6 — DOMINGO, 12 de maio de 2002
CORREIO
ELIO GASPARI
Uma crise daquelas de que FFHH não gosta
oves fora a conversa golpista de uma
nova candidatura de FFHH, ele está
metido numa crise daquelas de que não
gosta. São aquelas que resultam de um
choque de forças que não defendem interesses visíveis. Ele entendia a briga política
provocada pelo populismo cambial, assim como entende a encrenca que o governo de George W. Bush está montando com o Brasil. Não
entende, por exemplo, como o Brasil chegou à
beira da guerra civil em 1961, depois da renúncia de Jânio Quadros. Agora, ele olha para
os jardins do Alvorada e não entende por que a
briga com o PFL foi tão longe. Muito menos as
razões que esfacelaram o PSDB. Na essência,
não entende como se tenha chegado a um ponto em que tanto o PFL quanto um pedaço do
PSDB prefiram perder para Lula a abrir uma
rodada de conversações que recoloquem de pé
a candidatura de José Serra. Primeiro, viu o
N
PFL ir para uma eleição sem candidato. Agora,
já recebeu sinais de que nem uma troca de
candidato assegura a unidade do PSDB. Pior:
os estepes sumiram.
Há na sua perplexidade um raro abatimento. Primeiro, porque percebeu a dificuldade para recolocar a pasta de dentes no tubo espremido. Depois, porque, a cada dia e ponto percentual que passa, o tucanato se vê numa
campanha eleitoral que lhe exigirá a satanização de Luiz Inácio Lula da Silva a níveis próximos daqueles usados por Fernando Collor.
Tendo conseguido eleger-se duas vezes sem ter
recorrido a esse tipo de expediente, FFHH será
um dos últimos tucanos a embarcar nesse caminho.
Se vier a preferi-lo, jogará fora um dos
maiores atributos de seu reinado, a rara capacidade de esvaziar as crises, em vez de agraválas.
FOLHA IMAGEM / CP
O consulado em Nova Iorque está sem tempo para atender a choldra
Um bom tema para o ministro Celso Lafer meditar diante da
ascensão de Lula nas pesquisas eleitorais. Aqui vai o horário de
atendimento que o consulado brasileiro em Nova Iorque oferecerá à patuléia a partir de 1O de junho: para entrega de documentos, só de 10h a 13h. Para recebimento da papelada, de
14h30min a 16h.
Isso dá um total de quatro horas e meia de expediente para o
público. Pior: só atendem durante o horário de trabalho da cidade e não atendem na hora do almoço.
O chanceler poderá se divertir vendo as condições impostas
aos contribuintes que desejem falar com o consulado por telefone. Oferecem-se 13 números para que a choldra converse com
máquinas.
Para “atendimento personalizado” (nome dado pelos burocratas à interlocução humana), o atendimento será restrito a
duas horas diárias. De 15h a 17h. O consulado é claro quanto
a esse regime: “Fora do novo horário mencionado acima, não
haverá atendimento telefônico personalizado”. Ressalva que
atende “casos de comprovada emergência”, mas não diz o que
isso significa. Para evitar contratempos, talvez seja melhor que
o andar de baixo procure a Cruz Vermelha e o de cima, a Merrill Lynch.
Vivem na região de Nova Iorque mais de 300 mil brasileiros
que remetem anualmente ao Brasil perto de 1 bilhão de dólares (dinheiro da família das exportações anuais de calçados). É
gente que trabalha oito horas por dia e foi ela que transformou
a Rua 46 num pedaço do Brasil, assim como é ela que organiza a maior festa verde-amarela da cidade.
A repartição justifica seu novo expediente para a escumalha
“em razão do aumento da demanda de serviços consulares pela comunidade, sobretudo após os atentados terroristas de 11
de setembro de 2001, sem que houvesse o correspondente au-
mento de seus recursos”.
Se a razão é essa, a solução é fácil: basta suspender o atendimento personalizado que o consulado dá a ministros e maganos
indo buscá-los no aeroporto e colocando-lhes automóveis com
motorista à disposição quando passam pela cidade. Celso Lafer
pode começar a realocação de recursos dispensando sua própria
mordomia. Ele não lhe sentirá a falta, pois já cansou de bater
pernas e de entrar em táxi amarelo em Nova Iorque.
Nisso tudo há uma parte divertida. A página do consulado na
Internet oferece uma entrevista, em áudio, do cônsul-geral sobre
um tema de interesse geral. Atendimento aos nativos? Não, notícias sobre sua poesia. Ele até recita um versinho do poema “Balada”. Quem estiver precisando desse tipo de serviço pode ser
atendido a qualquer hora no seguinte endereço:
http://www.un.org/av/radio/portuguese/flavio020221.ram
(talvez seja necessário o programa Real Player para ouvir a peça).
O marechal Bittencourt morreu de valentia, mas foi esquecido
Está nas livrarias “Veredicto em Canudos”, do escritor hún- porque a garrucha falhou. O marechal Bittencourt, de 57 anos, também uma faca. Acertou o peito de Bittencourt e atravessougaro Sándor Márai. Tem 157 páginas, foi magnificamente tra- jogou-se em cima do sujeito e enfrentou-o no braço. Juntaram- lhe o pulmão. O marechal já tinha levado outras quatro facaduzido (do inglês) por Paulo Schiller e tem uma história intri- se a ele alguns oficiais e a pancadaria durou uns cinco minu- das, mas essa o mataria. Teve mais uma hora de vida.
gante. Márai acabou de escrevê-lo na Itália em 1969 e sua pri- tos. Marcelino Bispo tinha um sabre, mas tomaram-no. Tinha
Carlos Machado de Bittencourt é praticamente desconheciGUTO COSTA / O GLOBO / ALEX FREITAS / ESPECIAL / CP do na história brasileira, apesar de ter sido
meira edição saiu no Canadá no ano seguinte. O escritor nunca esteve no Brasil
a maior patente militar a morrer em come nada leu sobre Canudos além de “Os
bate. Graças a ele o Brasil é dos poucos
Sertões”, de Euclides da Cunha. Fascipaíses do mundo onde um chefe militar
nou-se pela história do arraial, como sumorreu defendendo o poder civil. Em 1962,
cedeu ao peruano Vargas Llosa, que estornou-se patrono da Intendência do Exércreveu “A Guerra do Fim do Mundo”.
cito e de sua memória restam um busto coO coração do livro é uma conversa do
locado em frente ao lugar do atentado (o
ministro da Guerra, marechal Carlos Maportão do Museu Histórico Nacional) e uma
chado de Bittencourt, com uma pessoa
placa de bronze no exato ponto onde tomque sobrevivera ao massacre. Como se
bou. Por décadas ela foi protegida por duas
trata de ficção, pouco importa que suas
peças de pedra. Talvez para não atrapalhar
idéias nada tivessem a ver com as tintas
o estacionamento de automóveis, retirajacobinas de seu personagem. Ele era um
ram-nas. Assim, foi-se o relevo dado àqueverdadeiro milico sem simpatias pelo male pedaço de chão. Coisas da vida, um marechal Floriano, pela República nascente
rechal morto na defesa de um presidente
ou pelo imperador destronado. Grande
não deve ocupar o espaço onde se pode esorganizador, assegurou as linhas de sutacionar um carro.
primento das tropas, mobilizando mil
Finalmente, uma suspeita, baseada em
mulas e jumentos.
algo que pode ser lenda. No início de 1974,
O fato de Márai ter colocado em Bitcirculou entre a tropa que combatia os
tencourt a voz de um interessante persoguerrilheiros do Araguaia a ordem de capnagem é boa oportunidade para registrar
turar vivos alguns prisioneiros. Não se desdois fatos. O primeiro é a falta de dimentinava a mantê-los vivos, pois, assim como
são dada a esse marechal na história braem 1897 a tropa exterminou os sobrevivensileira. Teve um momento de glória, mas
tes do arraial do Conselheiro, no Araguaia,
não lhe dão os devidos 15 minutos de faa partir de outubro de 1973, exterminama. Na manhã de 5 de novembro de
ram-se os guerrilheiros do PCdoB. Queria1897, exatamente um mês depois da quese um guerrilheiro vivo para mandá-lo a
da do arraial do Conselheiro, já no Rio de
Brasília, para que o ministro da Guerra,
Janeiro, o ministro da Guerra caminhava
Orlando Geisel, conversasse com ele. O enao lado do presidente da República, Prucontro do general com o prisioneiro, que
dente de Moraes. Preparavam-se para asMárai inventou em 1969 como se tivesse
sistir a um desfile da tropa que voltava de
acontecido em 1897, pode ter acontecido
Canudos. Apareceu um sujeito (Marceliem 1974. Se aconteceu, só outro húngaro
no Bispo) com uma garrucha e a apontou
poderá recriá-lo, pois os personagens desse
para o peito de Prudente. Ele escapou O marechal Bittencourt, a placa que lembra o lugar onde ele tombou e o livro do húngaro Sándor Márai
diálogo estão mortos.
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