À noite na Biblioteca Martim e a sua família são os mais novos habitantes de Cabeceiras de Basto. São uma família habituada a andar de um lado para o outro, devido à profissão do pai. Martim adora ler. Depois de conhecer a sua nova escola e os novos colegas, quis saber onde era a biblioteca. Rapidamente se tornou num frequentador assíduo da Biblioteca Municipal Dr. António Teixeira de Carvalho. Troca muitas vezes os jogos da bola com os colegas por uma ida à biblioteca. Já todos os funcionários conhecem o Martim. Numa tentativa dele trocar a biblioteca pelo jogo da bola, os colegas resolvem falar-lhe sobre uma história que se conta por Cabeceiras de Basto há muitos anos. Dizse que a biblioteca é um edifício assombrado. Durante a noite ouvem-se risos e barulhos esquisitos. Mas o Martim, que adora ler e estar rodeado de livros, não se assusta. Não deixa de passar horas na biblioteca e, para surpresa dos colegas, achou a história interessante. Martim é muito curioso e tem muita imaginação, nem sequer pensa que os colegas só o querem assustar. Nos últimos dias, as conversas do Martim são sobre a biblioteca assombrada. Até os colegas, que só queriam a companhia dele para jogar à bola, já se mostram interessados em descobrir o que se passa. - Afinal o que se passa na biblioteca durante a noite? - Durante a noite não ficam só os livros, arrumados nas prateleiras? - Será que têm vida? - Não dormem, nem descansam de tanto serem mexidos, tocados e desfolhados durante o dia? Estas são algumas das dúvidas do Martim e dos colegas. Todos dão a sua opinião e tentam arranjar respostas, mas não passa disso. Só que a curiosidade do Martim não o deixa ficar sossegado. - Chega de histórias, chegou a hora da acção. - Martim e os colegas resolvem passar a noite na biblioteca. A biblioteca fechou, eles ficam bem escondidos para que o funcionário não os veja ao fechar a porta. Biblioteca fechada, todas as salas mergulham num imenso silêncio. Afinal parece que não se passa nada…puro engano. Assim que anoitece e a claridade deixa de entrar pelas enormes janelas, o silêncio é interrompido. Andam eles pelos corredores e ouvem uns risos numa das salas. Espreitam, sempre com a preocupação de não serem vistos, e ficam espantados com o que vêem. Alguns Livros Infantis, um pouco mais traquinas, saltam das prateleiras e andam numa correria pelo chão. Saltam, correm e riem às gargalhadas. A brincadeira está muito animada pelo chão da sala. Nas prateleiras os restantes Livros Infantis, um pouco mais calmos, divertem-se à sua maneira. Não andam a correr pelo chão mas o ambiente não deixa de estar animado. Estes livros, dedicados ao público infantil, mas um pouco mais velho, são uma espécie de irmãos mais velhos, têm que estar sempre de olho nos que andam com traquinices pelo chão. - Estes livros mais novos nunca se cansam? – pergunta um livro mais velho. - Cansam-nos é a nós, que temos de olhar por eles. – responde outro, abanando as páginas em sinal de acordo. ~1~ Estes livros estão com um olho nos mais infantis e outro nos mais velhos, nos que se destinam exclusivamente ao público juvenil. Não têm grande paciência para as brincadeiras dos mais novos e ao mesmo tempo tentam participar nas conversas dos mais velhos. Mas estes já contam outro tipo de histórias, não lhes dão muita confiança. - Estes livros são mesmo infantis. Tanto desenho e tanta cor que até me fazem dor de cabeça. - diz um juvenil, tentando justificar a razão pela qual não liga nenhuma aos infantis. - Se ao menos contassem umas histórias interessantes. – um livro de uma das colecções juvenis mais vendidas no momento não perde tempo em dar a sua opinião. Não há dúvida de que se passa muita coisa na biblioteca durante a noite. Se durante o dia os livros trazem vida à biblioteca, durante a noite ganham vida. Têm a sua própria vida. Mesmo assim dá para perceber que os livros não convivem muito com outros que não sejam da sua categoria. E não são só os Juvenis, que não têm paciência para as brincadeiras dos mais novos, porque já se acham muito crescidos e só as suas histórias são importantes. Os próprios Livros Juvenis de vez em quando tentam ir até à secção dos Romances. Ficam à escuta, maravilhados com o tipo de linguagem utilizada pelos Romances, ouvem as suas histórias na esperança de um dia chegar à fala com um deles. Imaginam-se a usar algumas palavras, mesmo não sabendo o seu significado, que ouvem e repetem entre eles. Às vezes ganham coragem e tentam entrar na conversa, mas sem sucesso. - Olha o livro do tesouro perdido no fundo do mar. – diz um Romance com um ar de gozo. - Será que é o tesouro ou o tempo que perdem a ler-vos que está perdido? – pergunta, com ar superior, o Romance que tinha sido eleito livro do mês. É sempre assim. Lá voltam os Livros Juvenis para a sua prateleira, para as suas conversas e sempre atentos às brincadeiras dos Infantis. A toda esta agitação, a todos estes desentendimentos entre livros, assistem as Enciclopédias. Num espaço da biblioteca à parte, em grande destaque e numa posição privilegiada, assistem a tudo do alto da sua sabedoria. Observam com muita atenção, discutem o assunto entre elas e todos esperam que acabem com as divisões entre os livros. Mas a noite já vai longa e até agora nada. Até mesmo entre Romances existe alguma inveja. É na altura em que são atribuídos alguns prémios literários que se nota mais esse sentimento. Os que estão à espera de ganhar, e não conseguem, acham sempre que o prémio é mal atribuído e assiste-se a discussões de meter medo. Na ficção nem todo o ambiente é mau como se pode observar na estante dos Livros de Ficção Científica. Esses estão num mundo à parte. Não entendem a linguagem dos outros, nem os outros livros entendem a sua, nem querem saber. Discutem sobre os planetas que cada um conhece mas acabam sempre por concordar uns com os outros. Vivem mesmo com as páginas na lua. Os Livros de Viagem estão sempre ausentes. Apesar de não saírem da prateleira estão desligados do que se passa durante a noite na biblioteca. Estão sempre a trocar experiências de viagens e a falar dos melhores locais para férias. ~2~ As horas vão passando, a noite já vai longa e de repente silêncio. Todos os livros se calam, todos param. Abre-se a porta do móvel e a Enciclopédia mais antiga da biblioteca chega-se à frente para falar a todos os livros. - Os vossos autores, independentemente do género literário que escolheram para escrever a história de cada um, têm uma coisa em comum, o amor pelos livros. Gostam de todos vocês, mesmo os que eles não escreveram, e esperam da vossa parte o mesmo sentimento. Todos vocês têm a aprender uns com os outros, nenhum sabe tudo, nem é melhor que outro qualquer, poderá ser diferente mas é só isso. Fez-se silêncio durante uns segundos e a porta do móvel volta a fechar-se. As conversas entre livros são retomadas e aos poucos começa a haver relacionamento entre géneros literários completamente diferentes. Até os Juvenis realizam o seu sonho e chegam à fala com os Romances premiados. O sol aparece e entra com toda a força pelas janelas do edifício. Nesse momento já todos os livros estão arrumados nos seus lugares, prontos para andar de mão em mão. Martim e os colegas voltam para o esconderijo e esperam que a biblioteca abra as portas. Quando chegam à rua não conseguem esconder a alegria e felicidade. Nenhum se lembra de ir para casa dormir, apesar de terem passado toda a noite acordados. Martim e os colegas estão felizes por saberem que a Biblioteca Municipal Dr. António Teixeira de Carvalho afinal não é nenhum edifício assombrado. Mas Martim, o mais recente habitante de Cabeceiras de Basto, não esconde a alegria por saber que os livros, que tanto gosta, além de contarem histórias, têm a sua própria história. Concordam em guardar este segredo só para eles. Acham que ninguém vai acreditar nesta história. As dúvidas que tinham, quando decidiram passar a noite na biblioteca desapareceram. Já sabem o que se passa durante a noite na biblioteca e sabem que, agora sim, os livros convivem, brincam e trocam informação entre eles. Luís Alves, Alcobaça VIII Concurso Literário Conto Infantil Nacional de Cabeceiras de Basto [2013] ~3~