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Revista Acadêmica do Grupo Comunicacional de São Bernardo
www.metodista.br/unesco/GCSB/index.htm
Ano 1 - nº 2 - (julho/dezembro de 2004)
Textos previamente apresentados em reuniões científicas e
selecionados pelos membros do comitê editorial
"MEDO DE GINECOLOGISTA": DRAMATURGIA, GÊNERO E
SAÚDE DA ADOLESCENTE NA RÁDIO-ESCOLA
Maria Inês Amarante*
(Universidade Metodista de São Paulo - Brasil)
Resumo
"Medo de ginecologista": Dramaturgia, gênero e saúde na adolescência na Rádio-Escola
Referências Bibliográficas
Trabalho apresentado no Comsaúde 2004 (VII Conferência Brasileira de Comunicação e Saúde )
Resumo
As rádios comunitárias têm apontado novos caminhos para a participação social dos comunicadores
excluídos dos meios de comunicação massivos. Porém, uma das maiores dificuldades para a
afirmação desses veículos tem sido a ausência de um modelo de programação educativa capaz de
atender às necessidades de seus ouvintes. Em Fortaleza, no Ceará, a chegada do rádio na escola
trouxe uma nova perspectiva de atuação de adolescentes através da criação de materiais
informativos. O objetivo principal deste estudo, foi verificar em que medida esses jovens
comunicadores inovam na produção de mensagens para essas rádios, se estão apenas
"reproduzindo" estereótipos da grande mídia e quais são as perspectivas apontadas pelo uso da
linguagem dramática.
O trabalho, recorte de uma ampla pesquisa sobre a participação do adolescente no meio de
comunicação escolar, revela as alternativas encontradas no suporte dramático quando da
abordagem de questões de saúde do jovem. Nota-se que, ao transmitir informações básicas sobre o
corpo e a sexualidade feminina, as meninas evidenciam desigualdades de gênero no cotidiano. A
metodologia utilizada na pesquisa foi: levantamento bibliográfico e documental, questionários e
entrevistas semi-estruturadas e análise semiológica (Greimas) do roteiro ficcional "Medo de
Ginecologista", baseado em uma visita médica.
Palavras-chave: Rádio-escola; adolescentes; dramaturgia; gênero e saúde
"MEDO DE GINECOLOGISTA": DRAMATURGIA, GÊNERO E SAÚDE DA ADOLESCENTE NA
RÁDIO-ESCOLA
I. Introdução
A primeira constatação que se nos impõe nos dias de hoje é de que os media são utilizados para
produzir um modelo de comunicação de mão única, com características bem próprias. Ao mesmo
tempo em que se propõem a servir ao consumo das "massas", veiculam mensagens distantes da
realidade, não cumprem plenamente com sua função sócio-educativa (ORTRIWANO, 1985, p. 53).
O sistema radiofônico brasileiro, sob o controle do Estado, tem evidenciado os interesses políticos e
econômicos que regem as concessões (PERUZZO, 1999, p. 135). Desta forma, longe de
representar um canal aberto para a difusão da educação e da cultura que imperou em seus
primórdios (MOREIRA, 1991, p.20), o veículo cedeu lugar a uma programação que, pouco a pouco,
passou a atender, sobretudo, o interesse comercial de seus responsáveis (FANUCCHI, 1998, p. 3).
As necessidades e aspirações de boa parte da população estão situadas em um plano bem diferente
do que é produzido pelo jornal, o rádio ou a televisão. É natural, portanto, que tenham surgido
reivindicações por parte daqueles que foram excluídos da chamada indústria cultural. Segundo
Chauí (1986, p. 2), "a noção e a prática da Comunicação de Massa excluem a idéia e a prática da
opinião pública". Entre os motivos expostos, a autora afirma que "a opinião pública pressupõe o
direito à expressão e o direito à informação (...) mas a Comunicação de Massa subordina a
informação às exigências do mercado e do Estado (...)."
A luz de uma história recente, revela-se uma dinâmica de mobilizações de novos atores sociais pela
conquista do espaço midiático. Desse despertar nasceu uma proposta inovadora no seio das classes
populares: a comunicação alternativa, comunitária e participativa, praticada principalmente no rádio.
Os moradores da periferia de inúmeros centros urbanos convivem atualmente com esse modelo
democrático de comunicação e têm tido a oportunidade de expressar-se, passando de simples
receptores da mídia comercial a emissores-produtores ativos na rádio do próprio bairro, situando-se
a um nível de participação social considerada ampliada por Peruzzo (1997, p. 248). Este acesso
popular, ainda em processo, tem favorecido a condução de muitas lutas comunitárias contra a
violência da exclusão social.
No entanto, nota-se que a potencialidade educativa do rádio tem sido pouco explorada em toda a
sua extensão nas rádios comunitárias. Entre as limitações para sua prática, conforme levantamento
feito por Peruzzo (1999, p. 151), estão a pouca diversidade de assuntos, a falta de competência
técnica, a carência de recursos financeiros, a inadequação dos meios, etc.
Por outro lado, devemos considerar que para uma transmissão eficaz de mensagens visando
sensibilizar e educar a população urbana e rural, o desafio que se apresenta no momento é a arte de
encontrar a "linguagem adequada". Há, pois, inúmeras frentes de trabalho neste campo, passíveis
de alterar a própria concepção do uso do rádio em proveito do desenvolvimento local.
II. Rádios comunitárias e rádio-escola em Fortaleza
A exemplo do que ocorria em outras regiões do país e da América Latina desde os anos 1970,
Fortaleza viu nascer em seus bairros de periferia sistemas de comunicação móveis, por meio de altofalantes, cuja finalidade era produzir informações e conhecimentos que interessassem efetivamente
às comunidades, retratando a realidade local. Este sistema tem sua origem nas chamadas
"radiadoras", muito comuns nas cidades do interior do Estado antes do aparecimento da televisão, e
meio de difusão que transmitia apenas músicas e informações de utilidade pública.
A Arcos-Cepoca - Associação de Rádios Comunitárias de Fortaleza, cuja experiência em formação e
mobilização de comunicadores fora herdada do Cepoca (COGO, 1998, p. 123), que vinha
organizando equipes de monitores desde o final da década de oitenta, procurou manter ciclos de
formação radiofônica para comunicadores populares, realimentando as rádios comunitárias. A partir
de 1996 ela passa a desenvolver projetos onde era grande o contingente de jovens, procurando
envolvê-los nas atividades de comunicação em seus bairros (ARCOS-CEPOCA, 1996, p. 8).
Entre 1997-98, a entidade, em parceria com a Prefeitura local e o UNICEF, organiza uma
experiência inovadora em comunicação alternativa: a rádio-escola (AMARANTE, 2004, p. 66). A
idéia pioneira, unindo a experiência de comunicadores populares à de jovens estudantes, partiu de
uma comunidade da periferia, onde adolescentes, que haviam recebido formação radiofônica,
transformaram o sistema de som da escola em uma rádio comunitária.
O "Projeto-piloto de rádios comunitárias escolares" foi implantado em seis escolas da rede pública
municipal. Apesar da simplicidade dos equipamentos instalados, os alunos passaram a atuar como
comunicadores, apresentando uma programação educativa que mesclava vários formatos
radiofônicos.
III. Entre dramas e conflitos: o radioteatro na escola
Com a finalidade de avaliar as tendências dominantes na produção de mensagens pelos
adolescentes cearenses e a importância do meio de comunicação na escola, realizamos uma
pesquisa exploratória em duas rádios escolares na primeira fase do projeto, no ano 2000, estudo
esse atualizado entre 2002 e 2004.
Embora a maioria dos alunos seja constituída de ouvintes assíduos de rádios FMs comerciais, a
programação que ofereciam na rádio-escola incluía muita música, recados do coração, orações,
agenda escolar e rádio-revistas temáticas, abordando assuntos variados e próximos da realidade,
tais como: sexualidade, drogas, gravidez na adolescência, planejamento familiar, DST, AIDS,
campanhas contra a dengue, sobre o ECA, preservação do meio ambiente, violência infantil e até o
desemprego dos pais.
Aos poucos, esta programação foi sendo aprimorada com a introdução de sociodramas, que são
apontados, por unanimidade, como um modo criativo e bem humorado de despertar o interesse dos
educandos para a discussão de temas pautados no cotidiano, servindo igualmente de catalisador da
adesão de novos alunos ao trabalho radiofônico.
Pela aplicação com que elaboravam estes roteiros ficcionais, exprimindo fatos, descontentamentos
ou conflitos gerados no meio do qual fazem parte, pudemos perceber que esta forma de expressão
era importante no processo educomunicativo, fato este igualmente notado nos cursos de formação
que ministramos (AMARANTE, 2000, p. 16).
Alguns resultados de análises de radiodramas mostram as possibilidades educativas da ficção para
a abordagem de temas da atualidade no rádio a partir do ideário jovem.
É interessante notar que o rádio no Brasil já havia realizado tal proeza entre os anos 30-50 (ORTIZ,
1989), apresentando radionovelas que marcaram época, mas abandonou o gênero ficcional com a
chegada da televisão. Este fato nos levou a questionar sobre a possibilidade de resgate da
radiodramaturgia nos dias de hoje, melhorando a qualidade da participação social dos
ouvintes/receptores. O uso do radioteatro poderia ser considerado uma alternativa sócio-educativa
em comunicação?
Embora a produção ficcional seja mais complexa, por envolver um sem-número de preocupações
além da escrita de um texto - como o elenco, a interpretação e os recursos sonoros que utiliza, nas
rádios comunitárias escolares o mesmo princípio se repetia.
Esse fenômeno da "magia do teatro", ou do drama, como modo de comunicação, há séculos vem
despertando o interesse de autores e de estudiosos. Uma das primeiras referências a que se faz
sobre o assunto vem do Capítulo VI da Poética de Aristóteles, onde a tragédia é apresentada como
imitação (mimesis), no sentido de uma recriação da realidade vivida por um ser humano através
de ações, visando a resolução de um conflito. Ele seria, portanto, a mola propulsora do drama.
O gênero dramático representa então o que somos: ele imita a vida, recria situações e
comportamentos que já vivemos, estamos vivendo ou queríamos viver. Etimologicamente, drama
(do latim), drâma (do grego) significa ação. Porém, uma ação apenas pode ser dramática se ela
gera outra ação oposta; "para ser dramática, uma determinação (vontade) humana tem que produzir
interesses e paixões antagônicos" (SENNA, 1993, p. 54).
O homem teria, portanto, que optar entre uma coisa e outra para encontrar soluções, resolvendo-se
como ser dialético, que se desenvolve a partir de antagonismos e contradições (COMPARATO,
1996, p. 95).
Aristóteles (apud PALLOTTINI, 1989, p.8) já afirmara que todo ser humano gosta de representar e
de ver coisas representadas. O faz-de-conta teatral seria então, por si só, uma forma de atualizar
situações passadas, pois ao se contemplar a imagem (do que foi) se aprende a identificar a situação
original (ARISTÓTELES, p. 33).
A partir do estudo da obra aristotélica, vários estudiosos se debruçaram sobre a questão. Nos anos
40, John H. Lawson (apud PALLOTTINI, 1996) afirma "que o caráter essencial do drama é o conflito
social": - conflito de força humana (do ser humano para outro ser humano, ou grupos...); - conflito de
forças não-humanas (com questões cósmicas ou páranormais) e conflitos internos (de ordem
psicológica, moral ...), no qual a vontade consciente é forte o bastante para trazer o conflito a um
ponto de crise.
Baseando-se em uma "poética" marxista, Bertold Brecht (apud CANDIDO et al., 1972, p. 97) diz que
tudo o que tem relação com "o conflito, o choque ou o combate" nunca pode ser tratado fora da
dialética materialista, pois é proveniente de uma força social real que determinaria estas atitudes. A
representação teatral incitaria, pois, "à ação e não à contemplação".
Em qualquer das hipóteses, há uma preparação dramática, criando um ambiente propício que
predispõe o público a aceitar o conflito social evidenciado ou revelado (PALLOTTINI, 1988, p. 33).
Talvez, por este motivo, haja uma confluência de diversos autores quando afirmam, como
Bordenave (1983, p. 89), que "os problemas comunitários apresentados através de dramas (...)
fazem a comunidade enxergar-se como num espelho", facilitando a discussão coletiva posterior.
Acrescentaríamos a este raciocínio que isto se dá sob nova ótica, pois as pessoas introjetariam os
próprios conflitos, restituindo-os ao grupo.
As ações empreendidas pelos personagens, para a resolução desse(s) conflito(s), têm todas uma
finalidade na história dramática. Daí o personagem ser a base do drama, pois através dele se
desenvolve a ação. E a ação dramática é uma síntese entre o subjetivo e o objetivo (subjetividade
do gênero lírico, introspectivo, e objetividade do gênero narrativo, que conta o que é exterior).
IV. Do sonho à realidade: saúde e sexualidade feminina na escola pública
Quando questionados sobre a preferência pelas telenovelas, a maioria dos estudantes aponta o fato
de que elas apresentam histórias interessantes. Na realidade, esta observação está, seguramente,
relacionada ao fato de que a telenovela predomina na programação nacional televisiva (ORTIZ et al.,
1991, p. 91). Porém, as opiniões se dividem quando se trata de avaliar se elas retratam bem ou
apenas um pouco a nossa realidade: 46% dos jovens, independentemente do sexo, acham que elas
fazem "sonhar com outra realidade".
Acreditamos que a análise de um dos roteiros dramáticos criados por duas adolescentes, "Medo de
Ginecologista", apresentado na seção "Papo de Garota" da Rádio-escola LUAR DO SERTÃO em
setembro de 1999, poderá enriquecer o debate sobre o uso desse formato nas programações
radiofônicas.
É importante observar a maneira como as jovens trabalham a realidade para construir a ficção,
verificar se reproduzem situações ou personagens, como as inventam e que alternativas encontram
para resolver seus conflitos.
Para realizarmos uma leitura mais apurada do drama, Souriau (apud PALLOTTINI, 1989, p. 131)
sugere a análise da correlação das situações dramáticas, que podem ser alteradas no decurso da
ação, sob o ponto de vista de certas funções exercidas pelos personagens da história ficcional. O
autor chama de "função dramatúrgica" o modo específico de "trabalho em situação de um
personagem: seu papel próprio enquanto força num sistema de forças" (1993, p. 52). Cada
personagem teria, portanto, uma força específica.
Nessa mesma linha de avaliação, encontram-se as propostas feitas posteriormente por Greimas
(1995, p. 172-189) que, através de um "esquema actancial", indicando as funções dos personagens,
facilita a compreensão da dinâmica das relações de interdependência que estabelecem entre si ao
longo da história, enquanto "actantes" de um micro-universo. Tal concepção permite-nos
compreender qual é o sentido geral da atividade que lhes é atribuída, em que ela consiste, se é
transformadora e qual é o enquadramento estrutural dessas transformações. Seriam elas a de
sujeito, objeto, destinatário, árbitro (ou motor do drama), adjuvantes e oponentes, representadas
como no seguinte quadro:
Árbitro è
Objeto è Destinatário
é
SUJEITO
ë
Adjuvante
ë≠
Oponente
Na categoria actancial, a relação Sujeito&Objeto é articulada com base no desejo, o Objeto podendo
ser, ao mesmo tempo, o de desejo e o de comunicação, também atuando no sentido de "busca". Já
entre o Árbitro (Destinador) e o Destinatário, prevalece a marca de uma "missão" e o Destinatário
pode, muitas vezes, ser considerado como um "sujeito-herói". O Adjuvante e o Oponente exercem
funções contrárias: o primeiro traz ajuda ao sujeito para que seu desejo se realize; enquanto que o
segundo cria obstáculo no decorrer da trama (GREIMAS, 1995, p. 176-180).
Levando-se em consideração essa relação de forças e os conflitos decorrentes destas, verificaremos
as manifestações de ordem afetiva, psicológica, sociológica e educativa, segundo modelo de análise
sugerido por Pallottini (1989, p. 147-9) que adaptamos ao texto das adolescentes, onde aparecem
os tópicos principais da composição do drama, alguns dos quais também desenvolvidos por
Comparato (1996). Tentaremos evidenciar, ao longo do processo, a intencionalidade desses alunos
pois, como lembra Boal (1988, p. 97), a escolha do tema, da história e dos personagens já revela
uma tomada de posição por parte do autor.
V. O "Medo de ginecologista"
Narradora Consultório ginecológico,
início da tarde. Uma garota de uns 14
anos entra acompanhada da mãe. As
duas vão até a mesa da secretária. A
mãe explica.
Rosane Minha filha tem consulta marcada para as duas.
Leiliane Pois não. Só um minutinho que o Doutor Pedro já vai atender
Elizânia (assustada) Pedro?! É um homem? Vocês não têm médica mulher aqui?
Leiliane Não, meu anjo, só o Doutor Pedro.
Narradora A garota fica branca, parece
que vai desmaiar. A mãe não está nem
aí, já tão acostumada com esse negócio
de ginecologista. Senta no sofá e lê uma
revista feminina. E eu, que observo toda
a cena do outro lado da sala, vejo a
menina roer as unhas e suar frio. E
lembro de mim mesma e de todas as
minhas amigas nessa fase de horror aos
ginecologistas. No colegial era batata.
Chegava uma menina nervosa,
anunciando:
Rosane Estou sofrendo por antecipação!
Minha mãe marcou consulta no
ginecologista prá mim!
Narradora E aí começava o falatório...
Leiliane Eu é que não vou com médico
homem, nem ferrando! Imagine só, ficar
pelada na frente dele.
Elizânia Tem gente que fala que eles enfiam o dedo na gente. Credo!
Rosane É, mas se for mulher vai enfiar o dedo de qualquer jeito...
Elizânia Mas, pelo menos, dá menos vergonha!
Leiliane Minha irmã mais velha falou que
dá vontade de rir, ficar lá deitada com as
pernas abertas. E que eles não colocam
só o dedo, não. Colocam um negócio
que dói prá caramba!
Rosane E a hora que eu tiver que contar
que já transei? Já pensou se ele dedura
para a minha mãe?
Elizânia Pior sou eu que nem transei
ainda, nem sei como é. Vou morrer de
vergonha prá perguntar...
Narradora E por aí iam, e pelo jeito
ainda vão, as fantasias das
adolescentes de primeira viagem.
Calma lá, pessoal! Primeiro, não importa
se o ginecologista é homem ou mulher.
Antes de tudo, trata-se de um
profissional que estudou anos para isso.
Nos dois casos, ele tem, sim, que nos
examinar com respeito e nos tirar todas
as dúvidas. Caso você não goste da
atitude dele, reclame. O diálogo é
sempre a melhor saída.
Quanto ao papo de "enfiar o dedo", isso
se chama exame de toque vaginal. E
geralmente só é feito em garotas que
não são mais virgens. Assim como o
"negócio" que se coloca lá dentro chamase espéculo e serve para afastar as
paredes da vagina, para que o médico
possa examinar o colo do útero. Não
vou mentir: são exames meio chatos,
mas podem ajudar muito na prevenção
de doenças.
Agora, invertendo um pouco essa
história, eu conversei outro dia com uma
ginecologista especializada em
adolescentes e descobri algumas
coisas. Ela me explicou que,
geralmente, a garota tem medo desses
exames, principalmente porque não
conhece o próprio corpo. Muitas
meninas têm medo até de se tocar,
colocar o próprio dedo na vagina e se
sentir, descobrir onde fica o clítoris, o
períneo, os pequenos e grandes lábios.
Gente, os órgãos sexuais femininos
fazem parte do nosso corpo e da nossa
vida, como todos os outros órgãos. A
gente conhece bem nossa boca, os
olhos e o nariz, por que não os nossos
genitais? E sem esse papo que é feio!
Isso me soa como algo saído da Idade
da Pedra. Nossos órgãos sexuais são
lindos e, quando bem usados, podem
nos dar muito prazer e alegria. Portanto,
sem essa de medo de ginecologista.
Eles existem para ajudar e não para
atrapalhar!
a) Sinopse : uma garota de 14 anos vai com a mãe ao ginecologista. Lá chegando, se assusta ao
saber que será examinada por um homem. A narradora, que presencia a cena, se lembra da própria
atitude na mesma situação e do medo de outras adolescentes que conhece. A partir dessa
lembrança, inicia-se uma outra história entre três meninas que comentam suas dúvidas, medos e
reações diante da visita iminente ao ginecologista. A narradora dá esclarecimentos a todas,
ensinando que a visita ao médico é natural e necessária, conta como ela se passa e enfatiza a
importância da descoberta do corpo feminino para a saúde e o prazer.
b) Notícias sobre as autoras: as criadoras desse texto, Rosane e Raquel, na época com 15 e 16
anos, sempre fizeram parte de uma das equipes de produção, propondo temas, novos programas e
matérias. Gostavam de abordar questões relativas à sexualidade, como gravidez, aborto, amor,
relacionamentos a dois, pais e filhos, e também sobre drogas e violência.
c) O universo do drama
Local da ação : a ação, em um primeiro momento, se passa na sala de espera de um consultório
ginecológico e, num segundo, é ambientada em um lugar qualquer de uma escola de segundo grau.
Estilo, gênero: podemos considerar este texto como uma mistura dos formatos dramático e
narrativo, contendo um comentário final de valor educativo.
d. Ação principal
Tema e idéia central: partindo da idéia da saúde sexual feminina, através da consciência do corpo,
o tema escolhido foi a consulta ginecológica.
Unidade de ação e estrutura: o texto apresenta dois momentos dramáticos e um narrativo em torno
do assunto norteador, sendo que a narradora (fio condutor) lhe confere uma unidade de ação. A
primeira seqüência é interrompida para continuar em outra história sob a forma de flash-back da
própria narradora. A estrutura perde a constância linear ao sofrer duas rupturas: a primeira, com o
deslocamento da ação do consultório para uma escola, mudando os personagens; a segunda com a
introdução de uma narrativa.
e) Estudo dos personagens principais: na primeira seqüência: a narradora, a mãe, a filha, a
secretária, o ginecologista (citado); na segunda seqüência: a narradora, as três amigas, o
ginecologista (citado), a irmã mais velha e a mãe (citadas); na terceira seqüência: a narradora e os
personagens citados (o ginecologista, as garotas e uma ginecologista).
A narradora
A história é apresentada sob o ponto de vista da narradora-personagem, que se encontra no mesmo
local das ações, ou seja, na sala de espera do ginecologista e na escola de segundo grau. Apenas
observadora no início, ela passa depois a recordar sua experiência e faz falar os personagens de
sua memória, aproveitando o momento para instruí-los.
Apesar de não revelar a idade, percebemos que é mais velha do que a menina que vai ao
consultório, pois fala do seu curso colegial no passado. Trata-se, portanto, de uma garota
experiente, tendo ultrapassado a fase de horror ao ginecologista. Ela não é apenas a que sabe mais,
mas também aquela que tem o poder de acalmar e esclarecer as garotas que têm medo, dando-lhes
conselhos e detalhes sobre o funcionamento do corpo e da sexualidade feminina.
Boa observadora, exprime seus sentimentos de solidariedade para com todas as mulheres que
sofrem a hesitação de revelar sua intimidade a um médico homem. Usa de tom didático e não tem
medo de chamar tudo pelo nome certo, recusando os pudores e a linguagem chã. Ensina as
palavras técnicas, dá importância ao que aprendeu para ensinar às interlocutoras, aproveitando a
ocasião para fazer a apologia, sem falsos moralismos, dos órgãos sexuais femininos, que considera
naturais e prazerosos quando bem usados...
Embora não tenha nome, a narradora-conselheira já desenvolveu sua identidade feminina e se sente
à vontade como mulher, pois não tem mais medo de ginecologista. Essa atitude, vinda de um
personagem principal condutor da ação, mostra segurança no uso de um poder de persuasão sobre
as outras garotas. Na qualidade de observadora experiente, ela legitima sua "missão" de ajudar as
colegas a aceitar a identidade feminina sem medos e angústias, desmistificando o papel do
ginecologista como pessoa dotada de uma intencionalidade subjetiva (simbólica) ou de um sexo
(masculino), e enfatizando apenas sua missão técnica. Essa distinção racional entre o biológico e o
profissional, feita por uma adolescente, quando considerada dentro de uma perspectiva de
construção das relações sociais de gênero, que a princípio ocorre no espaço público, lugar da
alteridade (JOVCHELOVITCH, 1994, p. 65), campo das representações sociais, apontaria para uma
nova maneira de articular o feminino e o masculino. Como a construção do "eu" feminino se dá
igualmente no campo simbólico (interior e subjetivo), ao fazer a distinção entre os dois planos subjetivo e objetivo -, o personagem sugere um equilíbrio, uma harmonia de relações entre
identidades diferentes.
A mãe
Embora sem nome, ela aparece aqui como um personagem de função bem identificada: é a
responsável pela filha e tem o poder de mediação entre o privado e o social. Contudo, poder e
experiência causam um grande distanciamento entre mãe e filha. Enquanto uma já se acostumou
com o ginecologista, senta e lê uma revista calmamente, a outra, que vai à consulta pela primeira
vez, sofre calada. Essa atitude da filha, no entanto, passa despercebida pela mãe, que parece nem
notar o espanto da menina ao saber que será examinada por um homem. Tal comportamento revela
desatenção, indiferença ou não conscientização do personagem em relação à sua missão educativa,
papel este que será confiado a outra adolescente do drama, a narradora. Notamos também a falta
de comunicação entre duas gerações de mulheres.
A outra mãe, citada pelas meninas que conversam na escola, confirma este dado comunicativorelacional, pois aparece como um personagem censor ou temerário, que seguramente não
compreenderia (e até reprimiria) o comportamento sexual das mais jovens. Essa atitude talvez fosse
a mesma da mãe que acompanha a filha.
A filha
A jovem que vai ao consultório é uma adolescente comum. Parece inexperiente e muito insegura,
pois tem medo de ser examinada, principalmente por um homem. Sente-se ameaçada por essa
presença do sexo oposto. Não sabemos precisamente qual é o seu relacionamento com a mãe, pois
não verbaliza sua angústia à genitora, passando a roer as unhas e suar frio, reprimindo seus
sentimentos. Podemos supor, por sua atitude, que ela tem as mesmas dúvidas "e fantasias" das
outras meninas sobre o ginecologista.
A secretária
A única frase que pronuncia, não meu anjo..., faz dela uma mulher compreensiva, carinhosa e
maternal que, seguramente, já viu a cena antes na sala de espera.
As três amigas
A primeira é uma adolescente que tem medo do ginecologista, como a filha que a precede. Mas
esse sentimento parece mais relacionado ao fato de ser obrigada a revelar a esse sua experiência
sexual, correndo o risco de que a mãe saiba, o que demonstra sua insegurança quanto à
compreensão da própria genitora. Por outro lado, mostra-se conformada com o fato de que o exame
será feito por um homem, pois vindo de um homem ou de uma mulher, o ato médico será idêntico e
desagradável, pois se for mulher vai enfiar o dedo de qualquer jeito. Porém, duvida da cumplicidade
e fiabilidade masculina, ao temer que o médico viole seu segredo, dedurando sua vida sexual à mãe.
A segunda menina é tão medrosa quanto às outras, porém seu temor maior tem origem no pudor de
ficar nua na frente de um médico homem, expondo seu corpo. Teme também pela situação vexatória
de ter que ficar deitada com as pernas abertas e sofrer com a crueldade daquele que, além do dedo,
coloca um negócio que dói pra caramba, numa quase alusão à defloração, o que remete à
virgindade. Tem como aliada uma irmã experiente que tentou encontrar humor na situação do
exame ginecológico, pois teve vontade de rir.
A terceira menina é a única que confessa sua virgindade e o medo de perdê-la na consulta
ginecológica. Preferia ser examinada por uma mulher, pois dá menos vergonha e não mostra temor
em esclarecer suas dúvidas sobre sexo com o médico, apenas vergonha.
As três amigas se complementam, parecendo compor uma síntese/amostragem das dúvidas das
adolescentes atuais, cuja contradição maior seria a de falar com naturalidade em "transa" sem, no
entanto, conhecer o próprio corpo.
O ginecologista
Na construção da dramaturgia, o que faz um personagem ganhar mais relevo "é o que dele dizem as
demais personagens, é sua construção e visualização nas réplicas alheias" (LESKY apud MENDES,
1995, p. 22). Desta forma, os personagens citados acabam se sobressaindo em relação aos demais.
Esse é o caso desse médico que nunca aparece, tampouco diz algo de si durante toda a trama. Isto
intensifica a importância da construção de sua imagem a partir das diversas gradações de medos
femininos, revelados pela linguagem referencial. Todas as personagens adolescentes mostram a
dificuldade de aceitação do "outro" masculino, cuja representação simbólica se concentra na figura
do ginecologista, como de alguém que causa horror, sofrimento, provoca dor e vergonha nas
mulheres, não merecendo confiança por não respeitar a intimidade física ou psicológica feminina. A
reconstrução dessa imagem só é trabalhada no comentário da narradora, que aproveita para sugerir
uma reconciliação masculino/feminino no mesmo espaço profissional, com a inserção de outro
personagem citado, o de uma ginecologista especializada em adolescentes.
f) Obstáculos enfrentados pelos personagens: os conflitos
O conflito-motor do drama é interno, subjetivo, gerado pelo medo que as jovens, virgens ou não,
teriam do médico ginecologista. Esse sentimento onipresente direciona, num crescendo, toda a
trama até a apoteose educativa mediadora.
g) Situações dramáticas
Situação inicial:
Árbitro: o ginecologista è Objeto: saúde sexual è Destinatário: a filha
é
SUJEITO: a filha
ë≠
ë
Adjuvante: a mãe, a secretária
Oponente: o ginecologista, o medo
Situação intermediária:
Árbitro: o ginecologista è Objeto: saúde sexual è Destinatário: as três amigas
é
SUJEITO: as três amigas
ë
ë≠
Adjuvante: a irmã mais velha
Oponente: o ginecologista, o medo, a mãe
Situação final (narrativa):
Árbitro: o/a ginecologista è Objeto: saúde e educação sexual è Destinatário: as adolescentes
é
SUJEITO: as adolescentes
ë
ë≠
Adjuvante: a narradora
Oponente: o
desconhecimento do
corpo
Nas situações inicial e intermediária perdurou o entrave (oponente) do medo (do desconhecido) e do
ginecologista, sendo que os sujeitos femininos da ação, ora a filha, ora as amigas adolescentes,
foram preservados. No primeiro episódio, os adjuvantes são a mãe e a secretária; já no segundo, é a
irmã mais velha que cumpre o papel de encorajar a irmã, a mãe passando para a esfera conflitual do
medo adolescente (perda da intimidade, do segredo guardado de sua experiência sexual).
A situação final de resolução dos conflitos, pela intervenção da narradora, mostra o árbitro como
sendo masculino/feminino (o/a ginecologista) numa reconciliação das relações comuns entre os
dois gêneros (coincidentemente implícitos no próprio substantivo que designa a profissão). O medo
(opositor) é minimizado, pois passaria à esfera social pela concientização do papel exercido pelo
médico e pelo conhecimento objetivo do próprio corpo, mostrando que a realidade social,
representada por "outros", "desempenha um papel constitutivo na gênese das representações, da
atividade simbólica e do próprio sujeito individual" (JOVCHELOVITCH, 1994, p. 79).
g. Adequação dos meios empregados pelas autoras ao fim proposto. Tema e eficiência da
comunicação
A abordagem de um tema delicado como esse, que diz respeito tanto à saúde como à intimidade
das adolescentes, num espaço público de convivência entre meninos e meninas, cria um precedente
na história da produção em rádios escolares. Usando um jogo de desconstrução e reconstrução de
imagens, de maneira didática, as autoras conseguem passar a mensagem comunicativa ao grupo,
em sua totalidade, e muito principalmente às meninas, no corpo de quem tudo acontece.
A linguagem coloquial e didática da narradora, em contraste com a linguagem por vezes chã das
meninas, sugere um jogo de articulações entre o subjetivo e o objetivo, presente em todos os
momentos da trama, numa tentativa de consenso, de construção de uma identidade comum.
Na própria escola, as comunicadoras pediram e receberam autorização da diretora para a
veiculação do texto tal e qual fora concebido. Envolveram também, num debate posterior à
apresentação da peça radiofônica, outros colegas, com a intermediação de uma professora
(assistente pedagógica), maneira encontrada para compartilhar dúvidas e esclarecimentos. Mesmo
que pais (e mães) não se envolvam no diálogo com os jovens sobre assuntos da esfera da
educação sexual, ele pode ser colocado em pauta na comunicação escolar. Uma minisérie em três
capítulos, sobre o tema Sexo e Educação: família sem rumo, apresentada anteriormente na rádioescola, já mostrava a preocupação das jovens com a orientação dos próprios pais para uma melhor
educação sexual das filhas.
V. Mulher, dramaturgia e gênero na rádio-escola
Se há alguns anos a mulher ocupava espaços nos meios de comunicação por critérios de beleza ou
agressividade (ABRAMO, 1982, p. 9), hoje, nas rádios comunitárias, as jovens têm maior
oportunidade de expressão, independentemente dessas qualidades. Várias adolescentes que
atuaram e ainda atuam nas rádios escolares se aproximaram do veículo por puro prazer, sem ter
noção do que vem a ser "uma questão de gênero". Notamos, entretanto, que o debate sobre gênero
no meio educativo ainda são tímidos e necessitam de estímulo para ampliar-se e tornar-se mais
corriqueiros.
Contudo, ao perder o medo de falar, as meninas, como aponta Maria Cristina Mata (1998, p. 13),
vão "se descobrindo enquanto agentes de transformação social, não esperando que outros tomem a
palavra em seu lugar". Esse exercício da palavra própria representa uma construção cultural da
identidade de gênero no espaço público, operando transformações. A primeira delas advém do
poder da linguagem.
Se a identidade é vista como "um sistema de referência, que usa semelhanças e diferenças, que
cada um de nós sintetiza de modo diferente, para formar uma unidade integral" (LAGARDE apud
MATA, 1998, p. 38), ao definir seu papel de comunicadora, a jovem já está se investindo de uma
missão reflexiva e atuando naturalmente no espaço masculino. A conseqüência é que, ao valorizar
seu aporte, ela ganha a respeitabilidade das outras mulheres, podendo formar novas identificações e
estimular adesões, o que é fundamental no meio comunitário.
As adolescentes se aproximam facilmente de outras jovens, trocam confidências e podem usar esse
mesmo tom amigo no rádio para esclarecer dúvidas femininas. Elas devem, pois, segundo Mata
(1998, p. 40-1) ser incentivadas a estender sua participação para além da comunidade, fazendo
parte de outras equipes de produção junto a locutoras profissionais.
A rádio-escola ou a rádio do bairro, se considerada como espaço referencial de encontro e
comunicação, exigiria uma nova pedagogia voltada para a construção de uma linguagem própria a
ser utilizada, permitindo o resgate do verdadeiro sentido das palavras.
O drama enquanto gênero "que comporta uma forma de luta cósmica entre o bem e o mal"
(ADORNO, 1998, p. 26), permite a utilização de uma linguagem que expressa o sentimento da
violência da exclusão.
Em estudos de psicologia social desenvolvidos sobre a construção das relações indivíduosociedade, vimos que a palavra, sobre a qual está centrada a própria pedagogia de Paulo Freire,
promove a união entre o mundo material e o simbólico. Sendo o drama, a ficção, uma maneira de
articular o objetivo e o subjetivo, a palavra dramática agiria mais facilmente nesse contexto de
transição, preparando o indivíduo para a aceitação da alteridade, para a vida coletiva.
Assim, há que se considerar o fato de que a escolha da linguagem dramática pode remeter à
resolução de conflitos sociais aos próprios ouvintes das rádios comunitárias, coletivizando a reflexão
sobre gênero, cidadania e saúde.
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* A autora é Mestre em Comunicação Social pela UMESP; Especialista em Comunicação pela USF
– SEPAC, Licenciada em Letras pela ULB – Universidade Livre de Bruxelas; Radialista e
radiodramaturga. Atualmente presta assessoria ao Terceiro Setor sobre comunicação comunitária e
elabora projetos radiofônicos educativos. Contatos pelo e-mail: [email protected].
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Medo de ginecologista - Universidade Metodista de São Paulo