Tempos Férteis
Beatriz Moreira Lima
Tempos Férteis
1ª Edição
POD
Petrópolis
KBR
2012
Edição de texto KBR
Editoração KBR
Capa (adaptação da edição original) Mariana Avillez
Copyright © 2012 Beatriz Moreira Lima
Todos os direitos reservados à autora.
ISBN: 978-85-8180-080-6
KBR Editora Digital Ltda.
www.kbrdigital.com.br
[email protected]
55|24|2222.3491
B869- Literatura Brasileira
Beatriz Moreira Lima nasceu em 1970, no Rio de Janeiro.
Formada em Direito, exerceu a advocacia por um breve
período e há dez anos trabalha como funcionária do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Tempos Férteis, seu primeiro romance publicado, teve edição prévia
pela 7 Letras, RJ., tendo sido um dos primeiros romances lançados pela KBR
em versão digital.
E-mail da autora: [email protected]
Esta é uma obra de ficção. As personagens e situações apresentadas não
se referem a pessoas ou fatos reais.
Para Chico e Zeca.
Sumário
1. Luísa • 11
2. Otávio • 17
3. Luísa • 25
4. Marco Túlio • 33
5. Luísa • 35
6. Luísa • 47
7. Otávio • 63
8. Luísa • 67
9. Frederico • 77
10. Marietta • 81
11. Luísa • 87
12. Otávio • 93
13. Adriana • 97
14. Luísa • 103
15. Marco Túlio • 111
16. Otávio • 123
17. Adriana • 125
18. Maria • 129
19. Berenice • 133
20. Luísa • 137
21. E-mails • 141
22. Berenice • 147
23. Otávio • 151
24. Luísa • 157
25. Hugo • 167
26. Otávio • 171
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27. Bianca • 177
28. Vadinho • 181
29. Fernando • 187
30. Esmeralda • 191
31. Berenice • 199
32. Jorge • 203
33. Luísa • 207
34. Adriana • 215
35. Otávio • 227
36. Luísa • 231
37. Luísa • 241
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1. Luísa
Os dias de pouco movimento são os mais extenuantes. Odeio a sen-
sação de perda de tempo. Mas a loja em que trabalho é assim mesmo.
Pouca gente tem coragem de entrar. Os preços são tão exorbitantes que
às vezes tenho até vergonha de informá-los aos clientes.
Olho o relógio. Quinze para as seis. Antônio já deve ter saído da
escola. Será que ainda está chovendo? Espero que Paulo não pare a van
muito longe. Se Antônio pegar chuva, o resfriado vai piorar... Vou ligar
para casa e dizer para Alice dar uma vitamina C para ele. Não, melhor
ligar mais tarde, que aí aproveito e falo com ele. Ainda bem que esta semana não pego mais turno da noite. Não gosto que Antônio fique acordado até tarde me esperando. Mas também não gosto quando dorme
antes de eu chegar. Acho que me preocupo demais. Estou virando uma
mãe obsessiva. Deve ser a falta do que fazer.
Ah, finalmente uma cliente! Essa é minha, Valéria que não venha tentar me passar para trás! Tem cara de rica. Bolsa de grife. Cafona,
mas cara. Sorrir e mentalizar. Vou vender. Vou vender. Vou vender. A
abordagem tem que ser muito simpática, mas sem desespero. Oi, meu
nome é Luísa, posso ajudá-la em alguma coisa? Ela está só dando uma
olhadinha... Não desanimar, isso não quer dizer nada. Eu também digo
isso para afastar vendedores intrometidos. Agora é só deixá-la olhar à
vontade. Isso... Mais daquele lado, onde estão os vestidos de festa... Ótimo, esse modelo que ela pegou é caro, mas não chega a assustar. As
cores? Além do verde, tem preto, cinza e azul. Estampado? Não, estampado só este outro modelo. Sinto muito. De nada. Boa tarde! Devia ter
mostrado o azul petróleo... Agora já era.
Seis e quinze. O tempo não passa. Antônio já deve ter chegado
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em casa. Mas Valéria está ao telefone, ligando para as clientes para avisar
que chegou a nova coleção. É melhor nem chegar perto para não correr
o risco de Berenice me mandar telefonar também. É muito constrangimento. Dificilmente vou dar a mesma sorte de ontem. Não é todo dia
que você liga para vinte clientes e só encontra três... Tá quase na hora do
lanche. Preciso de um cigarro.
Pensei que esse dia não fosse acabar nunca. Finalmente em casa,
encontro Antônio fingindo dormir diante da televisão. Considerando
que já passa das dez da noite e que ele está assistindo a um vídeo do
Barney, é incrível que ainda esteja acordado. Finjo grande decepção
para Alice e, ainda de olhos fechados, ele não consegue controlar o riso.
Aproveito para abraçá-lo, apertá-lo e beijá-lo. Nada mais gostoso do que
um menininho cheiroso de pijama.
O que poderia ser o início de uma noite relaxante começa a desandar quando, inadvertidamente, levo para a cozinha o prato contendo
quatro biscoitos pelos quais a doce criança se desinteressou e não resisto
a comer um deles no percurso, muito embora o mesmo não valha as
calorias que contém.
Alguns minutos mais tarde, Antônio diz que está com fome e
que quer os biscoitos. Sem hesitar, volto à cozinha para pegar o prato
com os três biscoitos que sobraram e levo-os ao príncipe da casa. Ele dá
uma espiada de rabo de olho e, ao invés de pegar um biscoito, arma um
bico que anuncia o começo de um piti. Informa que quer quatro biscoitos. Docemente, sem deixar transparecer qualquer sinal de irritação,
respondo que, assim que ele comer os três biscoitos, eu busco mais um.
Antônio insiste que quer os quatro biscoitos e no prato. Vai começar
de novo... Eu já vi esse filme. Mais uma vez explico que vou pegar mais
biscoitos depois que ele comer os três. Mas a criatura que saiu de dentro
de mim grita e esperneia. Quer quatro biscoitos agora ou então não vai
comer nenhum. Pois então não coma, pra mim tanto faz, respondo confiante de que ele perceberá que chegou num beco sem saída. Talvez ele
não saiba ainda reconhecer um xeque-mate, pois não se dá por vencido.
Começa a chorar, dizendo que está com fome e insistindo nos quatro
biscoitos. Tentando manter o controle e a coerência, repito que, se ele
está com fome, pode comer os biscoitos do prato. Depois eu pego mais.
Quem disse que paciência e firmeza levam a algum lugar? Antônio ig| 16 |
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nora meus esforços e parte para o território das chantagens e ameaças.
Se eu não lhe der seus quatro biscoitos, não vai comer mais nada: nem
comida, nem almoço, nem jantar. Nunca! Ingênua, tento persuadi-lo
com lógica e cálculos matemáticos. Afinal, qual é a diferença entre quatro e três mais um? Nenhuma, pois três mais um é igual a quatro. Ele já
aprendeu isso na escola. Como esse último argumento tampouco surte
efeito, resolvo apelar para a autoridade. Vou contar até três, e se ele não
parar com a manha, vai para a cama imediatamente. Um..., dois..., três!
Alguns instantes de silêncio. Nos encaramos seriamente. Mantenho a
fisionomia impassível. Mas não adianta, ele volta à estaca zero. Chora
e faz exigências absurdas até desmoronar a minha fachada de rainha
do autocontrole. Grito que o que ele quer é me aporrinhar. Me infernizar. Estragar a minha noite. Depois, arrependida, tento uma abordagem
psicológica. Pergunto se há algum problema que o esteja afligindo, se
está chateado comigo, ou com saudades. Sei lá, qualquer coisa... Mas
ele continua no mesmo assunto e, encarando-me seriamente, pergunta:
— Sabe por que você tem que me dar os quatro biscoitos? Sabe?
— Não. Por quê?
— É para o seu próprio bem — revela, triunfante.
É realmente incrível como as crianças, no fundo, prestam a
maior atenção ao que a gente diz. Só que não é para entender o que
a gente está explicando ou para aprender o que a gente está tentando
ensinar. Não. Elas prestam atenção apenas para usar o que for possível
contra nós, em alguma oportunidade futura. Quando a gente tem filhos,
deveria aparecer um policial americano e avisar: “Você tem o direito de
permanecer calado. Tudo o que disser poderá ser usado contra você no
tribunal”.
Eu nem sei mais por que insisto em negar o quarto biscoito. Mas
parece que peguei um caminho sem volta. Quando dou por mim, estou
na cozinha, chorando e falando das crianças que não têm nenhum biscoito. Antônio, por sua vez, também chora, dizendo que vai morrer de
fome (a tendência ao dramalhão deve ser genética). Estou exausta, não
aguento mais. Ele também parece esgotado e não opõe resistência quando o levo para a cama. Já deitado, pede que eu chame Alice para ficar
com ele, deixando bem claro o que eu já suspeitava: ele não me ama, eu
sou uma péssima mãe. Será que algum dia ele vai entender que a minha
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intenção era boa? Que eu só queria educá-lo para a vida, para o mundo?
Não ceder a todos os caprichos por preguiça. É muito fácil atender a
todas as vontades, difícil é dizer não. Impor limites. A criança precisa
de limites. Enfim, será que ele não percebe que eu lhe neguei o raio do
quarto biscoito “para o seu próprio bem”? Talvez eu esteja enlouquecendo, melhor chamar logo Alice, que embora não seja propriamente babá,
mas responsável por todo o serviço da casa, tem uma paciência infinita
com Antônio. E comigo também. Não me censura por perder a cabeça
nem por pedir ajuda às quase onze horas da noite. Como estou com os
nervos em frangalhos, tomo um Lexotan e vou ver televisão.
Acordo desorientada, às três da manhã, ainda no sofá da sala.
Vou até o quarto de Antônio. Ele dorme profundamente, de barriga para
cima, com os braços estendidos acima da cabeça. Como é doce e inocente. Me dá um aperto no coração... Vou chorar na minha cama.
Desperto com o toque insistente do telefone. Olho o despertador. Sete e três. Alice atende na cozinha. A esta hora, só pode ser meu
ex-marido. Será que nem depois de me abandonar ele vai me deixar
dormir em paz? Será que não pode acordar seja lá quem for que anda
dormindo com ele? Confirmando minhas suspeitas, Antônio irrompe
no quarto:
— Mãe, o papai quer falar com você. Ele vai me levar para uma
fazenda que tem cavalos e patos e cachorros e alface e tomate e cachoeira e mais um monte de coisas legais...
O desgraçado agora quer aliciar meu filho...
— Que ótimo, filhote! — exclamo, com o melhor sorriso que
consigo esboçar a esta hora da madrugada — E quando vai ser esse passeio maravilhoso?
— No fim de semana. Agora vai lá falar com ele pra combinar
tudo. Ele disse que eu não preciso ir na escola no dia da viagem...
— Ah é, é? — respondo com um tom de ironia imperceptível
para uma criança enquanto ligo o telefone do quarto na tomada — Agora vai lá pra cozinha que a mamãe vai atender aqui, tá? Depois eu te
conto tudo.
Espero ele sair do quarto e atendo:
— Alô.
— Oi Luísa, tudo bem?
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— Tudo, e você?
— Tudo ótimo. Escuta, desculpa eu te ligar a essa hora, mas é
que eu preciso tomar umas providências urgentes e dependo de você
concordar. É que eu descobri uma pousada maravilhosa na região de
Mauá, que é tipo uma fazenda, um lugar genial para crianças, e eu tava
querendo levar o Antônio esse fim de semana.
— Bom, a essa altura, você não me deixa muita escolha, não é
não? Você já falou pro menino que vai levar ele pra viajar... Se eu não
deixar, eu sou a monstra. Como sempre, aliás...
— Porra, Luísa, muda o disco. Eu te liguei numa boa, pra perguntar.
— Só que antes de me perguntar você falou com ele, que, é óbvio, já está animadíssimo. Ou seja, trata-se de um fato consumado. Mas,
tudo bem, eu desmarco o almoço com a minha avó. Afinal, ela não é nenhuma criança, tem noventa e cinco anos, vai entender perfeitamente...
— Não, Luísa, sem essa. Se você não quer, nós não vamos. Eu
não vou levá-lo se for pra aturar reclamações por meses. Não tem problema, a gente combina em outra oportunidade. Só não sei quando é
que eu vou ter condições de matar uma sexta-feira de trabalho. Esta
semana está especialmente calma lá no escritório...
— Ah, Otávio, não fode! Agora você vai levar ele sim. Porra, que
inferno, será que nem a gente estando separado você me dá sossego?
SOSSEGO! É só o que eu peço.
— Bom, Luísa, se você vai ficar histérica, é melhor a gente falar
outra hora...
— Que outra hora?! Você não disse que ligou agora porque precisava decidir? Ou ligou só pra me acordar, hein?
Antônio abre a porta do quarto e enfia a cara, com um ar preocupado.
— Oi, meu filho, pode deixar que a mamãe já tá combinando
tudinho. Espera lá com a Alice que já, já eu vou lá.
— É que eu queria falar com o papai pra saber se eu vou dormir
no quarto com ele...
— Tá bom, meu filho, quando a gente acabar de falar eu te chamo, tá?
— Tá.
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Sai e fecha a porta.
— Então, Otávio, faz como você quiser e depois me avisa a que
horas você vem buscá-lo. Agora ele quer falar com você. ANTOONIOOO!!! Atende aí na cozinha!!!
Espero ele atender e desligo. Vou fazer xixi e aproveito para me
trancar no banheiro e chorar um pouco. Que merda de vida. Que bosta.
Na verdade, não tem problema nenhum em Otávio levar Antônio para
viajar. Eu não combinei coisa nenhuma. Mas o que eu vou ficar fazendo sozinha no Rio? Sem marido, sem filho, sem dinheiro, sem amigos
(todo mundo está casado e ninguém faz nada de interessante), sem porra nenhuma. Como é que eu cheguei nesta situação? Eu que tinha tudo?
Eu que era feliz e não sabia?
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