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ARTIGOS
Entre quedas e buracos:
a contingência, o não-todo e o não-idêntico na escrita de Ruth Klüger
Flávia Trocoli∗
Resumo:
O texto propõe-se a analisar a construção de Paisagens da memória: autobiografia de uma sobrevivente do
Holocausto, de Ruth Klüger, dando ênfase ao ato de escrita que inscreve o não-monumental, o não-todo, a
contingência. Ruth Klüger jamais separa o trauma da linguagem, situando e reintroduzindo a contingência e a
possibilidade de a subjetividade advir. O tempo traumático é atemporal e funde Viena e Berkeley, faz com
que a narradora -adulta, professora de teoria literária, use os dêiticos da menina vienense, desamparada na
cidade de Sigmund Freud. Curto circuito na enunciação. O tempo traumático é também o da relação
impossível entre dois eventos, duas situações, dois tempos. Experiências inconciliáveis. Esse jogo entre
dessubjetivação, por ter estado com os mortos na vala escura, e subjetivação, por estar agora escrevendo,
potência da linguagem em ato, cria uma cerca de arame farpado entre quem sobreviveu e quem morreu, entre
quem escreve e seus fantasmas. E os fantasmas não são mudos, eles dizem: “Fala”. Ruth escreve, continua
quando não se pode continuar.
Palavras-chave: Autobiografia, Literatura Alemã, Ruth Klüger
Abstract:
This work intent is to examine the confection of Landscapes of Memory: a Holocaust girlhood remembered,
by Ruth Klüger, emphasizing the act of writing that inscribes the non-monumental, non-whole, the
contingency. Ruth Klüger never separates the trauma of language, standing and reintroducing the contingency
and the possibility of subjectivity arise. The traumatic time is timeless and fuses into Vienna and Berkeley,
makes the adult-narrator, a professor of literary theory, use deictics of the viennese girl, helpless in the city of
Sigmund Freud. Short circuit in the enunciation. The traumatic time is also the time of the impossible relation
between two events, two situations, two ages. Irreconcilable experiences. This game between loosing
subjectivity, having been in the dark ditch with the dead, and getting subjectivity, writing now, power of
language in the act, creates a barbed wire fence between those who survived and who died. Between the
writer and his ghosts. And ghosts are not dumb, they say, "Speak." Ruth writes, continues when it’s not
possible to continue.
Keywords: Autobiography, German Literature, Ruth Klüger
∗
Professora visitante do Departamento de Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É pósdoutora pelo Departamento de Linguística do IEL/UNICAMP. Possui Licenciatura em Letras pela Universidade
Estadual de Campinas (1997), mestrado em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas (2000) e
doutorado em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas (2004). Tem experiência na área de
Letras, com ênfase em Teoria Literária, Literatura Brasileira, Literatura Comparada e Literatura e Psicanálise. É
membro-fundador do Centro de Pesquisas Outrarte, no IEL/UNICAMP.
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Para Suely Aires
Antígone:
Sim, fala sem temor, meu pai; além
de mim ninguém te poderá ouvir.
Édipo em Colono
Não começarei pelas Paisagens da memória:
autobiografia de uma sobrevivente do Holocausto. Antes de
Ruth Klüger, passarei pelas palavras de Alfredo Jerusalinsky
sobre Camille Claudel que assinalam o horror de Rodin que,
diante da produção última de Camille Claudel, teria dito:
“Não é possível recriminá-la, ela está
produzindo morte.” Com efeito, ela estava
produzindo em carne viva a desesperança,
introduzindo o significante da desesperança
no campo da es-cultura, rompendo a
magnificência racionalista da es-cultura de
Rodin, atacando furiosamente a ilusão do
triunfo do racionalismo burocratizado, a
ilusão do triunfo da magnificência do Estado
como produtor de cultura, arte, etc., sob uma
ordem eminentemente administrativa. Em
outros termos, rompendo a magnificência dos
grandes monumentos. Ela atacava essa
magnificência com uma escultura do íntimo,
com a expressividade banal, como a cena das
Ruth Klugler
Bisbilhoteiras ou a cena da desesperança dos
pais diante de um filho ingenuamente sentado. É evidente que, na introdução deste
significante da desesperança e da morte (e não sei por qual via), Camille Claudel estava
prevendo a guerra [...] (JERUSALINSKY, 1999)
É sem fúria e sem ataque, mas, como Camille, infinitamente distante do monumental, que
Ruth Klüger escreve a sua autobiografia. A guerra, o kadish, oração pelos mortos, o Pessach, não
são assuntos para as mulheres. “As mulheres não têm passado”, diz Ruth, 50 anos depois da morte
de Camille Claudel. E como rezar pelos mortos cabe aos homens, ela fará poesias, urdirá mitologias
e fantasias. “Melhor do que nada”, diz ela. O que é importante aqui não é reescrever uma suposta
denúncia feminista de Ruth Klüger, mas sim acompanhar seu ato de inscrição do não-monumental,
da contingência, do não-todo e do não-idêntico. Ruth Klüger jamais separa o trauma da linguagem,
o que a sintoniza com Giorgio Agamben, para quem separar Auschwitz da linguagem é repetir
inconscientemente o gesto dos nazistas.
Para Agamben, Auschwitz é a negação mais radical da contingência, por isso, depois do
horror de cada campo, é preciso retomá-la, a contingência, como aquele momento em que uma
potência existe como tal. E é fundamental que, neste contexto, se entenda tal potência como um
poder dizer. (AGAMBEN, 2007) Não se trata, evidentemente, de dizer tudo ou dizer o todo, pelo
contrário, trata-se da cisão instaurada pela linguagem entre potência e impotência. É nesta cisão que
Ruth Klüger se situa e reintroduz a contingência e a possibilidade de a subjetividade advir em uma
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realidade que se apresentou como indizível, engendrada por uma lei perversa que, em última
instância, reduzia o judeu à mudez. Assim, não ser esmagado por um todo sem lacunas implica a
possibilidade de falar, como um tempo para a lacuna e o acaso. Para o que resta: a não-relação e a
não-identidade.
O próprio fato de ter sobrevivido é considerado uma pura contingência. Em uma seleção para
troca de campo, uma escrivã, também prisioneira, embora em outra posição, diz a Ruth para dizer ao
encarregado da SS que tem quinze e não treze anos e, diante da desconfiança do guarda, elogia a
constituição forte da menina, seus músculos bons para o trabalho. Ruth é selecionada e escapa da
morte em Auschwitz. O episódio ainda vaga solto no espaço da memória, Ruth pede que nos
assombremos e, se “a memória se funda no espanto” (BRAUNSTEIN, 2008), não esqueçamos que:
Não era algo comum, não era como se alguém tivesse o poder e o exercesse de maneira cega
e soberana com um objeto qualquer. [...] A decisão dela rompeu a cadeia causal. Ela era
uma prisioneira e arriscou muito. [...] Nunca tinha havido um ato livre e espontâneo como
aquele, como ocorrera ali, naquele momento. [...]. Fora isso que vivi, o ato puro. Reflitam
sem criticar, por favor, aceitando o que está descrito aqui, e o guardem na memória. Em
uma ratoeira onde o amor ao próximo é a coisa mais improvável, [...] resta um pequeno
vácuo, é ali que a liberdade pode aparecer como a coisa mais surpreendente.” (KLÜGER,
2005, p.122-123)
É justamente desse pequeno vácuo, desse “amor improvável” como resto que se dará
testemunho. Testemunho, não de um “tempo monumental”, aquele da “Autoridade e do Poder”
(RICOEUR, 1984, p. 200), da história oficial, dos vencedores, cronológico e totalizável. Georges
Pérec afirma que a História, com maiúsculas, o privou de uma história, com minúsculas, que ele não
tem nenhuma lembrança de sua infância (PÉREC, 1975, p. 17). Ruth Klüger, tal como a tradição do
melhor romance moderno, empresta uma moldura subjetiva ao “tempo monumental”, e a sua
história é aquela que se escreve tanto a partir do que rompe a cadeia causal, quanto a partir da lógica
do um a um:
O papel que desempenha na vida o fato de ter estado num campo de concentração
não pode ser avaliado por nenhuma regra psicológica precária; ao contrário, é
sempre diferente para cada indivíduo, depende do que o precedeu e do que se
seguiu, bem como das coisas que ocorreram para cada indivíduo ali. Para cada um
foi uma experiência única. (KLÜGER, 2005, p.68)
A experiência é única pelo que a precede e pelo que a segue. Esse tempo, que chamaria de
estrutural, nada mais é do que o tempo da narrativa, que Ricoeur chama de “fictício”. Na escrita de
Klüger, a experiência temporal aparece tanto como supressão do tempo cronológico, em que ela não
sabe mais se o vento que sopra é da Viena da sua infância ou do Pacífico na Califórnia da emigrada,
quanto como uma radical disjunção, há uma cerca de arame farpado entre a criança e os adultos,
entre a lembrança do pai indo lhe buscar na escola e a fantasia do pai morto na câmara de gás, entre
Viena e Auschwitz, entre os vivos e os mortos. O tempo traumático é atemporal e funde Viena e
Berkeley, faz com que a narradora-adulta, professora de teoria literária, use os dêiticos da menina
vienense, desamparada na cidade de Sigmund Freud. O tempo traumático é também o da relação
impossível entre dois eventos, duas situações, dois tempos. É como se a vida e a morte não tivessem
nada a ver uma com a outra: experiências inconciliáveis. A atemporalidade e, ao mesmo tempo, a
disjunção entre passado e presente barram a possibilidade de identidade e de totalização. Mas a
dificuldade não pára aí, talvez o impasse resida também no fato de que a passagem por Auschwitz
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tenha sido um morrer sem morte. Nos termos que Jacques Derrida, em Demeure, encontrou para o
texto autobiográfico de Blanchot, intitulado L'instant de ma mort:
Como se a morte fora dele pudesse doravante se chocar com a morte nele. [...] Escrever sua
autobiografia seja para se confessar, seja para se analisar, seja para se expor aos olhos dos
outros, à maneira de uma obra de arte, é talvez procurar a sobrevivência, mas por um
suicídio perpétuo. Em “uma cena primitiva”, pode-se ler: “viver sem vivente, como morrer
sem morte: escrever nos envia a essas proposições enigmáticas. (DERRIDA, 1998) (livre
tradução da autora)
Esse suicídio perpétuo de que fala Derrida está figurado na autobiografia de Ruth Klüger
quando afirma que até hoje ela sente-se cair da rampa do vagão que a transportou para Auschwitz. A
cena traumática sobrevive atualizada: “quedas”, diz ela. Nessa cena, em acordo com as proposições
enigmáticas de que fala Derrida, reside a morte do sujeito que, pelo ato de escrita, se torna
sobrevivente e testemunha. Esse jogo entre dessubjetivação, por ter estado com os mortos na vala
escura, e subjetivação, por estar agora escrevendo, potência da linguagem em ato, sim, esse jogo cria
uma cerca de arame farpado entre quem sobreviveu e quem morreu. Entre quem escreve e seus
fantasmas. No caso de Ruth, os fantasmas são o irmão e, sobretudo, o pai. E os fantasmas não são
mudos, eles dizem: “Fala”.
Ruth escreve. Qual a função que a escrita literária tem na vida de Ruth Klüger? Uma vez que
Ruth não pode rezar o Kadish, oração pelos mortos, ela escreve poesia. É justamente um
atropelamento na Alemanha, ou seja, mais um escapar da morte que faz com que Ruth comece a
escrever suas memórias, a retornar àquilo que não foi e que não pode ser apagado do arquivo.
Na primeira página de O amante, de Marguerite Duras, lê-se: “Muito cedo na minha
vida ficou tarde demais.” (DURAS, 2003, p.7). Essa sentença ecoa nas primeiras páginas de
Paisagens da memória: “a dispersão começou cedo demais”, se lá se tratava do encontro com um
homem, aqui se trata do esfacelamento da família. Ruth não pertenceu. Diz ela: “não é bom
perceber-se como mônada, sozinha em um espaço, muito melhor como membro de uma corrente,
mesmo que rompida.” (KLÜGER, 2005, p. 14). Nessa paisagem, os homens estão mortos, resta a
presença cerrada da mãe. No entanto, os livros de Arthur Schnitzler ajudam-na a escrever seu
romance familiar, dizem mais a respeito dos pais do que ela pôde guardar na memória. O irmão é
filho da novela de Schnitzler, com pitadas de Werfel e Zweig. De Viena, a cidade fantasma, Ruth
não tem amigos ou parentes. No entanto... “Apenas a literatura desse país, de Adalbert Stifter a
Thomas Bernhard, fala a mim de modo mais íntimo que outros livros, naquele tom de voz agradável
de uma familiar e maliciosa linguagem infantil.” (KLÜGER, 2005, p.61).
Para Ruth Klüger, a literatura não converte, nem ensina, mas a forma literária dá
arrimo, rimar escande o tempo do horror em Auschwitz. Isso posto, pode-se dizer que a literatura é a
esperança perseguida por aqueles que já não têm esperança. Desse paradoxo, Kafka também seria
exemplar. Deixemos que Ruth Klüger, uma vez mais, nos coloque o problema: “Essa exigência [que
não se escreva poema algum sobre ou após Auschwitz] deve vir daqueles que podem prescindir da
linguagem em versos para manter-se psicologicamente com a cabeça fora d'água, sem afogar.”
(KLÜGER, 2005, p.115).
Diante da família estilhaçada, é nos textos literários que Ruth Klüger busca um romance
familiar. E mais: atribui à literatura, ou melhor, ao fazer rimas, o mantenimento da razão em
Auschwitz. No entanto, a literatura não tampa buracos, antes ela os expõe. Nada explica, mas sem
ela não há forma possível. É à Antígone, de Édipo em Colono, e à Jéssica, de O mercador de
Veneza, que Ruth recorre para formalizar o seu lugar de filha junto a um pai que foi isso e aquilo, e
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entre uma coisa e outra há o nada. Ou seja, não há relação entre a lembrança do pai, o que a buscava
na escola, e o que, de acordo com sua fantasia, morreu na câmara de gás. É justamente depois do
poema em que se torna Antígone que Ruth Klüger contesta a célebre frase de Adorno sobre a
barbaridade de se escrever poemas depois de Auschwitz. Eis o poema:
Com uma vela comemorativa para o pai
Noite passada, revirando velhas fotos
encontrei uma de ti ainda jovem.
Tal qual te conheci, só um pouco mais rebelde,
Me olhavas alegre e gentil.
Sopra o vento do Pacífico.
Esta manhã, ainda nem partira o pão
e cravava os olhos no copo d'água.
Quando pequena te prometi algo
mas não consigo lembrar o quê
Nas escarpas da costa cresce um capim queimado.
Lembranças giram como lã na roca
até a castanheira e o bonde elétrico.
Minha mão de criança na tua, larga, fria,
mas o fio se parte em misteriosa ilusão.
Sopra o vento do Pacífico.
Tudo escurece quando acaba um jogo
cuja prenda e cujas regras esqueci.
Sem ti, soluçando, tropeço sem rumo
por ruas cobertas de estilhaços.
Nas escarpas da costa cresce um capim queimado.
Minha vela quer tocar tua pálpebra
ainda que teus olhos não a possam ver.
Guiar pais cegos, descalça, pelo mundo,
infelizmente só convém a filhas de reis.
Sopra o vento do Pacífico.
Queria pedir-te brinquedos perdidos
que a ferrugem, com dentes rubros roeu.
E corro atrás de ti com passinhos de menina
que o tempo mediu com botas sete léguas.
Nas escarpas da costa cresce um capim queimado.
Mas ris de mim e não te deixas perturbar.
Diz, como se ri sem lábios, língua, dentes?
Minha vela quer conjurar-te outra vez.
Pois senão, o que faria com teu riso?
Sopra o vento do Pacífico.
Fio partido, estilhaços: o poema, citado nas primeiras cinquenta páginas do livro, antecipa e
sintetiza o funcionamento do texto. Passar pelo dizer de Ruth Klüger é poder ler na enunciação, na
escrita em ato, os seus ditos sobre: o arame farpado intransponível, o rompimento da cadeia causal,
Auschwitz como corpo estranho que não pode ser assimilado, as paisagens irreconciliáveis, a conta
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que não fecha. Mais de duzentas páginas adiante, a narradora reitera: “Estilhaços por onde quer que
se olhe”. Estilhaços que, como espero apontar agora, também estão em jogo na imagem de
Antígone. Doravante, apontarei como a disjunção, que atua na temporalidade e na enunciação, está
também presente na apropriação da imagem literária, no caso, de Antígone que, de acordo com
Lacan, funciona como barreira e acesso à morte. Estar na vala escura com os mortos e escrever: eis a
questão.
Nesse ponto já adentramos a lição do Seminário 7 de Lacan, A ética da psicanálise, 19591960, intitulada: “O brilho de Antígona” (“L'éclat d'Antigone”). Nessa lição, verdadeiramente
encantadora, Lacan se indaga sobre o fascínio da imagem de Antígone, mais precisamente destaca
“o poder dissipador desta imagem central” (LACAN [1960] 1988, p. 301). De onde vem esse brilho
insuportável? Ele vem do fato de que a imagem de Antígone dá a ver o desejo como puro desejo,
isto é, como desejo de morte. Ainda no Seminário sobre a ética do desejo, Lacan já articulara o
desejo radical, destruição absoluta, ao campo do belo que não se desvincula dessa imagem
deslumbrante:
A verdadeira barreira que detém o sujeito diante do campo inominável do desejo radical,
uma vez que é o campo da destruição absoluta, da destruição para além da putrefação, é o
fenômeno estético propriamente dito, uma vez que é identificável com a experiência do belo
– o belo em seu brilho resplandecente, esse belo do qual disseram que é o esplendor da
verdade. (LACAN, [1960] 1988, p. 265)
Não posso deixar de mencionar que a palavra “éclat”, insistentemente usada por Lacan e
indissociada do belo, além de significar brilho, também significa estouro, fragmento, estilhaço. Se
inicialmente uma imagem é pensada como aquilo que figura, que fixa, ou seja, como pertencente à
ordem da totalização e da identidade, não seria então contraditório propô-la como lugar de acesso à
dispersão? Ruth Klüger afirma que os poemas escritos por ela apenas atestam a sua incapacidade de
expressão. E nesta afirmação reside a pista para respondermos a essa pergunta. Evidentemente, não
se pode fazer um simples paralelo entre o puro desejo de morte que Lacan lê em Antígone e o estar
com os mortos na vala escura de Ruth Klüger, trata-se de relações entre desejo e morte de ordens
bem diferentes. Voltarei a isso.
O que me interessa, contudo, é a conclusão de Lacan a respeito do fenômeno estético como
barreira última contra a morte. Talvez Ruth Klüger não discordasse dele, uma vez que afirma que
para não ficar no nada ou para manter a cabeça à tona faz rimas, ainda que imperfeitas. Em outras
palavras, se por um lado a relação com o pai escapa ao campo do representável, por outro, ela é
inscrita através de dois personagens literários – Édipo e Antígone, em Colono, pois aqui “o pai
nunca encontra a morte”. No entanto, ao mesmo tempo em que há inscrição – “transformei-me em
uma Antígona” –, há dispersão, uma vez que “Guiar pais cegos, descalça, pelo mundo,/infelizmente
só convém a filhas de reis.” Se insisti no não-todo que encontra sua imagem na instransponível cerca
de arame farpado, neste ponto poderia concluir que, ao lado da perda da totalidade, reside a perda de
toda identidade, Ruth não é filha de rei, e só essa filiação garantiria a ela conduzir o pai cego pelo
mundo. No entanto, se isso lhe está barrado, através da imagem de Antígone, Ruth não deixa de ter
acesso ao pai, que nunca encontra a morte, no último poema, na última página:
Cada fantasma que chega pode me desalojar,
pois tenho de seguir adiante quando algum me diz: “Fala”.
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Seria preciso uma outra adversativa, pois Ruth não termina com o imperativo do fantasma,
ao contrário, escrito o livro, feita a barreira, e o acesso, ela pode assim concluir: “Agora eles [os
fantasmas] podem me deixar em paz e me poupar de seguir mudando de casa.”. O tropeço sem rumo
que forma um dos versos do primeiro poema transforma-se no “livro alemão” destinado “aos amigos
de Göttingen”.
Isso posto, é preciso retornar à questão do desejo puro como um puro desejo de morte para
situar uma diferença absoluta entre Ruth Klüger e Antígona. Em O gozo do trágico: Antígona,
Lacan e o desejo do analista, Patrick Guyomard, depois de empreender uma leitura cerrada das
lições sobre Antígona no Seminário 7, vale-se de outros textos de Lacan para apontar os riscos de
fazer coincidir o desejo puro com um sacrifício a um destino e a uma maldição da linhagem (ao
contrário, a análise “historiciza o peso repetitivo de um destino”, nas palavras de Guyomard) e
distinguir, assim, o desejo puro do desejo do fim de análise e do psicanalista. Destaco alguns
fragmentos do Posfácio de Guyomard:
Por que chegou ele a uma posição que o fez dizer que é justamente pelo fato de o desejo de
Antígona ser o desejo de morte que o desejo do analista não pode ser esse desejo? O desejo
do analista é um desejo separador. É um desejo de diferença, [...]. Na tragédia de Sófocles,
Antígona levanta a questão da sepultura, mas, através dela, levanta e instaura a questão da
simbolização: Que é simbolizar? [...] Há outras maneiras de levantar a questão da
simbolização além da sustentada por Antígona. Há outras maneiras de enterrar. Antígona
pratica o rito sozinha, sem nenhum terceiro, embora, para os gregos, as mulheres não
pudessem celebrar os ritos fúnebres. A tragédia de Antígona é uma tragédia da sepultura e da
simbolização. [...] que é uma sepultura? Como separar o morto do vivo, o presente do
passado? Como engatar o tempo histórico a partir do tempo do destino? (GUYOMARD,
1996, p.99-100)
É com sua vida que Antígona paga a sepultura de Polinices.
Solitária e traída, Antígona “pratica o rito sozinha, sem nenhum
terceiro”. Ruth não. Neste ponto, é impossivel não lembrar que o
título no original é Weiter Leben. Eine Jugend. Isto seria, justamente:
Continuar a viver. Uma juventude. Interpretaria o título original não
como um a priori, a partir do qual se escreveria. Não. Ele é
justamente um resto, tal como um “amor improvável”, da operação
de simbolização, da escrita do livro.
Não esqueçamos que o livro pode ser pensado como resposta
à interpelação dos fantasmas, cadáveres sem sepultura, o pai e o
irmão: “Fala”. Em sua etimologia latina, nos deixa saber o
Dicionário Houaiss, interpelar é “interromper, atrapalhar,
importunar”. Na primeira página de sua autobiografia, Ruth Klüger
se define como “Alguém que se põe em fuga, não no instante em que
fareja o perigo, mas quando começa a ficar nervosa. Pois a fuga era a
melhor coisa, antes e ainda agora. Mais sobre isso daqui a pouco.”.
Na página final, lê-se: “Agora eles podem me deixar em paz e me
poupar de seguir mudando de casa.”. Em outras palavras, a interpelação do fantasma – “Fala” –
interrompia o curso da vida, importunando, congelava a identificação com alguém que mudava, que
fugia. Ao final, escrito o livro, Ruth é aquela que pode permanecer, e o endereço novo é aquele para
envio: Göttingen, Alemanha.
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Aqui poderia começar um outro texto que falaria sobre memória, envio/destinação e
transmissão:
Sob o imperativo bíblico de Zakhor, Israel!, o povo judeu é intimado a lembrar. Este
mandamento teve efeito duradouro entre os judeus desde os tempos bíblicos: a obrigação de
lembrar é o penhor da transmissão. Zahor, que significa lembrar, inscreve a modalidade de
pensar a história judaica numa topologia singular do tempo: a cena presente e a do passado
se reconhecem uma na outra. É o que se pode ler neste longo e belo parágrafo de
Yerushalmi em seu Zahhor, história judaica e memória judaica: “[...] Se não é possível
haver uma volta para o Sinai, então o que apareceu no Sinai deve ser mantido através dos
condutos da memória para aqueles que não estiveram lá naquele dia.” (FUKS, 2000, p. 135)
O belo fragmento é convocado aqui para introduzir e destacar, mantendo a lógica analítica
ressaltada por Guyomard, uma diferença. Se no fragmento o povo judeu é intimado a lembrar, Ruth
Klüger é interpelada a falar, a escrever. Há um deslocamento da rememoração para a escrita. Se o
fragmento privilegia “uma topologia singular do tempo”, o livro de Ruth Klüger traz para o primeiro
plano, por assim dizer, uma topologia singular da escrita, em que a própria literatura funciona como
terceiro e não deixa Ruth cumprir sozinha os ritos fúnebres. O endereçamento não é ao povo judeu,
embora eles possam em filigrana ler na autobiografia de Ruth Klüger a sua história, mas aos amigos
alemães. E, se as cartas chegam ao seu destino, algo aí (se) passa: transmissão.
Ao dizer que “Há em toda transmissão uma ‘traição’ fundamental, que é a condição do
novo”, Patrick Guyomard nos faz voltar ao Houaiss para ler na etimologia de trair: “dar em mão,
passar a outro, confiar, dar, atraiçoar, abandonar, ceder, renunciar.”. Poderia dizer que a escrita do
livro (e seu envio), a escrita das suas memórias e suas histórias calam os fantasmas e seu imperativo:
Fala!. Cessa o apelo, começa a transmissão. Ruth agora pode descolar-se daquela que está sempre a
fugir. Traindo essa identificação inicial, ela pode, enfim, continuar a viver.
Dizer isso ou, ainda, o título, ou mesmo a dedicatória do livro (suprimida da edição
brasileira) “Den Göttinger Freunden ... ein deutsches Buch” autorizariam a ler uma dimensão
reconciliatória entre a sobrevivente e os alemães? Certamente, não é desprezível o fato de Ruth
Klüger começar e terminar o seu livro especificando o destinatário. Em seu livro sobre memória e
espanto, Néstor Braustein enfatiza que a memória é um fato social, que a cena da rememoração é
indissociável do destinatário. Mas, para delinear uma resposta à pergunta que emerge ao final deste
percurso de leitura, é preciso retornar aos movimentos do texto. Circunscreverei três.
Movimento inscrito no título alemão, no verbo no infinitivo. O texto de Ruth é
desassossegado, ético e não moralista, o tempo todo desautoriza o leitor a fechar uma conclusão,
sem ser relativista. “A conta não fecha”, diz ela. E nem por isso o leitor está autorizado a dizer que
vale tudo (o que talvez peça uma reflexão mais ampla sobre o gênero autobiográfico como
resistência a um modo de pensar/escrever pós-moderno pautado pelo culto do fim: da história, do
sujeito, das fronteiras entre ficção e história. O que exigiria de mim um outro texto. Um outro
momento). No Epílogo, na Califórnia:
Aqui o passado é no máximo um baile de máscaras num cenário de Hollywood – o vestuário
sempre é correto nos filmes históricos, mas nada mais é exato. [...] Orange County também
tem seu aeroporto, rebatizado de John Wayne Airport, essa personalidade que representava
os heróis, tornou-se ele mesmo um herói pelo fato de interpretá-los. Quem não leva a
história a sério não faz questão da diferença entre ficção e realidade. [...] Gosto de viver
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aqui. Esta paisagem de mar e deserto, ameaçada por terremotos, abençoada pelo sol,
castigada pela falta d'água, impôs a si mesma a tarefa insana, trágica, de eliminar, mediante
a negação deste, mediante a substituição do presente por um outro presente, antes que o
primeiro possa se tornar velho. Isso não funciona, por isso é insensato. Um dia haverá a
vingança, por isso é trágico. (KLÜGER, 2005, p.249-250)
Movimento que teria uma origem suposta na seguinte constatação: “'Mas quando tudo já foi
dito e esclarecido, ainda sobra um resto que não compreendemos', disse o convidado de origem
tcheca. Por exemplo, a morte de um comboio em Riga [nele estava o irmão de Ruth].” (KLÜGER,
2005, p.89). Pode-se ainda pensar que este movimento que aponta sempre para um resto que não
cabe no pensamento racional, nem numa escrita definitiva e totalizante da história, seria também um
movimento de resposta da aposta na linguagem contra o fascismo fundado em absolutizações e
totalizações.
Movimento de ancoragem da História na realidade concreta. Movimento inscrito na epígrafe
assinada por Simone Weil: “Suportar o desencontro entre a imaginação e o fato. Não inventar um
outro sistema imaginário adaptado ao novo fato. 'Eu sofro.' É melhor isso que: 'esta paisagem é
feia'.” Ruth não filosofa sobre o Campo, o Bem, a Traição, o Preconceito, a Amizade. Ela parte de
cenas particulares: em Viena, em Theresienstadt, em Auschwitz-Birkenau, em Christianstadt, a
salvação em Auschwitz, a cena em que a mãe, para matar piolhos, lhe arranca o couro cabeludo ou,
já em Nova York, quando lê os seus papéis e rasga suas cartas, da cena em que é humilhada no
cinema, das amigas que lhe impedem de ficar se debatendo entre as cercas de arame farpado.
Seguindo este movimento, já se pode precisar que Ruth não destina a escrita de suas memórias ao
Povo Alemão, mas sim aos amigos de Göttingen.
Tal gesto e tais movimentos colocam em primeiro plano a importância do presente na
rememoração do passado. Não se trata do lembrar como um fetiche ou como fonte de
autoconhecimento. Muito longe disso. Lembrar o passado, a partir da especificidade do presente é,
sobretudo, poder neste intervir. Mudar. Fazer cessar a repetição.
Para o livro alemão, para os amigos de Göttingen, a palavra precisa não é reconciliação.
Talvez seja amor (este que Ruth compara à razão, uma outra que não a dos nazistas, como atenção e
doação), um amor improvável que pode romper a cadeia causal do todo, do idêntico, do mal. Há um
pedido para que se guarde isso na memória:
Não era algo comum, não era como se alguém tivesse o poder e o exercesse de maneira cega
e soberana com um objeto qualquer. [...] A decisão dela rompeu a cadeia causal. Ela era
uma prisioneira e arriscou muito. [...] Nunca tinha havido um ato livre e espontâneo como
aquele, como ocorrera ali, naquele momento. [...] Fora isso que vivi, o ato puro. Reflitam
sem criticar, por favor, aceitando o que está descrito aqui, e o guardem na memória. Em
uma ratoeira onde o amor ao próximo é a coisa mais improvável, [...] resta um pequeno
vácuo, é ali que a liberdade pode aparecer como a coisa mais surpreendente.” (KLÜGER,
2005, p.122-123)
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Recebido em: 20 de setembro de 2010
Aprovado em: 29 de outubro de 2010
http://www.uva.br/trivium/edicao1-dez-2010/artigos/2-entre-quedas-eburacos-ruth-kluger.pdf
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