ciclos de aprendizagem: análise da experiência do município de ponta grossa – paraná Resumo O estudo tem como objetivo analisar a proposta de implantação dos ciclos de aprendizagem na Rede Municipal de Ensino da cidade de Ponta Grossa – Paraná, no período de 2001–2004. A coleta de dados esteve centrada em análise documental: relatórios de dados estatísticos da Secretaria Municipal da Educação (SME); relatórios dos fóruns realizados com professores, depoimentos de professores, leis e diretrizes nacionais para o Ensino Fundamental. O texto elaborado traz as marcas das dificuldades de implantação de uma estrutura ciclada nas anos iniciais do Ensino Fundamental. Os depoimentos dos professores são carregados de angústia e medo para enfrentar uma nova (re) organização da escola. Os dados apontam que ao se mexer com a estrutura tradicional da escola, mexe-se com a cultura escolar. O novo jeito de organização da escola exigiu novos jeitos dos professores olharem para o processo de ensino/aprendizagem, para o processo de avaliação e isso gerou inseguranças e em decorrência surgiram as resistências. Palavras-chave: Política educacional, práticas e saberes escolares, gestão e organização escolar. CICLOS DE APRENDIZAGEM: ANÁLISE DA EXPERIÊNCIA DO MUNICÍPIO DE PONTA GROSSA – PARANÁ Simone do Rocio Pereira Neves Esméria de Lourdes Saveli Universidade Estadual de Ponta Grossa Com o propósito de construir uma escola pública em que fosse possível romper com a prática da seletividade e exclusão social das crianças de classes populares e buscando possibilitar aos seus alunos a apropriação e a produção de conhecimentos científicos acumulados e produzidos historicamente, assim como o domínio de habilidades de leitura, escrita e de raciocínio lógico-matemático a Secretaria Municipal da Educação (SME) da cidade de Ponta Grossa no Estado do Paraná, implantou, a partir de 2001, um projeto nas escolas da Rede Municipal de Ensino que exigiu reorganizar a estrutura de ensino, rompendo com a tradicional estrutura seriada e ampliou o ensino fundamental para nove anos. Essa nova forma de estruturar a organização do tempo e do espaço da escola foi tecida a partir da análise dos dados estatísticos referentes ao ano de 2000. Ao serem analisados os dados estatísticos de aprovação e reprovação dos alunos do Ensino Fundamental, do ano de 2000, verificou-se a necessidade de buscar estratégias para alterar o quadro de fracasso escolar que imperava na Rede de Ensino Municipal. O índice de retenção da 1ª para a 2ª série era de 22,04%, sendo que em algumas escolas atingia 39%. O índice geral de retenção de 1ª a 4ª série atingiu o índice de 12,31%. Além disso, constatou-se que havia nesta Rede Municipal de Ensino, 2775 alunos com idade acima de 8 anos que não estavam na 3ª série, formando um contingente de 11,82% de alunos com defasagem de idade em relação à série que deveriam estar freqüentando. Tudo isso, resultado de múltiplas reprovações. De acordo com a análise dos dados observou-se que havia um maior índice de fracasso escolar exatamente na passagem da 1ª para a 2ª série. A partir da análise dos dados acima e partindo da premissa de que a questão do fracasso escolar não estaria relacionada apenas com fatores de cunho pedagógico, mas que a própria estrutura do ensino organizado por séries contribuía para este fracasso, a Secretaria Municipal da Educação tomou medidas que afetaram a estrutura tradicional de organização do ensino, mexendo com a cultura da repetência que estava posta na escola. Em janeiro de 2001, a equipe pedagógica da SME começou a discutir com os profissionais da educação, que pertenciam à Rede Municipal de Ensino, uma nova proposta de organização da escola. Nesta proposta as escolas passariam a ser organizadas em dois ciclos, denominados Ciclos de Aprendizagem, cujo objetivo principal era o desenvolvimento de habilidades cognitivas tendo como eixo a leitura, a escrita e a matemática. A nova organização do tempo e do espaço da escola que tinha como diretriz principal assegurar a permanência do aluno na escola, ampliar para cinco anos o tempo que correspondia aos quatro anos das séries iniciais do ensino fundamental. Assim, as escolas da rede municipal ficaram assim organizadas: - 1º Ciclo ou Ciclo inicial: constituído por grupos com base na idade (classes distintas compostas por crianças de 6, 7 e 8 anos). Esse ciclo era formado por um “continuum” de três anos para as crianças que iniciavam a escolarização aos 6 anos e um “continuum” de dois anos para aquelas que iniciavam a escolarização aos sete anos, concluindo este ciclo na classe de 8 anos. Esse ciclo tinha como objetivo trabalhar as habilidades básicas de leitura e da escrita e o desenvolvimento do pensamento lógico matemático. A Proposta incluía as crianças de 6 anos no Ensino Fundamental respaldados pelo artigo 87 § 3º da LDB 9394/96 o qual faculta que cada Município e, supletivamente, o Estado e a União, deverá: ‘matricular todos os educandos a partir dos sete anos de idade e, facultativamente, a partir dos seis anos, no ensino fundamental’; ou ainda pelo Plano Nacional de Educação, Lei 10.172/2001, quando trata dos objetivos e metas: “Ampliar para nove anos a duração do Ensino Fundamental obrigatório com início aos seis anos de idade, à medida que for sendo universalizado o atendimento na faixa de 7 a l4 anos”. (p.35). - 2º Ciclo: organizado em um ‘continuum’ de dois anos. No primeiro momento teve como referência para a organização das classes as 3ª e 4ª séries da estrutura tradicional. Aos poucos, este ciclo foi se constituindo por crianças de 9 e 10 anos. Porém, sempre haveria possibilidades de haver neste ciclo, crianças acima dessas idades porque nele estariam crianças advindas, também, das classes de aceleração. Segundo a Proposta da SME este era o principal motivo que justificava o segundo ciclo ter a série como referência e não a idade. - Classe de aceleração: foi constituído em um projeto específico para atender alunos com defasagem de idade para freqüentar a última classe do primeiro ciclo (crianças acima de 8 anos) ou que nunca freqüentaram a escola. Faziam parte desta classe: o aluno repetente da última classe do primeiro ciclo, desde que tivesse 9 anos completos, até primeiro de março do ano em curso; os alunos repetentes da 1ª e 2ª séries do ensino regular, com idade superior a 8 anos transferidos, ou não, de outros estabelecimentos de ensino. A criação dessa classe também teve por objetivo reverter o quadro de alunos que apresentavam distorção idade-série para freqüentar as classes do primeiro ciclo. Estas classes possibilitaram a regularização do fluxo escolar, tanto para os alunos que nunca freqüentaram a escola como para os alunos repetentes e multirrepetentes. A criação da classe de aceleração também estava amparada pela LDB, em seu artigo 24, inciso V alínea b ao dispor: “[...] a possibilidade de aceleração de estudos para alunos com atraso escolar”. A estrutura dos ciclos ainda foi contemplada com as classes de apoio cujo objetivo era atender aos alunos com dificuldades de aprendizagem do primeiro e do segundo ciclos como também, os alunos das classes de aceleração. Essas classes deveriam funcionar em contra-turno, devendo o aluno permanecer na escola em tempo integral para assegurar sua freqüência tanto na classe de apoio como na classe regular. Essa proposta de mudança de estrutura escolar gerou insegurança como pode ser observado pelo depoimento abaixo: “Eu vejo que as escolas estavam tão acostumadas a começar um trabalho e ninguém continuar o trabalho, que elas acreditavam que era mais uma coisa que iria começar e não iria pra frente. Então elas podiam estar camuflando, podiam estar enganando, fingindo que estavam fazendo, fingindo que estavam trabalhando com os professores e ia morrer na casca”. (S. coordenadora de setor) O fato das professoras da Rede Municipal demonstrarem essa descrença quanto à implementação de uma nova estrutura escolar, como política de educação no município, também estava atrelada à forma como a equipe da Secretaria da Educação realizava o seu trabalho no decorrer de várias administrações. Anteriormente, a SME, era um espaço burocrático, que quase não acompanhava o trabalho desenvolvido nas escolas pelos professores, diretores e pedagogos. Ainda que a SME traçasse algumas diretrizes inovadoras para serem implementadas, a escola continuava sempre da mesma maneira, por falta de acompanhamento. Um outro ponto fundamental para compreender essa descrença era o fato de que quando a escola abraçava os projetos propostos, ao mudar a Gestão Municipal, ocorria a chamada ‘operação desmonte’ que é o fato de um governo não dar continuidade ao trabalho realizado pelo governo anterior. Esse imaginário que os profissionais da educação traziam consigo também era alimentado pelas ações da administração que antecedeu a gestão 2001-2004. Àquela gestão não implementou qualquer projeto novo, até mesmo pelo fato de ter havido a troca de Secretário de Educação por três vezes. Desta forma não conseguiu dar seqüência a um trabalho efetivo para a educação do Município. O fato dos professores estarem acostumados a trabalhar sempre da mesma maneira foi motivo de muita insegurança: “Nesse primeiro momento, ficou muito confuso porque a preocupação maior era de saber qual seria o atendimento pra essas crianças, como iria ser feito isso, de que maneira é que as crianças iriam passar, se iam chegar na 4ª série sem saber ler e sem saber escrever como a H. falou na questão do Estado. Então até tomar consciência do que iria acontecer ficou muito confuso, a preocupação das professoras foi muito neste sentido”. (E. diretora de escola) A implantação dos Ciclos de Aprendizagem na Rede Municipal de Ensino de Ponta Grossa tnha como objetivo dar à criança a possibilidade de completar, sem retrocesso o seu processo de apropriação do conhecimento e do desenvolvimento cognitivo e emocional. Este modelo de organização não aceitava a repetência injustificada, nem tampouco a promoção automática, porque o aluno deveria ser atendido em suas dificuldades, no contra-turno, em classes de apoio. Um dos desafios que as escolas tiveram que enfrentar com a criação das classes de aceleração foi a visão de que os alunos do projeto eram todos alunos-problema, com dificuldades de aprendizagem ou indisciplina. Essa imagem construída nas escolas gerou insegurança por parte dos professores. Outro motivo que ocasionou insegurança foi o próprio critério utilizado pelas escolas para a escolha do professor para a classe de aceleração. Muitas escolas utilizaram o sorteio, em outras as turmas de aceleração acabaram sendo deixadas para os professores que chegaram por último na escola, os novatos. Somente em algumas escolas foi por opção pessoal dos professores. O depoimento abaixo ratifica esse nosso posicionamento: “Foi muito difícil de compreender a classe de aceleração, até a gente encontrar uma forma de trabalhar com o grupo... Eram alunos às vezes não só com dificuldades de aprendizagem, mas de comportamento também. Este, eu acho, este foi o grande susto da implantação do ciclo”. (P. diretora de escola) Com esta reorganização da estrutura escolar a SME pretendeu garantir a continuidade dos estudos no interior dos ciclos, permitindo-se a retenção de alunos, apenas, ao final de cada ciclo. Um outro ponto da proposta de avaliação que rompia com a prática escolar dominante era a ausência de notas. Assim, a SME orientava que a promoção do aluno de um ciclo para outro, seria documentada em ficha descritiva e individual denominada de Parecer Descritivo e Conclusivo. É importante ressaltar que cada ciclo possuía critérios de avaliação para cada área do conhecimento, os quais orientava o professor para avaliar o aluno em seu desenvolvimento e justificava o seu avanço para o ciclo seguinte. A mudança na forma de avaliar o aluno, de não haver mais notas, da avaliação ser formativa e não mais quantitativa também foi causa de muita resistência por parte dos professores, diretores e pedagogos. Eles não aceitavam o fato de não haver mais retenção dentro de cada ciclo. A representação da prova como instrumento poderoso para a retenção ou aprovação do aluno estava arraigada no imaginário dos professores. Isso pode ser confirmado pelo depoimento: “Outra resistência, têm professores que até hoje não aceitam é a questão da retenção. Pra elas o aluno tem que ficar retido na turma de 7 anos e tem que ficar retido na 3ª série.” (I. pedagoga) A proposta dos ciclos de Aprendizagem defendida pela SME, não visava simplesmente aprovar os alunos adotando a promoção automática. Ao contrário, demonstrava a importância de ter constante preocupação com a aprendizagem dos alunos, considerando-o em sua individualidade e respeitando seus limites e possibilidades, desta maneira apostava no seu sucesso. Este novo enfoque da avaliação exigia que os professores revissem seu procedimento de considerar que na avaliação da aprendizagem o único a ser avaliado é o aluno em seu desempenho cognitivo, sem buscar também diagnosticar as possíveis razões dos avanços e dos entraves do processo. Era uma proposta de ação avaliativa que tinha um enfoque contínuo, diagnóstico e não circunstancial. Para a elaboração desta proposta, ao contrário de muitas existentes, a prioridade não foi apenas diminuir os gastos com as múltiplas reprovações, mas sim uma preocupação com o aprendizado do aluno ao definir um tempo maior para a aprendizagem de habilidades de leitura, escrita e cálculos matemáticos. Este novo jeito de organizar os tempos e os espaços escolares desestabilizou a própria cultura da escola. Um outro aspecto, que gerou descontentamento dos professores foi o fato da professora acompanhar o grupo de alunos no ciclo: “Acompanhar o ciclo cria-se um vínculo entre professor e aluno, o qual não é positivo. Na minha opinião, o professor não deve acompanhar o ciclo, a não ser se esta for a sua opção”. (D. professora) A fala da professora nos dá o indicativo das causas dessa resistência: “Mas também o professor pode se tornar muito insatisfeito se não gostar da faixa etária, ou então tiver uma turma indisciplinada, e com muitas dificuldades, possuir dificuldade de relacionamento com a classe e mesmo assim terá que trabalhar 2, 3 anos com estes mesmos alunos? O professor perde o estímulo ao não se realizar com o que está fazendo, torna-se uma imposição. Acho que acompanhar o ciclo deveria ser opcional. Sou a favor desde que o professor queira”. (E. professora) Um outro ponto fundamental era a rejeição aos alunos que apresentavam ritmos de aprendizagem muito diferentes do grande grupo. A idéia de classe homogênea prevalece no imaginário das professoras. Seus depoimentos revelam suas dificuldades em organizar o trabalho para atender os diferentes níveis da criança, por exemplo quando a professora diz: “Devido às dificuldades que alguns alunos trazem do ciclo anterior, torna-se difícil a retomada, pois a gente tem que seguir adiante com o conteúdo do ciclo, trabalhar com os alunos que estão acompanhando. E para os outros? Há uma queima de etapas, por mais que sejam feitas atividades diversificadas ficam falhas e necessidades não supridas.” (J. professora) Em seus depoimentos as professoras revelavam as dificuldades que sentiam em trabalhar com turmas heterogêneas, com alunos de diferentes níveis de aprendizagem, como se o sonho das classes homogêneas fosse possível. Essas dificuldades das professoras já foram evidenciadas por SAVELI (2003), quando aponta em seu trabalho que as professoras vivem o sonho da ilusão da homogeneidade da classe. Elas têm dificuldades em levar em consideração as desigualdades reais de desenvolvimento e de capital cultural das crianças. Desenvolvem atividades únicas com toda a classe porque têm receio de aumentar as variações entre os alunos. Outro fator, é que a adoção de um trabalho pedagógico diversificado requer, que seja proposto a cada aluno ou grupos de alunos propostas de trabalhos diferentes, isso complexifica o planejamento e a ação da professora em sala de aula. As professoras têm dificuldades em adotar uma postura didática mais flexível para atender as diferenças culturais ou até mesmo as dificuldades de aprendizagem que alguns alunos apresentam porque na sala de aula impera a lógica da homogeneidade, pois as professoras acreditam que não podem parar com aqueles que caminham para atender aos demais, deixando assim de lado àqueles que têm muitas dificuldades. Infelizmente o que se verifica é que os prejudicados são sempre àqueles que mais necessitam da atenção e do apoio da professora, que até por “ironia do destino” são crianças oriundas das classes mais pobres. Um aspecto importante na implantação da Proposta dos Ciclos de Aprendizagem na Rede Municipal de Ensino de Ponta Grossa – Paraná, foi a inclusão das crianças de seis anos no Ensino Fundamental. Essa iniciativa adiantou-se às Diretrizes emanadas pelo MEC no ano de 2004 a qual estabelece a implantação do Ensino Fundamental de nove anos, com a inclusão das crianças de seis anos, para todas as escolas do País. Com este trabalho foi possível obter uma melhor compreensão acerca das dificuldades da implantação de uma escola organizada em ciclos de aprendizagem, em que se enfrentou acentuadas resistências por parte dos profissionais da educação lotados nas unidades escolares. A experiência do município de Ponta Grossa demonstra que mudar exige tempo e paciência; exige trabalho e compromisso principalmente por parte dos governantes e dos dirigentes educacionais, tanto do responsável, Secretário da Educação e quanto dos gestores da escola, diretores e pedagogos. REFERÊNCIAS BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. São Paulo: Brasil, 1996. BRASIL. Plano Nacional de Educação. São Paulo: Folha Dirigida, 2001. SAVELI, E. L. Leitura na escola: as representações e práticas de professores. Curitiba: Fortun & Granchelli, 2003. SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO (SME). Diretrizes Curriculares: Ensino Fundamental. Ponta Grossa, 2003.