridicamente denominado
de consórcio, consequentemente não tem
materialidade, não tem responsabilidades
definidas, o vínculo do estudante com a
instituição é longínquo e virtual. “É um
modelo perverso, porque é uma ilusão
para quem recebe o diploma achar que
teve uma formação de ensino superior”,
acredita Leher. Para ele, o modelo também é perverso porque gera uma força de
trabalho disponível para a educação, um
exército industrial de profissionais formados de reserva que vai rebaixar ainda
mais os salários de professor de educação
básica. “Não podemos deixar de falar que
aqui no Rio de Janeiro temos
uma crise com a falta
de professores de
Matemática, de
Física, de Química, mas o
estado paga
R$ 520 para
o professor.
O
problema não é que
a universidade não está conseguindo formar, a
evasão é completa e brutal
porque como a pessoa vai construir uma
carreira assim?”, questiona o professor,
lembrando a contradição do estado em realizar políticas de formação, mas não assegurar condições elementares de trabalho
para os professores.
A adoção de ferramentas como a Internet para a EaD não é o que incomoda Roberto Leher. Em sua opinião, o equívoco
está na certificação, ou seja, dar diploma
12
Jornal da
UFRJ
como forma estratégica de ampliação de
acesso ao ensino superior. “Em
termos de capacitação,
educação
permanente, atualização
permanente
claro que sim.
Acho que a
Internet é
uma ferramenta que
podemos
potencializar
na universidade. Eu quero
muito que meus
estudantes tenham
acesso a vídeo-conferência, por exemplo, porque
muitas vezes temos um belo seminário
em Porto Alegre e nós não podemos
estar lá para participar, acompanhar e
interagir. Isso é perfeito, é maravilhoso,
é extraordinário, mas não é disso que
estamos falando. O que está em crítica é a certificação, o diploma”, afirma o
educador.
Vigilância e disciplina:
o papel da escola
Outro especialista que questiona a
eficácia da EaD é o professor da Escola
de Comunicação (ECO) da UFRJ, Muniz Sodré, atual diretor da Biblioteca
Nacional, que não crê no sucesso do
modelo quando a ferramenta de apoio
é a televisão. Segundo ele, foram raras
as experiências bem sucedidas ao redor
do planeta, como exemplo a da Inglaterra. Para Muniz Sodré, o erro da televisão vale também para dar sua opinião
acerca da Internet.
Nos anos 1980, Muniz Sodré também dirigiu a TV Educativa no Rio de
Janeiro e a experiência lhe valeu para
afirmar que o Ensino a Distância, usando a televisão como ferramenta, fracassou por não conseguir criar uma cena,
uma forma social e cultural própria para
a transmissão educacional. Para ele, assim
Educação a Distância
com a democracia e o mercado, a escola
é uma forma moderna de estruturar a
modernidade. “Essa forma implica, em
primeiro lugar, o professor, com uma relação interpessoal e uma ideologia, que
eu diria de natureza disciplinar. Disciplinar no sentido que Foucault dá à palavra.
Vigilância, interiorização de regras, e uma
moral interiorizada do contexto”, ressalta
Muniz, acrescentando que na forma tradicional, a escola é uma segunda cena, a
restituição da cena parental, pais e filhos,
professor e aluno.
De acordo com ele, a forma ideológica
da escola foi tirada de outras duas instituições: a igreja e a prisão. “A forma da escola
é prisional. Os alunos são separados em
séries, os anos de aprendizado são hierarquizados, o professor vigia e controla por
meio da prova. Isso é a forma de vigilância
prisional. E, ao mesmo tempo, a relação
entre professor e aluno é uma relação religiosa, pastoral. O professor fala, o aluno
escuta e restitui. Tradicionalmente é assim”, compara Muniz Sodré.
Embora antigas, as duas instituições
nas quais a escola se espelha estão em crise, segundo Muniz Sodré. “Eu diria que
esse modelo de
escola está
acabando
t a m b é m
porque o
modelo
disciplinar
não mais
se sustenta
em uma sociedade ou ambiente
em que a paisagem é de
mídia, de informação, que não funciona
na base da disciplina, mas na do convencimento, da persuasão”, afirma o professor.
Para ele, esse modelo ajudou a formar o
espaço público e a por em crise o modelo
de vigilância panóptico da escola.
Muniz explica que ao levar o ensino
para a TV, não foi pensada a reestruturação da forma: “Era a mesma na televisão,
mas num espaço aberto. E não se
criou por quê? Porque os
educadores nunca foram gente de mídia
e nem as pessoas
de mídia foram
educadores. E
os estudos
feitos na passagem não
foram levados
em consideração.”
Mudança com Internet
Com a Internet, na opinião
de Muniz Sodré tudo muda. Segundo ele,
porque há um sem número de saberes
possíveis de serem apreendidos mecanicamente. Com os recursos tecnológicos, inclusive, o conhecimento pode até ser mais
bem apreendido. Ele exemplifica, usando
um curso técnico em Mecânica, no qual
é possível visualizar a estrutura do motor
melhor do que olhando direto para a máquina. Outra vantagem é a possibilidade
da repetição exaustiva, até a assimilação.
Muniz Sodré ressalva que o processo
educacional não é somente a passagem do
saber. “A passagem do saber por computação, por informação, é muito mais ágil que
a relação escolar de professor e aluno. No
entanto e mais do que nunca, o professor
é vital como iniciador de linguagens. Ele é
central, é o eixo. Todo o investimento em educação deve
ser feito para melhorar
a vida do professor
em primeiro lugar”,
assegura o docente
da ECO.
Em sua opinião,
a máquina é valiosa,
mas é apenas instrucional. “Educação não é passagem de informação. É apontar
caminhos, é criar ambiente moral e ético
onde o saber ganha algum sentido, ela é
esse conjunto. Eu diria que educar alguém,
indivíduo ou grupo, é fazer incorporar, assimilar todas as forças que em uma comunidade humana, numa sociedade, estruturam o bem. E o que é o bem? É o ponto
de equilíbrio econômico, político e ético
do grupo, da comunidade. É o conceito
grego de bem. Isso é educação”, define
Muniz Sodré.
O professor lembra, porém, que ensino e educação em determinados momentos se separam: “Eu diria que estamos em
um momento de ênfase no ensino, de
tentativa de melhoria das escolas sem
pensar a passagem da educação. A readaptação histórica deve fazer parte dessa
nova realidade. Principalmente aqui no
Brasil, onde se está fazendo um progresso quantitativo. Sem dúvida nenhuma as
taxas de evasão escolar diminuíram, aumentou bastante o número de ingressos
nas escolas, mas a educação ainda não é
de qualidade.”
Muniz Sodré acredita que a educação deve ser a distância e presencial ao
mesmo tempo. “É preciso encontrar uma
fórmula. Acho que todo o projeto no sentido estatístico, de aumentar o
número, de resolver uma
questão urgente e
emergencial está
fadado ao fracasso. Acho
que devemos encontrar ainda
o
‘Paulo
Freire da era
da Informática’, ainda não
encont ramos.
Ele era um grande
educador, um grande
pedagogo, mas ele é anterior ao
computador, à Informática. Nós temos,
portanto, de repensar a questão”, destaca
o professor.
Determinação contra preconceito
Preconceito. Esse é o problema princi-
Outubro 2009
pal e de mais difícil superação para os estudantes de graduação na EaD. Mas com
a mesma determinação com que encaram
os estudos, eles sabem que somente o surgimento de bons resultados pode transformar a realidade. Em 2007, o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade)
do Ministério da Educação, revelou que
estudantes de cursos a distância se saíram
melhor do que os alunos de presenciais
em sete de 13 áreas em que houve a comparação.
Um desses estudantes é Max Ferri.
Ao completar 40 anos de idade, viu a
vida ganhar novo rumo com o
ingresso no curso de Licenciatura em Física da UFRJ
pelo Cederj. Para ele, era
a opção de se requalificar
profissionalmente depois
de ver gorar o pequeno negócio que mantinha na cidade de Volta Redonda, onde
mora.
Segundo ele, as esperanças de arrumar um emprego qualificado que o ajude a melhor criar as três filhas é o motor
que o impulsiona a se dedicar aos estudos,
sem perder o foco com distrações comuns
de uma sala de aula presencial. “Quando
ficamos de boca aberta não avançamos.
Enquanto um colega presencial está quatro horas na frente de um professor, nós
precisamos render o mesmo em apenas
uma hora. Temos determinação. Em sala
presencial o professor explica a disciplina,
passa exercícios e muitos ficam de batepapo. Conosco não. Não perdemos tempo.
O rendimento é muito melhor”, constata o
estudante.
Segundo Max, para quem vive no interior do estado, onde às vezes a única opção
de requalificação profissional são as caras
instituições de ensino particulares, com ensino de qualidade duvidosa, o Cederj é uma
revolução. Para ele, “a qualidade e praticidade do ensino e, no caso Cederj, a diplomação é o que fazem a diferença.”
O estudante Marcelo Antônio de Brito,
46 anos, que faz Pedagogia pelo consórcio
do Cederj aponta outra vantagem para os
cursos de EaD. A possibilidade de cursar
mais de uma graduação ao mesmo tempo
sem reter vagas presenciais na universidade. “Sou formado em Cinema pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mas vejo
muitos amigos cursando simultaneamente
duas graduações com mais desenvoltura
graças à flexibilidade do EaD”, afirma o
estudante, que é técnico-administrativo da
UFRJ.
Para ele, perde-se tempo ao querer
questionar a EaD. “Hoje, o ensino presencial usa muito a Educação a Distância. Qual
a instituição em que o professor não utiliza o correio eletrônico para se comunicar
com os alunos? A questão deveria buscar o
quanto uma forma de ensino pode contribuir para melhorar a outra”, opina Marcelo,
defendendo a apropriação das novas ferramentas de ensino para melhorar a qualidade de vida. “Acho que quem se opõe à EaD
no Brasil dá um tiro no próprio pé, porque
quer negar a oportunidade de educação a
pessoas que jamais teriam essa chance”, finaliza o estudante.
Outubro 2009
Entrevista
Jornal da
UFRJ
13
Heloísa Buarque de Holanda
É
Entrevista
com fascínio indisfarçável que Heloísa Buarque de Hollanda, professora
titular da UFRJ, fala dos seus novos e provocadores projetos. Desde
que, em 1976, lançou a já clássica antologia 26 Poetas Hoje (1976),
um ícone da poesia maldita brasileira, ela não para de desafiar o
cânone literário com experimentos que, mais do que sair do lugar-comum,
impressionam pelo arrojo.
Um deles é a antologia digital Enter – lançada em 11 de agosto – que reúne
textos, vídeos, fotos e áudios de 37 poetas contemporâneos (www.oinstituto.
org.br/enter/). Tudo o que ela faz sempre dá o que falar e não foi diferente
quando decidiu entender como funciona a lógica da percepção poética no
ambiente digital. “Já dei entrevista sobre o Enter até para jornalistas da Holanda”,
conta a coordenadora do Programa Avançado de Cultura Contemporânea
(PACC) do Fórum de Ciência e Cultura (FCC) da UFRJ.
Entre outras iniciativas que vem tocando à frente do PACC, com entusiasmo
cativante, está a “Universidade das Quebradas” – “é a minha saideira da
universidade”, revela a doutora em Letras pela UFRJ, que completou 70 anos
e está às vésperas da aposentadoria compulsória. Esse projeto de Extensão
inova porque realiza uma efetiva troca de conhecimentos entre o saber
universitário e a cultura das comunidades, explica Heloísa, que continuará
na coordenação do PACC. Nesta entrevista ao Jornal da UFRJ, a pesquisadora
também fala sobre o concorrido e único pós-doutorado em Estudos Culturais
do Brasil, criado há 10 anos.
Entrevista
UFRJ
Caçadora
14
Jornal da
Outubro 2009
de encantos
literários
Eu participava de perto de todos esses movimentos. A literatura era uma
área que assumi sob essa perspectiva.
Desde o começo sempre tive essa visão
literária bastante engajada e acabei fazendo minha tese sobre a poesia feita
pela geração do sufoco, a geração AI-5,
que não tinha acesso à imprensa e aos
meios tradicionais.
Jornal da UFRJ: Como foi o pós-AI-5
para a senhora?
Heloísa Buarque de Hollanda: Nos
anos 1960, a universidade era um fórum de debates muito quente. Com o
AI-5, começou um esvaziamento boçal, uma coisa terrível. Eu fiquei ali, tentando procurar alguma alegria, alguma
resposta. E a resposta mais eficaz foi
exatamente a poesia, pela qual eu me
apaixonei. Era uma área que não merecia a atenção da censura, que dirigia
suas garras mais para as manifestações
públicas, como o cinema, o teatro, os
jornais, a televisão. Mas quem prestava
atenção à poesia?
Jornal da UFRJ: Como diz Luiz Fernando Veríssimo, “poesia numa hora
dessas”?
Heloísa Buarque de Hollanda: Pois é...
Poesia numa hora dessas não existe!
Mas ela passou a existir exatamente devido a essa falta de atenção. Quase toda
essa geração que passou a se expressar
pela poesia não falava diretamente de
ditadura, não era reativa, mas era o testemunho de uma geração que viveu no
sufoco.
Coryntho Baldez
Jornal da UFRJ: Em que momento da
sua vida a senhora foi fisgada pela literatura, em especial pela poesia?
Heloísa Buarque de Hollanda: Primeiro eu me formei em Letras Clássicas,
mais especificamente em Grego, pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro (PUC-RJ). Isso foi em 1961.
Logo depois, fui morar nos Estados
Unidos e comecei a trabalhar em um
centro de estudos sobre a América Latina. Passei, então, a me interessar bastante pelas questões políticas da região,
por uma literatura social, e larguei o
Grego. Quando voltei ao Brasil, já cheguei conquistada e fui fazer mestrado
e doutorado em Literatura Brasileira.
Comecei então a me dedicar ao estudo
da questão negra, com Lima Barreto e
outros autores. Esse viés político da literatura foi o que me interessou. A minha
tese de mestrado foi sobre Macunaíma
e a relação do cinema, especialmente o
Cinema Novo, com a literatura. Já minha tese de doutorado foi sobre a poesia
marginal produzida durante a ditadura
militar.
Jornal da UFRJ: Esse viés político em
seus estudos literários ajudou a senhora
a compreender melhor o Brasil?
Heloísa Buarque de Hollanda: Claro.
A ideia, desde o começo, era exatamente saber onde eu estava situada. Sou de
uma geração que era muito ativista,
participava intensamente do movimento estudantil nos anos 1960. Havia
uma efervescência política e cultural,
com o Cinema Novo, o Teatro Oficina,
o Centro Popular de Cultura (CPC) da
União Nacional dos Estudantes (UNE).
Jornal da UFRJ: Antes da sua antologia
26 Poetas Hoje, a crítica torcia o nariz
para essa poesia marginal, que não estava contida no cânone literário?
Heloísa Buarque de Hollanda: Antes e
depois. Quando saiu a antologia, a minha vida virou um inferno. Houve um
debate na imprensa violento e muitos
diziam que aquilo não era literatura,
não valia nada, seria poesia menor. Isso
é muito interessante porque 20 anos
depois essa antologia é adotada em
vestibulares, ou seja, as coisas mudam
e hoje Ana Cristina César, Wally Salomão, Torquato Neto, Francisco Alvim,
Outubro 2009
Cacaso, todos são cânone. Esses poetas
estavam lá na antologia e eram considerados sem valor literário. A história
muda as perspectivas.
Jornal da UFRJ: Na época, a senhora
não encontrou “guarida” em nenhum
campo de discussão literária?
Heloísa Buarque de Hollanda: Foi
interessante porque a academia foi
bastante crítica e uma boa parte da
imprensa mais conservadora também.
Mas isso deu um debate muito quente
e o livro vendeu muito quando foi lançado, em 1976. Até hoje, não paro de
reeditar essa antologia, que virou uma
espécie de ícone de uma geração, uma
referência daquele momento, da cultura do vazio. Depois fiz a minha tese de
doutorado sobre isso.
Jornal da UFRJ: Há certo fascínio pelos
poetas “malditos”? Isso sempre existirá?
Heloísa Buarque de Hollanda: Esse
tipo de poesia pode tudo porque ela
não tem compromisso nenhum com
venda, com o mercado. Mas essa ideia
de poeta maldito é do século XIX. Baudelaire é um poeta maldito. E somente
foi reconhecido depois, como todos os
outros. No momento em que produzem, esses poetas fazem uma espécie
de performance. Mesmo alguns modernistas, como Oswald de Andrade,
eram malditos. Ele andava com o seu
Cadillac por aí dizendo um monte de
absurdos. Há essa performance desse
tipo de artista principalmente em momentos de mudança. O modernismo
veio num momento de mudança de
uma sociedade rural para industrial.
Nessas épocas a poesia começa a falar
mais alto e dá margem a esse tipo de
atuação. E que não passa disso. Baudelaire, por exemplo, é um poeta até doce.
Maldito era ele, pessoa física. Assim
como os poetas tidos como marginais,
que apareciam à margem do sistema,
sem querer editoras, meio hippies, fazendo uma contracultura. É essa persona que é tida como maldita.
Jornal da UFRJ: Assim como os poetas
malditos tinham uma clara atitude provocadora, a sua intenção também era
“provocar” quando lançou muitos deles
no circuito comercial?
Heloísa Buarque de Hollanda: Sim. A
minha trajetória profissional foi sempre
a de estimular o debate. Então, um pouco de tudo o que fiz e faço dá sempre
uma zebra, gera comentários e polêmicas. Eu trabalho com microtendências,
que ganham uma grande relevância
momentânea quando as identificamos
a partir da academia. É exatamente o
que está acontecendo com a antologia
digital Enter, que lancei recentemente.
Já dei até entrevista para jornalistas da
Holanda sobre isso. É algo que causa
impacto porque ninguém tinha feito,
até então, uma obra redonda e fechada
sobre produção de poesia na Internet
Entrevista
e que toma uma posição de curadoria. Era o caso da antologia dos poetas
marginais, que dizia: “Olha como essa
geração está no sufoco, olha o sentimento e a história dessa geração e a resposta possível à ditadura!” E isso num
momento de extremo vazio cultural.
Então, o que faço é descobrir essas microtendências, coisas pequenas, mas
que dão pauta quando as colocamos
sob a luz.
Jornal da UFRJ: Em relação ao comportamento e à intenção, quais as diferenças principais entre a “geração
AI-5” e a geração dos anos 1990, que a
senhora trouxe para o público na antologia Esses poetas (Aeroplano, 1998)?
Heloísa Buarque de Hollanda: Nos
anos 1970, havia a marca da contracultura no mundo inteiro. Aqui, havia uma politização maior por causa
da situação de repressão militar. Mas
a ideia central era estar fora do sistema. Inclusive, uma das suas principais
características era ter uma produção
gráfica artesanal, doméstica. Faziam
os seus próprios livrinhos, que eram
vendidos de forma agressiva, de mão
em mão, não passavam pelo canal da
editora. A ideia da contracultura era
trabalhar por fora do sistema a fim de
mostrar uma alternativa de vida, de
produção, até mesmo porque aqueles poetas formavam comunidades,
moravam juntos. Já nos anos 1990,
em plena crise, isso não dava mais
pé, todo mundo já era profissional. É
muito interessante essa comparação
porque a referência maior dos anos
1970 era a vida, a resistência. O lema
da poesia marginal era aproximar o
mais possível arte e vida. Nos anos
1990, esse projeto já não existia. Tudo
acontecia em um mainstream (pensamento corrente da maioria) e com uma
referência cultural muito forte. Os poetas da geração AI-5 eram letrados, mas
isso não aparecia no texto. Já a ideia de
referência cultural e literária era fortíssima nos poetas da geração de 1990.
Jornal da UFRJ: Acerca da recente antologia Enter, os poetas que lidam hoje com
o hipertexto no ambiente digital são, de
certa forma, uma vanguarda?
Heloísa Buarque de Hollanda: Acho que
o hipertexto sempre existiu. Não tecnicamente. Mas a literatura, por sua própria
“O lema da poesia
marginal era aproximar
o mais possível arte e
vida. Nos anos 1990, esse
projeto já não existia.
Tudo acontecia em um
mainstream (pensamento
corrente da maioria) e com
uma referência cultural
muito forte. Os poetas
da geração AI-5 eram
letrados, mas isso não
aparecia no texto. Já a
ideia de referência cultural
e literária era fortíssima
nos poetas da geração de
1990.”
estrutura, sinaliza um hipertexto, ou seja,
tudo se desdobra em vários sentidos, em
várias referências, em buscas de significados. A natureza própria da literatura,
principalmente a poética, é intertextual.
Agora, o hipertexto no ambiente virtual
não é algo tão novo. O que considero a
maior novidade, que está na antologia
Enter, é a convergência de mídias. Isso é
o que me parece mais de vanguarda. Eu
pedi a cada um dos poetas um trabalho
específico. Há poesias com background
musical, ruídos, leituras, interpretação de
atores, enfim, com algo que a torna sonora, que sai da página. A outra coisa é o
videocast, que mistura palavra-som com
imagem em movimento. São outros suportes para a palavra que estão aparecendo. A convergência de mídias, a exploração de vários suportes em sincronia, em
todas as áreas artísticas, é uma novidade
possibilitada pelo ambiente digital. Os
instrumentos são mais baratos. Antigamente, fazer um filme era uma tragédia,
e hoje se faz com um celular.
Jornal da
UFRJ
15
Jornal da UFRJ: Os poetas marginais
estão migrando do suporte papel para o
ambiente digital?
Heloísa Buarque de Hollanda: Acho
que os suportes coexistem. E cada vez
mais. Todo mundo que faz um trabalho em um blog de texto, por exemplo,
sempre mira a publicação em livro. É
até estranho porque, em muitos casos,
é uma garotada que poderia não ter o
fetiche do livro, mas tem. A ideia é começar no blog para mostrar o trabalho,
formar um público, eventualmente ser
descoberto por um editor e publicar
em papel. Entrevistei todos e não tem
um que não tenha como meta a publicação final em papel. Inclusive nas entrevistas que dei sobre o Enter, e foram
muitas, há uma pergunta recorrente:
“Não vai publicar?” Não posso! Como
publicar? A não ser podando e reduzindo a antologia, pois a graça do Enter é
exatamente essa pluralidade de mídias.
Se eu colocar um videocast no papel
perco a imagem e o som. Acaba soando
estranho um trabalho que não pode ser
publicado ou que não tenha essa meta.
Jornal da UFRJ: Nesse cenário, qual será
o papel do e-book?
Heloísa Buarque de Hollanda: Ele
possibilita esse trabalho com outras
mídias, mas tende a ser um suporte
para referência. Como lazer, acho que
não se apresentou satisfatoriamente.
Ainda está longe de substituir o livro
como objeto de leitura prazerosa. Agora, como referência, vai avançar rápido.
Já não faz sentido ter uma enciclopédia
de papel, ninguém tem mais porque ela
se desatualiza em um ano. Antigamente, eu comprava a Enciclopédia Britânica, que rapidamente ficava defasada.
Acho que o e-book servirá mais como
suporte para um trabalho. Por exemplo, a Lúcia Riff, que é agente literária,
tem todos os originais não impressos
em e-books. Em vez de ficar carregando
aquele monte de papel para cima e para
baixo, já que manusear originais é mui-
16
Jornal da
UFRJ
Entrevista
Outubro 2009
própria produção têm encorajado as
pessoas a se tornarem produtoras de
diversos tipos de conteúdo. Como a
senhora avalia esse momento?
Heloísa Buarque de Hollanda: Há
muita mídia para pouco conteúdo.
Então, está havendo uma demanda
por conteúdo nunca vista na história. Os jornais online precisam ser
preenchidos constantemente. Do
ponto de vista artístico e cultural,
também é diferente. Agora, as pessoas têm acesso a telefone celular e
com eles fazem filmes, contos, o diabo! É muito barato, pois já se tem o
instrumento na mão, o que dá certo
assanhamento geral para produzir
conteúdo. Sai muita porcaria, mas
sai muita coisa boa. Também numa
livraria se encontra muito lixo. A
oferta é sempre complexa em qualquer situação.
Jornal da UFRJ: Ao mesmo tempo em
que a Internet tem essa dimensão libertária do ponto de vista da criação e do
acesso aos bens digitais, muitos grupos
se mobilizam na defesa do copyright.
Como a senhora avalia o movimento
pela liberdade digital?
to desagradável, ela coloca os textos em
e-books, verdadeiros instrumentos de
trabalho.
Jornal da UFRJ: Uma recente pesquisa
do Instituto Brasileiro de Pesquisa Social
(IBPS) mostrou que 47% dos cariocas
não têm o hábito de ler livros. Por outro
lado, vem aumentando de modo exponencial o número de leitores na Internet.
Como isso impacta a cultura de maneira
geral e o modo como as pessoas veem o
mundo?
Heloísa Buarque de Hollanda: Isso
é bastante polêmico. Tem gente que
acha que a Internet vai tornar superficial o pensamento e acabar com uma
lógica de percepção da realidade mais
interpretativa. Mas eu tenho um pouco de medo de entrar nessa onda porque, se olharmos para trás, a polêmica
era idêntica quando apareceu a escrita.
Houve um pânico de que as pessoas
perdessem a memória. Os textos eram
orais e se considerava importante esse
exercício da memória para recitá-los.
Quando apareceu a escrita, muitos
consideraram que ela iria prejudicar
as faculdades mentais do ser humano.
É o mesmo argumento que ouvimos
hoje em relação à Internet, por isso tenho certo temor. Daqui a pouco vamos
descobrir que isso não tem sentido. O
livro, na verdade, ampliou o espectro
da memória. Lemos mais. Temos e
guardamos mais informações. Ou seja,
exercitamos mais a memória. Não houve prejuízo biológico à memória, como
se pensava. Hoje, muitos afirmam que a
nova geração vai ser desatenta e superficial. Acho que, como aconteceu com a
escrita, não será bem assim.
Jornal da UFRJ: E em relação ao impacto da Internet na vida e no comportamento das pessoas?
Heloísa Buarque de Hollanda: É um
impacto evidente. O maior ganho é que
as pessoas perderam o medo de escrever e ler, algo que não tem preço. Acho
isso maravilhoso porque o livro intimida em certas camadas sociais e fases
de crescimento. Tem gente que acha o
livro algo pesado, difícil. Já na Internet se lê e escreve o tempo todo. Havia
um bloqueio geral das pessoas quando
“Tem gente que acha
que a Internet vai tornar
superficial o pensamento
e acabar com uma lógica
de percepção da realidade
mais interpretativa. Mas
eu tenho um pouco de
medo de entrar nessa
onda porque, se olharmos
para trás, a polêmica era
idêntica quando apareceu
a escrita.”
se tratava de escrever. É só lermos a
maior parte das redações de vestibular
para constatarmos o desastre. E hoje as
pessoas não temem escrever, exercitam
o texto na Internet. Educar é exatamente fazer as pessoas perderem o
medo, mais nada. Ninguém ensina
nada a ninguém, pode-se treinar o
outro a perder o medo de aprender.
A Internet está fazendo as pessoas
perderem o medo de escrever e isso
é muito bom.
Jornal da UFRJ: Os softwares livres,
as redes de troca de arquivos e a possibilidade de publicação imediata da
Heloísa Buarque de Hollanda: Acho
que a autoria tradicional está fadada a
ser repensada. Fiz um estudo grande
sobre essa questão, uma das mais importantes do momento, especialmente
sobre os tipos de licenças novas e mais
flexíveis, como o Creative Commons.
Há uma possibilidade hoje de produção colaborativa. Particularmente,
acho o máximo produzir um texto e
soltá-lo nessas novas mídias. Seja o que
Deus quiser! Isso tem um lado muito
interessante para a criação. Fui estudar
direito autoral e tive uma surpresa legal.
A primeira é que a idéia de direito de autor é muito recente, data da Revolução
Francesa. A história dessa lei, tanto na
França como na Inglaterra, vem marcada pela polêmica desde o começo. Ou
seja, há uma controvérsia antiga entre o
direito público e o direito do autor. Então, a autoria já é uma questão polêmica
e frágil desde a sua primeira legislação.
O DNA da autoria é bichado. Sempre
houve debates e recursos. Pesquisei a
história da Justiça e descobri que, já no
século XIX, o que se tem de processos
públicos contra o fechamento da propriedade intelectual é uma enormidade.
Essa é uma história conflituosa, que está
mais evidente hoje por causa da dificuldade de controle na Internet. É uma
questão que agora vai explodir e é bom
que exploda! A ideia da propriedade intelectual era importante politicamente
em certos casos, mas a autoria muito
fechada é uma complicação do ponto
de vista da produção de conhecimento.
Isso é muito simbolizado pelo software
livre. Como não se tem um sistema proprietário, é possível criar conhecimento
de modo colaborativo. Em relação ao
direito de acesso aos bens culturais, há
um movimento de luta pelo acesso ao
Outubro 2009
conhecimento chamado A2K (Access to
Knowledge). Esse acesso é visto como
um direito, não apenas como um desejo de conhecimento.
Jornal da UFRJ: É possível avançar para
um marco legal que leve em conta essa
nova realidade?
Heloísa Buarque de Hollanda: É uma
necessidade irrecusável. Por exemplo,
a indústria fonográfica, queira ela ou
não, começou a acabar. Então, nessa
mesma indústria já existe uma reflexão
em torno disso. Começa-se a fazer um
claro rearranjo no mercado, nos modelos
de negócio, no sistema de propriedade.
Saiu agora um livro, interessantíssimo, de
Chris Anderson chamado Free (Campus,
2009). Hoje, a paranoia geral é saber como
vai ficar o autor, quando deveria ser como
vai ficar o intermediário, que é quem ganha mais com o negócio. Por exemplo, eu
sou editora e, no caso do livro, a editora
ganha 20%, o autor 10% e 70% ficam com
a livraria e o distribuidor. Ou seja, quem
mais ganha não é quem escreve e nem
quem investe. Então, acho que se deve
começar a eliminar o intermediário, para
sobrar mais para o autor e o investidor.
Mas isso ainda é muito complicado.
Jornal da UFRJ: E como a senhora avalia
o Creative Commons?
Heloísa Buarque de Hollanda: É uma
solução interessante porque é flexível.
Pode-se, por exemplo, bloquear todos
os direitos ou reservar apenas alguns. É
possível estabelecer qualquer uso para
qualquer bem e restringir o seu uso comercial. Ou então se pode liberar um
determinado número de parágrafos de
Jornal da
Entrevista
textos para uso comercial sem nenhum
ônus. É o autor que faz o seu negócio e
ele não precisa ficar submetido àquela
coisa de “todos os direitos reservados”,
até porque nem todos esses direitos vão
para o autor.
Jornal da UFRJ: O Grupo de Pesquisa em
Políticas Públicas de Acesso à Informação
(GPPPAI) da Universidade de São Paulo (USP) fez uma pesquisa que mostra
que o compartilhamento de arquivos de
áudio multiplicou por sete o acesso da
população à música e dobrou o acesso
a filmes. A Internet pode vir a ser uma
revolução cultural?
Heloísa Buarque de Hollanda: Certamente que sim. Ela está mexendo com os
padrões do mercado tal como o conhecemos hoje. Já vemos abalos no direito de
propriedade, na autoria, nas formas de
venda e na privacidade. Essas questões
legais estão todas sendo refeitas. O advogado hoje tem um campo de trabalho incrível.
Jornal da UFRJ: No Programa Avançado
de Cultura Contemporânea (PACC) do
Fórum de Ciência e Cultura (FCC) da
UFRJ, que a senhora coordena, existe um pós-doutorado único no Brasil.
Fale sobre ele.
Heloísa Buarque de Hollanda: É um
pós-doutorado em Estudos Culturais,
uma área nova que vê a pesquisa cultural
como subsídio para políticas públicas e
ações sociais. É cultura aplicada, que liga
a universidade à sociedade. Essa área
ainda é pouco explorada no Brasil. Nos
Estados Unidos da América, essa perspectiva se difundiu mais porque eles têm
uma questão ligada às minorias, como
imigrantes, muito complicada e efervescente. Os estudos culturais estão bastante
associados às questões das minorias. Nos
EUA isso é útil, mas no Brasil nem tanto,
porque não há conflitos explícitos. Esses
estudos acontecem no Brasil mais nas
áreas de Letras, Antropologia e Comunicação. Mas o traço dos Estudos Culturais
é que são transnacionais, não se desenvolvem apenas localmente, e pretendem
aplicar o conhecimento em benefício da
sociedade civil. Eu gosto demais desse
pós-doutorado, que já existe há 10 anos.
Temos turmas de cerca de 30 alunos, do
Brasil e do exterior.
Jornal da UFRJ: O Fórum Permanente
de Cultura Digital (FPCD) é outro eixo
do PACC?
Heloísa Buarque de Hollanda: Exatamente. E queremos aumentar o número
de participantes desse Fórum. Para isso,
estamos elaborando um projeto interdisciplinar ligado à cultura e à tecnologia, em conjunto com o professor Luiz
Bevilacqua (emérito da UFRJ que está
ajudando a montar o Plano Diretor de
Pós-graduação e Pesquisa). No âmbito
desse projeto, já realizamos o seminário
“Cultura 2.0”. Antes, já havíamos feito outro seminário chamado “Cultura Além
do Digital”, por solicitação do Ministério
da Cultura. Temos várias ações e projetos
de pesquisa ligados à área digital.
Jornal da UFRJ: Fale sobre essa novidade
que é a “Universidade das Quebradas”.
Heloísa Buarque de Hollanda: Esse é o
projeto do meu coração, a minha “saideira” da universidade. Ele existe há um ano,
UFRJ
mas engrenou mesmo há pouco tempo.
É um projeto de Extensão Universitária,
mas não é assistencialista e nem de capacitação direta de comunidades periféricas.
Na realidade, através dele, a universidade
abre o seu mais alto saber para artistas ou agentes das comunidades. Para
entrar para a “Universidade das Quebradas” é preciso mostrar que é bom.
Pode ser um rapper, um grafiteiro ou
um escritor, mas é preciso que as pessoas
mostrem a sua produção, não basta morar em favela. Essas pessoas, então, têm
aulas de Filosofia, Literatura, História e
Antropologia, entre outras disciplinas.
É a universidade abrindo o seu conhecimento para potenciais multiplicadores
da periferia.
Jornal da UFRJ: Detalhe um pouco mais
a dinâmica desse projeto.
Heloísa Buarque de Hollanda: Realizamos encontros periodicamente. Recentemente, nos inscrevemos para ser
um Pontão de Leitura do Ministério da
Cultura, que é um projeto que articula
vários pontos de leitura. Queremos fazer
um “intensivão” de literatura para os mediadores de leitura. Mas o que é mais importante nesse projeto, ao lidarmos com
a periferia, é o respeito pela cultura das
comunidades. Há uma troca de conhecimentos, não é absolutamente algo feito
de cima para baixo, como já fiz no CPC
da UNE nos anos 1960. Era um catecismo e aprendi que isso já era! Hoje, escolhemos pessoas de comprovado saber na
periferia para trocar conhecimento com
o saber universitário. Eu não conheço
projeto assim, com essas características
de troca de conhecimento, em vez de capacitação.
“
“
17
18
Jornal da
UFRJ
Políticas Públicas
Outubro 2009
Vitor Vanes
Quando o mínimo faz a
diferença
Mesmo aquém de uma justa distribuição de renda, país diminui
desigualdade através de políticas sociais.
Rodrigo Ricardo
A
arte da pesca exige paciência, qualidade que pode significar virtude ou resignação frente a desafios; para quem pretende a erradicação da miséria: a arte é manter a paciência. Assim como
a fome tem pressa, distribuir a riqueza e transformar o formalismo legal
da igualdade em direito de fato na vida de todos os brasileiros impõe-se
tarefa vital para concretizar o desejo de uma verdadeira democracia. Se o
bolo do milagre econômico dos anos 1970 deixou a maioria com água na
boca, o presente espetáculo do crescimento oferece algumas sobras aos que
mais precisam do Estado para conquistar a cidadania. Para avançar nesse
processo os modos de trabalho dividem opiniões de expertises e correntes
políticas, estão entre “oferecer o peixe ou ensinar a pescar”. A partir dessa
recorrente metáfora instaura-se a interrogação que marca os debates acerca
das medidas no combate à pobreza. Entre as críticas de “assistencialistas” e
“essenciais”, a manutenção e, quiçá, a expansão de políticas sociais constitui plataforma comum de todos os possíveis presidenciáveis em 2010.
Outubro 2009
Além da unanimidade políticoeleitoral, avalia-se que a sociedade
finalmente começa a perceber o papel do Estado na luta contra a exclusão social, gerada pelo capitalismo.
As informações da mais recente
Pesquisa Nacional por Amostra
de Domicílios (Pnad), do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgadas em setembro último, mostram que emerge
uma face do país até então invisível
aos olhos da elite. Todavia, mais do
que a ampliação de recursos, a saída do mínimo à autonomia cidadã
exigirá a articulação entre políticas
sociais e o investimento em setores estruturais como saneamento e
habitação popular. A superação de
fraturas históricas, como a reforma agrária e a tributária, também
representa curso inadiável rumo
a um rio de margens plácidas e
acessível a todo pescador.
Custando apenas 0,4% do Produto Interno Brasileiro (PIB),
soma de todas as riquezas do país,
o Programa Bolsa-Família (PBF)
está presente em 12 milhões de
lares pelo país. “Ele reúne o Auxílio-Gás, o Bolsa-Escola e o BolsaAlimentação, criados no apagar
das luzes da gestão de Fernando
Henrique Cardoso (1994–2002)”,
explica Cecília Paiva, professora
da Escola de Serviço Social (ESS)
da UFRJ, apontando que o governo federal prioriza recursos à Assistência Social, nos chamados
programas de transferência de
renda, porém, com o decréscimo
nas demais políticas sociais, inclusive as estruturais como habitação e saneamento, para um
enfrentamento da pobreza mais
amplo. “Atenuam-se os efeitos
mais nefastos, como a subnutrição, contudo a miséria não se expressa somente na dimensão da
renda, mas na impossibilidade do
acesso a serviços e bens fundamentais”, critica Cecília.
Políticas Públicas
Sistema Único de
Assistência Social
Autora de pesquisa que compara mecanismos de transferência
de renda em países da América do
Sul, Cecília Paiva acredita que dificilmente a próxima liderança da
República deixará de dar continuidade ao PBF: “é possível até que
receba outro nome, mas encerrá-lo
repres ent ar ia
uma enorme
falta de maturidade, além
de uma medida
ant ip opu l ar”.
Ela lembra que
na Argentina,
onde
vivem
cerca de 40
milhões de habitantes, há o
Programa Jefes
e Jefas de Hogar (programa
chefes e “chefas” de família)
que “decresceu de mais de
dois milhões
de beneficiários para 700
mil, em 2008,
e o Programa
por La Inclusión Social (programa para a
inclusão
social) alcançou 602.650 famílias, em
2009, absorvendo parte dos beneficiários do primeiro, os considerados ‘inempregáveis’.”
De acordo com Cecília, tanto
aqui quanto entre os argentinos há
uma tensão cultural entre assistência e trabalho. “A proteção social
deve ser mantida para todos, mas
coloca-se que somente há direitos
para os que trabalham. A história
do desenvolvimento capitalista
tem a necessidade de reforçar que
a inclusão social passa apenas pela
inserção produtiva”, elucida a professora, destacando a importância do trabalho para romper com
ciclos geracionais de miséria. “O
como emancipar é a grande indagação. Pessoalmente, defendo o direito universal à renda como saída
mais viável”, indaga e avalia a pesquisadora.
Cecília Paiva concorda com o
presidente
Luiz
Inácio
Lula da Silva,
quando
diz
que a elite denomina de investimento o
que se aplica
nela e o contrário de gasto
social, porém,
revela aspectos
contraditórios
do PBF. “Ele
ainda tem um
caráter contencionista. O
medo de que a
revolta dos pobres, as ‘classes perigosas’,
exploda
em
violência ou
revolução. Por
exemplo, uma
das condições
para receber
o benefício é
uma frequência escolar mínima de
85%, quando a Lei de Diretrizes de
Bases (LDB) determina 75%”, critica Cecília, ressaltando, por outro
lado, a criação e o desenvolvimento do Sistema Único de Assistência
Social (Suas): “As ações precisam
estar articuladas, como no caso
do PBF com o Plano Nacional de
Qualificação. Há esforços nessa
direção, mas ainda falta um longo caminho.”
O mapa dis-
“Contudo,
o programa
tem impacto
sobre a
desigualdade
e não se
limita apenas
à extrema
pobreza,
mas também
transfere renda
para uma
camada acima,
que vive com
uma baixa
renda”.
Contagem, MG - Presidente Lula cumprimenta beneficiária do Bolsa Família,
programa que atinge 11,1 milhões de
famílias em todo o país.
Jornal da
UFRJ
19
tributivo brasileiro registra que a
renda apropriada pelo 1% mais rico
da população é igual à apropriada
pelos 50% mais pobres. Enquanto
menos de 1% do PIB atende o PBF,
20 mil famílias titulares da dívida
pública ficam com 4,5% de toda a
riqueza produzida pelo país. Para
Cecília, a péssima distribuição de
renda brasileira somente será resolvida com uma radical reforma
tributária. Ela cita o exemplo do
Alasca, território comprado em
1867 do Império Russo pelos Estados Unidos da América, onde cada
cidadão recebe cerca de dois mil
dólares: “Eles dividem os royalties
do petróleo pela população. Isto
somente foi possível graças à mobilização das vilas de pescadores.
No Brasil, apropria-se a riqueza
privadamente e, por ironia, a lei
do senador Eduardo Suplicy (PT/
SP), que institui a Renda Mínima
foi aprovada dias antes do PBF, que
esperamos seja mais um passo nesta direção.”
O benefício da reforma agrária
Atualmente, pelos dados oficiais, o PBF alcança 20% dos municípios brasileiros. Em algumas
dessas 1,2 mil cidades, o auxílio representa a principal fonte de renda nesses locais, como nas cidades
nordestinas Junco (MA) e Severiano Melo (RN), onde 95% da população é coberta pelo benefício.
“Quando se acena para um caminho novo que dá certo fica difícil
retroagir politicamente”, assinala
a socióloga Anna Maria de Castro,
professora aposentada da UFRJ,
destacando a possibilidade de mudança propiciada pelo PBF, mesmo
sendo o valor básico do benefício
de R$ 68, variando mais R$ 22 para
cada criança matriculada na escola, e
chegando
ao máximo
de R$ 200.
20
Jornal da
Políticas Públicas
UFRJ
“Agora, não basta simplesmente
expandi-lo de forma aguda. É importante que o PBF tenha políticas
complementares ligadas à educação e à criação de empregos”, ressalta Anna Maria.
Filha de Josué de Castro, autor
do clássico Geografia da Fome que
conceitua o flagelo como fenômeno
social, Anna
recorda que a
raiz das políticas
sociais
encontra-se
no trabalho do
sociólogo Herbert de Souza,
o Betinho. “Ele
chama a atenção de todos
para a questão
da fome na década de 1980.
Hoje há uma
reivindicação
justa por novos
e mais ágeis
progressos,
contudo eles
são
difíceis,
pois há forças contrárias ao avanço”, analisa a socióloga, apontando
os discursos que classificam o PBF
como incentivo à preguiça, pertencentes aos interessados em poder
contar com uma mão de obra escrava.
Anna Maria de Castro reitera
que a miséria não está restrita ao
Nordeste. Ela afirma que o estereótipo, apesar de não ser totalmente
falso, ainda resiste. Ela recorda que,
em pleno centro de São Paulo, uma
das maiores metrópoles do mundo,
há amontoados de pessoas em cortiços vivendo sob condições precárias. “Nos últimos anos, houve
uma diminuição da concentração
urbana, porém, nada comparado
ao efeito de uma reforma agrária
caso já tivesse sido feita”, acredita
a socióloga, indicando o acerto do
PBF de privilegiar a mulher como
titular do
benefício:
“Elas se sentem mais ind e p e n d e nt e s
numa administração doméstica que,
mesmo antes,
já era assumida por elas.
Agora, o grau
de
carência
da realidade
ainda indica
a necessidade
de se estender
o anzol, a vara
e dizer onde
está o peixe.”
Em pesquisa realizada sobre as repercussões
do PBF na alimentação, o Instituto Brasileiro de Análises Sociais
e Econômica (Ibase) traz o perfil
desses beneficiados. Em sua maioria, negros e pardos (64%) e mulheres
(94%)
entre 15 e
49 anos, sendo
que 27% delas
são mães solteiras.
Pelo estudo residem
em área urbana
78% das famílias.
Somente o estado
“Mesmo
sob uma
Constituição
que garante
o direito à
assistência
social, os
pobres são
culpabilizados
pela sua
condição.”
do Rio de Janeiro, a que, conforme
dados do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome
(MDS), são aportados, anualmente, R$ 1,96 bilhão para execução de
programas sociais, o PBF responde
por R$ 52,9 milhões mensais para
641,7 mil famílias fluminenses.
No Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas
(Ibase),
entidade fundada
por Betinho
e de onde
se origina o
“Fome Zero” incorporado como programa
de governo, analisa-se
que o fato do PBF estar presente na
oratória dos candidatos à Presidência, nas próximas eleições, não significa a plena aceitação do programa. “Se não houver críticas ao PBF,
é pelo temor de desagradar os eleitores. Pois elas continuam, de forma recorrente, sobretudo na mídia”,
expõe
Franc i s c o
Menezes,
diretorexecutivo
do Ibase,
lembrando “a cantilena” da
grande imprensa de que o PBF
acresce aos gastos públicos,
gera acomodação nos beneficiários e não resolve os problemas
reais, apenas criando compensações para a pobreza.
“Contudo, o programa tem
impacto sobre a desigualdade
e não se limita apenas à extrema
Outubro 2009
pobreza, mas também transfere renda para uma camada acima, que
vive com uma baixa renda”, avalia
Menezes.
Prova desta afirmação é o recente
levantamento da Fundação Getulio
Vargas (FGV), baseado na Pnad de
2008, do IBGE. O estudo constata
que 31 milhões de brasileiros subiram de classe social entre os anos
de 2003 e 2008. Entre eles, 19,4 milhões deixaram a classe E, que traça a linha da pobreza no país, tendo a renda domiciliar inferior a R$
768. Para muitos economistas, desde 2001, o Brasil vive um processo
de redução da desigualdade. Neste período, a renda per capita dos
10% mais pobres da população subiu 72%, enquanto a dos 10% mais
ricos
cresceu
aproximadamente 11%.
Quanto
à influência na
educação, Francisco Menezes classifica o PBF, no
qual 81% dos titulares do benefício
são alfabetizados e 56% completaram o Ensino Fundamental, como
indutor da manutenção das crianças na escola. “E, agora, dos adolescentes entre 15 e 17 anos, grupo
em que a evasão escolar
é alta, porém, ainda não
existe tempo para se falar
em impacto, pois não
há como avaliar
precisamente o
que significará dotálas de conhecimento que
Gasto social do Governo Federal per capita e
em valor real, de janeiro de 2006
(média em reais entre 2001-2002 e 2003-2005)
Fonte: MF/SPE/SIAFI e Pochmann, Márcio. “Gasto Social, o nível de emprego e a desigualdade de renda do trabalho no Brasil” In SICSÚ, João (org.)
Arrecadação (de onde vem) e gastos públicos (para onde vão)? São Paulo: Boitempo, 2007.
Outubro 2009
Políticas Públicas
UFRJ
21
Marcello Casal Jr/ABr
antes não tinham”, assegura o diretor da Ibase, confiante de que as
melhoras da alimentação e de outras necessidades essenciais se reverterão favoravelmente ao estudo.
“Ainda há muito a se fazer, principalmente quanto a uma escola que
responda satisfatoriamente ao que
a realidade atual exige”, preconiza
Menezes.
Estigma
Após o recente reajuste de 9,68%
no valor do benefício, o impacto do
PBF sobre o orçamento atinge R$
11,9 bilhões. Para Francisco Menezes, em termos de transferência
de renda, não se deve criar outro
programa e, sim, expandi-lo, alcançando grupos, famílias com
renda mensal por pessoa de até
R$ 120, ainda fora do PBF. “É preciso entender que o PBF destinase a quem tem pouca ou nenhuma
renda. Não devemos atribuir a ele
mais do que ele pode responder.
Agora, é fundamental pensar que
junto com ele devem ser construídos outros programas e ações
que propiciem condições para a
emancipação dos que vivem toda
sorte de carências”, aponta Menezes, que foi presidente do Conselho
Nacional de Segurança Alimentar e
Nutricional (Consea).
Entretanto muitos especialistas
observam a dificuldade de tornar
as políticas envolvidas diretamente ao PBF (Assistência, Saúde e
Educação) mais integradas. “A intersetorialidade é ainda um expediente formal, o cotidiano mostra
que cada uma se mantém no seu
quadrado”, compara Joana Garcia, também professora da Escola
de Serviço Social (ESS) da UFRJ,
constatando que a abrangência e
a visibilidade do PBF são incomparáveis. “Mesmo o programa do
leite, instituído por José Sarney
(1985—1990), que também teve
um efeito político em todo o território nacional, não alcançou a
expressão entre os beneficiários
que este programa obteve. A própria fundamentação do PBF busca
romper com a pessoalização, com a
cultura do favor e da tutela e começa a imprimir, mesmo que de um
modo ainda tênue, a idéia de direito à
assistência”, afirma Joana, advertindo
que “uma política de “enfrentamento
às desigualdades não se restringe à
transferência de renda, sobretudo a
uma renda tão residual.”
Segundo ela, faz-se necessária a
remissão a uma cultura dominante
que pensa a pobreza como atraso
ou ameaça. “Ambas as perspectivas
produzem uma espécie de ficção
em que a sociedade se apresenta
em oposição ao social. Mesmo sob
uma Constituição que garante o direito à assistência social, os pobres
são culpabilizados por sua condição. Ainda prevalece a premissa do
Jornal da
ensinar a pescar no lugar de dar
o peixe”, acredita a docente, concordando que prevalece um estigma negativo sobre os indivíduos
que mais necessitam de amparo do
poder público. “Nas sociedades capitalistas, que premiam o talento, o sucesso, o mérito, ser beneficiário de um
programa assistencial é evidência de
fracasso, de não ter conseguido suprir
as necessidades pelo poder de compra,
sem a mediação da ajuda filantrópica
ou de um programa social”, critica a
docente, enfatizando que os resultados do PBF na educação são positivos,
embora “o acesso das crianças e jovens às escolas não seja suficiente para
mantê-los e ainda menos para que seu
aproveitamento seja garantido. É, por
isso, necessário que a qualidade do en-
sino seja compatível com a oferta de
vagas.”
Entre as defesas do programa citase o exemplo de pessoas que conquistaram um emprego e, por conta própria,
dispensaram o benefício. Entretanto,
tal situação configura-se como uma
exceção. “Saem aqueles que não estavam tão vulneráveis. A mobilidade
social do grupo extremamente pobre
é muito mais lenta. Às vezes somente
conseguirão na geração seguinte, que
poderá ter acesso ao estudo”, lembra
Francisco Menezes, sustentando a
obrigação do Estado em cuidar de todas as pessoas, em especial das mais
frágeis: “Significa garantir os direitos
básicos e o PBF é um instrumento importante para isso, embora não seja o
único.”
Francisco indica ainda a impotência
de uma política social que até oferece
ganhos aos mais pobres, mas associada à uma economia que produz mais
desigualdade. “Será como enxugar
gelo. É preciso que as medidas econômicas se voltem para favorecer a maior
parte da população, ao invés de um
pequeno grupo. Essa transformação
somente ocorrerá com a constituição
de uma maioria política determinada
a romper com as condições de tanta
iniquidade que o país carrega”, prega o
ex-presidente do Consea, constatando
que “essa maioria se faz na sociedade
e não pode haver espaço para a indiferença. O momento clama pela
postura do cuidado com as políticas
públicas, o bem comum, a natureza e
com o próprio ser humano.”
22
Jornal da
UFRJ
América Latina
Outubro 2009
Bases da discórdia
Jefferson Nepomuceno
A assinatura de um acordo militar entre
os Estados Unidos e a Colômbia para a
utilização, por parte das forças armadas
americanas, de sete bases militares
em território colombiano, por 10 anos,
traz um novo momento de incertezas
para a política continental e de tensões
diplomáticas entre os principais atores
envolvidos.
Bruno Franco
pretexto para o acordo é
o combate ao narcotráfico e às Forças Armadas
Revolucionárias da Colômbia (Farc),
a ocasião escolhida para a assinatura
deveu-se ao fim do período de concessão da base militar, utilizada pelos
Estados Unidos, em Manta, Equador,
nos últimos dez anos, cuja renovação
já era rechaçada pelo atual presidente
equatoriano Rafael Correa, antes mesmo de sua posse.
Aliado estratégico dos EUA na região, Álvaro Uribe, presidente colombiano já em seu segundo mandato,
consentiu no arrendamento de sete bases militares como parte de um amplo
acordo estratégico que visa o combate
ao terrorismo e ao tráfico de drogas.
Outubro 2009
Com isso, chegará a 872 o número de
bases militares utilizadas pelas forças
armadas norte-americanas em outros
países. A manutenção desse opulento
aparato militar global custa 250 bilhões de dólares aos contribuintes estadunidenses.
Devido à preocupação que a instalação das bases provocou, sobretudo
nos países fronteiriços à Colômbia,
a União de Nações Sul-americanas
(Unasul) realizou uma cúpula extraordinária, na cidade argentina de Bariloche, dia 28 de agosto. Após longo
debate, os chefes de Estado das 12 nações que compõem a instituição aprovaram um comunicado que estabelece
que “forças militares estrangeiras não
podem […] ameaçar a soberania e a
integridade de qualquer nação sulamericana.”
Os 12 líderes concordaram em
fortalecer iniciativas de cooperação
contra o terrorismo e o crime organizado, bem como reforçar os laços de
confiança e segurança entre os países
da região. Nas acaloradas discussões
ocorridas na reunião anterior da
Unasul, em Quito, capital equatoriana, os presidentes Evo Morales (Bolívia), Rafael Correa (Equador) e Hugo
Chávez (Venezuela) foram enfáticos
na crítica ao acordo militar entre norte-americanos e colombianos. Chávez externou até mesmo o receio de
um ataque ao seu país. Uribe recebeu
apoio explícito somente de seu colega
peruano Alan Garcia, ao passo que
Lula, respaldado pela histórica trajetória de articulação de consensos do
Itamaraty, sugeriu a participação dos
Estados Unidos nos debates.
Rearmamento colombiano
O exército colombiano, graças aos
mais de quatro bilhões de dólares recebidos desde a implementação do
Plano Colômbia (iniciativa conjunta
desse país com os EUA para combate ao narcotráfico), se tornou um dos
mais bem-equipados – e de mais numeroso efetivo – exércitos sul-americanos. A Colômbia possui um contingente militar de cerca de 208.600
pessoas (para 44 milhões de habitantes), enquanto o Brasil, com seus mais
de 190 milhões de habitantes, tem um
contingente de somente 287.870 homens e mulheres no Exército.
De acordo com Karl Schurster,
pesquisador do Laboratório de Estudos do Tempo Presente (Tempo)
da UFRJ, sobretudo as três bases inicialmente previstas no acordo (nas
regiões de Apiay, Palanquero e Malambo) são altamente estratégicas.
Malambo situa-se próxima à fronteira da Venezuela, com saída para o
mar; Apiay fica próxima da fronteira
da Amazônia brasileira, na região conhecida como Cabeça de Cachorro e
Palanquero fica no centro da Colômbia. Desta região, um avião C-17, de
transporte tático, com tanque cheio
consegue sobrevoar metade do continente.
América Latina
Com a implantação do Plano Colômbia, há atualmente no país um
efetivo de 800 soldados norte-americanos e 600 contratados (terceirizados) que é o máximo que a legislação
interna permitiria. Com a instalação
das bases seriam mais 1.400 soldados.
Os interesses em questão
Para Franklin Trein, professor do
Departamento
de Filosofia do
Instituto de Filosofia e Ciências
Sociais (Ifcs) da
UFRJ, o acordo não significa
que haverá ingerência direta
norte-americana
em
assuntos
sul-americanos,
“mas, por certo
permite exercer
maior reconhecimento, controle e intimidação.
Em caso extremo fica mais fácil desencadear
ações ‘conjuntas’
com forças locais, para controlar situações
de conflito ou
que ponham em
risco o exercício
da ‘autoridade
local'.”
Para Schurster, a inserção
militar dos EUA
e a falta de clareza da política de
Obama para com
a América Latina
geram grande insegurança acerca
das intenções da
operação militar.
“Isso, mais uma
vez, coloca terra
sobre o projeto
sul-americano
de integração e,
talvez, esse seja
um dos motivos
pelo qual processos dessa natureza tenham
fracassado. Cada
país tem pensado seu projeto
particular
de
integração, não há projeto comum.
Quando nos aproximamos disso, com
a criação, no ano passado, da Unasul,
visando aproximar o Pacto Andino e o
Mercosul, o processo pode ir por água
abaixo”, lamenta-se o historiador.
As grandes inimigas que Bogotá
visa combater, com mais esse auxílio americano, são as Farc. O próprio
presidente Uribe tem sua trajetória
pessoal ligada ao combate à guerrilha.
“O pai dele (Álvaro Uribe), que era
proprietário de terras, morreu quando
teve sua fazenda invadida. Isso devota
Uribe ao combate às Farc, mesmo ele
tendo sofrido várias acusações por envolvimento com o narcotráfico”, relata
Schurster.
A libertação de Ingrid Betancourt,
em julho de 2008, foi uma vitória do
governo Uribe e calou vozes que contra
ele se levantavam. No entanto, Schurster alerta que
a Colômbia
continua sendo um país
institucionalmente inseguro. “Muitos
políticos foram
sequestrados e
mortos pelas
Farc nas eleições locais do
ano passado e
a imprensa e o
governo tentaram silenciar
quanto a isso.
Mas é claro
que há países
com fragilidade institucional maior,
como o Peru,
do presidente
Alan Garcia,
onde 11 ministros se demitiram em
um mesmo
dia.
Na opinião
de
Manuel
Sanches, professor do Departamento
de Ciência Política, também
do Ifcs, não se
pode discernir
os verdadeiros
objetivos do
acordo, mas
podem-se deduzir as ameaças percebidas
pelas partes e
seus interesses de longo
prazo,
tais
como “aproveitamento”
da bacia hidrográfica da
Amazônia;
interesse com relação ao potencial de
sequestro de carbono representado
pela floresta; também com relação
à biodiversidade e quanto aos recursos naturais, particularmente o
petróleo”.
O Exército
colombiano, graças
aos mais de quatro
bilhões de dólares
recebidos desde
a implementação
do Plano Colômbia
(iniciativa conjunta
desse país com os
EUA para combate
ao narcotráfico), se
tornou um dos mais
bem-equipados - e
de mais numeroso
efetivo - exércitos
sul-americanos.
A Colômbia possui
um contingente
militar de cerca de
208.600 efetivos
(para 44 milhões
de habitantes),
enquanto o Brasil,
com seus mais de
190 milhões de
habitantes, tem
um contingente de
somente 287.870
homens e mulheres
no Exército.
Contenção à política chavista
De maneira mais imediata, o bolivarianismo – proposta política de
Hugo Chávez de cunho popular e de
Jornal da
UFRJ
23
esquerda –, é fonte de preocupações
para norte-americanos e colombianos. ”Chávez tem origens militares
e, muitas vezes, se comporta como
tal. O apoio que tem dado ao Equador, à Bolívia, e à Argentina e, eventualmente, às Farc não tem se limitado a sua conhecida incontinência
verbal. Mas, longo prazo, a questão
amazônica parece ser mais séria que
a questão do combate ao tráfico de
drogas e às Farc” acredita Sanches.
Também no entendimento de
Schurster, os Estados Unidos têm
medo de que o modelo político venezuelano, chamado por Chávez
de bolivarianismo, prolifere pela
América do Sul. Isso já se demonstrava durante o governo George
W. Bush, com as discussões entre
Condoleeza Rice, ex-secretária
de Estado, e Hugo Chávez. “Uma
das preocupações que o próprio
governo venezuelano começa a demonstrar é que com a saída de Bush
e a eleição de Obama para a Presidência norte-americana o discurso de
Chávez começa a ficar politicamente
vazio. O inimigo foi embora e entrou
no governo uma pessoa extremamente popular e aberta ao diálogo (ainda
que não necessariamente bem-intencionada)”, explica Sanches.
No entanto, o advento do projeto de cooperação militar dos EUA
com a Colômbia permite a Chávez
discursar contra uma nova ameaça. “A maneira mais fácil de esconder problemas sociais em seu próprio país é atacar seus vizinhos.
Isso acontece muito com o Brasil,
que é alvo da política externa de
países vizinhos para que eles possam esconder seus problemas. É o
caso do presidente paraguaio Fernando Lugo, que tenta esconder o
escândalo de seus filhos (Lugo é
bispo da Igreja Católica) criticando o acordo de fornecimento de
energia da hidrelétrica de Itaipu”,
critica Schurster.
Para o pesquisador, ainda que
a América do Sul esteja passando por um processo de reformas
populares, as mesmas não podem
ser entendidas como socialistas.
“Mesmo Morales já fez discurso
falando em implantar o que chama de ‘capitalismo andino’”, relata
Schurster.
De todo modo, Schurster se
mostra pessimista quanto aos possíveis ganhos de que a Colômbia
poderia usufruir com mais esse
acordo com os Estados Unidos. “A
desarticulação do narcotráfico na
Colômbia não deu certo e o consumo de cocaína é cada vez maior.
Foram investidos milhões no Plano Colômbia, um projeto eminentemente fracassado. Os Estados
Unidos ocupam militarmente o
Afeganistão, que é, atualmente, o
maior exportador mundial de heroína”, critica o historiador.
24
Jornal da
UFRJ
Movimento Estudantil
Outubro 2009
A voz de muitas gerações
Coryntho Baldez
D
epois do golpe militar de
1964, uma extensa coleção de leis repressivas foi
sendo cuidadosamente elaborada pelos novos donos do poder para fechar
o cerco contra o movimento estudantil.
Em seu auge, a fúria normativa dos militares produziu o malfadado AI-5, em
fins de 1968, e uma excrescência jurídica nem sempre lembrada, o Decretolei 477, de fevereiro de 1969, que previa
penas administrativas, como demissões
e expulsões, para professores, funcionários e estudantes de universidades acusados de “subversão”, à revelia de qualquer
apreciação judicial. Antes, a ditadura já
havia editado a Lei Suplicy de Lacerda,
em 9 de novembro de 1964, que colocou
na ilegalidade a União Nacional dos Estudantes (UNE) e as suas similares estaduais, as UEE.
Mesmo debaixo da intensa repressão dos anos de chumbo, os estudantes
brasileiros conseguiram se reorganizar,
aos poucos, e voltaram maciçamente às
ruas, em 1977, para exigir mais verbas
para a Educação, a revogação de punições impostas aos colegas e a restauração
das liberdades democráticas. Dois anos
depois, fizeram o histórico congresso de
reconstrução da UNE, nos dias 29 e 30
de maio de 1979, que marcou o fim do
período de clandestinidade da entidade.
Realizado em Salvador, o 31º Congresso da UNE, que acaba de completar 30
anos, coincide com o início de uma nova
etapa da vida política do Brasil.
Tradição de resistência
Maria Paula Araújo, professora do Departamento de História
do Instituto de Filosofia e Ciências
Sociais (Ifcs) da UFRJ, considera o
congresso de refundação da UNE
um momento histórico de retomada
da tradição combativa dos estudantes na arena política brasileira, que
surpreendeu e incomodou bastante o
regime militar. Para arrefecer a força
do movimento estudantil que voltava
à cena, a ditadura ordenou a demolição
do prédio que, antes de 1964, abrigara a
sede da UNE, lembra a especialista em
História Moderna e Contemporânea.
“O prédio da Praia do Flamengo, no Rio
de Janeiro, foi derrubado em junho de
Manifestação
pelo petróleo em 1957. A UNE foi
uma das maiores defensoras da criação da Petrobras, participando ativamente da campanha “O petróleo é nosso”.
1980. Exatamente no momento em que
o movimento estudantil se rearticulava,
a ditadura derrubou o prédio que constituía um lugar de memória de suas lutas”,
assinala Maria Paula, que é pesquisadora
do Grupo de Estudos sobre a Ditadura
Militar do Programa de Pós-graduação
em História Social da UFRJ.
Para o atual presidente da UNE, Augusto Chagas, eleito no 51º Congresso,
realizado em 19 de julho de 2009, em
Brasília, a reconstrução da entidade somente foi possível porque o movimento
estudantil nunca deixou de existir, nem
mesmo durante a ditadura militar. Cita
como exemplo o congresso clandestino,
realizado em 1971, que elegeu como presidente da entidade o goiano Honestino
Guimarães, logo depois assassinado pelos militares. Após algumas lutas esparsas, duramente reprimidas, os estudantes levantaram a bandeira das liberdades
democráticas, em 1977, realizando as
primeiras manifestações pela volta da
democracia, como sublinha Chagas.
Os governos dos generais Ernesto
Geisel e João Figueiredo, pressionados
pela opinião pública, começaram, então,
Em 1942, estudantes protestam contra as
forças fascistas durante a Segunda Guerra mundial. O movimento estudantil mobilizou alunos, professores e intelectuais em oposição
aos regimes de Hitler e Mussolini.
a programar a política de distensão lenta
e gradual, de acordo com o dirigente. “É
exatamente nesse momento que o movimento se rearticula para reconstruir a sua
entidade nacional. A volta da UNE é marcada pela campanha da anistia ampla, geral e irrestrita e, mais tarde, pelas Diretas
Já”, observa o militante estudantil.
Augusto Chagas aponta a campanha
das Diretas Já como principal bandeira
nos anos seguintes ao congresso da reconstrução. E ressalta que o movimento
estudantil, em todos os cantos do Brasil, se mobilizou para derrotar a ditadura. Depois da queda do regime, ele
opina que a UNE passou a lutar por
um Brasil mais justo e igualitário e,
principalmente, por uma educação
pública de qualidade.
Nesse período, os estudantes também ocuparam as ruas com suas caras
pintadas para pedir o impeachment do
presidente Fernando Collor. Foram decisivos para o desfecho daquela memorável
mobilização nacional, em 29 de setembro
de 1992, quando o Congresso Nacional
depôs o autodeclarado “caçador de marajás”, hoje de volta à cena política.
“Também marcou esse período uma
bandeira específica, levantada desde a
década de 1980, que é a volta da entidade para a sua sede histórica”, frisa Chagas. Essa, aliás, já é uma reivindicação
vitoriosa. Depois de reaver a posse do
espaço doado à entidade pelo presidente
Getulio Vargas – na Praia do Flamengo,
132 – a UNE reerguerá a sua sede no
mesmo local. O projeto arquitetônico é
de Oscar Niemeyer e o convênio com a
Fundação da Caixa Econômica Federal
(Funcef) para a liberação de recursos foi
assinado no 51º Congresso.
Embora ressalte que muitas reivindicações da entidade, nos últimos 30 anos,
tiveram um caráter conjuntural, Maria
Paula também enfatiza que há bandeiras
históricas que jamais foram abandonadas. “Uma delas é a defesa da democracia na política. Em relação às questões
específicas, as lutas pela qualidade do
ensino e pela meia-entrada para estudantes também são históricas”, destaca a
pesquisadora.
Um difícil equilíbrio
Ao analisar as correntes políticas que
participaram do congresso de reconstrução, Maria Paula lembra que o movi-
Jornal da
UFRJ
Outubro 2009
25
Congresso histórico
de reconstrução da
UNE completa
30 anos.
Muitas bandeiras do
movimento estudantil
mantêm-se vivas
até hoje.
mento estudantil estava polarizado por
dois grandes blocos partidários. Um que
se articulava em torno do Partido Comunista do Brasil (PC do B) e outro que
reunia diversas correntes do Partido dos
Trabalhadores (PT).
A pesquisadora lembra que, entre
1980 e 1989, os dois blocos partidários
se revezaram na diretoria da UNE, mas
a partir daí concordaram em dividir, de
forma proporcional, os votos obtidos
na eleição para a diretoria da entidade.
“Tendências e correntes políticas sempre existiram, mas, pelo menos até agora, a entidade nunca se dividiu, sempre
se acatou a decisão das urnas”, assinala
Maria Paula.
Também para Augusto Chagas, a
grande marca da UNE é a sua unidade de ação, mesmo com a pluralidade
de idéias. Para o estudante de Sistemas
de Informação da Universidade de São
Paulo (USP), “as diferentes correntes de
pensamento na entidade a tornam democrática, forte e mobilizadora”.
A professora da UFRJ, ao analisar as
críticas hoje dirigidas à entidade quanto
a uma possível perda de autonomia frente ao poder público, afirma que não apenas o movimento estudantil, mas todos
os movimentos sociais, de modo geral,
vivem um impasse pela proximidade de
suas relações com o governo federal.
Augusto Chaves, porém, afirma que
a UNE sempre esteve do lado do de senvolvimento
do Brasil. Ressalta que
a entidade participou da campanha “O
petróleo é nosso!”, subiu no palanque do
presidente João Goulart para pedir as
“reformas de base” e lutou contra a ditadura. “Hoje, avaliamos que o governo
Lula teve avanços, mas falta muito ainda.
O problema é que a mídia não dá destaque a algumas das nossas ações. Fizemos
uma manifestação em Brasília, que reuniu mais de 20 mil estudantes, contra a
política econômica de Lula. Pedimos em
público a saída de Henrique Meirelles
do Banco Central, mas nada disso veio
à tona”, revela o estudante, citando, ainda, a luta que a UNE travou, nos últimos
anos, contra o Ministério da Educação,
para fazer avançar a qualidade do sistema educacional brasileiro. “Contudo,
é importante dizer que o governo atual
nos recebe para o diálogo, enquanto no
tempo de Fernando Henrique Cardoso,
o ministro da Educação, Paulo Renato,
batia a porta na nossa cara”, enfatiza Augusto Chaves.
Qual política?
Ao abordar o futuro do movimento estudantil, Maria Paula avalia que a
política ainda atrai os jovens, mas uma
política de outro tipo. Aponta a esfera
institucional como inteiramente desgastada e desacreditada, não apenas
pelos jovens. Para a docente, o que atrai
os jovens para a política, hoje, são as
mesmas questões de sempre, ligadas às
idéias de liberdade, justiça e igualdade.
Mas essas bandeiras não estariam localizadas mais nos partidos políticos,
e sim em
movimentos
sociais e culturais,
projetos e ações comunitárias, na luta pela defesa do meio
ambiente e pelos direitos iguais para
negros e índios. “Essa é outra forma
de pensar a polis e as questões políticas. Não sei se a atual diretoria da
UNE está atenta a essas novas práticas, mas é o que percebo nas ações
dos jovens ao meu redor”, analisa a
professora.
Já para o presidente da UNE, o futuro
do movimento
estudantil é continuar a luta para ampliar as
conquistas dos estudantes e por um
Brasil justo e democrático. Ele assinala
que, nos anos 1980 e 1990, o neoliberalismo tentou acabar com as formas coletivas
de organização, mas os seus alicerces econômicos ruíram. “O que vimos no último
congresso é que o movimento está muito
vivo e os estudantes com muita vontade
de lutar por seus interesses e pela soberania do Brasil”, completa Chagas.
Breve cronologia
Novembro de 1964
A Lei Suplicy de Lacerda, de 9/11, coloca a UNE e as UEEs na ilegalidade, que passam a atuar na clandestinidade. Todas as instâncias da representação estudantil ficam submetidas ao Ministério da Educação.
Início de 1965
A UNE convoca um conselho para eleger, com mandato-tampão, o presidente que a dirigirá até o 27º Congresso, em julho. Alberto Abissâmara, de tendências progressistas, é escolhido.
Julho de 1965
O 27º Congresso da UNE, em São Paulo, elege o paulista Antônio Xavier. É realizada uma campanha do movimento estudantil contra a Lei Suplicy de Lacerda.
Julho de 1966. Mesmo na ilegalidade, é realizado o 28º Congresso da UNE, em Belo Horizonte
(de 28/7 a 2/8), que marca a oposição da entidade ao Acordo MEC-Usaid. O congresso acontece no porão da
Igreja de São Francisco de Assis e o mineiro José Luís Moreira Guedes é eleito presidente.
Outubro de 1971
Em plena vigência do AI-5, ocorre na clandestinidade o 31º Congresso da UNE, que elegeu presidente Hosnestino Guimarães, morto em seguida pela ditadura. Este Congresso foi reconvocado seis anos depois.
1976
Começam os debates para o I Encontro Nacional de Estudantes (ENE), que visava a reconstrução da UNE.
Março de 1977
Os estudantes voltam às ruas, com uma passeata que reuniu quatro mil, em São Paulo, intensificando a luta
contra a ditadura.
Outubro de 1978
O IV Encontro Nacional de Estudantes, realizado em São Paulo, aprova a comissão Pró-UNE.
Maio de 1979
O 31º Congresso da UNE, em Salvador, marca a retomada da entidade. O baiano Rui César Costa Silva é
eleito presidente da entidade.
Fonte: Projeto Memória do Movimento Estudantil (www.mme.org.br/), organizado pela União Nacional dos Estudantes em colaboração com a Petrobrás, a Fundação Roberto Marinho, o Museu da República e a TV Globo.
26
Jornal da
Sociedade
UFRJ
Outubro 2009
A criança
Márcia Carnaval/Imagem UFRJ
no centro das atenções
A infância não é um fenômeno natural e eterno. Para muitos pesquisadores é um conceito que se forjou
historicamente, com a ascensão da burguesia ao poder.
Coryntho Baldez
E
mbora o dia 12 de outubro tenha sido oficializado
como o Dia da Criança em
1924, por decreto do presidente Artur Bernardes, a data ganharia visibilidade apenas em 1960 graças a uma
promoção comercial – a “Semana do
Bebê Robusto” – de duas conhecidas
fabricantes de produtos infantis. Desde então, a infância passou a ser alvo
de agressivas estratégias de venda e
foi alçada pelo mercado em expansão no Brasil, à semelhança do que
já ocorria em economias capitalistas
mais pujantes, à condição de valioso
segmento consumidor. Nas famílias
mais abastadas, de fato, a criança chega a ter hoje uma influência de 80%
nas decisões de compras do lar, segundo pesquisa da TNS InterScience
- Informação e Tecnologia Aplicada.
Por outro lado, o poder público
pressionado por setores sociais que
desejavam que a criança antes de ser
consumidora exercesse a sua cidadania, pelo menos nas leis, passou a dispensar atenção especial à infância. A
Constituição de 1988 e o Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA), de
1990, criaram condições legais para
que o Estado assegurasse os direitos
elementares da criança e a colocasse
a salvo de toda forma de negligência,
discriminação e exploração. Como
a previsão legal não garante, por si
só, a efetivação do direito, o trabalho infantil, por exemplo, ainda afeta
um contingente de 4,452 milhões de
menores entre 5 e 17 anos de idade,
segundo a última Pesquisa Nacional
por Amostra de Domicílios (Pnad)
de 2008, divulgada pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), em 18 de setembro passado.
A construção da infância
Mas, se hoje a infância desperta
interesses distintos, seja de um mercado sedutor e voraz ou de setores
públicos e sociais empenhados em
protegê-la, nem sempre foi assim.
Mesmo porque o conceito de infância, para muitos especialistas, não
é um fenômeno natural, mas uma
construção histórica. Segundo Patrícia Corsino, professora adjunta
da Faculdade de Educação (FE) da
UFRJ, os estudos acerca das crianças
ganham relevância a partir do século XIX. Mas foi no século XX que as
pesquisas da Psicologia, da Antropologia, da Sociologia, da Filosofia, da
Linguística, entre outros campos do
conhecimento, produziram as mais
ricas contribuições para que se possa
pensar a infância. “Há quem diga que
este foi o século da criança, tal a ênfase dos estudos dada a elas”, observa
a pesquisadora do Programa de Pósgraduação em Educação da UFRJ e
doutora em Educação pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).
Patrícia Corsino cita o livro “História social da criança e da família”, de
Philippe Ariès, lançado em 1973, para
reforçar a ideia de que a infância, no
sentido de diferenciação do adulto,
é uma construção da modernidade.
Tal conceito, para Ariès, teria surgido
de modo incipiente ainda no fim do
século XVII, nas camadas superiores da sociedade, e se sedimentado
no século seguinte. “De acordo com
este autor, na Idade Média, assim que
a criança tornava-se mais autônoma
em relação aos cuidados da mãe ou da
ama, logo se inseria na sociedade dos
adultos, participando dos seus trabalhos e jogos. Observando as pinturas
da época, vemos crianças e adultos
dividindo o mesmo espaço, as mesmas atividades e o mesmo vestuário,
numa grande sociabilidade. A única
diferença está no tamanho das figuras
representadas”, afirma Corsino.
As crianças, segundo a docente,
adquiriam os seus conhecimentos
junto aos adultos, sendo entregues
muitas vezes a famílias desconhecidas para que fossem educadas, prestassem serviços domésticos ou aprendessem algum ofício. Não havia escola
na Idade Média dirigida especificamente à criança. “Segundo Ariès, foi
a partir de uma série de mudanças
na sociedade, como a ascensão da
burguesia, a difusão do impresso e o
Outubro 2009
crescente interesse pela alfabetização
e a moralização, que ocorre a separação entre criança e adulto”, frisa a
pesquisadora. Então, a criança seria
mantida à distância antes de ser solta no mundo, numa espécie de quarentena: a escola, para o historiador
francês, era percebida como o lugar
inicial do longo processo de clausura.
E isso somente foi possível, segundo
Ariès, com a cumplicidade da família, que passou a experimentar uma
afeição pela criança, trazendo para si
a responsabilidade por sua proteção e
formação; tornando-se nuclear.
A infância no Brasil
Patrícia Corsino realça que, apesar de importantes e inovadoras, ao
identificarem o sentimento de infância como construção histórica, as
pesquisas de Ariès sofreram críticas
na época de sua publicação. Foram
acusadas de refletirem uma realidade européia que, embora tivesse forte
influência no mundo ocidental, não
pode ser generalizada ou transportada mecanicamente para outras realidades sociais, como a brasileira.
“Desde os primórdios da colonização, as diferenças contrastantes da
nossa sociedade, pela distribuição de
renda e de poder, fizeram emergir infâncias distintas para classes sociais
também distintas. O significado social dado à infância não foi homogêneo pelas próprias condições de vida
de nossas crianças. Portanto, usando
as palavras de Mary Del Priori, historiadora brasileira, a historiografia
internacional pode servir de inspiração, mas não de bússola para orientar
a construção deste sentimento entre
nós”, analisa Patrícia Corsino.
Para ela, a história da criança
brasileira foi feita à sombra de uma
sociedade que viveu quase quatro séculos de escravidão, tendo a divisão
entre senhores e escravos como determinante da sua estrutura social.
Portanto, na história do Brasil, a escolarização e a emergência da vida
privada burguesa e urbana não poderiam ter sido e não foram os pilares
sustentadores da construção do nosso sentimento de infância.
A inadequação das teses europeias
à realidade brasileira, no entanto, de
acordo com a professora, permite
compreender que o nosso sentimento
de infância foi sendo construído na
mesma lógica dicotômica escravista
de senhores e escravos, repleta de distorções e fruto de desigualdade. Assim, enquanto os filhos dos senhores
mandavam e o adulto escravo obedecia, os filhos de escravos, de mestiços
e de imigrantes, diante da pobreza e
da falta de escolarização, trabalhavam.
Como resultado desse processo
histórico, o Brasil hoje é um país que
ainda não reconheceu completamente as crianças como portadoras de
direitos, inclusive o de acesso a bens
culturais. Para Georgina Martins, que
Jornal da
UFRJ
Sociedade
integra a equipe de Literatura Infantil
da Faculdade de Letras (FL) da UFRJ,
a questão de fundo, que merece destaque, diz respeito às diversas concepções de infância no país. “Criança
pobre, ainda que a família disponha
de alguma fonte de renda, torna-se
mais um braço de mão-de-obra e, em
função disso, não sobra espaço nem
tempo para que ela possa usufruir
de bens culturais, sobretudo se os
pais não têm condições de valorizar
o conhecimento como algo importante para a formação. Nesse
aspecto, a criança que trabalha
não é vista como criança, logo
não tem direito à infância como
têm as crianças que não precisam
trabalhar”, afirma Georgina, autora de livros infantis e doutoranda
em Literatura Brasileira.
Patrícia Corsino concorda que
foi sob a égide de uma sociedade estratificada que foram sendo
construídas as muitas histórias
das crianças brasileiras. De acordo com a pesquisadora, a reconstituição do cotidiano infantil dos
diferentes grupos sociais e regionais tem permitido conhecer a trajetória histórica dos comportamentos
e das formas de ser da criança brasileira, desconstruindo a ideia de uma
natureza ou essência infantil idealizada e universal, tão difundida pela Pedagogia. “Nas histórias individuais e
coletivas das crianças brasileiras não
há uma resposta única às perguntas
sobre o que significa ser criança e
quando deixamos de ser crianças e
nos tornamos adultos”, questiona a
pesquisadora.
Apesar de evitar generalizações,
Patrícia Corsino afirma que um conjunto de situações sociais, políticas e
“Hoje, as crianças
despertam o
interesse tanto
do mercado, que
as trata como
consumidoras,
como de setores
empenhados
em garantir os
seus direitos de
cidadania”.
econômicas, além de estudos específicos, deram origem a uma ideia mais
global de infância, endossada por
organismos internacionais como a
Organização das Nações Unidas para
a Educação, a Ciência e a Cultura
(Unesco) e o Fundo das Nações Uni-
27
das para a Infância (Unicef). “A Declaração Universal dos Direitos das
Crianças, de 20 de novembro de 1959,
ao traçar os seus direitos, sintetizados
em proteção, provisão e participação,
define uma concepção de infância”,
constata Corsino, que é autora da tese
de doutorado “Infância, linguagem
e letramento: a educação infantil na
rede municipal de Educação do
Rio de Janeiro”.
Para a professora, o Brasil reconheceu os direitos das crianças e jovens e possui uma legislação avançada. A Constituição
Federal e o ECA – frisa – instituem outro olhar para elas, que
se traduz no conceito de proteção integral, concebida como
prioridade absoluta. Corsino
aponta avanços no Brasil em relação a muitos aspectos, como
a diminuição da mortalidade
infantil e das taxas de fecundidade, a quase universalização da
escolaridade obrigatória e a inclusão das crianças de seis anos
de idade no processo de escolarização obrigatória. “Mas ainda
falta muito para conferir cidadania
de fato a todas as crianças brasileiras. Faltam melhores condições de
vida e diminuição das desigualdades
sociais e políticas em grau suficiente
para transformar a realidade social”,
conclui a educadora.
Consumidoras, mas de quê?
Muitas propagandas insidiosas de linhas de produtos infantis invadem as telas da televisão brasileira às vésperas do Dia da Criança. Ao comentar a possibilidade de serem presas fáceis de apelativas estratégias de marketing,
Patrícia Corsino lembra que as crianças são hoje concebidas como agentes sociais plenos e, portanto, “agem no
mundo e também consomem”. A mídia sabe disso e se dirige diretamente a elas, destaca. “Mas sua autonomia é
relativa. Consomem o que os pais e adultos responsáveis autorizam. Cabe aos adultos negociar as escolhas, colocar
seus pontos de vista em discussão. Tudo isso dá trabalho e demanda tempo, diálogo, relacionamento familiar. A
questão está também na relação entre adultos e crianças. Que tempo os adultos dispensam às crianças?”, indaga a
professora da Faculdade de Educação da UFRJ.
Para Georgina Martins, a primeira questão que surge quando se debate a influência da propaganda sobre a
infância refere-se, também, à própria autonomia da criança, “que em termos legais não é autônoma, tampouco do
ponto de vista da proteção”. Lembra que vivemos numa sociedade capitalista, de regras postas pelo mercado: “É
ilusório pensar que a criança pode ficar livre dessa influência, embora seja isso que gostaríamos que ocorresse, o
que somente seria possível numa outra sociedade”, observa a especialista da Faculdade de Letras da UFRJ. Como
autora de livros infantis, vê também com pesar o fato de não haver propagandas de livros para crianças. “Quando
há, são sempre modestas, em geral ligadas a novelas, filmes e aos demais produtos de consumo”, critica a autora.
Rosa Gens, professora da Faculdade de Letras da UFRJ, tem a mesma opinião de que o papel da literatura infantil na formação das crianças poderia ser valioso e melhor explorado. “Há várias vertentes de ideias. Podemos
perceber a importância da literatura infantil no desenvolvimento da imaginação, no despertar da fantasia, na
compreensão e na interpretação do mundo, e na preparação para a ‘vida real’. E também para o desenvolvimento
cognitivo e a fixação de habilidades de leitura”, completa a coordenadora do curso de Especialização em Literatura
Infantil e Juvenil da Faculdade de Letras.
Imagem UFRJ
28
Jornal da
UFRJ
Aline Durães
P
“
agú tem uns olhos moles / uns
olhos de fazer doer. / Bate-coco quando passa. / Coração pega a bater./ Eh
Pagú eh!/ Dói porque é bom de fazer
doer (...)”. Dessa forma, Raul Bopp,
poeta modernista, definiu Patrícia
Galvão, no poema “Coco de Pagú”, de
1928.
Pagú, apelido dado pelo próprio
Bopp, foi uma das musas do Movimento Antropofágico da década de
1930 e ganhou notoriedade por ter
sido o estopim do divórcio entre Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade,
dois célebres personagens da Semana da Arte Moderna de 1922. O que
poucos sabem é que, para além da
beleza e das intrigas pessoais, Patrícia
Galvão deixou uma obra literária plural, marcada pela intensidade.
Ela iniciou cedo sua vida pública.
A paulista de São João de Boa Vista
demonstrava, desde a adolescência,
certa inclinação para a literatura.
Tanto é que, aos 15 anos, colaborava com textos para o jornal Brás. Já
nessa época passou a adotar a marca
indelével de suas obras: os pseudônimos. Patsy, Mara Lobo e King Shelter
foram alguns dos apelidos que assinaram as obras da escritora. “Ela gostava muito de brincar com os nomes,
de ser outra pessoa. Era uma maneira
de expressar sua multiplicidade, manifestada tanto na literatura como na
vida. Pagú vivenciou várias fases num
mesmo momento histórico. Era plural
e mostrava suas facetas”, explica Rosa
Gens, professora do Departamento
de Letras Vernáculas da Faculdade de
Letras (FL) da UFRJ.
Romance proletário
Parque industrial, de 1933, foi o
livro mais expressivo da obra de Patrícia Galvão. Considerado o primeiro romance proletário da Literatura
Brasileira, une a temática política
à estética da narrativa modernista.
Abusando de parágrafos curtos e de
pontuação frenética, Pagú aborda a
luta de classes ao descrever o cotidiano de trabalhadores durante o processo de industrialização em São Paulo.
Apesar de proveniente de família
burguesa, na opinião de Rosa Gens,
a autora conseguiu descrever a aura
de exploração que se abatia sobre o
proletariado do início do século XX.
“Pagú queria mostrar o ser proletário.
E conseguiu. Não me interessa dizer
se Parque Industrial é uma obra de alta
literatura; o que importa é o livro ter
se fixado. Ele é quase um documento
da época”, salienta a professora.
No decorrer da carreira literária,
no entanto, Patrícia Galvão se afasta
do compromisso político. À medida que se desilude com as propostas
comunistas, passa a tratar outras temáticas. Romances policiais, textos
autobiográficos, poesias. A escritora,
Pagú
A estrela esquecida
Persona
Outubro 2009
assim como a mulher, se reinventa.
“Pagú se move o tempo todo pelo
emotivo, pelo sentimental. Ela busca
transformação. Nunca é a mesma.
Chega ao momento em que não interessa mais a ela passar a imagem de
revolucionária”, ressalta Rosa Gens.
Militância e prisões
Ao longo dos seus 52 anos, Patrícia Galvão passou 22 vezes pela
prisão. Foi em Buenos Aires, no fim
da década de 1920, que ela teve seu
primeiro contato com as ideias socialistas. Em viagem à cidade, conheceu
Luís Carlos Prestes e, ao retornar ao
Brasil, ingressou no Partido Comunista Brasileiro (PCB). O estilo de
vida luxuoso e as festas deram lugar à
militância intensa.
Pagú chegou a morar em uma vila
operária e a trabalhar como lanterninha em um cinema para, assim, experimentar o modo de vida proletário.
Viajou o mundo em prol da ideologia
pela qual lutava, mas se decepcionou
com a pobreza que verificou em algumas regiões. Em um trecho do livro
Verdade e liberdade (1950), a escritora deixa transparecer sua desilusão:
“Em Moscou, um hotel de luxo para
os altos burocratas, os turistas do comunismo, para os estrangeiros ricos.
Na rua, as crianças mortas de fome:
era o regime comunista”.
Vida de antropofagia
Injustamente, Pagú passou para
a história como a amante do escritor Oswald de Andrade. Ainda casado com a pintora Tarsila do Amaral,
Oswald manteve um romance com a
jovem Patrícia Galvão. Por ele Pagú
teve acesso ao Movimento Antropofágico. Chegou a escrever para a
Revista da Antropofagia, criada pelo
escritor para difundir o movimento
que, entre outras coisas, pregava a
“deglutição” — e não a imitação — da
cultura externa pelos artistas brasileiros.
A vida pessoal de Pagú e em especial seu envolvimento com o poeta
“antropofágico” fugiam aos moldes
da sociedade paulista dos anos 1930.
Rosa Gens conta que a intenção do casal era, por vezes, chocar os mais conservadores: “Tanto é que eles casam em
um cemitério. Oswald gostava disso. Era
o palhaço da burguesia. Mas é claro que
a elite não aceitaria a relação deles. O casal enfrentou preconceitos; prova disso é
que, embora tivesse uma tese magnífica,
Oswald nunca conseguiu ser catedrático
da USP”, observa a professora.
A união com Oswald, finda depois
de cinco anos, em 1935, rendeu um filho a Pagú. A escritora casou-se novamente com o jornalista Geraldo Ferraz,
com quem teve o segundo filho e viveu
até sua morte, em 1962. Mas o espectro
do romance com o poeta modernista
continuou a rondar a figura pública de
Pagú; suas obras literárias, inclusive.
“Houve uma explosão Pagú, nos
anos 1970 e em parte dos anos 1980,
impulsionada por sua figura pública; ela atendeu aos propósitos feministas de libertação da mulher. Mas,
posteriormente, a escritora caiu no
esquecimento. Para se ter uma idéia:
desconheço pesquisas feitas no Rio
de Janeiro acerca dela. Isso mostra
que, por vezes, a imagem pública
apaga a imagem criadora. As obras
de Pagú estão esgotadas, as biografias também, o livro Parque industrial foi reeditado pela José Olympio, em 2006. Mulheres como ela,
que não tiveram vergonha de expor
publicamente o que eram, devem ser
recuperadas. Pagú foi uma estrela, em
todos os sentidos. E não do cinema,
mas da vida”, conclui Rosa Gens.
Download

Outubro de 2009