IV Reunião Equatorial de Antropologia e XIII Reunião de Antropólogos do Norte e Nordeste. 04 a 07 de agosto de 2013, Fortaleza-CE. Grupo de Trabalho 22: Mobilidades e Fronteiras no Mundo Contemporâneo. Título do Trabalho: transnacionais Casa, Fronteira e Identidade: imbricações Nome completo: Ana Flávia Andrade de Figueiredo E-mail: [email protected] Instituição: Doutoranda na Universidade Federal de Pernambuco/ Docente na Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri Casa, Fronteira e Identidade: imbricações transnacionais A fronteira da casa tem se colocado de forma muito tímida nos estudos acerca da formação de identidades transnacionais. Detentora de espaços simbólicos de rica significação para compreendermos os limites e as linhas geopolíticas que ali se estabelecem, se transitam, ultrapassam, e transformam, a casa, ou o lar, ninho íntimo do ser, vem se colocar neste artigo como ponto focal de nossa análise conceitual sobre fronteiras e identidades transnacionais. A presente discussão é parte de um contexto de desenvolvimento de minha tese de doutoramento em Antropologia pela Universidade Federal de Pernambuco. Nosso foco são os processos de construção de identidades transnacionais, tendo como universo de sujeitos, membros de uma rede virtual: o Couchsurfing1 - espaço de convergência de 6 milhões de viajantes, presente em mais de 100.000 cidades2 e em mais de 190 países. Ao iniciar meu contato com a rede em 2007, os números beiravam pouco mais de 300.000 integrantes. O crescimento, embora desde sua origem constante, começou a gerar preocupação nos últimos anos, para membros mais antigos e ativos, e até para os próprios administradores da rede. O número revela que muitos que se inscrevem podem estar motivados por elementos similares a mais de uma espécie de rede social contemporânea à cibercultura. Isto foge ao perfil inicial de intercâmbio cultural profundo que ganhou adeptos em todo o mundo desde 2004, ano de sua fundação. Se por um momento foi interessante pela projeção da rede, que passou mais recentemente de um caráter sem fins lucrativos de organização para uma entidade comercial (.com), agora preocupa pela saída ou afastamento de membros atuantes e que se tornaram referências locais, assim como pela fragmentação ideológica da rede apontada por alguns a partir de suas próprias ferramentas de discussão e postagens. 1 A tradução para Couchsurfing seria uma espécie de surfe por sofás. As pessoas compartilham suas casas, umas com as outras, não obrigatoriamente, mas esta é a base da existência da rede. 2 Dados do próprio site. Disponível em: <https://www.couchsurfing.org/n/about>. Acesso em: 13 jul. 2013. The biggest lessons are clear: We need to work as closely with the community as possible in building and migrating the site. I need to ensure the team here has more time (and encouragement) to surf and host continuously — to live and breathe CS. We also must admit that we are missing key team members with greater Couchsurfing experience. (...). The goal is quality, not quantity. New members must contribute more and share more about themselves in order to fully participate on the Couchsurfing site.3 A relação entre o virtual e o campo da concretização das ideias no cotidiano vivido, aqui, perfaz uma unidade de convergência intensa. O virtual está sempre alimentando as ações de hospedagem, encontros e tensões culturais, assim como o inverso. Tal itinerário, especialmente o que desagua no espaço da experiência íntima da casa compartilhada, corresponde a uma articulação e à criação de novas ambiências de percepção cultural/ transnacional. No ambiente virtual estão os fóruns de discussão e postagens para encontros e eventos; mas a força de sua expressão se dá na construção dos perfis, na alimentação dos mesmos por referências de pessoas que passaram pela experiência do estar com o outro e, cabe o destaque, para a negociação da hospedagem. Ou seja, a essência e a força da multiplicação da rede permanecem na abertura de si e de seu espaço íntimo (a casa) e na troca recíproca e cíclica promovida pelo acolhimento. Entretanto, para o recorte deste artigo, colocamo-nos diante o desafio de apreender até que ponto a casa torna-se instituinte, no sentido que Castoriadis dá ao termo, de novas significações sociais para a questão das fronteiras culturais e do fomento a novas formas de se pensar o nacionalismo para além da heteronomia4. A casa, como um espaço do encontro íntimo e dialógico pode vir a potencializar as interrogações, incertezas e espantos, contribuindo 3 Um dos pontos levantados pelo setor responsável por pensar sobre o futuro da rede e as mudanças necessárias neste novo cenário que se obteve com a expansão de integrantes e a mudança para uma organização comercial. Disponível em: <http://blog.couchsurfing.com/>. Acesso em: 13 Jul. 2013. 4 Fato de pensar, segundo Castoriadis, e de agir, como a instituição e o meio social impõem (abertamente ou não). ao desprendimento (ou desligamento) daquilo que foi naturalizado aos indivíduos, em termos de identidades culturais, não apenas nacionais. O nacionalismo é uma declaração de pertencer a um lugar, a um povo, a uma herança cultural. Ele afirma uma pátria criada por uma comunidade de língua, cultura e costumes (...) todos os nacionalismos têm seus pais fundadores, seus textos básicos, quase religiosos, uma retórica do pertencer, marcos históricos e geográficos, inimigos e heróis oficiais”. (SAID, 2003, p.49). Entre o interrogar-se, o desprender-se e a ressiginificação daquilo que confere o sentimento coletivo do pertencimento, percorremos então, adiante, algumas reflexões acerca desta íntima relação entre a casa enquanto espaço matricial da hospitalidade; e a relação que há (a partir das reconfigurações no lar promovidas pelas hospedagens baseadas na lógica da reciprocidade, por sujeitos de distintas nacionalidades) entre casas, fronteiras político-culturais e a concepção de identidades transnacionais. Entre, seja bem-vindo! Por que pensar a transnacionalidade a partir do espaço íntimo da casa? Percebemos, ao longo do período em que esta pesquisadora se debruçou sobre a relação de acolhimento entre viajantes de redes virtuais mundiais, que a subjetividade e identidade ali concretizada, especialmente no confronto e na dialogia com o outro que se recebe, podem sugerir reflexões extremamente caras ao campo dos estudos que aqui coadunamos. A casa que se abre ao outro, que tenciona, acolhe, dialoga com o outro é uma casa que questiona por si o modus operandi do distanciamento e da intolerância social, contribuindo para uma sociedade que contém os germes da autonomia. Ao abrir suas casas (por si, um questionamento da sociedade, um enfrentamento, um projeto transformador, cravado de incerteza), a autonomia humana se potencializa, visto que os sujeitos, ao mesmo tempo, a si mesmos, por vezes também são levados a questionar suas próprias normas (CASTORIADIS, 2006). Para além da representação instituída da nação, a casa alimenta o próprio sentido de identidade, pois, autônoma, torna-se saída revolucionária e vivaz do sentido de transnacionalidade ou transculturalidade. Esta última, tão cara a Todorov, prevê a aquisição de um novo código sem que o antigo tenha se perdido, a partir de uma atitude crítica, política. Para o autor, a transculturação serve ao desenraizamento, em todos os sentidos. O homem carrega a sociedade e, desenraizado, pode ser nativo olhando o estrangeiro e estrangeiro olhando o nativo, percebe o maniqueísmo do absoluto e os perigos do relativismo. A experiência do desenraizar-se possibilita perceber-se como parte do outro e a parte do outro em si. Aprende a não mais confundir o real com o ideal, nem a cultura com a natureza: não é porque os indivíduos se conduzem de forma diferente que deixam de ser humanos. Às vezes, ele fecha-se em um ressentimento, nascido do desprezo ou da hostilidade dos anfitriões. Mas, se consegue superá-lo, descobre a curiosidade e aprende a tolerância. (TODOROV, 1999, p. 27). Receber um estranho em casa perfaz medos, ansiedades, curiosidades, préconceitos, inquietações morais, um obrigar-se à conversa e, quem sabe, ao diálogo, ao vínculo, à amizade. A abertura do livro Estrangeiros para nós mesmos, de autoria da Julia Kristeva, é uma boa provocação e interessante operador cognitivo para pensarmos o impacto sobre a arquitetura e a ideologia de morada através do compartir: Estrangeiro: raiva estrangulada no fundo de minha garganta, anjo negro turvando a transparência, traço opaco, insondável. Símbolo do ódio e do outro, o estrangeiro não é nem a vítima romântica de nossa preguiça habitual, nem o intruso responsável por todos os males da cidade. Nem a revelação a caminho, nem o adversário imediato a ser eliminado para pacificar o grupo. Estranhamente o estrangeiro habita em nós: ele é a face oculta de nossa identidade, o espaço que arruína nossa morada, o tempo em que se afundam o entendimento e a simpatia. Por reconhecê-lo em nós, poupamo-nos de ter que detestá-lo em si mesmo. Sintoma que torna o “nós” precisamente problemático, talvez impossível, o estrangeiro começa quando surge a consciência de minha diferença e termina quando nos reconhecemos todos estrangeiros, rebeldes aos vínculos e às comunidades. (KRISTEVA, 1994, p. 09, grifos nossos). O próprio contorno da casa, seus ambientes, vão se redesenhando a partir dos encontros e viagens travadas, à medida que os hóspedes chegam e vão, e em que os antes anfitriões também se tornam hóspedes em outros lares. Tais reconfigurações, ora antes imaginadas e noutras não, que podem se traduzir em ressignificações do próprio espaço íntimo, representam as construções e transformações de visão de mundo que se estabeleceram em suas vidas a partir do instante da abertura de portas. A casa se alimenta de seus objetos de memória, que se constroem a partir das experiências de vida travadas pelos seus. Fonte de pertencimento, a casa se apresenta tanto quanto tempo (de memória) quanto espaço (de acolhimento, aprendizado, invenção, recomeços, permanências, de identidades em movimento). A casa fortemente tem a potência da construção de vínculos por quem por ela passa e, desse modo, se traduz em “metáfora para a reflexão e compreensão das questões relativas ao pertencimento”. Ao longo do tempo, abraça a história de cada sujeito (NOGUEIRA, 2007, p. 82-83)5. Ou seja, sua apreensão passa necessariamente pela compreensão de múltiplas histórias, de uma constelação de narrativas inscritas em seus objetos, na disposição de suas marcas, nas inscrições de suas paredes. 5 NOGUEIRA, Maria Aparecida Lopes. A casa e os devaneios do pertencimento. In: LEITÃO; AMORIM. (orgs). A casa nossa de cada dia. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2007. A casa é a morada. A morada abraça a história de cada um com uma ternura quieta e desassombrada. Ela é como um cais, oceânico e amoroso, que guarda os cheiros das travessias dos corações. A morada de cada homem esconde o que se desfaria no mundo de fora, silencia os ruídos incômodos do dia, desfigura os fantasmas dos pesadelos da noite. (REZENDE, 2007, p. 115)6. A essência da rede é que pessoas de todo o mundo possam compartilhar seus lares para que a experiência da viagem possa se dar a partir de uma maior imersão no cotidiano e na cultura do local que se visita. Se a casa é a morada que abraça a história de cada um, o ter a permissão de entrar (permissão que se dá para cada cômodo ou área da morada) faz tocar esconderijos, memórias propositalmente resguardadas no mundo de dentro. Assim, quem terá a permissão do entrar? Pensemos sobre o “entrar”, sobre o “receber e ser recebido”. Lúcia Leitão, em seu texto Entra na tua casa: anotações sobre arquitetura, espaço e subjetividade7, traz à luz das pesquisas sobre arquitetura e subjetividade, algumas apreensões do sentido do entrar. Primeiramente, remete à Arca de Noé e sua ideia de espaço da salvação. ... uma vez concluída a edificação que deveria salvar a ele e a sua família, um dilúvio exterminaria a todos os que se mantivessem do lado de fora, a todos aqueles que não tivessem entrado na arca, o espaço da salvação. (LEITÃO, 2007, p. 51 apud LEITÃO; AMORIM, 2007). 6 REZENDE, Antonio Paulo. Acasanossadecadadia Metáforas e histórias da pós-modernidade. In: LEITÃO; AMORIM. (orgs). A casa nossa de cada dia. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2007. 7 LEITÃO, Lúcia. Entra na tua casa: anotações sobre arquitetura, espaço e subjetividade. In: LEITÃO, Lúcia; AMORIM; Luiz. (orgs). A casa nossa de cada dia. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2007. A permissão para o entrar constituía a própria salvação, garantiria a permanência da vida. Poder entrar representava estar seguro, e fazer parte de uma esperança coletiva de continuidade, de renovação do mundo que se conhecia. A autora reflete: o desejo de ser reconhecido, de sentir-se incluído é próprio dos anseios humanos, assim como a distinção. Ao entrar, o indivíduo garante um espaço de distinção perante os demais, mas também, pela obrigatoriedade moral da retribuição, se posiciona hierarquicamente como devedor frente a anfitrião. Para o grupo pesquisado, as referências, deixadas por outros anfitriões e hóspedes no perfil do membro, são fundamentais no processo de distinção entre os demais do grupo e na capacidade de se receber respostas positivas para pedidos de hospedagem. A seguir, uma imagem recortada do perfil desta autora na rede virtual. Atente-se para a segunda imagem que representa parte deste sistema recíproco de referências. Perfil da autora no Couchsurfing, 2013. Por fim, em mais uma apreensão quanto às marcas bíblicas no imaginário humano, Lúcia Leitão destaca o entrar “como condição para o conhecimento” e remete a expulsão de Adão e Eva à aflição própria de “quem é expulso de um lugar, de quem é condenado a não poder entrar” (Idem, 2007, p.54, grifos da autora). De fato, há relatos de banimentos do grupo por discordâncias entre membros e políticas de atuação nos fóruns, assim como um ou dois casos, em especial, de integrantes extremamente ativos que reportam que embates com pessoas de hierarquia gestora do site foram motivadores de suas exclusões. A questão de ter seus perfis deletados causou desconforto para muitos, mas até hoje, via outros canais de comunicação (pois perderamm todo o histórico de recados, contatos, referências, postagens de amigos etc), permanecem em contato com outros membros, participando, inclusive, de eventos locais promovidos por embaixadores e/ou integrantes da rede. Antes da casa há o entrar na rede, estabelecer contatos, articular referências, participar de encontros promovidos por integrantes locais, o ser recebido nestes ambientes virtuais e nos ambientes da práxis urbana... Antes da casa de outrem, pode-se também oferecer sua entrada, mas nada obrigatório. Não há ordem estabelecida para o ciclo, porém, para que se ‘toque esconderijos, memórias propositalmente resguardadas no mundo de dentro’, a permissão apenas se constituirá a partir das imbricações identitárias, pelo conforto e segurança, pelo desfazer de fronteiras. Casa, fronteira transnacional A fronteira situada sobre quem entra, quem não pode entrar e quem sai é definida pelo anfitrião. Ao mesmo tempo, como insere uma perspectiva de alguém que está dentro e alguém que está fora, demarca em si uma intrusão, comportando assim uma face de violência, ruptura, transgressão e de hostilidade que Jacques Derrida em seu texto De l’hospitalité (1997) nomeia como inospitalidade. Camargo, no prefácio da obra organizada pelo Alain Montadon (2011, p.32), ressalta: “A soleira marca uma fronteira, uma passagem, e sua transposição implica tacitamente, para o convidado, a aceitação das regras do outro”. Em seguida completa: “O respeito que implica deferência e consideração mantém o outro à distância para preservá-lo em sua identidade, sua originalidade, sua singularidade, sua especificidade” (Idem, 2011, p.34). Ora, se a ideia do acolhimento perpassar apenas a integração às regras do anfitrião (ou inversamente também), a violência da metamorfose se constituirá e irá ferir expressamente a possibilidade do vínculo instituinte, tão caro à nossa análise da casa como um locus de transculturação, da emergência da transnacionalidade. Nesta marcação e reconfiguração de fronteiras íntimas da casa, os limites imaginários estabelecidos são fruto de uma relação direta com o mundo. O espaço interno de onde se habita guarda uma verdadeira metáfora do ser, suas sombras, seus cantos, seus objetos de memória... As fronteiras demarcadas pelos ambientes, pelas áreas da casa, são fronteiras identitárias, dimensões afetivas que simbolicamente representam esconderijos de si, dos elementos que o identificam e podem demarcá-lo em uma espécie instituída de representante cultural/social/nacional. A hospitalidade vem sendo colocada no cerne de um debate acadêmico com repercussões mercadológicas e públicas fundamentais. Correntemente percebida como simples adjetivo, qualidade do ser ou do espaço em mostrarse hospitaleiro, a hospitalidade tem sua substancialidade enquanto fato social que se materializa no encontro – ritual - entre alguém que recebe e alguém que é recebido a partir de noções éticas e políticas implícitas. Todo ritual inclui, mas também exclui. Designa o pertencimento de alguns, mas também a condição de estranho de outros. Os incluídos são os iguais de alguma forma. (...) Mas mesmo os iguais não são inteiramente iguais. Daí que, mesmo aquele que é aceito como hóspede em alguma medida é um estranho, e, inversamente, aquele que nos recebe é, também em certa medida, um estranho; esse encontro pode dar origem a um ritual donde deriva a amizade, o vínculo humano, ou a agressão, a hostilidade. (CAMARGO, 2011, p. 15)8 Assim, a decisão do receber um estranho em casa, cujo contato até então se estabeleceu através da rede virtual e por diálogos muitas vezes esporádicos, não deixa de ser parte de um processo inquietante entre o oferecer (a abertura das portas para um integrante com perfil de alguma forma ora semelhante ora intensamente distinto), o receber, e o que futuramente será retribuído, a quem acolheu, mas necessariamente, de forma que o ciclo se retroalimente, também a outrem. O fenômeno cíclico do dar-receber-retribuir, produtor de alianças e da própria constituição da vida social, apreendido a partir da perspectiva maussiana da dádiva, vem aqui acrescido do tempo da guarda. Este elemento, bastante presente a partir das relações travadas no espaço matricial da casa, é esfera acrescida por Maurice Godelier às estruturas apresentadas por Marcel Mauss em seu Ensaio sobre o dom. Foto retirada na casa de um dos integrantes mais ativos de Porto, Portugal, e um dos interlocutores desta pesquisa. 8 Citação retirada da apresentação da obra: MONTADON, Alain. O livro da hospitalidade: acolhida do estrangeiro na história e nas culturas. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2011. Os objetos que ficam e que se ressignificam a cada compartilhamento, são aqueles elementos que, para Godelier, no ciclo da reciprocidade que se constrói, não devem ser retribuídos nem repassados, mas devem, fundamentalmente, serem guardados. Sua potência memorial se fortalecerá cada vez que o narrar de sua origem vir à tona. Nestes processos de troca (de ideias, de conhecimento, de objetos de memória, de símbolos de pertencimento), os vínculos afetivos constituídos são imbricações fronteiriças. Estas apontam, no espaço matricial da casa, identidades legitimadoras (introduzidas por instituições dominantes, vinculadas a um projeto de Estado-Nação); identidades de resistência (verdadeiras trincheiras construídas como contraposição às condições de desvalorização e esmagamento social; e, por fim, identidades de projeto (capacidade de construção de novas identidades, capazes de redefinir suas posições e, assim, buscar a transformação de todas as estruturas sociais). (CASTELLS, 2008, p.34). Modos de representar pertencimento a unidades socioculturais e políticoeconômicas estão sofrendo impactos de novas forças transnacionais e experimentam um período de transição onde instituições e modelos anteriores revelam-se insuficientes para dar sentido ao mundo. Cada parede um canto, cada canto uma gaveta, cada gaveta uma fronteira. É por entre as frestas da porta, dos papeis revirados, das estantes revisitadas... A abertura da casa ao outro é, por si, um enfrentamento, um projeto transformador de nossa sociedade, cravado de incerteza, que persegue ao mesmo tempo em que desconstrói a contradição de elementos que recorrentemente nos rendemos. Referências CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. A era da informação: economia, sociedade e cultura. V. 2. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2008. CASTORIADIS, C. As Significações Imaginárias. In: Uma Sociedade à Deriva: entrevistas e debates, 1974- 1997. Aparecida, SP: Idéias & Letras, 2006. GODELIER, Maurice. O enigma do dom. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. Forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. in: Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003. MONTADON, Alain. O livro da hospitalidade: acolhida do estrangeiro na história e nas culturas. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2011. RIBEIRO, Gustavo Lins. Internet e a comunidade transnacional imaginadavirtual. Série Antropologia 198. Brasília, 1996. TODOROV, Tzvetan. O homem desenraizado. Rio de Janeiro: Record, 1999. SAID, Edward W. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.