A LEITURA TRANSVERSAL DOS SIGNOS NO PROCESSO DE TREINAMENTO DO ATOR Jean Carlos Franzoi Dernis (PIC/FAP), Francisco de Assis Gaspar Neto (Orientador), e-mail: [email protected]. Faculdade de Artes do Paraná, Colegiado de Licenciatura em Teatro/Curitiba, PR. Linguística, Letras e Artes; Teatro. Palavras-chave: Signos Teatrais, Leitura Transversal, Treinamento do Ator. Resumo: Este Artigo busca demonstrar como o processo de treinamento do ator torna-se uma caminhada rumo à “desumanização” - conceito proposto por José Ortega y Gasset para uma compreensão da arte moderna. Analisamos o percurso do ator em direção à desrealização de si mesmo, das suas características físicas e psicológicas, sua identidade individual e social, o modo como se torna um corpo que emite signos à espera de significados. Para isso, fazemos uso da teoria da “vetorização” dos signos, proposta por Patrice Pavis, na qual ele afirma que, na relação de afetação entre os signos, estes podem receber múltiplas significações. Da mesma forma, baseamo-nos no conceito de “Leitura Transversal” de Richard Demarcy, que estabelece o espectador como analista, capaz de perceber os múltiplos significados que surgem dessa relação. Demonstramos, assim, como esse modo específico de observação aplicado ao treinamento do ator faz com que seu trabalho sobre o corpo torne-se uma caminhada rumo à “desumanização”. Introdução Vemos, no teatro moderno, desde o final do séc. XIX e início do XX, uma tendência à “desrealização”, a qual, já no modernismo, foi teorizada por José Ortega y Gasset (2005) ao analisar a arte. Essa característica que a modernidade impõe ao objeto artístico, chamada pelo teórico de “desumanização”, é a libertação da necessidade de representar o “repertório de elementos que integram nosso mundo habitual”, o “aspecto de realidade vivida”, conhecida pela experiência sensível do homem. Segundo Gasset, em vez de representar, a arte deforma, reconstrói, reorganiza o mundo, acrescentando-lhe uma “nova vida”, eliminado os elementos “demasiadamente humanos” da obra. Esses elementos surgem em decorrência da necessidade de representar, através da cena, uma história compreensível e facilmente decodificável pelo público. Anais do XIX EAIC – 28 a 30 de outubro de 2010, UNICENTRO, Guarapuava –PR. A partir desse conceito, que tem sido aplicado às artes em geral desde a modernidade, podemos fazer a leitura do treinamento do ator, nos dias atuais, como um “percurso” na direção da desrealização de si mesmo. Assim, analisamos o processo de treinamento em laboratório realizado por acadêmicos do curso de Licenciatura em Teatro da Faculdade de Artes do Paraná, sob orientação do professor responsável pelo projeto de pesquisa. A observação teve como ferramenta a noção de “leitura transversal” proposta por Richard Demarcy (1988), aliada ao conceito de “vetorização” dos signos, apresentado por Patrice Pavis em seu livro Análise dos espetáculos (2005), na busca de demonstrar como, através desse modo específico de leitura, o ator poderá lançar seu olhar sobre o próprio trabalho, nesse percurso rumo à desrealização de si mesmo. Revisão de Literatura A “Leitura Transversal” (DEMARCY, 1988) aliada ao conceito de “vetorização” (Pavis, 2005) demonstra como o processo de treinamento do ator torna-se uma caminhada rumo à sua desrealização/desumanização, no sentido de alcançar um corpo (gesto e voz) dilatado, extra-cotidiano, como pretendiam respectivamente Eugênio Barba, e Jerzy Grotowski, compreendendo assim as transversalidades, os atravessamentos sofridos pelo seu processo criativo. A “leitura transversal”, modo de observação que situa o espectador como analista da cena, como aquele que busca um sentido novo para os signos surgem à sua frente, é um procedimento criado por Richard Demarcy, na tentativa de encontrar uma ferramenta de análise do espetáculo teatral capaz de dar embasamento ao espectador especializado, permitindo-lhe compreender a máquina teatral e a maneira como os signos se relacionam no interior da cena criando a tessitura dramática sem, no entanto, deixar-se enredar pela fábula. Para ele, a leitura transversal baseia-se em uma análise mais aprofundada da máquina teatral, em oposição à “leitura horizontal”, esta uma simples visualização daquilo que se coloca frente ao espectador, um envolvimento pela fábula, uma observação do enredo organizado e verossímil, o qual apenas busca representar aquilo que é comum ao dia-adia do espectador. A vetorização, para Pavis (2005, p.13), é o meio para se promover o agrupamento dos signos, o que faz surgir novos significados para estes. Os novos sentidos surgem do devir, do encontro dos signos, que se afetam mutuamente e produzem significados a partir dessa afetação, a qual, para nós, tem inicio já no processo de treinamento do ator. Depois, evolui, transformando-se nas bases do espetáculo teatral, e continua em mutação a partir do momento em que o espectador visualiza o espetáculo, pois cada pessoa de uma platéia faz a sua própria vetorização, criando verdadeiras redes de ramais sígnicos. Essas redes, segundo o autor, impedem a decomposição total do espetáculo - o que o tornaria incompreensível permitindo que ele possua sua lógica interna. Ou seja, o próprio espetáculo, Anais do XIX EAIC – 28 a 30 de outubro de 2010, UNICENTRO, Guarapuava –PR. do qual o espectador também faz parte, produz a chave hermenêutica para sua compreensão. Entendemos o processo de treinamento do ator, como um programa em busca de alcançar um estado de inabilidade corporal e não uma habilidade diferente da cotidiana. É por meio desse programa, o qual confere ao ator um corpo “dessubjetivado”, que pode nascer a cena teatral - quando este processo se propõe a isso, o que não é o caso do treinamento que analisamos. É claro que é necessário se ter em vista que esse ponto de ruptura entre processo e cena é muitas vezes imperceptível. Resultados e Discussão Quando aplicada ao processo de treinamento do ator, a “Leitura Transversal” se torna um modo de observação que pode auxiliar o ator a perceber seu próprio “percurso” na direção da desrealização de si mesmo, das suas características físicas e psicológicas habituais, sua identidade individual e social. Adentrando nesse espaço - “campo de possibilidades” (SOARES, 2006) que é o ambiente de treino - o ator/performer pode utilizarse da leitura transversal como modo de observação do seu próprio trabalho, iniciando assim sua caminhada rumo a “desumanização”, no sentido de alcançar um corpo (gesto e voz) dilatado, extra-cotidiano, compreendendo as transversalidades, os atravessamentos sofridos pelo seu processo criativo. Assim, a leitura transversal pode auxiliar o ator/performer a entender como o processo de treinamento elimina os elementos “demasiadamente humanos” para criar nova realidade, na qual novos significados surgem, não como multiplicidade de significações, mas como multiplicidade se singularidades dispares. Estas são resultado do encontro dos signos e da afetação mútua que ocorre nesse processo de dessubjetivação em que eles perdem sua identidade em favor de uma significação do conjunto. Através desse modo de análise, em que a atenção flutua na busca de captar as singularidades “pré-individuais” (GASPAR NETO, et. al., 2010), torna-se perceptível como, da relação entre vários objetos a princípio dispares (ambiente, objetos dispostos na sala, corpos em movimento, dinâmica do jogo, sons externos, olhar do observador) surgem novos corpos em busca de significação. Isso faz o olhar do observador/analista se deslocar e, em dados momentos, objetos que, perante uma leitura horizontal seriam apenas secundários dentro do ambiente de treino, se agigantam de tal maneira, que todo o restante praticamente desaparece do campo de visão. Conclusões Por fim, entendemos que esse modo específico de observação – cunhado a partir da leitura transversal de Demarcy, da vetorização de Pavis e da desumanização de Ortega y Gasset – o qual gostaríamos de denominar Anais do XIX EAIC – 28 a 30 de outubro de 2010, UNICENTRO, Guarapuava –PR. Flutuação dos Sentidos, é capaz de perceber as singularidades múltiplas para os significantes dispostos no ambiente, livrar-se das interpretações “humanizadas” do espaço, das funções práticas dos objetos e corpos já dadas pelo mundo circundante. A Flutuação dos Sentidos é capaz de captar o ambiente em devir, onde o corpo ganha sentido no agrupamento com outros signos, podendo dilatar-se ou encolher mediante um objeto que se agiganta. Nesse ambiente, o corpo deixa de ser simplesmente corpo humano e surge como nova corporeidade, ganhando sentidos que somente esse espaço - enorme “campo de possibilidades” (SOARES, 2006) que é o espaço de treino - é capaz de criar. Essas forças não podem ser captadas num processo de treinamento que tem como ponto de partida o ator como sujeito individual, mas sim num processo de subjetivação que ocorre por meio do encontro com singularidades díspares, não quantificáveis. O processo de criação, neste sentido, já está estabelecido antes mesmo da vontade do ator como indivíduo que age, já está presente no ambiente de treinamento. Cabe ao ator, através das técnicas corporais e vocais, colocar-se em relação com o ambiente e os corpos que dele participam. Agradecimentos Ao professor Francisco pelas orientações no desenvolvimento dessa pesquisa, ao Del e à Heidy que com seu laboratório de treino produziram o material de analise, e à Dóris pela revisão textual e pelas tantas vezes que pacientemente soube me ouvir nos momentos difíceis. Referências DEMARCY, Richard. A Leitura Trasversal. In: Semiologia do Teatro. Organização de: J. Guinsburg, J. Teixeira Coelho Netto e Reni Chaves Cardoso. Rio de Janeiro : Perspectiva, 1988. GASPAR NETO, Francisco de Assis, et. al. Paradas e disparadas: um estudo sobre o treinamento do ator e a pré-expressividade. In: Anais do 5º Seminário de Pesquisa em Artes da FAP. Curitiba: FAP, 2010. ORTEGA Y GASSET, José. A desumanização da arte. Trad. Ricardo Araújo. 5ªed. São Paulo: Cortez, 2005. PAVIS, Patrice. Análise dos espetáculos. Trad. Sergio Sálvia Coelho. São Paulo: Perspectiva, 2005. SOARES, Carmela. Teatro e Educação na Escola Pública: uma situação de jogo. In: Entre coxias e recreios: recortes da produção carioca sobre ensino do teatro. São Caetano do Sul: Yendes Editora, 2006. Anais do XIX EAIC – 28 a 30 de outubro de 2010, UNICENTRO, Guarapuava –PR.