Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens “ Estou sempre pela primeira vez em todos os lugares” Exposição, comemorativa do centenário do nascimento de Miguel Torga, na Escola Secundária Filipa de Vilhena. Miguel Torga Textos de Miguel Torga Fotos de Ana Campos www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens S. Martinho de Anta, 29 de Outubro de 1955 – O solar da família, térreo, de telha vã, encimado pelo seu brasão de armas esquartelado, com enxadões em todos os campos... Foi desta realidade que parti, e é a esta realidade que regresso sempre, por mais voltas que dê nos caminhos da vida. É uma certeza de marco com testemunhas, que nunca me deixa desorientado quando quero avivar as estremas da alma. Basta escavar um pouco a crosta da aparência, e aí estou eu na matriz, confrontado. (...) Diário VIII www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens S. Martinho de Anta, 26 de Abril de 1954. A UM NEGRILHO Na terra onde nasci há um só poeta. Os meus versos são folhas dos seus ramos. Quando chego de longe e conversamos, É ele que me revela o mundo visitado. Desce a noite do céu, ergue-se a madrugada, E a luz do sol aceso ou apagado É nos seus olhos que se vê pousada. Esse poeta és tu, mestre da inquietação Serena! Tu, imortal avena Que harmonizas o vento e adormeces o imenso Redil de estrelas ao luar maninho. Tu, gigante a sonhar, bosque suspenso Onde os pássaros e o tempo fazem ninho! Diário VII www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens ( O Porto ) A velha e livre cidade do Porto (...) é muito velha no meu sangue e na minha consciência. Quanto em mim é instinto e compreensão, sabe de há muito que os valores autênticos da vida têm de ser sólidos como a Praça da Liberdade e altos como a Torre dos Clérigos. Em suor, que foi como os meus avós almocreves mo revelaram, numa caminhada semanal que metia caldo de abóbora em Valongo e lobos no resto do caminho, ou em semente do nome deste nosso Portugal, que assim mo explicou o senhor Botelho numa escola onde se aprendiam coisas que tinham sentido, o meu primeiro Porto é nebuloso e distante. Com os anos, essa primeira descoberta que dele fiz no cansaço dos meus maiores e nas lições do meu professor, alargou-se. E um Porto já de carne e osso, complexo como todas as realidades, entrou-me na candura dos dez anos. O Porto real e maravilhoso era uma soma de trabalho e sonho. In Portugal (texto adaptado) www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens ( Coimbra ) (...) Coimbra é uma linda cidade, cheia de significação nacional. Bem talhada, vistosa, favoravelmente colocada entre Lisboa e o Porto, a primeira, marítima, a segunda, telúrica, uma a puxar para fora e outra a puxar para dentro, ela representa uma neutralidade vigilante, fazendo a osmose do espírito que parte com o corpo que fica. Do espírito que vai, ou deve ir, a todas as aventuras do mundo, e do corpo que tem raízes imutáveis no chão nativo. (...) In Portugal www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Coimbra, 25 de Julho de 1942 – Aqui estou no consultório, sentado, à espera do primeiro infeliz que precise de mim e compre a minha mão de cera sobre as suas feridas por trinta escudos. Sofro com esta certeza – porque, na verdade, a própria ideia geral do mercenato me repugnou sempre – mas não há dúvida nenhuma que se alguém bater à porta paga a consulta. (...) Diário II www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens ( O Doiro ) Começa em Miranda e acaba na Foz, este calvário. Começa em pedra e água, e acaba em pedra e água. Como nos pesadelos, não há nenhum intervalo para descansar. Entra-se e sai-se do transe em plena angústia. (...) In Portugal www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens (...) Duas vezes por semana, transformado em recoveiro, ia de comboio a Leça levar cestos de fruta e de hortaliça que chegavam da quinta que o doutor tinha no Doiro. E pude ver o mar pela primeira vez. Não correspondeu em nada à minha ideia. O grande lago que imaginara, era uma ilusão de água choca ao lado daquela imensa realidade viva, pulsátil, indomável, que espumava de raiva a bater contra as penedias. (...) In A Criação do Mundo ( O Primeiro Dia) www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Leiria, 7 de Julho de 1939. ACENO Longe, Seu coração bate por mim; E a sua mão desenha aquele afago Que me sossega inteiro... Longe, A verdade serena do seu rosto É que faz este dia verdadeiro... Diário I www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Lavadores, 17 de Julho de 1945. PERGUNTA Duna que o vento ergueu, monte de vento, Onde tudo que nasce é movediço: Versos aqui?, ou sigo o movimento, E sou mais uma areia ao teu serviço? Duna em que sou arado À procura da terra da firmeza: Versos aqui?, ou vou melhor calado, Cheio de desespero e de certeza? Diário III www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Gerês, Pedra Bela, 20 de Agosto de 1942. PÁTRIA Serra! E qualquer coisa dentro de mim se acalma... Qualquer coisa profunda e dolorida, Traída, Feita de terra E alma. Uma paz de falcão na sua altura A medir as fronteiras: - Sob a garra dos pés a fraga dura, E o bico a picar estrelas verdadeiras... Diário II www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Leiria, 30 de Agosto de 1939 – Longo passeio pelas margens do Lis. Num banco tosco, sentados, três chineses a falar chinês. Apesar de já ter ouvido com indiferença várias e desvairadas línguas por este mundo de Deus, hoje cheguei-me perto deles e fiquei-me a escutá-los maravilhado. Um dia havia de ser, eu reparar na diferença que há entre ser branco e amarelo. Na diferença que faz aprender a dizer mãe sobre uma fraga do Marão, ou aprender a dizer mãe sobre um junco do Tsé-Kiang. Diário I www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Coimbra, 12 de Abril de 1943. PEDIDO Ama-me sempre, como à flor do lírio Bravo e sozinho, a quem a gente quer Mesmo já seco na recordação. Ama-me sempre, cheia da certeza De que, lírio que sou da natureza, Na minha altura eu brotarei do chão. Diário II www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Porto, 19 de Dezembro de 1943 – Cá ando a arrastar os sapatos nestas calçadas graníticas. (...) Diário III www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens ( Trás-os-Montes ) (...) Nas margens de um rio de oiro, crucificado entre o calor do céu que de cima o bebe e a sede do leito que de baixo o seca, erguem-se os muros do milagre. Em íngremes socalcos, varandins que nenhum palácio aveza, crescem as cepas como os manjericos às janelas. (...) In Portugal www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Lisboa, 3 de Maio de 1944 – Uma visita demorada e paciente a esta velha amante do Tejo, lavada e pretensiosa por fora, e suja e modesta por dentro. Bonita toda ela do sol natural que a doira, temperada num clima doce de mar que a bafeja, quando a gente a começa a ver dos altos é realmente como um corpo alvo que se espreguiça no leito, e de braços estendidos tateia à volta. (...) Diário III www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Gerês, 1 de Agosto de 1950. A UM RIBEIRO INQUIETO Canta, Masculina sereia, com garganta De pedra! Abre um leque de som neste silêncio De pesadelos... Corta os negros cabelos Da montanha, E atrai a noite à perdição sonora Do teu leito... O poema imperfeito E a solidão pesada Sabem que a madrugada Corre na voz molhada do teu peito! Diário V www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens S. Martinho de Anta, 15 de Agosto de 1955 – Cá vim à festa da Senhora da Azinheira. Larguei do Gerês com dois amigos por terras da Cabreira e de Basto, atravessámos o Tâmega e o planalto do Alvão, descemos o vale de Vila Pouca, subimos de novo, chegámos, ergui o velho da cama, meti-o no carro, e aqui estamos todos no adro da ermida, à sombra dum negrilho, a olhar os horizontes e a ouvir um sermão. (...) Diário VII www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens S. Martinho de Anta, Natal de 1951. REGRESSO Regresso às fragas de onde me roubaram. Ah! minha serra, minha dura infância! Como os rijos carvalhos me acenaram, Mal eu surgi, cansado, na distância! Cantava cada fonte à sua porta: O poeta voltou! Atrás ia ficando a terra morta Dos versos que o desterro esfarelou. Depois o céu abriu-se num sorriso, E eu deitei-me no colo dos penedos A contar aventuras e segredos Aos deuses do meu velho paraíso. Diário VI www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Leiria, 26 de Agosto de 1939 – (...) A Sé, a botica do Carlos, a rua da Misericórdia, a casa da Sanjoaneira. Grande Eça! Arrancar desta terra um tal romance, parece obra dum deus. Diário I www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Coimbra, 13 de Abril de 1943 – Posso então sair amanhã? - Pode. Um pequeno passeio, a experimentar. - Não. Se ponho os pés na rua, vou direita à Rainha Santa pagar a promessa que lhe fiz. - Ah! fez-lhe uma promessa? - Então a quem é que me havia de apegar, na aflição em que me vi? - Evidentemente... E desci as escadas atordoado, já sem saber se fora eu que curara aquela criatura da sua labirintite, ou se teria sido, de facto, a mulher de D. Dinis. Diário II www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Porto, 12 de Março de 1949 – Este Porto dá-me segurança! Depois das fragas da minha terra, é nele que me sinto mais protegido e livre. Em Lisboa ronda-me sempre o pressentimento de qualquer perigo iminente, que não sei se vem do Terreiro do Paço, se da Avenida da Liberdade. Aqui, pelo contrário, caminho de coração tranquilo. (...) Diário IV www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Leiria, 15 de Novembro de 1939. SINA O dia amanheceu feliz. Queria subir aos montes, Queria beber nas fontes, Queria perder-se nos largos horizontes... Mas a vida não quis. Diário I www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Gerês, 11 de Agosto de 1952. LAMENTO Porque paira tão alto o teu desdém, Deus das velhas montanhas de granito? Rasgo a carne a subir aonde o meu grito Te diga a solidão que me devora, E quando aí chego a rastejar, contrito, É mais acima que o mistério mora! Diário VI www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Coimbra, 14 de Outubro de 1947. ENIGMA Que lei rege o poeta, ninguém sabe; Que arcanjo o vela, também não. Um poeta não cabe Na sina que se lê na sua mão. Diário IV www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Salamonde, 27 de Agosto de 1952 – A maior parte do dia passado aqui, nas mãos dos técnicos, a visitar os trabalhos subterrâneos da barragem. (...) Os rios do passado, à solta, davam lirismo. Estes do Minho, então, tiveram fama. Agora, represados, dão energia eléctrica. E acho bem. Mas a água que fica assim empanturrada na sua albufeira, à espera, e corre depois, condicionada, pelo seu cano de esgoto em direcção a nova represa, simboliza-me um presente sem ilusões e um futuro sem versos. (...) Diário VI www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens S. Martinho de Anta, 13 de Abril de 1965. A PALAVRA Falo da natureza. E nas minhas palavras vou sentindo A dureza das pedras, A frescura das fontes, O perfume das flores. Digo, e tenho na voz O mistério das coisas nomeadas. Nem preciso de as ver. Tanto as olhei, Interroguei, Analisei E referi, outrora, Que nos próprios sinais com que as marquei, As reconheço, agora. Diário X www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Gerês, 8 de Setembro de 1954. DESTINO Começa um rio numa gota de água. O sonho é que avoluma o corpo da nascente. Fonte: Tão delicada, e hás-de ser torrente A saltar fragas e a rasgar o monte. Diário VII www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens ( Lisboa ) Lisboa é bonita. Está ainda por nascer o primeiro insensível que no alto de Santa Catarina não arregale os olhos de espanto diante da formosura dum panorama que a natureza se não gaba de ter repetido. Entre a investida castelhana do Doiro, em cima, e o esquivo namoro andaluz do Guadiana, em baixo, Portugal merecia a visita calma e demorada dum grande curso de água, que sem a ajuda de noras lhe matasse a sede e, sem leixões, fosse um porto de abrigo. (...) Quis a sorte que assim fosse e o Tejo abrisse no calcário estremenho um estuário largo e majestoso, fundo e aconchegado que, depois de magoar os montes, os transformasse em miradoiros de sonho. E de cada colina onde a gente se debruça é um pasmo sem limitações que abrange o céu e a terra na mesma agradecida emoção. (...) In Portugal www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Ordonho, 2 de Outubro de 1961 – Moeu-me a paciência! Trinta anos, bem medidos, de tenacidade! Cheguei quase a desanimar. Vinha, olhava, tornava a olhar, e nada. Alcandorado no seu trono de penedos e nuvens, com o Douro ajoelhado aos pés e o céu a servir-lhe de resplendor, o Santo furtava-se ao retrato poético, de qualquer ângulo que eu apontasse a objectiva. Hoje, porém, de repente, entre duas perdizes, não sei por que carga de água, abriu o rosto e foi ele mesmo que me propôs o instantâneo. - Mostre lá então as habilidades ... – pareceu-me ouvi-lo dizer. Nem escolhi enquadramento. Antes que se arrependesse, travei a espingarda e disparei a imaginação ao calhar, do sítio onde estava. (...) Diário IX www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens S. Martinho de Anta, 1 de Maio de 1975 – Instalado no pátio, vou lavrando prosa. O ar cheira a pólen, a azálea amarela florida é um sol vegetal, o ninho de melro ainda fumega da procriação, a primavera estala por todas as costuras da vida. (...) E paro de escrever. A laboriosa página que me saia da pena mete dó ao lado da página aberta do universo. (...) Diário XII www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Texto de ligação S. Martinho de Anta, 9 de Setembro de 1989 – Vou e venho. Percome por lá e encontro-me aqui. Diário XV www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Leiria, 10 de Abril de 1940. VISITA Fui ver o mar. Homem de pólo a pólo, vou De vez em quando olhá-lo, enraizar Em água este Marão que sou. Da penedia triste Pus-me a olhar aquele fundo Dentro do qual existe O coração do mundo. E vi, horas a fio, A sua angústia ser Uma espécie de rio Que não sabe correr. Diário I www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens ( Trás-os-Montes) (...) Um mundo! Um nunca acabar de terra grossa, fragosa, bravia, que tanto se levanta a pino num ímpeto de subir ao céu, como se afunda nuns abismos de angústia, não se sabe por que telúrica contrição. (...) In Portugal www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Miramar, 21 de Agosto de 1956 – (...) Sei muito bem que as férias são interregnos do equilíbrio humano, ou intervalos que o favorecem, e também não ignoro que o mar lava tudo, até certas nódoas teimosas do pensamento. Infelizmente, comigo as coisas passam-se sempre ao contrário. Em vez de descansar como a outra gente, de esquecer e dormir, revolvo-me de inquietação, sem encontrar pé na ambiguidade dum meio onde o impudor finge que tem moral, e a moral finge que não tem pudor. Diário VIII www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Coimbra, 5 de Abril de 1948 – Creio que não é preciso. Em todo o caso, fica aqui a declaração. O que eu fui sempre, o que eu sou, e o que serei, é um artista, um homem e um revolucionário. Na medida em que sou artista, quero um mundo onde a beleza seja o vértice da pirâmide. Na medida em que sou homem, quero que nesse mundo os indivíduos sejam livres e conscientes. E na medida em que sou revolucionário, quero que a revolução traga à tona as grandes massas, e que nunca acabe de percorrer o seu caminho perpétuo, sem estratificações e sem dogmas. Diário IV www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Gerês, 17 de Agosto de 1958 – Sou , na verdade, um geófago insaciável, necessitado diariamente de alguns quilómetros de nutrição. Devoro planícies como se engolisse bolachas de água e sal, e atiro-me às serranias como à broa da infância. É fisiológico, isto. Comer terra é uma prática velha do homem. Antes que ela o mastigue, vai-a mastigando ele. (...) Diário VIII www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Coimbra, 15 de Novembro de 1948. TERMO DE RESPONSABILIDADE Tudo, Menos deixar uma incerteza No caminho. Quem vier nesta mesma direcção, Veja as passadas dos meus pés, E siga. Saiba por elas que não foi traído, Mesmo se me encontrar adormecido De morte natural ou de fadiga. Diário IV www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Negrões, Barroso, 28 de Maio de 1955 – Por mais que tente, não consigo reduzir estas vidas de planalto a uma escala de valores comuns. (...) Talvez seja a própria pobreza do meio que, despedindo-os de todo o acessório, lhes evidencie a essência. E a nossa perturbação diante deles seria a perplexidade de pobres Adões cobertos de folhas diante de irmãos que permaneceram nus. Diário VII www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Porto, 14 de Novembro de 1957 – Cá está o mundo, outra vez. E é bonito, o grande malandro! Tem sol, tem flores, tem barulho, e não cheira a remédios, ainda por cima. Dá-nos picadelas também, evidentemente, mas não são de morfina. São ferroadas de vida, de amor. Ou parecemme... Diário VIII www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Linha do Douro, 14 de Março de 1949 – Entre a arte e a realidade há sempre um abismo sem nenhuma ponte. Do lado de cá, um mundo com mil versões, ameno mesmo quando as palavras são punhais, as tintas relâmpagos, os sons gritos de desespero. Do lado de lá, uma presença sem retórica, de uma só face, inflexível e permanente. Os barcos rabelos dos cartazes não são os mesmos que descem este rio de soluços. A espadela, neles, é um traço azul e fugidio. E a verdadeira é uma trave de carvalho onde as mãos criam cascos. Feita para divertir, mesmo quando faz chorar de piedade e fremir de revolta, a arte é sempre a versão doirada do que se vê (...). Diário IV www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens S. Martinho de Anta, 25 de Dezembro de 1976 – A velha escola do senhor Botelho finalmente reconstruída e actualizada. Mais sol, mais higiene, menos gramática e menos palmatoadas. Mas faltavam no terreiro à volta as mimosas da minha meninice. E passei a tarde de ferro e pá na mão a plantá-las. Não estarei cá para as ver crescidas como as de outrora. Deixá-lo. O meu propósito não era reflorir o passado, mas florir o futuro. Diário XII www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Paradela do Rio, 1 de Julho de 1956 – Estes tempos de barragens são uma verdadeira era nova do mundo. Qualquer dia, na escola, o mestre aponta o mapa e diz: - Antes do período albufeirozóico, aqui era o Barroso. Diário VIII www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Lisboa, 22 de Outubro de 1965 – É uma dor de alma ver uma terra bonita como esta a servir de cenário a tanta coisa feia. Diário X www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens S. Pedro de Moel, 23 de Maio de 1949 TENTAÇÃO Mar, Sepultura sonora: Era em ti, a boiar, Que eu gostaria de dormir agora. Diário V www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Foz, 2 de Abril de 1950 – Numa saudade dos longes da infância e dos adultos longes da imaginação, fui hoje a Leixões visitar um transatlântico. E, ao percorrê-lo, cheguei à conclusão de que comecei bem a vida, mas que a acabo mal. Aos doze anos a descobrir mundos, e aos quarenta a ver navios! Diário V www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Coimbra, 15 de Junho de 1965 – Vi as coisas. O que não sei é se teria visto a alma das coisas. Diário X www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens S. Martinho de Anta, 25 de Setembro de 1985. DISPERSÃO Perco-me na paisagem, Planáltico, também, E, como ela, aberto aos largos horizontes. Deambulo, parado, A ouvir, alheado, O silêncio das fragas E a música do vento. Deixo que o pensamento Não tenha direcção E seja apenas uma ondulação A mais Da natureza. E canto, sem cantar, Versos incertos, na incerteza De mais tarde os lembrar. Diário XIV www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Texto de ligação S. Martinho de Anta, 23 de Dezembro de 1968 – Insisto: S. Martinho de Anta não é um lugar onde, mas um lugar de onde... Diário XI www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Caldas da Rainha, 7 de Setembro de 1939 – Óbidos. A quinta humana mais bem cercada que a Idade Média nos deixou. Diário I www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Leiria, 12 de Maio de 1940. CANÇÃO DA PURA HUMILDADE Fio de água, Vou por tojos e urgueiras A cantar esta mágoa, Sabendo que há mais água e mais maneiras. Vou sem nenhuma inveja. Apenas peço ao céu Que, espelhando-se em mim, me veja, Porque afinal sou eu. Diário I www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Pinhão, 1 de Janeiro de 1964 – O meio. É ele, realmente, o grande actor na tragédia da vida. Põe e tira, parte e reparte. Dono e senhor, semeia antes da mão do homem. Mas sempre que o vencidismo nacional, lá por baixo, mo inculca como único culpado de todas as nossas mediocridades económicas, artísticas, científicas e outras, perco a cabeça. Apetece-me arrastar os fatalistas aqui ao Doiro, e meter-lhes estes socalcos pela boca dentro. Sim, a natureza foi avara connosco, e é difícil transformar em searas de trigo fragões de granito ou de xisto. Isso, porém, não é razão para lhes acrescentarmos a nossa esterilidade. Há gente cá na pátria que, em vez de cobrir de desânimo e renúncia as lajes onde nasceu, faz delas a peanha duma vontade fecunda. Diário X www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens S. Martinho de Anta, 15 de Setembro de 1987 – Tantas páginas e tantos poemas que aqui tenho escrito, e morro na convicção de que nada disse de significativo da minha ligação à terra onde nasci e de onde nunca verdadeiramente saí. Tudo o que fui lá longe, apenas serviu para me afundar mais as raízes. E é da seiva que elas sugaram e sugam no húmus original que não sei falar. (...) Diário XV www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens S. Leonardo de Galafura À proa dum navio de penedos, A navegar num doce mar de mosto, Capitão no seu posto De comando, S. Leonardo vai sulcando As ondas Da eternidade, Sem pressa de chegar ao seu destino. Ancorado e feliz no cais humano, É num antecipado desengano Que ruma em direcção ao cais divino. Lá não terá socalcos Nem vinhedos Na menina dos olhos deslumbrados; Doiros desaguados Serão charcos de luz Envelhecida; Rasos, todos os montes Deixarão prolongar os horizontes Até onde se extinga a cor da vida. Por isso, é devagar que se aproxima Da bem-aventurança. É lentamente que o rabelo avança Debaixo dos seus pés de marinheiro. E cada hora a mais que gasta no caminho É um sorvo a mais de cheiro A terra e a rosmaninho! Ordonho, 2 de Outubro de 1961 Diário IX www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Coimbra, 1 de Novembro de 1983. MEMÓRIA De todos os cilícios, um, apenas, Me foi grato sofrer: Cinquenta anos de desassossego A ver correr, Serenas, As águas do Mondego. Diário XIV www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Miramar, 14 de Setembro de 1957. PRAIA Nem mar, nem terra – a estrema que os separa. Esta orla de areia Onde, feliz, passeia, Só vestida de sol, A nudez dos humanos. Um limbo de brancura e alegria. O tempo sem poder fazer seus danos, E nenhum rasto ao fim de cada dia. Diário VIII www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Lisboa, 26 de Fevereiro de 1968 – Só venho a esta terra por causa do corpo. Mas o espírito aproveita sempre. Espreita aqui, espreita ali, vai enchendo os alforges. Apenas de luz natural, infelizmente, que, da outra, nem sombras. (...) Diário X www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Linha do Douro, 13 de Março de 1949. BIOGRAFIA Temos todos um rio na lembrança, E alguns é um rio inteiro a sua vida. Um rio que não seca e não descansa, E é uma força perdida Entre montanhas de desconfiança. Diário IV www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Gerês, 26 de Agosto de 1958 (...) Meti a direito pelos fraguedos, e foi até o corpo dizer basta. Gargantas temerosas que engolem o tempo e o silêncio, e que o vento – respiração da natureza – atravessa a uivar, ribeiros que se despenham nos abismos num ímpeto lírico e suicida, lagoas límpidas e secretas onde ninguém lava a impureza. (...) Diário VIII www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Lisboa, Encosta da Ajuda, 3 de Julho de 1972. TEJO É um lento e majestoso Caudal de claridade Que corre no teu leito, Rio perfeito Como o dia a passar, Largo, sereno, aberto, Logo à partida, certo De chegar... Diário XI www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens S. Martinho de Anta, 17 de Setembro de 1987. IDENTIFICAÇÃO Desta terra sou feito. Fragas são os meus ossos, Húmus a minha carne. Tenho rugas na alma E correm-me nas veias Rios impetuosos. Dou poemas agrestes, E fico também longe No mapa da nação. Longe e fora de mão... Diário XV www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Panóias, 23 de Dezembro de 1963 – Soletro com a devoção que posso a linguagem religiosa dos nossos avós, gravada nestas fragas sagradas que a descrença beata do presente pisa sem qualquer estremecimento. (...) Diário X www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Miramar, 12 de Agosto de 1967 – Sessenta anos. Felizmente que ninguém deu pela conta, e pude calmamente, secretamente, meditar na significação deste dia crucial. Até há pouco, ia contando. Trinta, quarenta, cinquenta... Não era a juventude, evidentemente, mas havia ainda pano para mangas. Mais vinte, mais quinze... Tempo de sobra, enfim. Agora é que toda a ilusão se desvaneceu. (...) Vamos seguindo confiados pela estrada fora. De repente, olhamos para trás, e que terramoto de ilusões! O que parecia grande mede um palmo, o que julgávamos sólido abana, o que dava a impressão de voar, patinha. Incrédulos, esfregamos os olhos. Mas não há dúvida. Desacertos sobre desacertos, erros palmares, ingenuidades confrangedoras. O saco de viagem abarrotado de falências. E de nada vale perguntar se as coisas se poderiam passar de outra maneira. Os factos são irreversíveis. (...) Diário X www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Gerês, 27 de Agosto de 1958. PRENÚNCIO Na tarde calma, ondula A invisível ramagem dum poema. Uma secreta brisa, Que apenas se adivinha, Percorre o mundo íntimo das coisas E acorda em sobressalto As folhas do silêncio. Falta ainda o poeta... Mas a evidência Da sua voz É como a luz do sol quando amanhece: De tão branca, parece Que descora a ilusão da madrugada... Antes ele não viesse, E em cada solidão se mantivesse Esta bruma de música sonhada. Diário VIII www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Coimbra, 9 de Novembro de 1984 – Sábios. Lá estive parte da noite no meio deles, a ouvi-los como que de castigo. Minerva é só meia irmã das Musas. Nunca ensinou a nenhum dos filhos que o fulgor de um verso pode valer por mil silogismos. Que há um espírito criador rebelde às peias da razão, a mais presunçosa e a menos fecunda das nossas faculdades. É que nem tem o dom de imaginar, nem a coragem de transgredir. Diário XIV www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Chaves, 6 de Setembro de 1981 – Uma tarde de outono como só aqui. Renques de cedros recortados no horizonte lívido, o verde carregado dos amieiros a dar profundidade às águas represadas do rio, uma temperatura branda, de banho-maria. Sonâmbula na encosta, a cidade, com a sua profusão de antenas suspensas no céu vazio, parece em comunicação telepática com a realidade. (...) Diário XIII www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens S. Pedro de Moel, 20 de Agosto de 1985 – O mar. A matéria prima inesgotável de que somos milionários, que tantos nos invejam, que se nos oferece disponível e prestável à necessidade e à imaginação, que com tanta naturalidade e génio soubemos utilizar, que foi a nossa obsessão e fez a nossa glória, e de que agora apenas nos lembramos raquiticamente de ano a ano. Diário XIV www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Nazaré, 17 de Agosto de 1969 – Encho os olhos de azul antes do regresso, como um camelo que vai atravessar um deserto incolor. O incolor deserto quotidiano... Diário XI www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens S. Leonardo de Galafura, 8 de Abril de 1977 – O Doiro sublimado. O prodígio de uma paisagem que deixa de o ser à força de se desmedir. Não é um panorama que os olhos contemplam: é um excesso da natureza. Socalcos que são passadas de homens titânicos a subir as encostas, volumes, cores e modulações que nenhum escultor, pintor ou músico podem traduzir, horizontes dilatados para além dos limites plausíveis da visão. Um universo virginal, como se tivesse acabado de nascer, e já eterno pela harmonia, pela serenidade, pelo silêncio que nem o rio se atreve a quebrar, ora a sumir-se furtivo por detrás dos montes, ora pasmado lá no fundo a reflectir o seu próprio assombro. Um poema geológico. A beleza absoluta. Diário XII www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Texto de ligação Castro Laboreiro, 22 de Setembro de 1949 – Deve-se encher os olhos da mesma paisagem tantas vezes quantas forem necessárias para que ela seja dentro de nós um cenário quotidiano. (...) Diário V www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Miramar, 11 de Setembro de 1958 – São corajosos os deuses que se instalam à beira-mar. Em vez de passivos rendeiros da fé, conquistam-na hora a hora. Aqui há um Senhor da Pedra batido pelas vagas, que visito respeitosamente de vez em quando por isso mesmo. (...) Diário VIII www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens S. Martinho de Anta, 21 de Setembro de 1984 – A ciência arqueológica resolveu escavar uma das muitas mamoas que enxameiam a serra, monumentos megalíticos que a nimbam de mistério e desde rapaz venero como sacrários de uma ancestralidade a que sou fiel, preservada na memória arcaica e lembrada no próprio topónimo deste berço em que nasci. (O Portugal de que sempre me orgulhei não é o da versão oficial. Começa precisamente nestas dolménicas paragens e não se compreende a revolver metodicamente o chão). (...) Diário XIV www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Chaves, 7 de Setembro de 1982 – Nenhuma terra da pátria me cansa. Em todas a minha curiosidade insaciável de ver e conhecer encontra sempre qualquer novo motivo de interesse. É o que se dá com esta. Hoje descobri que é nela que renovo todos os anos, infelizmente só por alguns dias, o prazer calmo e urbano de viver. Diário XIV www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Lisboa, 15 de Novembro de 1983 – O Tejo deserto, sem uma embarcação. O estuário vazio de um passado abolido. Diário XIV www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Gerês, 3 de Agosto de 1959 – Gosto de rever certas paisagens, ainda mais do que reler certos livros. São belas como eles, e nunca envelhecem. O tempo não degrada a linguagem que as exprime. Pelo contrário, enriquece-a, até, num esforço de perfeição constante que, embora involuntário, parece intencional. (...) E eu olho, olho, e não me canso de admirar uma placidez assim permanentemente movimentada (...). Diário VIII www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Miramar, 20 de Agosto de 1962 – Estendo os olhos pela planície azul, e deixo navegar a imaginação (...) E quando a luz moribunda da tarde me obriga a regressar, olho a terra num misto de resignação e desespero. Por que razão teria ela ignorado o grande exemplo da oceânica insubmissão e unidade, e se deixaria possuir dividida em pátrias e courelas? Diário IX www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens S. Martinho de Anta, 3 de Julho de 1966 – Estas paisagens já estão de tal modo explicitadas dentro de mim, que parecem escritas no meu entendimento. Quando cuido que estou a interpretá-las, estou a ler-me. Diário X www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Gerês, 5 de Agosto de 1963 (...) - Há muitos anos que o vejo por aqui! Gosta disto, ou fazem-lhe bem as águas? - As duas coisas. Mas venho, sobretudo, certificar-me da constância da paisagem e da inconstância dos homens... Diário IX www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Ferrão, 7 de Setembro de 1968. DOIRO Corre, caudal sagrado Na dura gratidão dos homens e dos montes! Vem de longe e vai longe a tua inquietação... Corre, magoado, De cachão em cachão, A refractar olímpicos socalcos De doçura Quente. E deixa na paisagem calcinada A imagem desenhada Dum verso de frescura Penitente. Diário XI www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Régua, 19 de Agosto de 1979 – (...) Só quem não tiver sensibilidade e humanidade dentro de si é que ficará indiferente à beleza de panoramas sem comparação possível e à grandeza de um esforço incansável e criativo que os cultiva e arquitecta jardins suspensos na mais agreste paisagem de Portugal. (...) Diário XIII www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Texto de ligação Coimbra, 6 de Julho de 1971 – Duvido que tenha vislumbrado nas minhas palavras a íntima amargura que as entristecia: - Vi Portugal sozinho, sem guias e sem interlocutores, a ouvir apenas nas fragas, nos matagais, nos restolhos, nas areias e nas calçadas o eco dos meus próprios passos Diário XI www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens S. Martinho de Anta, 6 de Abril de 1978 – Discurso na escola. Todo eu tremia como varas verdes. Era a criança, que sempre fiquei, a fazer novamente exame. O júri até ministros incluía. E o tema a desenvolver dizia respeito ao abandono sanitário a que o país real está votado. Lá discorri. Que a ciência assim e assado, que as leis da vida são solidárias, que o povo necessita de assistência concreta e não de demagogia curativa. No fim, fui aprovado. Mas não tive a alegria antiga. Não punha gravata pela primeira vez, o senhor Botelho não estava presente, meu Pai também não, e havia não sei que pasmo inquietador nos olhos dos meus condiscípulos. Talvez por me verem tão crescido e tão bem falante. Diário XIII www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Barragem de Vilarinho da Furna, 18 de Julho de 1976. REQUIEM Viam a luz nas palhas de um curral, Criavam-se na serra a guardar gado. À rabiça do arado, A perseguir a sombra nas lavradas, Aprendiam a ler O alfabeto do suor honrado. Até que se cansavam De tudo o que sabiam, E, gratos, recebiam Sete palmos de paz num cemitério E visitas e flores no dia de finados. Mas, de repente, um muro de cimento Interrompeu o canto De um rio que corria Nos ouvidos de todos. E um Letes de silêncio represado Cobre de esquecimento Esse mundo sagrado Onde a vida era um rito demorado E a morte um segundo nascimento. Diário XII www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Miramar, 7 de Agosto de 1968. MAR Mar! E é um aberto poema que ressoa No búzio do areal... Ah, quem pudesse ouvi-lo sem mais versos! Assim puro, Assim azul, Assim salgado... Milagre horizontal Universal, Numa palavra só realizado. Diário XI www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Leiria, 20 de Novembro de 1980 – (...) Esta terra foi a grande encruzilhada do meu destino. Aqui identifiquei e escolhi os caminhos da poesia, da liberdade e do amor, sem dar ouvidos às vozes avisadas da prudência, que pressagiavam o pior. Aqui, portanto, arrisquei tudo por tudo, fazendo das fraquezas forças, das dúvidas certezas, do desespero esperança. Aqui era justo, pois, que, passados muitos anos e muitos trabalhos, eu viesse verificar com alegria que valeu a pena desafiar a sorte, que tive sempre uma mão-cheia de almas fraternas e solidárias a torcer por mim, e que as cicatrizes das feridas de ontem são os nossos brasões de hoje. Diário XIII www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Pitões das Júnias, Barroso, 8 de Setembro de 1983 – Só vistas, a aspereza deste ermo e a pobreza do mosteiro desmantelado. (...) Diário XIV www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Chaves, 12 de Setembro de 1983. RESGUARDO Quero-te num poema. Viva e transfigurada, Sentada No banco dum jardim De versos outonais, A ver nos horizontes irreais Sumir-se o tempo, o burlador Do amor, Que diz que volta, mas não volta mais. Diário XIV www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Lisboa, 17 de Janeiro de 1985. ÍMPETO No cais deserto onde embarquei outrora, Sonho agora Outra aventura igual. Fui Portugal Na minha meninice. Quem diz que já não posso Rezar um Padre Nosso E partir em seu nome na velhice? Diário XIV www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens S. Martinho de Anta, 19 de Setembro de 1987 – A grande mamoa da serra escavada. A câmara, o corredor e os contrafortes expostos à luz do dia e ao espanto de quem olha. Sempre me fascinaram as construções dolménicas pelo que têm de monumental e sagrado. Apesar de cingido ainda à pedra tosca, o homem deu logo em cada uma delas a sua medida no material e no espiritual. Foi físico e metafísico. (...) Diário XV www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Lisboa, 16 de Abril de 1986 – A Lisboa que eu mais amo. A que ficou fiel ao resto da nação, nos larguinhos provincianos, nos jardins íntimos, nos fontanários soalheiros. A nossa medida ou é à escala do mundo ou à do campanário que nos viu nascer. Diário XIV www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Porto, 29 de Junho de 1986 – Continuo a gostar desta terra, a cidade que o meu Doiro merecia. Um socalco urbano granítico, a reflectir o voluntarismo laboral e cívico nas águas dum rio de suor penitente. Diário XIV www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Chaves, 6 de Setembro de 1986. MIRADOIRO Não sei se vês, como eu vejo, Pacificado, Cair a tarde Serena Sobre o vale, Sobre o rio, Sobre os montes E sobre a quietação Espraiada da cidade. Nos teus olhos não há serenidade Que o deixe entender. Vibram na lassidão da claridade. E o lírico poema que me acontecer Virá toldado de melancolia, Porque daqui a pouco toda a poesia Vai anoitecer. Diário XIV www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens S. Martinho de Anta, 30 de Março de 1988. PRESERVAÇÃO Fiéis, as minhas flores, Azáleas, rododendros, pionias, Quiseram que estes dias De treva e de paixão Fossem alegres como a natureza. De maneira discreta, Abriram na tristeza Do meu coração Com tal beleza, Que a pura gratidão Manda o poeta Preservá-las assim, Festivas E votivas, Num mais perene e mágico jardim. Diário XV www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens S. Martinho de Anta, 3 de Abril de 1988 – Despeço-me da casa paterna, do jardim, do negrilho e das fragas. Das únicas riquezas que gostei verdadeiramente de possuir no mundo, e de que sou avaro. Que não tive de ganhar, mas de merecer. Diário XV www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Lisboa, 20 de Abril de 1988. PESADELO Memória do passado. Quem pudera apagá-la Neste cais deserto! Nenhum cabo do mundo descoberto, Nenhum convés de aventura. Um Tejo sem vocação De caminho da Nação Para o mar e a lonjura. Diário XV www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Chaves, 1 de Setembro de 1988 – O que me salva nesta existência repetitiva é a minha capacidade de renovar incessantemente a visão das coisas. Nunca esgoto a realidade. Tanto a perscruto, que, como no amor, que nenhuma aparência satisfaz e vai sempre além do que vislumbra, acabo por descobrir nela um pormenor que a torna inédita ao olhar e à imaginação. Estou sempre pela primeira vez em todos os lugares. Diário XV www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens S. Martinho de Anta, 23 de Março de 1989 – A tarde inteira a galgar à sobreposse, certamente pela última vez, os montes familiares sobranceiros ao Doiro, e a receber nos olhos comungantes cada imagem esplendorosa como um sacramento. Diário XV www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens S. Martinho de Anta, 11 de Setembro de 1989 – Os mitos são verdades eternas. Quando aqui chego, é sempre um Anteu combalido que me sinto, a tocar a terra alentadora e a recuperar as forças. Não as do corpo, mas as da alma. É um gosto súbito de estar no mundo, uma alegria íntima e sadia do espírito, como se me fossem dadas de repente razões de vida que não tenho lá longe. (...) Diário XV www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens S. Martinho de Anta, 12 de Setembro de 1989 – Olho estes montes circundantes que desde muito cedo me desafiaram a imaginação e as pernas. Todos subi e desci inúmeras vezes, primeiro como ganapo irrequieto, depois como caçador inveterado, e ultimamente como poeta rememorativo. Os horizontes que deles contemplei é que me balizaram a alma. E agora, que estou no fim, pergunto a mim mesmo o que seria tudo quanto escrevi se eles fossem outros. Nascemos num sítio. E ficamos pela vida fora a ver o mundo do fragão que primeiro nos serviu de mirante. Diário XV www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens S. Martinho de Anta, 29 de Abril de 1990. CONFRONTO Serras da minha infância E da minha velhice. Então, porque as passeava Alado como o vento Que nelas me enfunava O corpo e o pensamento. Agora, porque as namoro Alcandoradas Na eminência sagrada Dum altar Onde nenhuma fé cansada Pode chegar. Serras dos meus poemas Malogrados. Sonhados Da mesma altura Nos dias abrasados Da inspiração, Arrefecidos, são Ecos rasteiros de uma voz erguida. Balbúcios de candura Na memória dorida Que, teimosa, os murmura. Diário XVI www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens S. Martinho de Anta, 30 de Abril de 1990 – Sentado no pátio da casa à sombra do noveleiro, coroado de flores e rodeado de silêncio. Plantei mais um rododendro que comprei à vinda num horto do caminho, arranquei um lilás excessivo, podei algumas roseiras, e gozo agora a paz do entardecer, desobrigado dos doentes, que me não largam sempre que venho, e da enxada que me lembra as silvas teimosas que desde o amanhecer combati. (...) Diário XVI www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Coimbra, 29 de Maio de 1990 – Horas infindas fechado no consultório a fazer contas à vida. A medir a frequência e o ritmo das pulsações cardíacas, à espera de que este meu velho relógio sem corda sossegue ou pare de vez. É aqui que eu tenho esperança de fechar os olhos, sozinho, sem despedidas dilacerantes, com os olhos cheios da policromia do largo ajardinado fronteiriço, da frescura líquida do rio remansoso e do aceno dos horizontes alargados pela imaginação durante meio século ao mundo inteiro. S. Martinho foi o lugar de onde. Coimbra o centro desse mundo misterioso e apaixonante que de lá perspectivei. Diário XVI www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Gaia, 24 de Dezembro de 1990. ÚLTIMO NATAL Menino Jesus, que nasces Quando eu morro, E trazes a paz Que não levo, O poema que te devo Desde que te aninhei No entendimento, E nunca te paguei A contento Da devoção, Mal entoado, Aqui te fica mais uma vez Aos pés, Como um tição Apagado, Sem calor que os aqueça. Com ele me desobrigo e desengano: És divino, e eu sou humano, Não há poesia em mim que te mereça. Diário XVI www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Coimbra, 8 de Maio de 1991. MADRIGAL PARA DEPOIS Quando, por fim, o mundo for só nosso, Sem reparos alheios, E os meus versos a fiel legenda De cada hora, Saberás, musa, claramente Como a vida dura Para além da macabra certidão Da realidade. Pede, pois, com fervor, À santíssima senhora Da boa morte Que, sem mais sofrimento, Piedosamente, Me receba nos braços regelados, E nos permita ser eternamente Felizes e secretos namorados. Diário XVI www.netprof.pt www.netprof.pt Cem anos, cem imagens Cem anos, cem imagens Coimbra, 10 de Dezembro de 1993. REQUIEM POR MIM Aproxima-se o fim. E tenho pena de acabar assim, Em vez de natureza consumada, Ruína humana. Inválido do corpo E tolhido da alma. Morto em todos os órgãos e sentidos. Longo foi o caminho e desmedidos Os sonhos que nele tive. Mas ninguém vive Contra as leis do destino. E o destino não quis Que eu me cumprisse como porfiei, E caísse de pé, num desafio. Rio feliz a ir de encontro ao mar Desaguar, E, em largo oceano, eternizar O seu esplendor torrencial de rio. Diário XVI www.netprof.pt www.netprof.pt