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FRAGMENTOS NARRATIVOS DE UMA ESCRITA DERRADEIRA
ALVES, Joyce (FINAV/PG-UFGD)
Inútil querer me classificar: eu simplesmente
escapulo não deixando, gênero não me pega mais.
(Clarice Lispector)
Introdução
Neste artigo, trataremos especialmente do livro Água viva que é o sétimo
romance da escritora brasileira Clarice Lispector (1920-1977). Publicado em 1973, a
obra é considerada particular pela ausência de enredo e também pelo seu processo
de construção. Trata-se de um monólogo cuja protagonista, que não tem o seu
nome revelado, é uma pintora que, no espaço de seu apartamento ou ateliê, resolve
se aventurar pela escrita e se lança numa espécie de narrativa em fragmentos
aparentemente desordenados e que, nas palavras de Edgar Cezar Nolasco (1994, p.
62), compõem uma “bricolagem de si mesmo”. E ainda: “seus fragmentos textuais
podem ser considerados como as partes separadas de um quadro que, depois de
reunidas, nos dariam a visão do quadro completo” (NOLASCO, 1994, p. 63).
Antes de se tornar um livro de poucas páginas e de receber este título, o
romance teve outras duas versões e títulos diferentes. Primeiramente Clarice
chamou-o de Atrás do pensamento: monólogo com a vida que, de acordo com
Benjamin Moser (2009), tinha 151 páginas. Esta versão, datada de 1971, chegou a
ser enviada para os Estados Unidos sob a responsabilidade do professor português
Alexandrino Severino, que tinha a responsabilidade de traduzir o manuscrito para a
língua inglesa. Mas Clarice Lispector interrompeu o trabalho e, quando retomou, deu
à obra nova estrutura e um novo título: Objeto gritante. Nesta segunda versão, a
escritora traz relatos autobiográficos revelando fatos do seu próprio dia-a-dia como
nos trechos em que reclama de falta de dinheiro, quando lista afazeres domésticos,
a ida às compras, além de fazer referência às suas origens européias.
Objeto gritante, com suas 185 páginas, era ainda mais longo do que Atrás
do pensamento e, segundo Benjamin Moser, o manuscrito “parece capturar uma voz
cotidiana nada lapidada por recursos literários ou ficcionais” (MOSER, 2009, p. 458).
Com a ajuda da amiga datilógrafa Olga Borelli, Clarice Lispector iniciou então um
trabalho de recorte que resultou em Água viva. Borelli afirma que desse trabalho
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resultou um livro sem vértebra ou “espinha dorsal” (BORELLI apud MOSER, 2009, p.
462). Como numa escultura, o livro tomou forma e foi se estruturando até ser, em
agosto de 1973, publicado para surpreender a crítica: “Não se parece, de fato, com
coisa alguma escrita na época, no Brasil ou em qualquer outro lugar”, acrescenta
Moser (2009, p. 463). A própria Clarice reconhece que este livro era diferente de
tudo o que havia escrito até então: “Isto não é história porque não conheço história
assim, mas só sei ir dizendo e fazendo” (LISPECTOR, 1998, p. 67).
Mas o que há de especial nesta obra? Qual é o enredo de Água viva? Quem
narra e o quê narra? Estas são algumas questões que norteiam este trabalho. O
romance de Clarice, muitas vezes considerado hermético e de difícil leitura para
alguns, ou texto de fruição e leveza para outros, apresenta características típicas do
romance moderno conforme apontaremos, além de possuir em sua totalidade a
abstração apontada por Georg Lukács (2000, p. 70) quando este se refere ao
desaparecimento definitivo da organicidade do romance. Mas, retomando as
palavras de Theodor Adorno (2003, p. 62-3), “nenhuma obra de arte moderna que
valha alguma coisa deixa de encontrar prazer na dissonância e no abandono”.
1. Água viva: a poética do romance clariceano
A epígrafe escolhida por Clarice Lispector para Água viva é uma citação de
Michel Seupher (1901-1999) que diz: Tinha que existir uma pintura totalmente livre
da dependência da figura – o objeto – que, como a música, não ilustra coisa alguma,
não conta uma história e não lança um mito. Ora, a partir desta passagem já
notamos a necessidade da escritora em se libertar de uma narrativa com começo,
meio e fim, nos moldes tradicionais e marcados por um tempo cronológico
previamente definido. A citação nos remete ainda às palavras de Adorno quando
este afirma que ao se declarar livre das convenções da representação do objeto, o
sujeito literário “reconhece ao mesmo tempo a própria impotência, a supremacia do
mundo das coisas, que reaparece em meio ao monólogo” (ADORNO, 2003, p. 62). E
é contra esta supremacia que Clarice se lança na escrita em fluxo e evidentemente
fragmentada de Água viva.
De acordo com Antonio Candido, “a dificuldade em descobrir a coerência e a
unidade dos seres vem refletida, de maneira por vezes trágica, sob a forma de
incomunicabilidade nas relações” (CANDIDO, 1998, p. 57) Há vários trechos, quase
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páginas inteiras de Água viva, que foram, em verdade, crônicas publicadas no Jornal
do Brasil entre 1967 e 1973, posteriormente reunidas no livro A descoberta do
mundo (1978). Como num processo de reciclagem, Clarice recupera trechos de
contos e/ou crônicas completas aglutinando-as no romance como uma espécie de
“mosaico” narrativo que, nas palavras de Candido (1998, p. 56), não é uno, nem
contínuo. Esses “rascunhos” narrativos são fragmentos de textos aos quais Clarice
atribui novo sentido inserindo-os em um novo contexto. É o caso de “Escrever as
entrelinhas”, crônica publicada em 6 de novembro de 1971 e que também figura nas
páginas de Água viva:
Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a
palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não-palavra – a
entrelinha – morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que
se pescou a entrelinha, poder-se-ia com alívio jogar a palavra fora.
Mas aí cessa a analogia: a não-palavra, ao morder a isca,
incorporou-a. o que salva é escrever distraidamente (LISPECTOR,
1998, p. 20).
Segundo Benedito Nunes (2007, p. 56), se os primeiros romances de Clarice
Lispector já “não são mais novelescos e os seus dois últimos textos, Água viva e A
hora da estrela já transgridem a forma tradicional do romance consolidada no século
passado, os seus contos são na verdade de pouco ou nenhum enredo”. Sônia
Roncador (2002), em seu livro Poéticas do empobrecimento, em que analisa os
manuscritos da versão inédita Objeto gritante, defende a ideia de que os romances
escritos por Clarice a partir da década de 70 rompem com as demais obras da
escritora e explica:
Uma característica típica de seus trabalhos anteriores é a ênfase na
homogeneidade, mais precisamente na unidade interna de tom e
estilo. Mas nos anos 70 o modelo de composição de seus textos é,
ao contrário, o da montagem: os trabalhos finais de Clarice tendem a
ser menos um todo unificado que repositórios de fragmentos
incompatíveis cujas diferenças Clarice não parece interessada em
homogeneizar (RONCADOR, 2002, p. 14).
A ausência de enredo marca a narrativa dos últimos trabalhos de Clarice
Lispector como uma espécie de fuga aos moldes tradicionais. O leitor de A hora da
estrela (1977), por exemplo, aguarda angustiado por um narrador que lhe apresente
um enredo ao longo de pelo menos seis páginas, até aparecer Rodrigo S.M., muitas
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vezes confundido com a própria Clarice: “Eu, Rodrigo S.M. Relato antigo, este, pois
não quero ser modernoso e inventar modismos à guisa de originalidade. Assim é
que experimentei contra os meus hábitos uma história com começo, meio e „gran
finale‟ seguido de silêncio e de chuva caindo” (LISPECTOR, 1998, p. 13). Segundo
Nicolino Novello (1987, p. 28), esse modo peculiar de começar a narrativa parece
estranho para nós, pois estamos acostumados com uma determinada maneira de
encadeamento dos elementos de uma narrativa.
De acordo com Walter Benjamin (2004), o texto narrado é composto por
dados organizados temporalmente pelo narrador. E é esta organicidade que já não
figura mais no romance moderno-contemporâneo. Clarice Lispector não organiza
temporalmente suas ideias até porque estas ainda estão em percurso inacabado.
Clarice não narra e tem consciência disso: “Escrevo-te em desordem, bem sei. Mas
é como vivo. Eu só trabalho com achados e perdidos” (LISPECTOR, 1998, p. 66).
A professora Nádia Battella Gotlib, maior autoridade no Brasil em se tratando
de biografia clariceana, afirma que “a opção pela destituição do convencional na arte
implica o estar também à margem da classificação de gêneros narrativos” (GOTLIB,
1995, p. 411). É o que acontece com Água viva, que pretende ser um romance, mas
que também se parece com a escrita de um diário, e às vezes, verte no papel como
meras anotações soltas. Essa revolta contra o convencional é expressa por Clarice
na passagem de Água viva escolhida para a epígrafe deste trabalho: gênero não me
pega mais. Retomando, a escritora tinha consciência das transformações pelas
quais o romance estava passando. De acordo com Mikhail Bakhtin:
O romance [...] se acomoda mal com os outros gêneros. E não se
pode falar de uma harmonia possível, baseada sobre uma limitação e
substituição recíprocas. O romance parodia os outros gêneros
(justamente como gêneros), revela o convencionalismo das suas
formas e da linguagem, elimina alguns gêneros, e integra outros à
sua construção particular, reinterpretando-os e dando-lhes um outro
tom (BAKHTIN, 2002, p. 399).
Anatol Rosenfeld (1996, p. 80) afirma ainda que no romance do nosso
século nota-se “uma modificação análoga à da pintura moderna, modificação que
parece ser essencial à estrutura do modernismo”. O que ele quer dizer é que, assim
como ocorre na pintura moderna essa nova literatura não tem compromisso com o
empírico e, como já dito, rompe-se com o tradicional.
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Assim como o mundo contemporâneo é fragmentário e heterogêneo, o
romance também pretende ser, conforme se nota especialmente em Água viva. “O
romance é o único gênero em evolução, por isso ele reflete mais profundamente,
mais substancialmente, mais sensivelmente e mais rapidamente a evolução da
própria realidade” (BAKHTIN, 2002, p. 400). Haroldo de Campos, que aborda a
questão da ruptura dos gêneros, colabora dizendo que em nossa época “temos
assistido à dissolução vertiginosa do estatuto dos gêneros, assim como de sua
compartimentação linguística” (CAMPOS, 1972, p. 282).
Ferreira Gullar (2007) chama a nossa atenção ainda para a escrita em fluxo
e a forma com que Clarice Lispector conduz o leitor de Água viva que, por sua vez,
se depara com uma escrita livre de formalidades:
Há momentos, em Água viva, em que o fluxo da escrita se faz
movido por jogos de idéias e palavras “cegas”, que arrastam o leitor
sem lhe dar tempo de compreender o que lê; ou se rende ou desiste.
Por isso mesmo, este livro reflete, como nenhum outro livro seu, uma
alegria que vem certamente do fato de que, nele, ela está a salvo de
qualquer injunção; escreve para escrever, para gozar da liberdade de
inventar o texto e elevá-lo a alturas inspiradas para além da
compreensão, pois o que deseja é o encantamento (GULLAR, 2007,
p. 46).
Vem concordar Edgar Nolasco dos Santos quando afirma que “cabe ao leitor
ir buscar fora do texto sentidos outros para a compreensão de Água viva, que nada
mais é aí do que o quadro pintado, ou desejado pela voz da narradora” (SANTOS,
1994, p. 62). Mas, o que pretende esta “narradora”?
A personagem-pintora do romance de Clarice se lança na missão de captar
um instante-já através de imagens criadas por ela como se estivesse pintando ou
fotografando. Em alguns momentos essa tentativa é frustrada já que a personagem
não consegue captar esse instante presente imediatamente transformado em
passado: “Eu te digo: estou tentando captar a quarta dimensão do instante-já que de
tão fugidio não é mais porque agora se tornou um novo instante-já que também não
é mais” (LISPECTOR, 1998, p. 9).
Os questionamentos da personagem em torno do tempo fugidio, que
perpassam praticamente toda a narrativa, nos remetem às definições de Santo
Agostinho (354-430) sobre as três divisões do tempo - passado, presente e futuro –
que se encontram no livro Confissões (AGOSTINHO, 1999). Clarice retoma o filósofo
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quando pretende definir o tempo presente que, por sua vez, é imediatamente
transformado em passado e que também não é mais, porque já foi. E o futuro
também não existe, já que ainda não veio. Logo o presente é inapreensível. A
escritora, já nas primeiras páginas do romance, define o presente como o tema
principal do livro:
Meu tema é o instante? meu tema de vida. Procuro estar a par dele,
divido-me milhares de vezes em tantas vezes quanto os instantes
que decorrem, fragmentária que sou e precários os momentos – só
me comprometo com vida que nasça com o tempo e com ele cresça:
só no tempo há espaço para mim (LISPECTOR, 1998, p. 10).
Além disso, Água viva possui uma continuidade circular que nos remete ao
ciclo ininterrupto da passagem das horas, dos meses e das estações do ano. O livro
não possui capítulos, apesar de que é composto por fragmentos que lembram, como
já dito, as anotações de um diário, porém, nem quando a personagem faz suas
pausas para dormir, por exemplo, o tempo deixa de seguir o seu curso na narrativa:
“Vou agora parar um pouco para me aprofundar mais. Depois eu volto. Voltei. Fui
existindo” (LISPECTOR, 1998, p. 31).
Segundo Jorge Luis Borges “é uma idéia muito poética essa, de que,
enquanto todo mundo dorme, o silencioso rio do tempo – essa metáfora é inevitável
– está fluindo nos campos, nos porões, no espaço, está fluindo entre os astros”
(BORGES, 1999, p. 232). É este o tempo que a personagem procura captar à sua
maneira: o tempo que segue seu curso indiferente, e que nem os ponteiros do
relógio conseguem definir, assim como a natureza também nos é indiferente: “a
natureza em cântico coral e eu morrendo” (LISPECTOR, 1998, p. 37).
Outro aspecto interessante presente em Água viva é exatamente aquilo que
Georg Lukács (2000, p. 94) chama de teor místico, que estaria vinculado à presença
do deus na experiência do sujeito literário. A protagonista dialoga, a partir da metade
do romance, com um “it” que pode ser compreendido como a representação divina
na obra por meio de um pronome indefinido (elemento este que a personagem tenta
materializar): “É que não estou brincando: it é elemento puro. É material do instante
do tempo. Não estou coisificando nada: estou tendo o verdadeiro parto do it”
(LISPECTOR, 1998, p. 32). Depois, o elemento divino se define: “O Deus tem que
vir a mim já que não tenho ido a Ele. Que o Deus venha: por favor. Mesmo que eu
não mereça” (LISPECTOR, 1998, p. 51).
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Para o romance, a ironia é essa liberdade do escritor perante deus, a
condição transcendental da objetividade da configuração. Ironia que,
com dupla visão intuitiva, é capaz de vislumbrar a plenitude divina do
mundo abandonado por deus (LUKÁCS, 2000, p. 95).
O mundo exterior passa a ser impenetrável e sem sentido para o sujeito
literário que, por sua vez, se volta para o mundo interior, onde este encontra
inspiração. Por isso, esse tipo de literatura, como é o caso da obra clariceana, é
considerada de cunho introspectivo. O escritor tenta trazer a realidade fragmentária
para dentro do romance. Antonio Candido (1998) afirma que “o romance, ao abordar
as personagens de modo fragmentário, nada mais faz do que retomar [...] a maneira
fragmentária, insatisfatória, incompleta, com que elaboramos o conhecimento de
nossos semelhantes” (CANDIDO, 1998, p. 58). Lukács alerta para o perigo de que
este tipo de escrita subjetiva se torne abstrata:
Pois essa subjetividade não é eliminada ao permanecer inexpressa
ou ao ser transformada numa vontade de objetividade: esse silêncio
e esse esforço são ainda mais subjetivos que a manifestação aberta
de uma subjetividade claramente consciente, e portanto, outra vez na
acepção hegeliana, ainda mais abstratos (LUKÁCS, 2000, p. 74).
Esta preocupação pela não abstração aparece em algumas passagens de
Água viva: “Ainda tenho medo de me afastar da lógica porque caio no instintivo e no
direto, e no futuro: a invenção do hoje é o meu único meio de instaurar o futuro”
(LISPECTOR, 1998, p. 12). Mas Clarice pretende alcançar exatamente aquilo que se
expressa no primeiro título atribuído a Água viva, ou seja, aquilo que fica “atrás do
pensamento”. O incômodo em ser considerada uma escritora hermética fez com que
Clarice se esforçasse em ser compreendida. Para isso, a protagonista do livro se
justifica dizendo que para se expressar ela usa palavras e não tintas, pincéis ou
figuras, permitindo que o leitor decodifique o que está implícito:
Escrevo-te toda inteira e sinto um sabor em ser e o sabor-a-ti é
abstrato como o instante. É também com o corpo todo que pinto os
meus quadros e na tela fixo o incorpóreo, eu corpo a corpo comigo
mesma. [...] Quando vieres me ler perguntarás por que não me
restrinjo à pintura e às minhas exposições, já que escrevo tosco e
sem ordem. É que agora sinto necessidade de palavras – e é novo
para mim o que escrevo porque minha verdadeira palavra foi até
agora intocada. A palavra é a minha quarta dimensão (LISPECTOR,
1998, p. 10).
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Adorno afirma que “o autor, com o gesto irônico que revoga seu próprio
discurso exime-se da pretensão de criar algo real, uma pretensão da qual nenhuma
de suas palavras pode, entretanto, escapar” (ADORNO, 2002, p. 60). Nesse sentido,
Berta Waldman colabora dizendo que o monólogo dirige-se a um “tu” silencioso que
só entende a fala discursiva, e completa: “daí o esforço da narradora em se fazer
entender, porque ela é alguém que, no papel, elabora um texto onde desenha, pinta,
esculpe, fotografa uma escritura atemporal. Essa escritura almeja a duração, quer
ser contínua como a vida que não pára” (WALDMAN, 1983, p. 61).
Isso nos faz pensar no que se chama de unidade biográfica, sobre a qual
Benedito Nunes afirma que, “conforme a lição permanente de Lukács, o romance
acompanha o processo temporal da existência e enfeixa uma linguagem do mundo”
(NUNES, 2007, p. 56). O crítico se refere aqui à afirmativa de Georg Lukács de que
“na forma biográfica, a aspiração sentimental e inalcançável tanto pela unidade
imediata da vida quanto pela arquitetônica que tudo integra do sistema é equilibrada
e posta em repouso – é transformada em ser” (LUKÁCS, 2000, p. 78). Clarice
demonstra em vários trechos de Água viva que sua intenção é seguir o mesmo
curso da vida em fluxo: “Não vou ser auto-biográfica. Quero ser „bio‟” (LISPECTOR,
1998, p. 33).
De acordo com Benedito Nunes “a célula do novelesco em potencial que os
últimos livros de Clarice Lispector conservam, tornou-se ploriferante, gerando uma
espécie de narrativa proteiforme, considerada improviso, como Água viva, que se
auto-reproduz” (NUNES, 2007, p. 56 – grifo do autor). De fato, o leitor de Água viva
tem a sensação de que Clarice Lispector compõe o livro no momento exato em que
está sendo lido e ainda permite que seu interlocutor faça parte do trabalho de
concatenação da obra:
Sei o que estou fazendo aqui: conto os instantes que pingam e são
grossos de sangue. Sei o que estou fazendo aqui: estou
improvisando. Mas que mal tem isso? Improviso como no jazz
improvisam música, jazz em fúria, improviso diante da platéia. É tão
curioso ter substituído as tintas por essa coisa estranha que é a
palavra (LISPECTOR, 1998, p. 21).
Sobre o papel do interlocutor em Água viva, Donaldo Shüler (1989, p. 32),
também lembrando o caso de A paixão segundo G.H., afirma que este, embora
ausente, “é ao menos suposto como possível, e é ele o pólo precariamente
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organizador do discurso”, o que evidentemente se nota em Água viva, onde a
personagem se dirige diretamente ao leitor: “Minha voz cai no abismo de teu
silêncio. Tu me lês em silêncio” (LISPECTOR, 1998, p. 51). De acordo com Edgar
Nolasco, “o leitor descobre que quanto mais ele deixa em aberto (suspenso) o
sentido, mais ele participa” (NOLASCO, 1994, p. 63). Clarice Lispector encerra o
livro paradoxalmente dando continuidade a ele, assim o leitor tema liberdade de
seguir ou não com a proposta narrativa, por exemplo, em um processo de releitura:
“Tudo acaba, mas o que te escrevo continua. O que é bom, muito bom. O melhor
ainda não foi escrito. O melhor está nas entrelinhas” (LISPECTOR, 1998, p. 86).
Considerações finais
Como concluir uma história que, em verdade, nem começa? Concordando
com Edgar Cézar Nolasco, podemos dizer que “Clarice Lispector termina Água viva
sem narrar uma história, sem terminar a pintura a qual havia começado, deixando o
desenho-escritural para sempre inacabado: a narrativa acaba por contar a si mesma
a sua des-construção” (NOLASCO, 1994, p. 64). Clarice deixa, portanto, em aberto o
pequeno-grande romance Água viva. E o que graficamente foi retirado das versões
anteriores está, conforme as palavras da própria escritora, nas entrelinhas do livro.
“Movimento incessante de vai-e-vem, da escritora à sua obra e de sua obra a si
mesma, que tem a força de uma paixão, escrever é, para Clarice Lispector,
submissão a um processo que ela não conduz e pelo qual é conduzida” (NUNES,
2007, p. 58). Ela encerra o romance com os dizeres: “O que te escrevo continua, e
eu estou enfeitiçada” (LISPECTOR, 1998, p. 87).
A escritora compara o romance às imagens de um caleidoscópio,
instrumento óptico que depende dos movimentos das mãos de que olha para se
obter uma nova figura subdividida por pedaços de cores. Realmente, para que Água
viva tenha sentido, é preciso manuseá-lo e identificar nele todas as possibilidades de
interpretação que a narrativa permite graças às suas múltiplas faces.
Água viva é uma obra pouco lida e poderia ser considerada como “resto” de
uma versão maior – Objeto Gritante talvez -, mas na verdade o que ficou foi o
necessário para se dizer o que a autora pretendia. Mesmo tendo poucas páginas,
este livro se torna maior ou, nas palavras de Benedito Nunes (2007, p. 56), “se autoreproduz e multiplica”, permitindo que o leitor reflita sobre vários aspectos da
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existência humana graças à naturalidade com que Clarice esmiúça seus temas e se
aprofunda no real significado da palavra.
REFERÊNCIAS
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Duas Cidades, 2003.
AGOSTINHO. O homem e o tempo. In: Confissões. Série Os pensadores. São
Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 309-340.
BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e de Estética: A teoria do romance. Trad.
Aurora Fornoni Bernardini et al. São Paulo: Annablume; Hucitec, 2002.
BENJAMIM, Walter. Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre literatura e
história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
CAMPOS, Haroldo. Ruptura dos gêneros na literatura latino-americana. In: América
latina em suas literaturas. São Paulo: Perspectiva, 1972. p. 281-305.
CANDIDO, Antonio. A personagem do romance. In: CANDIDO, Antonio et al. A
personagem da ficção. São Paulo: Perspectiva, 1998. p. 53-80.
GOTLIB, Nadia Battella. Clarice, uma vida que se conta. São Paulo: Ática, 1995.
LISPECTOR, Clarice. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
_________________. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
_________________. A descoberta do mundo. Crônicas. Rio de Janeiro: Rocco,
1999.
LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. Um ensaio histórico-filosófico sobre as
formas da grande épica. Trad. José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas
Cidades, 2000.
MOSER, Benjamin. Clarice, uma biografia. Trad. José Geraldo Couto. São Paulo:
Cosac Naify, 2009.
11
NOLASCO, Edgar Cézar. Roland Barthes lê Clarice Lispector: Água viva uma
galáxia de significantes. Revista Científica UFMS. v. 1. nº 2. Campo Grande: 1994.
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NUNES, Benedito. A resposta de Clarice. In: Clarice Lispector: A hora da estrela.
GULLAR, Ferreira; PEREGRINO, Julia (curadores). São Paulo: Museu da Língua
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RONCADOR, Sônia. Poéticas do empobrecimento: a escrita derradeira de Clarice.
São Paulo: Annablume, 2002.
ROSENFELD, Anatol. Texto e Contexto I. São Paulo: Perspectiva, 1996.
SCHÜLER, Donaldo. Teoria do romance. Série Fundamentos. São Paulo: Ática,
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WALDMAN, Berta. Clarice Lispector. São Paulo: Brasiliense, 1983.
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