LIVROS A ARQUITETURA NO MOVIMENTO DO MUNDO O lugar da arquitetura depois dos modernos, de Otília Arantes. São Paulo: Studio Nobel/Fapesp/ Edusp, 1994. Cibele Saliba Rizek O livro de Otília Arantes se compõe de um conjunto de ensaios, alguns inéditos, outros revisitados, que adquirem uma unidade e uma articulação nem sempre apenas temáticas. Encontrar os fios dessa unidade passa por compreender o caminho que atravessa textos produzidos em momentos diferentes e sobre temas diversos entre si. Esse percurso parte de um lugar que não é apenas o "da arquitetura, depois dos modernos", como anuncia o título. Parte, sobretudo, de um esforço crítico que se desdobra ao longo dos textos, já que, ao estabelecer uma reflexão necessária e urgente, recoloca a arquitetura no primeiro plano de uma discussão da arte e da cultura contemporâneas. Arantes estabelece já na introdução um território comum, um conjunto articulado de críticas e argumentos que espicaçam, ao mesmo tempo e em um mesmo movimento, o(s) "magro(s) domínio(s)" dos especialistas em arquitetura bem como o debate filosófico. "Quanto a este último", afirma, "é preciso reconhecer que bem ou mal alargou o elenco tradicional dos seus temas, chegando mesmo a incorporar a cultura viva do seu tempo." Nesse esforço de pensar o que está vivo, em ebulição no presente, Arantes se inscreve em uma perspectiva sempre crítica, comentando e es clarecendo o lugar contemporâneo da arquitetura por dentro e por fora das questões que se colocam a partir de sua produção. A unidade deste conjunto de temas e enfoques sem dúvida se dá por esse desdobramento crítico que recorta e, ao mesmo 258 NOVOS ESTUDOS N.° 39 tempo, insere a produção arquitetônica contemporânea no movimento do mundo. Outro elemento que merece destaque é o espectro de reflexões que s e entrelaçam nes se conjunto de anális es: da Bienal de Veneza às tematizações sobre os lugares públicos, de Eisenman ao contextualis mo crítico, a contemporaneidade vai sendo lida em um esforço inédito entre autores brasileiros : o esforço de um diagnóstico corajoso da produção internacional. Por essas razões, a publicação desse conjunto de textos já mereceria a atenção não apenas de quem trabalha os temas da produção da arquitetura e do urbanismo, mas de quem se ins creve, de uma forma ou de outra, na dis cuss ão de seu próprio tempo. Como se essas qualidades não fos sem suficientes, acrescente-se o fato de que a organização desses ensaios em um único conjunto permite um diálogo entre os textos que lhes enriquece a compreensão. Há, porém, um outro terreno, talvez mais prosaico, em que a publicação de O lugar da arquitetura depois dos modernos pode e deve ser s audada: ela possibilita a divulgação de textos esparsos, de acesso nem sempre fácil, se se considera a importância da sua discussão nas universidades , em es pecial nos cursos de Arquitetura. E essa não é apenas uma referência menor, já que, quer s e concorde ou não com as posições e polêmicas que s e travam em seu livro mais recente, a produção de Arantes é referência indispens ável para a discussão contemporânea da produção arquitetônica. Basta recordar, sem exageros, sua participação na formação de um campo de reflexões críticas sobre a arte, a arquitetura e o urbanismo no Brasil, em um esforço que não se contenta com o inventário, que não se alimenta da constatação, que se propõe a desvendar o que está encoberto, quer pela constituição oficial ou semi-oficial de uma interpretação dominante, quer pela unanimidade que es sas interpretações produzem. Assim, sem LIVROS dúvida, seu livro, bem como os artigos antes dispersos que nele se encontram, já constam de parte significativa das bibliografias que discutem, afinal, "uma reviravolta que acabou trazendo a arquitetura para o primeiro plano" (p. 11). A novidade desses ensaios e, ao mesmo tempo, seu fio condutor são considerações que vinculam o que, definitivamente, parecia ter se s eparado. A sensação de quem lê ou relê os textos é a de reencontrar um elo que parecia perdido. Pela reaproximação daquilo que tantas e reiteradas vezes se apresenta como domínios inteiramente autonomizados, a arquitetura se reinsere no mundo e, portanto, no seu tempo. "[...] os textos reunidos neste volume formam um conjunto com unidade própria. E não se trata apenas de uma fisionomia familiar onde se recon hece a p ers i s tên cia de um pon to de vi s t a. Creio que oferecem um quadro s uficientemente abrangente do que vem ocorrendo nos dias de hoje com a arquitetura, portanto ao mesmo tempo, um resumo da atualidade mais próxima e uma reconstituição de sua linha evolutiva" (p. 13). O que cabe ressaltar é que esse vínculo é reencontrado e reelaborado com pertinência exatamente porque ele não se reinveste de um caráter mecânico cuja crítica produziu esferas de reflexão tão dissimiladas como irreconciliáveis. Além disso, Arantes vai perseguindo no tempo o curso de algumas contribuições. Assim, não poupa suas próprias reflexões, em especial as que dizem res peito ao ideário do lugar, de serem reinterrogadas e, dessa maneira, instabilizadas pelo pres ente, o que, aliás, está indicado na "Introdução" de seu livro (especialmente p. 13). Se do ponto de vista da discussão da atualidade se destaca um diagnóstico da sua evolução problemática, do lado da discussão arquitetônica a autora circunscreve um campo de procedimentos e posturas onde se situam "obras, tendências e teorias que reagem às consequências desta grande reversão do Projeto Moderno". Ela mesma se situa em um campo polêmico já que pretende operar ao mesmo tempo uma crítica do que denomina de "ideologia arquitetônica", bem como "da arquitetura", uma crítica que confronta promessas e realizações, em um conjunto de textos "que procuram evitar os equívocos simétricos do formalismo estetizante e do juízo simplesmente técnico". Esses são os guias propostos para a compreensão do papel da arquitetura "no campo de forças mais amplo da luta social e seu comentário cultural" (p. 14). Aglutinando eixos temáticos diferentes, Arantes organiza o livro em duas partes , acrescidas por apêndices que merecem como primeiro comentário a expressão de língua inglesa last, but not least, já que são mais do que anexos cuja leitura poderia ser dispens ada sem prejuízo da compreens ão da obra. A primeira parte é dedicada à crítica da forma arquitetônica tratada pelas variantes inscritas na "reversão do Projeto Moderno". O primeiro texto é integralmente dedicado às tendências que se fizeram representar na Bienal de Veneza. Retomando Benjamin, em sua discussão sobre o esgotamento da aura pelas dimensões da reprodutibilidade técnica, Arantes dá início a uma elaboração temática na qual se incluem tanto o Movimento Moderno quanto a sua reversão. O uso que a autora faz de Benjamin, entretanto, assimilando suas categorias do "tátil" na esfera mesma do ótico (p. 20), é um uso crítico. Entre Benjamin e Adorno, endossa as críticas do segundo ao primeiro, embora se utilize largamente de suas categorias (ver especialmente p. 28). Essa abordagem crítica de Benjamin, que recebe um tratamento mais aprofundado no último apêndice, está ancorada em uma constatação que também percorrerá todo o conjunto: "Passados cinquenta anos, já não se pode alimentar tais ilusões quanto aos vínculos que atrelavam as inovações tecnológicas — das quais dependia o futuro da arte — às relações sociais de produção organizadas pelo capitalismo que então mudava de pele, deixando pelo caminho as promessas de seus tempos heróicos" (p. 27). Só então começa a percorrer a Strada Novissima, cujo des tino é um retorno ao passado que, na forma pública e provocativa de uma exposição, desafia e exaspera os defensores e herdeiros do Movimento Moderno. "[...] referências abundantes ao teatro completavam a parafernália de recurs os de toda sorte mobilizados para produzir uma impressão de ir realidade. Disposta como um grande cenário, aquela rua não podia mesmo ser real. Nem pretendia: para arrematar a provocação, era s uficiente sugerir a ress urreição ass im fantasmagórica da famigerada 'rua corredor' que Le Corbusier dizia ser necessário matar para dar pass agem ao novo urbanis mo. Nessa rua de Carnaval (não se pode esquecer que se estava em Veneza) o que era posto em cena era a própria Arquitetura como uma grande construção alegórica" (p. 30). Seguindo s ua peregrinação crítica pela Strada Novis sima, depara-se com seus comentários sobre JULHO DE 1994 259 LIVROS os arquitetos que assinaram o que foi a um só tempo manifesto, cenário e rua. Suas diferenciações permitem detectar um olhar atento e nada tátil que matiza diferenças importantes entre os expositores . Pode-se as sim entrar em contato com A. Ros si, L. Krier, Gordon Smith, Bofill, Charles Moore, Robert Venturi, entre outros. Destacam-se, nas diferenças que a autora estabelece, nas cores com que des creve as diversas produções, seus comentários sobre as leituras de Moore e Venturi. Fazendo-lhes contraponto, outro destaque importante: as considerações a respeito de Ros si e de seu Teatro do Mundo, que Arantes diferencia fortemente daquela "rua aberrante que parecia mesmo uma avenida de Las Vegas transportada para dentro de uma das mais tradicionais cidades do mundo" (p. 34). Já aqui, no primeiro texto, a autora apresenta o que, mais tarde, também pass ará pelo crivo de outros desdobramentos críticos: "Se, por vezes , o repertório um tanto recorrente de Aldo Rossi valeulhe muitas críticas, ou reproduz, em parte, embora num registro formal diverso, o que ocorreu com a Arquitetura Moderna ao consagrar certas formas geométricas simples , neste caso preciso, do Teatro do Mundo, redundou num dos exemplos mais felizes de uma arquitetura situada, ou daquilo que chamarei ao fim — a título de alternativa à arquitetura simulada — contextualismo crítico" (p. 47). Ao terminar o pass eio pela Strada Novissima, tem início um outro percurso. Seus guias dessa vez são as discussões da contemporaneidade que, por meio de contribuições diversas, fornecem elementos para uma avaliação do que O. Arantes chama de arquitetura obs cena. Utiliza a imagem da "cena italiana", onde fachadas sem corpo se sucedem, onde nada está sendo encenado. A metáfora teatral alude a Baudrillard, ao seu diagnóstico que dá por encerrada a idade do espetáculo e, com ela, a dis tância entre "o segredo da intimidade doméstica e o espaço público do cons umo significativo". Como a televisão parece anunciar, a cena doméstica do mundo está devassada e, ao mes mo tempo, "des aparece por exces so de iluminação" (p. 48). A superação da dis tância produz uma promiscuidade tátil que não é mais do domínio do olhar, que se transforma em cegueira, em completa imersão no objeto, em anulação de qualquer diferença do s ujeito. Devoração imediata, hipervisão de uma hiperrealidade, o obsceno como obliteração da cena não se refere ao jogo da libido e do recalque, mas "à 260 NOVOS ESTUDOS N.° 39 extroversão do consumo explícito, da exposição plena, que cega, ao invés de seduzir. A obscenidade é o reino chapado da superfície" (p. 48). A qualificação da arquitetura quimérica da Strada Novissima, sintoma e protagonista da tatibilidade e da superexposição, ganha contornos mais dramáticos quando se adentra pela utilização mais ou menos livre da psicanálise que Baudrillard e Jameson empreendem. "Nesse sentido muito especial", diz Arantes, "a arquitetura simulada que estamos passando em revista, além de obscena, seria esquizóide. É também do ponto de vista desse novo sentimento do mundo desmaterializado que a queremos abordar" (p. 50). Perfilam-se, aos olhos do leitor, argumentos que fazem figurar a produção e a fruição da arquitetura contemporânea como fonte primária da experiência do simulacro, como um dos enquadramentos da experiência da metrópole, que nos conduz ao mundo da obscenidade, à onipresen-ça do superficial. A desmaterialização do mundo e da experiência, enquadrada e protagonizada pela arquitetura e pela cidade contemporâneas, faz parte do que se pode chamar de "o atual estado de cois as". Na verdade, porém, ela tem antecedentes . A crítica dramática às produções que rompem de forma escandalosa com o Movimento Moderno não recupera nem enaltece o passado. As preocupações e indagações de Arantes se estendem ao que ela chama, às vezes com uma indistinção que poderia ser melhor esclarecida, de Es tilo Internacional. Percebem-se assim continuidades importantes no interior do que é frequentemente qualificado como ruptura. A crítica do formalismo exacerbado das produções mais recentes não obscurece, portanto, o esforço de inclusão do Movimento Moderno em um campo de indagações, que pode s er configurado, a título de exemplo, no trecho que se segue:"[...] também é fato que a tentação formalis ta s empre acompanhou o Movimento Moderno. Os historiadores ou os próprios pioneiros tentam desculpá-la, ora alegando um equívoco — a Arquitetura Moderna não é um estilo a mais —, ora a necessidade de o projeto comentar-se a si mesmo". Ou ainda, no mesmo parágrafo: "Em poucas palavras, os planos de redenção social através da ordenação do espaço habitado (casa/cidade) que desde s ua origem a Arquitetura Moderna acalentava como a antevisão de uma nova era resultariam finalmente no seu exato contrário e, mais particularmente, no formalismo integral das s oluções padroni- LIVROS zadas pela produção industrial. O formalismo não é crítica de Arantes passa a se constituir em privilégio de p ortan to u ma ab erração p as s agei ra ou mes mo u m desvio constitutivo (porém um desvio), pois nele poucos que, como ela, passeiam com a mesma desenvoltura por uma bibliografia que tem como centro a discussão da modernidade e de seus percalços, continuidades e rupturas. aflora uma marca de nascença, um vício de origem, q ue alcançou a matu ri d ad e (por is s o di s cord o dos que tentam salvar o discurso original contra a história s u bs eq u en t e, em n ome d e u m 'projet o in con clus o' da Modernidade)" (p. 52). Não é demais lembrar que s u as d is cord ân cias com Hab ermas , qu e s erão ret omad as ao lon go d os en s ai os , s ão t rat adas em out ro livro bastante instigante, cuja autoria é dividida com Paulo Eduardo Arantes: Um ponto cego no pr ojeto moderno de Jürgen Habermas. Arquitetura e dimensão estética depois das vanguardas (São Paulo: Brasiliense, 1992). As considerações sobre o Movimento Moderno, en tret ant o, n ão s e res t ri ngem ao s eu formalis mo. Elas vão além, ten s ion and o mais ai nd a as relações t eó ri cas q ue s e es tab elecem ent re a u t ilização de n oçõ es e i déi as colhi d as n a ob ra d e W. Benj amin e a d i me n s ão q u e e l a s a d q u i re m n o mo m en t o d a concret i zação mes ma da p rod ução da arqu it etu ra mod ern a n a met ró pole. A d egradação d a ex p eriên cia em vivên cia p rovoca u ma adap tação raci onal, u ma t r a n s for ma ç ã o e m q u e o h á b i t o e n q u a d r a e n ormaliza o choq u e, o qu e acab a p or den un ci ar "o cami n ho percorrid o p ela razão t écni ca modern a — funcional e pragmática —, votada inteiramente à autopreservação" (p. 57). A arquitetura moderna é parte desse processo de racionalização, instrument ali zação e ad apt ação. Os comentários posteriores e finais desse primeiro t ex to an un ciam a reflexão s ob re t emas q u e serão tratados especialmente por outros ensaios que compõem o livro, em que se des tacam a arquitetura frances a recen te e a p rodu ção d e Eis en man . Uma ress alva, porém, ainda que menor, poderia indicar a necessidade de algum cuidado de revisão que se faz necessário nas próximas edições, sobretudo em função da utilização recomendável do texto (e, evidentemente do livro) a estudantes de graduação e de pósgraduação. Para melhor rastrear seu percurso, sua veia polêmica, a intensidade de suas críticas, é necessário que se possa localizar as referências bibliográficas aus entes nes se primeiro ensaio. O volume, a riqueza, a diversidade de referências e argumentos, em resumo, as interlocuções que s e estabelecem dentro e fora da discussão da arquitetura ficam, assim, difíceis de serem identificadas. Satisfazer o desejo de reconstrução dos argumentos iluminados pela pers picácia e eficiência O s egu n do t ex to é ded icad o ao comen tário da parceria entre P. Eis enman e Derrida. Arantes o denomina "Margens da Arquitetura", parafraseando o tí tu lo d e J acq ues Derrid a Mar g en s d a f il o s of ia (Porto, Portugal: RÉS - Editora, Ltda., s/d). O terreno em q ue a di s cus s ão s e s it ua é o mes mo d o cap í tu lo anterior: "triunfo da mídia, das interações múltiplas, polissemias, redução dos objetos a microelementos, simples energia, mais o cortejo de imagens, traços ou rastros (como se diz na língua da 'teoria' frances a) e as corres pon den tes s imu laçõ es ". Além de comentar, nesse mesmo terreno, os modos operatóri os qu e ap rox imam Eis en man d e Derrid a n a "ex p an s ão con j un t a d e algo como u ma Int ern acion al Desconstrucionista" (p. 77), O. Arantes discute aquilo que o próprio Eisenman enfatiza em seus es critos a respeito de sua produção: a frivolidade, as aproximações e analogias com a linguagem, sua transformação p rogres s i va em tex to, em es cri ta. O us o da "g ra má t i c a ge n e ra t i va " d e C h o ms k y a o s p o u co s cede lu gar a u ma lin gu agem con d izen te com u ma outra gramática, "onde os próprios s ignos perdem a identidade num emaranhado potencialmente infinito de diferenças — apenas traços (rastros, fragmentos, ves tígios de outros signos) de uma significação os cilant e. Recup eran do es s es con ceit os p ara a arquitetura [...] Eisenman foi também atualizando o d eb at e arq u it etô ni co, trazen d o p ara d ent ro dele os termos em que em geral é posta a questão da cultura e da arte atual" (p. 78). A arquitetura frívola, conceitual, que se insere em u ma d es con s trução p erman en t e, pas s a a s er e x a mi n a d a e m s e u s ví n c u lo s c om a q u e s t ã o d a cultura e da arte contemporâneas . A idéia de desconstrução e, por meio dela, a parceria entre Eisenman e Derrida, vão sendo anunciadas e problematizad as , o q ue remet e a um con j un t o d e p ergun tas c o lo c a d a s n o ce rn e m e s mo d o q u e s e e n t e n d e p o r arquitetura. Assim, se no ensaio anterior a parceria Derrida/Eisenman é questionada pelo caráter intrínseco do fazer arquitetônico, neste ens aio, de forma h omó loga, Aran t es q u es ti on a es s a d es cons t ru ção deslocando seu principal protagonista para "as margens da arquitetura, tanto quanto da filosofia". A c o mp le m e n t a ri d a d e e n t re os d oi s t e x t os p od e s e r JULHO DE 1994 261 LIVROS constatada a partir da justaposição de dois fragmentos extraídos do primeiro e do segundo ensaios que compõem a primeira parte do livro. Na página 68, comen ta u ma arq u it etu ra qu e s e preten de s omen te "signo de si própria", "atirada no poço sem fundo da se es tabelece entre a agorafobia sittiana e as caracterizações benjaminianas da modernidade (p. 107). O s p la n os d e s c en d en t es d o d e cl í n i o d o h o m e m pú b li co e d e s ua ou t ra face — o cenári o í n ti mo da vi d a b urgu es a — acab am por des emb ocar tamb ém autonomia formal", "negação sem transgressão, simples men t e a fri volid ade as s umi da d e q u em deu as cos tas para a cinzenta positividade do mundo". E completa: "Ao fazer arquitetura inevitavelmente tems e qu e p as s ar — d iz Derrid a, nu m s u rp reen den te aces s o d e reali s mo — do n ível d o di s cu rs o s em nu ma n ova con cepção d e morad ia. "Hab it ar (e p or conseguinte cons truir) passa a significar doravante deixar impressões [...], 'rastros' de uma vida imediata em que uma s ingularidade se exprime por oposição ao mun d o ext eri or como algo in terior, an í mi co, espiritual". Entretanto, também ess e reencantamen- amarras, para a dura realidade da pedra, da economia, da política, da cultura. Eisenman sabe evidentemente do que se trata [...]. Mas quando fala, dá a impressão que gostaria de ficar deste lado do espelho, aquém do fato bruto, 'trazer a arquitetura ao seu grau zero'". Na página 84, o argumento crítico parece to d os es p aços d a i nt imi dad e s e vê ameaçad o p ela crise do intérieur burguês , entendido como cenário qu e começa a s er devas s ad o. Homologi as e d i feren ças , percurs os e con clu sões atravessam comentários que remontam a Sitte, Simmel e Benjamin, na caracterização da vida na se concluir: "Uma arquitetura desconstrutiva simplesmente não seria mais arquitetura. Ocorre que Eisenman jamais sugeriu que este grau zero da arquitetura não fosse mais arquitetura; pelo contrário, trata-se justamente de arquitetura no caminho de volta a si mesma". Ess a arquitetura sobre a arquitetura, que se metrópole, em cuja tessitura se entrelaçam inevitavelmente a tragédia de Baudelaire e a vitória de Hau s s mann (p . 1 13 ). As cons iderações que permitem compreender a met ró p ole como terri tó ri o p or ex celên cia da exp eri ênci a d a moderni d ade evoluem p ara u ma qu es t ão localiza na contramão do domínio da "pres ença", acaba se tornando uma arquitetura atópica. Já neste segundo ensaio, Arantes começa a vincular a idéia des sa "presença", ausente nas proposições de Eisenman , ao q u e s erá q ualificad o n os en s aios q ue s e seguem como "ideologia do lugar". q ue s e d iri ge àq u eles cu jo d es ti no d e ofíci o é a intervenção no habitar e nas cidades: "como atuar, interferindo nessa lógica da metrópole, cuja forma acabada vem a ser a cidade haussmanniana contra a qual reagia Camillo Sitte, forma que encontrará em Le Corbus ier um fiel seguidor" (p. 113). Mais uma O t ema da s egu nd a p art e do li vro reú ne d ois en s aios , u m d eles j á pu b li cado n o nú mero 22 d e Novos Estudos e um dos apêndices. Aqui, a discuss ão do vínculo da experiência da metrópole com as dimensões culturais recentes leva à problematização do que a autora considera uma verdadeira obses são vez, o en foq ue crít ico s e volta em d ireção ao Moviment o Mod ern o. "Trat a-s e s em d ú vid a d e s u perar o atual es tado de coisas — quem o negaria? — p orém n ão é men os imp erati vo [...] arq ui var a ideologia projetista antecipatória e totalizadora que no final de contas acaba reproduzindo a vontade de pelo lugar público. O. Arantes a localiza nas primeir a s s e c e s s õ es d o Mo v i m e n t o Mo d er n o n o a p ó s guerra. Para esse novo lugar-comum ideológico, con vergem "velh os argu men tos con s ervadores e outros tantos colhidos na voga neo-iluminista mais recente" (p. 97). Entre a espacialização e encarnação p od er a q u e s e alu d iu " (p . 1 1 3). No ras tro d es s a mes ma caract eri zação da metrópole e da experiência que nela tem lugar, encont ra-s e o p on to d e p art id a p ara a reflexão s ob re as tematizações que se inspiram em H. Arendt, recuper an d o a s n oç õ e s d a s e s fe r as e e s p a ço s p ú b li co s e do "intelecto abstrato", da "razão instrumental" e a lu ta cont ra a i mp es s oali d ad e mod ern a (ap ont adas respectivamente por Cacciari e R. Sennet, nas pp. 98/99), tomando como ins piração Sitte ou C. Rowe, t rat a-s e de d es mont ar e fragmen t ar, d e d ecomp or a u t op i a u rb an a con s ti tu í da pelo Moviment o Mod er- privados. Seu principal alvo, ness e caso, é J. Habermas, cuja influência adquire proporções consideráveis em diversos campos da discussão contemporânea. O alerta desse texto em particular sinaliza e adverte contra as reconciliações forçadas, contra a "i lu s ã o d a e x p e ri ê n c i a ", q u e ac a b a p o r t o m ar a no. No primeiro texto algumas digressões são extremamente instigantes, não só pela (re)utilização das o b s e rv aç õ e s d e B e n j a m i n , c om o p e lo v í n c u lo q u e forma de uma questão que se constitui, desta vez, na mira da própria "presença", qualificada no primeiro ensaio como uma alternativa à arquitetura simulada. 262 NOVOS ESTUDOS N.° 39 LIVROS Desvendam-se então as configurações e pressupos- re-enervamento, como diria Frampton" (p. 155, gri- tos que se articulam nas teorias do lugar, tal como d e s p o n t a ra m d e s d e o ap ó s -g u e rr a , n o p e n s a me n t o urbanístico. Sua origem, desde logo, é identificada fos de minha responsabilidade). As ressalvas assinaladas em itálico foram destacad as p orqu e circun s crevem as pos s i bi lid ades d e i n terven ção qu e s e cons t it u íram como u ma con t ri buição importante de resistência à postura moderna em relação à cid ad e, cu j a prop os ta s e en carna no p elo con trapon to à i déi a e às t eori as d o Plano, a p art ir d a ten tat iva d e conceb er a ci d ade d e modo menos "abstrato, sistêmico, autoritário e instrumental" (p. 123). Duas q u es tõ es mereceram d es t aqu e n o t rat amento da ideologia do lugar, em es pecial no que se refere a Gregotti: as relações entre o fazer arquitetônico e a história, a partir da inspiração estruturalista; e, n as mes mas i nj un çõ es parad ox ai s , as relaçõ es entre a idéia de sujeito e a de lugar. A análise que Arantes faz das contribuições de Gregotti as insere n o m o me n t o e m q u e for a m p ro d u z i d a s , à l u z, port an to, d a domin ân ci a d e algumas abord agens , entre as quais o estruturalis mo. Outra dess as fontes t e m o ri g e m e m H e i d e gg e r, a q u em at ri b u i u m raciocí ni o mit oló gico e ant i urban o. É o mesmo Heidegger que se encontra permeand o o u t ro p e n s a m e n t o fu n d a d or d o c on t ex t u a li s mo (ou regionalismo) crítico: o de K. Frampton. Em meio à reflexão s obre a produção dess e autor, reencontrase H. Arendt, cujas contribuições, caracterizadas an teriorment e como ant imodernas , s e conj ugam às idéias antiurbanas de Heidegger. Essas combinações presentes na obra de Frampton, entretanto, parecem n ão ter como res ultad o vis í vel nen hu ma d es tas características. É isso que permite à autora, cujo diálogo com a arquitetura do lugar prossegue em um dos apêndices de seu livro, concluir o capítulo com cautela. "Por mais que variem as soluções, de Gied ion a Frampt on, p as s and o p elo gru p o it ali ano Tendenza, dos monumentos às áreas residenciais, de conjuntos de edifícios a prédios isolados, parece que um ponto comum os une: 'a estratégia subversiva de enclave urbano'. Contra uma paisagem urbana com a n d a d a p e la l ó g i ca d o Me s mo , e n q u a d ra d a p o r uma civilização internacional dominada pela compulsão programada do consumo: uma arquitetura do lugar. Se for mantida a perspectiva urbana e se não se perder a cons ciência de que se trata de uma sociedade de massa, talvez se possa escapar simultaneamente à tirania da intimidade e à ideologia comu n it ári a, ou, o q ue vem a d ar n o mes mo, à formação d e gu etos . Os aut ores e t end ênci as q ue repertoriamos pelo menos alegam que se trata antes de tudo de estimular a proliferação do urbano a partir d e le me s m o — n e m i mp lo s ã o, n e m e x p a n s ã o, ma s plano sistêmico e autoritário. Essa possibilidade de res is t ênci a s e fez recon heci damen te, como ap on ta Frampton, pela conexão entre as esferas da política e da cultura, mas seu destino, suas transformações recen t es n u blari am s eu s hori zon t es , como apon ta a au tora n o p ri mei ro de s eus ap ênd ices . Essa conexão entre política e cultura é analisada a seguir, sob um outro ângulo: o caso paradigmático da arquitetura francesa "pós-Beaubourg". Arantes apresenta, neste balanço do renascimento arquitet ôn ico fran cês , u m grad ien te de formas de in tervenção que vai da arquitetura discreta aos grandes p r oj e t o s e m q u e "p u re z a for ma l e ra c i o n a l i d a d e s oci al parecem volt ar a s e d ar as mãos , p orém no p l a n o e x c l u s i vo d a re p r e s en t a ç ã o " (p . 1 7 8 ) . E m mei o à p lurali dad e, p ercebe como os li mi tes ent re es s es dois ex t remos s e es fu mam. De u m lad o, a monumentalidade das formas simbólicas expõe seu lad o id eoló gi co. Do ou tro, o q ue s e an u nci a p ela res s eman t ização d a ci dad e é a in tegração. Dep oi s d as d igres s õ es q u e localizam no p ó s guerra o reconhecimento da falência do Movimento Moderno em relação à significação, a autora comenta o que, a seu ver, obedece a uma lógica da unificação entre dois extremos: a arquitetura discreta das intervenções contextualistas e as formas puras monumentalizadas se reencontram no terreno comum da panacéia i d eoló gi ca. "Con t ami naçõ es recí procas , on de u m can t eiro med iát ico, regi do p elo govern o do momento, faz parede-meia com um canteiro contextualista amparado por uma legislação no mínimo compreensiva" Cp. 212). Retoma-se a arquitetura que fala e, para tanto, é preciso que ela volte a significar, que ela volte a apelar à memória, pela ressurreição do espírito do lugar. Matizando qualidades não homogêneas, as intervenções inscritas nessa voga de retorno à cidade parecem ressuscitar não o espírito do lugar (genius loci) mas uma "aura" de segunda mão, "programada para estetizar a superfície lisa e desencantada do espaço moderno" (p. 214). Novos tempos parecem trazer trans formações que, ao que tudo parece indicar, a autora não poderia deixar de comentar, ainda que na forma de JULHO DE 1994 263 LIVROS u m a p ê n d i c e . Nã o d e i x a d e s er c u r i o s o q u e e s s e texto — "Paris pós-P.O.S. ou as novas fachadas urbanas" — tenha se trans formado em apêndice. Na verdade, ele guarda com toda a elaboração explicitada na segunda parte do livro uma unidade temática estreita. Seus trâmites temporais, entretanto, são ou t ros . Coment a-s e agora o q u e trazem os ven tos neoliberais que sopram em meio à crise econômica eu rop éia. Su a n ovi dad e é o p res en te imedi ato e as s urpres as qu e res erva no camp o da p rodu ção d a arquitetura e do urbanismo. Essa "novidade", entretan to, apon tad a em apên di ce d ialoga b em com as observações e preocupações que permeiam o livro. A retração do Welfare State, a nova supremacia econ ômi ca, a t ran s formação das gran d es corp orações nos mais importantes clientes da arquitetura ac a b a m p o r c o n fi rm a r u m mo d o d e r eg u la ç ã o d o projeto arquitetônico pela forma-publicidade. Na direção do que havia sido apontado como a obsessão pelo público, observam-se também transformações: "digamos que a nova teoria do lugar público se ab as t ard ou u m pou co mai s . Ao q u e p arece na s eguinte direção: dispensando a intervenção do Estado (um sistema incômodo de contrapesos), o Capital em pess oa é hoje o grande produtor dos novos espaços urban os . Tu d o s e p as s a como s e a i d eologi a do espaço público [...] fosse enunciada diretamente pela fisionomia das cidades, definida agora por uma estratégia empresarial de novo tipo, que vai determinan do com ló gica p ró pria os p arâmetros d e s u a intervenção". Do ponto de vista teórico os sintomas são mais indiretos, o que possibilita um reencontro com P. Eisenman que volta à ordem do dia com sua arquitetura sobre a arquitetura. A ausência de qualquer laivo de agenda s ocial acaba por anunciar um tempo em que nada se pode fazer, um tempo cuja tônica é a do descompromisso da Desconstrução. Novos Modernos combinam-se ao pragmatismo declarado dos grandes projetos arquitetônicos. Mais uma vez essas guinadas atingem a arquitetura residencial que se afasta do vínculo com a tradição, tal como vinha sendo reformulado pelo contextualismo, para ceder o passo "à banalização imposta pela mediocridade dos imperativos econômicos da nova era, cristalizada na imagem publicitária da vida sem nuvens numa forest ideal povoada pelos nichos elegantes do software, amálgama próprio às assim chamadas TECNÓPOLIS ou utopias ecotécnicas" (p. 230). O últi mo ap ênd ice s e volta para a q ues t ão d os n ovos mu s eus , reed it and o t ex to j á pu b li cad o tam- 264 NOVOS ESTUDOS N.° 39 bém em Novos Es tudos nº 31. O que impressiona na relei tu ra des s e tex to é s ob retu d o o fato d e qu e ele e s c l ar e ce e c o m p l e me n t a o s t e m a s a b o rd a d o s a o longo do livro. Ou seja, sua inserção fornece novas possibilidades de compreensão e de explicitação. É possível reconhecer polêmicas, críticas e argument os qu e as s u mem u ma filiação: o t ext o começa e termina retomando Adorno, elucida as críticas às p ers p ecti vas ben jami ni anas e recoloca, à luz d os t emas já di s cut id os , as q u es tõ es q u e s e referem a u m a fru i ç ã o q u e ab o le a d i s t ân c i a e s t ét i c a e s e resolve em fetiche invertido: "a cultura do recolhimento administrada como um descartável" (p. 240). Nes s e es pect ro de t emas e i nt erlocuçõ es , n a gama variada de argumentos que combinam discussão filosófica e crítica estética da arquitetura, é pos s í vel en cont rar h eterogen ei d ades , d en s id ad es e qualidades diversas de fontes de informação utilizad a s e d e t ra t am e n t o s t e má t i c o s . D e s t e p o n t o d e vista, como era de se esperar, a reversão do Projeto Mod e rn o, c o mo e i x o d o s en s a i o s , t e m e n fo q u e s privilegiad os em relação ao p ró prio Movi men to Mod erno. Não s e es gotam (e n em s e p reten de es g o t a r) a s p e rs p e c t i va s e o lh a re s q u e e n c e n am essas mesmas questões de outra forma. Nessa pluralidade irredutível de concepções, Otília Arantes explicita seu olhar, bem como o lugar de onde fala. Por vezes , especialmente no primeiro apêndice, seu livro mais recente traz em si o tom de um manifesto que clama pela decifração crítica e realista do pensamento arquitetônico contemporâneo. Clama ainda contra o "equívoco simétrico do formalismo estetizante e do juízo técnico" apontado na "Introdução". Ao elaborar suas análises, faz perfilarem-se argumentos diante dos quais parece não haver ponto de repouso. Há sempre algo que se desvenda, há sempre uma ressalva ou um alerta a fazer. Talvez por isso, a leitura instabilize cons t an temen t e o t erri tó ri o d a d is cu s s ão d a forma como, de resto, também as caracterizações fáceis da cultura da contemporaneidade. Leva, assim, seus leitores a um esforço de acompanhá-la por um caminho onde não há lugar para a acomodação ou para a ingenuidade. Cumpre, até as mais recentes reviravoltas, a tarefa de pensar criticamente o presente. Nem trégua, nem hes itação: pensar uma produção a partir desse olhar é, sem dúvida, inseri-la no mundo. Cibele Saliba Rizek é professora do Departamento de Arquitetura e Planejamento da EESC-USP. Já publicou nesta revista "Paradoxos da modernização" (N° 36).