A CIVILIZAÇÃO PROJETADA E AS IMAGENS DE PROFESSOR(A) NOS DEBATES EDUCACIONAIS DA DÉCADA DE 1930 Ana Maria Bandeira de Mello Magaldi/UERJ-PUCRIO “A escola moderna depende, mais que de leis, mais do que do aluno, mais que da própria família deste, de um elemento capaz de modificar todos esses pela sua visão geral da vida, pela sua disposição de constante devotamento a um ideal, ainda sabendo-o de realização tardia, sentindo-o cumprir-se muito depois da sua ansiedade e do seu labor. A escola moderna depende, antes de tudo, do mestre.” Cecília Meireles “Não é tanto do material didático, da escolha de livros, da elegância arquitetônica dos locais escolares que depende o essencial da educação. É principalmente do homem que está à frente de todo este material inanimado. (...) Homens de bem, só os formará um homem de bem. (...) Daí, a importância para um país da formação moral e humana de seus professores.” Padre Leonel Franca Nos trechos destacados acima, Cecília Meireles e o padre jesuíta Leonel Franca, intelectuais fortemente envolvidos nos debates educacionais dos anos 1930, mostram concordância na visão sobre o lugar de destaque que deveria ser ocupado pelo professor no cenário da sociedade brasileira de seu tempo. Expressando uma atitude comum então – e que mostra permanências consideráveis em nossa sociedade – aproximam-se também no uso do gênero gramatical masculino ao se referirem a uma atividade exercida majoritariamente, já nesse tempo, especialmente no âmbito da escola primária, por mulheres. Sua visão coincidente sobre o papel civilizador crucial do mestre mostra-se afinada com outras preocupações de caráter mais amplo acerca dos rumos a serem seguidos pela sociedade brasileira, que também os aproximavam. Como tantos outros intelectuais de seu tempo, aproximavam-se na consideração do problema da “organização da nação”, a que relacionavam a idéia da “construção da civilização”, e ainda na compreensão de que esta seria uma tarefa a ser atingida, em grande medida, por meio da educação. Assumindo-se como condutores legítimos desse processo, os intelectuais buscavam exercer interferência no âmbito do Estado, que passava a se fazer mais presente na relação com a sociedade a partir de 19301. Nesse quadro, era atribuída à instituição escolar – e à escola pública, de modo particular – , em sua atuação dirigida a alunos, famílias e comunidade, uma parcela considerável de responsabilidade na execução da inadiável tarefa civilizadora. Se a educadora Cecília Meireles e o padre Leonel Franca compartilharam preocupações e atitudes próprias de seu ambiente intelectual, no que diz respeito especificamente ao debate educacional, é bastante conhecida, entretanto, a distância que os separava. Pode-se mencionar, com destaque, a polêmica envolvendo os defensores do ensino laico e os partidários da reintrodução do ensino religioso nas escolas públicas, suspenso por ocasião da instauração da ordem política republicana. Fortemente identificada com as posições do movimento da Escola Nova, Cecília Meireles foi uma ferrenha combatente em favor da escola neutra em matéria religiosa. Nas crônicas que publicou na Página de Educação do Diário de Notícias nos primeiros anos da década de 19302, a educadora promoveu uma verdadeira campanha de denúncia dirigida às investidas conduzidas pela Igreja Católica – da qual Padre Leonel Franca era um representante destacado – junto ao poder público, criticando ainda as posições conciliadoras do governo Vargas em relação às pressões católicas e, de modo particular e incisivo, o decreto do Ministro da Educação Francisco Campos cedendo àquelas e instituindo o ensino religioso nas escolas públicas. Seu ponto de vista, com a justificativa correspondente, era afirmado na seguinte crônica publicada, entre inúmeras dotadas do mesmo teor, com o título sugestivo de Como se originam as guerras religiosas: “É justamente em atenção aos sentimentos de fraternidade universal que a escola moderna deve ser laica. Laica não quer dizer contrária a nenhuma religião; significa, somente: neutra, isenta de preocupações dessa natureza.” (Meireles, Comentário, 2/5/1931) Se, a respeito desse tema, portanto, Cecília Meireles e Leonel Franca situaram-se em campos claramente opostos que recortavam o próprio campo educacional da época, é importante considerar, como já vem sendo realizado em vários estudos da área de História da educação, a possibilidade de serem estabelecidas interfaces entre a tendência escolanovista e o movimento católico.3 No caso específico deste estudo e dos dois intelectuais focalizados, um ponto de aproximação que se pretende marcar diz respeito exatamente à forma como representaram a figura do educador, em textos diversos. Cabe destacar que, devido aos limites do trabalho, estaremos focalizando a construção de imagens que remetem à atividade docente em uma perspectiva genérica, observando-se que, nesse caso, tais imagens aparecem, nos textos de ambos, identificadas às figuras, caracterizadas com base no uso do gênero gramatical masculino, do educador, professor ou mestre. Para além da valorização do papel do educador, cabe assinalar ainda o viés religioso encontrado nas imagens construídas por ambos em torno do magistério. E se, no caso do educador católico e sacerdote, esse tipo de abordagem é facilmente compreensível, no caso da educadora escolanovista, já mencionada em suas firmes posições relativas à relação entre educação e religião, as representações relativas à figura docente construídas nessa perspectiva podem produzir algum estranhamento, e por isso mesmo nos instigam à reflexão. . O magistério como apostolado Ora não sei se haverá outra profissão que ofereça como a do educador em nossos dias um campo tão vasto de apostolado social.” Padre Leonel Franca “Estamos carecendo de educadores, de apóstolos do idealismo, de formadores de personalidades.” Cecília Meireles Para os jesuítas, o ensino tem sido compreendido, desde o início das atividades da Companhia de Jesus no século XVI e ao longo dos tempos, como um apostolado, e aqueles que se dedicam a essa “missão divina”, têm sido representados como apóstolos. Como bom jesuíta, Padre Leonel Franca assim compreendia o papel do educador, destinado a formar almas católicas. Segundo sua concepção, afinada com a da hierarquia católica, a família teria preeminência em relação ao Estado e à escola na função educativa.4 Considerando, no entanto, o cenário educacional de sua época, marcado pela ampliação dos direitos sociais no bojo do projeto varguista e pela extensão do acesso à educação, o educador católico, em sintonia com seus pares do movimento católico e também com seus contemporâneos escolanovistas, afirmava a importância indiscutível da escola, acentuando seu papel civilizador. Assinalava, de um modo particular, o lugar de destaque da escola pública, pela amplitude crescente do contingente da população por ela atingida. Nesse quadro é que podem ser compreendidas as repetidas e vigorosas investidas do movimento de que Leonel Franca era representante, com vistas à incorporação das escolas públicas à esfera de influência da Igreja Católica. Mesmo considerando que a escola deveria representar a família – e aqui fica evidente que quando mencionava esta última não se referia a qualquer família, mas à família católica -, de modo a atuar como “prolongamento do lar”, destacava a centralidade que a instituição escolar ocupava no ambiente social da época. Tendo como referência a idéia de combate pela formação de almas, cara à tradição jesuítica, Leonel Franca expressava sua compreensão sobre o lugar estratégico da escola: “Nos contrastes de forças adversas que se empenham, mais do que em qualquer outro teatro de luta, é na escola que se fere a peleja capital que decidirá do futuro dos nossos destinos e é sobre a alma da criança que convergem os esforços supremos. (Franca, 1954, p.200) Diante de sua visão sobre a gravidade dos embates observados no campo educacional e sobre sua manifestação decisiva no espaço da escola, pode-se compreender o relevo conferido à figura do professor e à sua formação, aspecto também presente nas orientações da Companhia de Jesus desde a formulação da Ratio Studiorum. Em tempos de valorização da profissionalização do educador, compreendida de modo articulado ao domínio de saberes técnico-científicos relativos ao ofício de ensinar, Padre Franca conferia maior atenção, em sua reflexão a respeito desse tema, a um outro aspecto. Ressaltava, como atributo do professor, indispensável para o exercício da “verdadeira escola de santificação” (Franca, 1933, p.228) que seria a obra educativa, a presença em seu próprio ser de uma “alma cristã” que deveria ser cultivada e em que se manifestariam “fontes da verdade e do amor” (Franca, 1954, p. 14) a serem transmitidas aos alunos. Somente alguém que mantivesse vivo em seu interior um “grande ideal divino”, poderia exercer a função esperada de “formar homens, formar cristãos”, sendo estes processos apresentados sem qualquer tipo de distinção. Sobre a formação do educador jesuíta, o sacerdote e intelectual católico assim apresentava a orientação da ordem religiosa a que pertencia: “Cumpria infundir no professor a claridade e o calor de um grande ideal para elevar-lhe o magistério à grandeza de uma vocação.” (Franca, 1952, p.93) Várias outras imagens remetendo a um sentido de mistério e espiritualidade que envolveria o ofício de ensinar permeiam ainda as reflexões do padre e educador católico Leonel Franca. Quanto à educadora e defensora do ensino laico Cecília Meireles, pode ser observado, em textos de sua autoria referidos à mesma temática, o recurso a representações bastante semelhantes. Salta aos olhos, inclusive, ao analisarmos suas crônicas, a impressionante multiplicação, variedade e riqueza das figuras com que representou o educador e sua atividade. Ao compor, por meio do manejo habilidoso das palavras, um multifacetado painel de imagens acerca da atividade docente, a poetisa-educadora construiu um duplo contraste. O primeiro deles era definido com base na oposição entre passado e presente. Identificando a atividade dos professores no passado a “uma situação burocrática em que, num automatismo fácil, iam arrastando os alunos através dos vários anos da escola, vertendo-lhes no espírito o que os programas determinavam ser necessário conhecer”, Cecília Meireles marcava, a seguir, a inflexão representada pelo movimento escolanovista: “Subitamente, a situação mudou. Saiu-se desse estado sonolento de rotina. Apregoou-se a ‘escola ativa’ como atitude nova.”(Meireles, Comentário, 24/6/1930) A partir da definição dessa ruptura, a autora estabelecia uma clara polarização entre os dois momentos, aos quais identificava diferentes modos de ser educador, atribuindo-lhes sentidos valorativos evidentes, como se percebe a partir da leitura da seguinte observação inserida em outra de suas crônicas: “Não nos esqueçamos de que estamos vindo de uma época perfeitamente contrária à que se inicia. Está claro, pois, que os que foram julgados bons professores dentro do regime antigo são suspeitos, presentemente.” (Meireles, Comentário, 16/8/1930) Expressando uma abordagem por demais esquemática da problemática educacional de seu tempo, que deve ser compreendida no quadro de radicalização e de disputas então travadas, nas quais se envolveu como militante, Cecília Meireles identificava, desse modo, atitudes próprias aos dois tipos de educadores em questão. Enquanto o perfil dos educadores associados ao passado era definido por imagens de “acomodação”, “preconceito”, ou “desilusão”, aqueles sintonizados com o tempo presente, entendendo-se por esta sintonia a adesão aos ideais da Escola Nova, eram representados com colorações contrastantes em relação aos primeiros. No caso dos últimos, aos quais era conferido relevo nas crônicas da autora, eram caracterizados com a marca da “inquietude”, do “entusiasmo”, do “fervor”, da “flama interior” (8/7/1930) “da claridade da alma” (3/11/1931), da “emoção do infinito e do sagrado” (19/11/1930), imagens que aproximam o sentido da militância à dimensão evidente da espiritualidade. Em reflexão sobre o processo de formação do professor, compreendida como “formação cultural, formação técnica, - mas, acima de tudo, - formação da personalidade, constituição do caráter”, Cecília Meireles ressaltava “o prestígio moral que deste (do professor) irradia”, determinando “a sua possibilidade de conduzir com doçura e entusiasmo as vidas que lhes são entregues.” Preocupando-se com a consecução dessa tarefa, alertava os educadores acerca das atitudes que deveriam cultivar em si: “Professor que não aparece diante de seus alunos com uma auréola de pureza e respeito perenemente luminosa não deve ter a esperança de influir beneficamente no seu destino.” (Meireles, Comentário, 24/8/1930) Por meio dessa imagem, a autora fazia referência a um atributo do educador a que conferia valor. E ainda que o fizesse de um modo extremamente vago, fica claro que o mesmo inscrevia-se na esfera do espiritual, remetendo inclusive a uma idéia de santidade do professor. Tal como seu contemporâneo Leonel Franca, portanto, a autora mostrava conferir preeminência a aspectos dessa natureza na constituição do professor, em relação a outros referentes ao domínio de saberes especializados sobre a educação. Apesar de integrar o movimento escolanovista, no qual a preocupação com a dimensão científica da educação adquiria tanto relevo, Cecília Meireles, ainda que o valorizasse, não conferia um peso tão acentuado a esse aspecto, como o faziam vários de seus pares. A questão é que a sua compreensão sobre o ofício de educar, se revelava a marca da educadora moderna, também se mostrava permeada pela sensibilidade poética.5 Ainda sobre o contraste estabelecido entre o educador do passado e o do presente, a autora, defendendo o último, assim o definia em sua relação com o tempo: “(...) é a criatura construtora de liberdade e progresso harmoniosos, que, vivendo no presente, está sempre investigando o futuro, porque é nesse futuro, povoado de promessas de vida melhor, que o destino de seus discípulos se deverá realizar com toda a plenitude.” (Meireles, Comentário, 1/8/1930). Em outra crônica, defendendo esse mesmo modelo de educador, caracterizado por sua familiaridade com o futuro, a autora representava os indivíduos dotados desse perfil como “semeadores arrojados de um futuro que eles mesmos raramente chegam a conhecer, precursores de épocas sentidas e vividas apenas pela antecipação do sonho (...)” (Meireles, Comentário, 18/10/1930) Se, nessa imagem de superposição entre presente e futuro, a atitude do educador, representada de um modo semelhante à do profeta, era percebida como desejável, Cecília apontava uma outra situação marcada por indistinção de tempos que, ao contrário da anterior, seria revestida de um sentido negativo. Isto se verificaria quando se manifestasse um aprisionamento do educador no passado, produzindo anacronismos simbolizados, por exemplo, pela imagem de “um embalsamador de ideais inadequados” (Meireles, Comentário, 18/10/1930). Essa crítica já nos encaminha para a observação do segundo contraste estabelecido por Cecília Meireles em sua forma de representar a condição de educador: aquele pr meio do qual marcava a diferenciação entre um ideal de educador e a realidade concreta de professores e professoras que efetivamente exerciam o magistério. Nesse caso, a autora também desenvolvia suas reflexões com base em polaridades, compondo um quadro em que são apresentadas, para caracterizar as qualidades do primeiro tipo, imagens de “espírito vivo” (19/8/1930), “intenção fervorosa” (27/11/1931), “devotamento”, “idealismo” e “heroísmo”, impregnadas de acento positivo, contrapostas a outras, negativas. Estas caracterizariam, segundo a autora afirmava com pesar, a atuação de grande parte dos educadores de seu tempo, resistentes às mudanças. Além de mencionar as atitudes observadas em torno do apego ao passado e da acomodação a um “estado sonolento de rotina” (24/6/1930), assinalava com reprovação a situação daqueles que “vêem no cargo de professor um meio honesto, apenas, de ganhar a vida.” Seguindo em sua reflexão, a autora acentuava o tom crítico, ao denunciar: “Há os que até inocentemente o confessam: Ah! ... eu, por mim, o que desejo é receber os vencimentos no fim do mês ...” Ainda na mesma crônica concluía, julgando: “Os que pensam em dinheiro não são dignos, sequer de comentário. Porque o educador verdadeiro deve ser um tipo de renúncia constante: renúncia até em questões mais altas e sutis que essa do ‘pão nosso de cada dia’ ”(Meireles, Comentário, 16/8/1930) Tendo como base essas idéias, pode-se perceber que a educadora estabelecia uma linha divisória rígida entre, de um lado, a idéia exclusiva de profissão, associada à de interesse material, qualificada como inaplicável à função educativa e, de outro, a de vocação, caracterizada como motor apropriado da motivação do mestre e da condução da ação educativa nas bases desejadas. Interessante é que a autora não parece enxergar possibilidades de mediação ou interpenetração entre esses dois terrenos, mais uma vez estabelecendo polaridades. Também mencionada no trecho anterior, a imagem de “renúncia” era construída em aproximação a outras como “devotamento” e “sacrifício”, enfatizando a idéia de destinação, de chamamento a que deveria responder o educador. Deste modo, Cecília Meireles afirmava a centralidade do papel da vocação na ação educativa. Novamente estabelecendo distinção entre a realidade concreta e “aquilo que deveria ser”, apresentava o seguinte parecer sobre nossa situação educacional: “A falta de vocação, no magistério, tem sido uma das causas mais graves do estado de nossas escolas. A vocação é capaz de suprir e remediar tudo: prédios, material, merenda, enfermidades, intempérie...” (Meireles, Comentário, 3/11/1931) Se a educadora expressou, portanto, em seu olhar sobre a atividade docente, essa perspectiva nitidamente impregnada do viés religioso, de missão, pode-se compreender tal abordagem em uma dupla dimensão. Por um lado, pelo fato mesmo de Cecília ter imprimido em sua obra, tanto literária, quanto educativa, um evidente acento de espiritualidade. No que se refere à problemática educacional, ainda que criticasse o ensino religioso de caráter confessional e formalizado por meio de uma disciplina, particularmente no âmbito da escola pública, compreendia que a educação e, em especial a educação moderna não se dissociaria absolutamente de um sentido de religiosidade, ao “falar no espírito imortal da vida, na sua grandeza, e no seu mistério.” (Meireles, 5/5/1931) A marca de missão presente nas formulações da educadora pode ser compreendida, por outro lado, se a percebermos de um modo articulado à sua compreensão da ação política no campo da educação. Considerando que foi uma militante da causa educacional e que essa atividade de intervenção social era então vivida e percebida como de relevância capital, pode-se compreender a aproximação entre o viés religioso e o político.6 . A civilização como missão Se, nas imagens de professor construídas por Leonel Franca e Cecília Meireles, era então ressaltada a dimensão civilizadora da função desse profissional, este era compreendido, no entanto, menos como tal, e mais como guia privilegiado na condução de uma missão salvadora. Embora ambos os educadores, em sintonia com o ambiente intelectual de seu tempo, projetassem um ideal de civilização a atingir, este era construído, no discurso de cada um, com tonalidades claramente distintas. Nesse momento, cabe então a reflexão: o que se projetava como civilização em cada um dos casos? Quanto ao educador jesuíta, este demonstrava que a missão civilizadora a conduzir era a de “salvação das almas”, ação que se propagaria para bem além da esfera individual, contribuindo para a organização da sociedade, de modo que esta encontrasse no principio de hierarquia e de autoridade sua base de inspiração, e na religião católica seu fator de identidade. Segundo afirmava o sacerdote, “a educação interior das almas é a condição indispensável da organização externa da sociedade.” (Franca, 1953, p. 25). Em outra passagem destacava, como conseqüência de uma “boa educação”, “o bem da família, a conservação do Estado, a própria salvação do mundo.” (Franca, 1952, p.94) Já para a educadora e poetisa Cecília Meireles, o ideal a atingir seria o de “salvar a criança”, garantindo “a liberdade integral que cada vida merecer.” (6/2/32) Segundo sua concepção, fortemente apoiada na valorização da infância7, aquela seria uma tarefa essencial para a construção da civilização. A relevância que conferia a essa missão pode ser aferida a partir da leitura do seguinte comentário: “Não é mesquinho nem triste morrer a serviço da infância, porque é trocar uma vida por inúmeras, e abdicar da sua pequena felicidade pessoal pela esperança de uma felicidade unânime.” (Meireles, Comentário, 30/7/1930) Se, no caso da missão religiosa que o Padre Franca representava, seria indicada “a renúncia individual a determinados direitos e a transferência desses direitos (...) a uma autoridade suprema” (Figueiredo, 1992, p.62), no caso da missão “pregada” pela educadora, também se expressava a idéia de renúncia a direitos, chegando a mesma a mencionar – ainda que simbolicamente ... – a renúncia ao direito à vida, ou ao “direito de se pertencer”. (Meireles, Comentário, 1/10/1930) Em lugar de uma autoridade externa e que, no primeiro caso, estaria depositada na Igreja Católica, na perspectiva de Cecília, a autoridade que garantiria o cumprimento da missão deveria residir na própria consciência do educador acerca da vida e da condição humana. Atributo essencial dos educadores vistos com um “quê” de poetas, essa consciência deveria conduzir ao estabelecimento de um “compromisso de honra”, marca que, segundo Cecília, deveria estar presente em todos os envolvidos no movimento de renovação educacional.8 Muito enfatizado pela educadora, esse compromisso, integrado à vocação onipotente dos educadores, parecia ser responsável pela resolução dos problemas educacionais. Esse tipo de crença salvacionista manifestava-se em muitos de seus textos – talvez na maior parte deles -, aproximando-a, portanto, de um jesuíta como Padre Franca, mas também de muitos outros intelectuais de seu tempo, em sua forma de compreender a ação no campo da educação e a ação política de maneira geral. 9 Em outros de seus textos, no entanto, abordava a mesma questão com nuances interessantes que merecem nossa observação. Neles, expressando com maior nitidez sua face de poeta, ao valorizar “uma razão mais inteligente e mais além da nossa inteligência”, enfatizava que a obra da educação deveria estar em sintonia com um aspecto da condição humana “onde tudo é feito de incertezas, embora sem incredulidades, e onde as melhores coisas são as que se realizam por um desenlace aparentemente casual, sem intuito, sem premeditação, sem vontade, sem fim lógico (...)” (Meireles, Correspondência para F. de Azevedo, 15/11/1933) Se a própria escritora mostrava, em um de seus escritos, acreditar que “as verdades também morrem” (Meireles, Comentário, 8/3/1931), pode-se refletir sobre sua compreensão acerca da atividade educativa a partir de um ângulo de visão mais ampliado, percebendo, assim, doses de certeza misturando-se com doses de incerteza. Tal dinâmica, que nos remeteria à reflexão sobre a questão da relação teoria/prática, tão importante para o campo da educação, pode nos auxiliar a relativizar a perspectiva missionária que é observada nas formulações de Cecília. Deste modo, pode-se compreender que, se, de um lado, Cecília construía uma utopia de salvação da infância e, por projeção, da humanidade – também neste ponto aproximando-se de Padre Franca -, o que se daria pela ação civilizadora do educador, o processo de construção do ideal desejado mostrava-se bem mais complexo e tortuoso e, no limite, impossível, como bem sabia a educadora. Ao considerar a realidade dos professores e professoras em seu dia-a-dia da sala de aula – e Cecília viveu ela própria esse cotidiano -, observava que tal experiência seria feita muito mais de incertezas que de certezas. E, segundo sua própria visão, não poderia mesmo ser de outro modo, já que a vida, matéria essencial da educação, seria “um território vulcânico”, e, por isso, caberia ao educador desenvolver “uma sensibilidade especial do transitório, do imperfeito, do instável, do perecível.” (Meireles, Comentário, 28/8/1932) 1 Cf., sobre o tema, Pécaut, 1990 e Herschmann e Pereira, 1994. Essas crônicas foram publicadas numa seção intitulada “Comentário”, entre junho de 1930 e janeiro de 1933. 3 Cf., entre outros importantes trabalhos, Carvalho, 1994. 4 Em vários textos produzidos no âmbito da hierarquia eclesiástica, como encíclicas, eram feitas referências ao papel das diferentes instituições na educação, ressaltando-se nesse quadro o lugar destacado da Igreja. Pio XI, por exemplo, afirmava “o primado da missão educadora da Igreja e da família.” Cf. Encíclica Divini Illius Magistri, 1962, p. 17. 5 Cf. Konder, 2001. 6 Essa tendência missionária representou uma marca característica do ambiente intelectual e político das décadas de 1920/30, mas não apenas desse tempo. Em vários outros contextos de nossa história contemporânea, pode ser observada a expressão de tendências dotadas desse viés. Cf., p. ex. Pécaut, 1990. 7 Cf. Magaldi, 2002. 8 Cf. Idem, 2003. 9 Cf., sobre a marca salvacionista presente no campo da educação, Lopes, 1998. 2 Referências bibliográficas . CARVALHO, Marta Chagas de.(1994). “Uso do impresso nas estratégias católicas de conformação do campo doutrinário da pedagogia (1931-1935)” in Cadernos ANPED. Belo Horizonte, n. 7. . CHARTIER, Roger (1990). A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. . ELIAS, Norbert. (1994) O processo civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, (2v.). . FIGUEIREDO, Cláudio(1992). A invenção do psicológico: quatro séculos de subjetivação; 1500-1900. São Paulo: Educ/Escuta. . 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