O ordenamento urbano da cidade de Nazareth e o Código de Posturas de 1893 no contexto da modernidade: pontos e contrapontos Lucas Santos Aguiar 1 PPGHIS/UNEB [email protected] RESUMO Este trabalho reflete algumas leituras, estudos e o resultado processo de pesquisa acerca da tentativa de regulamentação das vivências urbanas instituída pelo Código de Posturas de 1893, da cidade de Nazareth, Recôncavo Sul da Bahia. Buscamos assim, compreender como as normas disciplinares instituídas pelo poder público estavam inseridas no contexto da modernidade brasileira, bem como este instrumento leu e planejou a cidade. Discutimos ainda a incidência destas normas na vida dos sujeitos sociais locais, sobretudo a população recém saída do cativeiro, assim como o planejamento e novo cenário construído através do Código de Posturas municipal, especialmente no que diz respeito ao ordenamento urbano, uso e ocupação do espaço pelos diversos grupos sociais em Nazareth a partir do ano de 1893. Palavras-chave: Posturas, Modernidade, Costumes, Estética Urbana, Nazareth. 1 Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em História Regional e Local da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) DCH - Campus V, Santo Antonio de Jesus. O ordenamento urbano da cidade de Nazareth e o Código de Posturas de 1893 no contexto da modernidade: pontos e contrapontos Calçamentos, cais, repartições públicas estruturadas, serviço de telégrafo, iluminação pública foram alguns sinais da “modernidade” presentes nas primeiras décadas da segunda metade do século XIX na cidade de Nazareth. Primeira cidade do Recôncavo a possuir energia elétrica, abrigando já em 1917 a Cia Hidro Elétrica Fabril, cujo período marca o início da chegada de indústrias a exemplo de tecidos e cigarros advindas do processo de modernização, além de vários melhoramentos materiais, caracteriza a importância econômica, social e política da cidade de Nazareth destacada pelo seu intenso trânsito comercial. Importante centro comercial do Recôncavo, pólo regional de trocas e vendas de mercadorias, rota de abastecimento da capital, a cidade de Nazareth conhecida, sobretudo, pela produção e comércio da farinha destacou-se entre os séculos XVIII e XIX como uma das cidades economicamente ativas2 (SACRAMENTO, 2007). Não obstante este esforço para garantir estruturas urbanas condizentes com os valores progressistas, era comum perceber pelos becos e pelas ruas da cidade o uso de hábitos e costumes, bem como a presença de tradições herdadas das populações negras que faziam parte do cotidiano dos munícipes, a exemplo dos sambas e batuques, que logo se tornaram alvos das reformas impostas pelas posturas municipais. Destarte este contexto, foi levando em consideração as críticas médico-higiênicas em voga na época, que os instrumentos reguladores da vida citadina incorporaram tais valores e foram editados pelos municípios com o objetivo de contribuir com o processo de modernização das principais cidades brasileiras. Assim, o advento da modernidade no século XIX, que já pode ser reconhecida no Brasil desde este período,3 trouxe consigo uma série de preocupações no que diz respeito ao convívio social no mundo urbano. Preocupações de ordem higiênica e urbanística tomaram conta do imaginário social e político da época, sob a égide das doutrinações da chamada 2 Na época, destacaram-se outros pontos de abastecimento no Recôncavo como as cidades de Cachoeira, São Félix, Maragogipe, Santo Amaro e Valença, sendo esta última no Baixo Sul. 3 Rinaldo Leite assinala as primeiras evidencias de cunho modernizador do país através dos “investimentos na construção de ferrovias, no aparelhamento portuário, em rede telegráfica, com o aparecimento incipiente de indústrias e com a lenta urbanização de algumas cidades, que receberam melhorias em termos de transporte, iluminação, abastecimento de água, etc”. (LEITE, 1996, p.8) medicina social4 recém surgida na Europa e que ganhava espaço no Brasil associadas às necessidades de desenvolvimento e planejamento apresentadas pelas cidades. Através de um “processo civilizatório”, que pretendia tornar as cidades brasileiras fisicamente “civilizadas”, inspiradas no modelo francês, o projeto modernizador das elites republicanas pretendia atingir um padrão de civilização com base na adaptação do modelo implantado nas cidades francesas, na tentativa de padronizar, para melhor controlar, as ações e comportamentos dos sujeitos sociais. É, portanto na primeira década do século XX, entre 1902 e 1906 que, no Rio de Janeiro, o prefeito Francisco Pereira Passos, organizou um planejamento de reformulação da cidade semelhante ao que Hausmann havia feito em Paris na segunda metade do século XIX (CHALHOUB, 2001). Na Bahia, é, sobretudo na segunda década do século XX que os projetos de remodelação urbana, através das mudanças materiais, estéticas e de hábito compõem o projeto de modernização da cidade de Salvador. As intervenções nas estruturas urbanas e nos costumes populares marcaram a administração de J.J. Seabra na Bahia entre 1912 e 1916, de modo que contando com a contribuição dos intendentes municipais, a cidade de Salvador postulava à civilização como meio para o progresso (LEITE, 1996). Foi, portanto, a partir do compartilhamento de experiências que se processavam nas principais cidades brasileiras, sobretudo em Salvador, devido a aproximação geográfica e contato imediato em função da circulação de bens e serviços que a cidade de Nazareth acabou reivindicando propostas semelhantes. As iniciativas modernizantes na cidade de Nazareth se materializaram, sobretudo, através da criação de leis, atos e resoluções instituindo normas de controle social, onde o Código de Posturas reformulado e editado em 1893 foi o exemplo maior da preocupação da administração pública com o município. Neste caso, tais iniciativas seriam impostas pelas autoridades, que fariam uma campanha, em certa medida, repressora visando promover a modificação de hábitos, costumes, comportamentos, disposições urbanísticas e tributárias, buscando assegurar um controle físico e sociocultural do espaço urbano e dos seus habitantes. O instrumento do Código de Posturas tinha como objetivo a normatização dos comportamentos no espaço urbano para garantir a idéia do progresso e civilização tão reivindicada neste período (MATTOSO, 1992). Enquanto legislação, as posturas incidiam 4 Trata-se de um projeto político centrado nas ações físicas e comportamentais do homem, tendo como objeto a intervenção medica na sociedade, tendo sido caracterizada pela prevenção. Ver: MACHADO, Roberto; LOUREIRO, Ângela; LUZ, Rogério; MURICY, Kátia (1978). fundamentalmente na vida cotidiana da cidade, como um dispositivo regulador da estrutura social, “atingiram incisivamente as classes populares no que diz respeito às suas práticas, costumes e hábitos já incorporados à cultura e ao cotidiano urbano” (AGUIAR, 2012, p. 200). Dessa maneira buscamos, através deste estudo, compreender como estas normas disciplinares instituídas pelo poder público estavam inseridas no contexto da modernidade brasileira, bem como a recepção destes instrumentos pelos sujeitos sociais locais, sobretudo a população recém saída do cativeiro, especialmente em relação ao código de posturas municipal. Considerando que esta legislação de caráter normativo propunha tornar socialmente aceito e regulamentado o comportamento desejável, o objetivo é discutir em perspectiva histórica, no plano da experiência, a incidência das leis no campo das relações sociais locais e as formas pelas quais ela se incidia na vida dos sujeitos. O Código de Posturas e o planejamento da cidade Foi na sessão da intendência municipal de Nazareth do dia 24 de agosto de 1893, que a administração publica aprovou o novo código de Posturas do município, a entrar em vigor após três meses. Trata-se, talvez, do primeiro Código de Posturas do Recôncavo Republicano que legisla e complementa disposições ausentes no Código Penal de 1890, ou mesmo o reforça. Organizado em 9 capítulos e 165 artigos, o Código de Posturas de Nazareth se apropriou de elementos estratégicos na tentativa de transformar a cidade com a perspectiva de a civilizar, são eles: os hábitos e costumes urbanos, a higiene da cidade, a urbanização, manutenção da ordem e controle das práticas comerciais. Neste contexto de anseios civilizatórios, a questão da salubridade pública passou a ganhar um espaço de notável importância, na medida em que as cidades brasileiras apresentavam aspectos de incivilidade para as elites políticas e intelectuais, sobretudo no que diz respeito às condições de higiene, sendo esta entendida como um dos elementos definidores do grau de civilização de uma sociedade (CHALHOUB, 1996). Os grandes problemas de surtos epidêmicos, proliferação das residências coletivas e a dificuldade de atrair investidores internacionais em face dos problemas da higiene pública foram fatores determinantes para a intensiva preocupação do poder público e das elites com esta questão no país (LEITE, 1996). As propostas de controle dos modos de vida e “civilização dos costumes” das classes populares foram defendidas “segundo os pressupostos idealizados para a sociedade brasileira pela elite burguesa dominante” (LEITE, 1996, p.12). Deste modo, as legislações editadas pelo poder público, neste período, com o intuito de intervir nas estruturas urbanas estavam levando em consideração as críticas medicas higienisticas formuladas na época como ponto fundamental para o desenvolvimento dos ideais de progresso e civilidade defendidos pelas elites republicanas, como foi o caso de Nazareth. A medicalização da sociedade 5 foi a reivindicação de várias cidades que pretendiam se civilizar, onde a intervenção nas estruturas urbanas foi o eixo estruturante do processo civilizatório que se expressava sob os ditames do liberalismo econômico em voga. É neste contexto que através de instrumentos como os Códigos de Posturas “muitas das práticas populares e muitos dos usos que faziam da rua, para o lazer ou para o trabalho, passaram a sofrer censuras e a conhecer formas de controle” (LEITE, 1996, p. 111). Destarte, entendemos o choque entre estas censuras e as práticas populares que permaneciam como sinais da emergência da proposta civilizadora das elites urbanas republicanas no Recôncavo sul, onde se encontrava em voga um sistema político e sóciocultural incoerente com os novos postulados de progresso. Combater a incivilidade e remodelar a cidade Entendendo que a questão da higiene pública figurava como um elemento essencial para atingir o grau de civilização desejado, (CHALHOUB, 1996) o Código de Posturas tratou de regular aspectos diretamente ligados a esta questão, bem como outras atividades que se relacionassem com a higiene. No que diz respeito às habitações coletivas, notamos que é a partir da segunda metade do século XIX que as câmaras municipais estabelecem instrumentos legais para regular a sua existência e definir as formas de intervenção do poder público naqueles locais. Considerando que presença das habitações coletivas no espaço urbano representava um foco de irradiação de epidemias e colocava em perigo a saúde da sociedade, as autoridades passaram a empenhar esforços no sentido de controlá-las ou mesmo de eliminá-las. Deste modo, principalmente os 5 Trata-se da relativa organização do espaço urbano e das ações comportamentais a partir das formulações da medicina social. Ver: MACHADO, op. cit. cortiços e as estalagens, passaram a figurar nos atos normativos da municipalidade como espaços que colocavam em risco as condições higiênicas da cidade (CHALHOUB, 1996). No Código de Posturas de Nazareth, a preocupação das elites locais com as habitações coletivas determinou a obrigação de que os proprietários mantivessem tais locais de morada “sempre aceiadas e a dispozição das vizitas domiciliares das autoridades sanitárias, commissões municipaes e fiscaes do municipio”, conforme expressa o artigo 36. Outrossim, independentemente de ser habitação coletiva, as posturas obrigavam ainda que em tempos de epidemias os moradores mantivessem limpos os quintais, latrinas e dependências das suas moradias, fazendo a limpeza do exterior das propriedades seguindo as orientações do intendente municipal. Parafraseando Chalhoub, os cortiços representavam uma espécie de ameaça constante, um lugar inconveniente, mas não para as pessoas que ali residiam e sim, para as classes dominantes (CHALHOUB, 1996, p. 53). No que diz respeito à questão da saúde pública, o Código definiu a proibição do exercício das profissões relacionadas à saúde sem apresentação ao conselho municipal do titulo conferido pelas escolas médicas do país. Esta medida, já expressa no Código Penal de 1890, implicava mais proibições ao oficio de curandeiro ou à prática de meios curativos por pessoas não habilitadas legalmente, ou que prescrevessem medicamentos, ainda que não assinassem. 6 Esta proibição ratificava o que já estava previsto no artigo 158 do capítulo III, título III do Código Penal que dispunha sobre os crimes contra a saúde pública. A proibição expressa nesta norma revela o objetivo de extinguir costumes e tradições populares que não estavam em sintonia com o saber científico, bem como com os ideais de modernidade e civilidade propugnados pelas elites republicanas. A prática do curandeirismo foi representada nos atos do poder público, emanados dos ideais republicanos, sobretudo após o Código Penal de 1890, sob a perspectiva de desqualificação e descaracterização dos agentes terapêuticos, com o objetivo de oficializar a medicina cientifica no país. Ainda no que se refere a saúde e profilaxia urbana, o Código estabeleceu algumas deliberações importantes a respeito das moléstias e epidemias e suas relações com o cotidiano dos munícipes. Segundo as posturas municipais era dever do médico comunicar de imediato ao intendente em caso de moléstia contagiosa no município, além disso, facultava à 6 APMN, Código de Posturas Municipal, artigos 18, 19 e 20. fiscalização municipal o direito de visitar as casas onde tivessem ocorrência destes casos, bem como tomar as medidas de desinfecção em caso de morte do enfermo. 7 As diversas regras de precaução e métodos de acompanhamento em caso de epidemias na cidade evidenciam o pavor que estas epidemias causavam, sobretudo o temor de que se alastrarem e contaminassem, sem distinção de classe, toda a população. Desse modo, a preocupação era desinfetar, por meio do isolamento ou de medidas sanitárias, os transportes, habitações, animais e pessoas que apresentassem suspeitas e/ou contato com alguma moléstia. Para tanto, foi proibido desde a “venda de substancias comestiveis” por aqueles que sofreram de moléstias até “introduzir nas cocheiras, pastos ou rebanhos infectados, animais novos até 15 dias depois do ultimo caso verificado”. 8 O temor das epidemias fez a municipalidade se preocupar efetivamente com a possibilidade de surtos epidêmicos na cidade de Nazareth, sobretudo em virtude das condições de salubridade da cidade e pelas notícias de casos como os ocorridos no Rio de Janeiro a partir da segunda metade do século XIX, que teriam dizimado uma quantidade significativa de pessoas. Registra-se ainda que no início da segunda década do século XIX o Recôncavo sul foi atacado por uma epidemia, em que, em 1855, um surto de cólera tomou a cidade de Nazareth, sendo até necessário a improvisação de novos cemitérios, uma vez que os sepultamentos se sucediam, em princípio à noite, em seguida, dia e noite, em valas comuns, estimando-se a morte de 2.000 pessoas (AUGUSTO, 1999) Esse medo causou histeria principalmente nas elites locais. As posturas trataram de regular também os comportamentos dos indivíduos, com o intuito de promover os considerados desejáveis e extinguir aqueles que contrariavam a marcha para o progresso, demonstrando uma intensa preocupação com a moralidade e a instituição dos bons costumes. Isto pode ser identificado, por exemplo, na proibição de “proferir em publico palavras obscenas, fazer gestos ou tomar atitudes indecorosas ou fazer exibições de quadros ou figuras ofensivas”. 9 Assim, o objetivo era eliminar das vivências urbanas as manifestações consideradas de desordem moral e corrupção dos costumes. Inserido neste contexto, um discurso que se prolongou durante todo o século XIX foi de desqualificação das expressões culturais da população negra; estudos já indicaram que estas foram as mais duramente perseguidas. Num contexto de intensas revoltas escravas, a 7 APMN, Codigo de Posturas de Nazare de 1893, artigos 27 e 28. APMN, Codigo de Posturas de Nazare de 1893, artigos 48 e 33. 9 APMN, Código de Posturas de Nazareth de 1893, artigo 48, §7º. 8 adoção de medidas de controle como posturas municipais destinadas a coibir certas manifestações culturais da população negra significava uma estratégia para impedir o seu ajuntamento, freqüentemente associado com a noção de desordem (SANTANA, 2008). Neste sentido, elementos de ordem religiosa, dos hábitos de lazer, divertimento e até exercícios profissionais foram duramente controlados. Tal como ocorria em outras cidades brasileiras, na cidade de Nazareth encontravam-se hábitos e tradições do passado colonial e imperial que foram reconstruídos e re-significados pela população negra no pós-abolição. Sendo assim, o Código de Posturas, em seu artigo 48, proibiu “dar batuque ou qualquer dança com algazarra que pertube o socego publico” com o fim de regular os divertimentos populares da cidade de Nazareth, que em alguma medida estavam relacionados à população negra da urbe. Na contramão do discurso civilizador que condenava certas práticas evidentemente herdadas dos africanos, as danças, sobretudo as rodas de samba, eram um elemento integrado ao lazer e às festividades da população negra. Os batuques, as danças e as algazarras, (ALBUQUERQUE, 1999) presentes no universo urbano de Salvador desde o século XVIII, que aconteciam nas ruas e terreiros e expressavam o fortalecimento das relações sócio-culturais dos sujeitos escravizados vindos das diversas nações africanas, (SANTOS, 1997) também estavam presentes na cultura popular de Nazareth, que fora uma das cidades escravas da Bahia. Entendendo que os hábitos, divertimentos e até mesmo os momentos de lazer da população negra eram vistas como viciosos e perigosos, o projeto civilizador das elites republicanas tratou de reprimi-los, por não coadunarem com as suas representações preconizadas de modernidade urbana. Ao proibir sistematicamente essas práticas, associandoas à perturbação ao sossego público, tentava-se promover a remodelação do espaço social, eliminando elementos da cultura que não estavam afinados com o ideal de civilização projetado pelas elites para a sociedade brasileira. Inseridos nos costumes populares, encontravam-se os eventos festivos que desde o século XVII incorporavam o uso de máscaras, enquanto uma herança da colonização européia e de costumes africanos, que eram bastante freqüentes entre os baianos em dias de celebrações e festividades. Alguns estudos já destacaram também a presença das farras do entrudo nos espetáculos, procissões e cortejos (ALBUQUERQUE, 1999). A este respeito, o artigo 48 do Código de Posturas determinava a proibição da prática do entrudo no município e o artigo 49 proíbe “andar mascarado fora dos dias de carnaval”. Tal proibição estava relacionada ao entendimento de que “era necessário livrar as ruas de práticas como batucadas e sambas de roda, claras lembranças dos tempos da colônia e do império”, (ALBUQUERQUE, 1999, p. 24) comportamentos que não estavam coerentes com os ideais de civilização que se almejava implantar. A questão era tática: desafricanizar às ruas, pois as elites achavam as manifestações culturais destoantes dos padrões de civilidade e cidadania do Brasil republicano. Também, no que diz respeito às edificações do espaço urbano, o Código estabelecia muitas regulamentações que propunham construir uma estética urbana inspirada nos projetos de urbanização implementados nos grandes centros urbanos. Deste modo, as posturas determinavam que todos os prédios das ruas e praças fossem numerados em algarismo arábico, e que nenhum prédio dentro do espaço urbano ou mesmo das povoações tivesse a cobertura de palha. Além disso, obrigava os proprietários a fazerem, às suas próprias custas, os passeios fronteiros aos seus prédios. O Código definiu ainda que competia ao Conselho Municipal a elaboração de uma planta geral do espaço público, a qual serviria para orientar as construções das ruas e praças da cidade, assim como estradas em caminhos existentes e que seriam abertas. Incorporadas aos projetos de reformas urbanísticas que foram implementadas nos centros urbanos, as posturas também orientavam sobre as medidas das ruas da cidade e estradas. A proposta era alargar as ruas, a partir da determinação de que as ruas centrais deveriam ter 15m de largura e, respectivamente, as estradas 5m, consideradas as medidas mínimas. 10 Presumimos que as implicações destas medidas na dinâmica de vida dos indivíduos locais ultrapassaram as obrigações de fazer a respeito das determinações urbanísticas. Os alinhamentos e medidas corretas de organização espacial das ruas, avenidas, praças e estradas significaram a tentativa conferir a estética urbana afinada com os valores considerados ideais pelas elites. Portanto, um padrão estrutural urbano, sob a égide de um projeto disciplinar burguês, foi desenhado para simbolizar um progresso, real ou imaginário, mas que ratificava a desigualdade social na medida em que formulava estratégias de exclusão. Neste sentido, o uso do espaço privado e público foi regulado através dos interesses das classes dominantes locais, que priorizava por sua vez a “ornamentação” da cidade, de modo a eliminar da paisagem social o espectro dos tempos coloniais e imperiais. Dentre as posturas relacionadas às praticas comerciais, o artigo 109 estabelecia multa aos “que tiverem casas de negocio desaceiadas, ou utensílios de pezos e medidas sujas, ou usarem medidas de cobre para os liquidos” e o artigo 112 definia que “ninguem poderá ter 10 APMN, Código de Posturas de Nazareth de 1893, artigo 90. amostras de gêneros de seo commercio ou industria expostos fora dos portões das lojas ou vendas, de forma a encommodar o transito publico”. Visando manter a ordem, o asseio e o controle público, o artigo 111 determinou a obrigatoriedade de que todos os negociantes, ambulantes ou de qualquer espécie, tenham em mãos a competente licença, sob pena das multas estabelecidas. Neste mesmo sentido, os negociantes de pequeno comércio de verduras, frutas, peixes e ambulantes tiveram a permissão de vender seus produtos pelas ruas da cidade, desde que não estacionassem nos passeios das ruas, mantendo a ordem. Assim regia as posturas. As obrigações e limitações presentes nas posturas expressam a preocupação do poder público com as práticas e modos pelos quais a função do comércio e vendas vinham se processando na cidade. Assim, a necessidade da garantia de uma cidade salubre passava, neste sentido, também pelas medidas higiênicas nas casas comerciais fixas e a afixação de limites para os vendedores ambulantes. Presumimos, por conta da situação de pobreza vivenciada pelas quitandeiras e ambulantes, que a obrigatoriedade da licença municipal para o exercício da função, tenha sido uma das medidas com maiores implicações em suas vidas. Compreendemos também que a questão da alimentação também foi alvo de normatizações. O artigo 120 determinou que o gado que seria destinado ao consumo só poderia ser abatido no matadouro público. Este deveria ficar situado longe dos centros povoados e passar por uma série de etapas de preparação antes e após o abatimento do gado, orientadas pela intendência municipal, até chegar às casas de venda. Durante o processo de abatimento dos animais haveria a devida fiscalização da municipalidade para atestar a aptidão ou efetuar condenação dos animais ou das carnes impróprias para o consumo. Medidas como o horário de abatimento, tempo necessário para o consumo, bem como o transporte da carne também foram alvos de regulamentações, a exemplo da proibição de que as carnes possam “ser carregadas sobre os hombros nus dos carregadores, evitando-se o contato com a pelle delles”, expressa no artigo 136. Para seguir as normas higiênicas, as casas de venda de carne ainda deveriam ser fechadas com grades de ferro, ter paredes azulejadas e chão cimentado, com pesos e balanças areiadas, conforme regulamentava o artigo 121. Assim, a excessiva preocupação com o abatimento e comércio de carnes deveu-se ao fato de este ser um gênero alimentício destinado a todas as classes e que, diferentemente de outros gêneros, não poderia ser comprado em outros locais onde pudesse ser assegurado o asseio necessário e a garantia de estarem livres de infecções. Em contrapartida, a carne seca vinda do Rio Grande estava presente nas casas comerciais locais. Logo, percebe-se que a municipalidade não mediu esforços em adotar medidas higiênicas que garantissem à população, mais precisamente às elites, a imunidade contra o perigo do contágio resguardando-as assim da possível contaminação mediante o consumo da carne. As medidas incidiam, sobretudo, em relação aos gêneros adquiridos no comércio local. Considerações Finais Os procedimentos teórico-metodológicos adotados neste trabalho passaram pela análise das fontes encontradas e no diálogo com as discussões bibliográficas que fazem referência aos estudos sobre o ideal de modernização, civilização, relações de poder, vida cotidiana e espaço urbano no Brasil Republicano. Através da intensa leitura das fontes e bibliografia, o que parece ficar evidente é a sintonia dos eventos que aconteciam em Nazareth com os projetos modernizantes que estavam sendo implementados nas principais cidades do país. As propostas que estavam pautadas nos ideais de progresso e civilização ficaram, portanto, evidentes nos mais diversos instrumentos adotados para materializar no campo das práticas sociais os postulados da modernidade. Assim, refletimos como estes elementos tomaram corpo na cidade de Nazareth, através do Código de Posturas Municipal. Verificamos, neste sentido, que no Código de Posturas encontram-se elementos exigidos pelos ideais de modernidade, civilização e progresso, expressos em fins do século XIX e inícios do XX, quais sejam a preocupação com a salubridade urbana, a saúde pública, os hábitos e comportamentos populares, a habitação, as tradições herdadas, a urbanização e a intervenção do poder público na vida privada. Sendo assim, conseguimos encontrar referências a todos estes elementos nas referidas posturas, que procuram regulamentar algumas dessas questões e criminalizar outras. Na análise dos documentos, ficaram nítidas as propostas de intervenção do poder público, com vistas a promover a regulamentação, a disciplina e a remodelação do espaço físico e dos comportamentos urbanos, determinadas pelas elites intelectuais e políticas, no mundo citadino. Pára além do objetivo de consolidar os “sinais da modernidade” em Nazareth, já expressos através de algumas estruturas e serviços urbanos, a pretensão maior era civilizar os costumes da população, sobretudo daqueles que contrariavam os valores aspirados pela modernidade. Assim, os sambas, os batuques, as habitações coletivas, as moléstias e epidemias, o comércio ambulante, o asseio público, a utilização do espaço, as imoralidades e ações ritualísticas foram algumas das preocupações das elites, presentes no Código de Posturas. Referências AGUIAR, Lucas Santos. Entre contestações e negociações à “legalidade urbana”: a dinâmica cidade de Nazareth nos anos iniciais da República. In: CLOUX, Raphael Fontes; FERREIRA, Edemir Brasil (Orgs.). Hegemonia & Resistências no Brasil. Salvador: Kawo Kabiyesile, 2012. ALBUQUERQUE, Wlamyra. Algazarra nas ruas. Comemorações da Independência na Bahia (18891923). Campinas: Editora da Unicamp, 1999. AUGUSTO, Lamartine. Porta do sertão. 2. Ed. 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