Cem anos, cem imagens
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“ Estou sempre pela primeira vez em todos os lugares”
Exposição, comemorativa do centenário do nascimento de Miguel
Torga, na Escola Secundária Filipa de Vilhena.
Miguel Torga
Textos de Miguel Torga
Fotos de Ana Campos
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Cem anos, cem imagens
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S. Martinho de Anta, 29 de Outubro de 1955 – O solar da família,
térreo, de telha vã, encimado pelo seu brasão de armas esquartelado, com
enxadões em todos os campos... Foi desta realidade que parti, e é a esta
realidade que regresso sempre, por mais voltas que dê nos caminhos da
vida. É uma certeza de marco com testemunhas, que nunca me deixa
desorientado quando quero avivar as estremas da alma. Basta escavar um
pouco a crosta da aparência, e aí estou eu na matriz, confrontado.
(...)
Diário VIII
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S. Martinho de Anta, 26 de Abril de 1954.
A UM NEGRILHO
Na terra onde nasci há um só poeta.
Os meus versos são folhas dos seus ramos.
Quando chego de longe e conversamos,
É ele que me revela o mundo visitado.
Desce a noite do céu, ergue-se a madrugada,
E a luz do sol aceso ou apagado
É nos seus olhos que se vê pousada.
Esse poeta és tu, mestre da inquietação
Serena!
Tu, imortal avena
Que harmonizas o vento e adormeces o imenso
Redil de estrelas ao luar maninho.
Tu, gigante a sonhar, bosque suspenso
Onde os pássaros e o tempo fazem ninho!
Diário VII
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Cem anos, cem imagens
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( O Porto )
A velha e livre cidade do Porto (...) é muito velha no meu sangue e
na minha consciência. Quanto em mim é instinto e compreensão, sabe de
há muito que os valores autênticos da vida têm de ser sólidos como a
Praça da Liberdade e altos como a Torre dos Clérigos.
Em suor, que foi como os meus avós almocreves mo revelaram,
numa caminhada semanal que metia caldo de abóbora em Valongo e
lobos no resto do caminho, ou em semente do nome deste nosso Portugal,
que assim mo explicou o senhor Botelho numa escola onde se aprendiam
coisas que tinham sentido, o meu primeiro Porto é nebuloso e distante.
Com os anos, essa primeira descoberta que dele fiz no cansaço
dos meus maiores e nas lições do meu professor, alargou-se. E um Porto
já de carne e osso, complexo como todas as realidades, entrou-me na
candura dos dez anos. O Porto real e maravilhoso era uma soma de
trabalho e sonho.
In Portugal (texto adaptado)
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( Coimbra )
(...) Coimbra é uma linda cidade, cheia de significação nacional.
Bem talhada, vistosa, favoravelmente colocada entre Lisboa e o
Porto, a primeira, marítima, a segunda, telúrica, uma a puxar para
fora e outra a puxar para dentro, ela representa uma neutralidade
vigilante, fazendo a osmose do espírito que parte com o corpo que
fica. Do espírito que vai, ou deve ir, a todas as aventuras do
mundo, e do corpo que tem raízes imutáveis no chão nativo.
(...)
In Portugal
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Coimbra, 25 de Julho de 1942 – Aqui estou no consultório, sentado, à
espera do primeiro infeliz que precise de mim e compre a minha mão de
cera sobre as suas feridas por trinta escudos. Sofro com esta certeza –
porque, na verdade, a própria ideia geral do mercenato me repugnou
sempre – mas não há dúvida nenhuma que se alguém bater à porta paga
a consulta.
(...)
Diário II
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( O Doiro )
Começa em Miranda e acaba na Foz, este calvário. Começa em pedra
e água, e acaba em pedra e água. Como nos pesadelos, não há nenhum
intervalo para descansar. Entra-se e sai-se do transe em plena angústia.
(...)
In Portugal
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(...)
Duas vezes por semana, transformado em recoveiro, ia de comboio a
Leça levar cestos de fruta e de hortaliça que chegavam da quinta que o
doutor tinha no Doiro. E pude ver o mar pela primeira vez.
Não correspondeu em nada à minha ideia. O grande lago que
imaginara, era uma ilusão de água choca ao lado daquela imensa
realidade viva, pulsátil, indomável, que espumava de raiva a bater contra
as penedias.
(...)
In A Criação do Mundo ( O Primeiro Dia)
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Cem anos, cem imagens
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Leiria, 7 de Julho de 1939.
ACENO
Longe,
Seu coração bate por mim;
E a sua mão desenha aquele afago
Que me sossega inteiro...
Longe,
A verdade serena do seu rosto
É que faz este dia verdadeiro...
Diário I
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Lavadores, 17 de Julho de 1945.
PERGUNTA
Duna que o vento ergueu, monte de vento,
Onde tudo que nasce é movediço:
Versos aqui?, ou sigo o movimento,
E sou mais uma areia ao teu serviço?
Duna em que sou arado
À procura da terra da firmeza:
Versos aqui?, ou vou melhor calado,
Cheio de desespero e de certeza?
Diário III
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Gerês, Pedra Bela, 20 de Agosto de 1942.
PÁTRIA
Serra!
E qualquer coisa dentro de mim se acalma...
Qualquer coisa profunda e dolorida,
Traída,
Feita de terra
E alma.
Uma paz de falcão na sua altura
A medir as fronteiras:
- Sob a garra dos pés a fraga dura,
E o bico a picar estrelas verdadeiras...
Diário II
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Leiria, 30 de Agosto de 1939 – Longo passeio pelas margens do Lis.
Num banco tosco, sentados, três chineses a falar chinês. Apesar de já ter
ouvido com indiferença várias e desvairadas línguas por este mundo de
Deus, hoje cheguei-me perto deles e fiquei-me a escutá-los maravilhado.
Um dia havia de ser, eu reparar na diferença que há entre ser branco e
amarelo. Na diferença que faz aprender a dizer mãe sobre uma fraga do
Marão, ou aprender a dizer mãe sobre um junco do Tsé-Kiang.
Diário I
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Coimbra, 12 de Abril de 1943.
PEDIDO
Ama-me sempre, como à flor do lírio
Bravo e sozinho, a quem a gente quer
Mesmo já seco na recordação.
Ama-me sempre, cheia da certeza
De que, lírio que sou da natureza,
Na minha altura eu brotarei do chão.
Diário II
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Porto, 19 de Dezembro de 1943 – Cá ando a arrastar os sapatos
nestas calçadas graníticas.
(...)
Diário III
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( Trás-os-Montes )
(...) Nas margens de um rio de oiro, crucificado entre o calor do céu que
de cima o bebe e a sede do leito que de baixo o seca, erguem-se os
muros do milagre. Em íngremes socalcos, varandins que nenhum palácio
aveza, crescem as cepas como os manjericos às janelas.
(...)
In Portugal
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Lisboa, 3 de Maio de 1944 – Uma visita demorada e paciente a esta
velha amante do Tejo, lavada e pretensiosa por fora, e suja e modesta por
dentro. Bonita toda ela do sol natural que a doira, temperada num clima
doce de mar que a bafeja, quando a gente a começa a ver dos altos é
realmente como um corpo alvo que se espreguiça no leito, e de braços
estendidos tateia à volta.
(...)
Diário III
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Cem anos, cem imagens
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Gerês, 1 de Agosto de 1950.
A UM RIBEIRO INQUIETO
Canta,
Masculina sereia, com garganta
De pedra!
Abre um leque de som neste silêncio
De pesadelos...
Corta os negros cabelos
Da montanha,
E atrai a noite à perdição sonora
Do teu leito...
O poema imperfeito
E a solidão pesada
Sabem que a madrugada
Corre na voz molhada do teu peito!
Diário V
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S. Martinho de Anta, 15 de Agosto de 1955 – Cá vim à festa da
Senhora da Azinheira. Larguei do Gerês com dois amigos por terras da
Cabreira e de Basto, atravessámos o Tâmega e o planalto do Alvão,
descemos o vale de Vila Pouca, subimos de novo, chegámos, ergui o
velho da cama, meti-o no carro, e aqui estamos todos no adro da ermida,
à sombra dum negrilho, a olhar os horizontes e a ouvir um sermão.
(...)
Diário VII
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S. Martinho de Anta, Natal de 1951.
REGRESSO
Regresso às fragas de onde me roubaram.
Ah! minha serra, minha dura infância!
Como os rijos carvalhos me acenaram,
Mal eu surgi, cansado, na distância!
Cantava cada fonte à sua porta:
O poeta voltou!
Atrás ia ficando a terra morta
Dos versos que o desterro esfarelou.
Depois o céu abriu-se num sorriso,
E eu deitei-me no colo dos penedos
A contar aventuras e segredos
Aos deuses do meu velho paraíso.
Diário VI
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Leiria, 26 de Agosto de 1939 – (...)
A Sé, a botica do Carlos, a rua da Misericórdia, a casa da Sanjoaneira.
Grande Eça! Arrancar desta terra um tal romance, parece obra dum deus.
Diário I
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Coimbra, 13 de Abril de 1943 – Posso então sair amanhã?
- Pode. Um pequeno passeio, a experimentar.
- Não. Se ponho os pés na rua, vou direita à Rainha Santa pagar
a promessa que lhe fiz.
- Ah! fez-lhe uma promessa?
- Então a quem é que me havia de apegar, na aflição em que me
vi?
- Evidentemente...
E desci as escadas atordoado, já sem saber se fora eu que
curara aquela criatura da sua labirintite, ou se teria sido, de facto, a mulher
de D. Dinis.
Diário II
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Porto, 12 de Março de 1949 – Este Porto dá-me segurança! Depois
das fragas da minha terra, é nele que me sinto mais protegido e livre. Em
Lisboa ronda-me sempre o pressentimento de qualquer perigo iminente,
que não sei se vem do Terreiro do Paço, se da Avenida da Liberdade.
Aqui, pelo contrário, caminho de coração tranquilo.
(...)
Diário IV
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Leiria, 15 de Novembro de 1939.
SINA
O dia amanheceu feliz.
Queria subir aos montes,
Queria beber nas fontes,
Queria perder-se nos largos horizontes...
Mas a vida não quis.
Diário I
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Gerês, 11 de Agosto de 1952.
LAMENTO
Porque paira tão alto o teu desdém,
Deus das velhas montanhas de granito?
Rasgo a carne a subir aonde o meu grito
Te diga a solidão que me devora,
E quando aí chego a rastejar, contrito,
É mais acima que o mistério mora!
Diário VI
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Coimbra, 14 de Outubro de 1947.
ENIGMA
Que lei rege o poeta, ninguém sabe;
Que arcanjo o vela, também não.
Um poeta não cabe
Na sina que se lê na sua mão.
Diário IV
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Salamonde, 27 de Agosto de 1952 – A maior parte do dia passado
aqui, nas mãos dos técnicos, a visitar os trabalhos subterrâneos da
barragem. (...)
Os rios do passado, à solta, davam lirismo. Estes do Minho, então,
tiveram fama. Agora, represados, dão energia eléctrica. E acho bem. Mas
a água que fica assim empanturrada na sua albufeira, à espera, e corre
depois, condicionada, pelo seu cano de esgoto em direcção a nova
represa, simboliza-me um presente sem ilusões e um futuro sem versos.
(...)
Diário VI
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S. Martinho de Anta, 13 de Abril de 1965.
A PALAVRA
Falo da natureza.
E nas minhas palavras vou sentindo
A dureza das pedras,
A frescura das fontes,
O perfume das flores.
Digo, e tenho na voz
O mistério das coisas nomeadas.
Nem preciso de as ver.
Tanto as olhei,
Interroguei,
Analisei
E referi, outrora,
Que nos próprios sinais com que as marquei,
As reconheço, agora.
Diário X
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Cem anos, cem imagens
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Gerês, 8 de Setembro de 1954.
DESTINO
Começa um rio numa gota de água.
O sonho é que avoluma o corpo da nascente.
Fonte:
Tão delicada, e hás-de ser torrente
A saltar fragas e a rasgar o monte.
Diário VII
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( Lisboa )
Lisboa é bonita. Está ainda por nascer o primeiro insensível que no alto
de Santa Catarina não arregale os olhos de espanto diante da formosura
dum panorama que a natureza se não gaba de ter repetido. Entre a
investida castelhana do Doiro, em cima, e o esquivo namoro andaluz do
Guadiana, em baixo, Portugal merecia a visita calma e demorada dum
grande curso de água, que sem a ajuda de noras lhe matasse a sede e,
sem leixões, fosse um porto de abrigo. (...) Quis a sorte que assim fosse e
o Tejo abrisse no calcário estremenho um estuário largo e majestoso,
fundo e aconchegado que, depois de magoar os montes, os transformasse
em miradoiros de sonho. E de cada colina onde a gente se debruça é um
pasmo sem limitações que abrange o céu e a terra na mesma agradecida
emoção.
(...)
In Portugal
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Ordonho, 2 de Outubro de 1961 – Moeu-me a paciência! Trinta anos,
bem medidos, de tenacidade! Cheguei quase a desanimar. Vinha, olhava,
tornava a olhar, e nada. Alcandorado no seu trono de penedos e nuvens,
com o Douro ajoelhado aos pés e o céu a servir-lhe de resplendor, o Santo
furtava-se ao retrato poético, de qualquer ângulo que eu apontasse a
objectiva. Hoje, porém, de repente, entre duas perdizes, não sei por que
carga de água, abriu o rosto e foi ele mesmo que me propôs o
instantâneo.
- Mostre lá então as habilidades ... – pareceu-me ouvi-lo dizer.
Nem escolhi enquadramento. Antes que se arrependesse,
travei a espingarda e disparei a imaginação ao calhar, do sítio onde
estava.
(...)
Diário IX
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S. Martinho de Anta, 1 de Maio de 1975 – Instalado no pátio, vou
lavrando prosa. O ar cheira a pólen, a azálea amarela florida é um sol
vegetal, o ninho de melro ainda fumega da procriação, a primavera estala
por todas as costuras da vida. (...) E paro de escrever. A laboriosa página
que me saia da pena mete dó ao lado da página aberta do universo.
(...)
Diário XII
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Texto de ligação
S. Martinho de Anta, 9 de Setembro de 1989 – Vou e venho. Percome por lá e encontro-me aqui.
Diário XV
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Leiria, 10 de Abril de 1940.
VISITA
Fui ver o mar.
Homem de pólo a pólo, vou
De vez em quando olhá-lo, enraizar
Em água este Marão que sou.
Da penedia triste
Pus-me a olhar aquele fundo
Dentro do qual existe
O coração do mundo.
E vi, horas a fio,
A sua angústia ser
Uma espécie de rio
Que não sabe correr.
Diário I
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( Trás-os-Montes)
(...)
Um mundo! Um nunca acabar de terra grossa, fragosa, bravia, que
tanto se levanta a pino num ímpeto de subir ao céu, como se afunda nuns
abismos de angústia, não se sabe por que telúrica contrição.
(...)
In Portugal
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Miramar, 21 de Agosto de 1956 – (...) Sei muito bem que as férias são
interregnos do equilíbrio humano, ou intervalos que o favorecem, e
também não ignoro que o mar lava tudo, até certas nódoas teimosas do
pensamento. Infelizmente, comigo as coisas passam-se sempre ao
contrário. Em vez de descansar como a outra gente, de esquecer e dormir,
revolvo-me de inquietação, sem encontrar pé na ambiguidade dum meio
onde o impudor finge que tem moral, e a moral finge que não tem pudor.
Diário VIII
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Cem anos, cem imagens
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Coimbra, 5 de Abril de 1948 – Creio que não é preciso. Em todo o
caso, fica aqui a declaração.
O que eu fui sempre, o que eu sou, e o que serei, é um artista, um
homem e um revolucionário. Na medida em que sou artista, quero um
mundo onde a beleza seja o vértice da pirâmide. Na medida em que sou
homem, quero que nesse mundo os indivíduos sejam livres e conscientes.
E na medida em que sou revolucionário, quero que a revolução traga à
tona as grandes massas, e que nunca acabe de percorrer o seu caminho
perpétuo, sem estratificações e sem dogmas.
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Gerês, 17 de Agosto de 1958 – Sou , na verdade, um geófago
insaciável, necessitado diariamente de alguns quilómetros de nutrição.
Devoro planícies como se engolisse bolachas de água e sal, e atiro-me às
serranias como à broa da infância. É fisiológico, isto. Comer terra é uma
prática velha do homem. Antes que ela o mastigue, vai-a mastigando ele.
(...)
Diário VIII
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Cem anos, cem imagens
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Coimbra, 15 de Novembro de 1948.
TERMO DE RESPONSABILIDADE
Tudo,
Menos deixar uma incerteza
No caminho.
Quem vier nesta mesma direcção,
Veja as passadas dos meus pés,
E siga.
Saiba por elas que não foi traído,
Mesmo se me encontrar adormecido
De morte natural ou de fadiga.
Diário IV
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Negrões, Barroso, 28 de Maio de 1955 – Por mais que tente, não
consigo reduzir estas vidas de planalto a uma escala de valores comuns.
(...)
Talvez seja a própria pobreza do meio que, despedindo-os de todo o
acessório, lhes evidencie a essência. E a nossa perturbação diante deles
seria a perplexidade de pobres Adões cobertos de folhas diante de irmãos
que permaneceram nus.
Diário VII
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Cem anos, cem imagens
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Porto, 14 de Novembro de 1957 – Cá está o mundo, outra vez. E é
bonito, o grande malandro! Tem sol, tem flores, tem barulho, e não cheira
a remédios, ainda por cima. Dá-nos picadelas também, evidentemente,
mas não são de morfina. São ferroadas de vida, de amor. Ou parecemme...
Diário VIII
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Cem anos, cem imagens
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Linha do Douro, 14 de Março de 1949 – Entre a arte e a realidade há
sempre um abismo sem nenhuma ponte. Do lado de cá, um mundo com
mil versões, ameno mesmo quando as palavras são punhais, as tintas
relâmpagos, os sons gritos de desespero. Do lado de lá, uma presença
sem retórica, de uma só face, inflexível e permanente. Os barcos rabelos
dos cartazes não são os mesmos que descem este rio de soluços. A
espadela, neles, é um traço azul e fugidio. E a verdadeira é uma trave de
carvalho onde as mãos criam cascos. Feita para divertir, mesmo quando
faz chorar de piedade e fremir de revolta, a arte é sempre a versão doirada
do que se vê
(...).
Diário IV
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Cem anos, cem imagens
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S. Martinho de Anta, 25 de Dezembro de 1976 – A velha escola do
senhor Botelho finalmente reconstruída e actualizada. Mais sol, mais
higiene, menos gramática e menos palmatoadas. Mas faltavam no terreiro
à volta as mimosas da minha meninice. E passei a tarde de ferro e pá na
mão a plantá-las. Não estarei cá para as ver crescidas como as de
outrora. Deixá-lo. O meu propósito não era reflorir o passado, mas florir o
futuro.
Diário XII
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Cem anos, cem imagens
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Paradela do Rio, 1 de Julho de 1956 – Estes tempos de barragens
são uma verdadeira era nova do mundo. Qualquer dia, na escola, o mestre
aponta o mapa e diz:
- Antes do período albufeirozóico, aqui era o Barroso.
Diário VIII
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Cem anos, cem imagens
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Lisboa, 22 de Outubro de 1965 – É uma dor de alma ver uma terra
bonita como esta a servir de cenário a tanta coisa feia.
Diário X
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S. Pedro de Moel, 23 de Maio de 1949
TENTAÇÃO
Mar,
Sepultura sonora:
Era em ti, a boiar,
Que eu gostaria de dormir agora.
Diário V
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Foz, 2 de Abril de 1950 – Numa saudade dos longes da infância e dos
adultos longes da imaginação, fui hoje a Leixões visitar um transatlântico.
E, ao percorrê-lo, cheguei à conclusão de que comecei bem a vida, mas
que a acabo mal. Aos doze anos a descobrir mundos, e aos quarenta a
ver navios!
Diário V
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Cem anos, cem imagens
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Coimbra, 15 de Junho de 1965 – Vi as coisas. O que não sei é se
teria visto a alma das coisas.
Diário X
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Cem anos, cem imagens
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S. Martinho de Anta, 25 de Setembro de 1985.
DISPERSÃO
Perco-me na paisagem,
Planáltico, também,
E, como ela, aberto aos largos horizontes.
Deambulo, parado,
A ouvir, alheado,
O silêncio das fragas
E a música do vento.
Deixo que o pensamento
Não tenha direcção
E seja apenas uma ondulação
A mais
Da natureza.
E canto, sem cantar,
Versos incertos, na incerteza
De mais tarde os lembrar.
Diário XIV
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Cem anos, cem imagens
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Texto de ligação
S. Martinho de Anta, 23 de Dezembro de 1968 – Insisto: S. Martinho
de Anta não é um lugar onde, mas um lugar de onde...
Diário XI
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Cem anos, cem imagens
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Caldas da Rainha, 7 de Setembro de 1939 – Óbidos. A quinta humana
mais bem cercada que a Idade Média nos deixou.
Diário I
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Cem anos, cem imagens
Cem anos, cem imagens
Leiria, 12 de Maio de 1940.
CANÇÃO DA PURA HUMILDADE
Fio de água,
Vou por tojos e urgueiras
A cantar esta mágoa,
Sabendo que há mais água e mais maneiras.
Vou sem nenhuma inveja.
Apenas peço ao céu
Que, espelhando-se em mim, me veja,
Porque afinal sou eu.
Diário I
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Cem anos, cem imagens
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Pinhão, 1 de Janeiro de 1964 – O meio. É ele, realmente, o grande
actor na tragédia da vida. Põe e tira, parte e reparte. Dono e senhor,
semeia antes da mão do homem. Mas sempre que o vencidismo nacional,
lá por baixo, mo inculca como único culpado de todas as nossas
mediocridades económicas, artísticas, científicas e outras, perco a cabeça.
Apetece-me arrastar os fatalistas aqui ao Doiro, e meter-lhes estes
socalcos pela boca dentro. Sim, a natureza foi avara connosco, e é difícil
transformar em searas de trigo fragões de granito ou de xisto. Isso, porém,
não é razão para lhes acrescentarmos a nossa esterilidade. Há gente cá
na pátria que, em vez de cobrir de desânimo e renúncia as lajes onde
nasceu, faz delas a peanha duma vontade fecunda.
Diário X
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Cem anos, cem imagens
S. Martinho de Anta, 15 de Setembro de 1987 – Tantas páginas e
tantos poemas que aqui tenho escrito, e morro na convicção de que nada
disse de significativo da minha ligação à terra onde nasci e de onde nunca
verdadeiramente saí. Tudo o que fui lá longe, apenas serviu para me
afundar mais as raízes. E é da seiva que elas sugaram e sugam no húmus
original que não sei falar.
(...)
Diário XV
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Cem anos, cem imagens
S. Leonardo de Galafura
À proa dum navio de penedos,
A navegar num doce mar de mosto,
Capitão no seu posto
De comando,
S. Leonardo vai sulcando
As ondas
Da eternidade,
Sem pressa de chegar ao seu destino.
Ancorado e feliz no cais humano,
É num antecipado desengano
Que ruma em direcção ao cais divino.
Lá não terá socalcos
Nem vinhedos
Na menina dos olhos deslumbrados;
Doiros desaguados
Serão charcos de luz
Envelhecida;
Rasos, todos os montes
Deixarão prolongar os horizontes
Até onde se extinga a cor da vida.
Por isso, é devagar que se aproxima
Da bem-aventurança.
É lentamente que o rabelo avança
Debaixo dos seus pés de marinheiro.
E cada hora a mais que gasta no caminho
É um sorvo a mais de cheiro
A terra e a rosmaninho!
Ordonho, 2 de Outubro de 1961
Diário IX
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Cem anos, cem imagens
Cem anos, cem imagens
Coimbra, 1 de Novembro de 1983.
MEMÓRIA
De todos os cilícios, um, apenas,
Me foi grato sofrer:
Cinquenta anos de desassossego
A ver correr,
Serenas,
As águas do Mondego.
Diário XIV
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Cem anos, cem imagens
Cem anos, cem imagens
Miramar, 14 de Setembro de 1957.
PRAIA
Nem mar, nem terra – a estrema que os separa.
Esta orla de areia
Onde, feliz, passeia,
Só vestida de sol,
A nudez dos humanos.
Um limbo de brancura e alegria.
O tempo sem poder fazer seus danos,
E nenhum rasto ao fim de cada dia.
Diário VIII
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Cem anos, cem imagens
Cem anos, cem imagens
Lisboa, 26 de Fevereiro de 1968 – Só venho a esta terra por causa
do corpo. Mas o espírito aproveita sempre. Espreita aqui, espreita ali, vai
enchendo os alforges. Apenas de luz natural, infelizmente, que, da outra,
nem sombras.
(...)
Diário X
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Cem anos, cem imagens
Cem anos, cem imagens
Linha do Douro, 13 de Março de 1949.
BIOGRAFIA
Temos todos um rio na lembrança,
E alguns é um rio inteiro a sua vida.
Um rio que não seca e não descansa,
E é uma força perdida
Entre montanhas de desconfiança.
Diário IV
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Cem anos, cem imagens
Cem anos, cem imagens
Gerês, 26 de Agosto de 1958
(...)
Meti a direito pelos fraguedos, e foi até o corpo dizer basta.
Gargantas temerosas que engolem o tempo e o silêncio, e que o vento –
respiração da natureza – atravessa a uivar, ribeiros que se despenham
nos abismos num ímpeto lírico e suicida, lagoas límpidas e secretas onde
ninguém lava a impureza.
(...)
Diário VIII
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Cem anos, cem imagens
Cem anos, cem imagens
Lisboa, Encosta da Ajuda, 3 de Julho de 1972.
TEJO
É um lento e majestoso
Caudal de claridade
Que corre no teu leito,
Rio perfeito
Como o dia a passar,
Largo, sereno, aberto,
Logo à partida, certo
De chegar...
Diário XI
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Cem anos, cem imagens
Cem anos, cem imagens
S. Martinho de Anta, 17 de Setembro de 1987.
IDENTIFICAÇÃO
Desta terra sou feito.
Fragas são os meus ossos,
Húmus a minha carne.
Tenho rugas na alma
E correm-me nas veias
Rios impetuosos.
Dou poemas agrestes,
E fico também longe
No mapa da nação.
Longe e fora de mão...
Diário XV
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Cem anos, cem imagens
Cem anos, cem imagens
Panóias, 23 de Dezembro de 1963 – Soletro com a devoção que
posso a linguagem religiosa dos nossos avós, gravada nestas fragas
sagradas que a descrença beata do presente pisa sem qualquer
estremecimento.
(...)
Diário X
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Cem anos, cem imagens
Cem anos, cem imagens
Miramar, 12 de Agosto de 1967 – Sessenta anos. Felizmente que
ninguém deu pela conta, e pude calmamente, secretamente, meditar na
significação deste dia crucial. Até há pouco, ia contando. Trinta, quarenta,
cinquenta... Não era a juventude, evidentemente, mas havia ainda pano
para mangas. Mais vinte, mais quinze... Tempo de sobra, enfim. Agora é
que toda a ilusão se desvaneceu. (...) Vamos seguindo confiados pela
estrada fora. De repente, olhamos para trás, e que terramoto de ilusões! O
que parecia grande mede um palmo, o que julgávamos sólido abana, o
que dava a impressão de voar, patinha. Incrédulos, esfregamos os olhos.
Mas não há dúvida. Desacertos sobre desacertos, erros palmares,
ingenuidades confrangedoras. O saco de viagem abarrotado de falências.
E de nada vale perguntar se as coisas se poderiam passar de outra
maneira. Os factos são irreversíveis.
(...)
Diário X
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Cem anos, cem imagens
Cem anos, cem imagens
Gerês, 27 de Agosto de 1958.
PRENÚNCIO
Na tarde calma, ondula
A invisível ramagem dum poema.
Uma secreta brisa,
Que apenas se adivinha,
Percorre o mundo íntimo das coisas
E acorda em sobressalto
As folhas do silêncio.
Falta ainda o poeta...
Mas a evidência
Da sua voz
É como a luz do sol quando amanhece:
De tão branca, parece
Que descora a ilusão da madrugada...
Antes ele não viesse,
E em cada solidão se mantivesse
Esta bruma de música sonhada.
Diário VIII
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Cem anos, cem imagens
Cem anos, cem imagens
Coimbra, 9 de Novembro de 1984 – Sábios. Lá estive parte da noite
no meio deles, a ouvi-los como que de castigo. Minerva é só meia irmã
das Musas. Nunca ensinou a nenhum dos filhos que o fulgor de um verso
pode valer por mil silogismos. Que há um espírito criador rebelde às peias
da razão, a mais presunçosa e a menos fecunda das nossas faculdades. É
que nem tem o dom de imaginar, nem a coragem de transgredir.
Diário XIV
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Cem anos, cem imagens
Cem anos, cem imagens
Chaves, 6 de Setembro de 1981 – Uma tarde de outono como só
aqui. Renques de cedros recortados no horizonte lívido, o verde carregado
dos amieiros a dar profundidade às águas represadas do rio, uma
temperatura branda, de banho-maria. Sonâmbula na encosta, a cidade,
com a sua profusão de antenas suspensas no céu vazio, parece em
comunicação telepática com a realidade.
(...)
Diário XIII
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Cem anos, cem imagens
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S. Pedro de Moel, 20 de Agosto de 1985 – O mar. A matéria prima
inesgotável de que somos milionários, que tantos nos invejam, que se nos
oferece disponível e prestável à necessidade e à imaginação, que com
tanta naturalidade e génio soubemos utilizar, que foi a nossa obsessão e
fez a nossa glória, e de que agora apenas nos lembramos raquiticamente
de ano a ano.
Diário XIV
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Cem anos, cem imagens
Cem anos, cem imagens
Nazaré, 17 de Agosto de 1969 – Encho os olhos de azul antes do
regresso, como um camelo que vai atravessar um deserto incolor. O
incolor deserto quotidiano...
Diário XI
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Cem anos, cem imagens
Cem anos, cem imagens
S. Leonardo de Galafura, 8 de Abril de 1977 – O Doiro sublimado. O
prodígio de uma paisagem que deixa de o ser à força de se desmedir. Não
é um panorama que os olhos contemplam: é um excesso da natureza.
Socalcos que são passadas de homens titânicos a subir as encostas,
volumes, cores e modulações que nenhum escultor, pintor ou músico
podem traduzir, horizontes dilatados para além dos limites plausíveis da
visão. Um universo virginal, como se tivesse acabado de nascer, e já
eterno pela harmonia, pela serenidade, pelo silêncio que nem o rio se
atreve a quebrar, ora a sumir-se furtivo por detrás dos montes, ora
pasmado lá no fundo a reflectir o seu próprio assombro. Um poema
geológico. A beleza absoluta.
Diário XII
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Cem anos, cem imagens
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Texto de ligação
Castro Laboreiro, 22 de Setembro de 1949 – Deve-se encher os
olhos da mesma paisagem tantas vezes quantas forem necessárias para
que ela seja dentro de nós um cenário quotidiano. (...)
Diário V
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Cem anos, cem imagens
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Miramar, 11 de Setembro de 1958 – São corajosos os deuses que se
instalam à beira-mar. Em vez de passivos rendeiros da fé, conquistam-na
hora a hora. Aqui há um Senhor da Pedra batido pelas vagas, que visito
respeitosamente de vez em quando por isso mesmo. (...)
Diário VIII
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Cem anos, cem imagens
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S. Martinho de Anta, 21 de Setembro de 1984 – A ciência
arqueológica resolveu escavar uma das muitas mamoas que enxameiam a
serra, monumentos megalíticos que a nimbam de mistério e desde rapaz
venero como sacrários de uma ancestralidade a que sou fiel, preservada
na memória arcaica e lembrada no próprio topónimo deste berço em que
nasci. (O Portugal de que sempre me orgulhei não é o da versão oficial.
Começa precisamente nestas dolménicas paragens e não se compreende
a revolver metodicamente o chão).
(...)
Diário XIV
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Cem anos, cem imagens
Cem anos, cem imagens
Chaves, 7 de Setembro de 1982 – Nenhuma terra da pátria me
cansa. Em todas a minha curiosidade insaciável de ver e conhecer
encontra sempre qualquer novo motivo de interesse. É o que se dá com
esta. Hoje descobri que é nela que renovo todos os anos, infelizmente só
por alguns dias, o prazer calmo e urbano de viver.
Diário XIV
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Cem anos, cem imagens
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Lisboa, 15 de Novembro de 1983 – O Tejo deserto, sem uma
embarcação. O estuário vazio de um passado abolido.
Diário XIV
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Cem anos, cem imagens
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Gerês, 3 de Agosto de 1959 – Gosto de rever certas paisagens, ainda
mais do que reler certos livros. São belas como eles, e nunca envelhecem.
O tempo não degrada a linguagem que as exprime. Pelo contrário,
enriquece-a, até, num esforço de perfeição constante que, embora
involuntário, parece intencional. (...) E eu olho, olho, e não me canso de
admirar uma placidez assim permanentemente movimentada
(...).
Diário VIII
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Cem anos, cem imagens
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Miramar, 20 de Agosto de 1962 – Estendo os olhos pela planície
azul, e deixo navegar a imaginação (...) E quando a luz moribunda da
tarde me obriga a regressar, olho a terra num misto de resignação e
desespero. Por que razão teria ela ignorado o grande exemplo da
oceânica insubmissão e unidade, e se deixaria possuir dividida em pátrias
e courelas?
Diário IX
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Cem anos, cem imagens
Cem anos, cem imagens
S. Martinho de Anta, 3 de Julho de 1966 – Estas paisagens já estão
de tal modo explicitadas dentro de mim, que parecem escritas no meu
entendimento. Quando cuido que estou a interpretá-las, estou a ler-me.
Diário X
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Cem anos, cem imagens
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Gerês, 5 de Agosto de 1963
(...)
- Há muitos anos que o vejo por aqui! Gosta disto, ou fazem-lhe
bem as águas?
- As duas coisas. Mas venho, sobretudo, certificar-me da
constância da paisagem e da inconstância dos homens...
Diário IX
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Cem anos, cem imagens
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Ferrão, 7 de Setembro de 1968.
DOIRO
Corre, caudal sagrado
Na dura gratidão dos homens e dos montes!
Vem de longe e vai longe a tua inquietação...
Corre, magoado,
De cachão em cachão,
A refractar olímpicos socalcos
De doçura
Quente.
E deixa na paisagem calcinada
A imagem desenhada
Dum verso de frescura
Penitente.
Diário XI
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Cem anos, cem imagens
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Régua, 19 de Agosto de 1979 – (...) Só quem não tiver sensibilidade e
humanidade dentro de si é que ficará indiferente à beleza de panoramas
sem comparação possível e à grandeza de um esforço incansável e
criativo que os cultiva e arquitecta jardins suspensos na mais agreste
paisagem de Portugal.
(...)
Diário XIII
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Cem anos, cem imagens
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Texto de ligação
Coimbra, 6 de Julho de 1971 – Duvido que tenha vislumbrado nas
minhas palavras a íntima amargura que as entristecia:
- Vi Portugal sozinho, sem guias e sem interlocutores, a ouvir apenas
nas fragas, nos matagais, nos restolhos, nas areias e nas calçadas o eco
dos meus próprios passos
Diário XI
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Cem anos, cem imagens
Cem anos, cem imagens
S. Martinho de Anta, 6 de Abril de 1978 – Discurso na escola. Todo
eu tremia como varas verdes. Era a criança, que sempre fiquei, a fazer
novamente exame. O júri até ministros incluía. E o tema a desenvolver
dizia respeito ao abandono sanitário a que o país real está votado. Lá
discorri. Que a ciência assim e assado, que as leis da vida são solidárias,
que o povo necessita de assistência concreta e não de demagogia
curativa. No fim, fui aprovado. Mas não tive a alegria antiga. Não punha
gravata pela primeira vez, o senhor Botelho não estava presente, meu Pai
também não, e havia não sei que pasmo inquietador nos olhos dos meus
condiscípulos. Talvez por me verem tão crescido e tão bem falante.
Diário XIII
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Cem anos, cem imagens
Cem anos, cem imagens
Barragem de Vilarinho da Furna, 18 de Julho de 1976.
REQUIEM
Viam a luz nas palhas de um curral,
Criavam-se na serra a guardar gado.
À rabiça do arado,
A perseguir a sombra nas lavradas,
Aprendiam a ler
O alfabeto do suor honrado.
Até que se cansavam
De tudo o que sabiam,
E, gratos, recebiam
Sete palmos de paz num cemitério
E visitas e flores no dia de finados.
Mas, de repente, um muro de cimento
Interrompeu o canto
De um rio que corria
Nos ouvidos de todos.
E um Letes de silêncio represado
Cobre de esquecimento
Esse mundo sagrado
Onde a vida era um rito demorado
E a morte um segundo nascimento.
Diário XII
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Cem anos, cem imagens
Cem anos, cem imagens
Miramar, 7 de Agosto de 1968.
MAR
Mar!
E é um aberto poema que ressoa
No búzio do areal...
Ah, quem pudesse ouvi-lo sem mais versos!
Assim puro,
Assim azul,
Assim salgado...
Milagre horizontal
Universal,
Numa palavra só realizado.
Diário XI
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Cem anos, cem imagens
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Leiria, 20 de Novembro de 1980 – (...) Esta terra foi a grande
encruzilhada do meu destino. Aqui identifiquei e escolhi os caminhos da
poesia, da liberdade e do amor, sem dar ouvidos às vozes avisadas da
prudência, que pressagiavam o pior. Aqui, portanto, arrisquei tudo por
tudo, fazendo das fraquezas forças, das dúvidas certezas, do desespero
esperança. Aqui era justo, pois, que, passados muitos anos e muitos
trabalhos, eu viesse verificar com alegria que valeu a pena desafiar a
sorte, que tive sempre uma mão-cheia de almas fraternas e solidárias a
torcer por mim, e que as cicatrizes das feridas de ontem são os nossos
brasões de hoje.
Diário XIII
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Cem anos, cem imagens
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Pitões das Júnias, Barroso, 8 de Setembro de 1983 – Só vistas, a
aspereza deste ermo e a pobreza do mosteiro desmantelado. (...)
Diário XIV
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Cem anos, cem imagens
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Chaves, 12 de Setembro de 1983.
RESGUARDO
Quero-te num poema.
Viva e transfigurada,
Sentada
No banco dum jardim
De versos outonais,
A ver nos horizontes irreais
Sumir-se o tempo, o burlador
Do amor,
Que diz que volta, mas não volta mais.
Diário XIV
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Cem anos, cem imagens
Cem anos, cem imagens
Lisboa, 17 de Janeiro de 1985.
ÍMPETO
No cais deserto onde embarquei outrora,
Sonho agora
Outra aventura igual.
Fui Portugal
Na minha meninice.
Quem diz que já não posso
Rezar um Padre Nosso
E partir em seu nome na velhice?
Diário XIV
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Cem anos, cem imagens
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S. Martinho de Anta, 19 de Setembro de 1987 – A grande mamoa da
serra escavada. A câmara, o corredor e os contrafortes expostos à luz do
dia e ao espanto de quem olha. Sempre me fascinaram as construções
dolménicas pelo que têm de monumental e sagrado. Apesar de cingido
ainda à pedra tosca, o homem deu logo em cada uma delas a sua medida
no material e no espiritual. Foi físico e metafísico.
(...)
Diário XV
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Cem anos, cem imagens
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Lisboa, 16 de Abril de 1986 – A Lisboa que eu mais amo. A que ficou
fiel ao resto da nação, nos larguinhos provincianos, nos jardins íntimos,
nos fontanários soalheiros. A nossa medida ou é à escala do mundo ou à
do campanário que nos viu nascer.
Diário XIV
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Cem anos, cem imagens
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Porto, 29 de Junho de 1986 – Continuo a gostar desta terra, a cidade
que o meu Doiro merecia. Um socalco urbano granítico, a reflectir o
voluntarismo laboral e cívico nas águas dum rio de suor penitente.
Diário XIV
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Cem anos, cem imagens
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Chaves, 6 de Setembro de 1986.
MIRADOIRO
Não sei se vês, como eu vejo,
Pacificado,
Cair a tarde
Serena
Sobre o vale,
Sobre o rio,
Sobre os montes
E sobre a quietação
Espraiada da cidade.
Nos teus olhos não há serenidade
Que o deixe entender.
Vibram na lassidão da claridade.
E o lírico poema que me acontecer
Virá toldado de melancolia,
Porque daqui a pouco toda a poesia
Vai anoitecer.
Diário XIV
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Cem anos, cem imagens
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S. Martinho de Anta, 30 de Março de 1988.
PRESERVAÇÃO
Fiéis, as minhas flores,
Azáleas, rododendros, pionias,
Quiseram que estes dias
De treva e de paixão
Fossem alegres como a natureza.
De maneira discreta,
Abriram na tristeza
Do meu coração
Com tal beleza,
Que a pura gratidão
Manda o poeta
Preservá-las assim,
Festivas
E votivas,
Num mais perene e mágico jardim.
Diário XV
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Cem anos, cem imagens
Cem anos, cem imagens
S. Martinho de Anta, 3 de Abril de 1988 – Despeço-me da casa
paterna, do jardim, do negrilho e das fragas. Das únicas riquezas que
gostei verdadeiramente de possuir no mundo, e de que sou avaro. Que
não tive de ganhar, mas de merecer.
Diário XV
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Cem anos, cem imagens
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Lisboa, 20 de Abril de 1988.
PESADELO
Memória do passado.
Quem pudera apagá-la
Neste cais deserto!
Nenhum cabo do mundo descoberto,
Nenhum convés de aventura.
Um Tejo sem vocação
De caminho da Nação
Para o mar e a lonjura.
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Cem anos, cem imagens
Cem anos, cem imagens
Chaves, 1 de Setembro de 1988 – O que me salva nesta existência
repetitiva é a minha capacidade de renovar incessantemente a visão das
coisas. Nunca esgoto a realidade. Tanto a perscruto, que, como no amor,
que nenhuma aparência satisfaz e vai sempre além do que vislumbra,
acabo por descobrir nela um pormenor que a torna inédita ao olhar e à
imaginação. Estou sempre pela primeira vez em todos os lugares.
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Cem anos, cem imagens
Cem anos, cem imagens
S. Martinho de Anta, 23 de Março de 1989 – A tarde inteira a galgar
à sobreposse, certamente pela última vez, os montes familiares
sobranceiros ao Doiro, e a receber nos olhos comungantes cada imagem
esplendorosa como um sacramento.
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Cem anos, cem imagens
Cem anos, cem imagens
S. Martinho de Anta, 11 de Setembro de 1989 – Os mitos são
verdades eternas. Quando aqui chego, é sempre um Anteu combalido que
me sinto, a tocar a terra alentadora e a recuperar as forças. Não as do
corpo, mas as da alma. É um gosto súbito de estar no mundo, uma alegria
íntima e sadia do espírito, como se me fossem dadas de repente razões
de vida que não tenho lá longe.
(...)
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Cem anos, cem imagens
Cem anos, cem imagens
S. Martinho de Anta, 12 de Setembro de 1989 – Olho estes montes
circundantes que desde muito cedo me desafiaram a imaginação e as
pernas. Todos subi e desci inúmeras vezes, primeiro como ganapo
irrequieto, depois como caçador inveterado, e ultimamente como poeta
rememorativo. Os horizontes que deles contemplei é que me balizaram a
alma. E agora, que estou no fim, pergunto a mim mesmo o que seria tudo
quanto escrevi se eles fossem outros. Nascemos num sítio. E ficamos pela
vida fora a ver o mundo do fragão que primeiro nos serviu de mirante.
Diário XV
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Cem anos, cem imagens
Cem anos, cem imagens
S. Martinho de Anta, 29 de Abril de 1990.
CONFRONTO
Serras da minha infância
E da minha velhice.
Então, porque as passeava
Alado como o vento
Que nelas me enfunava
O corpo e o pensamento.
Agora, porque as namoro
Alcandoradas
Na eminência sagrada
Dum altar
Onde nenhuma fé cansada
Pode chegar.
Serras dos meus poemas
Malogrados.
Sonhados
Da mesma altura
Nos dias abrasados
Da inspiração,
Arrefecidos, são
Ecos rasteiros de uma voz erguida.
Balbúcios de candura
Na memória dorida
Que, teimosa, os murmura.
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Cem anos, cem imagens
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S. Martinho de Anta, 30 de Abril de 1990 – Sentado no pátio da casa
à sombra do noveleiro, coroado de flores e rodeado de silêncio. Plantei
mais um rododendro que comprei à vinda num horto do caminho,
arranquei um lilás excessivo, podei algumas roseiras, e gozo agora a paz
do entardecer, desobrigado dos doentes, que me não largam sempre que
venho, e da enxada que me lembra as silvas teimosas que desde o
amanhecer combati.
(...)
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Cem anos, cem imagens
Cem anos, cem imagens
Coimbra, 29 de Maio de 1990 – Horas infindas fechado no consultório
a fazer contas à vida. A medir a frequência e o ritmo das pulsações
cardíacas, à espera de que este meu velho relógio sem corda sossegue
ou pare de vez. É aqui que eu tenho esperança de fechar os olhos,
sozinho, sem despedidas dilacerantes, com os olhos cheios da policromia
do largo ajardinado fronteiriço, da frescura líquida do rio remansoso e do
aceno dos horizontes alargados pela imaginação durante meio século ao
mundo inteiro. S. Martinho foi o lugar de onde. Coimbra o centro desse
mundo misterioso e apaixonante que de lá perspectivei.
Diário XVI
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Cem anos, cem imagens
Gaia, 24 de Dezembro de 1990.
ÚLTIMO NATAL
Menino Jesus, que nasces
Quando eu morro,
E trazes a paz
Que não levo,
O poema que te devo
Desde que te aninhei
No entendimento,
E nunca te paguei
A contento
Da devoção,
Mal entoado,
Aqui te fica mais uma vez
Aos pés,
Como um tição
Apagado,
Sem calor que os aqueça.
Com ele me desobrigo e desengano:
És divino, e eu sou humano,
Não há poesia em mim que te mereça.
Diário XVI
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Coimbra, 8 de Maio de 1991.
MADRIGAL PARA DEPOIS
Quando, por fim, o mundo for só nosso,
Sem reparos alheios,
E os meus versos a fiel legenda
De cada hora,
Saberás, musa, claramente
Como a vida dura
Para além da macabra certidão
Da realidade.
Pede, pois, com fervor,
À santíssima senhora
Da boa morte
Que, sem mais sofrimento,
Piedosamente,
Me receba nos braços regelados,
E nos permita ser eternamente
Felizes e secretos namorados.
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Coimbra, 10 de Dezembro de 1993.
REQUIEM POR MIM
Aproxima-se o fim.
E tenho pena de acabar assim,
Em vez de natureza consumada,
Ruína humana.
Inválido do corpo
E tolhido da alma.
Morto em todos os órgãos e sentidos.
Longo foi o caminho e desmedidos
Os sonhos que nele tive.
Mas ninguém vive
Contra as leis do destino.
E o destino não quis
Que eu me cumprisse como porfiei,
E caísse de pé, num desafio.
Rio feliz a ir de encontro ao mar
Desaguar,
E, em largo oceano, eternizar
O seu esplendor torrencial de rio.
Diário XVI
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