rN SET 198? ão sabemos por enquanto que decisão será tomada com respeito ao sistema eleitoral a ser implantado no pais. Como o grau de indefinição do processo constituinte ainda continua muito alto, diversas propostas têm chance de vingar, inclusive a dos que pretendem manter o sistema eleitoral vigente. Se isso acontecer, o Congresso constituinte estará confirmando o cerceamento dos direitos políticos que hoje nos impede de agir como cidadãos plenos. Eleitos, como foram, pelas regras que ai estão, os constituintes sabem perfeitamente bem que o nosso sistema eleitoral é imprestável; sabem que se trata de um mecanismo essencialmente antidemocrático que, por essa razão, há muito deveria ter sido abolido. As esperanças se desvanecem, porém, quando se observa que o sistema existente vem sendo defendido, dentro e fora do Congresso constituinte, por partidos, grupos e parlamentares que se identificam com a causa democrática. Como se explica isso? Como é possível que democratas defendam uma instituição visivelmente antidemocrática? A resposta é óbvia: os integrantes da classe política precisam cuidar do seu próprio futuro e não hesitam em assumir posições contraditórias com sua pregação ideológica, sempre que prevalece a necessidade de sobreviver. Reparem bem nos argumentos apresentados pelos defensores do sistema atual. Cito dois exemplos, pinçados ao acaso na imprensa diária. Na opinião de um parlamentar filiado a um partido ideológico, se o sistema atual for abolido, "os partidos ideológicos sofrerão um duro golpe", porque o voto obtido pelos candidatos desses partidos é muito difuso. Para um outro parlamentar, domiciliado num Estado populoso, o que precisamos fazer não é abolir, mas apenas "melhorar" o sistema hoje adotado, tornando-o mais representativo mediante "o aumento de vagas no Congresso para os Estados mais populosos". Os argumentos apresentados ficam por aí: limitam-se a defender os interesses dos pequenos partidos, de A arma do voto cwc CARLOS ESTE VAM MARTINS correntes minoritárias, de grupos votos inferior ou superior ao montanpolíticos embrionários, de candidatu- te de que necessita para se eleger. ras mais ou menos precárias. Em Ignorar a lei da causalidade! Eis aí outras palavras, são argumentos o traço forte que deforma de maneira egocêntricos. Não se diz que o irreparável o feitio do nosso sistema sistema eleitoral vigente deve conti- eleitoral: o efeito do voto (a eleição nuar existindo porque é um meca- do candidato "x") pode hão ter nada nismo de realização da democracia. a ver com a causa do voto (a intenção Ao contrário, defende-se. o sistema de eleger o candidato "y"). O eleitor em nome de interesses particulares: sabe em quem votou, mas jamais o que vemos são certos segmentos da ficará sabendo quem foi eleito com classe politica advogando em causa seu voto. própria e colocando as conveniências Que o princípio de causalidade seja de seus partidos e de suas candidaturas acima dos direitos de nós outros, observado! Isso é o mínimo que se pode exigir. Eleições democráticas os cidadãos-eleitores. supõem que a legislação seja capaz Ao escrever "Sociedade Aberta e de garantir a relação de causa e seus Inimigos", Karl Popper preten- efeito entre os votos dados e os deu apresentar uma teoria da demo- mandatos obtidos. Caso contrário cracia baseada numa ideia muito como poderiam os eleitores, incruensimples, segundo a qual existem tamente, se livrarem dos governos apenas dois tipos de Estado: aqueles que não querem ter? em que o povo pode se livrar do Por ai se vê que o critério da governo sem derramamento de sangue, por meio de uma votação, e causalidade, embora banal, faz parte aqueles em que isso não é possível. integrante do teste sugerido por Para Popper, aí estaria a diferença Popper. Infelizmente, porém, ele tem especifica que distingue a democra- sido ignorado por algumas propostas cia dos demais regimes políticos. No de reforma eleitoral que se enconentanto, diz ele, "isso foi compreen- tram em discussão. Por exemplo, os dido apenas raramente na sua totali- que defendem a introdução do chamado sistema misto (semimajoritádade". rio, semiproporcional) nem sempre De fato, o critério estabelecido por destacam o fato de que o principio de Popper é mais indigesto do que causalidade só será observado se a parece. Não basta haver eleições: é nova legislação atender a algumas preciso que, por meio das eleições, os condições básicas, como as seguincidadãos sejam capazes de se livrar tes: dos governos que não querem ter. No 1. Se o que temos em vista é a caso do Brasil, nunca tivemos um escolha de duas representações diferegime capaz de passar por esse rentes, eleitas por meio de dois teste. Tivemos e temos eleições, mas métodos distintos, é necessário que o não tivemos nem temos democracia. eleitor tenha o direito de votar duas É que o nosso sistema eleitoral, vezes: uma em um dos candidatos do assim como nossa lei orgânica dos seu distrito e outra no partido de sua partidos, não permite que o cidadão preferência. Caso contrário, ele votabrasileiro utilize a arma do voto com ria uma única vez, enquanto o seu eficácia. Ser eleitor no Brasil é ser voto valeria por dois, ficando um um cidadão duplamente desarmado, para o candidato do distrito e outro incapaz de se livrar da elite dirigen- para o partido desse candidato. Tal te, com ou sem derramamento de método evidentemente não respeita sangue. as relações de causalidade, uma vez A arma do voto atira, mas não tem que os votos recebidos pelos partidos pontaria. O eleitor vota num deter- seriam apenas o efeito impróprio de minado candidato, mas seu voto pode uma causa cujo efeito próprio seriam servir para eleger outro candidato, os votos recebidos pelos candidatos do qual o eleitor nunca ouviu falar. distritais. A arma de voto continuaria Para tanto, basta que o candidato em atirando a esmo, sem pontaria. quem votou tenha tido um número de 2. O instituto da fidelidade partidá- f~3 ria precisa ser retomado e estabelet eido com mais profundidade e firme1--' za, especialmente tendo em vista queb os mandatos obtidos pelo voto de^ legenda pertencem, por definição, ài.' organizações partidárias e não *•& qualquer um de seus membros indVj viduais. . „ 3. Quanto à questão da proporcio^ nalidade existem duas alternativas-' A primeira, mais federalista, exige' que se estabeleça uma relação 3$; perfeita proporcionalidade entre o„ eleitorado estadual e o número de"' cadeiras reservado a cada Estado. Aíi segunda, menos federalista, reclama^ a desestadualização das eleições prq^ porcionais sob o argumento de qué?^ com a criação dos distritos, não háí nenhuma justificativa para as divisões territoriais da população no que diz respeito aos mandatos disputados^ pelo voto proporcional. Nesse casov os partidos apresentariam listas de^ caráter nacional e competiriam entre^) si diretamente no plano nacional.^ mantendo-se estrita proporcionalida-" de entre o número de votos recebidos^ e o número de cadeiras controladas^ pelos partidos na Câmara dos Depih 1' tados. O lugar próprio para a reprè* sentação dos Estados, enquanto i membros da Federação, seria exclttn sivamente o Senado. ' 4. É imprescindível, também, reformular o método oficial de apurado Ção dos votos, introduzindo-se unV sistema a prova de fraudes: as juntas^ eleitorais têm que ser obrigadas &" contar votos como os bancos contaria dinheiro: sem erros a favor ou contraj quem quer que seja. 5. Finalmente, a legislação que]3 rege a vida das organizações parti*' darias precisa ser atualizada, visanji do a instituição de mecanismo^ efetivos de democracia interna. Níf medida em que o novo sistema eleitoral aumenta o poder dos partidos, é preciso impedir a ditadura dᣠcúpulas partidárias mediante a anj,-. pliação e o fortalecimento da partici^' pação dos militantes de base. CARLOS ESTIVAM MARTINS. 53, dsnllito pollllco. prolessor do Departamento de CKnclat Soclaii da ' e diretor da Fundação de Desenvolvimento Adml Irotivo (Futidap).