Gabinete do Reitor • Coordenadoria de Comunicação da UFRJ • Ano 4 • Nº 48 • Outubro de 2009 Caçadora de encantos literários Entrevista É com fascínio indisfarçável que Heloísa Buarque de Hollanda, professora titular da UFRJ, fala dos seus novos e provocadores projetos. Desde que, em 1976, lançou a já clássica antologia 26 poetas hoje, um ícone da poesia maldita brasileira, ela não para de desafiar o cânone literário com experimentos que impressionam pelo arrojo. Um deles é a antologia digital Enter – lançada em 11 de agosto – que reúne textos, vídeos, fotos e áudios de 37 poetas contemporâneos. Tudo o que ela faz sempre dá o que falar e não foi diferente quando decidiu entender como funciona a lógica da percepção poética no ambiente digital. Nesta entrevista ao Jornal da UFRJ, a pesquisadora também fala sobre o concorrido e único pós-doutorado em Estudos Culturais do Brasil, criado há 10 anos. Para além do cartão-postal 3a7 Heloísa Buarque de Hollanda 13a17 Quando o mínimo faz a diferença 28 Projetos de inclusão visual levam a fotografia para jovens de baixa renda e apontam a necessidade de a sociedade modificar o olhar estereotipado sobre a favela. Assim acontece na Escola de Fotógrafos no Complexo da Maré, criada em 2004. Ela é responsável pela formação gratuita de dezenas de jovens fotógrafos. A ideia é que eles se tornem “porta-vozes visuais” da sua própria realidade. O ensino vai aonde o aluno está 10a12 A cada dia, com o avanço das tecnologias da informação e comunicação, o conhecimento vem se desvinculando do espaço físico da sala de aula e da figura do professor. Ficou para trás a discussão sobre adotar ou não a Internet como ferramenta de ensino. A Educação a Distância (EaD) ressurge com força e se consolida como alternativa para o ensino de graduação. Mesmo aquém de uma justa distribuição de renda, o país diminui desigualdade através de políticas sociais. Além da unanimidade político eleitoral, avalia-se que a sociedade finalmente começa a perceber o papel do Estado na luta contra a exclusão social, gerada pelo capitalismo. Custando apenas 0,4% do Produto Interno Brasileiro (PIB), soma de todas as riquezas do país, o Programa BolsaFamília (PBF) está presente em 12 milhões de lares pelo país. 18a21 Pagú A estrela esquecida A vida pessoal de Patrícia Galvão, a eterna Pagú, e em especial seu envolvimento com o poeta “antropofágico” Oswald de Andrade, fugiu aos moldes da sociedade paulista dos anos 1930. O casal quis chocar os conservadores, a ponto de fazer sua cerimônia de casamento em um cemitério. O que poucos sabem é que, para além da beleza e das intrigas pessoais, Patrícia Galvão deixou uma obra literária plural, marcada pela intensidade. Mulheres como ela, que não tiveram vergonha de expor o que eram, devem ser recuperadas. Pagú foi uma estrela, em todos os sentidos. Zope 2 Jornal da UFRJ Outubro 2009 Agenda Reitor Aloísio Teixeira Vice-reitora Sylvia da Silveira Mello Vargas Pró-reitoria de Graduação (PR-1) Belkis Valdman Pró-reitoria de Pós-graduação e Pesquisa (PR-2) Ângela Maria Cohen Uller Pró-reitoria de Planejamento e Desenvolvimento (PR-3) Carlos Antônio Levi da Conceição Pró-reitoria de Pessoal (PR-4) Luiz Afonso Henriques Mariz Pró-reitoria de Extensão (PR-5) Laura Tavares Ribeiro Soares Superintendência Geral de Administração e Finanças Milton Flores Chefe de Gabinete João Eduardo Fonseca Forum de Ciência e Cultura Beatriz Resende Prefeito da Cidade Universitária Hélio de Mattos Alves Sistema de Bibliotecas e Informação (SiBI) Paula Maria Abrantes Cotta de Melo Coordenadoria de Comunicação (CoordCom) Fortunato Mauro JORNAL DA UFRJ é uma publicação MENSAL da coordenadoria de comunicação da Universidade Federal do rio de janeiro. Av. Pedro Calmon, 550. Prédio da Reitoria – Gabinete do Reitor Cidade Universitária CEP 21941-590 Rio de Janeiro – RJ Telefone: (21) 2598-1621 Fax: (21) 2598-1605 [email protected] Supervisão editorial João Eduardo Fonseca Jornalista responsável Fortunato Mauro (Reg. 20732 MTE) Edição e pauta Antônio Carlos Moreira e Fortunato Mauro Redação Aline Durães, Bruno Franco, Coryntho Baldez, Pedro Barreto, Rodrigo Ricardo e Sidney Coutinho Projeto gráfico Anna Carolina Bayer, Jefferson Nepomuceno, Patrícia Perez e Rodrigo Ricardo Diagramação Anna Carolina Bayer Ilustração Jefferson Nepomuceno, Vitor Vanes e Zope Fotos A.F.Rodrigues, Agência Brasil, Agência Imagens do Povo, Bira Carvalho, Fábio Café, Imagem UFRJ, Marcello Casal Jr, Marco Fernandes, Ratão Diniz, Ricardo Stuckert e Rousinaldo Lourenço Revisão Mônica Machado Instituições interessadas em receber essa publicação devem entrar em contato pelo e-mail [email protected] O Jornal da UFRJ publica opiniões sobre o conteúdo de suas edições. Por restrições de espaço as cartas sofrerão uma seleção e poderão ser resumidas. Fotolito e impressão Esdeva Indústria Gráfica 25 mil exemplares Aline Durães E Trabalho escravo em debate mbora oficialmente extinto há mais de um século, o trabalho escravo ainda assombra muitos brasileiros. Para debater a escravidão atual e pensar meios de combatê-la, a UFRJ organiza, entre os dias 21 e 23 de outubro, a terceira edição da Reunião Científica Trabalho Escravo Contemporâneo e Questões Correlatas. O evento, promovido pelo Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos (NEPP-DH) do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH) da UFRJ, reunirá especialistas e pesquisadores que, entre outros temas, vão discutir migração, trabalho e Direitos Humanos. A Reunião Científica acontece, a partir das 9 horas, no auditório do Anexo do CFCH, localizado na avenida Pasteur, nº 250, campus da Praia Vermelha. Confira abaixo a programação completa do evento. 21 de outubro 22 de outubro 23 de outubro 9h – Abertura 9h – Apresentações 9h – Apresentações 9h30 – Apresentação Migração e Trabalho – Representação política do trabalho escravo no Brasil contemporâneo. – O combate ao trabalho escravo na cana de açúcar no estado de São Paulo. – Manutenção do trabalhador escravizado nos canaviais sem desrespeitar os direitos trabalhistas. – Trabalhado escravo como fenômeno internacional. – Global Production Networks and the Problem of Forced .Labour in the European and UK Contexts. – Espanha. Tráfico de mulheres: expressão de desejo versus realidade dos fatos. – Imagens do escravo na literatura romana: Apuleio. 11h30 – Debate 11h20 – Debate. 13h30 – Apresentação Migração e Trabalho – Projetos de desenvolvimento, deslocamentos compulsórios e fragilização de populações locais. – Novos sentidos da pobreza e refuncionalização da servidão – O trabalho escravo no Brasil no século XXI. – Economia da precisão: estratégias de sobrevivência dos trabalhadores rurais em Codó, Maranhão. – Reflexões sobre a violência no processo migratório. – Mulheres de Atena. 13h30 – Apresentação Poder público e sociedade civil – Restrições das liberdades substantivas como indutoras do trabalho análogo à escravidão. – Trabalho escravo contemporâneo: crime e conceito. – MST Relações de trabalho na Zona da Mata alagoana nas décadas de 40 e a formação das agendas sociais privadas: um estudo a partir da questão do trabalho escravo contemporâneo. – Escravidão rural contemporânea: a sobrevivência de uma herança histórica do capital nacional. – Relato sobre a Ação Interinstitucional para qualificação e reinserção profissional dos resgatados do trabalho escravo em Mato Grosso. – Denúncias de “Trabalho Escravo” em Mato Grosso (1972-2005). – Escravidão contemporânea: relações existentes e estudo de caso. – Campanhas educativas para prevenção e combate ao trabalho escravo por dívida no Brasil rural: primeiras aproximações. – Geografia do Trabalho Escravo Contemporâneo no Brasil (1985-2006). – Rompendo grilhões: a função social da propriedade e o trabalho escravo como estratégias de desapropriação da fazenda Cabaceiras. 15h50 - Debate 15h50 - Debate 17h30 – Painel: Direitos Humanos NEPP-DH/UFRJ e Movimento Humanos Direitos (MHUD). 20h – Entrega do Prêmio João Canuto. 11h20 – Debate 13h30 – Avaliação da Reunião, discussão sobre novos encontros e sobre a publicação dos anais da reunião. Serviço III Reunião Científica Trabalho Escravo Contemporâneo e Questões Correlatas Data: 21 a 23 de outubro de 2009 Local: Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), 3º andar. Avenida Pasteur, nº 250, Botafogo, Rio de Janeiro. Dia 21, de 9h às 18h. Dia 22, de 9h às 20h. Dia 23, de 9h às 17h, http://www.nead.org.br/boletim/boletim.php?boletim=467¬icia=2186. Outubro 2009 Inclusão Social Jornal da UFRJ 3 A.F.Rodrigues / Imagens do Povo Projetos de inclusão visual levam a fotografia para jovens de baixa renda e apontam a necessidade de a sociedade modificar o olhar estereotipado sobre a favela. As fotos que ilustram esta matéria são de alunos da Escola de Fotógrafos do Complexo da Maré. Aline Durães Aline Durães F im de tarde de uma segunda-feira ensolarada. A atendente do bar Mundo Lindo serve mais um café expresso a um cliente. Do lado de fora, sentada em uma das mesas do estabelecimento, a mãe dá de beber a seu filho, enquanto segue com os olhos pessoas que retornam, a passos calmos, para casa, depois de um dia de trabalho. Para além do cartão-postal 4 Jornal da UFRJ Apesar de não parecer, a pacífica cena acontece em Nova Holanda, uma das 16 favelas que compõem o Complexo da Maré. Cenários como esse, embora comuns nas periferias da cidade, contrastam com as imagens que bombardeiam a população diariamente. Acostumados às cenas de violência, pobreza e tráfico de drogas, muitos brasileiros acabam por desenvolver uma visão deturpada — e preconceituosa — das comunidades de baixa inclusão social. A Declaração dos Direitos Humanos preconiza, há seis décadas, que a Comunicação é um direito universal. Entretanto, desde que o fotógrafo Louis Daguerre apresentou, em agosto de 1839, sua fotografia na Escola de Belas Artes de Paris, inaugurando, assim, os 170 anos da história oficial da fotografia, as classes de menor renda são excluídas do processo de produção da própria imagem. “A visão da nobreza, da burguesia, da classe média predomina, é hegemônica. A periferia regularmente é mostrada, mas não se mostra”, destaca Dante Gastaldoni, professor de Fotojornalismo da Escola de Comunicação (ECO) da UFRJ. Para combater a exclusão visual que afeta milhões de brasileiros, algumas iniciativas vêm sendo desenvolvidas. Cada vez mais, a periferia encontra mecanismos de se mostrar e de combater os preconceitos que a rondam. Dentre todas as manifestações artísticas, a fotografia possui força singular. Gastaldoni explica que, por não demandar uma infraestrutura cara e por ser um ato eminentemente solitário, a fotografia se torna mais atraente para os jovens de baixa renda. “Ela tem a característica quase única de ser um trabalho solo e pleno. Não existe como fazer uma foto a dois. Ela é solitária na sua essência. Além disso, a estrutura de execução é fácil e simples. Com a tecnologia digital, ela passou a ser mais acessível também. Hoje, é possível fotografar, armazenar as fotos e veiculá-las a um custo baixo”, conjectura o especialista em Linguagem Fotográfica. Por um novo olhar Em todo o Brasil, multiplicamse movimentos e organizações que têm como objetivo principal suscitar em jovens e crianças, que vivem em situação de risco social, o interesse pela fotografia. Guiados pelo conceito de inclusão visual, a intenção desses projetos é ensinar técnicas de foto e levar cidadania para os moradores de comunidades populares. Com uma máquina nas mãos, os jovens fotógrafos mostram o cotidiano das favelas, aumentam sua autoestima e, em última instância, combatem a visão propagada pela grande mídia, que as retrata, Inclusão Social Outubro 2009 Rousinaldo Lourenço A.F.Rodrigues / Imagens do Povo Fábio Café Outubro 2009 Ratão Diniz/Imagens do Povo Bira Carvalho Ratão Diniz/Imagens do Povo Inclusão Social Jornal da UFRJ 5 na quase totalidade das vezes, como o lugar da tragédia. Assim acontece na Escola de Fotógrafos da Maré, criada em 2004, pelo fotógrafo João Roberto Ripper. Localizada no Complexo da Maré, ela auxilia na formação de dezenas de jovens ao fornecer, gratuitamente, um curso de fotografia. A ideia é que esses novos fotógrafos tornemse “porta-vozes visuais” da sua própria realidade. Coordenado por Dante Gastaldoni, o curso de 540 horas-aula tem duração de 12 meses. “O trunfo da Escola é justamente ser um local de excelência, que prima por dar conhecimento a um grupo de jovens de periferia, na esperança de que alguns, seduzidos pela paixão e de posse de informações técnicas, transformem-se em fotógrafos. Essa fotografia é nova e poderosa, pois já sugere a inclusão visual”, enfatiza o professor. Para ingressar na Escola, os interessados devem se inscrever e passar por entrevistas com os coordenadores. As aulas são ministradas das 9h às 13h, de segunda a sexta-feira. O curso é dividido em três módulos de 180 horas cada – Linguagem Fotográfica, Informática Aplicada à Fotografia e Fotografia Documental e Olhar Autoral. Os critérios principais de seleção são a vontade e a disponibilidade do candidato para frequentar as aulas. Além de modificar o olhar de jovens acostumados às lentes massificadas da grande imprensa, a Escola abre as portas do mercado de trabalho e auxilia na inserção social dos alunos. “A gente não descarta a empregabilidade como objetivo. Felizmente, eu posso dizer que, entre os 60 jovens que já passaram pela escola nos dois últimos anos, mais de 20 são proprietários de câmeras digitais profissionais, ou seja, estão habilitados a executar pautas com seu próprio equipamento”, sublinha Dante. Adriano Rodrigues é um deles. Nascido e criado na Maré, 30 anos, foi um dos primeiros alunos da Escola de Fotógrafos. Atualmente, trabalha com fotografia na Prefeitura do Rio de Janeiro. Ele conta que, por ter o ensino superior completo, chegou a ser vetado no curso. Mas insistiu. “Fui selecionado para uma Pós-graduação em Campos (RJ), com direito a bolsa, e abdiquei em função do curso de fotografia. Eu tive que escolher e optei pelo que gostava. Senti dificuldades durante todo o curso, porque as aulas são pesadas. Ao contrário dos demais projetos que participei, a escola o qualifica em um ano, de forma muito intensa”, avalia Rodrigues. A influência da mídia É consenso entre os entusiastas do conceito de inclusão visual que 6 Jornal da UFRJ Inclusão Social Outubro 2009 Bira Carvalho Ir além do olhar da mídia, descortinando para o mundo o lado humano da favela, é uma das principais lições dos projetos de inclusão visual. No lugar das cenas de conflitos, as câmeras buscam apreender momentos triviais da comunidade. a imprensa é a grande responsável pela imagem negativa da favela junto ao imaginário social. Basta abrir um jornal para verificar que as notícias ambientadas em comunidades de baixa inclusão social referem-se, na maior parte das vezes, às temáticas da violência e do tráfico. Dante Gastaldoni compartilha dessa opinião, mas pontua que, embora a mídia estigmatize essas localidades, ela não pode ser vilanizada. Na opinião de Dante, a imprensa está inserida em um processo histórico que valoriza a fotografia de tragédia. O fotojornalismo nasceu com a cobertura de guerras. Tanto o inglês Roger Fenton quanto o norte-americano Mathew Brady, consi- derados os dois primeiros repórteres fotográficos da mídia impressa, cobriram eventos conflituosos. O primeiro esteve na Guerra da Crimeia (1853 a 1856, Sul da Rússia e Bálcãs). Já Brady fotografou a Guerra da Secessão (1861 a 1865, entre os estados norte-americanos do Sul e os do Norte). Mas por que a tragédia ocupa tanto espaço? Para Gastaldoni, a resposta é simples: “Tragédias são notícias. Veicular notícia ruim tem apelo social. Nenhum jornal destina uma página inteira para divulgar um prêmio Nobel, mas dá várias páginas para informar sobre o tsunami, por exemplo. Então, se existe a mentalidade de que a boa notícia é a tragédia, quando os jornais vão à favela? Quando acontece algo trágico. Esse processo reforça a máxima de que a favela é o lugar do terror, da violência. No entanto, essa é uma das maiores mentiras com as quais eu já convivi. Ninguém entende o que é uma favela até entrar nela. Ao entrar, você se depara com relações de solidariedade estabelecidas num mundo onde não há quintais ou cercas. E percebe também que mais de 99% da comunidade são pessoas guerreiras, que trabalham, que ganham a vida em condições adversas. Mas, na verdade, um pequeno percentual de transgressores acaba ocupando o lugar de todos os demais no imaginário social”, pondera o professor. Gastaldoni alerta, no entanto, não existir um antagonismo maniqueísta entre os fotógrafos populares e os da grande imprensa. Pelo contrário, para ele, parte do sucesso da Escola de Fotografia da Maré pode ser atribuída às palestras ministradas por profissionais consagrados do fotojornalismo aos alunos do curso. O olhar incluído Por estarem em contato com renomados fotojornalistas e disporem de equipamentos de última geração, os fotógrafos do projeto social da Maré possuem qualidade técnica profissional. O diferencial desses jovens reside na subjetividade. “Existem diferenças autorais, de enquadramento e temáticas. Geralmente, quando um fotógrafo da grande imprensa chega à comunidade, o lugar está numa situação de tensão e é isso que ele fotografará. Já os alunos, por documentarem o dia a dia, priorizam elementos de sedução, de beleza, de magia. Tem certas coisas que você somente percebe se pertence àquele território”, ressalta Dante Gastaldoni. Ir além do olhar da mídia, descortinando para o mundo o lado humano da favela, é uma das principais lições dos projetos de inclusão visual. Adriano Rodrigues narra que, no lugar das cenas de conflitos, sua câmera busca apreender momentos triviais da comunidade: “Fotografo um cotidiano que não é revelado, o cotidiano do trabalhador, do lazer, do esporte. Pretendo mostrar que aqui tem pessoas interessadas em transformar-se e em transformar o mundo delas. Retrato a questão da violência sim, mas fotografo a violência da ausência: a violência do Estado no que se refere à saúde, quando faltam médicos e remédios nos postos de atendimento; a violência da ausência nas escolas que carecem de professores e de carteiras; a ausência do trabalho, da diversão.” Marcas indeléveis Para meninos e meninas que convivem diariamente com o descaso do Estado, os projetos de inclusão visual se constituem em uma nova maneira de se apresentar ao mundo e de se enxergar. E iniciativas como essas deixam marcas. “Quando eu estou fotografando um morador da favela, eu me vejo ali, tento me colocar no lugar daquela pessoa para não pecar na hora do clique. A principal lição é estar sempre de olho aberto para ver o mundo com a sua multiplicidade de vidas, de cores, de pessoas. É estar aberto para enxergar valor nas diferenças”, opina Adriano Rodrigues. Já para Dante Gastaldoni, a experiência de suscitar em jovens carentes a paixão pela fotografia é, no fim das contas, um ganho de vida para os profissionais envolvidos na coordenação das atividades do projeto. “Transitar pelas favelas é um exercício de vida fantástico. Temos que ter uma visão do Brasil para além do cartãopostal. O rompimento de algumas barreiras me fez conhecer pessoas fantásticas e talentosas. Olhando pra trás, percebo que eu vivia em uma cidade estereotipada. Esse projeto me fez mergulhar em uma cidade mais verdadeira”, finaliza o fotojornalista. Outubro 2009 Inclusão Social Jornal da UFRJ 7 Ratão Diniz/Imagens do Povo Para meninos e meninas que convivem diariamente com o descaso do Estado, os projetos de inclusão visual são uma nova maneira de se apresentar ao mundo e de se enxergar. E iniciativas como essas deixam marcas. 8 Jornal da Plano Diretor UFRJ Outubro 2009 Inovação a serviço do meio ambiente Trunfos tecnológicos em prol de uma cidade energeticamente responsável Rodrigo Ricardo I novação, tecnologia e meio ambiente. A tríade tem valor sagrado no Plano Diretor UFRJ 2020 para transformar o campus da Cidade Universitária em espaço ambiental e energeticamente responsável. Essa meta exige esforços em pesquisa e o compromisso de toda a comunidade acadêmica, além de uma política que aponte um conjunto de práticas a ser perseguido. E que, quando conquistado, deve manter-se tão vivo e rotineiro quanto a necessidade de respirar. A versão preliminar do Plano Diretor, em debate e aberto a contribuições públicas desde abril, encara a proposta como “ambiciosa”, porém, aponta a política e os múltiplos passos e aspectos a serem trilhados. “Uso responsável e econômico dos recursos materiais, busca de fontes alternativas de energia; gestão e destinação adequada de resíduos sólidos, redução da poluição atmosférica e de emissões de gases de efeito-estufa”, enumera o documento, previsto para ser apreciado já em outubro pelo Conselho Universitário (Consuni), que deliberará sobre a aprovação final do conjunto de diretrizes e programas que nortearão os rumos da UFRJ na próxima década. Mesmo em ritmo aquém do desejado, parte desse futuro já começa a acontecer no presente com a despoluição dos canais do Cunha e do Fundão. Depois de passar 15 anos em idas e vindas, o trabalho, enfim, está em andamento. Segundo Ângela Rocha, decana do Centro de Ciências e Matemática da Natureza (CCMN) da UFRJ, o tema integra a agenda da universidade há cerca de quatro anos. “A revitalização do Cunha e do Fundão melhorará a qualidade de vida da Cidade Universitária e do Rio de Janeiro”, frisa a professora, que também preside a comissão que acompanha e fiscaliza as obras, de conclusão prevista para daqui a dois anos. Tudo graças a investimentos da ordem de R$ 200 milhões oriundos da Petrobrás, por conta de uma compensação da empresa devida ao estado fluminense. “Os efeitos das obras ainda não são visíveis, mas a administração estadual tem dito que quer acelerar o trabalho e concluir as estruturas em setembro de 2010”, informa Ângela. Com o fim do assoreamento dos canais, que impede a circulação das águas e prejudica a pesca, as enchentes que atingem a Vila Residencial da UFRJ, localizada na ala sul do campus, devem chegar ao fim. Estima-se que 200 milhões de metros cúbicos de sedimentos sejam retirados por dragas. Após esta etapa, serão utilizados os tubos geotêxteis na separação e descontaminação do material recolhido. A água tratada será devolvida aos canais e o material sólido permanecerá no “geobag”. “O pioneirismo do sistema pode permitir que ele seja utilizado como modelo para a despoluição de outras áreas”, avalia Ângela Rocha. Vitrine da inovação “Temos aqui e, em expansão, uma vitrine da inovação”, observa Ângela Uller, pró-reitora de Pós-graduação e Pesquisa (PR-3) da UFRJ, analisando a Cidade Universitária como ambiente destinado ao trabalho de inovar e buscar a experimentação. “A existência, nos limites da UFRJ, de três incubadoras de empresas, dois parques tecnológicos e os mais de 2,5 mil projetos assinados com Outubro 2009 Plano Diretor empresas a cada ano não deixam dúvida quanto a sua vocação. Precisamos aplicar em benefício do campus o conhecimento gerado dentro dele”, afirma Ângela Uller, destacando iniciativas de êxito como o Laboratório de Controle de Dopagem (Labdop) – ligado ao Instituto de Química (IQ) da UFRJ e credenciado pelo Comitê Olímpico Internacional (COI). Outro destaque sublinhado pela pró-reitora, organizadora da reunião do Conselho Participativo do Plano Diretor sobre Tecnologia, Inovação e Meio Ambiente, é o veículo desenvolvido pelo Laboratório de Hidrogênio do Instituto Alberto Luiz de Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe) da UFRJ. “Trata-se de um ônibus urbano para 70 passageiros, movido de forma híbrida por eletricidade e hidrogênio, que simplesmente não produz nenhuma emissão de CO2 (dióxido de carbono)”. De acordo com o coordenador do projeto, Paulo Emílio Valadão de Miranda, o diferencial do ônibus encontra-se em sua tecnologia, desenvolvida exclusivamente por pesquisadores brasileiros. “Criamos um banco de baterias que pode ser alimentado por conexão a uma rede elétrica externa ou, ainda, com a regeneração de energia cinética em elétrica. Enfim, o próprio movimento do veículo é aproveitado como fonte energética”, explica o cientista, detalhando que o veículo tem três portas e o chassi rebaixado para proporcionar acessibilidade aos portadores de deficiências físicas. A adoção de medidas responsáveis no campo ambiental e energético, ao longo dos anos, possivelmente se converterá em enorme economia para as contas da universidade. Estima-se, por exemplo, que com a construção de uma usina térmica de lixo poder-se-á reduzir em aproximadamente 40% as futuras contas de luz. Atualmente, a energia elétrica está entre as maiores despesas da UFRJ. De acordo com a versão preliminar do Plano Diretor, um valor que alcança cerca de R$ 25 milhões por ano. Diante da expansão da universidade, inclusive com aulas noturnas, quando a tarifa é mais cara, o documento aponta a necessidade de modelos racionais, eficientes e recomenda atenção a alternativas ainda em fase de desenvolvimento como energia eólica e solar. O Plano Diretor estabelece ainda que quando o Maglev-Cobra (trem de levitação magnética) estiver operando no campus, os ônibus que hoje respondem pela circulação interna na Cidade Universitária poderão ser dispensados, resultando em uma economia que se aproxima de quatro milhões de reais por ano. Desenvolvido em etapas, o experimento da Coppe conta com o aporte do Banco Nacional de Desenvolvimento Social e Econômico (BNDES) para construir os primeiros 150 metros de trilhos. “Ele é viável em escala real”, destaca Richard Stephan, coordenador do Maglev, pontuando que o veículo tem motor elétrico e não polui o meio ambiente. “A tecnologia em que estamos trabalhando é diferente da executada em outros países. Jornal da UFRJ 9 Trata-se de uma alternativa de transporte para os centros urbanos, de trens saindo a cada três minutos e circulando a uma velocidade de até 70 km/h.” Catamarã A partir da economia realizada com a substituição de pelo menos parte da frota de ônibus, a idéia é estender 4,3 km de trilhos imantados para que o trem, literalmente, flutue pela Cidade Universitária. Para Eduardo Gonçalves David, professor da Coppe e também pesquisador do Maglev, o transporte consome menos energia e ainda apresenta menores custos de manutenção do que os sistemas metroferroviários existentes, aplicando sofisticada tecnologia nacional. “O veículo permitirá a interligação com o metrô de Del Castilho e com a Fiocruz”, avisa David, receando o curso que vem tomando o projeto de implantação do Trem de Alta Velocidade (TAV) para ligar Rio de Janeiro a São Paulo e a Campinas. “A análise inicial da consultoria inglesa (Halcrow) trouxe diversos e polêmicos erros de estudo de impacto ambiental e urbanístico. O projeto da Coppe poderia aproveitar os trajetos das linhas de trem e, por utilizar vias em elevação, não necessitaria da escavação nos 15 quilômetros de caminhos subterrâneos, como previsto pelos britânicos”, critica David. Maior aposta de infraestrutura do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do governo federal, avaliado em mais de R$ 34 bilhões, o traçado inicial do TAV, quando em consulta pública na Agência Nacional de Transportes Terrestre (ANTT), cortava o campus da UFRJ. Itinerário que acabou alterado após a reação da comunidade acadêmica ao ser ferida em sua autonomia. “O TAV Roda-Trilho é uma máquina de datilografia. O Maglev é um computador. É preciso quebrar paradigmas”, defende Eduardo David. Outro reforço para a dupla integração proposta pelo Plano Diretor UFRJ 2020 vem pelo mar. “Estamos trabalhando no desenvolvimento de dois barcos”, anuncia Fernando Amorim, coordenador do Laboratório de Pólo Náutico vinculado à Engenharia Naval e Oceânica da UFRJ. “Eles contarão com motores elétricos e painéis solares. Inicialmente, queremos, até o fim do ano, construir uma primeira embarcação com cerca de 12 metros de comprimento e com velocidade de 15 nós (cerca de 28km/h) para 40 passageiros.” O primeiro trajeto a ser experimentado ligaria a Ilha do Governador à Cidade Universitária. “Ainda estamos analisando, mas o itinerário seria da Praia da Bica até um local que permita a integração com o Terminal Rodoviário que está em construção. O porto, provavelmente, seria próximo ao Centro de Ciências da Saúde (CCS)”, explica Amorim, lembrando que o segundo barco com 30 metros, velocidade de 25 nós e com capacidade para 200 passageiros está sendo planejado para ligações com Niterói e com o campus da Praia Vermelha. “Será um serviço gratuito com o meio hidroviário integrado ao sistema interno de circulação da universidade.” 10 Jornal da UFRJ Educação a Distância Outubro 2009 Sidney Coutinho V ai ficando para trás a discussão acerca da adoção ou não da Internet como ferramenta de ensino. A Educação a Distância (EaD) ressurge com força e se consolida como alternativa para o ensino de graduação. É o que demonstram os levantamentos realizados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) apontando que os estudantes dos cursos a distância estão se saindo, na maioria das vezes, melhor do que os de cursos presenciais. Relatório da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), Education at Glance 2009 (Panorama da Educação, 2009), divulgado no início de setembro, revela que apenas 10% dos brasileiros entre 25 e 34 anos de idade têm formação superior. A EaD pode ser a ferramenta que auxiliará na reversão do quadro, como acredita Masako Oya Masuda, bióloga, professora do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho (IBCCF) da UFRJ, presidente do consórcio Cederj (parceria entre o governo fluminense com as seis universidades públicas do Estado do Rio de Janeiro). Para ela, a possibilidade de acesso a um curso de graduação em uma das seis universidades se tornou mais democrática com a EaD, porque alcança pessoas que vivem não apenas na capital, mas também no interior. Hoje, são 33 polos espalhados pelo estado, em cidades a 344 km distantes do Rio, como Itaperuna. “Nos vestibulares que fazemos, específicos para cada polo e para cada curso, cerca de 70% dos alunos são moradores da região. Se é importante aumentar o número de estudantes na universidade, o aumento da capilaridade territorial da formação supe- rior também é um fator muito importante para o desenvolvimento”, afirma a dirigente do Cederj. Empreitada exitosa Lembrando “Nos bailes da vida”, de Milton Nascimento, a EaD vai, literalmente, aonde o aluno está. Segundo Masako, diferentemente do ensino presencial que fica aguardando o aluno na sala de aula, no sistema EaD faz-se de tudo um pouco para estimular a participação do estudante. “Se ele passou no vestibular, mas tem dificuldade em determinada área, não consegue evoluir, pela flexibilidade, a gente consegue colocar elementos para que ele possa recuperar uma porção de coisa que ficou para trás. A partir daí, o estudante consegue caminhar muito bem. Então são várias alternativas que a EaD oferece para aumentar o acesso das pessoas à educação em nível superior”, assegura a professora. Mas a EaD também é alvo de pesadas críticas. Um histórico que a associa a curso por correspondência ainda persiste, sem contar que há uma forte carga de preconceito em relação à metodologia de ensino, principalmente por parte de profissionais “tecnofóbicos”, que resistem ao contato com computadores e com a Internet. Em junho deste ano, por exemplo, um dos motivos da greve da Universidade de São Paulo (USP) foi a recusa em implantar o sistema na instituição. Na época, Marilena Chauí, filósofa, professora da USP, engrossou o coro dos opositores afirmando que a EaD desqualifica a formação universitária. A diretora da Divisão de Educação da Pró-reitoria de Extensão da UFRJ, Cleide de Morais Lima, que coordena outro importante programa de EaD na instituição, acredita que o preconceito em relação ao sistema retardou a entrada das universidades públicas na modalidade. “A EaD traz a possibilidade de atualizar e acrescentar conhecimentos em novos contextos e fazer a interação entre os ensinos. É esse o papel das universidades públicas, que, na verdade, têm compromisso com o conhecimento e com sua formulação. E, no meu ponto de vista, elas podem fazer isso melhor do que as universidades particulares”, afirma a diretora. “Todos os indicativos que temos, se eles são válidos, vão de encontro ao que Marilena Chauí disse”, contesta Masako Masuda. Segundo ela, ainda é cedo para uma avaliação aqui no Brasil, pois os reflexos da graduação do EaD do Cederj somente poderão ser percebidos ao longo dos anos com a melhoria da qualidade de ensino. No entanto, a aprovação de estudantes em concursos públicos para docentes mostra o êxito da modalidade. “Não há uma prefeitura ou uma secretaria de Educação que não tenha ex-alunos de nossos cursos. Sei é que pessoas que não poderiam estar estudando em uma universidade estão estudando com a EaD. E essas mesmas pessoas estão ingressando no mercado e competindo com outras que vieram do sistema presencial”, afirma a educadora, ressaltando ainda que a qualificação universitária está beneficiando as cidades, pois as pessoas procuram fazer concursos para as prefeituras nas localidades onde moram. Para Cleide Morais, a EaD tem problemas assim como o ensino presencial, “mas não fazer EaD nos coloca em uma posição de elite, até porque é nosso dever, enquanto universidade pública, pensar sobre as metodologias de ensino, o que somente ocorre quando a gente faz, e é quando são reformuladas. Não adianta olhar e dizer que é ruim. É preciso dizer que não cabe por isso ou por aquilo. Não é bom ter uma visão preconceituosa e intolerante acerca daquilo que não se conhece. Acho que é um absurdo completo dizer que a EaD desqualifica o diploma de uma universidade.” De acordo com ela, não basta conteúdo bem formulado, é necessário acompanhar bem todo o processo para que não vire uma farra. “Não basta a pessoa entrar e apenas cumprir tarefa. Tem de ter avaliação, acompanhamento, interação qualificada. Eu acredito na EaD na formação, na capacitação, na qualificação, no treinamento profissional, na especialização lato sensu etc.”, opina Cleide. As ações desenvolvidas pela Pró-reitoria de Extensão datam de 2001 e acontecem em colaboração com a Secretaria de Educação a Distância do Ministério da Educação e com a Secretaria de Estado de Outubro 2009 Educação do Rio de Janeiro. Dessa maneira a UFRJ participa ativamente do processo de capacitação dos educadores da rede pública de ensino no Estado do Rio de Janeiro com o objetivo de integrar os profissionais de ensino superior e os professores do ensino básico. Gestão é crucial Para Masako Masuda, a gestão é crucial na Educação a Distância. Enquanto no modelo presencial o principal é o professor e a sala de aula, na EaD é preciso saber se cada etapa do processo está funcionando. Verificar se o material está chegando, se há um computador disponível para o estudante, se ele está funcionando, se há energia elétrica no polo, “enfim, o professor continua sendo extremamente importante, mas se não houver gestão o estudante fica incomunicável. Por exemplo, eu como professora não posso deixar de seguir a programação. Não posso dizer que fiquei doente, que não vou fazer hoje e amanhã eu faço. Não dá. Tem aluno que vai andar quilômetros para chegar ao pólo e fazer a atividade. Não tem chance de ficar mudando as coisas.” Segundo a presidente do Cederj, todos se programam. “Grande parte dos nossos estudantes trabalha e quando a gente afirma que 70% deles reside no entorno do polo, significa pouco menos de duas horas de transporte. Se eu marquei uma prova no sábado, ela tem que acontecer nesse dia. Se precisar remarcar sempre haverá alguém que não poderá ir. É preciso cumprir a programação, porque programar todo mundo programa, mas cumprir é que são elas. Se não fizer isso aqui, não funciona, perde credibilidade”, garante Masako Masuda. No entanto, obedecer rigorosamente ao cronograma não é tudo. A infraestrutura é fundamental no sistema de EaD. Recentemente, o Conselho Federal de Biologia passou a contestar o modelo e baixou uma resolução vedando a concessão de registro profissional para alunos que por ele se formam, sob a alegação de que estaria faltando uma parte importante na formação que é a atividade prática nos laboratórios. Além de a resolução ser contestada judicialmente pelo Ministério da Educação, de acordo com Masako, no Cederj um documento é preparado para mostrar que o argumento é falho no caso do consórcio, que realiza atividades presenciais em laboratórios para a disciplina. Masako Masuda reconhece que há casos de instituições que negligenciam o trabalho com a EaD. O Ministério da Educação, por exemplo, montou uma lista cobrando qualidade de duas mil unidades de 11 universidades. Há casos em que, apesar de oferecer cursos de Ciências Biológicas e Física, não colocam à disposição dos estudantes laboratórios, bibliotecas, equipamentos básicos e chegam a ter tutores que levam uma semana para responder dúvidas. No Cederj, Educação a Distância o prazo máximo é de 24 horas. “Nesse caso depende do curso. Assim como há cursos de EaD que estão abaixo da crítica, conhecemos também muitas instituições que somente fazem cursos presenciais e também são abaixo da crítica. Aí entra a função reguladora do Estado. Por vários motivos, tais como proteger o cidadão e garantir a qualidade, o Ministério da Educação deve ter um papel importante para definir regras não apenas para a EaD, mas para o ensino de forma geral”, aponta a diretora do Cederj. Ingresso democrático O Cederj tem 33 polos espalhados por 31 municípios do Estado do Rio de Janeiro e realiza dois concursos de ingresso anualmente. Os alunos são matriculados em uma das seis universidades públicas participantes e fazem todo o curso de graduação em regime semipresencial. Embora as universidades tenham feito a adesão ao sistema de ingresso pelo Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), para o primeiro semestre de 2010 está mantida no consórcio a realização do vestibular. De acordo com Masako Masuda, as mudanças sugeridas pelo Ministério da Educação para adesão ao Enem tinham um prazo curto para serem cumpridas. “Não haveria tempo hábil para divulgar a forma de ingresso. Essa discussão será retomada. Para decidir acerca do Enem, fizemos uma reunião conjunta e ficou acertado que em 2010 ainda faríamos um vestibular separado”, informa a professora. Para Masako Masuda, há a possibilidade de adotar uma forma mista de ingresso dos estudantes nos cursos do Cederj, que adotaria o Enem para uma primeira fase, selecionando grande número de candidatos, e depois algo mais específico. Uma hipótese é realizar na segunda etapa uma avaliação não apenas de conhecimento, mas de adequação do perfil do estudante ao EaD. “Acho que não é qualquer pessoa que consegue se adaptar ao sistema”, afirma a dirigente. Disciplina é a principal característica no perfil de um aluno de EaD. Uma das principais causas de evasão é a idéia errônea de muitos que acham que o curso a distância é realizado por quem não tem tempo de estudar. Pelo contrário, é preciso muita dedicação. De acordo com Cleide de Morais Lima, da Pró-reitoria de Extensão da UFRJ, a vantagem da EaD é a flexibilidade para se encaixar os horários de estudos à jornada diária das pessoas. Para ela, a Tecnologia da Informação trouxe um novo impulso para a EaD. “Como colocar um professor de ensino fundamental no espaço de uma universidade na qual, na maioria das vezes, há apenas cursos diurnos? Como um professor pode frequentar o campus universitário? A EaD é uma possibilidade de atualizar conhecimentos, de apresentar novos contextos e conhecimentos e de fazer interação entre os ensinos”, afirma. Quando surgiu, em 2001, o Cederj oferecia apenas 160 vagas para um único curso de graduação (Matemática); no último vestibular para o segundo semestre deste ano foram 3.696 para os cursos de Matemática, Ciências Biológicas, Física, Pedagogia, Computação, Administração, Química, Turismo e História. O diploma das universidades do Cederj é tão válido quanto o do ensino presencial e a experiência fluminense foi determinante para a construção da Universidade Aberta do Brasil (UAB). A participação da UFRJ no consórcio, porém, é ainda tímida, pois apenas oferece três dos nove cursos existentes (Ciências Biológicas e licenciaturas em Física e Química). Dinheiro pelo ralo Uma sangria de recursos irresponsável. É desta forma que Roberto Leher, professor da Faculdade de Educação (FE) da UFRJ, encara a iniciativa do governo federal em ampliar o número de vagas nos cursos de graduação pelo modelo de Educação a Distância (EaD). Para ele, a iniciativa não resulta em acúmulo de conhecimentos que permitam melhorar o aparato de formação de professores nas universidades. “Esse é o desafio central, nós termos recursos em ordem de grandeza suficiente que permitam que o país tenha uma estrutura básica de formação de professores e de outros profissionais. Temos uma quantidade significativa de recursos que estão literalmente se esvaindo pelo ralo”, afirma Leher, que também é vice-presidente da Associação dos Docentes da UFRJ (Adufrj – Seção Sindical). Para ele, o investimento enorme do Ministério de Educação para formar tutores em numerosos polos é falho, porque eles são indicados por critérios como laços políticos familiares ou de amizade. “Gastase um dinheirão para formar por dois anos o tutor, aí muda o prefeito ou o secretário e muda tudo. Na realidade é uma sangria Jornal da UFRJ 11 permanente. Não tem vínculo porque não é uma instituição, não é republicano, não tem normas, não tem institucionalidade, não tem regras claras, não tem o pertencimento do tutor à instituição, porque é para ser volátil”, afirma o docente. De acordo com Leher, a EaD é uma forma não institucionalizada de formação, porque está fora do espaço universitário, no qual há uma série de mediações específicas de interação com os estudantes, com professores, com grupos de pesquisa, com eventos acadêmicos, criando um ambiente geral de aprendizado inexistente nos cursos a distância. “Esses cursos são organizados muitas vezes com bom material pedagógico, feito pelas universidades públicas e privadas. Mas esse material instrucional é repassado por tutores, pessoas que, em geral, têm pouca qualificação e de maneira isolada fazem a mediação com os estudantes. Na realidade, o estudante não está recebendo uma orientação de natureza universitária, ele está recebendo o material que vem da universidade, mediado por alguém que é um trabalhador precário, não um professor que tem vínculos orgânicos com a universidade”, alega Roberto Leher. De acordo com o professor da FE, o modelo da Universidade Aberta do Brasil (UAB) é juridicamente denominado de consórcio, consequentemente não tem materialidade, não tem responsabilidades definidas, o vínculo do estudante com a instituição é longínquo e virtual. “É um modelo perverso, porque é uma ilusão para quem recebe o diploma achar que teve uma formação de ensino superior”, acredita Leher. Para ele, o modelo também é perverso porque gera uma força de trabalho disponível para a educação, um exército industrial de profissionais formados de reserva que vai rebaixar ainda mais os salários de professor de educação básica. “Não podemos deixar de falar que aqui no Rio de Janeiro temos uma crise com a falta de professores de Matemática, de Física, de Química, mas o estado paga R$ 520 para o professor. O problema não é que a universidade não está conseguindo formar, a evasão é completa e brutal porque como a pessoa vai construir uma carreira assim?”, questiona o professor, lembrando a contradição do estado em realizar políticas de formação, mas não assegurar condições elementares de trabalho para os professores. A adoção de ferramentas como a Internet para a EaD não é o que incomoda Roberto Leher. Em sua opinião, o equívoco está na certificação, ou seja, dar diploma 12 Jornal da UFRJ como forma estratégica de ampliação de acesso ao ensino superior. “Em termos de capacitação, educação permanente, atualização permanente claro que sim. Acho que a Internet é uma ferramenta que podemos potencializar na universidade. Eu quero muito que meus estudantes tenham acesso a vídeo-conferência, por exemplo, porque muitas vezes temos um belo seminário em Porto Alegre e nós não podemos estar lá para participar, acompanhar e interagir. Isso é perfeito, é maravilhoso, é extraordinário, mas não é disso que estamos falando. O que está em crítica é a certificação, o diploma”, afirma o educador. Vigilância e disciplina: o papel da escola Outro especialista que questiona a eficácia da EaD é o professor da Escola de Comunicação (ECO) da UFRJ, Muniz Sodré, atual diretor da Biblioteca Nacional, que não crê no sucesso do modelo quando a ferramenta de apoio é a televisão. Segundo ele, foram raras as experiências bem sucedidas ao redor do planeta, como exemplo a da Inglaterra. Para Muniz Sodré, o erro da televisão vale também para dar sua opinião acerca da Internet. Nos anos 1980, Muniz Sodré também dirigiu a TV Educativa no Rio de Janeiro e a experiência lhe valeu para afirmar que o Ensino a Distância, usando a televisão como ferramenta, fracassou por não conseguir criar uma cena, uma forma social e cultural própria para a transmissão educacional. Para ele, assim Educação a Distância com a democracia e o mercado, a escola é uma forma moderna de estruturar a modernidade. “Essa forma implica, em primeiro lugar, o professor, com uma relação interpessoal e uma ideologia, que eu diria de natureza disciplinar. Disciplinar no sentido que Foucault dá à palavra. Vigilância, interiorização de regras, e uma moral interiorizada do contexto”, ressalta Muniz, acrescentando que na forma tradicional, a escola é uma segunda cena, a restituição da cena parental, pais e filhos, professor e aluno. De acordo com ele, a forma ideológica da escola foi tirada de outras duas instituições: a igreja e a prisão. “A forma da escola é prisional. Os alunos são separados em séries, os anos de aprendizado são hierarquizados, o professor vigia e controla por meio da prova. Isso é a forma de vigilância prisional. E, ao mesmo tempo, a relação entre professor e aluno é uma relação religiosa, pastoral. O professor fala, o aluno escuta e restitui. Tradicionalmente é assim”, compara Muniz Sodré. Embora antigas, as duas instituições nas quais a escola se espelha estão em crise, segundo Muniz Sodré. “Eu diria que esse modelo de escola está acabando t a m b é m porque o modelo disciplinar não mais se sustenta em uma sociedade ou ambiente em que a paisagem é de mídia, de informação, que não funciona na base da disciplina, mas na do convencimento, da persuasão”, afirma o professor. Para ele, esse modelo ajudou a formar o espaço público e a por em crise o modelo de vigilância panóptico da escola. Muniz explica que ao levar o ensino para a TV, não foi pensada a reestruturação da forma: “Era a mesma na televisão, mas num espaço aberto. E não se criou por quê? Porque os educadores nunca foram gente de mídia e nem as pessoas de mídia foram educadores. E os estudos feitos na passagem não foram levados em consideração.” Mudança com Internet Com a Internet, na opinião de Muniz Sodré tudo muda. Segundo ele, porque há um sem número de saberes possíveis de serem apreendidos mecanicamente. Com os recursos tecnológicos, inclusive, o conhecimento pode até ser mais bem apreendido. Ele exemplifica, usando um curso técnico em Mecânica, no qual é possível visualizar a estrutura do motor melhor do que olhando direto para a máquina. Outra vantagem é a possibilidade da repetição exaustiva, até a assimilação. Muniz Sodré ressalva que o processo educacional não é somente a passagem do saber. “A passagem do saber por computação, por informação, é muito mais ágil que a relação escolar de professor e aluno. No entanto e mais do que nunca, o professor é vital como iniciador de linguagens. Ele é central, é o eixo. Todo o investimento em educação deve ser feito para melhorar a vida do professor em primeiro lugar”, assegura o docente da ECO. Em sua opinião, a máquina é valiosa, mas é apenas instrucional. “Educação não é passagem de informação. É apontar caminhos, é criar ambiente moral e ético onde o saber ganha algum sentido, ela é esse conjunto. Eu diria que educar alguém, indivíduo ou grupo, é fazer incorporar, assimilar todas as forças que em uma comunidade humana, numa sociedade, estruturam o bem. E o que é o bem? É o ponto de equilíbrio econômico, político e ético do grupo, da comunidade. É o conceito grego de bem. Isso é educação”, define Muniz Sodré. O professor lembra, porém, que ensino e educação em determinados momentos se separam: “Eu diria que estamos em um momento de ênfase no ensino, de tentativa de melhoria das escolas sem pensar a passagem da educação. A readaptação histórica deve fazer parte dessa nova realidade. Principalmente aqui no Brasil, onde se está fazendo um progresso quantitativo. Sem dúvida nenhuma as taxas de evasão escolar diminuíram, aumentou bastante o número de ingressos nas escolas, mas a educação ainda não é de qualidade.” Muniz Sodré acredita que a educação deve ser a distância e presencial ao mesmo tempo. “É preciso encontrar uma fórmula. Acho que todo o projeto no sentido estatístico, de aumentar o número, de resolver uma questão urgente e emergencial está fadado ao fracasso. Acho que devemos encontrar ainda o ‘Paulo Freire da era da Informática’, ainda não encont ramos. Ele era um grande educador, um grande pedagogo, mas ele é anterior ao computador, à Informática. Nós temos, portanto, de repensar a questão”, destaca o professor. Determinação contra preconceito Preconceito. Esse é o problema princi- Outubro 2009 pal e de mais difícil superação para os estudantes de graduação na EaD. Mas com a mesma determinação com que encaram os estudos, eles sabem que somente o surgimento de bons resultados pode transformar a realidade. Em 2007, o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade) do Ministério da Educação, revelou que estudantes de cursos a distância se saíram melhor do que os alunos de presenciais em sete de 13 áreas em que houve a comparação. Um desses estudantes é Max Ferri. Ao completar 40 anos de idade, viu a vida ganhar novo rumo com o ingresso no curso de Licenciatura em Física da UFRJ pelo Cederj. Para ele, era a opção de se requalificar profissionalmente depois de ver gorar o pequeno negócio que mantinha na cidade de Volta Redonda, onde mora. Segundo ele, as esperanças de arrumar um emprego qualificado que o ajude a melhor criar as três filhas é o motor que o impulsiona a se dedicar aos estudos, sem perder o foco com distrações comuns de uma sala de aula presencial. “Quando ficamos de boca aberta não avançamos. Enquanto um colega presencial está quatro horas na frente de um professor, nós precisamos render o mesmo em apenas uma hora. Temos determinação. Em sala presencial o professor explica a disciplina, passa exercícios e muitos ficam de batepapo. Conosco não. Não perdemos tempo. O rendimento é muito melhor”, constata o estudante. Segundo Max, para quem vive no interior do estado, onde às vezes a única opção de requalificação profissional são as caras instituições de ensino particulares, com ensino de qualidade duvidosa, o Cederj é uma revolução. Para ele, “a qualidade e praticidade do ensino e, no caso Cederj, a diplomação é o que fazem a diferença.” O estudante Marcelo Antônio de Brito, 46 anos, que faz Pedagogia pelo consórcio do Cederj aponta outra vantagem para os cursos de EaD. A possibilidade de cursar mais de uma graduação ao mesmo tempo sem reter vagas presenciais na universidade. “Sou formado em Cinema pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mas vejo muitos amigos cursando simultaneamente duas graduações com mais desenvoltura graças à flexibilidade do EaD”, afirma o estudante, que é técnico-administrativo da UFRJ. Para ele, perde-se tempo ao querer questionar a EaD. “Hoje, o ensino presencial usa muito a Educação a Distância. Qual a instituição em que o professor não utiliza o correio eletrônico para se comunicar com os alunos? A questão deveria buscar o quanto uma forma de ensino pode contribuir para melhorar a outra”, opina Marcelo, defendendo a apropriação das novas ferramentas de ensino para melhorar a qualidade de vida. “Acho que quem se opõe à EaD no Brasil dá um tiro no próprio pé, porque quer negar a oportunidade de educação a pessoas que jamais teriam essa chance”, finaliza o estudante. Outubro 2009 Entrevista Jornal da UFRJ 13 Heloísa Buarque de Holanda É Entrevista com fascínio indisfarçável que Heloísa Buarque de Hollanda, professora titular da UFRJ, fala dos seus novos e provocadores projetos. Desde que, em 1976, lançou a já clássica antologia 26 Poetas Hoje (1976), um ícone da poesia maldita brasileira, ela não para de desafiar o cânone literário com experimentos que, mais do que sair do lugar-comum, impressionam pelo arrojo. Um deles é a antologia digital Enter – lançada em 11 de agosto – que reúne textos, vídeos, fotos e áudios de 37 poetas contemporâneos (www.oinstituto. org.br/enter/). Tudo o que ela faz sempre dá o que falar e não foi diferente quando decidiu entender como funciona a lógica da percepção poética no ambiente digital. “Já dei entrevista sobre o Enter até para jornalistas da Holanda”, conta a coordenadora do Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC) do Fórum de Ciência e Cultura (FCC) da UFRJ. Entre outras iniciativas que vem tocando à frente do PACC, com entusiasmo cativante, está a “Universidade das Quebradas” – “é a minha saideira da universidade”, revela a doutora em Letras pela UFRJ, que completou 70 anos e está às vésperas da aposentadoria compulsória. Esse projeto de Extensão inova porque realiza uma efetiva troca de conhecimentos entre o saber universitário e a cultura das comunidades, explica Heloísa, que continuará na coordenação do PACC. Nesta entrevista ao Jornal da UFRJ, a pesquisadora também fala sobre o concorrido e único pós-doutorado em Estudos Culturais do Brasil, criado há 10 anos. Entrevista UFRJ Caçadora 14 Jornal da Outubro 2009 de encantos literários Eu participava de perto de todos esses movimentos. A literatura era uma área que assumi sob essa perspectiva. Desde o começo sempre tive essa visão literária bastante engajada e acabei fazendo minha tese sobre a poesia feita pela geração do sufoco, a geração AI-5, que não tinha acesso à imprensa e aos meios tradicionais. Jornal da UFRJ: Como foi o pós-AI-5 para a senhora? Heloísa Buarque de Hollanda: Nos anos 1960, a universidade era um fórum de debates muito quente. Com o AI-5, começou um esvaziamento boçal, uma coisa terrível. Eu fiquei ali, tentando procurar alguma alegria, alguma resposta. E a resposta mais eficaz foi exatamente a poesia, pela qual eu me apaixonei. Era uma área que não merecia a atenção da censura, que dirigia suas garras mais para as manifestações públicas, como o cinema, o teatro, os jornais, a televisão. Mas quem prestava atenção à poesia? Jornal da UFRJ: Como diz Luiz Fernando Veríssimo, “poesia numa hora dessas”? Heloísa Buarque de Hollanda: Pois é... Poesia numa hora dessas não existe! Mas ela passou a existir exatamente devido a essa falta de atenção. Quase toda essa geração que passou a se expressar pela poesia não falava diretamente de ditadura, não era reativa, mas era o testemunho de uma geração que viveu no sufoco. Coryntho Baldez Jornal da UFRJ: Em que momento da sua vida a senhora foi fisgada pela literatura, em especial pela poesia? Heloísa Buarque de Hollanda: Primeiro eu me formei em Letras Clássicas, mais especificamente em Grego, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Isso foi em 1961. Logo depois, fui morar nos Estados Unidos e comecei a trabalhar em um centro de estudos sobre a América Latina. Passei, então, a me interessar bastante pelas questões políticas da região, por uma literatura social, e larguei o Grego. Quando voltei ao Brasil, já cheguei conquistada e fui fazer mestrado e doutorado em Literatura Brasileira. Comecei então a me dedicar ao estudo da questão negra, com Lima Barreto e outros autores. Esse viés político da literatura foi o que me interessou. A minha tese de mestrado foi sobre Macunaíma e a relação do cinema, especialmente o Cinema Novo, com a literatura. Já minha tese de doutorado foi sobre a poesia marginal produzida durante a ditadura militar. Jornal da UFRJ: Esse viés político em seus estudos literários ajudou a senhora a compreender melhor o Brasil? Heloísa Buarque de Hollanda: Claro. A ideia, desde o começo, era exatamente saber onde eu estava situada. Sou de uma geração que era muito ativista, participava intensamente do movimento estudantil nos anos 1960. Havia uma efervescência política e cultural, com o Cinema Novo, o Teatro Oficina, o Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE). Jornal da UFRJ: Antes da sua antologia 26 Poetas Hoje, a crítica torcia o nariz para essa poesia marginal, que não estava contida no cânone literário? Heloísa Buarque de Hollanda: Antes e depois. Quando saiu a antologia, a minha vida virou um inferno. Houve um debate na imprensa violento e muitos diziam que aquilo não era literatura, não valia nada, seria poesia menor. Isso é muito interessante porque 20 anos depois essa antologia é adotada em vestibulares, ou seja, as coisas mudam e hoje Ana Cristina César, Wally Salomão, Torquato Neto, Francisco Alvim, Outubro 2009 Cacaso, todos são cânone. Esses poetas estavam lá na antologia e eram considerados sem valor literário. A história muda as perspectivas. Jornal da UFRJ: Na época, a senhora não encontrou “guarida” em nenhum campo de discussão literária? Heloísa Buarque de Hollanda: Foi interessante porque a academia foi bastante crítica e uma boa parte da imprensa mais conservadora também. Mas isso deu um debate muito quente e o livro vendeu muito quando foi lançado, em 1976. Até hoje, não paro de reeditar essa antologia, que virou uma espécie de ícone de uma geração, uma referência daquele momento, da cultura do vazio. Depois fiz a minha tese de doutorado sobre isso. Jornal da UFRJ: Há certo fascínio pelos poetas “malditos”? Isso sempre existirá? Heloísa Buarque de Hollanda: Esse tipo de poesia pode tudo porque ela não tem compromisso nenhum com venda, com o mercado. Mas essa ideia de poeta maldito é do século XIX. Baudelaire é um poeta maldito. E somente foi reconhecido depois, como todos os outros. No momento em que produzem, esses poetas fazem uma espécie de performance. Mesmo alguns modernistas, como Oswald de Andrade, eram malditos. Ele andava com o seu Cadillac por aí dizendo um monte de absurdos. Há essa performance desse tipo de artista principalmente em momentos de mudança. O modernismo veio num momento de mudança de uma sociedade rural para industrial. Nessas épocas a poesia começa a falar mais alto e dá margem a esse tipo de atuação. E que não passa disso. Baudelaire, por exemplo, é um poeta até doce. Maldito era ele, pessoa física. Assim como os poetas tidos como marginais, que apareciam à margem do sistema, sem querer editoras, meio hippies, fazendo uma contracultura. É essa persona que é tida como maldita. Jornal da UFRJ: Assim como os poetas malditos tinham uma clara atitude provocadora, a sua intenção também era “provocar” quando lançou muitos deles no circuito comercial? Heloísa Buarque de Hollanda: Sim. A minha trajetória profissional foi sempre a de estimular o debate. Então, um pouco de tudo o que fiz e faço dá sempre uma zebra, gera comentários e polêmicas. Eu trabalho com microtendências, que ganham uma grande relevância momentânea quando as identificamos a partir da academia. É exatamente o que está acontecendo com a antologia digital Enter, que lancei recentemente. Já dei até entrevista para jornalistas da Holanda sobre isso. É algo que causa impacto porque ninguém tinha feito, até então, uma obra redonda e fechada sobre produção de poesia na Internet Entrevista e que toma uma posição de curadoria. Era o caso da antologia dos poetas marginais, que dizia: “Olha como essa geração está no sufoco, olha o sentimento e a história dessa geração e a resposta possível à ditadura!” E isso num momento de extremo vazio cultural. Então, o que faço é descobrir essas microtendências, coisas pequenas, mas que dão pauta quando as colocamos sob a luz. Jornal da UFRJ: Em relação ao comportamento e à intenção, quais as diferenças principais entre a “geração AI-5” e a geração dos anos 1990, que a senhora trouxe para o público na antologia Esses poetas (Aeroplano, 1998)? Heloísa Buarque de Hollanda: Nos anos 1970, havia a marca da contracultura no mundo inteiro. Aqui, havia uma politização maior por causa da situação de repressão militar. Mas a ideia central era estar fora do sistema. Inclusive, uma das suas principais características era ter uma produção gráfica artesanal, doméstica. Faziam os seus próprios livrinhos, que eram vendidos de forma agressiva, de mão em mão, não passavam pelo canal da editora. A ideia da contracultura era trabalhar por fora do sistema a fim de mostrar uma alternativa de vida, de produção, até mesmo porque aqueles poetas formavam comunidades, moravam juntos. Já nos anos 1990, em plena crise, isso não dava mais pé, todo mundo já era profissional. É muito interessante essa comparação porque a referência maior dos anos 1970 era a vida, a resistência. O lema da poesia marginal era aproximar o mais possível arte e vida. Nos anos 1990, esse projeto já não existia. Tudo acontecia em um mainstream (pensamento corrente da maioria) e com uma referência cultural muito forte. Os poetas da geração AI-5 eram letrados, mas isso não aparecia no texto. Já a ideia de referência cultural e literária era fortíssima nos poetas da geração de 1990. Jornal da UFRJ: Acerca da recente antologia Enter, os poetas que lidam hoje com o hipertexto no ambiente digital são, de certa forma, uma vanguarda? Heloísa Buarque de Hollanda: Acho que o hipertexto sempre existiu. Não tecnicamente. Mas a literatura, por sua própria “O lema da poesia marginal era aproximar o mais possível arte e vida. Nos anos 1990, esse projeto já não existia. Tudo acontecia em um mainstream (pensamento corrente da maioria) e com uma referência cultural muito forte. Os poetas da geração AI-5 eram letrados, mas isso não aparecia no texto. Já a ideia de referência cultural e literária era fortíssima nos poetas da geração de 1990.” estrutura, sinaliza um hipertexto, ou seja, tudo se desdobra em vários sentidos, em várias referências, em buscas de significados. A natureza própria da literatura, principalmente a poética, é intertextual. Agora, o hipertexto no ambiente virtual não é algo tão novo. O que considero a maior novidade, que está na antologia Enter, é a convergência de mídias. Isso é o que me parece mais de vanguarda. Eu pedi a cada um dos poetas um trabalho específico. Há poesias com background musical, ruídos, leituras, interpretação de atores, enfim, com algo que a torna sonora, que sai da página. A outra coisa é o videocast, que mistura palavra-som com imagem em movimento. São outros suportes para a palavra que estão aparecendo. A convergência de mídias, a exploração de vários suportes em sincronia, em todas as áreas artísticas, é uma novidade possibilitada pelo ambiente digital. Os instrumentos são mais baratos. Antigamente, fazer um filme era uma tragédia, e hoje se faz com um celular. Jornal da UFRJ 15 Jornal da UFRJ: Os poetas marginais estão migrando do suporte papel para o ambiente digital? Heloísa Buarque de Hollanda: Acho que os suportes coexistem. E cada vez mais. Todo mundo que faz um trabalho em um blog de texto, por exemplo, sempre mira a publicação em livro. É até estranho porque, em muitos casos, é uma garotada que poderia não ter o fetiche do livro, mas tem. A ideia é começar no blog para mostrar o trabalho, formar um público, eventualmente ser descoberto por um editor e publicar em papel. Entrevistei todos e não tem um que não tenha como meta a publicação final em papel. Inclusive nas entrevistas que dei sobre o Enter, e foram muitas, há uma pergunta recorrente: “Não vai publicar?” Não posso! Como publicar? A não ser podando e reduzindo a antologia, pois a graça do Enter é exatamente essa pluralidade de mídias. Se eu colocar um videocast no papel perco a imagem e o som. Acaba soando estranho um trabalho que não pode ser publicado ou que não tenha essa meta. Jornal da UFRJ: Nesse cenário, qual será o papel do e-book? Heloísa Buarque de Hollanda: Ele possibilita esse trabalho com outras mídias, mas tende a ser um suporte para referência. Como lazer, acho que não se apresentou satisfatoriamente. Ainda está longe de substituir o livro como objeto de leitura prazerosa. Agora, como referência, vai avançar rápido. Já não faz sentido ter uma enciclopédia de papel, ninguém tem mais porque ela se desatualiza em um ano. Antigamente, eu comprava a Enciclopédia Britânica, que rapidamente ficava defasada. Acho que o e-book servirá mais como suporte para um trabalho. Por exemplo, a Lúcia Riff, que é agente literária, tem todos os originais não impressos em e-books. Em vez de ficar carregando aquele monte de papel para cima e para baixo, já que manusear originais é mui- 16 Jornal da UFRJ Entrevista Outubro 2009 própria produção têm encorajado as pessoas a se tornarem produtoras de diversos tipos de conteúdo. Como a senhora avalia esse momento? Heloísa Buarque de Hollanda: Há muita mídia para pouco conteúdo. Então, está havendo uma demanda por conteúdo nunca vista na história. Os jornais online precisam ser preenchidos constantemente. Do ponto de vista artístico e cultural, também é diferente. Agora, as pessoas têm acesso a telefone celular e com eles fazem filmes, contos, o diabo! É muito barato, pois já se tem o instrumento na mão, o que dá certo assanhamento geral para produzir conteúdo. Sai muita porcaria, mas sai muita coisa boa. Também numa livraria se encontra muito lixo. A oferta é sempre complexa em qualquer situação. Jornal da UFRJ: Ao mesmo tempo em que a Internet tem essa dimensão libertária do ponto de vista da criação e do acesso aos bens digitais, muitos grupos se mobilizam na defesa do copyright. Como a senhora avalia o movimento pela liberdade digital? to desagradável, ela coloca os textos em e-books, verdadeiros instrumentos de trabalho. Jornal da UFRJ: Uma recente pesquisa do Instituto Brasileiro de Pesquisa Social (IBPS) mostrou que 47% dos cariocas não têm o hábito de ler livros. Por outro lado, vem aumentando de modo exponencial o número de leitores na Internet. Como isso impacta a cultura de maneira geral e o modo como as pessoas veem o mundo? Heloísa Buarque de Hollanda: Isso é bastante polêmico. Tem gente que acha que a Internet vai tornar superficial o pensamento e acabar com uma lógica de percepção da realidade mais interpretativa. Mas eu tenho um pouco de medo de entrar nessa onda porque, se olharmos para trás, a polêmica era idêntica quando apareceu a escrita. Houve um pânico de que as pessoas perdessem a memória. Os textos eram orais e se considerava importante esse exercício da memória para recitá-los. Quando apareceu a escrita, muitos consideraram que ela iria prejudicar as faculdades mentais do ser humano. É o mesmo argumento que ouvimos hoje em relação à Internet, por isso tenho certo temor. Daqui a pouco vamos descobrir que isso não tem sentido. O livro, na verdade, ampliou o espectro da memória. Lemos mais. Temos e guardamos mais informações. Ou seja, exercitamos mais a memória. Não houve prejuízo biológico à memória, como se pensava. Hoje, muitos afirmam que a nova geração vai ser desatenta e superficial. Acho que, como aconteceu com a escrita, não será bem assim. Jornal da UFRJ: E em relação ao impacto da Internet na vida e no comportamento das pessoas? Heloísa Buarque de Hollanda: É um impacto evidente. O maior ganho é que as pessoas perderam o medo de escrever e ler, algo que não tem preço. Acho isso maravilhoso porque o livro intimida em certas camadas sociais e fases de crescimento. Tem gente que acha o livro algo pesado, difícil. Já na Internet se lê e escreve o tempo todo. Havia um bloqueio geral das pessoas quando “Tem gente que acha que a Internet vai tornar superficial o pensamento e acabar com uma lógica de percepção da realidade mais interpretativa. Mas eu tenho um pouco de medo de entrar nessa onda porque, se olharmos para trás, a polêmica era idêntica quando apareceu a escrita.” se tratava de escrever. É só lermos a maior parte das redações de vestibular para constatarmos o desastre. E hoje as pessoas não temem escrever, exercitam o texto na Internet. Educar é exatamente fazer as pessoas perderem o medo, mais nada. Ninguém ensina nada a ninguém, pode-se treinar o outro a perder o medo de aprender. A Internet está fazendo as pessoas perderem o medo de escrever e isso é muito bom. Jornal da UFRJ: Os softwares livres, as redes de troca de arquivos e a possibilidade de publicação imediata da Heloísa Buarque de Hollanda: Acho que a autoria tradicional está fadada a ser repensada. Fiz um estudo grande sobre essa questão, uma das mais importantes do momento, especialmente sobre os tipos de licenças novas e mais flexíveis, como o Creative Commons. Há uma possibilidade hoje de produção colaborativa. Particularmente, acho o máximo produzir um texto e soltá-lo nessas novas mídias. Seja o que Deus quiser! Isso tem um lado muito interessante para a criação. Fui estudar direito autoral e tive uma surpresa legal. A primeira é que a idéia de direito de autor é muito recente, data da Revolução Francesa. A história dessa lei, tanto na França como na Inglaterra, vem marcada pela polêmica desde o começo. Ou seja, há uma controvérsia antiga entre o direito público e o direito do autor. Então, a autoria já é uma questão polêmica e frágil desde a sua primeira legislação. O DNA da autoria é bichado. Sempre houve debates e recursos. Pesquisei a história da Justiça e descobri que, já no século XIX, o que se tem de processos públicos contra o fechamento da propriedade intelectual é uma enormidade. Essa é uma história conflituosa, que está mais evidente hoje por causa da dificuldade de controle na Internet. É uma questão que agora vai explodir e é bom que exploda! A ideia da propriedade intelectual era importante politicamente em certos casos, mas a autoria muito fechada é uma complicação do ponto de vista da produção de conhecimento. Isso é muito simbolizado pelo software livre. Como não se tem um sistema proprietário, é possível criar conhecimento de modo colaborativo. Em relação ao direito de acesso aos bens culturais, há um movimento de luta pelo acesso ao Outubro 2009 conhecimento chamado A2K (Access to Knowledge). Esse acesso é visto como um direito, não apenas como um desejo de conhecimento. Jornal da UFRJ: É possível avançar para um marco legal que leve em conta essa nova realidade? Heloísa Buarque de Hollanda: É uma necessidade irrecusável. Por exemplo, a indústria fonográfica, queira ela ou não, começou a acabar. Então, nessa mesma indústria já existe uma reflexão em torno disso. Começa-se a fazer um claro rearranjo no mercado, nos modelos de negócio, no sistema de propriedade. Saiu agora um livro, interessantíssimo, de Chris Anderson chamado Free (Campus, 2009). Hoje, a paranoia geral é saber como vai ficar o autor, quando deveria ser como vai ficar o intermediário, que é quem ganha mais com o negócio. Por exemplo, eu sou editora e, no caso do livro, a editora ganha 20%, o autor 10% e 70% ficam com a livraria e o distribuidor. Ou seja, quem mais ganha não é quem escreve e nem quem investe. Então, acho que se deve começar a eliminar o intermediário, para sobrar mais para o autor e o investidor. Mas isso ainda é muito complicado. Jornal da UFRJ: E como a senhora avalia o Creative Commons? Heloísa Buarque de Hollanda: É uma solução interessante porque é flexível. Pode-se, por exemplo, bloquear todos os direitos ou reservar apenas alguns. É possível estabelecer qualquer uso para qualquer bem e restringir o seu uso comercial. Ou então se pode liberar um determinado número de parágrafos de Jornal da Entrevista textos para uso comercial sem nenhum ônus. É o autor que faz o seu negócio e ele não precisa ficar submetido àquela coisa de “todos os direitos reservados”, até porque nem todos esses direitos vão para o autor. Jornal da UFRJ: O Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas de Acesso à Informação (GPPPAI) da Universidade de São Paulo (USP) fez uma pesquisa que mostra que o compartilhamento de arquivos de áudio multiplicou por sete o acesso da população à música e dobrou o acesso a filmes. A Internet pode vir a ser uma revolução cultural? Heloísa Buarque de Hollanda: Certamente que sim. Ela está mexendo com os padrões do mercado tal como o conhecemos hoje. Já vemos abalos no direito de propriedade, na autoria, nas formas de venda e na privacidade. Essas questões legais estão todas sendo refeitas. O advogado hoje tem um campo de trabalho incrível. Jornal da UFRJ: No Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC) do Fórum de Ciência e Cultura (FCC) da UFRJ, que a senhora coordena, existe um pós-doutorado único no Brasil. Fale sobre ele. Heloísa Buarque de Hollanda: É um pós-doutorado em Estudos Culturais, uma área nova que vê a pesquisa cultural como subsídio para políticas públicas e ações sociais. É cultura aplicada, que liga a universidade à sociedade. Essa área ainda é pouco explorada no Brasil. Nos Estados Unidos da América, essa perspectiva se difundiu mais porque eles têm uma questão ligada às minorias, como imigrantes, muito complicada e efervescente. Os estudos culturais estão bastante associados às questões das minorias. Nos EUA isso é útil, mas no Brasil nem tanto, porque não há conflitos explícitos. Esses estudos acontecem no Brasil mais nas áreas de Letras, Antropologia e Comunicação. Mas o traço dos Estudos Culturais é que são transnacionais, não se desenvolvem apenas localmente, e pretendem aplicar o conhecimento em benefício da sociedade civil. Eu gosto demais desse pós-doutorado, que já existe há 10 anos. Temos turmas de cerca de 30 alunos, do Brasil e do exterior. Jornal da UFRJ: O Fórum Permanente de Cultura Digital (FPCD) é outro eixo do PACC? Heloísa Buarque de Hollanda: Exatamente. E queremos aumentar o número de participantes desse Fórum. Para isso, estamos elaborando um projeto interdisciplinar ligado à cultura e à tecnologia, em conjunto com o professor Luiz Bevilacqua (emérito da UFRJ que está ajudando a montar o Plano Diretor de Pós-graduação e Pesquisa). No âmbito desse projeto, já realizamos o seminário “Cultura 2.0”. Antes, já havíamos feito outro seminário chamado “Cultura Além do Digital”, por solicitação do Ministério da Cultura. Temos várias ações e projetos de pesquisa ligados à área digital. Jornal da UFRJ: Fale sobre essa novidade que é a “Universidade das Quebradas”. Heloísa Buarque de Hollanda: Esse é o projeto do meu coração, a minha “saideira” da universidade. Ele existe há um ano, UFRJ mas engrenou mesmo há pouco tempo. É um projeto de Extensão Universitária, mas não é assistencialista e nem de capacitação direta de comunidades periféricas. Na realidade, através dele, a universidade abre o seu mais alto saber para artistas ou agentes das comunidades. Para entrar para a “Universidade das Quebradas” é preciso mostrar que é bom. Pode ser um rapper, um grafiteiro ou um escritor, mas é preciso que as pessoas mostrem a sua produção, não basta morar em favela. Essas pessoas, então, têm aulas de Filosofia, Literatura, História e Antropologia, entre outras disciplinas. É a universidade abrindo o seu conhecimento para potenciais multiplicadores da periferia. Jornal da UFRJ: Detalhe um pouco mais a dinâmica desse projeto. Heloísa Buarque de Hollanda: Realizamos encontros periodicamente. Recentemente, nos inscrevemos para ser um Pontão de Leitura do Ministério da Cultura, que é um projeto que articula vários pontos de leitura. Queremos fazer um “intensivão” de literatura para os mediadores de leitura. Mas o que é mais importante nesse projeto, ao lidarmos com a periferia, é o respeito pela cultura das comunidades. Há uma troca de conhecimentos, não é absolutamente algo feito de cima para baixo, como já fiz no CPC da UNE nos anos 1960. Era um catecismo e aprendi que isso já era! Hoje, escolhemos pessoas de comprovado saber na periferia para trocar conhecimento com o saber universitário. Eu não conheço projeto assim, com essas características de troca de conhecimento, em vez de capacitação. “ “ 17 18 Jornal da UFRJ Políticas Públicas Outubro 2009 Vitor Vanes Quando o mínimo faz a diferença Mesmo aquém de uma justa distribuição de renda, país diminui desigualdade através de políticas sociais. Rodrigo Ricardo A arte da pesca exige paciência, qualidade que pode significar virtude ou resignação frente a desafios; para quem pretende a erradicação da miséria: a arte é manter a paciência. Assim como a fome tem pressa, distribuir a riqueza e transformar o formalismo legal da igualdade em direito de fato na vida de todos os brasileiros impõe-se tarefa vital para concretizar o desejo de uma verdadeira democracia. Se o bolo do milagre econômico dos anos 1970 deixou a maioria com água na boca, o presente espetáculo do crescimento oferece algumas sobras aos que mais precisam do Estado para conquistar a cidadania. Para avançar nesse processo os modos de trabalho dividem opiniões de expertises e correntes políticas, estão entre “oferecer o peixe ou ensinar a pescar”. A partir dessa recorrente metáfora instaura-se a interrogação que marca os debates acerca das medidas no combate à pobreza. Entre as críticas de “assistencialistas” e “essenciais”, a manutenção e, quiçá, a expansão de políticas sociais constitui plataforma comum de todos os possíveis presidenciáveis em 2010. Outubro 2009 Além da unanimidade políticoeleitoral, avalia-se que a sociedade finalmente começa a perceber o papel do Estado na luta contra a exclusão social, gerada pelo capitalismo. As informações da mais recente Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgadas em setembro último, mostram que emerge uma face do país até então invisível aos olhos da elite. Todavia, mais do que a ampliação de recursos, a saída do mínimo à autonomia cidadã exigirá a articulação entre políticas sociais e o investimento em setores estruturais como saneamento e habitação popular. A superação de fraturas históricas, como a reforma agrária e a tributária, também representa curso inadiável rumo a um rio de margens plácidas e acessível a todo pescador. Custando apenas 0,4% do Produto Interno Brasileiro (PIB), soma de todas as riquezas do país, o Programa Bolsa-Família (PBF) está presente em 12 milhões de lares pelo país. “Ele reúne o Auxílio-Gás, o Bolsa-Escola e o BolsaAlimentação, criados no apagar das luzes da gestão de Fernando Henrique Cardoso (1994–2002)”, explica Cecília Paiva, professora da Escola de Serviço Social (ESS) da UFRJ, apontando que o governo federal prioriza recursos à Assistência Social, nos chamados programas de transferência de renda, porém, com o decréscimo nas demais políticas sociais, inclusive as estruturais como habitação e saneamento, para um enfrentamento da pobreza mais amplo. “Atenuam-se os efeitos mais nefastos, como a subnutrição, contudo a miséria não se expressa somente na dimensão da renda, mas na impossibilidade do acesso a serviços e bens fundamentais”, critica Cecília. Políticas Públicas Sistema Único de Assistência Social Autora de pesquisa que compara mecanismos de transferência de renda em países da América do Sul, Cecília Paiva acredita que dificilmente a próxima liderança da República deixará de dar continuidade ao PBF: “é possível até que receba outro nome, mas encerrá-lo repres ent ar ia uma enorme falta de maturidade, além de uma medida ant ip opu l ar”. Ela lembra que na Argentina, onde vivem cerca de 40 milhões de habitantes, há o Programa Jefes e Jefas de Hogar (programa chefes e “chefas” de família) que “decresceu de mais de dois milhões de beneficiários para 700 mil, em 2008, e o Programa por La Inclusión Social (programa para a inclusão social) alcançou 602.650 famílias, em 2009, absorvendo parte dos beneficiários do primeiro, os considerados ‘inempregáveis’.” De acordo com Cecília, tanto aqui quanto entre os argentinos há uma tensão cultural entre assistência e trabalho. “A proteção social deve ser mantida para todos, mas coloca-se que somente há direitos para os que trabalham. A história do desenvolvimento capitalista tem a necessidade de reforçar que a inclusão social passa apenas pela inserção produtiva”, elucida a professora, destacando a importância do trabalho para romper com ciclos geracionais de miséria. “O como emancipar é a grande indagação. Pessoalmente, defendo o direito universal à renda como saída mais viável”, indaga e avalia a pesquisadora. Cecília Paiva concorda com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, quando diz que a elite denomina de investimento o que se aplica nela e o contrário de gasto social, porém, revela aspectos contraditórios do PBF. “Ele ainda tem um caráter contencionista. O medo de que a revolta dos pobres, as ‘classes perigosas’, exploda em violência ou revolução. Por exemplo, uma das condições para receber o benefício é uma frequência escolar mínima de 85%, quando a Lei de Diretrizes de Bases (LDB) determina 75%”, critica Cecília, ressaltando, por outro lado, a criação e o desenvolvimento do Sistema Único de Assistência Social (Suas): “As ações precisam estar articuladas, como no caso do PBF com o Plano Nacional de Qualificação. Há esforços nessa direção, mas ainda falta um longo caminho.” O mapa dis- “Contudo, o programa tem impacto sobre a desigualdade e não se limita apenas à extrema pobreza, mas também transfere renda para uma camada acima, que vive com uma baixa renda”. Contagem, MG - Presidente Lula cumprimenta beneficiária do Bolsa Família, programa que atinge 11,1 milhões de famílias em todo o país. Jornal da UFRJ 19 tributivo brasileiro registra que a renda apropriada pelo 1% mais rico da população é igual à apropriada pelos 50% mais pobres. Enquanto menos de 1% do PIB atende o PBF, 20 mil famílias titulares da dívida pública ficam com 4,5% de toda a riqueza produzida pelo país. Para Cecília, a péssima distribuição de renda brasileira somente será resolvida com uma radical reforma tributária. Ela cita o exemplo do Alasca, território comprado em 1867 do Império Russo pelos Estados Unidos da América, onde cada cidadão recebe cerca de dois mil dólares: “Eles dividem os royalties do petróleo pela população. Isto somente foi possível graças à mobilização das vilas de pescadores. No Brasil, apropria-se a riqueza privadamente e, por ironia, a lei do senador Eduardo Suplicy (PT/ SP), que institui a Renda Mínima foi aprovada dias antes do PBF, que esperamos seja mais um passo nesta direção.” O benefício da reforma agrária Atualmente, pelos dados oficiais, o PBF alcança 20% dos municípios brasileiros. Em algumas dessas 1,2 mil cidades, o auxílio representa a principal fonte de renda nesses locais, como nas cidades nordestinas Junco (MA) e Severiano Melo (RN), onde 95% da população é coberta pelo benefício. “Quando se acena para um caminho novo que dá certo fica difícil retroagir politicamente”, assinala a socióloga Anna Maria de Castro, professora aposentada da UFRJ, destacando a possibilidade de mudança propiciada pelo PBF, mesmo sendo o valor básico do benefício de R$ 68, variando mais R$ 22 para cada criança matriculada na escola, e chegando ao máximo de R$ 200. 20 Jornal da Políticas Públicas UFRJ “Agora, não basta simplesmente expandi-lo de forma aguda. É importante que o PBF tenha políticas complementares ligadas à educação e à criação de empregos”, ressalta Anna Maria. Filha de Josué de Castro, autor do clássico Geografia da Fome que conceitua o flagelo como fenômeno social, Anna recorda que a raiz das políticas sociais encontra-se no trabalho do sociólogo Herbert de Souza, o Betinho. “Ele chama a atenção de todos para a questão da fome na década de 1980. Hoje há uma reivindicação justa por novos e mais ágeis progressos, contudo eles são difíceis, pois há forças contrárias ao avanço”, analisa a socióloga, apontando os discursos que classificam o PBF como incentivo à preguiça, pertencentes aos interessados em poder contar com uma mão de obra escrava. Anna Maria de Castro reitera que a miséria não está restrita ao Nordeste. Ela afirma que o estereótipo, apesar de não ser totalmente falso, ainda resiste. Ela recorda que, em pleno centro de São Paulo, uma das maiores metrópoles do mundo, há amontoados de pessoas em cortiços vivendo sob condições precárias. “Nos últimos anos, houve uma diminuição da concentração urbana, porém, nada comparado ao efeito de uma reforma agrária caso já tivesse sido feita”, acredita a socióloga, indicando o acerto do PBF de privilegiar a mulher como titular do benefício: “Elas se sentem mais ind e p e n d e nt e s numa administração doméstica que, mesmo antes, já era assumida por elas. Agora, o grau de carência da realidade ainda indica a necessidade de se estender o anzol, a vara e dizer onde está o peixe.” Em pesquisa realizada sobre as repercussões do PBF na alimentação, o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômica (Ibase) traz o perfil desses beneficiados. Em sua maioria, negros e pardos (64%) e mulheres (94%) entre 15 e 49 anos, sendo que 27% delas são mães solteiras. Pelo estudo residem em área urbana 78% das famílias. Somente o estado “Mesmo sob uma Constituição que garante o direito à assistência social, os pobres são culpabilizados pela sua condição.” do Rio de Janeiro, a que, conforme dados do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), são aportados, anualmente, R$ 1,96 bilhão para execução de programas sociais, o PBF responde por R$ 52,9 milhões mensais para 641,7 mil famílias fluminenses. No Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), entidade fundada por Betinho e de onde se origina o “Fome Zero” incorporado como programa de governo, analisa-se que o fato do PBF estar presente na oratória dos candidatos à Presidência, nas próximas eleições, não significa a plena aceitação do programa. “Se não houver críticas ao PBF, é pelo temor de desagradar os eleitores. Pois elas continuam, de forma recorrente, sobretudo na mídia”, expõe Franc i s c o Menezes, diretorexecutivo do Ibase, lembrando “a cantilena” da grande imprensa de que o PBF acresce aos gastos públicos, gera acomodação nos beneficiários e não resolve os problemas reais, apenas criando compensações para a pobreza. “Contudo, o programa tem impacto sobre a desigualdade e não se limita apenas à extrema Outubro 2009 pobreza, mas também transfere renda para uma camada acima, que vive com uma baixa renda”, avalia Menezes. Prova desta afirmação é o recente levantamento da Fundação Getulio Vargas (FGV), baseado na Pnad de 2008, do IBGE. O estudo constata que 31 milhões de brasileiros subiram de classe social entre os anos de 2003 e 2008. Entre eles, 19,4 milhões deixaram a classe E, que traça a linha da pobreza no país, tendo a renda domiciliar inferior a R$ 768. Para muitos economistas, desde 2001, o Brasil vive um processo de redução da desigualdade. Neste período, a renda per capita dos 10% mais pobres da população subiu 72%, enquanto a dos 10% mais ricos cresceu aproximadamente 11%. Quanto à influência na educação, Francisco Menezes classifica o PBF, no qual 81% dos titulares do benefício são alfabetizados e 56% completaram o Ensino Fundamental, como indutor da manutenção das crianças na escola. “E, agora, dos adolescentes entre 15 e 17 anos, grupo em que a evasão escolar é alta, porém, ainda não existe tempo para se falar em impacto, pois não há como avaliar precisamente o que significará dotálas de conhecimento que Gasto social do Governo Federal per capita e em valor real, de janeiro de 2006 (média em reais entre 2001-2002 e 2003-2005) Fonte: MF/SPE/SIAFI e Pochmann, Márcio. “Gasto Social, o nível de emprego e a desigualdade de renda do trabalho no Brasil” In SICSÚ, João (org.) Arrecadação (de onde vem) e gastos públicos (para onde vão)? São Paulo: Boitempo, 2007. Outubro 2009 Políticas Públicas UFRJ 21 Marcello Casal Jr/ABr antes não tinham”, assegura o diretor da Ibase, confiante de que as melhoras da alimentação e de outras necessidades essenciais se reverterão favoravelmente ao estudo. “Ainda há muito a se fazer, principalmente quanto a uma escola que responda satisfatoriamente ao que a realidade atual exige”, preconiza Menezes. Estigma Após o recente reajuste de 9,68% no valor do benefício, o impacto do PBF sobre o orçamento atinge R$ 11,9 bilhões. Para Francisco Menezes, em termos de transferência de renda, não se deve criar outro programa e, sim, expandi-lo, alcançando grupos, famílias com renda mensal por pessoa de até R$ 120, ainda fora do PBF. “É preciso entender que o PBF destinase a quem tem pouca ou nenhuma renda. Não devemos atribuir a ele mais do que ele pode responder. Agora, é fundamental pensar que junto com ele devem ser construídos outros programas e ações que propiciem condições para a emancipação dos que vivem toda sorte de carências”, aponta Menezes, que foi presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). Entretanto muitos especialistas observam a dificuldade de tornar as políticas envolvidas diretamente ao PBF (Assistência, Saúde e Educação) mais integradas. “A intersetorialidade é ainda um expediente formal, o cotidiano mostra que cada uma se mantém no seu quadrado”, compara Joana Garcia, também professora da Escola de Serviço Social (ESS) da UFRJ, constatando que a abrangência e a visibilidade do PBF são incomparáveis. “Mesmo o programa do leite, instituído por José Sarney (1985—1990), que também teve um efeito político em todo o território nacional, não alcançou a expressão entre os beneficiários que este programa obteve. A própria fundamentação do PBF busca romper com a pessoalização, com a cultura do favor e da tutela e começa a imprimir, mesmo que de um modo ainda tênue, a idéia de direito à assistência”, afirma Joana, advertindo que “uma política de “enfrentamento às desigualdades não se restringe à transferência de renda, sobretudo a uma renda tão residual.” Segundo ela, faz-se necessária a remissão a uma cultura dominante que pensa a pobreza como atraso ou ameaça. “Ambas as perspectivas produzem uma espécie de ficção em que a sociedade se apresenta em oposição ao social. Mesmo sob uma Constituição que garante o direito à assistência social, os pobres são culpabilizados por sua condição. Ainda prevalece a premissa do Jornal da ensinar a pescar no lugar de dar o peixe”, acredita a docente, concordando que prevalece um estigma negativo sobre os indivíduos que mais necessitam de amparo do poder público. “Nas sociedades capitalistas, que premiam o talento, o sucesso, o mérito, ser beneficiário de um programa assistencial é evidência de fracasso, de não ter conseguido suprir as necessidades pelo poder de compra, sem a mediação da ajuda filantrópica ou de um programa social”, critica a docente, enfatizando que os resultados do PBF na educação são positivos, embora “o acesso das crianças e jovens às escolas não seja suficiente para mantê-los e ainda menos para que seu aproveitamento seja garantido. É, por isso, necessário que a qualidade do en- sino seja compatível com a oferta de vagas.” Entre as defesas do programa citase o exemplo de pessoas que conquistaram um emprego e, por conta própria, dispensaram o benefício. Entretanto, tal situação configura-se como uma exceção. “Saem aqueles que não estavam tão vulneráveis. A mobilidade social do grupo extremamente pobre é muito mais lenta. Às vezes somente conseguirão na geração seguinte, que poderá ter acesso ao estudo”, lembra Francisco Menezes, sustentando a obrigação do Estado em cuidar de todas as pessoas, em especial das mais frágeis: “Significa garantir os direitos básicos e o PBF é um instrumento importante para isso, embora não seja o único.” Francisco indica ainda a impotência de uma política social que até oferece ganhos aos mais pobres, mas associada à uma economia que produz mais desigualdade. “Será como enxugar gelo. É preciso que as medidas econômicas se voltem para favorecer a maior parte da população, ao invés de um pequeno grupo. Essa transformação somente ocorrerá com a constituição de uma maioria política determinada a romper com as condições de tanta iniquidade que o país carrega”, prega o ex-presidente do Consea, constatando que “essa maioria se faz na sociedade e não pode haver espaço para a indiferença. O momento clama pela postura do cuidado com as políticas públicas, o bem comum, a natureza e com o próprio ser humano.” 22 Jornal da UFRJ América Latina Outubro 2009 Bases da discórdia Jefferson Nepomuceno A assinatura de um acordo militar entre os Estados Unidos e a Colômbia para a utilização, por parte das forças armadas americanas, de sete bases militares em território colombiano, por 10 anos, traz um novo momento de incertezas para a política continental e de tensões diplomáticas entre os principais atores envolvidos. Bruno Franco pretexto para o acordo é o combate ao narcotráfico e às Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), a ocasião escolhida para a assinatura deveu-se ao fim do período de concessão da base militar, utilizada pelos Estados Unidos, em Manta, Equador, nos últimos dez anos, cuja renovação já era rechaçada pelo atual presidente equatoriano Rafael Correa, antes mesmo de sua posse. Aliado estratégico dos EUA na região, Álvaro Uribe, presidente colombiano já em seu segundo mandato, consentiu no arrendamento de sete bases militares como parte de um amplo acordo estratégico que visa o combate ao terrorismo e ao tráfico de drogas. Outubro 2009 Com isso, chegará a 872 o número de bases militares utilizadas pelas forças armadas norte-americanas em outros países. A manutenção desse opulento aparato militar global custa 250 bilhões de dólares aos contribuintes estadunidenses. Devido à preocupação que a instalação das bases provocou, sobretudo nos países fronteiriços à Colômbia, a União de Nações Sul-americanas (Unasul) realizou uma cúpula extraordinária, na cidade argentina de Bariloche, dia 28 de agosto. Após longo debate, os chefes de Estado das 12 nações que compõem a instituição aprovaram um comunicado que estabelece que “forças militares estrangeiras não podem […] ameaçar a soberania e a integridade de qualquer nação sulamericana.” Os 12 líderes concordaram em fortalecer iniciativas de cooperação contra o terrorismo e o crime organizado, bem como reforçar os laços de confiança e segurança entre os países da região. Nas acaloradas discussões ocorridas na reunião anterior da Unasul, em Quito, capital equatoriana, os presidentes Evo Morales (Bolívia), Rafael Correa (Equador) e Hugo Chávez (Venezuela) foram enfáticos na crítica ao acordo militar entre norte-americanos e colombianos. Chávez externou até mesmo o receio de um ataque ao seu país. Uribe recebeu apoio explícito somente de seu colega peruano Alan Garcia, ao passo que Lula, respaldado pela histórica trajetória de articulação de consensos do Itamaraty, sugeriu a participação dos Estados Unidos nos debates. Rearmamento colombiano O exército colombiano, graças aos mais de quatro bilhões de dólares recebidos desde a implementação do Plano Colômbia (iniciativa conjunta desse país com os EUA para combate ao narcotráfico), se tornou um dos mais bem-equipados – e de mais numeroso efetivo – exércitos sul-americanos. A Colômbia possui um contingente militar de cerca de 208.600 pessoas (para 44 milhões de habitantes), enquanto o Brasil, com seus mais de 190 milhões de habitantes, tem um contingente de somente 287.870 homens e mulheres no Exército. De acordo com Karl Schurster, pesquisador do Laboratório de Estudos do Tempo Presente (Tempo) da UFRJ, sobretudo as três bases inicialmente previstas no acordo (nas regiões de Apiay, Palanquero e Malambo) são altamente estratégicas. Malambo situa-se próxima à fronteira da Venezuela, com saída para o mar; Apiay fica próxima da fronteira da Amazônia brasileira, na região conhecida como Cabeça de Cachorro e Palanquero fica no centro da Colômbia. Desta região, um avião C-17, de transporte tático, com tanque cheio consegue sobrevoar metade do continente. América Latina Com a implantação do Plano Colômbia, há atualmente no país um efetivo de 800 soldados norte-americanos e 600 contratados (terceirizados) que é o máximo que a legislação interna permitiria. Com a instalação das bases seriam mais 1.400 soldados. Os interesses em questão Para Franklin Trein, professor do Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (Ifcs) da UFRJ, o acordo não significa que haverá ingerência direta norte-americana em assuntos sul-americanos, “mas, por certo permite exercer maior reconhecimento, controle e intimidação. Em caso extremo fica mais fácil desencadear ações ‘conjuntas’ com forças locais, para controlar situações de conflito ou que ponham em risco o exercício da ‘autoridade local'.” Para Schurster, a inserção militar dos EUA e a falta de clareza da política de Obama para com a América Latina geram grande insegurança acerca das intenções da operação militar. “Isso, mais uma vez, coloca terra sobre o projeto sul-americano de integração e, talvez, esse seja um dos motivos pelo qual processos dessa natureza tenham fracassado. Cada país tem pensado seu projeto particular de integração, não há projeto comum. Quando nos aproximamos disso, com a criação, no ano passado, da Unasul, visando aproximar o Pacto Andino e o Mercosul, o processo pode ir por água abaixo”, lamenta-se o historiador. As grandes inimigas que Bogotá visa combater, com mais esse auxílio americano, são as Farc. O próprio presidente Uribe tem sua trajetória pessoal ligada ao combate à guerrilha. “O pai dele (Álvaro Uribe), que era proprietário de terras, morreu quando teve sua fazenda invadida. Isso devota Uribe ao combate às Farc, mesmo ele tendo sofrido várias acusações por envolvimento com o narcotráfico”, relata Schurster. A libertação de Ingrid Betancourt, em julho de 2008, foi uma vitória do governo Uribe e calou vozes que contra ele se levantavam. No entanto, Schurster alerta que a Colômbia continua sendo um país institucionalmente inseguro. “Muitos políticos foram sequestrados e mortos pelas Farc nas eleições locais do ano passado e a imprensa e o governo tentaram silenciar quanto a isso. Mas é claro que há países com fragilidade institucional maior, como o Peru, do presidente Alan Garcia, onde 11 ministros se demitiram em um mesmo dia. Na opinião de Manuel Sanches, professor do Departamento de Ciência Política, também do Ifcs, não se pode discernir os verdadeiros objetivos do acordo, mas podem-se deduzir as ameaças percebidas pelas partes e seus interesses de longo prazo, tais como “aproveitamento” da bacia hidrográfica da Amazônia; interesse com relação ao potencial de sequestro de carbono representado pela floresta; também com relação à biodiversidade e quanto aos recursos naturais, particularmente o petróleo”. O Exército colombiano, graças aos mais de quatro bilhões de dólares recebidos desde a implementação do Plano Colômbia (iniciativa conjunta desse país com os EUA para combate ao narcotráfico), se tornou um dos mais bem-equipados - e de mais numeroso efetivo - exércitos sul-americanos. A Colômbia possui um contingente militar de cerca de 208.600 efetivos (para 44 milhões de habitantes), enquanto o Brasil, com seus mais de 190 milhões de habitantes, tem um contingente de somente 287.870 homens e mulheres no Exército. Contenção à política chavista De maneira mais imediata, o bolivarianismo – proposta política de Hugo Chávez de cunho popular e de Jornal da UFRJ 23 esquerda –, é fonte de preocupações para norte-americanos e colombianos. ”Chávez tem origens militares e, muitas vezes, se comporta como tal. O apoio que tem dado ao Equador, à Bolívia, e à Argentina e, eventualmente, às Farc não tem se limitado a sua conhecida incontinência verbal. Mas, longo prazo, a questão amazônica parece ser mais séria que a questão do combate ao tráfico de drogas e às Farc” acredita Sanches. Também no entendimento de Schurster, os Estados Unidos têm medo de que o modelo político venezuelano, chamado por Chávez de bolivarianismo, prolifere pela América do Sul. Isso já se demonstrava durante o governo George W. Bush, com as discussões entre Condoleeza Rice, ex-secretária de Estado, e Hugo Chávez. “Uma das preocupações que o próprio governo venezuelano começa a demonstrar é que com a saída de Bush e a eleição de Obama para a Presidência norte-americana o discurso de Chávez começa a ficar politicamente vazio. O inimigo foi embora e entrou no governo uma pessoa extremamente popular e aberta ao diálogo (ainda que não necessariamente bem-intencionada)”, explica Sanches. No entanto, o advento do projeto de cooperação militar dos EUA com a Colômbia permite a Chávez discursar contra uma nova ameaça. “A maneira mais fácil de esconder problemas sociais em seu próprio país é atacar seus vizinhos. Isso acontece muito com o Brasil, que é alvo da política externa de países vizinhos para que eles possam esconder seus problemas. É o caso do presidente paraguaio Fernando Lugo, que tenta esconder o escândalo de seus filhos (Lugo é bispo da Igreja Católica) criticando o acordo de fornecimento de energia da hidrelétrica de Itaipu”, critica Schurster. Para o pesquisador, ainda que a América do Sul esteja passando por um processo de reformas populares, as mesmas não podem ser entendidas como socialistas. “Mesmo Morales já fez discurso falando em implantar o que chama de ‘capitalismo andino’”, relata Schurster. De todo modo, Schurster se mostra pessimista quanto aos possíveis ganhos de que a Colômbia poderia usufruir com mais esse acordo com os Estados Unidos. “A desarticulação do narcotráfico na Colômbia não deu certo e o consumo de cocaína é cada vez maior. Foram investidos milhões no Plano Colômbia, um projeto eminentemente fracassado. Os Estados Unidos ocupam militarmente o Afeganistão, que é, atualmente, o maior exportador mundial de heroína”, critica o historiador. 24 Jornal da UFRJ Movimento Estudantil Outubro 2009 A voz de muitas gerações Coryntho Baldez D epois do golpe militar de 1964, uma extensa coleção de leis repressivas foi sendo cuidadosamente elaborada pelos novos donos do poder para fechar o cerco contra o movimento estudantil. Em seu auge, a fúria normativa dos militares produziu o malfadado AI-5, em fins de 1968, e uma excrescência jurídica nem sempre lembrada, o Decretolei 477, de fevereiro de 1969, que previa penas administrativas, como demissões e expulsões, para professores, funcionários e estudantes de universidades acusados de “subversão”, à revelia de qualquer apreciação judicial. Antes, a ditadura já havia editado a Lei Suplicy de Lacerda, em 9 de novembro de 1964, que colocou na ilegalidade a União Nacional dos Estudantes (UNE) e as suas similares estaduais, as UEE. Mesmo debaixo da intensa repressão dos anos de chumbo, os estudantes brasileiros conseguiram se reorganizar, aos poucos, e voltaram maciçamente às ruas, em 1977, para exigir mais verbas para a Educação, a revogação de punições impostas aos colegas e a restauração das liberdades democráticas. Dois anos depois, fizeram o histórico congresso de reconstrução da UNE, nos dias 29 e 30 de maio de 1979, que marcou o fim do período de clandestinidade da entidade. Realizado em Salvador, o 31º Congresso da UNE, que acaba de completar 30 anos, coincide com o início de uma nova etapa da vida política do Brasil. Tradição de resistência Maria Paula Araújo, professora do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (Ifcs) da UFRJ, considera o congresso de refundação da UNE um momento histórico de retomada da tradição combativa dos estudantes na arena política brasileira, que surpreendeu e incomodou bastante o regime militar. Para arrefecer a força do movimento estudantil que voltava à cena, a ditadura ordenou a demolição do prédio que, antes de 1964, abrigara a sede da UNE, lembra a especialista em História Moderna e Contemporânea. “O prédio da Praia do Flamengo, no Rio de Janeiro, foi derrubado em junho de Manifestação pelo petróleo em 1957. A UNE foi uma das maiores defensoras da criação da Petrobras, participando ativamente da campanha “O petróleo é nosso”. 1980. Exatamente no momento em que o movimento estudantil se rearticulava, a ditadura derrubou o prédio que constituía um lugar de memória de suas lutas”, assinala Maria Paula, que é pesquisadora do Grupo de Estudos sobre a Ditadura Militar do Programa de Pós-graduação em História Social da UFRJ. Para o atual presidente da UNE, Augusto Chagas, eleito no 51º Congresso, realizado em 19 de julho de 2009, em Brasília, a reconstrução da entidade somente foi possível porque o movimento estudantil nunca deixou de existir, nem mesmo durante a ditadura militar. Cita como exemplo o congresso clandestino, realizado em 1971, que elegeu como presidente da entidade o goiano Honestino Guimarães, logo depois assassinado pelos militares. Após algumas lutas esparsas, duramente reprimidas, os estudantes levantaram a bandeira das liberdades democráticas, em 1977, realizando as primeiras manifestações pela volta da democracia, como sublinha Chagas. Os governos dos generais Ernesto Geisel e João Figueiredo, pressionados pela opinião pública, começaram, então, Em 1942, estudantes protestam contra as forças fascistas durante a Segunda Guerra mundial. O movimento estudantil mobilizou alunos, professores e intelectuais em oposição aos regimes de Hitler e Mussolini. a programar a política de distensão lenta e gradual, de acordo com o dirigente. “É exatamente nesse momento que o movimento se rearticula para reconstruir a sua entidade nacional. A volta da UNE é marcada pela campanha da anistia ampla, geral e irrestrita e, mais tarde, pelas Diretas Já”, observa o militante estudantil. Augusto Chagas aponta a campanha das Diretas Já como principal bandeira nos anos seguintes ao congresso da reconstrução. E ressalta que o movimento estudantil, em todos os cantos do Brasil, se mobilizou para derrotar a ditadura. Depois da queda do regime, ele opina que a UNE passou a lutar por um Brasil mais justo e igualitário e, principalmente, por uma educação pública de qualidade. Nesse período, os estudantes também ocuparam as ruas com suas caras pintadas para pedir o impeachment do presidente Fernando Collor. Foram decisivos para o desfecho daquela memorável mobilização nacional, em 29 de setembro de 1992, quando o Congresso Nacional depôs o autodeclarado “caçador de marajás”, hoje de volta à cena política. “Também marcou esse período uma bandeira específica, levantada desde a década de 1980, que é a volta da entidade para a sua sede histórica”, frisa Chagas. Essa, aliás, já é uma reivindicação vitoriosa. Depois de reaver a posse do espaço doado à entidade pelo presidente Getulio Vargas – na Praia do Flamengo, 132 – a UNE reerguerá a sua sede no mesmo local. O projeto arquitetônico é de Oscar Niemeyer e o convênio com a Fundação da Caixa Econômica Federal (Funcef) para a liberação de recursos foi assinado no 51º Congresso. Embora ressalte que muitas reivindicações da entidade, nos últimos 30 anos, tiveram um caráter conjuntural, Maria Paula também enfatiza que há bandeiras históricas que jamais foram abandonadas. “Uma delas é a defesa da democracia na política. Em relação às questões específicas, as lutas pela qualidade do ensino e pela meia-entrada para estudantes também são históricas”, destaca a pesquisadora. Um difícil equilíbrio Ao analisar as correntes políticas que participaram do congresso de reconstrução, Maria Paula lembra que o movi- Jornal da UFRJ Outubro 2009 25 Congresso histórico de reconstrução da UNE completa 30 anos. Muitas bandeiras do movimento estudantil mantêm-se vivas até hoje. mento estudantil estava polarizado por dois grandes blocos partidários. Um que se articulava em torno do Partido Comunista do Brasil (PC do B) e outro que reunia diversas correntes do Partido dos Trabalhadores (PT). A pesquisadora lembra que, entre 1980 e 1989, os dois blocos partidários se revezaram na diretoria da UNE, mas a partir daí concordaram em dividir, de forma proporcional, os votos obtidos na eleição para a diretoria da entidade. “Tendências e correntes políticas sempre existiram, mas, pelo menos até agora, a entidade nunca se dividiu, sempre se acatou a decisão das urnas”, assinala Maria Paula. Também para Augusto Chagas, a grande marca da UNE é a sua unidade de ação, mesmo com a pluralidade de idéias. Para o estudante de Sistemas de Informação da Universidade de São Paulo (USP), “as diferentes correntes de pensamento na entidade a tornam democrática, forte e mobilizadora”. A professora da UFRJ, ao analisar as críticas hoje dirigidas à entidade quanto a uma possível perda de autonomia frente ao poder público, afirma que não apenas o movimento estudantil, mas todos os movimentos sociais, de modo geral, vivem um impasse pela proximidade de suas relações com o governo federal. Augusto Chaves, porém, afirma que a UNE sempre esteve do lado do de senvolvimento do Brasil. Ressalta que a entidade participou da campanha “O petróleo é nosso!”, subiu no palanque do presidente João Goulart para pedir as “reformas de base” e lutou contra a ditadura. “Hoje, avaliamos que o governo Lula teve avanços, mas falta muito ainda. O problema é que a mídia não dá destaque a algumas das nossas ações. Fizemos uma manifestação em Brasília, que reuniu mais de 20 mil estudantes, contra a política econômica de Lula. Pedimos em público a saída de Henrique Meirelles do Banco Central, mas nada disso veio à tona”, revela o estudante, citando, ainda, a luta que a UNE travou, nos últimos anos, contra o Ministério da Educação, para fazer avançar a qualidade do sistema educacional brasileiro. “Contudo, é importante dizer que o governo atual nos recebe para o diálogo, enquanto no tempo de Fernando Henrique Cardoso, o ministro da Educação, Paulo Renato, batia a porta na nossa cara”, enfatiza Augusto Chaves. Qual política? Ao abordar o futuro do movimento estudantil, Maria Paula avalia que a política ainda atrai os jovens, mas uma política de outro tipo. Aponta a esfera institucional como inteiramente desgastada e desacreditada, não apenas pelos jovens. Para a docente, o que atrai os jovens para a política, hoje, são as mesmas questões de sempre, ligadas às idéias de liberdade, justiça e igualdade. Mas essas bandeiras não estariam localizadas mais nos partidos políticos, e sim em movimentos sociais e culturais, projetos e ações comunitárias, na luta pela defesa do meio ambiente e pelos direitos iguais para negros e índios. “Essa é outra forma de pensar a polis e as questões políticas. Não sei se a atual diretoria da UNE está atenta a essas novas práticas, mas é o que percebo nas ações dos jovens ao meu redor”, analisa a professora. Já para o presidente da UNE, o futuro do movimento estudantil é continuar a luta para ampliar as conquistas dos estudantes e por um Brasil justo e democrático. Ele assinala que, nos anos 1980 e 1990, o neoliberalismo tentou acabar com as formas coletivas de organização, mas os seus alicerces econômicos ruíram. “O que vimos no último congresso é que o movimento está muito vivo e os estudantes com muita vontade de lutar por seus interesses e pela soberania do Brasil”, completa Chagas. Breve cronologia Novembro de 1964 A Lei Suplicy de Lacerda, de 9/11, coloca a UNE e as UEEs na ilegalidade, que passam a atuar na clandestinidade. Todas as instâncias da representação estudantil ficam submetidas ao Ministério da Educação. Início de 1965 A UNE convoca um conselho para eleger, com mandato-tampão, o presidente que a dirigirá até o 27º Congresso, em julho. Alberto Abissâmara, de tendências progressistas, é escolhido. Julho de 1965 O 27º Congresso da UNE, em São Paulo, elege o paulista Antônio Xavier. É realizada uma campanha do movimento estudantil contra a Lei Suplicy de Lacerda. Julho de 1966. Mesmo na ilegalidade, é realizado o 28º Congresso da UNE, em Belo Horizonte (de 28/7 a 2/8), que marca a oposição da entidade ao Acordo MEC-Usaid. O congresso acontece no porão da Igreja de São Francisco de Assis e o mineiro José Luís Moreira Guedes é eleito presidente. Outubro de 1971 Em plena vigência do AI-5, ocorre na clandestinidade o 31º Congresso da UNE, que elegeu presidente Hosnestino Guimarães, morto em seguida pela ditadura. Este Congresso foi reconvocado seis anos depois. 1976 Começam os debates para o I Encontro Nacional de Estudantes (ENE), que visava a reconstrução da UNE. Março de 1977 Os estudantes voltam às ruas, com uma passeata que reuniu quatro mil, em São Paulo, intensificando a luta contra a ditadura. Outubro de 1978 O IV Encontro Nacional de Estudantes, realizado em São Paulo, aprova a comissão Pró-UNE. Maio de 1979 O 31º Congresso da UNE, em Salvador, marca a retomada da entidade. O baiano Rui César Costa Silva é eleito presidente da entidade. Fonte: Projeto Memória do Movimento Estudantil (www.mme.org.br/), organizado pela União Nacional dos Estudantes em colaboração com a Petrobrás, a Fundação Roberto Marinho, o Museu da República e a TV Globo. 26 Jornal da Sociedade UFRJ Outubro 2009 A criança Márcia Carnaval/Imagem UFRJ no centro das atenções A infância não é um fenômeno natural e eterno. Para muitos pesquisadores é um conceito que se forjou historicamente, com a ascensão da burguesia ao poder. Coryntho Baldez E mbora o dia 12 de outubro tenha sido oficializado como o Dia da Criança em 1924, por decreto do presidente Artur Bernardes, a data ganharia visibilidade apenas em 1960 graças a uma promoção comercial – a “Semana do Bebê Robusto” – de duas conhecidas fabricantes de produtos infantis. Desde então, a infância passou a ser alvo de agressivas estratégias de venda e foi alçada pelo mercado em expansão no Brasil, à semelhança do que já ocorria em economias capitalistas mais pujantes, à condição de valioso segmento consumidor. Nas famílias mais abastadas, de fato, a criança chega a ter hoje uma influência de 80% nas decisões de compras do lar, segundo pesquisa da TNS InterScience - Informação e Tecnologia Aplicada. Por outro lado, o poder público pressionado por setores sociais que desejavam que a criança antes de ser consumidora exercesse a sua cidadania, pelo menos nas leis, passou a dispensar atenção especial à infância. A Constituição de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de 1990, criaram condições legais para que o Estado assegurasse os direitos elementares da criança e a colocasse a salvo de toda forma de negligência, discriminação e exploração. Como a previsão legal não garante, por si só, a efetivação do direito, o trabalho infantil, por exemplo, ainda afeta um contingente de 4,452 milhões de menores entre 5 e 17 anos de idade, segundo a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2008, divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 18 de setembro passado. A construção da infância Mas, se hoje a infância desperta interesses distintos, seja de um mercado sedutor e voraz ou de setores públicos e sociais empenhados em protegê-la, nem sempre foi assim. Mesmo porque o conceito de infância, para muitos especialistas, não é um fenômeno natural, mas uma construção histórica. Segundo Patrícia Corsino, professora adjunta da Faculdade de Educação (FE) da UFRJ, os estudos acerca das crianças ganham relevância a partir do século XIX. Mas foi no século XX que as pesquisas da Psicologia, da Antropologia, da Sociologia, da Filosofia, da Linguística, entre outros campos do conhecimento, produziram as mais ricas contribuições para que se possa pensar a infância. “Há quem diga que este foi o século da criança, tal a ênfase dos estudos dada a elas”, observa a pesquisadora do Programa de Pósgraduação em Educação da UFRJ e doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Patrícia Corsino cita o livro “História social da criança e da família”, de Philippe Ariès, lançado em 1973, para reforçar a ideia de que a infância, no sentido de diferenciação do adulto, é uma construção da modernidade. Tal conceito, para Ariès, teria surgido de modo incipiente ainda no fim do século XVII, nas camadas superiores da sociedade, e se sedimentado no século seguinte. “De acordo com este autor, na Idade Média, assim que a criança tornava-se mais autônoma em relação aos cuidados da mãe ou da ama, logo se inseria na sociedade dos adultos, participando dos seus trabalhos e jogos. Observando as pinturas da época, vemos crianças e adultos dividindo o mesmo espaço, as mesmas atividades e o mesmo vestuário, numa grande sociabilidade. A única diferença está no tamanho das figuras representadas”, afirma Corsino. As crianças, segundo a docente, adquiriam os seus conhecimentos junto aos adultos, sendo entregues muitas vezes a famílias desconhecidas para que fossem educadas, prestassem serviços domésticos ou aprendessem algum ofício. Não havia escola na Idade Média dirigida especificamente à criança. “Segundo Ariès, foi a partir de uma série de mudanças na sociedade, como a ascensão da burguesia, a difusão do impresso e o Outubro 2009 crescente interesse pela alfabetização e a moralização, que ocorre a separação entre criança e adulto”, frisa a pesquisadora. Então, a criança seria mantida à distância antes de ser solta no mundo, numa espécie de quarentena: a escola, para o historiador francês, era percebida como o lugar inicial do longo processo de clausura. E isso somente foi possível, segundo Ariès, com a cumplicidade da família, que passou a experimentar uma afeição pela criança, trazendo para si a responsabilidade por sua proteção e formação; tornando-se nuclear. A infância no Brasil Patrícia Corsino realça que, apesar de importantes e inovadoras, ao identificarem o sentimento de infância como construção histórica, as pesquisas de Ariès sofreram críticas na época de sua publicação. Foram acusadas de refletirem uma realidade européia que, embora tivesse forte influência no mundo ocidental, não pode ser generalizada ou transportada mecanicamente para outras realidades sociais, como a brasileira. “Desde os primórdios da colonização, as diferenças contrastantes da nossa sociedade, pela distribuição de renda e de poder, fizeram emergir infâncias distintas para classes sociais também distintas. O significado social dado à infância não foi homogêneo pelas próprias condições de vida de nossas crianças. Portanto, usando as palavras de Mary Del Priori, historiadora brasileira, a historiografia internacional pode servir de inspiração, mas não de bússola para orientar a construção deste sentimento entre nós”, analisa Patrícia Corsino. Para ela, a história da criança brasileira foi feita à sombra de uma sociedade que viveu quase quatro séculos de escravidão, tendo a divisão entre senhores e escravos como determinante da sua estrutura social. Portanto, na história do Brasil, a escolarização e a emergência da vida privada burguesa e urbana não poderiam ter sido e não foram os pilares sustentadores da construção do nosso sentimento de infância. A inadequação das teses europeias à realidade brasileira, no entanto, de acordo com a professora, permite compreender que o nosso sentimento de infância foi sendo construído na mesma lógica dicotômica escravista de senhores e escravos, repleta de distorções e fruto de desigualdade. Assim, enquanto os filhos dos senhores mandavam e o adulto escravo obedecia, os filhos de escravos, de mestiços e de imigrantes, diante da pobreza e da falta de escolarização, trabalhavam. Como resultado desse processo histórico, o Brasil hoje é um país que ainda não reconheceu completamente as crianças como portadoras de direitos, inclusive o de acesso a bens culturais. Para Georgina Martins, que Jornal da UFRJ Sociedade integra a equipe de Literatura Infantil da Faculdade de Letras (FL) da UFRJ, a questão de fundo, que merece destaque, diz respeito às diversas concepções de infância no país. “Criança pobre, ainda que a família disponha de alguma fonte de renda, torna-se mais um braço de mão-de-obra e, em função disso, não sobra espaço nem tempo para que ela possa usufruir de bens culturais, sobretudo se os pais não têm condições de valorizar o conhecimento como algo importante para a formação. Nesse aspecto, a criança que trabalha não é vista como criança, logo não tem direito à infância como têm as crianças que não precisam trabalhar”, afirma Georgina, autora de livros infantis e doutoranda em Literatura Brasileira. Patrícia Corsino concorda que foi sob a égide de uma sociedade estratificada que foram sendo construídas as muitas histórias das crianças brasileiras. De acordo com a pesquisadora, a reconstituição do cotidiano infantil dos diferentes grupos sociais e regionais tem permitido conhecer a trajetória histórica dos comportamentos e das formas de ser da criança brasileira, desconstruindo a ideia de uma natureza ou essência infantil idealizada e universal, tão difundida pela Pedagogia. “Nas histórias individuais e coletivas das crianças brasileiras não há uma resposta única às perguntas sobre o que significa ser criança e quando deixamos de ser crianças e nos tornamos adultos”, questiona a pesquisadora. Apesar de evitar generalizações, Patrícia Corsino afirma que um conjunto de situações sociais, políticas e “Hoje, as crianças despertam o interesse tanto do mercado, que as trata como consumidoras, como de setores empenhados em garantir os seus direitos de cidadania”. econômicas, além de estudos específicos, deram origem a uma ideia mais global de infância, endossada por organismos internacionais como a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e o Fundo das Nações Uni- 27 das para a Infância (Unicef). “A Declaração Universal dos Direitos das Crianças, de 20 de novembro de 1959, ao traçar os seus direitos, sintetizados em proteção, provisão e participação, define uma concepção de infância”, constata Corsino, que é autora da tese de doutorado “Infância, linguagem e letramento: a educação infantil na rede municipal de Educação do Rio de Janeiro”. Para a professora, o Brasil reconheceu os direitos das crianças e jovens e possui uma legislação avançada. A Constituição Federal e o ECA – frisa – instituem outro olhar para elas, que se traduz no conceito de proteção integral, concebida como prioridade absoluta. Corsino aponta avanços no Brasil em relação a muitos aspectos, como a diminuição da mortalidade infantil e das taxas de fecundidade, a quase universalização da escolaridade obrigatória e a inclusão das crianças de seis anos de idade no processo de escolarização obrigatória. “Mas ainda falta muito para conferir cidadania de fato a todas as crianças brasileiras. Faltam melhores condições de vida e diminuição das desigualdades sociais e políticas em grau suficiente para transformar a realidade social”, conclui a educadora. Consumidoras, mas de quê? Muitas propagandas insidiosas de linhas de produtos infantis invadem as telas da televisão brasileira às vésperas do Dia da Criança. Ao comentar a possibilidade de serem presas fáceis de apelativas estratégias de marketing, Patrícia Corsino lembra que as crianças são hoje concebidas como agentes sociais plenos e, portanto, “agem no mundo e também consomem”. A mídia sabe disso e se dirige diretamente a elas, destaca. “Mas sua autonomia é relativa. Consomem o que os pais e adultos responsáveis autorizam. Cabe aos adultos negociar as escolhas, colocar seus pontos de vista em discussão. Tudo isso dá trabalho e demanda tempo, diálogo, relacionamento familiar. A questão está também na relação entre adultos e crianças. Que tempo os adultos dispensam às crianças?”, indaga a professora da Faculdade de Educação da UFRJ. Para Georgina Martins, a primeira questão que surge quando se debate a influência da propaganda sobre a infância refere-se, também, à própria autonomia da criança, “que em termos legais não é autônoma, tampouco do ponto de vista da proteção”. Lembra que vivemos numa sociedade capitalista, de regras postas pelo mercado: “É ilusório pensar que a criança pode ficar livre dessa influência, embora seja isso que gostaríamos que ocorresse, o que somente seria possível numa outra sociedade”, observa a especialista da Faculdade de Letras da UFRJ. Como autora de livros infantis, vê também com pesar o fato de não haver propagandas de livros para crianças. “Quando há, são sempre modestas, em geral ligadas a novelas, filmes e aos demais produtos de consumo”, critica a autora. Rosa Gens, professora da Faculdade de Letras da UFRJ, tem a mesma opinião de que o papel da literatura infantil na formação das crianças poderia ser valioso e melhor explorado. “Há várias vertentes de ideias. Podemos perceber a importância da literatura infantil no desenvolvimento da imaginação, no despertar da fantasia, na compreensão e na interpretação do mundo, e na preparação para a ‘vida real’. E também para o desenvolvimento cognitivo e a fixação de habilidades de leitura”, completa a coordenadora do curso de Especialização em Literatura Infantil e Juvenil da Faculdade de Letras. Imagem UFRJ 28 Jornal da UFRJ Aline Durães P “ agú tem uns olhos moles / uns olhos de fazer doer. / Bate-coco quando passa. / Coração pega a bater./ Eh Pagú eh!/ Dói porque é bom de fazer doer (...)”. Dessa forma, Raul Bopp, poeta modernista, definiu Patrícia Galvão, no poema “Coco de Pagú”, de 1928. Pagú, apelido dado pelo próprio Bopp, foi uma das musas do Movimento Antropofágico da década de 1930 e ganhou notoriedade por ter sido o estopim do divórcio entre Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade, dois célebres personagens da Semana da Arte Moderna de 1922. O que poucos sabem é que, para além da beleza e das intrigas pessoais, Patrícia Galvão deixou uma obra literária plural, marcada pela intensidade. Ela iniciou cedo sua vida pública. A paulista de São João de Boa Vista demonstrava, desde a adolescência, certa inclinação para a literatura. Tanto é que, aos 15 anos, colaborava com textos para o jornal Brás. Já nessa época passou a adotar a marca indelével de suas obras: os pseudônimos. Patsy, Mara Lobo e King Shelter foram alguns dos apelidos que assinaram as obras da escritora. “Ela gostava muito de brincar com os nomes, de ser outra pessoa. Era uma maneira de expressar sua multiplicidade, manifestada tanto na literatura como na vida. Pagú vivenciou várias fases num mesmo momento histórico. Era plural e mostrava suas facetas”, explica Rosa Gens, professora do Departamento de Letras Vernáculas da Faculdade de Letras (FL) da UFRJ. Romance proletário Parque industrial, de 1933, foi o livro mais expressivo da obra de Patrícia Galvão. Considerado o primeiro romance proletário da Literatura Brasileira, une a temática política à estética da narrativa modernista. Abusando de parágrafos curtos e de pontuação frenética, Pagú aborda a luta de classes ao descrever o cotidiano de trabalhadores durante o processo de industrialização em São Paulo. Apesar de proveniente de família burguesa, na opinião de Rosa Gens, a autora conseguiu descrever a aura de exploração que se abatia sobre o proletariado do início do século XX. “Pagú queria mostrar o ser proletário. E conseguiu. Não me interessa dizer se Parque Industrial é uma obra de alta literatura; o que importa é o livro ter se fixado. Ele é quase um documento da época”, salienta a professora. No decorrer da carreira literária, no entanto, Patrícia Galvão se afasta do compromisso político. À medida que se desilude com as propostas comunistas, passa a tratar outras temáticas. Romances policiais, textos autobiográficos, poesias. A escritora, Pagú A estrela esquecida Persona Outubro 2009 assim como a mulher, se reinventa. “Pagú se move o tempo todo pelo emotivo, pelo sentimental. Ela busca transformação. Nunca é a mesma. Chega ao momento em que não interessa mais a ela passar a imagem de revolucionária”, ressalta Rosa Gens. Militância e prisões Ao longo dos seus 52 anos, Patrícia Galvão passou 22 vezes pela prisão. Foi em Buenos Aires, no fim da década de 1920, que ela teve seu primeiro contato com as ideias socialistas. Em viagem à cidade, conheceu Luís Carlos Prestes e, ao retornar ao Brasil, ingressou no Partido Comunista Brasileiro (PCB). O estilo de vida luxuoso e as festas deram lugar à militância intensa. Pagú chegou a morar em uma vila operária e a trabalhar como lanterninha em um cinema para, assim, experimentar o modo de vida proletário. Viajou o mundo em prol da ideologia pela qual lutava, mas se decepcionou com a pobreza que verificou em algumas regiões. Em um trecho do livro Verdade e liberdade (1950), a escritora deixa transparecer sua desilusão: “Em Moscou, um hotel de luxo para os altos burocratas, os turistas do comunismo, para os estrangeiros ricos. Na rua, as crianças mortas de fome: era o regime comunista”. Vida de antropofagia Injustamente, Pagú passou para a história como a amante do escritor Oswald de Andrade. Ainda casado com a pintora Tarsila do Amaral, Oswald manteve um romance com a jovem Patrícia Galvão. Por ele Pagú teve acesso ao Movimento Antropofágico. Chegou a escrever para a Revista da Antropofagia, criada pelo escritor para difundir o movimento que, entre outras coisas, pregava a “deglutição” — e não a imitação — da cultura externa pelos artistas brasileiros. A vida pessoal de Pagú e em especial seu envolvimento com o poeta “antropofágico” fugiam aos moldes da sociedade paulista dos anos 1930. Rosa Gens conta que a intenção do casal era, por vezes, chocar os mais conservadores: “Tanto é que eles casam em um cemitério. Oswald gostava disso. Era o palhaço da burguesia. Mas é claro que a elite não aceitaria a relação deles. O casal enfrentou preconceitos; prova disso é que, embora tivesse uma tese magnífica, Oswald nunca conseguiu ser catedrático da USP”, observa a professora. A união com Oswald, finda depois de cinco anos, em 1935, rendeu um filho a Pagú. A escritora casou-se novamente com o jornalista Geraldo Ferraz, com quem teve o segundo filho e viveu até sua morte, em 1962. Mas o espectro do romance com o poeta modernista continuou a rondar a figura pública de Pagú; suas obras literárias, inclusive. “Houve uma explosão Pagú, nos anos 1970 e em parte dos anos 1980, impulsionada por sua figura pública; ela atendeu aos propósitos feministas de libertação da mulher. Mas, posteriormente, a escritora caiu no esquecimento. Para se ter uma idéia: desconheço pesquisas feitas no Rio de Janeiro acerca dela. Isso mostra que, por vezes, a imagem pública apaga a imagem criadora. As obras de Pagú estão esgotadas, as biografias também, o livro Parque industrial foi reeditado pela José Olympio, em 2006. Mulheres como ela, que não tiveram vergonha de expor publicamente o que eram, devem ser recuperadas. Pagú foi uma estrela, em todos os sentidos. E não do cinema, mas da vida”, conclui Rosa Gens.