Questão Agrária - A Festa da Vitória
© AATR - 2002
A FESTA DA VITÓRIA
Isadora Browne Ribeiro*
Hoje tudo é festa.
Uma luta de mais de 20 anos, inserida no confronto com grileiros e pseudoproprietários que
tem caracterizado o processo de ocupação do oeste baiano, que custou vidas tão preciosas como a de
Eugênio Lira, recebeu contribuições fundamentais como a de José Luiz Gomes. Uma luta que, embora
não tenha sido suficiente para garantir outras áreas - que já se perderam – e para resolver outras
definições – ainda possíveis - levou à demarcação do Quilombo do Rio das Rãs. Comemora-se, pois, a
conquista do direito de permanecer em definitivo no território que, reconhecem agora as autoridades,
vem sendo ocupado por gerações pelos descendentes dos primeiros refugiados.
Como o artigo 68 das Disposições Transitórias da Constituição Federal, que reconhece a posse
dos quilombolas sobre as terras que ocupam, não foi até agora regulamentado, a solução possível foi a
desapropriação e assentamento através do INCRA. Solução olhada com desconfiança por alguns setores,
como a Fundação Palmares, inclusive porque demarcar áreas de Quilombos implica na preservação de
importantes sítios históricos e matrizes culturais.
No entanto, só é preciso estar ali para compreender que os quilombolas possuem todas as
condições para garantir sua identidade quando ameaçada, ao tempo em que se apropriam dos benefícios da modernidade. Não por acaso, na festa da vitória também aconteceu corrida de argolinha, cavalos
e cavaleiros enfeitados com fitas de todas as cores – de papel crepon. A banda de pífanos tocou, mas
aconteceu ainda o som mecânico. A comida simples é preparada no fogão a gás em casas ainda de taipa
mas já com sua antena instalada. As paredes das salas da casa de Seu Andrelino retratam, na pintura
ingênua de seu filho, viagens a Salvador, a Minas e a paisagens distantes, sequer nomeadas.
Nós – Felizes os convidados para uma celebração desta magnitude e singeleza. O fomos. Nem
todos puderam chegar até lá, por diversos motivos, nesses dias 14, 15 e 16 de maio deste ano de 1999.
Quem não foi, mandou mensagem. Nós somos uma parcela das pessoas e representantes de entidades,
como a AATR, a CPT, parlamentares, religiosos e entidades do movimento negro, que, de alguma
forma, contribuímos para este resultado. Sem vaidade mas com o justo orgulho de havermos ajudado a
construir o caminho pelo qual os negros quilombolas, que conquistaram sua liberdade na luta, muito
antes de a Princesa Isabel lançar seus demais irmãos nas ruas da amargura, estão caminhando altivos e
serenos, firmes porque compreendem a justeza de suas reivindicações.
Chegando lá - Já que a estrada de Bom Jesus da Lapa para Rio das Rãs está abandonada pelo
governo estadual por haver sido obra do governo Nilo Coelho, é preciso desviar por dentro da Fazenda
Batalha, apesar das constantes hostilidades. A Fazenda Batalha, desde o século XVII, faz fronteira com
o território de Rio das Rãs. Grande e rica, com muito gado e plantação, tinha também muitos escravos.
Pertencia à família de Deocleciano Teixeira, avô de Anísio Teixeira, um ramo dos Guedes de Brito. Os
Teixeira acabaram por incorporar, arbitrariamente, à fazenda, a área de Rio das Rãs, além da de outros
quilombos, como Batalhinha, Pau d’Árco e Parateca. Em 1971, a fazenda foi vendida a Carlos Bonfim,
com quem os quilombolas passaram a se defrontar, especialmente após a promulgação da Constituição
chamada Cidadã.
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Questão Agrária - A Festa da Vitória
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Rio das Rãs – Poeira amarela, suja, a vegetação pobre do cerrado. Ainda muita casa de sopapo, cercados irregulares, cinzentos, pequenos carros de boi, carrocinhas, cavalos. Criança, criança por
todo o lado. Sob o azul limpo com sol inclemente, sob o frio cortante das noites maravilhosas, quando
ainda se vê estrelas, tantas. Dia de festa, os vendedores montam suas barraquinhas: roupas, biscoitos,
doces, balas e bebidas, tudo pouco, pobre mas profundamente alegre. E solidário.
A partir do ano passado, o INCRA financia a substituição das casas de taipa por outras de
alvenaria, a energia elétrica começa a chegar. Mas ainda há muito a ser feito. A persistência deste povo
e dos que os vêem apoiando será de grande valia. Também muito presente nos pronunciamentos que
pontuaram a festa a necessidade de apoiar a luta de outros quilombos, seja o Mangal, cuja titulação já
foi assegurada, seja Parateca, que vem enfrentando enorme resistência.
A área é bem grande, compreende várias localidades, como Vila Martins, onde se festeja a
Jurema; Exu e Rio das Rãs propriamente; Corta Pé, Pau Perda e Capão do Cedro, em processo de
reestruturação; Brasileira, a localidade mais recente, onde fomos calorosamente recebidos, ficamos
hospedados e vivemos a festa.
A Terra é Nossa Mãe – Há mais uma localidade, a mais distante, Retiro. Ali mora, em uma casa
que já foi sede de fazenda, Francisco Tomé, a quem já havíamos conhecido durante as festividades,
sentado ao lado de Seu Andrelino, emocionados, lágrimas escorrendo dos olhos, os dois mais antigos
remanescentes vivos da longa luta. Seu Andrelino é o guia espiritual da comunidade. Ao lado de sua
casa de morada, outra construção cujo salão sagrado é indescritível para quem não teve o privilégio de
contemplar aquela aparente confusão de imagens, fotos, santinhos e objetos das mais diversas origens
e características que sintetizam a cultura brasileira em suas múltiplas influências. Chico Tomé completou 106 anos de existência em abril passado. Paramos o nosso ônibus sob um tamarindeiro. É por volta
de meio dia. Enquanto estamos descendo, lá vem ele surgindo na varanda, apoiado em seu longo cajado
mas firme e erecto. Ele nos recebe e, com a simplicidade de quem merece, aceita as homenagens, dá
bênção, senta-se no banco, manda o pessoal da casa arranjar mais cadeiras. Recusamos e nos acomodamos em sua frente, no chão e na mureta da varanda. Ouvimos. Histórias de resistência, de como Carlos
Bonfim o ameaçou e, depois, compreendendo ser ele, bem como Seu Andrelino e mais alguns poucos
os invencíveis, passou a respeitá-los. De quando avisou que só sairia de sua casa para uma sepultura, ou
seja, quem viesse tirá-lo de casa viesse com a enxada na mão para cavar a cova. De como ele recusouse a entregar a terra, porque, como nos disse, a terra é nossa mãe; vender a terra é vender a mãe; a terra
é de todos para o uso e a sobrevivência de todos. Entre uma história séria e outra, as coisas de que ele
se lembra rindo com vontade. Ele nos diz que sua missão está cumprida, mas não se mostra cansado ou
pronto para morrer.
Qualquer outra parada seria supérflua. Embora tenhamos descido até o Rio das Rãs que passa
no fundo de sua casa. Para molhar os pés e a cabeça.
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Fonte: Todas as informações eu as colhi, de tudo que lá ouvi, sem nada perguntar.
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Professora, já passou pela diretoria de entidades como o SINPRO-BA e o GERMEN, hoje é colaboradora da
AATR-BA.
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