Doce Mãe, por Clara Pinto Correia
A mãe é frondosa, antiga, perene, sabemos que havemos de caber sempre no seu colo.
Quando estamos longe é bom saber que ela existe e nunca vai deixar de existir, nunca vai sair do
sitio em que a deixámos, quando estamos longe é bom voltar para casa onde de novo nos
acolheremos à copa da mãe. Talvez não seja eterna, mas é assim que a vemos. Talvez também ela
sofra, talvez por vezes chore, mas nunca o fará diante de nós. A mãe tranquiliza-nos, recebe-nos,
assinala-nos o conforto dos territórios conhecidos, a mãe cumula-nos e em troca não pede nada.
A mãe, como toda a gente sabe, morre de pé à beira do caminho. Se as árvores sempre exerceram
um fascínio místico sobre os povos, o carvalho é a árvore das árvores, mãe rugosa, mãe
espectacular, mãe de muitas caras interposta entre nós e o sol. Alentejo não tem sombra senão a
que vem do céu, assenta-te aqui amor à sombra do meu chapéu. Mãe redonda posta em solidão no
meio da planície.
Acredite se quiser: todas as culturas que com eles conviveram puseram os carvalhos numa
posição muito especial. São árvores dominantes, que imprimem às matas o seu carácter onde quer
que apareçam. São árvores longevas, de madeira densa e resistente, levantadas contra a canícula e
contra as tempestades como todos os seres vivos gostariam de se levantar. Imponentes, tomaram
a seu cargo o hemisfério Norte por inteiro, estendendo-se da América à China numa sequência
perfeita, imperturbável. Em cada latitude, cada religião acolheu a sua espécie, entregue às delícias
da variedade de escolha na gestão de um património genético riquíssimo, que inventou as formas
que vão do carrasco ao sobreiro, e a este último vestiu de cortiça numa resposta cheia de sageza à
agressão dos fungos. Aqui pousaram azinheiras, ali cresceram os robles, nas casinhas humildes
lançaram raízes as carvalhosas. Onde quer que um membro da família se estabeleça os
agricultores sabem que podem contar com um solo generoso, e os animais que nunca andam
distraídos sabem que podem encontrar um nicho ecológico feito por medida. Onde estiver a mãe,
em breve hão-de pulular os filhos.
E a mãe, como o pelicano, rasga o seu próprio peito para os alimentar. O primeiro pão existiu
muito antes de existirem as searas e era de bolotas moídas que se fazia a farinha. Durante a I
Guerra Mundial, quando a fome se abateu sobre o Alentejo, de novo foram os frutos do carvalho
que deram a massa para crescer nos fornos, para confortar os estômagos quando todas as outras
bênçãos da terra já tinham desertado. A mãe, porque é mãe, nunca deserta.
Atenta, velha e sábia, a mãe é também o relógio. Marca pontualmente, com todo o rigor da
sua seiva ancestral, o rolar interminável das estações. Vem a Primavera e rebentam as folhas, que
são muitas e verdes no Verão, que se fazem castanhas no Outono e por fim se amontoam,
ressequidas, aos seus pés. Vem o Inverno e a mãe, simbólica, está nua debaixo da chuva. A
grande sensibilidade dos carvalhos às flutuações meterológicas torna-os excelentes descritores do
clima: o negral português marca a feição continental do país, o espectro largo da azinheira revela
a continentalidade mediterrânica, o sobreiro caracteriza em perfeição a emergência do Atlântico,
e assim por diante até à linha do equador. E aqui, surpreendentemente, a mãe detém-se e recusase a avançar mais.
Não há carvalhos no hemisfério Sul. Na Florida crescem carvalhos até dentro dos pântanos,
mas na exuberância da floresta tropical a mãe não marca presença. Antiquíssima aos nossos olhos
mas recém-nascida para o tempo transcendente da geologia, a mãe distribui-se segundo a história
atribulada da flutuação dos continentes. Deverá ter emergido um dia ao Norte do antigo
Gondwana, se depois se partiu em partes e vogou sobre os mares. A sua zona de origem originou
também a Europa e, como a Europa foi no regaço do mediterrâneo, um adolescente para a história
da terra, que teve o berço da sua expansão. A mãe cresceu depressa, rebentou, pulou,
experimentou centenas de vestidos e milhares de chapéus, transmudou-se, sublimou-se, mas com
a viagem dela viajava também o solo. Debaixo dos seus pés os continentes ajustaram-se e
definiram outras feições, os que já a tinham agarram-se a ela e os outros radicais e, cruéis como
todos os neófitos, fecharam-lhe a porta. E é por isso que, muitos séculos depois, os carvalhos só
vivem na nossa metade do mundo. Os outros, quando muito, têm faias. E já vão com sorte. Já
pensaram? Aquilo lá em baixo é um enorme orfanato, cheio de enteados e de madrastas. Pobre
gente.
Publicado em “O Jornal Ilustrado”
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