ANAIS DO ORGANIZAÇÃO Lenise dos Santos Santiago | Samuel Anderson de Oliveira Lima O VI COLÓQUIO DE ESTUDOS BARROCOS E O I SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE ARTE E LITERATURA BARROCA realizado na UFRN, pelo Grupo de Pesquisa Ponte Literária Hispano-Brasileira, oportunizou o encontro de vários e múltiplos discursos estabelecendo pontes de mútuo acesso que vão além de uma expressão estética, com o objetivo de criar espaços de reflexão multidisciplinar entre pesquisadores, professores e alunos de Artes, de Literatura e áreas afins. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 1 SUMÁRIO Sessão − A EXPRESSÃO HISPANICA DO BARROCO Coordenadores: Prof. Dr. Francisco Ivan da Silva Profa. Paula Pires Ferreira 1. SÓROR TERESA JULIANA DE SANTO DOMINGO, OU MELHOR, TSHIKABA: PRESENÇA AFRICANA NO BARROCO HISPÂNICO (Amarino Oliveira de Queiroz) 5 2. O CARANGUEJO BARRO (OCO) (Orlando Brandão) 16 3. A MÚSICA DAS PEDRAS OU O DEVANEIO DAS OSTRAS: EM FRANCIS PONGE, JOÃO CABRAL E MARCELO D2(Tânia-Lima) 26 4. CERVANTES NA CULTURA BRASILEIRA (João da Mata Costa) 43 Sessão − AS ARTES VISUAIS BARROCAS (pintura, arquitetura, escultura e demais expressões de artes) Coordenadores: Prof. Dr. Everardo Araújo Ramos Prof. Dr. Francisco Zaragoza Zaldívar 1. O POEMA COMO ESPAÇO CRÍTICO DA ARTE O BARROCO PRODUZIDO POR“JOSEPHA AYALA FIGUEIRA”NA POESIA DE “FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO” (José Antônio Rodrigues Júnior) 63 2. ASPECTOS DA CULTURA ARTÍSTICA DO BARROCO NA PARAÍBA COLONIAL (Michael Douglas dos Santos Nóbrega / Orientadora: Dra. Carla Mary S. Oliveira) 82 3. QUESTÕES SOCIAIS E ESTÉTICAS NA ESCULTURA DE ALEIJADINHO (André Pinheiro) 94 4. DISTORSIONES ESPACIALES Y TEMPORALES EN EL ARTE DEL CARIBE INSULAR (Helga Montalván Dias) 106 Sessão − BARROCO E MODERNIDADE Coordenadores: Prof. Dr. Antonio Fernandes de Medeiros Júnior Profa. Dra. Regina Simon da Silva VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 2 1. DIÁLOGOS ENTRE O BOTELHO BARROCO E O MODERNO CABRAL (Éverton Barbosa Correia) 116 2. PAISAGENS DO CAPIBARIBE: ESPESSURA DA VIDA NA POÉTICA DE JCMN (Lenise dos Santos Santiago) 135 3. O TEATRO DA MORTE E DA VIDA: A ESCRITA BARROCA DE JOÃO CABRAL DE MELO NETO (Francisco Israel de Carvalho) 146 4. APONTAMENTOS SOBRE A POESIA DE MURILO MENDES: OBRA ABERTA E NEOBARROCO (Ana Carolina Moura Mendonça /Andrey Pereira de Oliveira) 169 5. A ASA ESQUERDA DO ANJO PELO VIÉS DO DISCURSO MELANCÓLICO (Adriana Sena) 181 6. CANTO PARALELO - O JOGO PARÓDICO NA OBRA TUTAMÉIA DE JOÃO GUIMARÃES ROSA (Arlene Isabel Venâncio de Souza) 193 7. LUTO E ALEGORIA EM “A HORA E A VEZ DE AUGUSTO MATRAGA” (Paulo Henrique da Silva Gregório) 201 8. ENTRE AS FRATURAS DO SUJEITO BAR/ROSIANO EM TUTAMÉIA E NO LIVRO SOBRE NADA (Robeilza de Oliveira Lima) 215 9. A VOLTA DO MARIDO PRÓDIGO: ENTRE O CAMPO E A CIDADE (ARAÚJO, Roberta. D. de. / PAIVA, Kalina. A. R. de.) 230 10. MINHA VIDA DE MENINA: DIÁRIO DE HELENA MORLEY (BOEIRA, Eloísa Elena Prates /ARAÚJO, Roberta Duarte de) 245 11. AS RUÍNAS BARROCAS D’O ATENEU, OU DA ESTÉTICA DO ROMANCE (Francisco Magno de Araújo) 253 12. A CARNAVALIZAÇÃO LITERÁRIA EM SARAMAGO: ENTRE O RISO E AS RUÍNAS (PAIVA, K. A. R. de /ARAÚJO, R. D. de.) 278 13. DOM QUIXOTE - ENTRE O BARROCO E A MODERNIDADE (Jóis Alberto da Silva) 295 14. O NEOBARROCO EM “CONTO BARROCO OU UNIDADE TRIPARTITA”, DE OSMAN LINS (Maria Luíza Assunção Chacon /Andrey Pereira de Oliveira) 306 15. UMA LEITURA ALEGÓRICA DO CONTO “ELES”, DA OBRA O OVO APUNHALADO, DE CAIO FERNANDO ABREU (Antonio Peterson Nogueira do Vale) 316 VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 3 16. O BARROQUISMO NA SIMBOLOGIA DOS ELEMENTOS DA NATUREZA: AR, FOGO, ÁGUA E TERRA, EM LOS PERROS DEL PARAÍSO, DE ABEL POSSE (Regina Simon da Silva) 327 17. ROMANCE HISPANO-AMERICANO E ALEGORIA: Afinidades entre Onetti, Puig e Bolaño (Reno Nícolas de Araújo Torquato) 349 18. O PRESENTE BARROCO: A MÁQUINA DO TEMPO TEÓRICOLITERÁRIA DE AGUALUSA (LisaneMariádne Melo de Paiva / Julianny Katarine Aguiar de Oliveira) 372 19. ENSAIO DE UMA SOCIOLOGIA BARROCA (Luciano Albino) 384 Sessão − INTERFACES BARROCAS Coordenadores: Profª Ms. Reny Gomes Maldonado Prof. Ms. Samuel Anderson de Oliveira Lima 1. LOS JESUITAS Y SUS RESONANCIAS EN EL BARROCO BRASILEÑO (Gleba Coelli Luna da Silveira / Márcia dos Santos do Nascimento) 396 2. EL AMOR EN LA POESÍA DE LOPE DE VEGA (Reny Gomes Maldonado / Paula Pires Ferreira) 405 3. A PÉROLA IMPERFEITA: BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A SOCIEDADE COLONIAL BAIANA COM BASE NA POESIA BARROCA DE GREGÓRIO DE MATOS GUERRA (Keidy Narelly Costa Matias) 418 4. O LUGAR DE GREGÓRIO DE MATOS NA LITERATURA BRASILEIRA (Samuel Anderson de Oliveira Lima) 436 5. NOS FIOS DO TEMPO: REFLEXÕES ACERCA DA NOÇÃO DE “SISTEMA LITERÁRIO” DE ANTONIO CANDIDO NA FORMAÇÃO DA LITERATURA BRASILEIRA (Moisés Ferreira do Nascimento) 450 6. BÍBLIA E A LITERATURA BRASILEIRA: PRESENÇA DO DIABO NA POESIA DE GREGÓRIO DE MATOS (Ciro Soares dos Santos) 462 7. METAFÍSICOS OU BARROCOS? (Sandra S.F. Erickson) 496 VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 4 Sessão de Comunicação: A EXPRESSÃO HISPANICA DO BARROCO Coordenadores: Prof. Dr. Francisco Ivan da Silva Profa. Paula Pires Ferreira 1. SÓROR TERESA JULIANA DE SANTO DOMINGO, OU MELHOR, TSHIKABA: PRESENÇA AFRICANA NO BARROCO HISPÂNICO Amarino Oliveira de Queiroz (Universidade Federal do Rio Grande do Norte) O período correspondente ao Barroco literário castelhano apresenta singular expressão na mexicana Juana Inés de Asbaje y Ramírez de Santillana, ou Juana de Asbaje, mais conhecida pelo nome de Juana Inés de la Cruz, monja católica a quem autores como Octavio Paz e Carlos Fuentes dedicaram prestigiados estudos. Praticamente desconhecido e ignorado em nosso meio acadêmico, entretanto, outro exemplo da escrita de autoria feminina surgido durante o Barroco hispânico encontra lugar na figura de Tskikaba, Chicaba, ou, ainda, sóror Teresa Juliana de Santo Domingo, de quem se diz ter sido uma princesa africana raptada por marinheiros espanhóis na costa da Guiné e tornada escrava aos nove anos de idade. Trasladada inicialmente para o arquipélago de São Tomé e Príncipe, depois para Sevilha e, a seguir, para Salamanca, na Espanha, mais tarde seria ordenada freira dominicana, dando início a uma trajetória marcada por penitências, visões místicas, virtudes e curas milagrosas, mas também pela criação poética em língua espanhola. Antecipando em alguns séculos a inauguração da escrita literária africana em línguas européias, este último episódio conferiria à trajetória de Tshikaba uma particular aura de pioneirismo, ancorada, como veremos, num discurso afirmativo e rompedor. Sabe-se que, dentre os idiomas europeus que se apresentam ao mesmo tempo como línguas oficiais e de literatura no contexto africano atual, o castelhano é seguramente o mais invisibilizado de todos. Seja no que diz respeito à sua efetiva oficialidade lingüística, ou mesmo através do trabalho desenvolvido pelos organismos internacionais que atuam no continente, seja no que tange à sua circulação como língua de comunicação, de ensino e de literatura nos vários países que adotaram as antigas línguas implantadas na experiência VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 5 colonial e as destituíram, na prática oral e escrita, de sua vertical condição de ―língua do colonizador‖. Reiterando, pois, a precariedade da situação em que se encontra a presença lingüística do castellhano na África, o poeta guinéu-equatoriano Ciriaco Bokesa nos lembra que el carácter vinculante del idioma y cultura está más que estudiado desde el ángulo del inglés, del francés, y, en menos grado, del portugués. Pero, lo español, en tierras africanas y de plumas estrictamente africanas, queda en la memoria de una cita apenas esbozada. (BOKESA,1996, p.104). pelo que resulta oportuna uma abordagem acerca de expressões literárias africanas desenvolvidas nos países de colonização ibérica e, mais especificamente ainda, como se tentará produzir neste nosso recorte, por aquelas manifestadas em língua castelhana. Vimos que a circulação da língua espanhola na África está envolvida em diferenciados contextos culturais, onde por sua vez se alinham registros literários igualmente diversos. Nesse aspecto em particular encontramos, a título de exemplo, o território constituído pelos enclaves espanhóis de Ceuta e Melilla e pelo arquipélago das Canárias, passando pelas áreas historicamente vinculadas ao universo arábico e berbere, como o Marrocos e o Saara Ocidental até chegar à expressão escrita de autores francófonos em castelhano, não esquecendo, contudo, a isolada e bastante peculiar experiência da Guiné Equatorial, com sua denominada literatura hispano-africana, ou hispano-negro-africana. Foi nessa região localizada ao redor do golfo da Guiné, na África Ocidental, que nasceu Tshikaba, referida como a primeira mulher africana a fazer uso literário de uma língua européia moderna, situação que se assemelha à da afro-brasileira Rosa Egipcíaca, contemporânea de Tshikaba e considerada por sua vez a primeira escritora negra em língua portuguesa. O feito paralelo nos parece bastante significativo, sobretudo se considerarmos historicamente a rara aparição de mulheres no desenvolvimento das letras equato-guineanas e, mais particularmente ainda, a presença de escritoras negras na literatura brasileira. No que tange à Guiné Equatorial, embora encontre destaque nas obras inaugurais de Raquel Ilonbé e María Nsue em diferentes gêneros como o romance, o conto e a poesia a partir da segunda metade do século XX, em termos genéricos o protagonismo autoral feminino se configura como tardio na história literária do país, não obstante o relativamente recente VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 6 aparecimento de nomes como Mercedes Jora, María Caridad Riloha, Trinidad Morgades Besari, Ana Lourdes Sohora, Remei Sipi, Guillermina Mekuy ou Paloma Loribo. Raquel Ilonbé foi o pseudônimo utilizado por Raquel del Pozo Epita, nascida na cidade de Corisco, em 1939, e falecida em Madri no ano de 1992. Poeta, prosadora, cantora e pintora, Ilonbé manteve durante toda a sua trajetória uma grande atividade cultural onde se destacaram os recitais de música e de poesia, além de exposições de sua obra pictórica. Filha de pai espanhol e mãe guinéu-equatoriana, Raquel Ilonbé foi levada para a Espanha com apenas um ano de idade, tendo desenvolvido ali toda a sua formação escolar. Mesmo não sofrendo diretamente as agruras do exílio, condição determinante para muitos de seus pares, a escritora pôde desenvolver uma obra permeada pelos elementos dessa origem híbrida, estabelecendo a partir de sucessivas visitas ao país natal uma temática caracterizada por influências culturais ibéricas e bantas. O silêncio internacional em torno de sua obra reflete a reprodução, em termos locais, da situação de marginalidade a que estão relegados determinados setores da sociedade, nos quais as mulheres em geral, e as escritoras africanas em particular ocupam, desde Tshikaba, e também frente ao mercado editorial, uma posição ainda menos confortável do que aquela alcançada pelos colegas do sexo masculino. Tal como aconteceu com Raquel Ilonbé, inaugurando individualmente não apenas a primeira edição feminina de poesia guinéu-equatoriana escrita em língua espanhola (Ceiba, de 1978) como também o primeiro livro de ficção curta dedicado ao público infanto-juvenil africano hispano (Leyendas Guineanas, de 1981), aparece, ainda na segunda metade do século XX, María Nsue, a primeira mulher a publicar um romance em seu país, (Ekomo, de 1985). De forma assemelhada ao que sucedera séculos antes com Tshikaba, deixando para trás, involuntariamente, a costa da Guiné, outra coincidência aproxima a vida e a obra de Raquel Ilonbé e María Nsue: nascida em 1945 no seio de uma família pertencente à etnia fang, ainda na adolescência Nsue emigrou para a Espanha com seus familiares, ali completando sua formação escolar, embora tenha realizado na Somália os seus estudos superiores. Poeta, contadora de histórias, contista, romancista, cantora e compositora, María Nsue vivenciaria desta forma uma experiência pessoal marcada pela divisão entre dois diferentes mundos, o banto e o hispânico, duas distintas realidades culturais que se foram tornando igualmente suas, fazendo com que a opressão à mulher e o contexto pós-colonial africano se tornassem temas recorrentes em sua obra, o que de certa forma a relaciona, em termos VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 7 político-ideológicos, guardadas as devidas especificidades e proporções, com a realidade que enfrentou Tshikaba em seu tempo. Ostentando uma biografia controvertida e uma trajetória de vida marcada por episódios inusitados e fenômenos paranormais, tramita atualmente na Espanha um processo formal com vistas à beatificação e canonização de Tshikaba. Diversos estudos publicados se debruçam sobre este tema, alguns deles assinados por madres católicas que tratam de realçar, na perspectiva hierárquica dos valores cristãos, o perfil espiritual da escritora africana. Alguns desses estudos, investindo abertamente num discurso que dicotomiza categorias como branco e negro, alvo e moreno, descrevem passagens de uma hipotética infância na África, já às vésperas da captura e escravização, quando a Tshikaba é revelada a profissão de fé que, frente à visão da Virgem Maria, lhe teria sido predestinada: Tshikaba gostava de caminhar pelo campo entregando-se às suas meditações. Em um dos seus passeios, sentou-se para descansar um pouco, perto da nascente de um rio. Ao contemplá-la, perguntava-se: "Quem será esse Ser desconhecido que colocou aqui esta fonte?". De repente, a menina levantou os olhos e viu, extasiada, ao lado do manancial, uma Senhora de pele alva como a neve, carregando nos braços um belíssimo Menino que, sorrindo, acariciava a cabeça da princesa moreninha. Ali, por fim, o Divino Infante - o verdadeiro Deus tão almejado - lhe revelou Seus segredos e Sua Mãe Santíssima lhe falou a respeito de Sua vida. Ali, por fim, o Divino Infante - o verdadeiro Deus tão almejado - lhe revelou Seus segredos e Sua Mãe Santíssima lhe falou a respeito de Sua vida. Que terão dito? Tshikaba preferiu manter silêncio, mas a partir desse encontro sua vida mudou completamente. Mais tarde, seu irmão Juachipiter lhe disse terem decidido seus pais que seria ela quem os sucederia no governo, ao que a pequena respondeu: "Saiba que não irei me casar com ninguém deste mundo. Eu só quero saber de um Menino branco que conheci! Tshikaba tinha apenas nove anos de idade. (CEBOLLA, 2008, p. 30) 1 1 Grifos nossos. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 8 Estereótipos como estes se reproduzem ao longo de toda a narrativa desenvolvida por Lucía Ordóñez Cebolla, culminando com a descrição da morte de uma Tshikaba virginal e virtuosa, ainda que vitimada por moléstia incurável, em 6 de dezembro de 1748: Contam testemunhas de sua morte que, no momento de partir para a eternidade, sua pele ficou por alguns momentos alva como a neve. Ao mesmo tempo, seu corpo exalava um excepcional perfume. Assim, a princesa africana - conhecida por todos com o carinhoso nome de La Negrita -, após ter escalado na terra os altos cumes da virtude, era elevada aos píncaros da perfeita união com Deus. (CEBOLLA, 2008, p. 32) 2 Implicações de ordem moral, político-ideológica e étnica são reavaliadas, porém, em trabalhos publicados por outras investigadoras religiosas. Em estudo biográfico intitulado Sor Teresa Chikaba: princesa, esclava y monja, de 2004, ao comentar o relato do biógrafo Juan Carlos Manuel de Paniagua sobre o mesmo episódio envolvendo o falecimento da escritora africana, María Eugenia Maeso desenvolve comentários que pretendem pautar-se por uma isenção maior de juízos valorativos e falácias de raciocínio, muito embora revele também, à força de sua crença e opção religiosa, um resultado que permanece ideologicamente comprometido: Dice el biógrafo que al tiempo de fallecer Teresa y después de fallecida, se observaron algunos prodígios, o hechos misteriosos. Y lo primero que narra es que, en el momento de expirar y aún después de muerta, su rostro se puso blanco y permaneció así durante bastante tiempo. Esta novedad la advirtieron algunas religiosas y el cirujano que había asistido a la enferma, El cual lo refirió muy asombrado. Pero es tan comedido Paniagua que, según dice, no ignora lo que ―algunos entendidos‖ han escrito sobre la mutación de colores en los cadáveres. La observación le muestra, como siempre, muy prudente, pues no se pueden achacar, sin más, a causas sobrenaturales los fenómenos que puedan tener uma explicación natural. Pero el hecho fue percibido como una señal que el cielo daba de la pureza y santidad de aquella que durante su vida fue despreciada por el color de su piel. Para Dios no existen blancos 2 Idem. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 9 ni negros porque Él ve el corazón. Y este mensaje es muy importante, por eso sin duda lo recoge el biógrafo. (MAESO, 2004, p. 135) 3 No que concerne aos primeiros registros conhecidos da Tshikaba escritora, sabe-se que tiveram lugar em 1752 na cidade de Salamanca, com a publicação de uma biografia baseada em manuscritos originais da própria monja: Compendio de la vida ejemplar de la Venerable Madre Sor Teresa Juliana de Santo Domingo, de autoria do sacerdote Carlos Manuel de Paniagua. Segundo o professor Baltasar Fra Molinero (1999), este livro era uma hagiografia a respeito da freira a quem atribuíam milagres e visões místicas, que levitava, curava os doentes, que conseguira deter as bombas dos inimigos portugueses na Guerra de Sucessão de príncipios daquele século e a quem a população local apelidara de La Negrita de la Penitencia, numa referência explícita, em primeiro lugar, à coloração de sua pele, e, em segundo, ao convento dominicano onde viveu e morreu. Tshikaba, prossegue Fra Molinero, foi apresentada ao rei Carlos II como um exotismo a mais porque venía diciendo que era hija de reyes, y traía joyas y otros ornamentos que la distinguían de los demás. El Rey se la regaló al Marqués de Mancera, antiguo virrey de México y protector de Sor Juana Inés de la Cruz. A los veinticuatro años, y tras rechazar planes de matrimonio absolutamente novelescos, anunció su voluntad de ser monja, lo que logró finalmente en 1704, no sin grandes dificultades debidas al color de su piel. Esta mujer fue poeta dentro de la tradición literaria conventual. También fue profeta, mística, obradora de milagrosas curas, luchadora por su libertad e independencia como mujer, lo que en su caso significó que se las tuvo que ingeniar para ganar espacios de libertad relativa dentro de una sociedad que se los negaba todos. Para Chicaba, o Sor Teresa, la vida conventual en un monasterio de la Orden Tercera de las Dominicas fue la mejor manera de labrarse una identidad y una ciudadanía. Se aprovechó de dos pilares ideológicos de la España de finales del siglo XVII: la admiración por la vida conventual mística, y la veneración cuasi religiosa de las personas de sangre real. Porque desde que fue arrancada a sus padres y esclavizada, Chicaba siempre mantuvo ser de sangre real, hija de un rey de la región entonces llamada "La Mina Baja del Oro" (FRA MOLINERO, 1999, pp. 97-125). 3 Idem. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 10 Ainda de acordo com as observações de Baltasar Fra Molinero no referido estudo, o testemunho mais intenso da relação entre Tshikaba e seu Deus se manifesta num poema que Paniagua incluiu no Compendio sem maiores referências de data e edição. Reproduzido integralmente no supracitado artigo desse autor, trataremos de transcrevê-lo parcialmente aqui, em versão castelhana moderna: Ay, Jesús, dónde te has ido, que un instante no puedo verme sin tigo. Ay Jesús de mi alma, dónde te has ido, que parece que no vienes y te has perdido. Ay Jesús, qué diré yo, si os vais con otras, qué haré yo: Clamaré, lloraré hasta ver a Dios, y si no, y si no, morir de amor. Y ya lo digo, pues estoy tán sola, que no has venido. Y si estás con otra, ya yo lo he visto; a Marta y María las has querido. Ay, Jesús, donde te hallaré yo, pues tán tonta me tiene VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 11 cuando te tengo: A Dios, a Dios amor, A Dios Señor, A Dios corazón, no más, no más, no más.4 Além de seu caráter inaugural, uma vez que, convém recordar, o texto em questão é dado como o primeiro a ser escrito numa língua européia por uma autora africana em pleno século XVII, outro dado marcaria especialmente esta composição: através de seus versos é possível testemunhar não apenas o tom queixoso e enciumado de uma esposa mística em relação ao marido eleito: Ay, Jesús, dónde te has ido, que un instante no puedo verme sin tigo (…) Y si estás con otra, ya yo lo he visto; a Marta y María las has querido. (…) como também o uso alternado das formas de tratamento que mesclam a informalidade, ou a intimidade, da segunda pessoal do singular tú: donde te has ido que no puedo verme sin tigo (...) com a formalidade, ou o distanciamento, da segunda pessoa do plural vosotros: si os vais con otras, 4 Ai, Jesus, para onde foste? que um só instante não posso/ ver-me sem tigo?// Ah Jesus de minha alma, / para onde foste, / que parece que não vens/ e te perdeste?// Ai, Jesus, que direi eu/ se fordes com outras/ o que farei eu?// Clamarei, chorarei, até avistar Deus/ e se não, e se não/ morrer de amor.// VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 12 qué haré yo (…), culminando com o belo jogo final das palavras A Dios / Adiós: A Dios, a Dios amor onde o tom de prece que marca o discurso de despedida é realçado por um tom híbrido de lamentação e êxtase: A Dios Señor A Dios corazón, no más, no más, no más. A expressão lírica sob a perspectiva do feminino em Tshikaba nos remete, inevitavelmente, à poesia de sóror Juana Inés de la Cruz (1648-1695). Conforme assinala a pesquisadora Beatriz Farrús Antón (2009), durante os séculos XVI e XVII o espaço do convento passaria a constituir para a mulher algo como um recinto intelectual de tal forma que, na altura, tanto na Espanha como na América latina, escritura conventual e escritura feminina se converteriam em sinônimos: La escritura conventual fue una escritura poderosamente física, pues las monjas que escribían sus vidas lo hacían como mujeres ―depositarias del cuerpo‖, como hijas de Eva, imitadoras de Cristo y de María y obligadas vírgenes. No obstante, ese cuerpo que atraviesa las vidas de monjas se interroga sobre, sexo, género, deseo…, pero jamás se preocupa por el vínculo entre etnia y mujer, cuando la jerarquía basada en la piel atravesaba las relaciones de ―todas‖ las mujeres que habitan el claustro. [...] Sin embargo, sólo las mujeres blancas podían profesar y obtener los privilegios de educación y saber de los que gozaban las monjas, pues aunque en el mundo conventual vivieron indias y negras su función fue la de esclavas y sirvientas. (ANTÓN, 1009, p. 46). VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 13 Neste sentindo, de acordo com o raciocínio formulado por Beatriz Farrús Antón, a inventiva de Sóror Teresa Juliana de Santo Domingo, ou La Negrita de la Penitencia, não sinalizaria tão somente para a condição feminina naquele tempo e espaço, mas avançaria no sentido de problematizar ainda, enquanto sujeito social, especificidades dessa condição feminina, sendo ela própria mulher e negra, formulando assim uma mais ampla qualificação identitária. Ou seja: a diferencia de sus otras hermanas de convento su escritura no aborda sólo el problema de ser mujer, sino de ser mujer y además negra, anticipando el vínculo entre feminismo y postcolonialismo. Además, Chicaba, raptada en África a los nueve años, no sólo analiza las marcas de subordinación que supone ser mujer y negra, sino también extranjera, obligada a despojarse de sus recuerdos y su cultura. (ANTÓN, 2009, p. 46) Tal como sucedeu com sóror Juana Inés de la Cruz, Tshikaba teve uma trajetória pessoal, religiosa e literária marcada por muitas dificuldades e rompimentos. Ainda que ignorada e invisibilizada dentro do universo da criação literária ao longo de tantos anos, sua escrita de tradição conventual, desenvolvida precisamente durante o período Barroco espanhol, reproduz o fervor de uma liberdade sublimada no recolhimento. Ao optar pela clausura religiosa, teria ela encontrado na servidão ao seu Deus e no exercício da escritura o refúgio contra a própria condição de cativa que lhe fora impingida, transcendendo, desta forma, os estigmas que lhe acompanhariam por toda a existência na condição de mulher, negra, africana, estrangeira e escravizada. REFERÊNCIAS ANTÓN, Beatriz Ferrús. ―Sor Teresa Juliana de Santo Domingo: piel negra y escritura conventual‖. Resumo. In: El cuerpo: objeto y sujeto de las ciencias humanas y sociales. Disponível em: http://www.imf.csic.es/web/fckfiles/file/Resums-ResumenesAbstracts.pdf p. 46. Acesso en: 17 ago 2009. CEBOLLA, Lucía Ordoñez. ―Irmã Teresa Juliana de São Domingos: A princesa africana‖. In: Revista Arautos do Evangelho. São Paulo, ano VII, n. 83, nov. 2008, pp. 30-32. FRA MOLINERO, Baltasar. La primera escritora afrohispánica: Sor Teresa Juliana de Santo Domingo (Chicaba). Sevilla, España: Palabras de la Ceiba n. 3, 1999, pp. 97-125. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 14 ILONBÉ, Raquel. Leyendas Guineanas. Madrid: Doncel, 1981 ILONBÉ, Raquel. Ceiba. Madrid: Editorial Madrid, 1978. MAESO, Sor María Eugenia. Sor Teresa Chikaba: princesa, esclava y monja. Salamanca, España: Editorial San Esteban, 2004. NSUE, María. Ekomo. Madrid: UNED, 1985. PANIAGUA, Juan Carlos Manuel. Compendio de la vida ejemplar de la venerable Madre sor Teresa Juliana de Santo Domingo, Tercera Profesa en el Convento de Santa María Magdalena, vulgo de la Penitencia. Salamanca, España, 1752. QUEIROZ, Amarino Oliveira de. As Inscrituras do Verbo: Dizibilidades Performáticas da Palabra Poética Africana. Recife: PGLetras, 2007. Tese de doutorado. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 15 O CARANGUEJO BARRO (OCO) 2. Orlando Brandão (UFRN) ...Silêncio... Como reproduzir em palavras o gosto? O gosto é uno e as palavras são muitas. Quanto à música, depois de tocada para onde ela vai? Música só tem de concreto o instrumento. Bem atrás do pensamento tenho um fundo musical. Mas ainda mais atrás há o coração batendo. Assim o mais profundo pensamento é um coração batendo. (LISPECTOR, Clarice. 1986) Play: Faixa 1: Quadro sonoro ―Modernizar o passado é uma evolução musical/ Cadê as notas que estavam aqui?/ Não preciso delas, basta deixar tudo soando bem aos ouvidos‖. Abrem-se as cortinas da cena Mangue beat, na década de 90 em Recife, tendo como mentor Chico Science, acompanhado do grupo Nação Zumbi. Aqui o clássico e o popular conectam-se. Rios e mares de estilos musicais num entre-lugar, no estuário Mangue beat, cujo significado é batida, é mangue. Seguindo a primeira linha melódica retirada da primeira faixa do CD Da lama ao caos, apresentamos um prelúdio da estética scienciana que constitui, de modo geral, as intenções que balizam a ideia da cena ou movimento Mangue beat. Nesse estuário sonoro, as vibrações do mangue constituem terreno fértil de libertação, de contestação e de afirmação da cena musical marginalizada, não só recifense, como também norte rio-grandense e brasileira. Faixa 2: “Tamo aí mandando brasa!” Da lama de Recife ao caos brasileiro. Nascido da lama tal qual o próprio Recife, o Manguebeat toma dimensões nacionais. A sua estética, caracterizada pela miscigenação de VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 16 sons, afirma-se em todo Brasil e influencia trabalhos como o do paulista Marcelo D2, que tenta miscigenar alguns estilos musicais, principalmente o rap e o samba; no mesmo caldeirão sonoro da cena pós-mangue, tem-se também o exemplo da banda pernambucana Mombojó; no âmbito norte rio-grandense, a representação fica a cargo do grupo potiguar Rosa de Pedra, que traz o sincretismo sonoro com batidas do côco de roda, com samba incorporando o pop ao rock. Em sintonia com essa batida, há ainda bandas que também bebem na estética ―Mangue‖, tais como Cordel do Fogo Encantado e O Rappa. Faixa 3: “Modernizar o passado” Neste trabalho pretendemos utilizar duas perspectivas de música: a barroca e a scienciana. Para que a digestão de nossas palavras e intenções seja bem sucedida, buscaremos uma visão mais orgânica dessas artes, visto que esse trabalho tenta dialogar não apenas com apanhado teórico entre as partes, mas vivenciar a musicalidade, a ―performance‖, o palco, os tambores, as batidas de alfaias, o maracatu, o rock, o popular e a oralidade em comunhão com o legado do rítmico africano. Em meio a essa miscelânea cultural, o movimento mangue traz em seu bojo diálogos primordiais com a estética ―neobarroca‖ 5, pois tem como característica fundamental a tensão geralmente provocada pelo jogo de oposição – mudança de tons no compasso da música nordestina e brasileira que são, dentre muitos aspectos, o contraponto sonoro, a libertação espacial, o resgate da polifonia de estilos. Em relação à estética scienciana, o quadro sonoro reflete um estilo musical afrociberdélico, que nasce na lama e vinga em mangue. Nessa perspectiva, a música scienciana não constitui algo delimitado, regular; pelo contrário: ela é formada por uma rede de elementos sincréticos culturais que estabelece uma unidade plural e orgânica. Dizia Marcelo D2 que Chico Science é um arquiteto da música brasileira. Um exemplo disso 5 Entendemos que Neobarroco é uma transfiguração daquilo que se recolhe da estética musical Barroca. Sabemos que, no início do século XVII, o estilo barroco foi consequência de mudanças filosóficas e políticas que conduziram o pensamento renascentista, de base antropocêntrica, e o medievalista, de base teocêntrica. O barroco vem como uma espécie de mistura entre essas duas bases teocêntrica e antropocêntrica, provocada pela reforma da Igreja Católica. É na arquitetura que o Barroco toma mais força, buscando maior liberdade espacial proveniente do excesso de ornamentos. Tendo também bastante destaque, mas não tanto quanto a arquitetura, a pintura barroca explora a iluminação, o movimento, a geometria das formas. No Brasil, esse estilo acaba por ser explorado, por volta do século XVII e XVIII, na literatura por Gregório de Matos e Padre Antônio Vieira; na escultura, pelo Aleijadinho. Além de demorar a surgir as marcas do barroco no Brasil, nesse período essa estética não ganha muita força, por questões políticas e econômicas. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 17 pode ser observado na música Rios, Pontes e Overdrives, do CD Da lama ao caos, em que observamos batidas de alfaias afro-brasileiras em tom de música sampleada, mistura de batidas de tambor e pandeiros numa levada da música pop seguindo o ritmo do rap. Enfim, uma ―impressionante escultura de lama‖ formada pela (de)composição de uma série de elementos que valorizam a miscigenação de cores sonoras, trazendo uma carga de ondas multiculturais. Dessa forma, para que essa cena seja constituída, Chico Science anuncia seu trabalho ao som de um batuque híbrido, levando uma mensagem que se projeta pela sugestão de uma ―brincadeira levada a sério‖. Há também na mensagem sonora do Science uma espécie de ecocrítica, que contesta por meio da preservação da diversidade ambiental. A música do mangue é quase um grito ecológico, em que pode somar as culturas mais tradicionais com a contemporaneidade globalizada. Faixa 4: A teor(g)ia musical Basicamente, a música pode ser segmentada em três partes: melodia, harmonia e ritmo. Na melodia, realizam-se notas em sequências isoladas, ou seja, nota por nota – assim como é a fala, palavra por palavra. Uma pessoa não emite duas palavras ao mesmo tempo. As notas, assim como as palavras, são lidas seguindo uma sequência específica, da esquerda para a direita, e uma ordem pré-estabelecida, uma por uma. Ou seja, uma linha melódico-textual é formada com a linguagem verbal, seja ela oral ou escrita. Assim como se decifram as palavras em uma sequência da esquerda para direita, a leitura das notas musicais em uma partitura também segue a mesma composição, como se pode observar no exemplo abaixo citado. Como instrumentos melódicos, têm-se o berimbau, a flauta. A voz humana pode servir também de exemplo. No caso da harmonia, as notas são executadas simultaneamente, ou seja, em acordes. Exemplos de instrumentos harmônicos são: korá, piano, violão, acordeom, etc. Na partitura, as notas tocadas ao mesmo tempo são representadas da seguinte forma: VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 18 Compondo a última parte, o ritmo, de maneira geral, é o tempo que cada figura possui. Em cada uma delas há uma espécie de duração do tempo da nota e da pausa. Temos como exemplo de instrumentos que não executam notas a percussão, que por sua vez se destacam mais pela variedade de timbres. O ritmo pode ser também marcado por meio de palavras, como em poemas, emboladas, rap‘s, etc. A partitura, de modo geral, pode ser expressa como nos exemplos acima, já que ela tende a se moldar um pouco nas peculiaridades de cada instrumento. Assim, vão se acrescentando a essas formas iniciais eventuais caracteres que a composição possa necessitar. Na linha da composição, língua e música fazem parte da linguagem. Há, porém, uma distinção entre elas na medida em que a música não produz um significado ―concreto‖. Esse foi um dos grandes motivos que fez compositores românticos, como Beethoven, explorarem a tênue ‗fronteira‘ entre música e poesia – ainda que se considere não haver fronteiras entre as artes e, sim, perspectivas da ‗realidade‘. Faixa 5: Palavras, Sons, Silêncio e Bachelard A relação entre a palavra e o som é secreta. Guarda um quarto do homem nela; o resto é compartilhado pelas não-palavras. Talvez por isso seja um prazer, para quem tenta desvendá-la, encontrar no quarto, seja o que for o objeto encontrado: uma cama ou a própria fração de si. A palavra é também silêncio, o que torna difícil, às vezes, escutá-la. Imagine-se diante de uma orquestra em que cada palavra é um instrumento e cada instrumento tem sua acústica interna, bem como toda palavra tem sua acústica de semântica. Logo, um texto é toda uma orquestra semântica, cuja linha melódica são as frases lidas. Ler um parágrafo é tocá-lo. Contudo, às vezes, o que há de mais importante são as pausas da melodia; são as entre-linhas; são as coisas que não são ditas/tocadas. Assim é também a voz humana: quando se canta, o corpo se comporta tal qual uma caixa acústica. Dar palavra a voz é corporificar a nós. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 19 Faixa 6: Música Barroca Para contextualizar melhor o período da música barroca, apresentaremos nessa faixa-capítulo uma breve retrospectiva desse período musical. Nessa faixa, evitaremos o excesso de informação sobre esse período da música, apresentando somente alguns pontos, que servirão para ilustrar, como já dito, ou que serão retomados e mesclados nesse artigo. A música barroca foi legitimada durante o século XVII e permaneceu até metade do século XVIII, tendo como marco de seu fim a morte de J. S. Bach. É nesse período da música que surge a formação orquestral se contraponto à do Renascimento, a qual era constituída por músicos dispostos quase que aleatoriamente, às vezes indo de acordo com os instrumentos disponíveis. O violino ganha mais espaço e são mais aperfeiçoados. São consolidadas as formas de composição: Ópera, suítes, aberturas, fugas, concerto grosso, concerto solo etc. A forma barroca de composição se caracteriza pelos contrapontos, utilizados excessivamente. O contraponto diz respeito à entradas na melodia em tempos distintos; após a primeira, a segunda entra no tempo mais fraco, ou seja, com atraso, proporcionando, assim, uma espécie de eco de vozes. As composições barrocas são bastante salteadas. Os saltos são consequências da alternância de intervalos6 distantes. O sentimento musical encobre o sentido das palavras ao chegar a determinados momentos da música vocal de forma incompreensiva. Um exemplo dessa incompreensão está na Bachiana brasileira nº 5, que o compositor Villa-Lobos fez para homenagear o compositor barroco J.S. Bach, com letra póstuma de Manuel Bandeira. A relação entre música vocal e instrumental é igualada no que diz respeito a preocupação do compositor, já que no Renascimento a música instrumental foi tratada mais como um elemento secundário da música vocal. Isso pode ser observado com a maior ornamentação tanto na música instrumental como vocal, exigindo mais técnica do músico executante. Faixa 7: Hibridismo musical A estética scienciana é (de)composta a partir da miscigenação de estilos musicais e culturais, constituindo um quadro sonoro multicolorido, em que predomina essa libertação 6 Intervalo é a distância entre uma nota e outra, tendo como base a escala de dó maior (dó, re, mi, fá, sol, lá, si, dó). Exemplo: A distância da nota dó até a nota sol é caracterizada por um intervalo de quinta justa (5ªJ). VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 20 de perspectivas, prezando pelo hibridismo musical e cultural. Nessa estética não há espaço para unidade; o que se observa é uma rede rizomática conecta. O objeto artístico, nessa perspectiva estética, adota um caráter ambíguo pela oposição simples/complexo. A palavra, na cena do Mangue beat, é movência, é lama, é caranguejo. E o grafite sobre essa lama, sobre esse caranguejo tem um pouco de parede. Poesia do mangue é música que liberta o oprimido da opressão. Arquitetos da música brasileira, Chico Science & Nação Zumbi, constroem a ―impressionante escultura de lama‖. Mangue beat, mangue bit, batida elétrica, tambor eletrônico, hip hop da lama. Poema do devir, da miscigenação de cores e de sons. Estética dos trovões, estética híbrida do devir. Um exemplo desse devir está no CD Afrociberdelia, onde temos três versões diferentes para a música Maracatu Atômico: a Atomic version, a Ragga mix e a Trip hop. Sem negar ou supervaloriza o passado, o presente ou o futuro, o hibridismo sonoro da estética mangue deriva da incorporação de várias culturas afro-descendente, atingido o legado da antropofagia que vai além do nível sonoro. Esse hibridismo chega a níveis culturais, sociais, políticos, antropológicos, econômicos, onde as relações rizomática estabelecidas ganham o cunho da canção movida a partir do olhar das minorias. A estética scienciana combina com uma perspectiva de mundo mais holística voltada, por sua vez, para uma teia ampla de relações homem/ sociedade/ meio ambiente. A relação rizomática pertencente a essa estética engloba outros valores, pois pode ser comparada ao hiperlink das páginas da internet, cuja função é a conexão de uma palavra com outro site, geralmente conectado com o significado do hiperlink que direcionou outra palavra conectada a outro texto e assim por diante. Seguindo numa relação interminável em cadeia, sem se prender a um assunto específico. Dessa forma, a relação de um hiperlink estabelece uma rede de conexões em que não se sabe onde começa e terminam essas relações. O rizoma, nesse sentido, é a forma como os constituintes dessa estética se relacionam; espécie de miscigenação entre culturas distintas, sem enaltecimentos ou desprezar outros valores. Pensando assim, a base da estética scienciana tem como uma das características principais a diversidade, multiculturalismo, o hibridismo. Faixa 8: Algumas canções (“Você samba de que lado/ de que lado você samba”) A música caminha de lado aos nossos ouvidos e segue o samba do homemcaranguejo Chico Science: Você samba de que lado? Clássico ou popular? Rio ou mar? VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 21 Caranguejo ou camarão? Aqui no terreno do Mangue beat os opostos se (de)compõem para formar um todo híbrido. Nossas palavras são caranguejinhos andando de lado ao movimento do olhar do leitor. Relembramos as palavras de Josué de Castro: A lama misturada com urina, escremento e outros resíduos que a maré traz, quando ainda não é caranguejo vai ser. O caranguejo nasce nela, vive dela, cresce comendo lama, engordando com as porcarias dela, fabricando com a lama a carninha branca de suas patas e a geléia esverdeada de suas vísceras pegajosas. Por outro lado, o povo daí vive de pegar caranguejo, chupar-lhe as patas, comer e lamber os seus cascos até que fiquem limpos como um copo e com sua carne feita de filhos. São duzentos mil indivíduos, duzentos mil cidadãos feitos de carne de caranguejos. O que o organismo rejeita volta como detrito para a lama do mangue para virar caranguejo outra vez. (CASTRO, Josué de. 1967; p. 28-29) Caranguejos são palafitas enfiadas na lama; seus habitantes, os homens-caranguejos, moram dentro desse oco, fundido entre lama-homem-caranguejo. Podemos nos referir, dessa forma, a uma espécie de antropofagia scienciana incorporando ritmos de culturas diversas a estética mangue. Seguindo essa linha melódico-textual do samba do lado, assimilamos em nossa perspectiva do Mangue beat algumas características em um víeis ideológico. A seguir apresentaremos de modo didático algumas das canções do CSNZ numa perspectiva neobarroca. Levando-se em conta o pensar de Reginaldo Braga, O ―samba de que lado‖ ganha uma leitura voltada para ―as diferentes matrizes culturais africanas‖ encontradas no Brasil, ou seja, leituras amparadas na mitologia dos cultos afro-brasileiros. Como exemplo de que ―lados‖ você samba, temos o Jêje, do atual Benin, o Oió, dos povos Iorubá e a Cabinda e o Moçambique, do Bantos, esses são alguns dos exemplos de ―lados‖ presentes no Brasil (BRAGA, 1998, p. 40). Retomando a música referida no início desse artigo, Monólogo ao pé do ouvido, observa-se que a linha melódica e rítmica dessa música é quase inexistente, lembrando os recitativos dos griots em que tínhamos uma rítmica que quase chega ao nível da fala. No caso da música scienciana, podemos perceber que os dois tipos de recitativos são VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 22 incorporados, de maneira que se pode reparar em alguns casos específicos, como no final da música Corpo de lama, onde percebemos apenas a música eletrônica acompanhando enquanto a letra a seguir vai sendo recitada: Deixar que os fatos sejam fatos naturalmente, sem que sejam forjados para acontecer/ deixar que os olhos vejam pequenos detalhes lentamente/ deixar que as coisas que lhe circundam estejam sempre inertes/ como móveis inofensivos/ para lhe servir quando for preciso/ e nunca lhe causar danos morais, físicos ou psicológicos. Na música Rios, pontes e overdrives: Porque no rio tem pato comendo lama? [3x]/ Rios, pontos e overdrives – impressionantes esculturas de lama/ mangue [5x] [...] a entrada ―orquestral‖ se dá numa espécie de eco de contraponto, que começa após uma entrada de música sampleada, em seguida entra um som que lembra um pato e/ou uma sirene. Esse efeito de eco provocado pelo contraponto pode ser observado na música Coco Dub, do CD Da lama ao caos, em que foi utilizado um pedal que muda o som da guitarra, o daley, causando também um efeito de lentidão sonora e de eco. Não esqueçamos de que essas pequenas comparações foram apresentadas a título de ilustração. Não queremos aqui fazer uma comparação forçada, visto que o mangue beat, como movimento e como estética, se contrapõe a uma visão (neo)barroca. Essas abordagens, a barroca contemporânea ou neobarroca e a scienciana, distingue-se uma da outro no que diz respeito ao foco. A estética mangue difere da neobarroca, pelo fato daquela estar voltada para o olhar do menor homem do mundo, nas relações entre o discurso dos poderes estabelecidos sobre as minorias, prezando pela diversidade cultural. Faixa última 9: Caranguejo samba de que lado? O Mangue beat constitui um terreno de ―caos criativo‖ (LIRA, Paula de Vasconcelos; 2000, p.14), onde a rede de ligações entre os aparentes opostos rio/ mar; clássico/ popular; cidade/ mangue/ homem, são (de)compostas como rizoma. Observar uma parte sem antes ter compreensão do todo é a mesma coisa que buscar saber de que lado samba o caranguejo, quando ele não sabe sambar. Logo, buscar determinar um ―lado‖ para a última faixa sonora do Mangue beat resta perguntar ao público que aqui está: de que lado você samba, você samba de que lado? VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 23 Como podemos dilatar a consciência para compreensão mais politizada do mundo é assim que funciona o mundo pensando o social, o cultural, o econômico, o eco-lógico. Uma parte do sistema não funciona isoladamente, sem que seja criado outro sistema autônomo e crítico. Observar e analisar um objeto sem antes a compreensão previa do todo, constitui-se numa análise infértil. Uma planta não pode ser estudada observando-a longe de seu meio e das suas relações com ele. Dessa forma, a escolha dessa linha-melódico-textual entre estética barroca e Mangue beat, tem como intenção trazer aos possíveis leitores/ouvintes uma relação politizada de mundo, aliada a uma visão sócio-ambiental de pensar as artes e, consequentemente, as relações com a diversidade social e não com uma unidade cada vez mais específica. ―Somos todos juntos uma miscigenação, não podemos fugir de nossa etnia‖. REFERÊNCIAS DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôes – Capitalismo e Esquizofrenia. SP: 34, 2003. VARGAS, Herom. Hibridismos Musicais de Chico Science & Nação Zumbi. SP: Ateliê, 2007. CASTRO, Josué de. Homens e Caranguejos. SP: Editora Brasiliense, 1967. LIRA, Paula de Vasconcelos. Uma antena parabólica enfiada na lama: Ensaio de diálogo complexo com o imaginário do Manguebit. Recife (PE), 2000 Dissertação (Mestrado em Antropologia), Universidade Federal de Pernambuco. ZUMTHOR, Paul. Escritura e Nomadismo; tradução Jerusa Pires Ferreira, Sonia Queiroz. SP: Ateliê Editorial, 2005. MOISÉS, Neto. Chico Science: a rapsódia afrociberdélica. Recife: Comunicarte, 2000. BENNETT, Roy. Uma breve história da música. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996. CHEDIAK, Almir. Harmonia & Improvisação I. Rio de Janeiro: Lumiar, 1986. SCHAFER, R. Murray. O ouvido pensante. Tradução: Marisa Trenc de O. Fonterrada, Magda R. Gomes da Silva, Maria Lúcia Pascoal. SP: Fundação Editora da UNESP, 1991. CHICO SCIENCE & NAÇÃO ZUMBI. Da lama ao caos. Rio de Janeiro: Chaos, 1994. Compact Disc. Digital Áudio, 1 CD. Resmaterizado em Digital. ______. Afrociberdelia. Rio de Janeiro: Chaos, 1996. Compact Disc. Digital Áudio, 1 CD. Resmaterizado em Digital. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 24 BARROS, Manoel de. Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010 LIMA, Tânia. A linguagem dos caranguejos. Disponível em: http://encontrosdevista.com.br/Artigos/A_LINGUAGEM_DOS_CARANGUEJOS.pdf Acessado: 10/10/2010, às 9:50. FARACO, Carlos Emílio; MOURA, Francisco Marto. Literatura Brasileira. SP: Ática, 2000. BRAGA, Reginaldo Gil. Batuque jêje-ijexá em Porto Alegre – A Música no Culto aos Orixás. Porto Alegre: Fumproarte, 1998. ADORNO, Theodor W. Fetichismo na música e a regressão da audição. In:______. Textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1975. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 25 3. A MÚSICA DAS PEDRAS OU O DEVANEIO DAS OSTRAS: EM FRANCIS PONGE, JOÃO CABRAL E MARCELO D2 Tânia-Lima (Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN)1 RESUMO A Travessia da palavra em Francis Ponge, João Cabral e Marcelo D 2 exige vinte palavras, quase nenhum ranhura, alguns silêncios desprovidos de nomes. Todo verso é ―rizoma‖ de outros verbos. Cada sílaba vem no ritmo das conchas. Se há poema tem voz. Toda música é um experimento de linguagem / instrumento. Um poema de Francis Ponge decanta a menor das frases para falar da musicalidade de um simples moluscos. Se olharmos bem: o mínimo ganha a amplitude da exatidão geométrica em João Cabral. Em Marcelo D 2, a música é semicolcheia, fenda de uma elipse em movimento onde a clave de sol toca em tom eclipse. A primeira impressão que fica ao se atravessar esses 3 poetas é encontrar ―arranjos para assobios‖ frente a uma orquestra chamada invenção. Falar de João Cabral é compor a ―fala‖ pela movência de um idioma lama que escuta as vozes do rio para dedilhar o repente. Transfigurador de novas intenções para o poema, Francis Ponge requisita o ordinário e o inútil como material imprescindível de uma poesia que se movimenta pelo dom das coisas mínimas e neobarrocas. Em Marcelo D2, a partitura do rap alcança formas rítmicas híbridas das performances experimentais. Entre o ludo e o lodo, esses poetas jogam com o verbo até encontrar nos desvios semânticos os erros maduros de uma estética absurda. O que interessa para os artistas inventores não é tanto a saúde da frase, mas a doença dela. O erro ―agramático‖ é pérola no mundo da arte barroca. E se o artista é o que nomeia sentido para a existência de um verso, a música dodecafônica de um poema viaja no ―entre-espaço‖ do lúdico e do lúcido. Para se ―entranhar‖ melhor esses achados poéticos, degustaremos a obra teórica de Maurice Blanchot e Albert Camus, E. Glissant, Gaston Bachelard. Palavras-chave: música, conchas, barroco, imaginário, Marcelo D2. 1 Gosta de ―con-versar com prosa‖. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 26 Aquele rio era como um cão sem plumas. Não sabia da chuva azul, da fonte cor-de-rosa, da água do copo de água, da água de cântaro, dos peixes de água da brisa na água Sabia dos caranguejos de lodo e ferrugem. Sabia da lama como de uma mucosa. Devia saber dos polvos. Sabia seguramente da mulher febril que habita as ostras. Aquele rio jamais se abre aos peixes, ao brilho, à inquietação de faca que há nos peixes. Jamais se abre em peixes. [MELO NETO, 1994:105-106]. A imagem cabralina é contra tudo o que se instaura como grandiosamente espetacular. Em sua figuração, existe uma superação da própria sensibilidade ―na torta visão de uma alma/ no pleno estertor de criar‖ [MELO NETO, 1994, p. 411]. A comunicação defendida por esse poeta não retira da palavra o poder de sacudir o leitor adormecido. Vejamos que João Cabral diz muito com um mínimo de palavra possível. A economia de léxico, sem abusar da tapeação, faz o leitor reconhecer: ―não a forma encontrada/ como uma concha, perdida/ nos frouxos areais/ como cabelos‖ [MELO VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 27 NETO, 1994, p. 95], mas também os recortes de um molusco a acenar para o poema em seu cotidiano irreparável. Símbolo de silêncio e retiro, o molusco é um ser - quase uma - qualidade, pegando aqui o bivalve de Francis de Ponge [2000, p. 83]: ―dotado de uma energia possante para se fechar‖. É chave para fechar portas, mas também é morada do imaginário do mangue. Verdadeiro santuário do mangue, o molusco habita a tranqüilidade da lama. Para quem aprecia o refúgio, a prisão, a solidão, o ensimesmar-se na sabedoria, eis a representação fiel de um monastério: torna-se concha. A ostra sozinha vive encurralando-se: ―Dia de sol/ sem sobra de dúvida/ só o caracol‖, como destaca um verso de Alice Ruiz [2001, p. 88]. Ao viver embrulhado em linha espiralada, o caracol vem pintado de sal. Parece independente do restante do mundo. Camuflado em pedras, lembra pequeninas estátuas marinhas. Mas vendo-a atentamente, a fragilidade toma conta de um mundo em grau de abandono aparente. Cada forma de concha carrega uma geometria específica. O tempo eterniza-se na sólida lentidão como um leve fragmento espiralado. ―Caramujos sempre chegam depois. / Representa que estão chegando / da eternidade‖ [BARROS, 2001, p.53]. Os moluscos, de forma fenomenal, constroem suas conchas seguindo as lições de uma vida transcendente. ―Aliás, para uma concha viva, quantas conchas mortas! Para uma concha habitada, quantas conchas vazias‖ [BACHELARD, 1974, p.425]. A humanidade inteira dorme ao descanso de uma concha iluminada pelo sono profundo. Uma só concha simboliza introspecção e mutação: ―O padre jesuíta Kircher afirma que, nas costas da Sicília, as conchas de peixe, que se reduziram a pó, renascem e se reproduzem se regarmos com água salgada esse pó‖ [BACHELARD, 1974, p.430]. O pó conhece a ressurreição a partir do mar íntimo, a concha se deixa reduzir ao calcário de sal. No úmido salitre das encostas do mangue, a lesma retorna à forma espiralada de viver num caracol. As conchas resguardam-se como uma caixinha de segredos. ―Tudo é dialética no ser que sai de uma concha‖ [BACHELARD 1974, p.426]. Na arqueologia do imaginário, o caracol causa certa surpresa, pois nunca sabemos se irão sair ou não lá de dentro. Na maioria das vezes, quando saem do casulo, não aparecem por inteiro, contradizem o que fica guardado na crosta de calcário. As ostras são peixes que guardam as pedras. As conchas são pedras que andam. ―Enxuta, a concha guarda o mar/ No seu estojo‖ [HOLANDA, 2000]. O que vem é metade corpo, metade pedra, o rosto híbrido fica preservado no manguezal. ―De fato, o ser que sai de suas conchas nos sugere devaneios do ser misto. Não é somente o ser ‗meio VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 28 carne, meio peixe‘. É o ser meio morto, meio vivo e, nos grandes excessos, meio pedra, meio homem‖ [ibidem]. Vejamos então este poema de Ponge [2000, p.83]: ‗O Molusco‘ O molusco é um ser – quase uma – qualidade. Ele não necessita de vigamento, mas de um anteparo apenas; algo como a cor no tubo. Aqui a natureza renuncia à apresentação do plasma em toda a sua forma. Mostra apenas que lhe está apegada, abrigando-o cuidadosamente num escrínio cuja face interior é a mais bela. Não é, pois, um simples escarro, mas uma realidade das mais preciosas. O molusco é dotado de uma energia possante para se fechar. A bem dizer, não é mais que um músculo, um gonzo, uma mola e sua porta. A mola tendo secretado a porta. Duas portas ligeiramente côncavas constituem toda a sua morada. Primeira e última morada. Reside ali até depois de sua morte. Nada se pode fazer para retirá-lo dali vivo. A menor célula do corpo do homem se apega assim, e com essa força, à palavra, - e reciprocamente. Mas, às vezes, um outro ser vem violar essa tumba, quando está bem-feita, e nela se fixar no lugar do construtor defunto. É o caso do paguro. O que encontramos dessas imagens rústicas é um jogo de analogias estranhas, obscuras de sentidos. Imagens avessas, desconhecidas, desfiguradas, mas muito próxima da humanidade: ―A menor célula do corpo do homem se apega assim, e com essa força, à palavra, - e reciprocamente‖. Poderíamos dizer que, interiormente, o ser humano é um ser acumulável de conchas. Clarice Lispector [1998, p. 29; grifo nosso], no livro ‗Água viva‘, ao descrever o instante-já, indaga: ―Como é que a ostra nua respira?‖. João Cabral [1994:77] indaga algo parecido: ―Como um ser vivo/ pode brotar de um chão mineral?‖ A ostra respira por pequenos filamentos que recebem a água e o oxigênio. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 29 Em Água viva, a ostra respira pela metamorfose da frase. Uma simples frase respira várias histórias sobre ostras.7 Numa série de causos populares ora referenciando, ora sugerindo, os moluscos retiram o véu de pedra e mostram seus corpos misteriosos. Na moral da história, a natureza se diverte em desdizer a façanha da fábula. A história sobre moluscos se recria a partir da exceção, dos devaneios, dos desvios, do imaginário. E se acrescentarmos novos olhares sobre alguns costumes antigos vê-se que o lado noturno do mangue confunde-se à substância líquida e endurecida das ostras. ―Um biólogo escreve: o caracol se retrai dissimuladamente em seu quiosque como uma menina contrariada vai chorar no seu quarto‖ [BACHELARD, 1974, p.434]. Quanto mais se observa o bivalve mais se percebe que ―foi rolando sobre si mesmo que o caracol fabricou sua própria escada?‖ [ibidem]. Quantas marisqueiras distraem-se fazendo cócegas em um caramujo a fim de levá-lo a deixar o esconderijo. Se a ―natureza renuncia à apresentação do plasma em toda sua forma‖, como diz Francis Ponge, sabemos que, como fósseis, as ostras são testemunhas da natureza, pois oferecem diferentes formas para simbolizar as partes do corpo da mulher. A garça que pousa para o mangue simboliza o quanto a lama é delicada. ―Que sendo vista por quem/ conhece o mangue, o confunda/ com as garças que o mangue tem‖ [ACCIOLY, 1983, p.5]. A nudez da garça é consentida pela alvura. Contudo a cor branca das garças dentro da lama de pele negra é de uma brancura ostensiva. O branco da garça é calcário; o ‗branco‘ das ostras é um labirinto com esconderijo indiscreto. A nudez das garças remete às pequenas bacias recheadas de conchas. O mangue é sensual. No poema ‗O mercado a que os rios‘, descreve a morna cama ou ―até a outra, a empantanada, / do mangue, sensual e mestiça, / que corrompe o rio na morna/ cama de mulheres-da-vida‖ [MELO NETO, 1994, p.453; grifo nosso]. As formas das conchas se fazem geometricamente inacabadas para forjar o restante das imagens anfíbias. ―Robinet faz uma descrição da concha Bivalve de Vênus que representa a vulva de uma mulher‖ [BACHELARD, 1974, p.430]. Na história da 7 Leonardo Da Vinci, na fábula ‗A Ostra e o Caranguejo‘, descreve: ―Uma ostra estava apaixonada pela Lua. Sempre que a Lua cheia brilhava no céu, ela passava horas olhando-a boquiaberta. Um caranguejo viu, de seu posto de observação, que durante a Lua-cheia a ostra ficava completamente aberta, e decidiu comê-la. Na noite seguinte, quando a ostra se abriu, o caranguejo colocou um Pedregulho dentro da concha. A ostra, imediatamente, tentou fechar-se, porém o pedregulho impediu-a. Isso acontece a qualquer pessoa que abra a boca para contar seus segredos. Há sempre um que se põe à mercê do ouvinte indiscreto‖ [http: //www. Institutohypnos.org.br/artigos/ostra.html]. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 30 humanidade, as ostras simbolizam espaços de sensualidade, eroticidades. ―A própria ostra é identificada como um dos mais poderosos estimulantes do desejo sexual‖ [CAVALCANTE, 2004, p.97]. Mas como copula uma cocha se mora tão sozinha? A pedra é a parceira do molusco. Na teia voluta, a fêmea devora o macho depois que copula. Devora a si mesmo. As ostras são as protagonistas de todos os jantares eróticos registrados na literatura ou no cinema, pegando aqui uma imagem de Isabela Allende. O ostracismo de um molusco engravida a si mesmo? As conchas têm a forma de um coração. Como gerar o anonimato de um mundo dentro do muro de pedra, se ―brejos amanhecem/ amarrados/ de conchas‖ [BARROS, 2001, p.52]. Na pintura renascentista, com linhas ondulantes, Botticelli [1444-1510] retrata uma concha no quadro ‗Nascimento de Vênus‘. Talvez a própria ―Afrodite saia de uma concha redonda‖ [BACHELARD, 1974, p.426]. É possível que os homens dos mangues tenham construído suas moradas imitando o interior dos moluscos. A geometria das conchas enclausura o corpo para purificar a morada pétrea. ―Dentro dos caramujos/ há silêncios/ remontados‖, pegando aqui novamente a fala de Manoel de Barros [2001, p.57]. As formas dos moluscos são tão numerosas que a partir do exame do universo das conchas, a imaginação é vencida pela imensidão ou pela realidade. As conchas são curvas e elípticas como as silhuetas espiraladas das mulheres dos mangues. Retêm as conchas uma infinidade de volutas, dobras, cores e sabores. A concha cauri, também conhecida como cauril ou caurim, predominante no oceano Índico e Pacífico foi no passado bastante utilizada como moeda na África e na Ásia. No ferrolho das conchas, os moluscos estão sempre em casa de mangue seja qual for os lugares para onde o mar carregue. A casa da concha é extensão da morada do corpo. ―Em outras palavras, a concha do caracol, a casa que cresce na mesma medida de seu hóspede, é maravilha do universo‖ [BACHELARD, 1974, p. 432]. A casa dos homens é abrigo para a morada do universo. Ambas as casas fazem parte do corpo do mundo. A solidão da concha é metáfora da solidão do homem. Geralmente, os moluscos lançam os corpos babosos para frente, levando o endereço postal sobre si mesmos. Mas nos rendemos ao lado eremita de Francis Ponge: ―Ele não necessita de vigamento, mas de um anteparo apenas; algo como a cor no tubo‖. É certo que alguns moluscos relembram um cone de pedregulhos. Na linha de um poema pongeano: ―Nada se pode fazer para retirá-lo dali vivo‖. Na pintura que o mar faz do VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 31 mangue há ―um conjunto de oito conchas que parecem um ramo de tulipa‖ [BACHELARD, p. 433]. Das raízes, sobram dos mangues as ostras que constroem seus monturos de pedra nas sobras de limbo e sal: ―a concha que é resto / de dia de seu dia: / exato, passará pelo relógio/ como de uma faca a fio‖ [MELO NETO, 1994, p. 89]. O tamanho dos moluscos é medido pelo relógio do dia. O resto do ser vivo habita a lâmina de pedra que é a caixa das conchas. A imagem da beleza de uma concha remodela a fôrma geométrica e se imiscui à da forma elíptica ―de uma faca a fio‖. No dia aberto, o branco das conchas guarda o sol e os fios de sal que se soltam do mar. A concha guarda o tempo da eternidade. O trigo vira corpo de pedra. A flor vira petra. Como bem observa João Cabral [1994, p.95] a concha é: ―a forma atingida/ como a ponta do novelo/ que a atenção, lenta, / desenrola‖ [MELO NETO, 1994, p.95]. A união do corpo mole com a crosta dura faz da casa de ostras um cofre, uma janela aberta ou como diz Ponge: ―A bem dizer, não é mais que um músculo, um gonzo, uma mola e sua porta. A mola tendo secretado a porta. Duas portas ligeiramente côncavas constituem toda a sua morada‖. Mas em Cabral [1994, p.88] a concha não se desembrulha: ―Ali é uma terra branca/ e ávida/ como a cal‖. A concha, no mangue, é a casa do sal. ―Sua mudez está assegurada/ se a flauta seca/ será de mudo cimento/ não será búzio‖ [MELO NETO, 1994,p.89]. ‗A pedra do sono‘ de porta entreaberta lembra ―uma panela de bruxa‖, como destaca Bachelard. Muitas conchas são usadas de forma mística. Na ampliação da imagem: uma concha sugere as grandes pias de batismo; misticamente, resgata o devaneio espiritual nos jogos de búzios, tarôs e cartomantes. Uma concha emborcada ou convexa é um elemento carregado de mistério. Há toda uma simbologia para quem joga o poder dos búzios em sintonia com os astros. Somente na solidão de uma concha atingimos o ensimesmamento. A palavra ensimesmar, segundo Ortega y Gasset, representa, a princípio, o grau de sabedoria através da clausura. Um ser ensimesmado leva, na geografia dos povos antigos, a sabedoria do autoconhecer. A forma de sair de dentro é um desafio de mínimos cuidados para um sábio molusco. Sair exige o enfrentar o perigo. O mesmo tartarus que envolve o casco da tartaruga é o que protege as conchas dos raios furiosos. A penumbra da concha é uma forma de acampar a solidão de um ser em condição de exílio. Até a sombra de uma concha ou de uma árvore é símbolo de habitação. O lado penumbra das ostras traz ao VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 32 mangue um estado de ostracismo e comunhão. O movimento é sempre em direção ao que sai de sua carapaça em direção de outros mundos. O ser que habita uma concha muda seu mundo para acolher o que está dentro. O que está do lado de fora não é mundo, mas abismo. A concha curva, geométrica, é casa arquitetada, caverna assombrada. Um mundo complexo de imagens que retrata o universo estranho dos manguezais. Sem abusar das metáforas científicas, Ponge não se intimida, estende-se e renova estranhamentos ―Não é pois um simples escarro, mas uma realidade das mais preciosas‖. Quando o molusco fenece, o paguro [caranguejo do mar] costuma se fixar na concha moribunda. Francis Ponge descreve: ―às vezes, um outro ser vem violar essa tumba, quando está bem-feita, e nela se fixar no lugar do construtor defunto‖. A concha morta torna-se casa vazia habitada pelo abandono. ―Primeira e última morada. Reside ali depois de sua morte‖. A imagem de uma concha desocupada religa-se ao ―bernardo-eremita que deixa entrever sua pinça monstruosa na embocadura do búzio soberbo que o alberga‖ [PONGE, 2000, p.127] no livro ‗Le parti pris des choses‘.8 Em ‗Notes pour un coquillage’ 9 [anotações para uma concha], Ponge [2000, p.125] pincela com nitidez: ―Uma concha é uma coisa pequena; mas posso desmesurá-la, recolocando-a onde a encontro, pousada na vastidão da areia‖. O bernado-eremita de que fala Ponge é um molusco que não faz sua concha; habita as conchas abandonadas. Costuma trocar de concha quando sente vontade. O eremitabernardo é um divertido amante da brincadeira de esconde-esconde. Nômade pula de concha em concha até viajar pelo mangue inteiro. O escritor Manoel de Barros, que é contemporâneo de Francis Ponge e João Cabral, faz do eremita um sábio. No poema ‗O Livro de Bernardo‘, do livro ‗Tratado geral das grandezas do ínfimo‘, o poeta encontra o inexplicável: ―Dentro de mim/ eu me eremito/ como os padres do ermo// Meus caminhos/ a garça / redime‖ [BARROS, 2001, p.51]. Bachelard [1974, p.437] compara bernado-eremita com as aves de arribação, as espécies de ‗pássaro cuco‘ que, por não saber construir ninhos, põe seus ovos no ninho dos outros. ―O cuco, dizem, quebra um ovinho no ninho aonde vai pôr o seu, depois de ver fugir o passarinho que estava chocando. Se põem dois, quebram dois‖. O cuco não 8 ―Quand le seigneur sort de sa demeure il fait certes moins d‘impression que lorsque le bernard-l‘hermite laisse apercevoir sa monstrueuse pince à l‘embouchure du superbe cornet qui l‘héberge‖. 9 ―Un coquillage est une petite chose, mais je peux la démesurer en la replaçant où je la trouve, posée sur l‘étendue du sable.‖ VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 33 conhece a arte de fazer ninho. Tudo isso nos traz uma reflexão do próprio Bachelard [1974, p.434]: ―Todas essas imagens e reflexões correspondem a uma admiração pueril, superficial e dispersa; mas que uma psicologia da imaginação deve anotar tudo. Os menores interesses preparam os grandes‖. Com uma simples imagem, marisqueiras recriam suas ostras presas nas marés dos mangues. Ao redor de uma simples paisagem, o poeta recria e abre caminhos. Marisqueiras e poetas têm maneiras simples de nos surpreender: carregam suas conchas, vêem a natureza como uma imensa rede de sonhos. Bacherlard [1974, p. 424], em ‗A poética do espaço‘, analisa que as conchas são símbolos tão precisos que os poetas que não sabem desenhar ficam, no ato de escrever, desprovidos de imagens. Inquieto para registrar a sensualidade da mulher ―febril que habita as ostras‖, João Cabral, ao falar sobre as ostras, aparece como se estivesse, em sua solidão de indivíduo, reivindicando o corpo sensual da concha feminina. Na variedade das formas que todo corpo em ostracismo retém, a natureza anuncia a mulher febril que habita as ostras em uma gota de erotismo. O poeta mostra a concha pelo que ela tem febril na sensualidade de uma espiral barroca. Sabia dos caranguejos de lodo e ferrugem. Sabia da lama como de uma mucosa. Devia saber dos polvos. Sabia seguramente da mulher febril que habita as ostras. O imaginário neobarroco cabralino está sempre em processo de movência com outras culturas. Um bom exemplo é a precisão do traço neobarroco. ―A arte do contador de histórias crioulo é feita de derivas e ao mesmo tempo de acumulações, com a presença desse lado barroco da frase e do período, essas distorções do discurso onde o que é inserido funciona como uma respiração natural, essa circularidade da narrativa e essa incansável repetição do tema‖ [GLISSANT, 1994, p.53]. Quer dançar? quer dançar? então prepara VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 34 A maldição bateu sambou nunca mais pára E tá na cara a raiz tá cravada no chão Do tronco ao fruto com a nave mãe fazendo a conexão (MARCELO D 2) Em ―Maldição do Samba‖, Marcelo D 2, dá vez à ruptura, quebra da estrutura pelo que se absurda, pelo que amplia a ponte entre o oral e o escrito. Manifesta-se no discurso os pequenos sobressaltos, em verdadeiro assalto estético. Troca-se o mangue pelo sangue. Um tecido musical neobarroco desmedido não pelo sentir, mas pelo pensar que medita e calcula o ritmo do poema canção. Essa desmedida da lírica vem na contramão da ambição clássica que segundo Glissant [2005, p.111], é uma desmedida da medida metrificada. O barroco é a arte do traço sincrético: ―Quando o barroco atravessou os oceanos e chegou à América Latina, os anjos e as virgens tornaram-se negros, Jesus Cristo tornou-se um índio e tudo isso rompeu o processo de legitimidade‖ [GLISSANT, 2005, p. 62]. Se a intenção clássica é o legado da harmonia do corpo em sintonia com o recado trágico sobre a complexa profundidade da natureza do ser humano, as artes barrocas são formas da ―extensão, da proliferação, da redundância e da repetição‖ [GLISSANT, 2005, p.112]. O grave racha o muro e o agudo quebra a vidraça Na vida tudo passa não a nada que se faça Mas rima após rima não é de graça Show time agora sabe como é que é samba no pé Samba samba no pé A percussão é eletrônica a favela na internet O coco é enlatado e a banana é com chiclete A maldição do samba ( MARCELO D2) Em D2, a luta não é pela ―contra-reforma‖; a crítica é pela reforma. Na transgressão musical, o eixo da razão é o sujeito. No poema, o eixo da ação se dá sobre o objeto. A arte do rap evoca a metamorfose do sujeito em sujeito e não em objeto. O poeta quer descobrir as relações secretas entre os homens e as coisas. Se a intenção é o desequilíbrio da linha VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 35 reta, a metáfora se volta para as linhas tortuosas, rechonchudas. Com uma estética irregular e transgressora de normas, o poema vive das encruzilhadas, está na condição de entre das vozes sincréticas. Sobre o poder da criação força nenhuma no mundo interfere E fabricado em série é o coringa do baralho Resitência cultural casa do caralho E passo a passo foi tomando conta de mim É coisa fina dj com tamborim (MARCELO D2). A maldição da palavra é símbolo mais representativo da luta social. Seu baralho vem de um mundo barroco, um contexto misto cujas denúncias ganham a coringa de um baralho grotesco em movimento. No livro Boca do inferno, a escritora Miranda [2006, p. 33] descreve: ―Ser poeta é uma maldição de nossa língua‖. CONSIDERAÇÕES FINAIS Reconhecido por muitos como um texto difícil e hermético, o poeta neobarroco requer uma disposição aberta do leitor para superar o estranho e entender ao texto. Não buscar a escrita fácil serviu de refúgio para poetas como Góngora a Quevedo. Em nossos dias, o neobarroco traz labirintos derrapantes nas dobras da contemporaneidade de Lezama, Osman Lins, Vallejo, Cortázar, Astúrias. No livro ‗O século das luzes‘ [1985] Carpentier aponta na forma espiral de seus textos personagens um tanto neobarrocos. O cubano Estevão, a exemplo, observa meticulosamente a forma espiralada de um caracol: ―Contemplando um caracol – um só - Estevão pensava na presença da Espiral durante milênios e milênios [...] Olha um caracol. Um só. Te deum‖. No mosaico de linhas tortas, o céu neobarro expõe-se ao mundo através da aparência das coisas em cores mestiças com figuras inesperadamente reais e fictícias como observamos no búzio desigual, retorcido, de ―encrespadas Conchas mil se arreia‖ nas Prosopopéias de Teixeira [1984, p. 84]. Também na tela-mundo feita de trapos imundos e de santidades sujas em Caravaggio que, preferindo os personagens marginais, afirmava que as VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 36 ruelas e os becos de gente desprezível são as fontes verdadeiras da arte. Nas quadras João Cabral, o rio é um personagem pintado com cores das artes plásticas. O menor detalhe faz diferença para tela crítica. Perder um verso é perder a tela inteira. Não está à toa a presença de outros pintores na obra de João Cabral, como: Joaquim Rego Monteiro, Ademir Menezes, Picasso. Algumas imagens são tão inconciliáveis que a impressão que temos é que a poesia precisa mais de tintas que propriamente de palavras: ―E que porém de um Mondrians/ num ponto se diferencia: / em que nela essa vibração, / que era de longe impercebida, / pode abrir mão da cor acessa/ sem que um Mondrians não vibra, / e vibrar com a textura em branco/ da pele ou da tela, sadia‖ [MELO NETO, 1994, p.295]. O poeta nos lembra um pintor neobarroco a fundir os ideais medievos com os valores renascentistas. Um poeta que acredita acima tudo na visualidade do poema. Nesse autor, os olhos não podem faltar para verdadeiramente enxergar; por outro lado, necessita dos desenganos do ouvido para receber a tintura mestiça do mundo. Se ―a elipse é barrocamente uma concha‖, como bem observa Affonso Romano de Sant‘Anna [2000, p, 22-23], a concha, com sua arquitetura irregular, defeituosa, grotesca, curvilínea, está na origem da palavra Barroca.10 Um tanto conceitual, Francis Ponge traz a marca neobarroca, ao tratar dos objetos pela dobra, pela fenda, pela falta. Ponge utiliza processos singularmente racionalizados. É uma arte que necessita das criações técnicas geometricamente calculadas para alcançar a realidade humana e social sobre o qual enuncia e denuncia. O poema pongeano sugere-nos uma elipse, carrega no traço uma ausência, uma falta nos olhos. A elipse é solar e lembra-nos também a astronomia barroca de Kepler que defendia o sistema solar em uma forma elíptica. Já em João Cabral, uma curva elíptica acompanha a lama, o mangue, o rio sem plumas. No traço curvilíneo, há curvas elípticas nas paginas do livro Paisagens com figuras [1955]: ―Podeis decifrar as vilas/ constelação matemática, / que o sol vai acendendo/ por sobre o verde de mapa‖ [MELO NETO, 1994, p.154]. Curiosamente, a modernidade de Marcelo D2 é um exemplar de uma canção híbrida, escrita pelo tom da miscelânea neobarroca. ―O Barroco retira o máximo partido, 10 Na época das grandes navegações, portugueses em comércio pela região da Índia encontram uma cidade próxima aos manguezais chamada de BROAKTI onde se cultivava um tipo de pérola deformada, feia, irregular. Os portugueses passaram a chamar a cidade Baroquia. Com o passar do tempo, a cidade virou Barroca, reconhecida pelas suas pérolas defeituosas. O barroco vem, portanto, dos mangues tortos. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 37 misturando o mitológico ao descritivo, o alegórico ao realista, o narrativo ao psicológico, o guerreiro ao pastoral, o solene ao burlesco, o patético ao satírico, o ao idílico ao dramático, sem falar da mestiçagem da linguagem‖ [COUTINHO, 1976, p. 80]. O tear D2 é montado pelas quadras de uma fala oral-mestiça, popular-erudita. Como diz Zumthor [2005, p. 80]: ―a poesia oral é trazida pela voz, a voz exerce no meio humano uma função forte, mas não idêntica em diferentes grupos sociais‖. A voz do poema é sugestão concreta em uma série de quadras que seguem o alinhamento das estrofes. Filosofando sobre a representação de um quadrado, os platônicos pensavam sobre a ―materialização da idéia‖. Nessa forma de pensar: ―as figuras geométricas são o que a filosofia chama de autênticas metáforas epistemológicas‖ [SANT‘ANNA, 2000, p. 25]. O quadrado representa os elementos concretos e materiais enquanto o círculo representa mais a essência, o espírito. O quadrado é renascentista enquanto o círculo é barroco. A figura em círculo é quieta, harmônica, mas o desenho ‗oval‘ é inquieto, tortuoso. A natureza do poema cabralino nesse sentido é geometria, parece plana, mas é curva e elíptica, prolixas como as xilogravuras do universo barroco. O barroco prolixo com todo os seus tiques, e o reto, tão correto, direto ao que insiste, /são linguagens que rara mente coexistem Só as vi na Capela Dourada do Recife. [MELO NETO, 1994:394; grifo nosso] Entre a quadra e a curva, o poema de forma lacunar segue também em círculo, com repetições diferentes, num fluxo contínuo de imagens esféricas, como se observa no livro ‗Paisagens com figuras‘: ―Aqui o mar é uma montanha/ regular redonda e azul, / mais alta que os arrecifes/ e os mangues rasos ao sul‖ [MELO NETO, 1994, p.147; grifo nosso]. Essa artimanha, de forma simples, serve mais para sugerir ou enfatizar a vida e suas aspirais VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 38 em situação de queda, mas também em situação de revolta. Na antilírica moderna: ―A geometria é subvertida e a curva sobressai ostensivamente, serpenteando, engolindo a linha‖ [SANT‘ANNA, 2000, p.48]. A linguagem é exteriorizada pelo que falta ao redor da vida re-tirana e o poeta busca incansavelmente subornar as curvas dos manguezais à disciplina da quadra, das estrofes de quatro versos regulares. Dentro da quadra da contradição, o poeta repensa valores arraigados. Para Édouard Glissant [2005, p.62] toda vez que se fala em valores particulares como valores universais ao mundo é porque se acredita ter alcançado uma profundidade. No barroco, não há valores universais, porque ―todo e qualquer valor é um valor particular que será colocado em relação com um outro valor particular e que, conseqüentemente, não existe a possibilidade de que qualquer valor particular possa legitimamente se considerar ou se apresentar e se impor como universal‖. Na escrita neobarroca, há uma espécie de extensão, que renuncia à condição alienante do mundo. O resíduo neobarroco no poema cabralino resgata a relação com a totalidade-mundo, traz uma crítica profunda às relações de opressão e desertificação no mangue-urbano; uma extensão que se volta para o humano e o que há nele de efêmero e aparente. Registra-se no poema cabralino uma crítica profunda ao lirismo chorão, em seu individualismo vazio sem saída. Nele, os olhos secaram, as lágrimas emudeceram os olhos mudos dos poemas. Em sua engenharia barroca, lágrimas não há, saudosismo muito menos. Hölderlin, ao iniciar sua revolta contra a expressão subjetiva da lírica tradicional, prevê a ruptura com o eu-lírico do poema. Na modernidade de Cabral, a lírica entra em crise de existência, faltam caminhos. O poeta precisa abrir como um cego o sentido dos descaminhos. Em João Cabral, a antilírica entra em questão, a palavra torna-se imprevisível. E dessa vez quem está em crise é a linguagem. O mundo se torna híbrido. A palavra perde as certezas. Desconfiamos delas, então: ―Barroco alegre, de cal e ocre/ sem jogos fúnebres de morte. / Plena luz de um sol-de-cima, / nem diz da morte, que é sua sina/ É como um altar ao ar livre/ barroco, sem seus jogos tristes‖ [MELO NETO, 1994, p. 665; grifo nosso]. A poesia sem recado, enfeitada de cor local, com formas gordas, alegóricas, grotescas em expressão, não interessa muito ao discurso lírico do poema cabralino. Sem esquecermos que a marca do gênero lírico é a subjetividade, longe do verso de teor transcendental, Cabral abre as portas de sua antilira para dialogar de forma mista, imparcial, objetiva. Meio VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 39 a tantas vozes, carrega a elipse barroca e suas dobras à maneira dos traços retos de Bernini e elípticos de Borromini são extensões de rizoma: ―A arquitetura como construir portas, /de abrir; ou como construir o aberto; / construir, não como ilhar e prender, / nem construir como fechar secretos; / construir portas abertas, em portas‖ [MELO NETO, 1994, p.345]. Com uma versificação cortada e dicção quebrada como uma onda: ―antes de ir ao mar/ onde minha fala se perde‖ [MELO NETO, 1994, p.140]. REFERÊNCIAS ACCIOLY, Marcus. Cancioneiro. Recife: UFPE, 1968. ACCIOLY, Marcus. Poética popular. [Dissertação de Mestrado], Universidade Federal de Pernambuco, Recife: 1980. ACCIOLY, Marcus. Riomangue. In: COUTINHO, Edilberto (org.) Presença poética do Recife: crítica eantologia poética. Rio de Janeiro: José Olympio, 1983. BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Abril, 1974. BACHELARD, Gaston. A chama de uma vela. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. BACHELARD, Gaston. A terra e o devaneio poético. São Paulo: Martins Fontes, 1990. BACHELARD, Gaston.A psicanálise do fogo. São Paulo: Martins Fontes, 1999. BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos. São Paulo: Martins Fontes, 2002. BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 2006. BLANCHOT, Maurice. O espaço Literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. BARROS, Manoel de. Arranjos para assobio. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982. BARROS, Manoel de. Gramática expositiva do chão (poesia quase toda). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1990. BARROS, Manoel de. O livro das ignorãças. Rio de Janeiro: Record, 1993. BARROS, Manoel de. Livro sobre nada. Rio de Janeiro: Record, 1997. BARROS, Manoel de. Concerto a céu aberto para solos de aves. Rio de Janeiro: Record, 1998a. BARROS, Manoel de. O guardador de águas. Rio de Janeiro: Record, 1998b. BARROS, Manoel de. Retrato do artista quando coisa. Rio de Janeiro: Record, 1998c. BARROS, Manoel de. Compêndio para uso dos pássaros. Rio de Janeiro: Record, 1999a. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 40 BARROS, Manoel de. Poemas concebidos sem pecados. Rio de Janeiro: Record, 1999b. BARROS, Manoel de. Tratado geral das grandezas do ínfimo. Rio de Janeiro: Record, 2001. CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Rio de Janeiro: Record, 2003. CAVALCANTE, Gustava Bezerril. Mulheres do mangue: trabalho, memória e cotidiano das marisqueiras de Fortim – CE. [Dissertação de Mestrado] Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2004. COUTINHO, Afrânio. Introdução à literatura brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976. COUTINHO, Edilberto, org. Presença poética do Recife: crítica e antologia poética. Rio de Janeiro: José Olympio, 1983. GLISSANT, Édouard. Introdução a uma poética da diversidade. Tradução de Elnice do Carmo Albergaria Rocha. Juiz de Fora: UFJF, 2005. HOLANDA, Sérgio Buarque de. O bom dragão. In: Poesia completa de Raul Bopp. Augusto Massi (org.) Rio de Janeiro: José Olympio; São Paulo: EDUSP, 1998. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. MARCELO D 2. Maldição do samba. Disponível em: <www.brasilmusik.de/ >.m/marcelo-d2/marcelo-d2.htm.>. Acesso em 30 set.2010. MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. MELO NETO, João Cabral de. Cadernos de Literatura Brasileira. Número 1. São Paulo: Instituto Moreira Sales, 1998. MIRANDA, Ana. Boca do inferno. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. ORTEGA Y GASSET, José. O homem e a gente (intercomunicação humana). Livro Ibero-Americano, LTDA: Rio de Janeiro, 1973. PONGE, Francis. O partido das coisas. Tradução Adalberto Müller Jr., Carlos Loria, Ignácio Antônio Neis, Júlio Castañon, Michel Peterson. São Paulo: Iluminuras, 2000. RUIZ, Alice. Desorientais. São Paulo, 2001. SANT‘ANNA, Affonso Romano de. Anotações sobre a poesia brasileira de 1922 a 1982. São Paulo: LR, 1982. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 41 SANT‘ANNA, Affonso Romano de. Barroco: do quadrado à elipse. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a literatura medieval. Tradução Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. ZUMTHOR, Paul. Escritura e nomadismo: entrevistas e ensaios. Tradução Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Ateliê, 2005. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 42 4. CERVANTES NA CULTURA BRASILEIRA Prof. Dr. João da Mata Costa [email protected] Em 2005, o mundo inteiro comemorou os 400 anos da 1ª ed. do Dom Quixote de la Mancha, escrito pelo escritor espanhol Miguel de Cervantes. Livro fundador do romance moderno, e um rico manancial de cultura popular e das novelas de cavalaria da idade média. A literatura de cordel está, inicialmente, ligada a Romances e Novelas Cavalaria. Das novelas citadas por Cervantes, o Bernardo del Carpio fez muito sucesso no Brasil e vinha como capítulo final do livro Carlos Magno e os 12 pares de França (Cascudo). Devido à grande influencia que Cervantes tem na cultura popular brasileira, é importante que o Dom Quixote seja amplamente lido e divulgado em todos os níveis de escolaridade. O Objetivo desse trabalho é mostrar esse rico manancial de cultura popular e divulgar um dos livros mais importantes da literatura mundial. Livro que também é um verdadeiro tratado de provérbios, adágios, anexins, etc. Palavras- Chaves: Dom Quixote, Cultura Popular, Literatura. A Espanha do Século de Ouro No séc. XVI a Espanha vivia o seu apogeu literário, político e cultural. A Espanha era um país rico e poderoso. Para lá iam todo o ouro e a prata retirada das civilizações indígenas americanas recém dominadas, e sob o comando de Felipe II (1527-1598) o império estendia-se pelo Caribe, pelas Américas, e outras partes do continente. Em 1580, quando Portugal é anexado à Espanha, esse império ainda vive seu apogeu. O primeiro livro de Cervantes - ―La Galatea‖-, é uma novela pastoril e foi publicado em 1585. Antes, em 1571, Cervantes participa da memorável batalha de Lepanto contra os Turcos, vencida pelos Espanhóis em 7 de outubro. Nessa batalha, Cervantes perde o uso da mão esquerda para ―a glória de la diestra‖. A invencível armada é derrotada pelos ingleses em 1588, e a Espanha começa o seu ocaso. Cervantes foi preso, junto com o seu irmão Rodrigo, por piratas berberescos, que os levaram para uma prisão em Argel, onde ficou cativo entre 1575-77. Miguel de Cervantes Saavedra (1547- 1616) tentou fugir várias vezes, e, VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 43 provavelmente, começou a escrever o Quixote durante esse período. A 1ª ed. da primeira parte do "Dom Quixote" foi publicada em 1605, com o título de ―El Ingenioso Hidalgo Don Quijote de la Mancha‖, e a segunda parte saiu em 1615, com o título ―El Ingenioso Caballero Don Quijote de la Mancha‖. Desde então o livro não parou de ser editado e foi traduzido em todas as línguas do planeta. No ano do IV centenário do famoso livro já foram publicadas dezenas de edições de luxo, populares, recontadas, em quadrinhos, cordel e com novas ilustrações. O objetivo deste trabalho é dar uma visão geral da importância do Quixote para a história da literatura mundial, e da cultura popular em particular. Consultamos e estudamos em torno de quinhentos livros de /e sobre Quixote e comentamos alguns aspectos no que diz respeito às ilustrações, edições e recepção do Quixote no Brasil messes quatro séculos de andanças e encantamentos. Inicialmente fazemos uma rápida explanação da Espanha do Século de Ouro, onde havia outros grandes escritores além de Miguel de Cervantes. Grandes cientistas e universidades. Depois fazemos um levantamento de algumas das principais edições ilustradas do Quixote no mundo. Comentamos a grande influencia do escritor Miguel de Cervantes em vários escritores brasileiros e o grande manancial de cultura popular que é o Quixote. Um caleidoscópio de gêneros literários, paremiologia, contos, fábulas, histórias sem fim, títeres, contos de ―exemplum‖, etc. Tudo isso, contado com muito humor, estilo e graça sem fim. Comentamos, também, o Livro Legenda Dourada do século XIII com um belo ―exemplum‖, aproveitado por Cervantes no Dom Quixote. As Personagens Numa pequena aldeia da Mancha, província Espanhola, vivia um fidalgo. Homem de costumes rigorosos e decadente fortuna. Don Quijada, Quesada ou Quejano, nisto discordam alguns autores que escreveram sobre o caso. Só mais ao final da novela ficamos sabendo que trata -se de Alonso Quijano. Vivia da exploração de suas propriedades, que mal lhe rendiam para manter uma simples aparência de abastança. Morava com uma sobrinha com menos de 20 anos, uma criada quarentona e um criado que cuidava do seu cavalo e fazia os serviços do campo. Aos 50 anos, magro, alto, de gestos imponentes e uma certa altivez estudada, era mais conhecido por sua enorme biblioteca, onde empenhava toda a moeda conseguida nas colheitas ou pela venda sucessiva de suas terras. De tanto ler foi se distanciando da vida cotidiana e entrando naquele mundo fantástico de VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 44 encantamentos, batalhas com gigantes e amparo a donzelas. Eram seus amigos o padre da aldeia, o barbeiro e Sansão Carrasco. Para nossa sorte, Quixote sai três vezes de casa. A primeira, sozinho, e duas outras, acompanhado do bom Sancho Pança. Todo cavaleiro precisa ter um fiel escudeiro, e os dois:- Dom Quixote e Sancho Pança-, formam um dos pares mais famosos de toda a literatura. À força de tanto ler-imaginar, foi-se distanciando da realidade a ponto de já não poder distinguir em que dimensão vivia. Varando noites e noites à luz de candeeiro, lia e relia e reconstruía, á sua maneira, o desenrolar dos famosos livros de cavalaria. Dom Quixote - Um incorrigível apaixonado O Dom Quixote é um personagem de ficção que se transforma num mito. Um personagem que encarna alguns dos bens mais preciosos de ser humano: a luta por justiça, a generosidade e a ética. Apesar de todo o sofrimento e loucura do herói, a saga do personagem é mostrada por Cervantes com muito humor.Sigmund Freud aprendeu o espanhol para ler o livro e diz que o leu com muito gozo, explica: Dom Quixote é uma figura que não possui humor por si mesma, mas produz com toda obstinação um prazer que podemos qualificar de humorístico, muito embora seu engenho (grifo nosso) esteja longe do humor. (Freud, obras completas tomo I). Tudo é artifício e traça, diz D. Quixote. O que é verdade?- Pergunta D. Q. a Sancho Pança, na célebre discussão sobre o Elmo de Mambrino e ele mesmo responde; – A mim parece assim, ou assado, e a outro de outra maneira. Uma bacia de barbeiro vale tanto um Elmo de Mambrino se cumpre a função, se permite a mesma ilusão. O poeta Heine, num famoso prefácio a uma edição alemã de 1837, ilustrada por Tony Johannot, lembra os doces momentos da infância passados na companhia do grande livro e diz que chorou quando leu a obra. ―Na minha sinceridade de criança, levava tudo muito a sério; quanto mais grotescamente o destino tratasse o pobre herói, mas eu achava que era preciso ser assim, que o destino de ser ridicularizado fazia parte do heroísmo‖ Alguns estudiosos e leitores do livro identificaram-se mais com um ou outro personagem. Miguel de Unamuno escreve a ―Vida de Don Quijote y Sancho‖. Franz Kafka, na Muralha da China, diz que Sancho Pança ler um grande número de livros de Cavalaria e aventuras, visando afastar o seu demônio, que chamará posteriormente de D. Quixote. Borges, em diálogos com Osvaldo Ferrari, fala da sua identificação com Alonso Quijano, e escreve um VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 45 belo poema em sua homenagem (Sonha Alonso Quijano in A rosa profunda 1975) J. L. Borges comenta: ―Alonso Quijano tomou a decisão de ser D. Q., e saiu da sua biblioteca. Em compensação, eu sou um tímido Alonso Quijano que não saiu da sua biblioteca - ―ou livraria‖-, como se dizia então‖. E Voltaire, outro apaixonado pelo personagem, dizia: ― Eu, como o Quixote, invento paixões para exercitar-me‖. A Livraria do Quixote O Quixote também é prática da crítica literária. No escrutínio na biblioteca do protagonista feito pelo cura e o barbeiro (Parte I, 6), Cervantes comenta a bibliografia de sua obra: as literaturas de Cavalaria, pastoril e épica, em que se formou como leitor e escritor. Através de seus personagens segue exercendo crítica aos livros de cavalaria (I, 32, 47). O Quixote é uma antologia dos gêneros literários do renascimento e da idade média. No Quixote estão presentes a novela pastoril (a Diana Enamorada, a Galatéia), a novela psicológica Italiana, os contos folclóricos, e autobiografia de um soldado (Capitão Cativo, muito autobiográfico) e a novela picaresca. Alguns livros são salvos da fogueira: Tirant lo Blanc (―em verdade vos digo em questão de estilo não existe livro melhor‖), Diana Enamorada (―o melhor entre os semelhantes, que não merecem serem queimados porque são livros de entendimento sem prejuízo de terceiros‖), Amadis de Gaula (um dos mais famosos heróis de cavalaria a quem Dom Quixote sempre faz referencia e procura imitar), El Cid (1140, relato fabuloso da vida de um guerreiro cristão), e outros que acabaram por ―deixar mole os miolos do engenhoso fidalgo‖. O Engenhoso Fidalgo nas artes e na literatura A figura do grande cavaleiro inspirou muitos romances, peças de teatro, balés, óperas, filmes, canções e musicais. O Homem de la Mancha foi eleito o melhor musical dos Estados Unidos em 1966. A versão brasileira desse musical teve Bibi Ferreira como Dulcinéia e Paulo Autran como o Quixote. Massenet (1910), compôs a ópera D. Quixote baseado em um libreto inspirado livremente no grande personagem. Desde o séc. XVII, com o Purcell, até os dias atuais, muitas composições musicais foram inspiradas no ―Cavaleiro da Triste Figura‖. Manuel de Falla, inspirado no cap. XXVI, 2a parte, compôs o ―El Retablo de Maese Pedro‖. Nas artes plásticas, o Dom Quixote e seus personagens foram registrados, a seu estilo, em todos os movimentos artísticos. A primeira edição de VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 46 luxo ilustrada do D. Quixote apareceu em Londres, em 1738, com 67 gravuras de Vanderbank e uma biografia de Cervantes pelo valenciano Gregório Mayans y Siscar. As 370 ilustrações românticas de Gustave Doré (1833- 1883), foram publicadas inicialmente numa bela edição francesa da L. Hachette (1863). Esses desenhos são copiados na maioria das edições modernas, muitas vezes em péssimas impressões e reproduções, Ainda no Romantismo, foi publicada uma ed. em Madrid com 48 litografias coloridas do litógrafo francês Celestino Nanteuil (1813- 1873). O pintor e aquarelista Honoré Daumier (18081879), dedicou parte da sua obra a ilustrar de forma sublime cenas do Quixote. O pintor, músico, poeta e jardineiro catalão Apeles Mestres, ilustrou a edição monumental Barcelonesa de 1879. Em seguida, sairam as belas ilustrações de José Moreno Carbonero (1898), Daniel Urrabieta Vierge (1901-02), Gus Bofa (1926-27), Salvador Dali (1946), Picasso (1955), Portinari (21 desenhos a lápis-de-cor - 1956), Vasco Prado (RS), Newton Navarro, Dorian Gray, Marcelus Bob, Serrâo e muitos outros no Rio Grande do Norte e no mundo que também concorreram para eternizar o Engenhoso Fidalgo e seu par inesquecível. Mesmo quem não conhece a história tem idéia da personagem que povoa a imaginação coletiva da humanidade. Em um livro recente - ―Don Quijote en Arte y Pensamiento de occidente‖ dos autores Allen, J. J. e Finch P. Madrid, Cátedra 2004-, aparece uma ilustração do Quixote, como de autor não identificado. É simplesmente uma ilustração do Candido Portinari que faz parte da série de 21 desenhos que o pintor realizou e foi publicado com glosas de Drummond (RJ 1972/73). É incrível que o nosso maior pintor esteja como autor não identificado num livro de circulação mundial, onde constam grandes pintores, ilustradores e outros nem tanto. Até quando o Brasil vai ser desconhecido, e os nossos grandes pintores não vão constar dos catálogos de ilustradores do célebre personagem? Dom Quixote Imitado, parodiado e criticado Desde a sua publicação, há quatro séculos, nunca faltaram imitadores, estudiosos, analistas e podadores do belo texto castelhano. O romance é mesmo um caleidoscópio que dá margem a muitas interpretações e leituras. O livro foi adaptado e traduzido nos mais diferentes idiomas: existe o Quixote para crianças, da família, historia de antigamente e da carochinha. Não existe um mesmo leitor para cada leitura do livro. Há quem veja no VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 47 Quixote a figura do Cristo, piedoso e bom, ou um El Cid, generoso e nobre, sempre a socorrer quem precisa e libertar os oprimidos, nunca esquecendo as regras da cavalaria andante. Para outros, observa Agrippino Grieco em D. Quixote: Madraço e parasita: Na sátira aos cavaleiros andantes, o autor mostrar-se-ia, antes de Flaubert, atacado pelo mal do bovarysmo, combatendo aquilo que mais amava interiormente, praticando aquele grande erro do ―eu‖ sobre si mesmo, que é a essência da filosofia de Jules Gautier. Para Erich Auerbach, ele não tinha rival na representação da realidade comum como uma festa contínua. Cervantes continua sendo até hoje o grande mágico do riso e das lágrimas e, o D. Q., não é louco nem idiota, mas alguém que joga de cavaleiro andante, e jogar é uma atividade voluntária, ao contrário da loucura e da idiotice, diz Huizinga em Homo Ludens (1944). Outro grande leitor de Cervantes é Miguel de Unamuno, um dos leitores mais referidos e comentados. O cavaleiro da triste figura de Unamuno é um homem que busca a sobrevivência, e cuja loucura é uma cruzada contra a morte. ―Grandiosa era a loucura de D. Q. , e grandiosa porque grandiosa era a raiz de onde brotava o inextinguível anseio de sobreviver, fonte das mais extravagantes loucuras, e também dos mais heróicos atos‖. ―La libertad Sancho, es uno de los más preciosos dones que a los hombres dieram los cielos‖(Dom Quixote II, 58). Não há em toda literatura personagem mais livre. Concordamos com Dostoievski em diário de um escritor, não existe nada mais profundo e poderoso que este livro. Cervantes na Cultura Popular Do Romanceiro ibérico, a literatura de Cordel do NE recebeu forte influência. A literatura de cordel esta, inicialmente, ligada a Romances ou novelas de Cavalaria, histórias de amor, narrativas de guerras, etc. Posteriormente foram incorporados fatos recentes e acontecimentos Sociais. Na Espanha a literatura de Cordel era chamada de ―Pliegos Sueltos‖ (Folhas volantes). Na França, literatura de Colportage. Das novelas citadas por Cervantes, o Bernardo del Carpio fez muito sucesso no Brasil e vinha como capítulo final do Carlos Magno e os 12 pares de França (Flaviense RJ s/d ). Tenho uma edição em tres pliegos do séc. XIX, da História Verdadera Del Valiente Bernardo Del Carpio (Madrid 1879). Ainda no séc. XIX eram editados em Pliegos Sueltos, o Orlando Furioso, Los siete Dabios de Roma, Bastardo de Castilla, Historia de Oliveros de Castilla, El Cid Campeados,etc). O que mostra a vitalidade e perenidade do gênero de cavalaria na VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 48 Espanha. No séc. XX foram impressos no Brasil muitos folhetos de cordel com as historias de cavalaria, principalmente O Carlos Magno cuja história alimentava o imaginário das crianças e estimularia futuros escritores, como aconteceu com José Lins do Rego que com Carlos Magno aprendeu a temer mais a Deus do que com o catecismo. Que grande coisa era ser cristão, filho legítimo de Deus, e brigar com os mouros, turcos, os infiéis.(Rego em Doidinho, 1976). Dom Quixote cita a princesa Megalona na história de Pierres y la Linda Megalona. No entremez Pedro Urdemallas, esse personagem corresponde ao nosso Pedro Malazarte. O Retábulo das Maravilhas é inspirada num conto folclórico antigo. Um enganador profissional que exibia para diversas pessoas uma pintura capaz de identificar os que fossem bastardos. A propriedade desta pintura era ser invisível apenas para os bastardos. Os personagens simulam o tempo todo dizendo ver o que não vêem. No ano do quarto centenário do Quixote (2005), saíram dezenas de edições novas, inclusive em cordel. O renomado escritor e ilustrador J. Borges (1935) escreveu uma versão do Quixote, com ilustrações do também pernambucano Jô Oliveira. Começa assim o Quixote de Borges: Existia uma grande aldeia /igual a outras que havia / e lá tinha um fidalgo / magro, mas sempre comia /carnes, fritos e lentilhas / ovos e tudo que existia. ... Lia tanto que ficava / delirando a vida inteira / e via em sua frente /bruxos, dragão, feiticeira / combates e desafios / que terminavam em asneira. Dom Quixote luta com os cangaceiros do nordeste e Dulcinéia (sua amada imaginada) vira Maria Bonita Lutou com os cangaceiros / perdeu na luta maldita / pensou ser a Dulcinéia /que seu coração palpita / mas quando levantou / era Maria bonita. Dom Quixote pede para que lhe passasse p ungüento de Ferrabrás, pois tava todo ferido da luta com os cangaceiros. Depois D. Quixote luta com o cavaleiro da Branca Lua, em campina Grande. Nesse episodio, um dos mais comoventes do Quixote, D. Quixote perde a batalha. O cavaleiro da Branca Lua era o seu amigo Sansão Carrasco, que lutou para que o Quixote vencido voltasse para casa, como havia sido o trato que é cumprido rigorosamente pela cavalaria andante. D. Quixote volta para casa e passa ser novamente VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 49 Alonso Quijano. Logo morre, pois sua vida era o pelejar e lutar contra as injustiças do mundo. Outra versão cordelizada adaptada do Quixote foi feita pelo Cearense Antônio Klévisson Viana, poeta popular, cartunista e tesoureiro da Academia Brasileira de Cordel. As aventuras de D. Quixote em versos de cordel, Espanha belo pais / foi lá que viveu Miguel / De Cervantes, que escreveu / Com nanquim, pena e papel / A história de Dom Quixote / Que eu refiz em cordel. O Autor pergunta quem foi D. Quixote, para concluir que:- Quem ler o livro / tira algumas boas lições. Quem foi esse Dom Quixote? / Foi um louco, um sonhador? / visionário ou lunático /em um mundo enganador? / ou foi alguém que buscava /Pra vida um real valor? História sem FIM. Era uma vez um Cabreiro, Dizia meu pai quem conta um conto sempre lhe acrescenta um ponto. Sancho (I, 20) conta uma História sem fim ao D. Q. Trezentas cabras precisam atravessar um rio. Chamava-se o cabreiro Lopo Ruiz, que se deixou embeiçar por uma pastora Torralva, Só encontrou uma canoa que cabia uma única cabra. O pescador veio e passou uma cabra, volveu dali a pouco e passou a Segunda, tornou a vir, tornou a passar. Vossa mercê vá contando com todo cuidado as cabras que o cabreiro passa, porque se erra não há forma de reatar a história e acabou-se a história.... - Homem parte do princípio que já passou todas, interrompeu D. Q. com impaciência. - Quantas é que passaram até agora? - Com o diabo querias tu que as contasse? [...] Não contou, assim eu não posso passar adiante. Bendito e louvado, estar meu conto acabado. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 50 Cascudo (1972), registra uma variante dessa história em Deixe os patos passar. Chove muito e se formou um rio muito largo. A 1a fila entrou na água, mas havia correnteza e os bichos custavam e custavam e custavam a vencer, andando. Em Portugal, Teófilo Braga em Contos Tradicionais de Portugal, registrou uma versão parecida. Era uma vez um pastor, e andava no mato com duzentos carneiros, veio uma trovoada, e ele quis recolher o rebanho para o curral, chamou o carneiro e pôs - se a caminho. Chegou ao pé de um rio muito fundo, onde havia uma ponte, e de cada vez só podia passar um carneiro. Dom Quixote no Brasil No Brasil, a 1a referência explicita ao livro de Cervantes, se encontra em Gregório de Matos, quando ele descreve num poema ―as festas a cavalo que se fizeram no terreyro em louvor das onze mil virgens. [...] Uma aguilhada por lança trabalhava a meio trote, qual o moço de Dom Quixote, a quem chamam Sancho Pança: [...] Num outro poema, Gregório fala: ―nas manhas que ele tem de D. Q.‖. Em 1705, Antonio José da Silva, o Judeu, escreveu a peça ―A vida do Grande D. Q. de la Mancha e do gordo Sancho Pança‖. Peça de teatro, ou ópera jocosa que estreou em 1733 no teatro do Bairro alto, em Lisboa, pela companhia do cômico Espanhol Antonio Rodriguez. [...] Antonio José ver a novela de Cervantes como uma peça cômica, sem maiores significações filosóficas. Em 1794, sai a 1a tradução do D. Q. para o Português. Tradução anônima em 6v. Em 1876- 1878 é publicada a vulgata das edições do Quixote em língua portuguesa: A edição monumental com tradução dos Viscondes de Castilho e de Azevedo, e prefácio de Pinheiros Chagas que também colaborou na tradução da 2a parte.. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 51 Muitos escritores brasileiros referiram, fizeram citações e poemas em homenagem ao D. Q. e seus personagens. Machado de Assis faz referencia inúmeras vezes ao livro D.Q. em Memórias Póstumas de Brás Cubas. Em sua biblioteca particular tinha uma edição do Quixote em Francês. Num poema da juventude, Machado de Assis, escreve: [...] ―Cognac! - inspirador de ledos sonhos, Excitante licor de amor ardente, Uma tua garrafa e o Dom Quixote, É passatempo amável!‖ Dom Quixote comparece ao sítio do pica pau amarelo, no D. Q. das crianças de Monteiro Lobato. O próprio Cervantes aparece nas Minas de Prata de José de Alencar, e o Capitão Vitorino - um dos personagens de Fogo Morto-, de José Lins do Rego, anda nos campos com seu cavalo debilitado (tipo o Rocinante do Quixote), sempre a defender seus princípios, mesmo que com isso tenha que se haver com encrencas. Encontramos a dupla Quixote-Sancho nas artes e literatura, bem como na vida. Um complementa o outro. No romance ―O Missionário‖ (1891), de Inglês de Sousa, a dupla formada por Antonio Morais - Macário (padre e sacristão) tem correspondência nos protagonistas da imortal novela Cervantina. Quanto ao ensaio Brasileiro, pode-se destacar os trabalhos de Brito Broca, Josué Montello, Tiago Dantas, Agrippino Grieco, Viana Moog, João Alexandre Barbosa, Edgar Barbosa, João da Mata e Maria Augusta da Costa Vieira, todos referidos na bibliografia.. Usos e Costumes - Pouco Sal na moleira - pouco juízo - Hojas de Romero (folhas de alecrim). Mastigadas e com um pouco de sal, posto na orelha sangrenta. Esse ungüento semelhava ao de Ferrabraz que a tudo curava. - Estava apaixonado até os fígados. O fígado era para o povo a víscera essencial. (Horácio – Odes) VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 52 - Alho: Não comer alho para que não tomem por odor a vilania. Na Espanha de Cervantes, o alho era um alimento de pessoas humildes e do campo. No livro ―O Folklore nos Autos Camoneanos‖ (1950), Cascudo encontra nos Autos de Camões, a expressão: ―No Alho a Mis Male Culpa‖, comenta: ―O Alho possui uma literatura universal e vasta. Seu olor afastava os feitiços e também as amorosas o detestavam‖ Por seu odor forte os namorados evitam.Continua Cascudo, evitava tempestades e seres sobrenaturais. Dom Quixote toma a decisão de se fazer pastor. Depois de desencantado com a vida de cavaleiro errante e ter perdido a batalha com o cavaleiro da Branca Lua, Dom Quixote resolve ser pastor. A minha filha Sanchica nos levará comida no aprisco. Mas, esperem lá, a pequena não é nenhuma peste e há pastores que são mais manhosos do que parecem, e não queria que fosse buscar lã e voltasse tosquiada, porque tanto no campo como nas cidades andam amores de companhia com os maus desejos; e nas choças dos pegureiros (guardador de gados) acontece o mesmo que no palácio dos reis; e, tirada a causa tira- se o efeito, e olhos que não vêem coração que não suspira, e mais vale salteador que sai a estrada, que namorado que ajoelha. - Basta de rifões, Sancho - acudiu D. Q.; um só dos que disseste é suficiente pra nos fazer o teu pensamento; e muitas vezes te tenho aconselhado que não sejas tão pródigo de provérbios; mas parece-me que é pregar no deserto. Minha mãe a castigar-me e eu com o pião às voltas. - Parece-me, respondeu Sancho, que vossa mercê é como o outro que diz: Disse a sertã à caldeira, tira-te pra lá que me enfarruscas (Sancho II, 67) - Está-me a repreender e a aconselhar que não diga rifões e enfia-nos aos pares. - nota, Sancho - disse D. Quixote. - que eu trago os rifões a propósito e ajeitam-se ao que digo, como os anéis aos dedos; mas tu, tanto os puxa pelos cabelos que os arrastas, em vez de os guiar; e, se bem me lembro, já VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 53 de outra vez te disse que os rifões são sentenças breves, tiradas da experiência e das especulações dos nossos sábios, e os rifões que não vem de molde é mais disparate que sentença. Paramiologia O Dom Quixote é um tratado de paramiologia, onde abundam os rifões, provérbios, frases proverbiais, anexins e outros tipos de parêmias. 1-As sentenças ou máximas contém uma sabedoria popular Mas vale bom nome que muita riqueza (Sancho II, 33) Eclesiastes VII, 2 2-Provérbio Sempre ouvi dizer: Quem canta seus males espanta (I, 22) Virgílio - Geórgica I, 293 (Cascudo 1952) 3- Adágio [...] cumprindo-se o adágio de que às vezes paga o justo pelo pecador (I, 7.) Una golondrina sola não hace verano (I, 13), Uma andorinha só não faz verão Uma andorinha só não faz primavera Parece-me, Sancho, que não há rifão que não seja verdadeiro, porque todos eles contêm sentenças consagradas pela experiência, mãe de todo o saber, teoriza, diz Dom Quixote. . A valorização da experiência é uma prática comum no renascimento. Conselhos de Dom Quixote a Sancho Pança, antes que seu escudeiro fosse governar a ilha baratária. -Nunca interpretes arbitrariamente a lei, como costumam fazer os ignorantes que têm presunção de ter grandeza. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 54 -Anda devagar, fala pausadamente, mas não de forma que pareça que te escutas a ti mesmo, porque toda afetação é má. A Legenda Áurea, Dom Quixote e o Exemplum Lenda (de ―legenda‖, do verbo latino ―légere‖= ler)era o nome dado antigamente a uma narrativa sobre a vida dos santos e mártires. Da Legenda áurea derivam o nome de todas as outras lendas. Após um período de mais de 700 anos é lançado no Brasil pela Companhia das Letras, um dos livros mais importantes do medievo: ―Legenda Áurea‖. Legenda áurea, legenda dourada, legendæ sanctorum, é obra fundamental da cultura ocidental e seus 178 capítulos constituem a suma hagiográfica latina da idade média. O Brasil caricia de uma tradução desta obra magna da cultura cristã. A bela edição brasileira foi traduzida do Latim e comentada por Hilário Franco Júnior, e lançada pela Companhia das Letras. O livro, escrito no século XIII pelo frei Dominicano Jacopo de Varazze, latinizado para ―Jacobus de Voragine‖, conta a vida e história dos santos mais conhecidos: São Jorge, São Nicolau, Santo Antônio, São Francisco, São João Batista e São Sebastião. A edição brasileira traz um rico material iconográfico e reproduções de belas iluminuras, seguindo outras milhares de edições. Esse livro, escrito numa linguagem acessível ao grande público, fez muito sucesso e influenciou definitivamente a arte cristã. É impossível imaginar um quadro de Fra Angélico, Andrea de Castagno, Pierro della Francesca ou um afresco de Giotto sem a forte influência desse livro de inspiração divina. Até mesmo as grandes catedrais e seus belos vitrais têm inspiração no ―Legenda Áurea‖. A morte dos santos pode ser trágica, mas o demônio, em geral, sai vencido como nas lendas populares do demônio logrado. Na apresentação à edição Brasileira foi escolhido um belo ―exemplum‖ que está na vida de São Nicolau: ―De Sancto Nicholao‖ - Nicholaus dicitur a nichos, inde Nicholaus quasi uictoria populi-, Nicolau vem de nikos, que significa ―vitória‖ e de laos, ‖povo‖, i.e., vitória do povo. Um Homem havia tomado de um judeu certa soma de dinheiro, em falta de outra garantia jurara sobre o altar de São Nicolau que a devolveria assim que pudesse. Muito tempo depois o judeu reclamou o dinheiro, mas o devedor alegou que já havia pagado dívida. O Judeu levou-o a juízo e exigiu que afirmasse sob juramento que havia devolvido o VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 55 dinheiro. Como precisasse de apoio para andar, o homem ali compareceu com uma bengala, que era oca e que ele havia enchido de moedas de ouro. Quando foi prestar juramento, pediu que o judeu a segurasse e jurou ter restituído mais do que havia recebido. Após o juramento, reclamou a bengala de volta e o judeu, que não suspeitava da artimanha, devolveu-a. No caminho de volta para casa, o culpado sentiu um sono repentino, adormeceu num cruzamento e uma carroça que vinha com velocidade matou-o, quebrou a bengala, e o ouro que a enchia espalhou-se pelo chão. Avisado, o judeu acorreu ao local e entendeu a artimanha de que havia sido vítima. Tendo alguém sugerido que pegasse seu ouro, recusou taxativamente, a não ser que o morto voltasse à vida pelos méritos do bem aventurado. Nicolau, acrescentando que se tal acontecesse ele receberia o batismo e se tornaria cristão. incontinenti, o morto ressuscitou e o judeu foi batizado em nome de cristo. [cap. III] O ―exemplum‖ medieval é uma historieta edificante, na maioria das vezes para uso dos pregadores, que gostam de introduzir exempla nos seus discursos para que os ouvintes assimilem melhor uma lição salutar (Jacques le Goff). O século XIII foi o grande século dos ―exemplum‖, mas a fórmula continuaria sendo empregada nas narrativas romanescas e historietas populares. Mais de três séculos após o lançamento do livro Legenda Áurea, Miguel de Cervantes Saavedra lança, em 1605 - 1615, o ―Dom Quixote de la Mancha. No Dom Quixote, o ―exemplum‖ de São Nicolau é recontado por Cervantes: Perante o governador da ilha Baratária, Sancho Pança, apresentam - se dois anciões, um dos quais trazia uma cana por báculo, e o sem bordão disse: lhe prazer e fazer boa obra, com a condição de os devolvesse quando lhos pedisse. Passaram-se muitos dias sem que eu reclamasse, pra o não colocar em maior necessidade, por mos devolver, mais do que a que ele tinha quando eu lhos emprestei. Pareceu-me, porém, que se descuidava na paga e reclamei- os uma e muitas vezes. Nega-se, contudo, a pagar-me e diz que nunca lhe emprestei tais dez escudos e, se os emprestei, já os devolveu. Não tenho testemunhas, nem do pagamento, porque não me pagou. Quereria que vosmecê o fizesse prestar juramento; se jurar que me pagou, perdôo- lho a divida, perante os homens e perante Deus. − Que dizeis a isso, bom velho do báculo? − perguntou Sancho. A isso respondeu o velho: VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 56 − Eu, senhor, confesso que ele mos emprestou. Baixe vosmecê essa vara, pois, como ele confia em meu juramento, jurarei como os devolvi e paguei, real e verdadeiramente. Baixou o governador a vara e, entretanto, o velho do báculo entregou a cana a outro velho, para que a segurasse enquanto jurava, pois o embaraçava muito. Em seguida pôs a mão sobre a cruz da vara, dizendo ser verdade haverem-lhe emprestado aqueles dez escudos que lhe reclamavam; ele os havia devolvido, de mão para mão, e era por não se lembrar disso que de vez em quando voltava o credor a pedi-los. Vendo isso, o grande governador perguntou ao credor que respondia ao afirmado por seu oponente. Disse ele que, sem dúvida alguma, seu devedor estava dizendo a verdade, pois o considerava homem de bem e bom cristão; ele, por certo se esquecera de como e quando os havia recebido. Tornou o devedor a tomar seu báculo e, baixando a cabeça, saiu. [...]. Sancho esteve pensativo por algum momento. Em seguida, mandou chamarem o velho do bordão, que já se fora. − Daí- me, bom homem, esse báculo, pois preciso dele. − De muita boa - vontade − respondeu o velho. − Eí-lo aqui, senhor.. E colocou a cana na mão. Apanhou-a Sancho e, dando-a ao outro velho, falou: Ide com Deus que já estás pago. − Eu, senhor? − redargüiu o velho − Pois esta cana vale dez escudos de ouro? − Sim − disse o governador. − E se não valer sou o maior asno do mundo. E agora se verá se tenho ou não miolos para governar todo um reino. E mandou que, ali, diante de todos se quebrasse e abrisse a cana. Assim se fez, e dentro dela foram achados dez escudos de ouro. Ficaram todos admirados e tiveram seu governador por um novo Salomão. (II, XLV). Os contos e histórias de ―exemplum‖ são milenares. Na idade média, os religiosos e professores faziam grande uso de contos morais e/ou de exemplos, quando desejavam transmitir uma mensagem edificante, de astúcia ou agudeza de caráter. Multiplicavam-se as coleções dos Las Vitæ Patrum, el Valério Máximo, La Gesta Romanorum e Las Disciplinas Clericales, do judeu convertido Pedro Afonso (séc. XIII). Na divisão e seleção de contos perpetuada por Cascudo, os contos de exemplos aparecem na sua divisão, onde estão incluídos os célebres Joãozinho e Maria, o Pequeno Polegar e as Aventuras de Pedro Malazarte. Todos os povos possuem os seus contos de exemplos, e é interessante observar VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 57 como esses contos são transplantados de região para região, de país para país, mantendo as suas matrizes originais que remontam à origem homem imaginando e sonhando. São variações sem fim de um mesmo tema, sempre com o mesmo objetivo: o EXEMPLUM. Conclusões Nos seus quatros séculos de existência, o livro Dom Quixote de la Mancha do escrito espanhol Miguel de Cervantes continua atualíssimo e sendo editado nos quatro cantos do mundo. No ano do seu 4º centenário foram editadas dezenas de edições nas mais diferentes formas. Edições de Luxo, populares e em cordel. O Dom Quixote está muito presente na cultura brasileira e é uma fonte inesgotável de gêneros literários, ditos populares, romances de cavalaria, novelas e contos populares que remontam à idade média, e estão muito presentes na cultura popular o oral do nordeste brasileiro. Câmara Cascudo fez a ponte entre o medievo e a cultura popular brasileira, através do Quixote. A vulgarização desse livro-fundador é o que pretende esse trabalho que vem sendo feito acompanhado de palestras, exposições, comemorações do dia mundial do livro em homenagem a Cervantes e o seu livro eterno. A leitura desse livro delicioso é fundamental para criar o gosto pela leitura, aguçar a imaginação e despertar na juventude a busca por justiça, solidariedade e um mundo mais ético e amigo. É isso que mostra o Quixote e era isso que pretendíamos nesse trabalho que é para toda vida, Continuamos estudando o Quixote, uma fonte inesgotável de prazer, exemplos e encantamentos. Bibliografia A Morte dos 12 pares de França Editor-Proprietário José Bernardo da Silva Cordel 32p. Juazeiro -CE 1963. preço: 50 cruzeiros Abreu, M. F. Cervantes no Romantismo Português Editora Estampa Lisboa 1994 ALENCAR, José de As minas de prata vol. 2/3 3a ed. Prefácio de Pedro Calmon e Wilson Lousada. RJ Livraria José Olympio Editora Ilust.: Santa Rosa ANGELI, José Adaptação em Portugues do Dom Quixote - O cavaleiro da triste figura. Série reencontro Ed. Scipione 20o ed. 1998. Il. ANDRADE, Carlos Drummond Disquisição na Insônia In D. Quixote: Cervantes, Portinari e Drummond. RJ. Diagraphis Editora Ltda 1972-3. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 58 ASSIS, Machado Cognac in: Poesias coligidas / dispersas Obra Completa Vol. III Ed. Nova Aguilar S.A 1992 RJ ______. Aquiles, Enéas, Dom Quixote, Rocambole in: Crônicas/ História de 15 dias/ Livro II Obra Completa Vol. II RJ Ed. Nova Aguilar S. A. 1992. AUERBACH, Erich. A Dulcinéia Encantada. In: Mimesis: A representação da realidade na literatura ocidental. Trad. Suzi Sperber 2.ed. São Paulo: Perspectiva, 1987. p. 299-320. AZEVÊDO, Alvares de (1831- 1852) Namoro a Cavalo in: Magalhães Junior, Raymundo Antologia de Humorismo e Sátira Ed. Civilização Brasileira S.A Col. Vera Cruz (Literatura Brasileira) 1957 BARBOSA, Edgar O cavaleiro Cervantes in: Imagens do Tempo Natal Imprensa Universitária 1966 ______.Três Ensaios: Camões Lírico, A justiça no Reino de Quixote e Machado de Assis em alguns dos seus tipos Natal Tempo Universitário Revista de Cultura da UFRN Vol. 1 No 2 1976. BARBOSA, João Alexandre Dimensões do Quixote in: Alguma Crítica- Ateliê Editorial 2002. ______.Ainda Cervantes in: Alguma Crítica Ateliê-Editorial 2002 ______.Borges, Leitor do Quixote in: Alguma Crítica Ateliê Editorial 2002 Nota: Esses ensaios foram publicados inicialmente na Revista Cult Ano II, No 21 e 22 e Ano III No 25 BILAC, Olavo Conferências Literárias RJ Kosmos 1906 BORGES J. Dom Quixote adaptado da obra de Miguel de Cervantes em Cordel Ilustrador Jô Oliveira Entrelivros Livraria Brasília 2005 BROCA, Brito Introdução ao Dom Quixote de la Mancha RJ 2a ed., Livraria José Olympio Editora. CASCUDO, Luis da Câmara Com Dom Quixote no Folclore Nacional Introdução ao Dom Quixote de la Mancha RJ 2a ed., Livraria José Olympio Publicado inicialmente en la Revista de Dialectologia e Tradiciones Populares Tomo VIII. Madrid Cuaderno 3o C. Bermejo, Impressor 1952 ______. Dom Quixote de la Mancha: Hipeerstesia do Real. In: Prelúdio e Fuga do Real. Natal: Fundação José Augusto, 1974. p. 157-164. ______. Cinco livros do Povo RJ José Olympio 1953 VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 59 ______. Dicionário do Folclore Brasileiro EDIOURO 1972 CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de O engenhoso fidalgo D. Quixote de la Mancha ed. bilíngüe, com trad. Sérgio Molina. Gravuras de Gustave Doré Editora 34 736 p 2002 ______. Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de la Mancha. Trad. Viscondes de Castilho e de Azevedo, com desenhos de Gustave Doré. Porto 1876-1878 2v in fólio, ______. Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de la Mancha Lello e Irmão Editores, Porto 1962. ______. Dom Quixote de La Mancha trad. Almir de Andrade e Milton Amado. Int. Brito Broca. Ediouro 3v 1412 p 2002 ______. O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de la Mancha. Trad. Eugênio Amado. 2ª ed. Belo Horizonte: Itatiaia; Brasília: INL, Fundação Nacional Pró-Memória, 1984. 2v ______. O Engenhoso Fidalgo D. Quichote de la Mancha. Tradução do Visconde de Benalcanfor. Auxiliado para mais fácil interpretação do texto por D. Luis Breton y Vedra. Desenhos de Manuel de Macedo - Gravuras de D. José Severini. Lisboa, Parceria Antonio Maria Pereira, 1930, 2 vols. de 24 x 16,8 cm., (68) 445 pp., 1 folha s/n., (9) 524 pp., 1 folha s/n.; 30 pranchas. ______. L‘ INGENIEUX HIDALGO DON QUICHOTTE DE LA MANCHE Paris Librairie de L. Hachette 1869. Two large volume set 37x28.5 cm, in folio. Pages XXIV, 586p, 636p with 370 illustrations by Gustave Doré. ______.Don Quichotte, Gérard Garouste a illustré ce grand texte de l'humanité de cent cinquante magnifiques gouaches. Ed. Diane Selliers França. 1998 ______. Editions Bordas Paris 1949 in12 2 volumes reliure editeur, préface de Ventura Garcia Calderon, edition illustrée, annoté Robert Larrieur 416/ 441 pages COSTA, João da Mata QUIXOTE: Quatro Séculos de Encantamento. Revista de Cultura Preá No 15 nov/dez 2005 Fundação José Augusto Natal - RN CRESPO, Antônio Cândido Gonçalves A morte de D.Quixote In: Quaresma, Custódio Primores da Poesia Portuguesa RJ Livraria Quaresma 1922, 1924 (reed.) Cunha, Euclides da D.Quixote In: Cadernos de Literatura Brasileira SP Instituto Moeira Sales 2002. DANTAS, San Tiago D. Quixote um apólogo da alma Brasília Fundação UNB Série Mneumósis 1997 Reed. da Conferencia realizada em comemoração ao 4o Centenário de Cervantes (1947). VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 60 Diversos - Cervantes (Biografia) Gigantes da Literatura Universal Editorial Verbo Encadernação de Editor 26 volumes FLAVIENSE, A.C.G. História do Imperador Carlos Magno e dos doze pares de França dividida em duas partes e nove livros e seguida da de Bernardo Del Carpio que venceu em batalha aos doze pares de Francça. Livraria Império RJ s.d. FREIRE, Gilberto O Exemplo de Cervantes. In: Seleta para jovens. Organizada pelo Autor com a colaboração de Maria Elisa Dias Collier. 4.ed. Rio de Janeiro: J. Olympio; Brasília: INL, 1980. p. 22-25. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda e RÓNAI, Paulo Riconete e Cortadillo da Novelas exemplares de Miguel de Cervantes Saavedra in: Mar de Histórias 2a ed. Antologia do Conto Mundial GAYANGOS, Don Pascual de Catalogo Razonado de los Libros de Caballerias que hay em lengua castellana o portuguesa, hasta el año 1800. Madrid 1874 GRIECO, Agrippino Dom Quixote Madraço e Parasita in: Estrangeiros Obras Completas Vol. 5 2a ed. Livraria José Olympio EdItora 1947 GULLAR, Ferreira Traduação e adaptação do Dom Quixote de la Mancha de Miguel de Cervantes Ed. Revan 2002 Hª. VERDADERA DEL VALIENTE BERNARDO DEL CARPIO. his/Anónimo. Sacada con toda individualidad de los más insignes historiadores españoles. Nueva edición corregida y aumentada. (Tres pliegos). Reproduce la edición de 1879 LESSA, Orígenes Traduação e adaptação do Dom Quixote de la Mancha de LIMA, Augusto (1858-1934) Dom Quixote in: Biblioteca Internacional de Obras Célebres 24v. Vol. XI p. 5357. LIMA Junior, Augusto (1882-1948) Dom Quixote in: Canções do Tempo Antigo BH Edições do Autor 1966 LOBATO, Monteiro (1882- 1948) D. Quixote das Crianças contada por Dona Benta Vol. 9 Obras Completas de Monteiro Lobato Ed. Brasiliense Limitada 1950 MACHADO, Aníbal Monteiro (1894-1964) Dom Quixote in: A Arte de Viver e de Outras artes Cadernos de João, ensaios, crítica dispersa, auto retratos Graphia Editorial 1994 MARIANO, Olegário Cavaleiro da Triste Figura in: Cantigas de encurtar Caminhos Poemas Portugal Lello & Irmãos – Editores Porto 1954. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 61 MATOS, Gregório de Poema que descreve as festas de cavalo que se fizeram no terreiro [de Jesus] em louvor das onze mil virgens ~1694/ 1687 in: Obras Completas p. 489 vol.1 MAYANS, Gregorio. VIDA DE MIGUEL DE CERVANTES SAAVEDRA. Edición facsímil. - Enc. guaflex, con orla dorada. MENDES, Murilo Homenagem a Cervantes in: Tempo Espanhol (1955-1958) RJ Poesia Completa & Prosa Ed. Nova Aguillar 1994 MEYER, Augusto A Sobra do Leitor in: A sombra da estante RJ Liv. José Olynpio Ed. 1947, p. 45-58 MONTEMAYOR, Jorge de. DIANA, LA. Seguida de LA DIANA ENAMORADA. Enc. tela. MOOG, Viana Heróis da Decadência in: Obras de Vianna Moog Vol 5 RJ Ed. Delta 1966 PAES, José Paulo Soneto Quixotesco in: Um por Todos Poesia Reunida Ed. Brasiliense 1986 PORTINARI, Cândido Reprodução dos 21 desenhos ilustrando cenas do D. Quixote de la mancha in: Diagraphis Editora RJ 1973 /1974. REGO, José Lins do Fogo Morto Ficção Completa Vol 2 Ed. Nova Aguilar RJ 1976 ______. Doidinho Ficção completa vol. 1 Ed. Nova Aguilar RJ 1976 ROJAS, Fernando de. CELESTINA, LA. Libro de Calizto y melibea y de la puta vieja Celestina. Introducción y notas Manuel Criado de Val. 20 UNAMUNO, Miguel de. La vida es Sueño; El Sepulcro de Don Quijote; Don Quijote y Bolívar. In:. Antología. Prólogo de José Luis L. Aranguren. México: Fondo de Cultura Económica, 1992. p. 234-243; 244-255; 256-263. ______. Vida de Don Quijote y Sancho. Madrid: Alianza Editorial, 1987. VAZZARI, Jacopo Legenda áurea Tradução de Hilário Franco Junior. Companhia das Letras 2003 VIANA, A. K. As aventuras de Dom Quixote em verso de cordel Tupyinanquim Editora Edições livro Técnico Editora Coqueiro Fortaleza - CE 2005. VIEIRA, Maria Augusta da Costa. O Dito pelo Não-dito: Paradoxos de Dom Quixote. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Fapesp, Ensaios de Cultura 14, 192 pp 1998. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 62 Sessão de Comunicação: AS ARTES VISUAIS BARROCAS (pintura, arquitetura, escultura e demais expressões de artes) Coordenadores: Prof. Dr. Everardo Araújo Ramos Prof. Dr. Francisco Zaragoza Zaldívar 1. O POEMA COMO ESPAÇO CRÍTICO DA ARTE O BARROCO PRODUZIDO POR“JOSEPHA AYALA FIGUEIRA”NA POESIA DE “FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO”11 José Antônio Rodrigues Júnior (Universidade Federal do Rio Grande do Norte) RESUMO A metalinguagem se apresenta como um dos principais aspectos característicos da arte contemporânea. A poesia, na qualidade de objeto artístico não poderia ausentar-se de pensar-se enquantoArte. Arte que tematizando Arte reflete acerca de si, passando a engendrar novas possibilidades estéticas, abrindo margens para a crítica de arte no espaço literário propriamente dito. Nosso trabalho se pauta em apresentar uma leitura da pintura de Josepha de Óbidos (Sevilha, Fevereiro de 1630 — Óbidos, 22 de Julho de 1684), a partir do poema ―Óbidos (Josepha)‖ (1971) de FiamaHasse Pais Brandão (Lisboa, 1938 -2007). PALAVRAS-CHAVE Metalinguagem. Poesia. Artes. Fiama. Josepha. 1. Metalinguagem, Arte e Literatura ―A excelência de um crítico se medenão por sua argumentação, mas pela qualidade de sua escolha‖ (Ezra Pound) 11 Trabalho produzido sob orientação do prof. Márcio de Lima Dantas. Área de estudos em literatura portuguesa (UFRN). VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 63 ―um poema não é mera expressão de emoções e experiências individuais. Pelo contrário, estas só se tornam artísticas quando, exatamente em virtude da especificação de seu tomar-forma estético, adquirem participação no universal‖ (T. Adorno) Sempre é uma tarefa difícil discorrer acerca da arte. Desde Platão há uma busca do Ocidente que visa encontrar uma natureza ou essência da Arte. Há séculos existe uma obsessão por parte dos que se debruçam sobre as artes visando definir as semelhançasdos objetos artísticos entre si, autentificando uma natureza da obra de arte. Nesse sentido, para os Antigos ―o belo‖, o bom e o verdadeiro formavam uma unidade com a obra de arte, caracterizando sua ―virtuosis‖ artistica. A essência do belo seria alcançada identificando-a com o bom, tendo em conta os valores morais. Na Idade Média surgiu a intenção de estudar a estética independente de outros ramos filosóficos. Mas é em Hegel, após Kant, que temos a grande mudança nas concepções da ―morte da arte‖ enquanto Arte que se relaciona com a natureza ou que respeitava algum equilíbrio entre razão e religiosidade. O que acontece é que, para o filósofo, essa concepção da arte do belo iniciada por Platão perde seu valor para o homem moderno. Consequentemente, a arte que nasce é uma arte reflexiva em si, passando a, nela e por-si, engendrar ideias sobre ―si‖ com mais recorrência, no retorno do espírito em sua autoconsciência. Sendo assim, a filosofia de Hegel se apresenta como um sistema que se constitui na ―história‖. O espírito percorre a trajetória onde ele se revela nas suas diferentesformas, desde as mais elementares e ordinárias até as mais complexase sofisticadas. A razão se lança no mundo e se reconhece nas coisas quelhe pertencem; depois, retorna a si e se põe diante da sua necessidade e liberdade. O espírito é algo que é inexoravelmente diferente e oposto aosfenômenos sensíveis, e só por astúcia é que vai até eles. Nesse sentido, aarte é um momento de alteridade da ―Idéia‖, quando ela tem de ser reconhecidanas obras estéticas. No trabalho de regresso do espírito a si mesmo é que se coloca a arte: ela é o primeiro momento do retorno e por issotambém se situa numa posição ―inferior‖ à religião e à filosofia. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 64 Note-se que, na estética de Hegel,o ―EspíritoAbsoluto‖ deve necessariamente percorrer todo o caminho até a suaautoconsciência, então, a arte deve ainda ser superada. É nesta acepção quepodemos dizer que a arte morre, embora o espírito devesse passar irremediavelmentepor ela. A arte é superada em Hegel, porque há no seu sistema uma ―teleologia‖ histórica que aponta para a reconciliação dos contrários na Idéia. O Espíritoretorna a si e no seuvoltar-se a arte, aparece como um momento histórico necessário. A arte ainda é a expressão do corte, da cisão espírito-natureza,liberdade-necessidade, conteúdo-forma, sujeito-predicado, consciênciarealidade. A reconciliação é a unidade do espírito consigo mesmo, na suaeternidade, infinitude e universalidade, independente de qualquer elementosensível e, na medida em que a arte se encontra constitutivamente presa àsensibilidade, ela não pode realizar a conciliação. Em outras palavras: as obras de arte, enquanto algo finito e transitório não podem encerrar oinfinito e o eterno; enquanto algo natural e mundano, não podem deixar transparecer na sua plenitudeo plano do divino e do sagrado. A arte constitui aindaum momento negativo do espírito, aquilo que precisa ser superado. Evidentemente, as diversas maneiras de se conceber as obras de arte, passaram, ao longo do tempo, a possuir características tão contrárias entre si que, ao final das contas, a posição platônica de definir a arte associada a beleza tornou-se obsoleta. Temos exemplos disso, desde a modernidade, com o Barroco arte de Goya (1746-1828), as descidas aos infernos de Blake (1757-1827), colimando nos traços deBacom(1909-1992) e todas as vanguardas de ―ismos‖ no início do século XX. Portanto, surgiram, juntamente com o caminhar do Chronosmomentos outros em que a relação de reprodução do real em consonância à beleza do mundonão poderiam mais ter o mesmo valor estético que na antiguidade. Descobriu-se a natureza medonha, ou grotesca, do humano. Machado de Assis exemplifica bem quando diz que ―era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel‖ (ASSIS: 1998, pg 102) Bem como o retorno do espirito artístico na arte quando esta fala de si. A epígrafe no início do texto foi a melhor maneira que encontrei para iniciar esse texto que foi modestamente construído como objetivo de tratar de uma das temáticas que acompanharam a história do homem ocidental há bastante tempo: a arte que tematiza arte. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 65 Vestígios históricos. Como sabemos a literatura não poderia ter ficado de fora dessas transformações do modus operandi da apresentação artística através da escrita. Com efeito, no percurso do tempo de vida da literatura Ocidental, cujos registros primordiais de que se tem noticia são encontrados nas obras homéricas. Hoje em dia, nem de perto, os escritores produzem textos literários à maneira homérica; mas cabe ressaltar que sua relevância para o estado da arte atual é inconteste. O texto metalinguístico passa a revelar o processo de produção daobra. Nessa medida, o expediente metalinguístico irá propiciar um perfil mais ativo de leitor, contrapondo-se ao atocontemplativo da obra de arte, em que o público, passivo, dela não ―participava‖. Portanto, a arte quando metalinguística se volta para seu objeto concebendoo na qualidade de uma realdade designos, constiuindo-se em ―linguagem objeto‖. Vejamos o que diz Fiama em seu prefácio do livro que retiramos para a apreciação de livro a poeta sugere: ―[...] uma obra tão opaca que rejeite leituras. 11. ou seja que sendo a crítica um privilégio que coloque a crítica ao seu serviço, 12. sendo a crítica um privilégio e não uma missão pública, sequer universitária [...] levando a crítica a desistir de proclamar a abertura da obra [...] 49. nada deve, pois, impedir que se conheça a implícitra coesão hermética que nelas existe pela síntese pessoal do pensamento e das práticas do autor.‖ (BRANDÂO: 1976, pg.11). De fato ―Homenagemàliteratura‖ (1976), por se tratar de um livro explicitamente metalinguístico, a poeta sugere para a poética do hermetismo não a abertura, mas um fechamento, a crítica pela crítica, ela deixa claro seu objetivo. Eis o ato incitador e instigador para a romper definitivamente com o posicionamento do leitor passivo. Mas, isso não é nehuma novidade. Ao longo da história da literatura Ocidental temos as propostas poéticas de poetas para uma poética ideal da arte da escritura. A lírica de Sapho (612 a. C.) não poderia dizer de forma mais antiga (nunca antiquada) e atual esse desejo que a arte tem em se mostrar refletindo-se no seguinte fragmento da ―Ode à Afrodite:―[...] é maleável a mente.Eros faz nosso pensamento revirarse‖o que conduz a Peter Green com relação a ―filha imortal de Afrodite‖ afirmar: VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 66 ―El sacramento de lapoesía, ladulceago- hainia de lacreación. Palabras aladas, lashabíallamado Homero, y hasta ahorala frase no había significado nada para mi‖(GREEN: 1971, pg. 107). Horácio completaem sua ―Ode à Baco‖ ―Crede-me, ó pósteros: eu vi Baco, que, sôbre, uma rocha distante, ensinava canções; e as Ninfas e os Sátiros, com os seus pés de cabra, de ouvidos atentos, aprendiam‖ (HORÁCIO: 1962, pg. 16). Ora são relações da poesia ainda incitada pelos deuses, musas etc. Note-se que mesmo no renascimento, momento histórico posterior que, no entanto, procura ver renascida essa cultura, temoso seguinte nas palavras de Camões (1524-1580): ―E aqueles que por obras valerosas Se vão da lei da Morte libertando, Cantando espalharei por toda parte, Se a tanto me ajudar o engenho e arte.‖ (CAMÕES: 1986, pg 7) Reine Maria Rilke (1875-1926) com o ―Torso arcaico de Apolo‖ discute as possibilidades do entendimento artístico por meio dos vestígios residuais do que nos legara a cultura helênica. Segue o soneto traduzido por Manuel Bandeira: ―Não sabemos como era a cabeça, que falta, de pupilas amadurecidas. Porém o torso arde ainda como um candelabro e tem, só que meio apagada, a luz do olhar, que salta e brilha. Se não fosse assim, a curva rara do peito não deslumbraria, nem achar caminho poderia um sorriso e baixar da anca suave ao centro onde o sexo se alteara. Não fosse assim, seria essa estátua VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 67 uma mera pedra, um desfigurado mármore, e nem já resplandecera mais como pele de fera. Seus limites não transporia desmedida como uma estrela; pois ali ponto não há que não te mire. Força é mudares de vida.‖12 ―Críticamente‖ inundado de ―meta-poiesis‖, temos em Fernando Pessoa uma das mais ―belas‖ definições do fazer poético em ―Autopsicografia‖: ―O poeta é um fingidor. Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente.‖(PESSOA: 1986, pg. 211) Já Carlos Drummond de Andrade no trecho de―Segredo‖ (2002) nos comunica que ―A poesia é incomunicável/ Fique torto no seu canto..‖, mais ainda, quando encontra-se à ―Procura da Poesia‖ (2002): ―Não faças versos sobre acontecimentos. Não há criação nem morte perante a poesia. Diante dela, a vida é um sol estático, não aquece nem ilumina. As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam. Não faças poesia com o corpo, esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica‖ (ANDRADE: 2002, pg. 341). Com isso intentamos, mais precisamente, chamar atenção para o fato de que houve, sobretudo, a partir do século XX. Ou seja, o esvaziamento das temáticas tradicionais que procuravam discorrer acerca dos sentimentos, ações e vivências meterias do humano. 12 ―Archaischer Torso Apollos‖ (Rainer Maria Rilke) .Tradução de Manuel Bandeira: 1979. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 68 Assim sendo, a metalinguagem foi um dos fenômenos de produção artística que se tornou mais recorrente na esfera artística, pois, de outra parte,uma outra linha de força da poesia moderna é silenciar-se. Emily Dickinson (1830-1886) em um poema conhecido por ―1681‖ revela que ―A palavra é um sintoma do afeto E o silêncio é A comunicação mais perfeita Que ninguém pode ouvir.‖(2006, pg. 19) Esta poeta, já no século retrasado,vislumbrava o valor do silêncio como palavra poética perfeita e inalcançável. Mas o nosso escopo é voltar-se para a metalinguagem. Nesse momento, a metalinguagem na arte, aponta para o que Walter Benjamin (1892-1940) denominou de ―a perda da aura!‖ do artista, uma vezque põe em cheque o mito da criação, o chamado dom especial que o artista teria recebido de uma entidadesobrenatural para conceber o objeto estético, igualmente Fiama como vimos anteriormente. De maneira geral, apoeta portuguesa Fiama Hasse Pais Brandão (1938 – 2007) porta na totalidade de sua obra uma ritualística tributária para/com a arte, fazendo da tradição literária seu pretexto e pre-texto para a autenticidade artística, tornando o ―Poema como espaço crítico da arte‖ característica essencial em toda sua poética. O poema que apreciaremos (―Óbidos (Josepha)‖)está contido no livro ―HOMENAGEMÀLITERATURA‖ (1976), títulos que por si só exemplificam, para um bom observador tudo o que foi dito anteriormente. 2. Fiama, o poema “Óbidos (Josepha)” e Josepha Ayala Fiama Hasse Pais Brandão nasceu e morreu em Lisboa (15.08.1938 – 19.01.2007)(en)talhou sua escritura através da literatura, dramaturgia, ensaios e traduções. Estudou Filologia germânica na faculdade de Letras da Universiade de Lisboa. Estreou com o livro ―Em cada pedra um vôo imóvel‖ (1957). Sua consciência literária era tão clara que, esse seu livro de estréia foi retirado de sua antologia poética ―Obra Breve‖ (1991). A poeta escolhe despertar na litertura igualmente como os serves VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 69 vivos, com a predominâcia do elemento água. ―Morfísmo‖ (1961) é o primeiro livro da antologia ―Obra Breve‖ (1991). Sintamos então o teor de sua poesia então nascida em germe aquático ―Grafia 1‖: ―Água significa ave se a sílaba é uma pedra álgida sobre o equilibrio dos olhos se as palavras são densas de sangue e despem objetos se o tamanho deste vento é um triângulo na água o tamanho da ave é um rio demorado onde as mãos derrubam arestas a palavra principia‖ (BRANDÃO: 1991, pg. 9) Com a plaquete ―Morfismo‖ (1961), sequencia de poemas que tratam ostensivamente de uma evolção da ―palavra d‘agua‖, ou mesmo se mostra como autilização da metáfora da água em confluência com a profundidade e plurissignificação que a linguagem verbal pode conter em seus aspectos mais propícios ao nascimento da palavra. A poesia de Fiama Hasse se carateriza porse mostrar com uma crítica poética para poetas, visto que ao considerarmos o hermetismo de seus escritos que dificilmente não causaria em uma leitura à primeira vista algum estranhamento no leitor. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 70 Este precisa ter no seu repertório de leituras grandes vínculos com a tradição literária para uma compreesão mais susbstancial de sua poesia.A poesia de Fiama se caracteriza pela forte presença de um labutar apolíneo, assim sendo, se aproxima mais de uma ideia de ―arquitextura‖literária. Com a arquitetura constroe-se a materialização de uma ideia. À luz, ou clareza na escolha dos conteúdos, bem como, das formas, a poeta se afasta da ingênuidade da criação―ao sol seco‖ sob a luz de Apolo, (como em Óbidos). Vejamos com suas próprias palavras extraídas de um poema sem título do―HOMENAGEMÀLITERATURA‖ (1976) ―[...]O texto não é mais eterno do que o contexto. Uma álea de cimento, uma figura nova entre as áleas de terra. (BRANDÃO: 1976, pg. 14) Religa. Em sua homenagem a literatura a poeta, autora de ―Barcas Novas‖ (1967), fixa-se na tradição (enquanto conteúdo) para fugir desta na forma. Encimentandono nível narrativo-discursivo o alicerce reflexivo de sua poética. Atentaremos para o poema ―Obidos (Josepha)‖ que se inicia com um ―eu-lirico‖ que descreve uma postura em relação so ver/sentir-se frente a um quadro de Josefa de Óbidos: ―Estou sobre o saibro como uma múlher mínima na curva do capitel. A meu lado vejo o fundo negro das figuras da Adoração suspendidas sobre si. O que conheço da liturgia e dos temas naturais com que identifiquei a pintura, os grandes tufos de lírios, dálias sem a luz da variação, apenas com o vinco e o contorno negro da morte como arte condigna para os seres vivos.‖ (BRANDÂO: 1976, pg. 55) A autora começa com a descrição do cenário exterior e interior; torre e sino; abismo a frente, e atrás: ―árvores tridentes da ramagem simples‖ em que é iluminada ―ao sol seco‖; abaixo argila com mistura de areia e pebras como ―mulher mínima na curva do capitel‖. Ao lado ―fundo negro das figuras da Adoração suspendidas sobre si‖Note-se que VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 71 não exitou ao som do sino porque exitaria perante o ―Abismo‖. Esse ―Abismo‖ é a distancia entre a obra literária e o processo de assimilação do leitor como veremos dizer com seus versos próprios. Neste quarto dístico (o poema é quase todo composto em dísticos) ―da variação, apenas com o vinco e o contorno negro / da morte como arte condigna para os seres vivos.‖ são os versos de ligação, o limiar entre a descrição e a reflexão da obra de arte de Obidos-Josefa com relação a ao grande paradoxo-motivo de diversas obras barrocas: morte vs vida. vejamos o que se segue: ―[...] Assim é magnifico todo aquele que seguir a descrição do retrato fictício das suas faces. O abismo é todo o espaço que mediar entre que não vacila e o modelo de imagens constantemente perdidas no passado‖ (op. cit. pg. 56). Após essa elucidação do ―ver-sentir‖ a obra de arte a autora segue um desfecho reflexivo: ―[...]Pensar que o penasmento de josepha e a severidade para com a beleza dos frutos, das flores e das figuras humanas é o domínio da vida sobre a ideia da morte. O sulco do pincel escurona mão de rosa diante da paisagem clara com as faixas de fumo que coincide com a minha descrição da vida matinal.‖(Idem) O poema o tempo todo está se relacionando com os paradoxos barrocos, sobretudo nas semanticidades das palavras ―morte‖ e ―vida‖ que se apresentam contrárias entre si, ―O sulco do pincel escuro sobre a mão da rosa. Ora, a poeta contrasta sua obra de acordo com a pitura de Josepha a medida em que no apresentando-a. (para visualização dos quadros de Josepha consultar Anexo 2, o poema na integra se encontra no anexo 1). Cabegrafar aqui também que a cidade de Óbidos ainda é uma das mais medievais, pois preservou muito dessa arquitetura, porém, os interiores das casas assumem o que há de mais sofisticado. Isto é, Óbidos é uma cidade em que se conserva muito da tradição do medievo no que cerca arquitetura e arte, mas que não deixa de apresetar facetas da modernidade principalmente na decoração de interiores. Essa cidade é uma vilaportuguesa no distrito de Leiria, região Centro e sub-região do Oeste fazendo parte da Região de Turismo do Oeste, com cerca de 3 100 habitantes. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 72 É sede de um município que subdividido em 9 freguesias. O município é limitado a nordeste e leste pelo município das Caldas da Rainha, a sul pelo Bombarral, a sudoeste pela Lourinhã, a oeste por Peniche e a noroeste tem costa no oceano Atlântico. Ao contrário do que se possa pensar, o nome Óbidos não deriva da parónimaóbitos, mas sim do termo latino oppidum, significando «cidadela», «cidade fortificada». É famosa pelaimensa muralha. A cidade de Óbidos foi tomada dos Mouros em 1148, e recebido a primeira carta de foral em 1195, sob o reinado de D. Sancho I. Óbidos fez parte do dote de inúmeras rainhas de Portugal, designadamente Urraca de Castela (esposa de D. Afonso II), Rainha Santa Isabel (esposa de D. Dinis), Filipa de Lencastre (esposa de D. João I), Leonor de Aragão (esposa de D. Duarte), Leonor de Portugal (esposa de D. João II), entre outras. Em 1527, viviam 161 habitantes na vila, o que corresponderia a cerca de 1/10 da população do município. A área amuralhada era já nessa época idêntica à actual, ou seja, 14,5 ha. Foi de Óbidos que nasceu o concelho das Caldas da Rainha, anteriormente chamado de Caldasde Óbidos (a mudança do determinativo ficou a dever-se às temporadas que aí passou a rainha D. Leonor). A 16 de Fevereiro de 2007, o castelo da cidade recebeu o diploma de candidata como uma das sete maravilhas de Portugal Josefa de Ayala Figueira (Sevilha, Fevereiro de 1630 — Óbidos, 22 de Julho de 1684), foi uma pintora nascida na Espanha que viveu e produziu em Portugal. Seu ái era, também pintor Baltazar Gomes Figueira (????), natural de Óbidos, com obra em Évora, que fora trabalhar em Sevilha, onde veio a ter por esposa a andaluziciensse D. Catarina de Ayala Camacho Cabrera Romero. Quando tinha apenas quatro anos de idade (ano de1634,), os pais de Josefa regressam a Portugal, onde vieram a se estabelecer na ―Quinta da Chapeleira‖, em Óbidos. A Josefa menina se erradica, manifestando desde cedo, vocação para a pintura e para a gravura em metal, lâminas de cobre e prata, em uma técnica denoinadapontinho.Foi especialista na pintura de flores, frutas e objectos inanimados. A influência exercida pelo barrocotornou-na uma artista com interesses diversificados, tendo se dedicado, além da pintura, à estampa, à gravura, à modelagem do barro, ao desenho de figurinos de tecidos, de acessórios vários e a arranjos florais.Por volta VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 73 de1653, gravou a edição dos Estatutos de Coimbra. Trabalhou em seguida como pintora da Igreja católica. Na Capela do Noviciado do Convento de Varatojo havia uma ―Nossa Senhora das Dores‖ e, no coro, um ―Menino Jesus‖, quadros que lhe são atribuídos. Outrossim, havia quadros seus no Mosteiro de Alcobaça, no Mosteiro da Batalha, em Vale Bem-Feito no Mosteiro de São Jerónimo, em Évora, onde existe um Cordeiro engrinaldado de flores, que passa por ser um dos seus melhores trabalhos (ver anexo 2). Como retratista da Família Real Portuguesa, destacam-se os seus retratos da rainha D. Maria Francisca Isabel de Sabóia, esposa de D. Pedro II, e de sua filha, a princesa D. Isabel, que foi noiva de Vítor Amadeu, duque de Sabóia, a quem esse retrato foi enviado. A Academia de Belas Artes também possui um quadro de Josefa de Óbidos.Tendo vivido quase sempre na Quinta da Capeleira, a sua reputação que granjeou de tal ordem que muitos dos que iam tomar banhos às ―Caldas da Rainha‖, se desviavam de seu caminho, para irem a Óbidos cumprimentá-la. Josefa de Obdos, assim ficou conhecida a distinta pintora que viveu no século XVII, e se chamava Josefa Ayala Figueira, visto que Josefa de Óbidos é um nome refúgio, nem toda a sua pintura é de Ayala... É do ritual diário do claustro conventual que nasce a arte de Josefa. As gravuras em metal que fazia, segundo constava, e que diziam ser excelentes, estavam em casa de José Gomes de Avelar, parente ainda de Josefa de Óbidos. A ilustre artista viveu quase sempre na quinta da Capeleira, mas havia alcançado tanta reputação que muitas das pessoas que iam tornar banhos às Caldas da Rainha, se afastavam do seu caminho, para irem a Óbidos cumprimentá-la. Josefa de Óbidos faleceu a 22 de Julho de 1684. 3. Considerações finais É notável a incursão feminina no mundo das artes antes do século XX. Através de FiamaHassea pintora de Óbidos volta a tomar cor. Acredito que não por acaso. Existe uma ―coincidência‖ que é praticamente impossível de passar despercebida. Como foi dito a poucas linhas, a pintora classificada no Barroco português, bem como nossa poeta da segunda metade do século XX, escolheram passar o resto da vida em uma quinta. Fiama em Carcavelos e Josefa em Capeleira. Ambas são possuidoras de uma VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 74 dicção particular, nota-se claramente em suas obras o labor limer e uma a liturgia da expressão artística, ou seja, a vida ritualizada e vivenciada na linguagem. A pintura de Josefa é essencialmente uma arte devocional e para a entendermos é necessário conhecer desde Zurbarán até á gravura Holandesa (um católico, a outra, até protestante) e claro, a pintura de seu pai, Baltazar Gomes Figueira, esse excelente mas ignoto pintor português. Não é simples, nem muito ortodoxa, porém contém sentido profundo e extenso. As imagens da Natureza, o seu melhor, são vistas através de pontos simbólicos do ritmo natural e sensual das estações do ano, são janelas sobre o seu significado transcendente é ―é o domínio da vida sobre a ideia da morte. O sulco dopincel escuro/na mão de rosa‖.Suas pinturas são revelações do divino na natureza e no labor do homem, são sacrifícios litúrgicos, oblações, em sentido lato e no sentido restrito, Bíblico. Josefa não distingue, entre a pintura religiosa e a natureza morta, esta é, sempre, pintura religiosa. Os elementos da sua pintura fazem parte dessa cadeia áurea que se eleva do simples barro, a matéria, passando pelas plantas e flores, aos animais, ao homem, aos anjos, até ao puro espírito. Assim, os objetos pintados, profanos ou naturais, são de facto místicos ―morte como arte condigna para os seres vivos. FiamaHasse utiliza-se do espaço em branco para através da mancha tipográfica fazer metalinguagem usando o ―Poema como espaço crítico da arte‖, e incurtindonovoas discursos po(éticos) de utilização desse espaço do poema-crítica-objeto-artisticos.A poeta atinge um nível de consciência literária que o concede o espaço de ser uma das mais fortes vozes da literatura portuguesa contemporânea. 4. Referências ALCÉE – SAPHO. Trad.Reinach, T. etPuech, A. Paris: Les Belles Letres, 1935. ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa: volume único: Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002. ARISTOTELES; HORÁCIO; LONGINO. Poética Clássica. Trad. Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 1992. BRANDÃO, FiamaHasse Pais. HOMENÁGEMÀLITERATURA. Porto:Limiar,1976. _________. Obra Breve. Editorial teorema: Lisboa, 1991. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 75 CAMÕES, Luis de. Os Lusiadas. 2 ed. Porto: Porto Ed, 1986. GREEN, P. Sapho de Lesbos. Guadalajara: Fondo de cultura econômica, 1971. HEGEL, G. W. F. Estética. A Idéia e o Ideal. São Paulo: Abril Cultural, Coleção Os Pensadores, 1974. LIRA, José. Emily Dickinson: e a poética da estrangeirização. Recife: Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPE, 2006. MOISES, Massaud. A literatura portuguesa. 36 ed. São Paulo: Cultrix, 2009. PESSOA, F. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986. RILKE, Rainer Maria. Torso arcaico de Apolo in: BANDEIRA, Manuel. Poema só para Jaime Ovalle. Edição de Pedro Moacir Maia. [Salvador]; Santiago [Chile]: Dinamene, 1979. SILVA, Vitor Manuel de Aguiar e. Teoria da literatura. Coimbra: Liv Almedina, 1997. Catálogo da Exposição Josefa de Óbidos e o tempo do Barroco. Lisboa: Instituto Português do Património Cultural, 1991 SOBRAL (2004), Luís de Moura, Catálogo da Exposição A Pintura Portuguesa no século XVII. Lisboa: Instituto Português de Museus, Museu Nacional de Arte Antiga, 2004. Catálogo da Exposição A Natureza Morta nas colecções Alentejanas. Évora: Instituto Português de Museus, Museu de Évora, 1999. catalogue coordinators: Maria de LurdesSimõesCarvalho, Jordana Pomeroy; texts, VitorSerrão et al.MC/National Museum of Women in The Arts, Washington,1997 Crowning Glory: Images of the Virgin in the Arts of Portugal. Mesa redonda: Josefad'Óbidos of Portugal: Love, Mysticism and the Art of Memory", by Prof. Barbara von Barghahn of George Washington University, Washington DC 1999. 5. ANEXO 1: POEMA Óbidos (Josepha) Se não hesitei quando pela torre ecoou o sino porque vou hesitar perante o abismo entre espaldares de árvores tridentes da ramagem simples ao sol seco. Estou sobre o saibro como uma múlher mínima na curva do capitel. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 76 A meu lado vejo o fundo negro das figuras da Adoração suspendidas sobre si. O que conheço da liturgia e dos temas naturais com que identifiquei a pintura, os grandes tufos de lírios, dálias sem a luz da variação, apenascom o vinco e o contorno negro da morte como arte condigna para os seres vivos. Assim é magnifico todo aquele que seguir a descrição do retrato fictício das suas faces. O abismo é todo o espaço que mediar entre que não vacila e o modelo de imagens constantemente perdidas no passado. Pensar que o penasmento de josepha e a severidade para com a beleza dos frutos, das flores e das figuras humanas é o domínio da vida sobre a ideia da morte. O sulco do pincel escuro na mão de rosa diante da paisagem clara com as faixas de fumo que coincide com a minha descrição da vida matinal. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 77 6. ANEXO 2: IMAGENS FIGURA 1 (Santa Maria Madalena, 1650, óleo sobre cobre, 22,8x18,4, Museu Nacional Machado de Castro, Coimbra) FIGURA 2 (Transverberação de Santa Teresa, c.1672, óleo sobre tela, 180x140 cm, Igreja Matriz de Cascais) VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 78 FIGURA 3 (Visão de S. João da Cruz, 1673, óleo sobre tela, 16,5x131,5, Santa Casa da Misericórdia de Figueiró dos Vinhos) FIGURA 4 (Cordeiro Pascal, c.1660-1670, óleo sobre tela, 88x116 cm, Museu Regional de Évora) VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 79 FIGURA 5 (O Mês de Março, 1668) FIGURA 6 (Natureza morta com doces e barros, 1676, óleo sobre tela, 80x60, Biblioteca Municipal Braancamp Freire, Santarém) VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 80 FIGURA 7 (Anunciação, 1676, óleo sobre tela, 107x88, Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa) FIGURA 8 (Calvário, 1679, óleo sobre madeira, 160x174, Santa Casa da Misericórdia de Peniche) VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 81 2. ASPECTOS DA CULTURA ARTÍSTICA DO BARROCO NA PARAÍBA COLONIAL Michael Douglas dos Santos Nóbrega13 Orientadora: Dra. Carla Mary S. Oliveira14 RESUMO: O Barroco é caracterizado por suas diversas peculiaridades. Ele foi um estilo que marcou a cultura européia entre fins do século XVI e começos do século XVIII. Sua formação esteve ligada diretamente às mudanças ocorridas na conjuntura da Europa da Contra Reforma e ao imaginário daí decorrente, que influenciou inclusive as mentalidades de artesãos, artífices e artistas. É possível afirmar que, numa interpretação mais ampliada, o Barroco foi um dos elementos fulcrais no que se refere à produção e caracterização da cultura brasileira a partir do século XVII, devendo ele ser compreendido não apenas como um estilo artístico e literário, mas sim como uma cultura da época. Nosso trabalho tem por objetivo perceber, através da leitura dos principais teóricos que se aprofundaram sobre o estilo, tanto na Europa como no Brasil, e no levantamento e análise de algumas imagens de igrejas presentes na Paraíba, como se deu a construção do estilo nestes espaços da América portuguesa, ressaltando as características e especificidades próprias desse processo, comparando-os brevemente com o de outras regiões do Brasil. PALAVRAS CHAVE: Barroco, História da Arte, Brasil Colônia, Paraíba. A arte colonial brasileira é marcada pela relevante influência da arte européia. E essa arte é caracterizada pelo seu poder político, religioso e social. O Barroco é o estilo predominante nesse período e seu estudo é bastante importante, pois através de sua análise, poderemos compreender os ramos da colonização luso no Brasil, além de entender a sociedade colonial brasileira. O Barroco é um estilo que surge na Europa, mais precisamente na Itália, em um 13 14 Graduando em História pela UFPB, pesquisador UFPB/PIBIC/CNPq Professora do DH/UFPB. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 82 período de constantes mudanças. Diversos fatores que ocorreram paulatinamente nos séculos XVI e XVII modificaram a sociedade européia com o surgimento de novos modelos políticos, econômicos, sociais e religiosos. A sociedade que estava em processo transitório e com a formação do regime capitalista passou a possuir novas características e novos padrões sociais. As ciências e as artes acompanharam essa transição e sua experimentação mostra claramente essa ligação. É nesse contexto de mudança e transição que surge o Barroco. O termo ―Barroco‖, em si, é uma categoria equívoca. Sua compreensão de forma positiva foi iniciada por Heinrich Wölfflin somente em 1888. Wölfflin foi um importante historiador da arte e seus estudos foram importantíssimos para a valorização do estilo barroco. Ele age com uma concepção inovadora do barroco, delimitando categorias e analisando especificidades do estilo. Os estudos de Wölfflin são até hoje referência básica para se entender o barroco. Ele trouxe uma comparação do barroco se opondo ao Renascimento. Para a história da arte nada há de mais natural do que traçar paralelos entre movimentos culturais e períodos estilísticos. O Barroco, opondo-se ao Renascimento, vem oferecer o agitado, o mutável (WÖLFFLIN, 1989): assim, a relação do indivíduo com o mundo modificou-se. Segundo Wölfflin, o ponto de vista que deve explicar o novo sentimento de forma barroco é o psicológico, que considera o estilo arquitetônico como expressão da época. O que constitui a época é tido como base (essência) para a imaginação formal do artista. A arquitetura participa nessa animação de modo inconsciente da matéria porque ela é a expressão de uma época. Um estilo só pode nascer onde existe uma intensa necessidade de determinada forma de existência corporal. A técnica jamais cria um estilo. As formas produzidas não podem ser opostas ao sentido formal, só podendo sobrepor quando se submetem ao gosto formal preexistente. Deve se observar a expressão viva do sentimento popular nas artes decorativas. Nas imagens decorativas o sentimento da forma se satisfaz imediatamente e sem empecilhos, é ao nível da decoração que sempre aparecem os novos estilos. Os escritos de Heinrich Wölfflin são vistos como um apanhado de ideais norteadores da história do barroco. Ele mostra todas as leis arquitetônicas e sociais para expressar como se deu o surgimento do barroco, suas características principais, suas definições e particularidades. Vinte e sete anos após o lançamento de Renascença e Barroco, VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 83 Wölfflin lança Conceitos Fundamentais de História da Arte (1915), onde desenvolve de forma mais profunda as ideias presentes na primeira obra. Através de cinco pares de conceitos, ele traz uma análise das características barrocas: linear X pictórico; plano X profundidade; forma fechada X forma aberta; pluralidade X unidade e clareza X obscuridade (WÖLFFLIN, 2006, p. 15-16). As definições de Wölfflin ajudam a compreender, em geral, apenas as manifestações externas das obras artísticas, o que se constitui numa lacuna da sua obra. Outra característica essencial do barroco é sua maleabilidade. Ele é um estilo que se fundi a sociedade local produzindo uma identidade. Essa construção de identidade se da através do processo formador de uma consciência estética, esse processo se dá lentamente a partir de criações e mudanças no imaginário de determinada população. As primeiras mudanças ocorrem em manifestações orais ou visuais. (THEODORO, 1997). Por isso muitas vezes o patrimônio da nossa identidade está embutido numa serie de manifestações visuais e orais. O conceito de barroco envolve toda essa capacidade de dissimulação, de dissolução dos limites entre real e imaginário e também de trânsito entre a idéia de sujeito e coletividade. O Barroco europeu chega ao Brasil com suas características essências e se funde com elementos locais formando o barroco no Brasil. No período colonial do século XVII, vão começar a surgir novas percepções que irão constituir a nossa gênese. O processo formador de uma consciência estética surge paulatinamente a parir de criações e inovações no imaginário de determinada população. O Barroco possibilita uma análise do processo de formação estilística. As primeiras mudanças ocorrem em manifestações orais ou visuais. Os autores desse processo devem ser analisados com um olhar próprio da época. Visto que, eles estavam preocupados com o presente e não passavam por crises de identidade, pois estavam próximos de um ideal de percepção coletivista. (THEODORO, 1997). O esforço que o barroco caracteriza é sempre o de construção. O barroco é um fenômeno histórico determinado tanto no tempo, como no espaço. Ele tinha por objetivo fundar a sua identidade, daí as suas diferenças locais, visto que, em várias localidades esse processo de construção de identidade foi diferenciado, pois o homem barroco construía as suas raízes com o material disponível, apropriando-se do que fosse necessário para sua constituição. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 84 O barroco representa um esforço no sentido de criar. O surgimento do novo é impulsionado pelo que restou dos significados ancestrais. No barroco há uma alteração dos princípios formais e institui-se uma nova ordem de significações importantes para todos os envolvidos. Daí então no período colonial do século XVII vai começar a surgir percepções novas que irão se constituir na nossa gênese. O barroco possibilita uma observação do processo de formação estilística. O homem barroco construía as suas raízes com o material disponível, apropriando-se do que fosse necessário para sua constituição. As manifestações do barroco, no Brasil, tiveram objetivos distintos em sua maioria, conforme se pode observar no discurso de Oliveira (1999): Desse modo, entendemos que as igrejas barrocas do Centro-Sul do país, mesmo aquelas de menor fausto, são monumentos não para a catequese, mas sim para a glorificação da Fé, para a celebração dos ritos católicos por uma população já católica, fosse ela abastada ou miserável. No Nordeste, ao contrário, ao apelo visual do Barroco deveria se agregar o elemento catequizador, com o objetivo primordial de evangelizar os silvícolas infiéis pelo olhar, pelos símbolos visuais do cristianismo e, em última instância, pela agregação de elementos locais como estratégia de aproximação e assimilação simbólica. (Oliveira, 1999, p. 121-122). No Nordeste o barroco se ligou à consolidação da ocupação territorial. O Barroco existente na Paraíba é um referencial para se entender como se deu o processo de conquista e colonização do litoral nordestino. O Barroco além de ser uma categoria estética também representa as características específicas de uma identidade local. O aparecimento das formas barrocas dá-se em épocas diferentes em cada país (LINDINGER, 1978, p. 3). O Barroco na Paraíba possui especificidades que poderemos tratar como particulares. Vale ressaltar que os estudos sobre o barroco paraibano só são possíveis graças ao trabalho de Carla Mary Oliveira que toma o barroco paraibano como objeto de estudo e contribui grandemente para sua análise. O Barroco paraibano nos leva a busca das sutilezas, que nos proporcionam a conhecer aspectos do imaginário colonial presente no estado. As fontes e o poderio Barroco na Paraíba podem ser vistos como uma forte demonstração política da época. Um fato interessante é que a maioria dos artífices paraibanos é anônima. Não havia VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 85 uma preocupação com a identificação do artífice. Essa total ausência dos registros das construções nos instiga. O fato é que, caso saibamos os nomes dos artesãos, artífices e artistas que então aqui atuaram, pouco vai modificar a situação de suas obras dentro do universo Barroco, visto que, ao contrário de seus congêneres europeus, tais homens não tinham uma posição social influente ou próxima às cortes. Pode-se dizer que seu status era semelhante ao desfrutado pelos artesãos da Idade Média: o que importava era o objetivo da obra e não aquele que a fazia, e por isso mesmo, o registro de seu nome não era considerado importante. (Oliveira, 1999, p. 71) Desde os primórdios a Igreja Católica tinha nas obras de arte, através de símbolos e alegorias, um modo de doutrinação dos fiéis, visto que muitos eram leigos. A obra de arte pode expressar diversas situações do imaginário social de determinada localidade. A interpretação da obra de arte é usada como método para a compreensão desse imaginário. Nesses diferentes processos do uso do barroco as mais diversas características identitárias foram construídas e expressadas. Conforme podemos observar nos estudos de Erwin Panofsky (1955): Nem sempre a obra de arte é criada com o propósito exclusivo de ser apreciada, ou, para usar uma expressão mais acadêmica, de ser experimentada esteticamente. (PANOFSKY, 2009, p. 30). É nesse sentido que fundamentamos nossa análise acerca da cultura artística do Barroco na Paraíba. Sendo essa a tarefa de um historiador da arte. O Barroco só se tornou possível graças ao caráter migratório e globalizador, que se constitui de elementos fundidos. Essa caracterização do barroco, além de sua grande cultura artística, constitui na época um elemento alegórico, que tem por objetivo expressar algo além daquilo que se pode ver. Com isso, podemos deduzir que as obras do barroco possuem signos e caracteres que expressam, de certo modo, situações que são frutos da realidade social na qual o artífice e o comprador da obra estão inseridos. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 86 Os signos e estruturas do homem são registros porque, ou antes na medida em que, expressam idéias separadas dos, no entanto, realizadas pelos, processos de assinalamento e construção. Estes registros têm portanto a qualidade de emergir da corrente do tempo, e é precisamente neste sentido que são estudados pelo humanista. Este é, fundamentalmente, um historiador. (PANOFSKY, 2009, p. 24). Diversos símbolos alegóricos são encontrados presentes na arquitetura religiosa da Paraíba. Inicialmente temos símbolos que revelam o poder lusitano (figura 1) que se fazia presente nas terras paraibanas (OLIVEIRA, 1999). Fig. 115 - Cruz de Malta no portal central da galilé, Igreja de São Francisco (João Pessoa - PB) A imagem acima, da cruz de malta, pode deixar claro a presença política ligada à religião através da arte era uma realidade. Desse modo, podemos reafirmar a questão acerca da produção intencional da obra de arte, que é feita para causar do que se pode ver. É preciso atenção para um identificação acerca da idéia central da obra de arte, e um dos mecanismos que facilita essa identificação é o método de Erwin Panofsky, que constitui numa análise iconográfica e iconológica da obra. Segundo Omar Calabrese (1987) ―a iconologia vai desde á identificação do tema a uma leitura da obra, que liga à complexidade da cultura e das atitudes mentais da época‖. 15 Todas as figuras apresentadas nesse artigo foram retiradas da Dissertação O barroco na Paraíba: arte, religião e conquista, de Carla Mary S. Oliveira. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 87 A história da arte passa a ser vista como a história dos fatos estilísticos, concebidos como símbolos que exprimem os mais diversos processos de abstração da mente humana. Um historiador de arte, portanto, é um humanista cujo ―material primário‖ consiste nos registros que nos chegaram sob a forma de obras de arte. (PANOFSKY, 2009, p. 30). A iconologia é bastante importante para a compreensão das obras de arte e para sua inteira assimilação. Ate porque a história da arte faz um discurso imagético. Desse modo, a obra de arte em si não se limita a sua exibição, e sim à uma análise dos seus símbolos em justaposição de sua análise interpretativa. Sendo assim podemos compreender a complexidade da obra e sua importância, visto que, nela estarão inseridas diversas emoções e singularidades (até mesmo generalizadas) dos artífices e de sua época contemporânea. Entende-se por essa singularidade questões sociais, econômicas, políticas, afetivas e etc. O Santuário de Nossa Senhora da Guia (figura 2) na cidade de Lucena/PB é um referencial para exemplificar o poder simbólico do Barroco litorâneo. Fig. 2 - Igreja de Nossa Senhora da Guia (Lucena - PB). Primeiramente podemos observar a localização do Santuário (figura 3), que é visto num ponto estratégico. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 88 Fig. 3 - Vista aérea da barra do rio Paraíba. LEGENDA: 1 - Fortaleza de Cabedelo. 2 - Igreja de N. Sra. da Guia. 3 - Ilha da Restinga. 4 - Ponta de Lucena. A localização do templo nos mostra uma característica essencial da conquista, que é a preocupação militar. A segurança da Capitania estava assegurada através de pontos estratégicos. Além disso, pode-se observar que a Igreja de Nossa Senhora da Guia localizava-se próximo a um aldeamento indígena. O que atesta a idéia de uma obra voltada para a catequese e evangelização dos silvícolas. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 89 Fig. 4 - Ornamentação central da fachada. Igreja de Nossa Senhora da Guia (Lucena - PB). A fachada (figura 4) do templo da irmandade carmelita é bastante exuberante e é tipicamente uma obra de forma aberta, que possibilita a verdadeira intenção, que é a de interação da obra com o espectador. Segundo Oliveira (1999) sua fachada é uma obra claramente incompleta, mas que pode denotar claramente sua suntuosidade e sua idéia central. No seu contexto é claro a presença de elementos da fauna e da flora locais, como por exemplo, frutas típicas do litoral paraibano. O que nos instiga a cerca da influência que essa obra causava na mentalidade do índio, ao se defrontar com esse tipo de arte. No que diz respeito às características arquitetônicas do templo, salta aos olhos a exuberância de sua fachada, mesmo sem ela ter sido concluída. O tradicional brasão da ordem carmelita se ergue sobre os portais que dão acesso à galilé, sustentado por dois anjos de vestes fartas e drapeadas. Sobre esse conjunto abre-se um nicho que devia abrigar, anteriormente, uma imagem de Nossa Senhora. O pitoresco, nesse baixo-relevo, é o fato de ele estar emoldurado por folhagens, cajus, abacaxis, bananas, frutos de cacau, pinhas, guirlandas de flores e volutas. São representações em que se destaca a tentativa de alcançar um refinamento que, no entanto, escapa aos artífices. Mais ainda, podemos interpretá-lo como uma tentativa de VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 90 aproximação com o universo indígena, facilitando, assim, a pregação dos carmelitas. (OLIVEIRA, 1999, p. 90-91). A predominância do Grand style presente na arquitetura paraibana é bastante ampla e mostra claramente o poderio da Igreja Católica, ligada à Coroa portuguesa na colônia. Sendo a arquitetura barroca um meio para a transmissão desse pensamento de poder da Coroa dominante em relação à Colônia. Fig. 5 - Fachada da Igreja de São Bento. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 91 Fig. 6 - Fachada da Igreja de São Francisco (João Pessoa - PB). Dessa forma, continuando nossa análise sobre o Barroco paraibano, iremos nos voltar para traçar paralelos entre as mais diversas fontes sobre o tema. A análise de documentos presentes no Arquivo Eclesiástico da Paraíba e no Acervo do Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa e justaposição com a análise iconológica dos monumentos paraibanos, a fim de construir uma possível teoria do Barroco paraibano. Referências Bibliográficas CALABRESE, Omar. A linguagem da arte. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1987. OLIVEIRA, Carla Mary S. O barroco na Paraíba: arte, religião e conquista. João Pessoa: Ed. Universitária/ UFPB; IESP, 2003. PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. São Paulo: Editora Perspectiva, 2009. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 92 TAPIÉ, Victor‐ Lucien. O barroco. Trad. de Armando Ribeira Pinto. São Paulo: Cultrix, Edusp, 1983 [1961]. THEODORO, Janice. O barroco como conceito. Revista do IFAC, Ouro Preto, Instituto de Filosofia Artes e Cultura da Universidade Federal de Ouro Preto, n. 4, dez. 1997, p. 2129. WÖLFFLIN, Heinrich. Renascença e barroco. Trad. de Mary Amazonas Leite de Barros e Antonio Steffen. São Paulo: Perspectiva, 1989 [1888]. _________. Conceitos fundamentais da história da arte. 4. ed. Trad. de João Azenha Jr. São Paulo: Martins Fontes, 2006 [1915]. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 93 3. QUESTÕES SOCIAIS E ESTÉTICAS NA ESCULTURA DE ALEIJADINHO André Pinheiro (Universidade Federal do Rio Grande do Norte) Hoje em dia, deve-se reconhecer que o Aleijadinho não era apenas o artista mais representativo da era colonial, mas também um dos grandes responsáveis pelo processo formativo da arte brasileira. Para que se ateste a importância de sua presença na história artística do país, basta mencionar que muitas obras do movimento Modernista foram criadas a partir de fundamentos que caracterizavam o trabalho do escultor mineiro – como a explosão das cores, a composição conflitante das cenas, o movimento sedutor dos personagens e a apreciação de temas locais. Evidentemente, se os modernistas voltaram cerca de 200 anos atrás para resgatar a obra de um brasileiro, então é preciso admitir que ela cumpre importante papel para o projeto de afirmação da arte nacional; com efeito, a partir do reconhecimento da soberania estética de Aleijadinho, o modelo da arte européia cai em desuso e, conseqüentemente, já não figura como principal parâmetro para a criação de novas obras no Brasil. Dessa forma, o escultor acabou se transformando na base fundadora que resultaria na construção de um sistema artístico brasileiro devidamente solidificado. Não há dúvida de que os modernistas foram atraídos pela modulação tropical que assinala boa parte dos trabalhos de Aleijadinho; uma investigação mais detalhada revela que, de fato, alguns sedimentos da realidade local estavam densamente representados na estrutura de sua obra. Claro, o modo como o artista integrou a sociedade da época muito contribui para que suas esculturas adquirissem essa tonalidade regional. Primeiro, sabe-se que o Aleijadinho era filho de uma escrava negra com um colono português, de modo que essa ambigüidade cultural o marcou em demasia; não seria exagero, portanto, afirmar que o artista trazia na própria pela a natureza miscigenada daquela sociedade. Por outro lado, não se pode esquecer que a formação cultural e humana do Aleijadinho teve como pano de fundo a conflitante situação colonial. Dessa forma, os aspectos biográficos e a realidade histórica contribuíram mutuamente para que o escultor extraísse da terra pátria as suas matérias de maior expressão. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 94 Como o Aleijadinho era parte constituinte de uma sociedade e a sua obra escultórica, como toda linguagem, só adquire significado inteligível na medida em que se relaciona com certas práticas sociais, então parece lícito fazer uma análise que proponha examinar as relações entre a arte e a sociedade. Evidentemente, não se pretende recorrer ao contexto social para justificar as escolhas temático-formais do artista; bem pelo contrário, a realidade externa não aparece no exame crítico como um dado determinista, mas sim como um elemento relacional. Por isso mesmo, o conceito de redução estrutural ou formalização, proposto por Antonio Candido para analisar as relações entre arte e sociedade, parece ser o mais adequado, haja vista a sua natureza extremamente dialógica. Na introdução de um de seus livros, Antonio Candido define as bases dessa teoria: Os ensaios da primeira parte deste livro tentam analisar alguns casos do que chamei redução estrutural, isto é, o processo por cujo intermédio a realidade do mundo e do ser se torna, na narrativa ficcional, componente de uma estrutura literária, permitindo que esta seja estudada em si mesma, como algo autônomo (CANDIDO, 2004: 28). Embora Candido tenha formulado essa linha de estudo para o exame do texto literário, não resta dúvida de que o processo de formalização endossa a composição de qualquer modalidade de arte. Mais do que um método de análise, a redução estrutural é um procedimento inerente à própria obra, tornando-se um de seus elementos efetivos. Através desse processo, o artista transfere dados da realidade exterior para o arranjo estrutural dos seus trabalhos, como se a matéria social ganhasse uma forma. Se o caminho for trilhado em sentido inverso, o analista logo conclui que a forma de uma obra de arte denuncia importantes aspectos da sociedade na qual ela fora gerada. Um dos aspectos que, de certo modo, diferencia a escultura de Aleijadinho daquelas produzidas pelo barroco europeu é a prática de esculpir obras que atendam a uma espécie de montagem cênica; com efeito, grande parte de seus trabalhos retrata episódios coletivos ocorridos em um cenário bem definido. Tomando o conjunto A última ceia (Fig. 1) como exemplo, percebe-se que Aleijadinho compôs uma série de objetos, como mesa e janelas, para delinear com precisão o ambiente no qual os personagens estavam inseridos; do ponto de vista estético, esse recurso alarga o campo de observação do espectador e o integra ao próprio espaço representado, tornando mais intensa e vibrante a sua experiência com a VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 95 obra de arte. O gosto pela representação de cenas com muitos personagens era bastante comum na pintura da época; a atividade escultórica, no entanto, ainda estava centrada na concepção de uma única figura ou de um pequeno grupo, geralmente encomendado para túmulos ou para praças públicas. O acervo de Bernini, por exemplo, tem um número considerável de obras que evita reproduzir o perfil solitário das esculturas renascentistas, mas nenhuma delas atinge um nível de agrupamento tão intenso, como aquele que caracteriza a série ―Passos da via-sacra‖, composta por Aleijadinho entre os anos de 1795 e 1799. Figura 1 - A última ceia Evidentemente, a preferência por uma espécie de modelo aglomerado traz conseqüências imediatas para a apreciação da obra, já que o sentido de uma escultura também se define pelos vazios do espaço que a torneiam. Em seu estudo sobre a percepção visual na obra de arte, Rudolf Arnheim destaca exatamente esse aspecto dialógico estabelecido entre a forma da matéria e a forma da não-matéria: (...) a escultura supera os limites de seu corpo material. O espaço circundante, ao invés de permitir passivamente ser deslocado pela estátua, assume um papel ativo. Invade o corpo e se apodera das superfícies do contorno das unidades côncavas. Esta descrição indica que, exatamente como observamos nas relações figura-fundo bidimensionais, espaço e escultura interagem aqui de uma maneira eminentemente dinâmica (ARNHEIM, 2006: 232). VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 96 Ao compor um conjunto com um número acentuado de personagens, o Aleijadinho estava preenchendo com uma escultura o espaço vazio de outra escultura; por isso mesmo, o artista acabou imprimindo um efeito de unidade muito forte em sua obra, tanto que se torna difícil discernir os limites de cada peça. Mas o que importa mesmo nesse processo de criação é o fato de que o Aleijadinho teve a sabedoria para reconhecer que, em escultura, o espaço funciona como um elemento operacional. Se, por um lado, a organização cênica operada pelo escultor mineiro corresponde a uma tendência estética em voga na época (uma vez que a arte barroca tinha certa inclinação para o descomedimento), por outro, pode-se dizer que essa prática também está diretamente ligada a um dado de ordem social. Durante o período colonial brasileiro, grande parte da população era analfabeta e a igreja precisava, a todo custo, conquistar e preservar a fé dos cristãos, que era facilmente abalada pela própria condição assistemática da vida na colônia. Encomendadas pela igreja católica, as esculturas eram usadas com o intuito de narrar as histórias bíblicas para as pessoas que não sabiam ler – um modo prático e eficaz de prender a atenção dos fiéis. Daí porque era importante compor um conjunto que desse ao espectador a sensação de estar inserido na cena narrada e, por conseguinte, fizesse-o crer que estava na companhia do próprio deus. Apesar do efeito catequizador, a obra de Aleijadinho traz marcas sociais que a desvincula da mera matéria religiosa; de fato, o tema retratado pode até ter um caráter místico, mas a composição inquietante da forma é o reflexo da caótica ordem social vigorante no país. Evidentemente, essa relação com a sociedade adquire importância na medida em que se apresenta como uma alternativa capaz de superar a ideologia cristã e de deixar florescer a soberania do gênio criador. O uso de acessórios na concepção das obras (como cordas, alguns metais e objetos esculpidos para ornamento) parece ser outro aspecto que aproxima os trabalhos de Aleijadinho do seu condicionamento social. A princípio, pode-se pensar que o escultor mineiro é responsável pelo estabelecimento de uma nova concepção de arte, que já se mostrava descomprometida com as regras impostas pelo modelo clássico; com efeito, aquela unidade indestrutível do bloco de mármore fora substituída por um arranjo vertiginoso dos objetos e das matérias-prima. É preciso reconhecer, entretanto, que esses trabalhos não oferecem um plano de superação estética, até porque não havia no Brasil um modelo sistemático para ser superado. Dessa forma, a prática inusitada de utilizar diferentes VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 97 materiais na criação das estátuas está ligada, antes de qualquer coisa, a um dado de ordem objetiva; ou seja, o artista esculpia as peças de acordo com os objetos que tinha a sua disposição. Acontece que, ao proceder dessa forma, Aleijadinho estava inserindo elementos de caráter social na própria estrutura de sua obra, uma vez que a madeira, a pedra, o ferro e a corda tinham um sentido muito bem definido para a sociedade da época; ligados a idéia de opressão e de atraso, esses artefatos constituem uma espécie de materialização da situação na colônia. Para início de conversa, a presença abundante de esculturas em madeira já pode ser encarada como uma fonte de documentação sobre a situação econômica do Brasil na época. A madeira foi a primeira grande forma de riqueza da colônia e nada mais natural que ela fosse utilizada para os mais variados fins, inclusive para a criação de obras de arte. É certo que a ausência do mármore em terras tropicais foi um dos fatores contribuintes para que Aleijadinho não o tivesse utilizado em suas criações (a idéia de importar da Europa esse material parecia descabida); no entanto, ao esculpir com um elemento importante para a economia colonial, o artista estava firmando uma relação entre a sua arte e a realidade local. Mas se a escultura de Aleijadinho era feita com uma das melhores matérias-prima que a região podia oferecer, também é preciso admitir que essa matéria não comportava altos padrões de nobreza. Dessa forma, a própria madeira estava marcada por uma relação dicotômica estabelecida entre a representação de uma riqueza (já que refletia o poderio econômico da colônia) e a imagem da pobreza (já que essa economia se mostrava insuficiente, se comparada com o alto requinte da metrópole). Os demais materiais utilizados por Aleijadinho também trazem um sentido simbólico muito ligado à realidade colonial. A pedra e o ferro, por exemplo, são culturalmente marcados pela idéia de impasse, sofrimento e dificuldade. Ora, são exatamente esses termos que assinalam a natureza do trabalho escravo praticado no Brasil; também não se pode esquecer que o ferro foi o elemento mais empregado para aprisionar e para castigar os escravos. Depois, muitas obras civis de grande porte (como barragens e fortalezas) foram construídas em pedra, de modo que esse elemento acabou se transformando em uma espécie de símbolo do trabalho árduo e do suplício. Já as cordas comportam um sentido simbólico ligado à idéia de aprisionamento, uma vez que elas eram comumente utilizadas para atar partes de uma construção, animais bravios e até mesmo escravos; não é de se estranhar, portanto, que no conjunto A flagelação (Fig. 2) o Aleijadinho tenha usado uma corda para representar o Cristo VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 98 aprisionado, esculpido em pose muito semelhante a de um escravo arredio. Desse modo, pode-se dizer que, mais do que compor um ato de sofrimento, o artista estava criando uma obra com o próprio sofrimento materializado. Cabe observar, por fim, que o emprego de técnicas e materiais diferentes (ocorrido por conta desse diálogo com a realidade social) vai criar um efeito estético diverso daquele encontrado na Europa –o que permite considerar os trabalhos de Aleijadinho como a primeira manifestação escultórica de caráter tropical. Figura 2 – A flagelação Há uma explicação de cunho social até mesmo para o excesso de objetos ornamentais; com efeito, eles foram elaborados com o intuito de facilitar a leitura das cenas e, conseqüentemente, auxiliar no processo de educação religiosa dos colonos leigos. O modelo escultórico europeu se limitava a representar o elemento essencial de um episódio, cabendo ao espectador compor um enquadramento condizente com o que estava sendo delineado. O Davi de Bernini, por exemplo, mostra o exato momento em que o heróico rei iria atacar o gigante Golias; foi absolutamente desnecessário representar o rival e o espaço onde ocorrera o evento, já que a grande expressividade dessa obra está antes na tensão que dominava o personagem e no denso movimento do seu corpo do que no duelo propriamente dito. Acontece que essa unidade não é tão simples de ser alcançada quando uma obra precisa cumprir uma tarefa didática. Com efeito, o caráter missionário da escultura de Aleijadinho é, em parte, responsável pelo estabelecimento de um modelo VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 99 rigoroso e preciso de representação; parece que o escultor fora guiado pela idéia de que o objeto artístico não poderia gerar qualquer dubiedade quanto ao conteúdo apresentado, pois as lacunas certamente prejudicariam o entendimento dos episódios bíblicos. É por esse motivo que o Aleijadinho persistiu em manter a técnica de esculpir detalhes tão minuciosos, como o pão sobre a mesa em A última ceia (Fig. 1), as pedras sobre as quais se deitam os apóstolos João e Pedro em Cristo no Jardim das Oliveiras e a presença de uma criança em O salvador carregando o madeiro. Evidentemente, é um tanto falaciosa essa pretensão de dar às esculturas uma definição exclusiva, pois a obra de arte (sobretudo a barroca) tem uma forma naturalmente aberta, no sentido de que o seu significado não se restringe apenas àquilo que está sendo representado; independente dos detalhes utilizados na concepção de um conjunto escultórico, haverá sempre uma explicação cultural e simbólica que extrapola os limites formais do objeto. Diferenças a parte, há de se convir que, se Bernini seduz pela força expressiva de seus personagens, Aleijadinho encanta exatamente pela densa organização de seus episódios. Apesar de não ter sido realizada na época de Aleijadinho, a pintura das esculturas também auxilia na tarefa de capturar a atenção dos fiéis, já que as cores exercem um fascínio muito grande sobre os espectadores. Além de transmitir a idéia de um quadro vivo, a pintura deixa as esculturas parecidas com aquelas estátuas fabricadas em série – tão comuns em altares da igreja católica e em retábulos de casas particulares; dessa forma, decorridos anos da morte do artista, o clero manteve vivo o caráter missionário de sua obra, estreitando ainda mais a sua relação com o gosto popular. O crítico de arte Rudolf Wittkower, em seu livro Escultura, destaca exatamente esse estreito diálogo estabelecido entre as esculturas policromadas e o gosto popular; de acordo com Wittkower, ao longo da história da arte, as obras executadas em mármore branco eram comumente destinadas ao público culto ao passo que a madeira pintada se voltava para o espectador leigo: As obras de alto nível, criadas para um público conhecedor, para os grandes e cultos, imitavam os mármores romanos, destituídos de cores, enquanto a policromia era reservada às obras populares, realizadas com materiais inferiores e de menor preço (WITTKOWER, 2001: 192). Mas é preciso admitir que a pintura também corresponde ao jeito alegre e festivo da vida na colônia, cuja condição urbana lembrava, em alguns aspectos, o caráter folclórico e VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 100 popular da era medieval; naturalmente, uma escultura monocromática parece contradizer a índole de um lugar colorido, quente, de natureza exuberante e marcado por uma etnia diversificada. Todas essas inovações no suporte, portanto, só vêem a ratificar a posição vanguardista dos trabalhos de Aleijadinho, que pareciam ter negado com mais intensidade o equilíbrio renascentista do que fizeram os próprios escultores europeus. No entanto, o aspecto mais rigorosamente localista da arte de Aleijadinho talvez seja a mistura de técnicas e arquétipos populares com os procedimentos característicos de uma formação erudita; de fato, uma rápida sondagem nos trabalhos do escultor já é suficiente para que neles se reconheçam vestígios de uma escola de mestres entalhadores e resquícios de um aprendizado proveniente da vivência com o povo. É por esse motivo que, mesmo se ocupando em retratar temas universais, a modelagem das peças apresenta um perfil condizente com a realidade social da região. Dessa forma, pode-se dizer que a própria estrutura da arte de Aleijadinho já se configura como um delineamento da tensão instituída em torno da realidade européia (que aparece como tema) e da realidade brasileira (que aparece como forma) – um conflito que atingiu seu ponto mais crítico depois que a colônia manifestara o desejo de se desligar da metrópole. No conjunto A flagelação (Fig. 2) esse movimento dialético em torno dos componentes locais e universais está bem explícito, pois, embora o Cristo tenha os traços que a arte européia lhe atribuiu, a maneira como a cena foi concebida logo remete ao sofrimento dos escravos espancados no pelourinho. Depois, apesar da alinhada vestimenta, o rosto de alguns soldados romanos foge completamente ao fenótipo europeu, lembrando antes aqueles bonecos de ventríloquos esculpidos em madeira bruta. Há de notar também que, diferentemente do que se espera de um membro da milícia romana, o soldado posicionado à direita do Cristo tem uma linha dorsal circunflexa e desajeitada, aspecto que lhe furta todo o clima de autoridade e imponência. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 101 Figura 3 - A prisão de Cristo Em um ensaio de fundamentação socialista, o historiador de arte Alberto Manguel também destaca a presença de elementos regionais na composição dos trabalhos escultóricos, arquitetônicos e decorativos de Aleijadinho. Manguel detectou traços da cultura africana em uma parte significativa da obra do escultor mineiro, sobretudo nos artefatos ornamentais da Igreja de São Francisco: Ali as imagens religiosas, embora cristãs, também se prestavam a uma leitura segundo a tradição africana, a ser feita pela população negra que afluía como rebanho à igreja. (...) Em São Francisco, as imagens podem ser européias, mas a articulação, as correntes ocultas de significado pertencem definitivamente às tradições negras da África, o inverso do branqueamento. (MANGUEL, 2006: 239) De acordo com Manguel, ao compor imagens religiosas que combinavam características da liturgia cristã com elementos das religiões africanas, Aleijadinho estava lutando para que o efeito missionário de sua arte atingisse toda a etnia colonial. Cumpre observar, entretanto, que a matiz africana é a base estruturadora da obra – aspecto que pode ser entendido, segundo o crítico, como um ato de resistência contra a tese do VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 102 branqueamento16. De qualquer forma, está claro que a arte do Aleijadinho é um desenho preciso da variedade étnica da população colonial, pois nela encontram-se facilmente traços do povo europeu, dos colonos e dos negros escravizados. Nesse sentido, não é exagero afirmar que a própria matéria sacra apresenta ressonâncias sociais; além das semelhanças do Cristo com um escravo em A flagelação (Fig. 2), conforme já fora anunciado, os soldados romanos também comportam traços do povo português. Depois, o trabalho executado por alguns integrantes da milícia antes lembra a ação dos impávidos desbravadores do sertão brasileiro do que um ato de tortura propriamente dito; a atitude eufórica dos soldados que integram o conjunto A prisão de Cristo (Fig. 3), por exemplo, parece ser demasiado áspera para quem pretende prender um líder pacificador que não oferecera qualquer tipo de resistência física. Por fim, voltando-se mais restritamente para o aspecto formal, é preciso destacar que a composição dos corpos parece ser uma espécie de correlato objetivo para a situação do Brasil na época, uma vez que a idéia de indefinição e imperfeição é facilmente reconhecida nas esculturas do artista. Primeiramente, cabe observar que o Aleijadinho utilizou diversas medidas para a concepção de um cânon, de modo que nem todas as partes do corpo humano têm uma relação justa entre si; mesmo assim, é flagrante o desejo de combinar variações de um modelo natural (proveniente da observação imediata do ser humano) com variações de um modelo ideal artístico (resultante Figura 4 – A coroação de espinhos de um estudo estético). A distribuição dos módulos operada em A prisão de Cristo (Fig. 3), por exemplo, revela que o protagonista tem uma estatura muito mais elevada do que aquela utilizada para retratá-lo nos demais conjuntos; evidentemente, tais escolhas formais têm um significado estético ligado à idéia de conflito e inquietação, mas nem por isso elas deixam de ser reflexo de um sistema social igualmente tenso e inquieto. Ainda nesse conjunto, as mãos do Cristo 16 Acreditava-se na época que o escravo passava por um processo natural de branqueamento espiritual depois que ele se tornava independente e ascendia socialmente; rejeitando a idéia preconceituosa que endossa esse ponto de vista, o escultor prezou por expor as piores facetas de sua brancura. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 103 chamam a atenção pela sua curvatura exorbitante, como se estivessem deslocadas do eixo natural do corpo. Levando-se em consideração que a imagem da mão está associada tanto à ardileza do trabalho quanto à afabilidade do companheirismo, então ela acaba por representar uma dupla deficiência na vida da colônia; desse modo, a organização estrutural da obra de Aleijadinho denuncia a presença de um lugar marcado pela distribuição irregular do trabalho e pelo individualismo resultante da ambição de se tornar rico. Alguns personagens desse conjunto também têm um movimento duro e esquematizado, como se eles tivessem dificuldade de se locomover pelo ambiente no qual estão inseridos; a rigidez da forma acaba por destacar os indivíduos do cenário montado, transmitindo a idéia de que os problemas sociais foram responsáveis por essa cisão. Mas o modo como o Aleijadinho compôs mãos e braços é, de fato, um aspecto de grande relevância para se averiguar o substrato social presente na obra do escultor; em A coroação de espinhos (Fig. 4), a figura do Cristo apresenta um braço forte, de onde saltam veias grossas e ardentes – aspecto que, de certa forma, contradiz aquela imagem serena e frágil divulgada pela tradição religiosa. Com efeito, os membros superiores desse Cristo são típicos dos homens que trabalham na lavoura ou em qualquer outra atividade braçal – seguramente, a fonte de renda mais freqüente da colônia na época; trata-se, portanto, de um personagem cuja atividade tem caráter mais físico do que intelectual. Por isso mesmo, é inevitável que se associe as mãos atadas e os seus gestos duros com a prática escravocrata exercida no Brasil. Se, por um efeito de teste, fosse possível deslocar os membros do restante do corpo, o expectador perceberia que eles não têm muita consonância com o tema religioso, sobretudo com a imagem de Jesus. É por meio dessas agregações de elementos díspares, portanto, que o Aleijadinho projeta a substância social na estrutura de sua obra, resultando na criação de um quadro onde a realidade colonial invade o mito religioso. Mas é preciso ter um olhar vigilante e investigativo para entender o modo como se estabelece esse processo, pois é através de pequenos detalhes formais e estruturais que o artista promove o incurso da sociedade no tema de suas esculturas. Referências VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 104 ARNHEIM, Rudolf. Arte & percepção visual. São Paulo: Pioneira / Thomson Learning, 2006. BAZIN, Germain. O Aleijadinho. Rio de Janeiro / São Paulo: Record, 1971. CANDIDO, Antonio. O discurso e a cidade. 3ª ed. São Paulo: Ouro sobre Azul, 2004. ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 2001. JORGE, Fernando. O Aleijadinho: sua vida, sua obra, sua época, seu gênio. 7ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. MANGUEL, Alberto. ―Aleijadinho: a imagem como subversão‖. In.: Lendo imagens. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. WITTKOWER, Rudolf. Escultura. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. WÖLFFLIN, Heinrich. Conceitos fundamentais da história da arte. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 105 4. DISTORSIONES ESPACIALES Y TEMPORALES EN EL ARTE DEL CARIBE INSULAR Helga Montalván Dias – Consejo Provincial de Artes Plásticas – Cuba El Caribe abarca una extensa área que enlaza a las porciones sur, centro y norte de América Latina. Sus aguas configuran el litoral de varios países del continente y envuelven un abanico de islas que asciende desde Trinidad y Tobago hasta el archipiélago cubano. Se considera como Caribe Insular el Arco de las Antillas Menores y Mayores, donde aparecen los siguientes países: Antigua y Barbuda, Barbados, Cuba, Dominica, Granada, Haití, Jamaica, Santa Lucía, Saint Kitts y Nevis, San Vicente y las Granadinas y Trinidad y Tobago, incluyendo los territorios dependientes: Aruba y Antillas Holandesas; Guyana Francesa, Guadalupe y Martinica, departamentos franceses de ultramar; Anguila, Montserrat, Islas Vírgenes Británicas, Islas Caimán e Islas Turcas y Caicos, pertenecientes al Reino Unido; y Puerto Rico y las Islas Vírgenes Estadounidenses. Estos serán VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 106 estudiados a partir de la concreción de tres grupos en función del habla: los hispanos, los anglófonos y los francófonos, y en menor medida los de habla holandesa. Con este trabajo, propongo enunciar posibles redefiniciones para el barroco en el Caribe, a partir de las producciones artísticas recientes de la región, ejemplificando en los tres grupos definidos, con las expuestas en la 10 Bienal de La Habana, realizada del 27 de marzo al 30 de abril del 2009. Primero, habría que definir una contraparte basada en las estructuras racionales, lineales, coherentes con una visión apolínea de la historia y legitimada en la cultura Occidental. A partir de esta, estaríamos configurando una diferencia como contrario, que en definiciones actuales vendría a estar aparejado a la idea del fragmento y de los sistemas no lineales. En esta idea, el área geográfica y cultural que analizaremos estaría enraizada en función de un sistema radial de múltiples fluctuaciones y arraigada a la definición dada por Yolanda Wood17 respecto a las temporalidades simultáneas de la región, que más sintéticamente fue definido por Alejo Carpentier como lo real maravilloso en las décadas del 30 y el 40 del pasado siglo; y que según José Luis Méndez: ―ha podido mostrar más crudamente su rostro barroco‖18 Según Omar Calabrese en La Era Neobarroca19, por Barroco entenderemos las categorizaciones que ―excitan‖ fuertemente el orden del sistema y lo desestabilizan por alguna parte, lo someten a turbulencias y fluctuación, y lo suspenden en cuanto a la capacidad de decisión de valores, procediendo para esto a través de la comparación con el evento históricamente definido. Por cuanto, nos es necesario referir algunos elementos ya presentes en la crítica y la investigación de las artes plásticas en la región del Caribe, concebidas forzosamente como procesos secuenciales y continuos a partir de determinados eventos que señalan el origen de la conciencia del ser caribeño. Esto, en la primera valoración de sus producciones artísticas explicitadas por Adelaida de Juan 20. 17 Yolanda Wood: ―Proceso histórico-artístico en el Caribe‖, Compilación de textos .Bienal de La Habana para leer. Ediciones Universidad de Valencia, 2009, p73. Ediciones Arte Cubano y Centro de Arte Contemporáneo Wifredo Lam. 18 José Luis Méndez: ―Problemas de la Cultura Caribeña‖, Casa de Las Américas, Ciudad de la Habana, no. 114, mayo-junio de 1979, p.40. 19 Omar Calabrese: ―La era Neobarroca‖, Ediciones Cátedra. Signo e imagen, Madrid, 1989. 20 Adelaida de Juan: ―En la Galería Latinoamericana‖, Ediciones Casa de las Américas. Serie Galería, Ciudad de la Habana, 1979, p.115. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 107 Según los estudios, el Caribe se distingue por lo afroamericano, elemento que tiene en su base los primeros eventos reconocibles por la cultura occidental en las décadas del 30‘ y el 40‘ del siglo anterior: - La obra pictórica de Wifredo Lam en Cuba, surgida en medio de los primeros estudios afrocubanos y la obra de Fernando Ortiz, Lidia Cabrera, entre otros intelectuales, y que fue legitimada por André Bretón dentro del movimiento Surrealista (de origen europeo). - La Escuela de Hyppolite de pintores naif en Haití. - Los pintores móviles doctrinarios de la religión Rasta en Jamaica, de grandes repercusiones sociales y culturales. Todos ellos como parte de una toma de conciencia de lo nacional y lo caribeño, valorizando elementos que afianzan los altos porcentajes de africanidad en la región. Tomando el elemento de la negritud, entendemos este signo como denominador o eje central de las significaciones de las producciones caribeñas en el proceso histórico. Esto asociado a la estética del cimarronaje y la resistencia cultural, devenida como una doble apariencia y una doble significación que los pueblos del Caribe confieren a los iconos impuestos por la cultura colonial. La evolución histórica del Caribe ha sido análoga en procesos religiosos y sociales, y ha convivido con una temporalidad simultánea comprendida como una dinámica de la memoria (el pasado, el origen), la intuición (la realidad diaria) y la incertidumbre (o el tiempo de la espera entendido como futuro), pues si en un primer momento histórico, la región del Caribe fue zona de encuentros y paso, de conexión de viajes y a veces destino, aún hoy los insulares sostienen una sensibilidad de tránsito. Su estatus como países colonias y el mar como constante han sido también elementos constitutivos que no podemos desdeñar, a pesar que no solo estos caracteres medulares han conformado su cultura. Los comportamientos han sido distintivos según la colonia, conformando sus procesos artísticos de formas diferentes. En el caso de los países hispanohablantes (Cuba, Puerto Rico, República Dominicana) poseen una cultura moldeada según el estilo occidental, con Academias según los estilos europeos, Museos, Galerías, y una clase alta, dominante, que respalda un sistema de distribución y consumo de la obra de arte en los propios circuitos que ella misma VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 108 genera, creando no solo el espacio, sino el mercado y las condiciones del consumo de sus producciones artísticas y el análisis de sus procesos. Los países de habla anglófona (Trinidad Tobago, Barbados, Jamaica), francófona (Haití, Martinica, Guadalupe) y holandesa (Aruba, Curazao) comprenden otras condiciones, pues no son respaldados por una estructura sólida. Sus producciones están más enraizadas a procesos populares, por motivos religiosos e ideológicos, los cuales responden entonces en mayor medida a los ritos afrocaribeños. De ahí que en Haití la escuela de Hyppolite va a contener un fuerte elemento del vudú, y Jamaica por su parte, va a emprender un camino donde el arte va a estar destinado a la formación de una conciencia nacional, religiosa y política, a partir de la fuerte resistencia del movimiento rastafari. Las producciones artísticas del Caribe Insular, a pesar de tener un denominador común en el elemento de la negritud y en la condición de lo insular, las condiciones de su surgimiento y desarrollo varían tanto en métodos como en fines. No obstante, ha sido sometido a una lectura secuencial de sus eventos: - Década del 40‘.Conformación de un sentido de identidad visto por los occidentales como fantástica. - Década del 60‘. Relevancia de las artes gráficas y la abstracción que viene de la década anterior. (Cuba y Puerto Rico) - Década del 70‘. Desvalorización del objeto artístico por la significación que alcanzan en este momento los movimientos sociales y de minorías, y la propia actitud ante la producción artística. Este último elemento, es desarrollado por Juan Acha21 en la impronta de los movimientos sociales y el destino de estas obras a una minoría élite, que va a ser más consolidada en países de mayores niveles demográficos. En este sentido, ya tenemos configurada una plataforma base de punto de partida para la trayectoria de las artes visuales de la región, señalada por una particular sensibilidad resultado de distintivas psicologías sociales, que cala en la sensorialidad y la experiencia del ser caribeño. 21 Juan Acha: ―Reafirmación Caribeña y sus requerimientos estéticos y artísticos‖, Compilación de textos .Bienal de La Habana para leer. Ediciones Universidad de Valencia, 2009, p.61. Ediciones Arte Cubano y Centro de Arte Contemporáneo Wifredo Lam. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 109 Valorizada por porcentajes diferenciados de la connotación del elemento de lo negro, resulta en la sumatoria una afrolatinidad imperante en Jamaica y Haití, y en una iberolatinidad predominante en países como Cuba, Puerto Rico y República Dominicana. Podemos entonces esbozar la dinámica del sistema cultural del Caribe insular a partir de la reformulación del concepto de la negritud desde la obra de arte e intentar definir los principios por los cuales se pueden considerar variables los elementos no pertenecientes al sistema mismo, a través de los posibles rompimientos y estrategias valorados en el choque intercultural implícito en las relaciones artísticas actuales, basadas en un sistema de producción, distribución y consumo en las direcciones que impone la cultura global de hoy y la posición hegemónica y dominante de la mainstrem occidental. Para profundizar en este análisis, hemos seleccionado la 10 Bienal de la Habana como momento de confrontación de las propuestas artísticas y el público en general, a partir de una valoración de la participación de artistas del Caribe insular en las principales Bienales del mundo. (Véase Anexos. Tablas 1.1-1.5) El Caribe insular señala su presencia en un 20% en la 10 Bienal de la Habana y mantiene una presencia activa en todas las ediciones de la muestra, siendo la participación de los países de habla anglófona la más mayoritaria después de la hispanohablante. En esta dirección, damos por sentado la presencia de discursos artísticos afines al elemento de lo negro en la cultura del Caribe, la temporalidad sensorial y la condición de la insularidad como ejes susceptibles de variación o mutabilidad. Ahora bien, volviendo al aspecto espacial del sistema de la cultura de Calabrese, nos parece oportuno enunciar la idea de confin. Según el autor, el confin22 de un sistema es un conjunto de puntos que pertenecen de manera simultánea, al espacio interno de una configuración, y al externo. Determinamos entonces que no forma parte del sistema pero lo delimita desde lo interno, siendo parte de lo externo. Esta definición se asocia a la genealogías de la diferencias de Bhabha23, donde argumenta que las culturas a menudo se reconstituyen y rearticulan en los bordes, en el hogar de las poblaciones migratorias. En base a esto, podemos analogar el confín como puntos de choque intercultural, momento de tensión en el que la cultura dominante se 22 23 Omar Calabrese: ―La era Neobarroca‖, Ediciones Cátedra. Signo e imagen, Madrid, 1989, p. 64. Homi K. Bhabha: ― El lugar de la cultura‖, 1a ed. Manantial, Buenos Aires., 2002, p.320 VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 110 impone, provocando una resistencia que confirma las matrices propias de significación de la cultura dominada, como oposición activa, creando fuerzas centrífugas que negocian su sobrevivencia y se adaptan a nuevas condiciones, apropiando en este choque, desde lo popular, las imágenes occidentales, con lo que estas culturas subalternas se dinamizan en continua solución de conflictos simbólicos.24 Teniendo en cuenta la propia producción de la obra de arte como momento de plasmación del choque intercultural, el confin queda configurado en la zona de creación, generando un sistema descentrado, pues su núcleo no radica reiteradamente en el centro, sino que se desplaza indistintamente a las márgenes que estructura este confin, cambiante, mutable, no estático. (Véase Anexos. Esquema 1.1) Basándonos en la multiculturalidad caribeña insular, tenemos tres ejes fundamentales que dialogan históricamente ya sea pasivo o conflictivo, con sus ejes dominantes. Los artistas de los países de habla hispana (Cuba, Dominicana, Puerto Rico) por lo general mantienen su producción en los países nativos, aunque sobre todo en el caso de Puerto Rico, los artistas desarrollan su trabajo fuera de la zona geográfica, resultado de un proceso histórico y cultural que resulta en un dialogo no con el centro que supone la colonia, sino con los nuevos dominadores del paradigma estético y artístico. En tanto, podríamos presuponer un diálogo en el que se posee más de un centro o núcleo de choque. (Véase Anexos. Mapa 1.3) Los artistas de países anglófonos, específicamente Jamaica, Barbados, Trinidad Tobago, realizan sus producciones dentro y fuera de la zona geopolítica caribeña, configurando también núcleos móviles. En el caso de los artistas francófonos (Haití, Martinica) suceden los mismos eventos. Siguiendo estas determinantes, podemos configurar un mapa de más de un centro de choque intercultural, puntos de confin que emplazan el área de acción de la producción caribeña, y esto, en una dinámica inestable y mutable. Podemos concluir que el confin y el sistema que configura, conllevan a otras tensiones causadas por la propulsión de fuerzas expansivas de los núcleos-centros de choque intercultural, y por tanto, según el aspecto espacial para la cultura, en modelos 24 Ticio Escobar: ―Identidades en tránsito‖, http://www.pacc.ufrj.br/artelatina/ticio.html VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 111 espaciales el área de producción artística del Caribe insular tiene un espacio de sistemas descentrados y fluctuantes. (Véase Anexos. Mapa 1.3. Espacio de estructurado por el confin) De esto se deslinda también la presencia de una perspectiva quebrada o inusualmente infinita, no asociada al concepto de profundidad canónico pues no sigue un ordenamiento lineal o lógico, pero en este ámbito, nos referiremos más hondamente al elemento de lo temporal. La obra de Annalie Davis, de Barbados, es una obra que suscita este tipo de referencias. Trans/plant" (2009), una video instalación de casi dos horas es un proyecto entre dos muros que refuerza la definición del espacio histórico como movimiento en los bordes en una incertidumbre agónica. El sujeto del video sale al mar a ir de viaje, a la inmigración, y vuelve a encontrarse en la mínima porción de arena que le lleva de nuevo al mar. La idea de los seres en eterno transito, en eterna incertidumbre, toma lugar mediante una poética cruda y aplastante, que valoriza la sensorialidad caribeña y socaba en alguna medida el ideal del turismo caribeño. Es un tiempo de espera y de reiteración, una exacerbación dolida y cínica de la significación histórica del viaje y el fin para el ser caribeño. Varios autores han hecho hincapié en el sentido sensorial de la experiencia caribeña, y esto ha tenido sus porqués en el sentido ritual de los objetos de evocativos de la tradición, y en este sentido, esta se emparenta con los modos de percibir la experiencia e incluso, de concebir la perspectiva. Tirzo Martha, de Curazao, perteneciente al grupo de habla holandesa, confirma una manera distintiva de concebir las relaciones enriquecedoras y dinámicas de los elementos distintivos de lo caribeño. En su instalación El espíritu del Caribe, a la que le ha realizado varias versiones desde el 2006, se invalida la manera ortodoxa de entender la lógica lineal, la profundidad, esbozando un espacio caribeño, significándolo, que retoma la configuración del altar afro para dotar de este tempo a los objetos de uso diario del sujeto social y familiar. Son altares-casas, en vertical, donde se van estructurando unos sobre otros los objetos según la categoría y la importancia que avala su propia experiencia. Resulta de esto una suerte de suspensión, un rompimiento de la lógica lineal, y de la percepción del tiempo y el espacio vivencial, a la vez que configura una mirada a lo social y los problemas más urgentes de la cotidianidad y comprende a su vez una mirada hacia la memoria histórica y el VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 112 problema de lo racial. (Véase Anexos. Imagen 1 Tirzo Martha, Curazao. Instalación. Bienal de la Habana, 2006.) Otra obra que rompe con los preceptos de la perspectiva y se conforma como un juego de tensiones fragmentadas es la obra de Inti Hernández, cubano, perteneciente al grupo de los hispanohablantes. (Véase Anexos. Imagen 2. Inti Hernández, Cuba. Punto de Encuentro. Instalación, Bienal de la Habana, 2009) Punto de encuentro, instalación presentada en la 10 Bienal de la Habana, es una obra que retoma el juego de los espejos para crear distorsiones ópticas que aquí, fragmentan y emplazan al sujeto en una colectividad ficticia y en la búsqueda de un deseo previamente socavado. La idea del deseo, de la seducción, de la falsedad y las apariencias toman espacio también como momento de interrelación vacía, donde la incertidumbre y el deseo también fluctúan. Por su parte, el dominicano Polibio Díaz presenta su video instalación La Isla del tesoro, también a la 10 Bienal, maqueta de ampliación del malecón de Santo Domingo, como emplazamiento también suspendido en el mar, como la propia isla, a la vez que constituye una propuesta para la cotidianidad y el desarrollo social. Tanto aquí como en sus fotos, a Polibio le interesa los espacios vivenciales, la dinámica visual y estética del entorno cotidiano. (Véase Anexos. Imagen 3. Polibio Díaz. República Dominicana. Fotografía, 2006) Hace presente también una distorsión de órdenes y sentidos más evidente en la fotografía, a partir del deseo, de la incertidumbre de lo aparentemente inalcanzable. Alex Burke, artista Martiniqueño presenta su instalación La biblioteca, de profundas significaciones afrolatinas, donde el saber y la memoria asumen su presencia a partir del fragmento y el ordenamiento aparentemente lógico, pero que tensiona significaciones también religiosas. (Véase Anexos. Imagen 4. Alex Burke. Martinica. La Biblioteca. Instalación. Bienal de la Habana, 2009) Otro artista que hace presencia es Roberto Stephenson, con una fotografía llena de diálogos y fragmentos de una cotidianidad caótica, que casi grita desde si soporte. La superposición de escenas-realidades, el movimiento de la sociedad actual plena de anuncios trasnacionales en una arquitectura vernácula, es una contraposición que tampoco escapa de sentido. El fragmento, la turbulencia dinámica de este y su puesta en escena a través del diálogo caótico con lo cotidiano, son elementos que también hablan de un Caribe disperso, VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 113 activo y mutante. (Véase Anexos. Imagen 5. Roberto Stephenson. Fotografía. Sin título. Bienal de la Habana, 2009) Por demás, en estas obras hay un exceso de representación y de contenido (las figuras negras de Burke, el reflejo de las múltiples personas en los espejos de Inti), que suscita la convivencia de múltiples fragmentos y significaciones, los cuales apuntan hacia la desmesura y excedencia que también refiere Calabrese. Las obras analizadas exponen una temporalidad más sensorial que histórica, pues el presente, lo intuitivo, sigue constituyendo constante en el arte caribeño actual. La turbulencia de sentidos fluctuantes y activos, sea esta expresa en la acumulación de elementos o el juego óptico, nacen de una afirmación de la incertidumbre de quien se siente en constante paso, sin una perspectiva profunda que no llegue más que a la línea del horizonte incierto que deja el mar, volviendo al Caribe como paso y expectativa, en una temporalidad suspendida que convulsa los puntos de contacto del confin, descentrando la mirada apolínea del occidental. Crea paradojas perceptivas en la zona delimitada por sus acciones de inclusión y diálogo conflictivo, ejerciendo en su espacio una relativa autonomía marcadamente atemporal y elástica, emparentada a ciertas nociones de virtualidad que hacen a los disímiles y distintivos centros –disímiles islas- interactuar con la certidumbre desde una posición que actualiza la historia en un presente expandido. Volviendo a la idea de confín para establecer físicamente una zona temporalmente autónoma para el Caribe insular, definimos como: - los espacios de creación del artista caribeño en el espacio-marco de pertenencia señalado como constante. - El espacio de la cultura occidental (dominante) en el interior del espacio- marco pero sin pertenecer a él por lo que no lo determina. Dentro del marco de acción que define el confín como zona de creación del Caribe, este Caribe es autónomo, pues es una zona mutable y cerrada en si misma. Es el sujeto creador quien domina esta autonomía temporal, pues los desplazamientos de la línea del confín son variables en extensión y tiempo. Domina desde sus posesionamientos causales y sus posturas en el marco cultural, los que hacen la diversidad de centros de tensión-excitación que emplazan el confín. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 114 El Neobarroco habita en el Caribe porque no está sometido a reglas ni patrones de comportamiento. La racionalidad queda descentrada en la conversión de casa en altar y de altar a biblioteca de saberes vivos; en el juego de percepciones. En la aparente algarabía que esconde el silencio del que intenta llegar a lo sólido sabiendo que siempre estará de paso porque después de llegar hay más mar… En los colores y la estética dulcemente agresiva de la vida de pequeños espacios copados de familia, del fragmento puesto una y otra vez llamando al palimpsesto, a las significaciones múltiples. La negritud aflora una y otra vez pero como un saber, no con una vocación de imitación o representación de los afro. Vive como concepto de espacio, como orden no racional. El tiempo se expande y contrae en el espacio del Caribe que fluctúa en los puntos de encuentro, aún lejos de la isla nativa, en la llamada diáspora donde se reconstruye con fragmentos individuales la vida en la ciudad desarrollada, en el circuito más élite del arte mismo, que queda igual desvalido de métodos y entendimiento para llegar a entender el ritmo constante de la fluctuación sensorial del sujeto caribeño. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 115 Sessão de Comunicação: BARROCO E MODERNIDADE Coordenadores: Prof. Dr. Antonio Fernandes de Medeiro Júnior Profa. Dra. Regina Simon da Silva 1. DIÁLOGOS ENTRE O BOTELHO BARROCO E O MODERNO CABRAL Éverton Barbosa Correia (Universidade Federal do Mato Grosso do Sul/ Três Lagoas) Assim como há uma sucessão de eventos que lastreia a historiografia desencadeada a partir de Pernambuco e que remonta à colonização brasileira – quer nos refiramos à expulsão dos holandeses ou à guerra dos mascates -, de igual modo há uma tradição literária correspondente que se arrasta desde a Prosopopéia de Bento Teixeira, passando pelo Valeroso Lucideno de frei Manuel Calado ou até mesmo um livro como Cultura e opulência do Brasil de André João Antonil, que é animada pela mesma matéria histórica, para citar alguns exemplos. Por incrível que pareça, todos esses livros atingem em maior ou menor grau a parentela de João Cabral de Melo Neto em sua dimensão encomiástica, uma vez que o poeta se reputava descendente de Jerônimo de Albuquerque (cunhado de Duarte Coelho), que guiou durante muito tempo um projeto não realizado pelo autor de escrever a história do Brasil através da memória deste seu antepassado, reconhecido por muitos como o ―Adão pernambucano‖. O livro se chamaria Memórias prévias de Jerônimo de Albuquerque e narraria a história do Brasil a partir das visões daquele sujeito como lampejos históricos a serem gravados em poesia. Ainda que o projeto não tenha sido efetivado, oferece em perspectiva a compreensão de João Cabral sobre os artefatos históricos, que nunca se restringe à articulação, por si só, de alguns elementos a ladrilhar uma diacronia. Mais do que isso, a historiografia destacada dispõe de eventos marcantes que atravessam a afetividade do poeta, devido ao fato de que sua genealogia esteja implicada em toda a sucessão de eventos que caracterizam a história brasileira. Historiografia brasileira – entendamos bem – que se desencadeia a partir de Pernambuco, donde advém sua resistência em narrar episódios ocorridos no Rio de VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 116 Janeiro, dado que sua ancestralidade tenha sido um dos focos de resistência da instalação da dinastia bragantina no Brasil. Não estranha, a partir disso, que o poeta nunca tenha devotado um poema sequer ao Rio de Janeiro, embora o tivesse feito com Tegucigalpa e Quito, onde residiu em virtude do ofício de diplomata, durante um tempo bem menor do que sua estadia no Rio de Janeiro, onde morou de 1943 a 1948 e depois de sua aposentadoria (1990) até seu falecimento (1999), totalizando algo em torno de quinze anos. Parte do silêncio devotado ao Rio de Janeiro se deve à hipótese de que falando da história fluminense, não deixaria de afirmar a expansão do Império português na América, que teve a cidade maravilhosa como sua sede, depois de Salvador. Sob tal perspectiva, ao falar da história fluminense ou baiana, afirmar-se-ia a colonização portuguesa sem o rescaldo do nativismo pernambucano. Por outro lado, realçar a particularidade pernambucana viria a ser, pois, um modo de ressoar outras vias de sociabilidade, sufocadas em nosso devir histórico. Com isso, destaca-se a visão do autor sobre poesia, cujo desempenho ultrapassa em muito o acesso a suas reminiscências e vinca-se na utilização de suporte material, para objetivar sua produção literária. O raciocínio tanto se aplica à redação de O rio – feito na Espanha, junto ao mapa de Pernambuco – com sua pletora de referências geográficas muito particulares, como também ao Auto do frade, produzido a partir do artigo de Mário Melo ―Suplício de Frei Caneca‖ (MELO, 1924: 335-342), publicado na Revista do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano. Seja pelo recorte geográfico ou histórico, o comentário serve de índice para demonstrar qual a compreensão de poesia anima o autor. Compreensão presente desde seus primeiros livros e que se verticaliza na sua produção de maturidade, notadamente o que escreve depois de A educação pela pedra (1966), quando se processa uma significativa transformação naquela expressão poética que passa a ser pautada vigorosamente pela sua memória, entremeada de lembranças e de arquivos, simbolizando toda uma época sob a dicção vigorosa do escritor. Aliás, essa preocupação com a historiografia faz com que ela seja repensada e, em última instância, refeita através da utilização de referentes marginais ou provincianos, sob o tratamento literário, que repõe obrigatoriamente o sentido do registro e do valor históricos, sem escamotear o interesse que tem para o poeta. E embora todo discurso seja movido por interesses – inclusive subjetivos – cada qual ganha maior legitimidade quanto mais se fizer ou simular-se objetivo. No caso de João Cabral, a objetividade do seu discurso está VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 117 assegurada de antemão pelo seu desempenho estilístico que se afasta de qualquer impregnação romântica, só que a inscrição social daquele sujeito e sua transfiguração em objeto de poesia conferem ao seu texto uma tonalidade que não reproduz o discurso e nem o procedimento histórico em voga, antes redimensiona ambos. Por isso, é como constituinte expressivo que devemos entender seus temas, porque se pautam pela exploração do referente tratado, cujo valor e sentido se desdobram quando impostados na dicção de João Cabral de Melo Neto. Daí podemos depreender que tanto a historiografia quanto a literatura colonial que permeiam o universo do poeta ganham uma tonalidade particular, para a qual a história e a geografia se entrecruzam para dar corpo à sua expressão. Havendo, pois, uma substância que enlaça a literatura à história, podemos então considerar que aquela matéria a que se convencionou chamar de Barroco interessou a João Cabral quer fosse considerada como tema ou como forma, já que a possibilidade de separar os domínios não contribui para o entendimento da poesia em geral – que já é por si mesma matéria histórica – e menos ainda a obra cabralina em particular, regida que é pelo entrelaçamento estreito e rigoroso de ambos os domínios. Embora não tenha incorporado a terminologia correspondente ao Barroco à sua escritura, as referências àquela época abundam na sua obra em sua dimensão histórica e também literária. Tampouco João Cabral se investiu do propósito de revisitar ou recuperar o Barroco, muito embora tenha sido costumeiro leitor de Luiz de Góngora e Francisco de Quevedo, a quem devotou um poema, o que é bastante se considerarmos a economia do autor em fazer citações. Quando o fez com Quevedo, estava decerto movido menos pelo interesse de uma produção atrelada ao Barroco transferível de qualquer tempo para qualquer espaço, do que pelo resíduo histórico que se depreende da obra de autores recuados no tempo, o que também é extensivo a suas conquistas formais. Daí haver a possibilidade de aproximação entre autores como João Cabral e Botelho de Oliveira, quando considerados não só pelo acabamento formal que as respectivas obras suportam, mas também pela matéria que as anima e que pode ser considerada em função de sua dimensão histórica ou propriamente literária. De um modo ou de outro, não podemos ignorar o chão que serviu de base para ambas as elaborações e que guardam diferenças entre si. Num caso, o recôncavo baiano e, no outro, o litoral pernambucano, que, distanciados no tempo, só reforçam as respectivas particularidades, embora pareça o contrário, dado que a caracterização do Nordeste como VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 118 região autônoma é uma construção do século XX. Então, quando Botelho de Oliveira escrevia, não apenas o Brasil tinha outra conformação geográfica – separada do Estado do Maranhão e do Grão-Pará -, como o que chamamos hoje de Nordeste simplesmente não havia. Naquela época, baiano era uma coisa e pernambucano, outra. Aliás, quase um século depois de Botelho de Oliveira houve o episódio reconhecido como Inconfidência Mineira, e não brasileira. Se depois do acontecido, aquele mesmo movimento em sua dimensão política e literária veio a ser tomado como índice de emancipação, é mais por um desejo de constituição de nacionalidade do que uma preocupação presente nos autores da ocasião, o que só é reforçado quanto mais nos distanciarmos no tempo. Isso também pode ser observado através da leitura de Botelho de Oliveira, como se segue: a crítica leu o famoso poemeto ―À Ilha de Maré‖ como exceção nativista ou prenúncio do nativismo brasileiro, desconsiderando que o elogio da parte se impunha como artifício para produzir a apologia do todo do Império Português. Ao compor, nesse poema, uma paisagem ideal para produzir o efeito de cópia das formas de sua terra, o poeta imita antes modelos europeus, entre os quais se conta a ilha paradisíaca de Camões. De fato não há antecipação nativista em Botelho de Oliveira (TEIXEIRA, 2005, p. 17) Diante disso, a vinculação da obra cabralina com o chão pernambucano toma outra significação se considerarmos que ali sua família está enraizada desde a posse de Duarte Coelho e foi ali que sua experiência visual foi forjada, às margens do Capibaribe. Por isso, antes de batizar o rio segundo preceitos extemporâneos, convém assinalar que no ―dialeto‖ da família era chamado de ―A maré‖, conforme o enunciado do poema que leremos adiante. Sendo filho das famílias tradicionais pernambucanas, que outra – não aquela – seria a Maré? Também por isso, a ―Maré do Capibaribe‖ se aproxima pelo vocativo de ―À Ilha de Maré‖ de Ilhéus - cantada por Botelho -, porquanto se trata de um nome que designa a matéria nativa e, por outro lado, se distancia porque a matéria nativa do Recife difere da de Ilhéus, ainda mais se considerarmos a rivalidade existente entre Pernambuco e Bahia que disputavam as benesses e graças da Metrópole. Sendo assim, é muito plausível que houvesse uma antipatia congênita entre baianos e pernambucanos ligados às famílias VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 119 tradicionais, o que João Cabral não deixa escapar na sua adjetivação ―abaianada‖ ou na consideração retórica pelo estado vizinho, tal como está explícito no poema ―Um piolho de Rui Barbosa‖. A partir disso, não estranha que haja alguma razão no universo familiar oriundo de Pernambuco para incorporar conflituosamente as referências deitadas no solo baiano. E será sempre como releitura crítica que se dará a retomada de algum referente colonial, tal como o que se desencadeia no célebre poema de Botelho de Oliveira ―À Ilha de Maré‖, que é revertido pelo pouco conhecido ―Prosas da Maré da Jaqueira‖ de João Cabral. Notese que já no título o poeta pernambucano faz questão de situar a maré de que fala através da locução adjetiva ―da Jaqueira‖, onde estava a casa de seu avô materno, local de seu nascimento, referido no poema ―Autobiografia de um só dia‖. Para distinguir sua maré da anterior, circunstancia um lugar que ganha sentido pelo eco da referência a Botelho. Cavalgando no sentido de Maré, cria uma desestabilização para a locução adjetiva pelo termo antecedente: ―prosas‖. Ora, para um poema cujo título traz a prosa como anúncio, dá para se desconfiar de seu conteúdo. Ocorre que o desempenho poético do autor se dá a contento, remetendo o termo contíguo à maré de seu título para a maré remota de seu antecessor mais facilmente associado ao termo, que, em vez de poesia – segundo princípios cabralinos – se ajusta à prosa no seu sentido mais pejorativo: de conversa fiada. Seja porque não se estrutura devidamente ou porque é de Ilhéus e não do Recife, do Capibaribe, da Jaqueira. Em sua similitude na obra dos dois poetas, o termo ―Maré‖ designa uma confluência de códigos e de interesses que simula a configuração de uma tradição existente, quando, na verdade, a coincidência aponta para uma ruptura, já que não há retomada ou paródia do termo anterior, e sim uma sobreposição que não a considera como referência legítima. Sendo histórica a ruptura, fratura todo o entendimento do que venha a ser ―Maré‖, que num caso remete à matéria nativa, arcaica e agrária e, no outro, à ambiência familiar, urbana e moderna. Em vez de cavar uma identidade, a operação de João Cabral desmonta-a. Não só como superação de uma época passada, o que interessa ao poeta moderno; não só pela consistência conceitual presente na poesia cabralina e que adquire critério de validação poética, mas porque João Cabral rejeita a construção do outro, a despeito de ser histórica e formalizada segundo os critérios da época. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 120 Como se vê ―Maré‖ constitui, segundo a visão esboçada, o termo de associação primeira entre os poetas, porquanto se oferece como figura do Barroco na medida em que pretende observar nas respectivas obras o laço existente entre o referente e a linguagem, entre uma imagem e a correspondente elaboração poética, entre a literatura e a história. Aproximando os poemas distanciados no tempo, algumas semelhanças aparecem: composições longas de forte caráter narrativo – o que já está expresso no título de João Cabral de Melo Neto – e que descrevem a paisagem que adquire significado conforme as circunstâncias, dado que as respectivas ―Marés‖ são distintas. A composição de Botelho de Oliveira é três vezes maior do que a de João Cabral e mesmo este poeta, regido por princípios de exigüidade e contenção, compõe o seu ―Prosas da Maré da Jaqueira‖ com 96 (noventa e seis) versos. ―À Ilha de Maré‖ descreve de modo alegórico a paisagem baiana na qual seu autor identifica dádivas da natureza brasileira, que, invariavelmente, se apresenta mais florida, mais viçosa e mais doce, através de seu Ar, de seu Ananás, de seu Açúcar – e todos os demais AA. Trata-se, por conseguinte, de uma distinção que se faz em oposição à Metrópole, à qual se dirigia num misto de divulgação da colônia, promoção do interesse pessoal e representação literária do mundo que se lhe apresentava. Ora, sendo filho da açucarocracia pernambucana pelos quatro costados, João Cabral não poderia se sentir à vontade diante da divulgação e promoção de outra Maré senão a do Capibaribe, ainda mais partindo da Bahia, que algumas vezes se promoveu às custas do sangue pernambucano – tal como o fez vice-rei Conde dos Arcos por ocasião da retaliação à revolução de 1817 -, cuja pretensão emancipatória esbarrou reiteradas vezes no jugo metropolitano, circunstancialmente radicado na Bahia. Se quisermos aplicar o raciocínio à obra de Botelho de Oliveira, dispomos da seguinte observação crítica. A inserção plena de Manuel Botelho de Oliveira na vida econômica, política e administrativa da Cidade de Salvador e do recôncavo baiano – capital da América portuguesa e encruzilhada entre o Oriente, África e Europa – esclarece o caráter panegírico de mais uma dezena de composições de Música do Parnasso, pertencente aos coros dos vários assuntos não amorosos, em todas as quatro línguas do livro. (MUHANA, 2005, p. XXX) VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 121 Também é verdade que a composição de João Cabral se guia pela experiência subjetiva do autor que encontra no Capibaribe um veio que articula o espaço familiar espalhado pela cidade que simboliza com a resistência do povo vincado naquele chão. Assim sendo, ao descrever a Maré do Capibaribe, não é somente o espaço familiar que está sendo celebrado – embora também o seja -, mas é o espaço familiar na medida em que entretece a experiência subjetiva do autor e também um legado histórico que se incrusta ali e passa, por isso, a ter um valor afetivo para o poeta. Daí a insistência de João Cabral na revelação da história, porque se trata de uma matriz discursiva que tem valor sentimental para sua família e, conseqüentemente, também para ele, na medida em que não esconde o lugar social de onde fala nem se exime das possíveis implicações dali oriundas, como se vê. Prosas da maré na Jaqueira25 1 Maré do Capibaribe em frente de quem nasci, a cem metros do combate da foz do parnamirim26. Na história, lia de um rio onde muito em Pernambuco, sem saber que o rio em frente era o próprio-quase-tudo. Como o mar chega à Jaqueira, chega mais longe, até, no dialeto da família te chamava ―a maré‖. 25 Sítio pertencente a Virgínio Marques Carneiro-Leão, avô materno de João Cabral. Então, estava localizado onde hoje há um bairro, já que o sítio não existe mais. 26 Remissão a uma das primeiras batalhas vencidas contra os holandeses. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 122 2 Maré do Capibaribe, já tens de maré o estilo; já não saltas, cabra agreste, andas plano e comedido. Não mais o fiapo de rio que a seca corta e evapora: na Jaqueira és maré, cadeiruda e a qualquer hora. Teu rio, quase barbante, a areia não o bebe mais: é a maré que o bebe agora (não é muito o que lhe dás) 3 Maré do Capibaribe, minha leitura e cinema: não fica vazio muito teu filme, sem nada, apenas. Muita coisa discorria(s), coisas de nada ou pobreza, pelo celulóide opaco que em sessão contínua levas. Mais que a dos filmes de então, Carrego tuas imagens: mais que as nos rios, depois, mais que todas as viagens. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 123 4 Maré do Capibaribe, afinal o que ensinaste ao aluno em cujo bolso tu pesas como uma chave? Não sei se foi para sim Ou para não teu colégio: o discurso de tua água sem estrelas, rio cego. de tua água sem azuis, água de lama e indigente, o pisar de elefantíase que ao vir ao Recife aprendes. 5 Maré do Capibaribe, mestre monótono e mudo, que ensinaste ao antipoeta (além de à música ser surdo)? Nada de métrica larga, gilbertiana27, de teu ritmo; nem lhe ensinaste a dicção do verso Cardozo28 e liso, as teias de Carlos Pena29, o viés de Matheos de Lima30. 27 Referência à prosa de Gilberto Freyre. O poeta Joaquim Cardozo é o maior interlocutor de João Cabral, cujas menções aparecem pontual e regularmente ao longo da obra cabralina. 29 Poeta pernambucano, a quem João Cabral devotou um poema, além da menção supracitada. 28 VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 124 (para poeta do Recife Achaste faltar-lhe a língua). 6 Maré do Capibaribe entre a Jaqueira e Santana31: do cais, como tempo e espaço, vão de um a outro, se apanha. O tempo se vai freando (lago que a brisa arrepie) o rolo de água maciça que enche e esvazia o Recife, até frear, todo espaço (lago sem brisa no rosto), Frear de todo, água morta, Paralítica, de poço. 7 Maré do Capibaribe, estaria a lição nisso: em se mostrar como em circo nos quadros em equilíbrio? Em se mostrar como espaço ou mostrar que o espaço tem o tempo dentro de si, que eles são dois e ninguém? 30 31 Poeta muito estimado por João Cabral e irmão de Jorge de Lima. Sítio contíguo ao da Jaqueira. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 125 Ou com tua aula de tísica querias mostrar que o tempo não é um fio inteiriço mas se desfia em fragmentos? 8 Maré do Capibaribe na Jaqueira, onde menino, cresci vendo-te arrastar o passo doente bovino. Rio com quem convivi sem saber que tal convívio, quase uma droga, me dava o mais ambíguo dos vícios: dos quandos no cais em ruína seguia teu passar denso, veio-me o vício de ouvir e sentir passar-me o tempo. Antes de proceder a comparação através da transcrição dos poemas, conviria lembrar que Botelho de Oliveira era um homem ligado à administração colonial – como, de resto, Vieira, Antonil e (até certa altura) Gregório, - bem como produzia versos em paralelo a seu ofício e assumia, portanto, sua literatura a meio caminho da distração. Distração não destituída de elaboração rigorosa e sem descurar da divulgação e celebração do seu meio circundante, como já foi observado. Como Gregório, Botelho nasce em Salvador, de família abastada, e é encaminhado para os estudos jurídicos em Coimbra. Seu retorno, todavia, não é a fuga da Europa do seu inquieto conterrâneo, mas a repatriação prevista e esperada do compassado ‗fidalgo do rei‘, VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 126 daquele que, embora dedicando-se à agiotagem, sempre se acobertará sob a capa da respeitabilidade advocatícia. (STEGAGNO-PICCHIO, 2004, p.103) Por seu turno, João Cabral a exemplo de boa parte dos escritores de sua época era funcionário público, com o adendo de servir ao Itamaraty, tendo chegado ao fim da carreira na condição de Embaixador. O comentário interessa na medida em que radica ambas as produções no plano da representação, mediado pelas funções sociais que os autores exerceram a seu tempo, correspondendo a cada poeta um desempenho em função de seu lugar social: ao primeiro, na condição de representante da expansão portuguesa na América; ao segundo, na condição de rebento tardio e deslocado da açucarocracia pernambucana, onde a afetividade com o torrão natal figura o vínculo com o seu chão. Claro está, que o propósito aqui não é o de diminuir o valor das respectivas produções, mas tão só atribuir-lhes o significado decorrente do local de pronunciamento do autor e seu respectivo público, inscrevendo-as em momentos específicos e não destituídos de valor simbólico, apesar da distância temporal. Senão, vejamos uma breve ilustração com alguns dos trechos mais conhecidos da obra de Botelho de Oliveira. As laranjas da terra Poucas azedas são, antes se encerra Tal doce nestes pomos, Que o tem clarificado nos seus gomos; Mas as de Portugal entre alamedas São primas dos limões, todas azedas. [...] As uvas moscatéis são tão gostosas, Tão raras, tão mimosas, Que se Lisboa as vira, imaginara Que alguém dos seus pomares as furtara; Delas a produção por copiosa Parece milagrosa, Porque dando em um ano duas vezes, VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 127 Geram dois partos, sempre, em doze meses. [...] As melancias com igual bondade São de tal qualidade Que quando docemente nos recreia, É cada melancia uma colméia, E as de Portugal lhe dão de rosto Por insulsas abóboras no gosto. [...] As romãs rubincudas quando abertas À vista agrados são, à língua ofertas, São tesouros das fruitas entre afagos, Pois são rubis suaves os seus bagos. As fruitas quase todas nomeadas São ao Brasil de Europa trasladadas, Porque tenha o Brasil por mais façanhas Além das próprias fruitas, as entranhas. [...] Vereis os Ananases, Que para o rei das fruitas são capazes; Vestem-se de escarlata Com majestade grata, Que para ter do Império a gravidade Logram da c‘roa verde a majestade; Mas quando têm a c‘roa levantada De picantes espinhos adornada, Nos mostram que entre Reis, entre Rainhas Não há c‘roa no Mundo sem espinhas. Este pomo celebra toda a gente, É muito mais que o pêssego excelente, Pois lhe leva avantagem gracioso Por maior, por mais doce, e mais cheiroso. [...] VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 128 A obsessão pela flora brasileira sugere, de imediato, o confronto com o poema ―Jogos frutais‖ do poeta pernambucano, que esmiúça tão criteriosamente quanto este as propriedades das frutas nativas do Brasil, embora todo o seu discurso esteja voltado conceitualmente para a materialidade do fruto e não para sua repercussão ou aceitação em terras lusitanas, ao contrário do que acontece com Botelho de Oliveira que a todo o tempo nomeia o reino português na composição, seja referindo-se à coroa, a Portugal ou a Lisboa – variações da mesma reverência. Como a sucessão de estrofes evidencia que o público de Botelho de Oliveira – como, aliás, todo autor colonial – estava radicado em Portugal, cumpre designar os possíveis sentidos a serem depreendidos do seu discurso que se radicaliza numa forma cifrada, como vemos no entrecho seguinte. Tenho explicado as fruitas, e legumes Que dão a Portugal muitos ciúmes; Tenho recopilado O que o Brasil contém para invejado, E para preferir a toda a terra, Em si perfeitos quatro AA encerra. Tem o primeiro A, nos arvoredos Sempre verdes aos olhos, sempre ledos; Tem o segundo A, nos ares puros Na tempérie agradáveis, e seguros; Tem o terceiro A, nas águas frias, Que refrescam o peito, e são sadias; O quarto A, no açúcar deleitoso, Que é do Mundo o regalo mais mimoso. São pois os quatro AA por singulares Arvoredos, Açúcar, Águas, Ares. Neste Ilha está mui ledo, e mui vistoso Um Engenho famoso, Que quando quis o fado antiguamente Era Rei dos engenhos preminente, VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 129 E quando Holanda pérfida, e nociva O queimou, renasceu qual Fênix viva. [...] Esta Ilha de Maré, ou de alegria Que é termo da Bahia, Tem quase tudo quanto o Brasil todo, Que de todo o Brasil é breve apodo; E se algum tempo Citeréia a achara, Por esta sua Chipre desprezara, Porém tem com Maria verdadeira Outra Vênus melhor por padroeira. A seleção desses trechos decorre da inconveniência de transcrever o poema em toda sua extensão, o que foi remediado pela eleição dos trechos que melhor ilustram a relação com a metrópole, junto a um desempenho estilístico descomunal. Aliás, a este respeito Adma Muhana já havia chamado a atenção para o fato de que a escolha do ananás para representar o Brasil seria uma maneira de buscar um meio de associação entre a flora brasileira e a majestade lusitana, ilustrada pela coroa do fruto que funcionaria como símile da monarquia portuguesa, a que devia servir e melhor servir quanto maior fosse o grau de proximidade com os colonos ou com a coroa propriamente. Subjaz ao encômio a exaltação da natureza brasileira como artifício retórico para convencer a realeza portuguesa das conveniências de trasladar o reino para a colônia. Projeto que só veio a cabo no século XIX, já existia desde o Seiscentos luso, fosse sob o epíteto de ―Quinto Império‖ ou devido a complicadas sucessões dinásticas que comprometeriam a soberania de Portugal. Por uma razão ou por outra, haverá sempre uma parcela da corte e da diplomacia lusitanas a reivindicar o traslado do governo português para o Brasil, como a crítica já anotara. Entendendo-se Portugal como um corpo vasto com membros separados, porém coordenados a partir da metrópole, tendo como partes principais Brasil, Angola e Ìndia, desde a segunda metade do século XVII, com as constantes ameaças de espanhóis, holandeses e ingleses, a parte constituída pelo território do Brasil surge como a VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 130 mais apta a sediar a cabeça do gigante colonial. [...] finalmente posta em prática em 1808, com a vinda da família real para o Rio de Janeiro. (MUHANA, 2005, p. XXVII) Por isso, salta aos olhos no poema de Botelho de Oliveira a sedução provocada não só pela doçura de suas frutas, a abundância de suas águas e a pureza de seu ar, mas também pelo açúcar que era o principal símbolo de vantagem financeira. Dos quatro AA, era o quarto A que interessava efetivamente a coroa portuguesa, mais do que árvores, água ou ar. Sendo João Cabral obsessivo pelo número quatro - que veio inclusive dar título a um de seus poemas, ―O número quatro‖ - decerto não lhe passou despercebido o enquadramento retórico de Botelho de Oliveira. Tanto que, como o açúcar podia ser administrado na metrópole, os outros objetos de consumo não se converteram em argumentos válidos para a transposição governamental. Interessa, todavia, que o poema apresente a Bahia como centro produtor de açúcar e do Brasil. Ora, se havia por parte das demais províncias a resistência à Bahia pela maior proximidade com a metrópole, muito mais intensa vai ficar a reação se a Bahia se apresentar como o legítimo produtor de açúcar e como o rincão mais brasileiro, tal como está expresso no poema. Não vem ao caso se era de fato, e sim como isso atravessa a afetividade dos poetas, em especial, a do pernambucano. Ou seja, enquanto Botelho de Oliveira lançava mão da Maré de Ilhéus para sedimentar uma imagem que viesse convencer o reino da viabilidade de investir no Brasil, o poema de João Cabral utiliza a Maré da Jaqueira, para expressar toda a sua vida. Se entendermos como vitais aquilo que João Cabral herda dos antepassados, o que orienta sua experiência sensível e o que ele elege como modelo de representação. Em qualquer um desses casos, veremos no rio Capibaribe uma instância de representação, assim como a cana-de-açucar, porque laureiam no plano simbólico algo que passa a ser constitutivo do universo eleito pelo poeta moderno. Daí a reincidência daquele rio na sua escritura, bem como de palavras cujo radical ou núcleo semântico se desdobra da ―cana‖. Há, portanto, uma diferença significativa na utilização que um e outro autor faz da Maré. No primeiro caso, a Maré é transformada em condição instrumental do lugar que vem a representar. No segundo, a Maré é a representação mesma de toda uma conjunção de fatores que atravessam a afetividade do poeta, que ele vê objetivada. Isso acontece, por exemplo, quando indica, descreve e nomeia a Maré como sendo própria da sua família, haja vista a VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 131 predicação ―da Jaqueira‖, onde estava encravada a experiência ancestral, mas também o evento de seu nascimento, circunstanciado no poema já mencionado ―Autobiografia de um só dia‖. Por conta de tudo isso, os quatro AA de Botelho nunca poderiam ser cifrados do mesmo modo por João Cabral. Neste sentido, também a experiência histórica reforça o argumento, uma vez que o registro dos fonemas vem a ser símile da realidade, o que também já foi assinalado a propósito da obra de Botelho de Oliveira. A representação das letras como signos de realidades essenciais é um lugar comum e cabalístico, que recupera em outro lugar noções já vistas da potência sonora como semelhança conceitual. Isso ocorre inclusive nos primeiros cronistas do Brasil que repetem com insistência a máxima de que as diversas línguas dos índios do Brasil não têm, nenhuma delas, nem F, nem L, nem R – por nenhum deles terem Fé, Lei ou Rei. Aqui o poeta usa o mesmo procedimento de tomar a letra A como signo dos conceitos elegidos, porém não para vituperar, e sim para fazer uma súmula do elogio à ilha, que em si perfeitos quatro AA encerra. (MUHANA, 2005, p. LXXXVII) Quanto ao valor representativo inerente ao fruto da terra brasileira, um dado a considerar é que o primo de João Cabral, Gilberto Freyre, esboçou uma narrativa consoante a qual o desenvolvimento do Brasil estaria condicionado à produção do açúcar e seria Pernambuco o seu centro produtor, chegando mesmo a escrever um livro de receitas que ilustra o modo como o objeto de consumo representa nossa sociedade, sob o título de Açúcar. João Cabral quando escreveu o poema ―Prosas da Maré da Jaqueira‖, que veio a ser publicado em 1980, já tinha se desfeito de todos os seus preconceitos ideológicos e houvera se transformado em leitor voraz daquele seu primo (MELO NETO, 1981: 102) como relatou em várias entrevistas e registrou em vários poemas, inclusive no que ora é objeto de análise. Além disso, João Cabral havia experimentado a sociabilidade canavieira por ter vivido nos engenhos de cana-de-açucar herdado ou arrendados por seu pai, o que também registrou no poema ―Menino de três engenhos‖. Como se não bastasse, toda a sua parentela era composta de proprietários de terra e de engenhos, que circundavam o VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 132 Capibaribe. De modo que falar do rio – ou de sua Maré -, para o pernambucano funciona ao mesmo tempo como uma maneira de acionar uma matriz historiográfica enraizada no seu seio familiar e também como evocação de um tipo de sociabilidade inscrita naquele espaço, contíguo ao rio, cuja propriedade passou à sua família de geração a geração durante séculos. Com isso, o poeta promove a rememoração de sua experiência infantil e juvenil, que se constituía junto ao rio que descreve no poema como ―o próprio-quase-tudo‖, fosse em decorrência de sua vivência ali, do que ouvira de seus antepassados ou do que elegera como objeto de representação literária. Daí se depreende uma compreensão de literatura que é vincada num espaço social, que é mediado pela experiência familiar, com a qual se confunde. Nesta medida, a representação social da obra cabralina sofre forte interferência do olhar de sua família, que inscreve num lugar determinado sua própria história e a transfere como modalidade expressiva da representação do Brasil. Por outra via, aí podemos identificar algo parecido com o que ocorria com Botelho de Oliveira, ainda que sob o véu de outros interesses e determinações. Por uma ou por outra razão, no confronto entre os poetas, fica-nos como saldo um balanço bastante modesto, porque só realça os conflitos sociais envoltos nos conflitos lingüísticos que atravessaram o Atlântico de Portugal ao Brasil, onde já havia uma disputa acirrada desde o século XVII também no plano lingüístico. Ao menos, em sua porção literária que é onde talvez a representação social seja mais eficazmente identificável. Referências bibliográficas FREYRE, Gilberto. Açúcar. São Paulo: Companhia das Letras, 1997 MELO, Mário. ―Suplicio de Frei Caneca‖ in: Revista do Insituto arqueológico, histórico e geográfico pernambucano. Recife: oficinas gráficas da repartição da república oficial,1924. V. XXVI pp. 335-342. MELO NETO, João Cabral. ―João Cabral de Melo Neto‖ in: STEEN, Edla Van. Viver e escrever. Porto Alegre: L&PM,1981. p. 99-109 ___________________. Obra completa. Organização Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. _____________________. Poesia completa e prosa. Organização Antonio Carlos Secchin. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 133 MUHANA, Adma Fadul. ―Introdução‖ in: OLIVEIRA, Manuel Botelho de. Poesia completa. São Paulo: Martins Fontes, 2005. STEGAGNO-PICCHIO, Luciana. História da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004. TEIXEIRA, Ivan. ―A poesia aguda do engenhoso fidalgo Manuel Botelho de Oliveira‖ in: OLIVEIRA, Manuel Botelho de. Música do Parnaso. Cotia: Ateliê, 2005. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 134 2. PAISAGENS DO CAPIBARIBE: ESPESSURA DA VIDA NA POÉTICA DE JCMN Lenise dos Santos Santiago (UFRN) A poesia de João Cabral de Melo Neto se apresenta como um laboratório de linguagem e no trabalho de construção e reconstrução o poeta constrói um rigoroso jogo de imagens cinematográficas, como se fosse uma provocação ao leitor para que este possa deglutir a palavra, a linguagem e, daí, surgindo o efeito sinestésico. Dessa forma, o trabalho consciente de ordenação das palavras faz surgir uma exaltação do silêncio configurado através dos elementos: deserto, secura, rio e pedra. O poeta anuncia o deserto como o espaço geográfico escolhido para instaurar a metáfora do silêncio que também se apresenta como metáfora da infertilidade e da negatividade, tais elementos articulam-se em busca do significado e significação do fazer poético e nada mais próprio que a aridez do deserto para provocar a exploração dos sentidos e, é, no silêncio do deserto, que a visão, um dos sentidos da notória predileção de João Cabral, é aguçada. A obsessão pela visualidade também se explica pelo desejo de negar a herança oral da poesia brasileira, ou seja, a aversão ao verso retórico (heptassílabo ou decassílabo), como também, à insistência ao uso da rima com cesura interna. Sua restrição ao senso comum da musicalidade na poesia, que julgava de efeito sonífero, explica sua forte aproximação com as artes plásticas. Tomando de empréstimo aspectos visuais da pintura – embora sem competir com ela, pois os usa em um sentido estritamente verbal -, Cabral enriquece o fazer poético e a própria linguagem, que, na dinâmica de produção de imagens, tradicionalmente, não pode prescindir da intermediação da imaginação. A visualidade é mais uma idéia no repertório cabralino como a insistência de uma luz solar incidindo ortogonalmente sobre o solo de sua poesia. Assim sendo, podendo-se dizer que é um exemplo de poesia sensitiva, em que a linguagem, pelo processo de desdobramento, se revela num veículo de construção da imagem. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 135 Conforme postula Octavio Paz (1982, p. 46) vem nos lembrar que na poesia ―Os estados passivos não são nada mais que experiências do silêncio, e o vazio nada mais é que momentos positivos e plenos: do núcleo do ser jorra uma profusão de imagens‖. Este conceito parece estar bem crivado na poesia de João Cabral, pois os elementos o silêncio e o vazio não representam um estado de alienação, mas uma metáfora que relaciona a consciência da participação da poesia na mediação entre a sociedade e o produto dela, sem, porém, criar ideologias, porque, através da poesia o poeta e o leitor, ou melhor, especificando, o homem se depara com os fundamentos do seu ser, ou seja, com uma real identidade, refletida pela palavra. Tomando como referência Sarduy (1989, p. 54), em seu estudo sobre o barroco, encontramos reflexos de retórica na obra cabralina, ao referirmos sobre o vazio que os personagens rio/homem configuram. A prática do barroco é uma retórica: a linguagem, funcionamento de um código autônomo e tautológico, não admite na sua rede densa, carregada, a possibilidade de um eu gerador, de um emissor individual, central, que se exprima - o barroco funciona no vazio -, que oriente ou contenha o transbordar dos signos. A luta entre a voz e o silêncio, ou melhor, a confrontação do poeta com o limite de sua voz é notória em Psicologia da Composição (1947), obra em que se evidencia a epígrafe Riguroso horizonte 32 de Jorge Guillén. Como também em Morte e vida severina (1956), através da peregrinação silenciosa do personagem Severino, o poeta retoma o processo de ―desemplumação‖ da linguagem. Marcada pelo prosaico, a linguagem se configura como uma tentativa de superação do vazio, tentativa que se revela impotente para o estabelecimento do contato e descoberta do novo mundo. Severino, em todos os contatos mantidos durante sua trajetória, só consegue fazer uma descoberta: é Severino igual a todos os outros. Essa homogeneidade parece caracterizar a imagem do homem barroco/moderno que traz consigo o pessimismo do drama do barroco e resistindo penosamente ao mundo é subserviente à moral estóica. O personagem Severino como personificação de tantos outros severinos, empreende todos os questionamentos e 32 Primeiro verso do poema El horizonte, de Jorge Guillén. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 136 angústias vivenciais, dentre eles, o limite da linguagem em face à existência precária que o persegue, se questiona e se confronta com o limite das respostas e do silêncio: [...] - Severino, retirante, pois não sei o que lhe conte; sempre que cruzo este rio costumo tomar a ponte; quanto ao vazio do estômago, se cruza quando se come. - Seu José, mestre carpina, e quando ponte não há? quando os vazios da fome não se tem com que cruzar? quando esses rios sem água são grandes braços de mar? [...] Seu José, mestre carpina, e quando é fundo o perau? quando a força que morreu nem tem onde se enterrar, por que ao puxão das águas não é melhor se entregar? - Severino, retirante, o mar de nossa conversa precisa ser combatido, sempre, de qualquer maneira, porque senão ele alaga e devasta a terra inteira. (MELO NETO, 1994, p. 193, 194) (grifo nosso) VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 137 A linguagem como um signo imanente ao homem e às suas relações, reflete a condição de existência social. Compreende, ainda, à relação comum que ele mantém com o signo e seus significantes, por isso, Seu José, mestre carpina, percebendo a angústia de Severino, atenta para o perigo que o mar da linguagem não bem arquitetada pode lhe causar. O mar de uma entrega, que deve ser freado pelo mar do silêncio, precisa ser enfrentado para acabar com o risco de não ser domado. Do mesmo modo o rio na cheia, com seu discurso descontrolado, precisa ser evitado. Por estar passivo às suas limitações, o confronto do homem com suas experiências e angústias leva-o ao vazio e ao drama da não resposta. Experiência esta que poderia ser apontada como um fato negativo, no entanto, poderíamos ver como veículo que o conduz a um estado de retorno a si e, ainda, como uma tentativa de compreensão da própria linguagem. Dessa forma, a experiência do silêncio deve ser vista como um vetor de reconciliação do homem consigo e com o mundo. Através do exercício da poesia, a experiência do silêncio rompe com as barreiras de tempo e espaço unindo o poeta às suas fontes de compreensão. Como o rio Capibaribe, Severino se define por sua natureza desvalida – ambos estão sujeitos a um destino de penúria, motivados pela seca. É a marca da carência que os aproxima e os une numa poética de travessia. Sempre se mirando, um sendo o eco do outro, rio e homem mal podem ser distinguidos. Sente-se que o rio identifica-se com o viver nordestino, ou mesmo que o rio e a vida compartilham da mesma sina ―severina‖. A relação isomórfica entre rio e homem torna-se, na poética de João Cabral, metáfora de realidades amplas e, ao mesmo tempo, projeção simbólica de procedimentos de uma cultura regional que se projeta diante da precariedade da sobrevivência. Com isso, percebese a semelhança de enredo social entre os poemas narrativos O rio e Morte e vida severina, ambos nascem da mesma razão sociológica como também do uso do prosaico, do polirrítmico, aderente às flutuações da linguagem coloquial. A absorção da oralidade é muito bem expressa no poema O rio. O Capibaribe é uma espécie de narrador etnográfico subjetivo que, conforme Benedito Nunes (1974, p. 79), ―de tudo que vê, dá correta notícia oral ao poeta, mencionado no texto como senhor da freguesia de Tapacura‖. Assim, o poema como forma de documentário é o registro poético de um percurso de viagem que, por diversos níveis: o geográfico, o humano e o social, anunciam e denunciam a penúria do meio regional. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 138 Através da linguagem catalisadora de metamorfoses, transmutam rio em homem e homem em rio, tornando esses elementos temáticos em seu relacionamento recíproco, imagens poéticas confluentes. Nisso, a travessia d`O rio do Capibaribe pela cidade do Recife confunde-se com a travessia de Severino do Agreste pela Zona da Mata pernambucana ao Recife, levando consigo os tantos rios que tantos severinos buscam. Nos poemas O rio e Morte e vida severina, apresentam-se duas histórias – Severino, retirante e o Capibaribe, rio cujo leito leva ao Recife, ambos buscam o mesmo espaço, conscientes do mesmo destino. As realidades do rio e do homem não estão isoladas. As contradições e as oposições estão caracterizadas através do ―discurso‖ do rio, traduzindo-se a realidade porque passam e daí entram num processo de transmutação: N´O rio realiza-se a transmutação rio/homem. Os rios que eu encontro vão seguindo comigo. Rios são de água pouca, em que a água sempre está por um fio. (MELO NETO, 2000, p. 14) Em Morte e vida severina acontece a transmutação homem/rio, em que, através de determinado processo, o conceito da realidade severina favorece à construção de um outro eu: Ao entrar no Recife, não pensem que entro só. Entra comigo a gente que comigo baixou por essa velha estrada que vem do interior; entram comigo rios a quem o mar chamou; entram comigo gente que com o mar sonhou, (Ibid., p. 30) VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 139 Entre os elementos metafóricos, o rio e o homem, originam um sistema de equivalência em que o rio humanizado e o homem fluvializado confundem suas naturezas, em face de um estado de precariedade por ambos compartilhados. O rio que se transmuta em homem carrega consigo todas as mazelas dos migrantes severinos que abandonam o sertão rumo ao litoral, encontrando em sua longa viagem apenas a morte. É o que segue em O Rio: Tudo o que encontrei na minha longa descida, montanhas, povoados, caieiras, viveiros, olarias, mesmos esses pés de cana que tão iguais me pareciam, tudo levava um nome com que poder ser conhecido. A não ser esta gente que pelos mangues habita: eles são gente apenas sem nenhum nome que os distinga; que os distinga na morte que aqui é anônima e seguida. São como ondas de mar, uma só onda, e sucessiva. (Ibid., 38, 39 e 46) (grifo nosso) [...] Somos muitos severinos Iguais em tudo na vida: Na mesma cabeça grande Que a custo se equilibra, No mesmo ventre crescido Sobre as mesmas pernas finas, E iguais também porque o sangue Que usamos tem pouca tinta. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 140 E se somos severinos Iguais em tudo na vida, Morremos de morte igual, Mesma morte severina: [...] (Ibid., 38, 39 e 46 - grifo nosso) Compondo uma escritura fortemente voltada para a captação da realidade social e humana, os poemas recriam paisagens dessublimadas, dão a ver um espaço depurado de imagens idealizadas, resultando o texto poético numa mescla de esferas que abarca o regional e o universal. E, essa universalidade vem configurar no texto cabralino, nuances do barroco. As inquietações, esperanças e desesperanças dos severinos-rios ressoam os questionamentos próprios do ser humano, em qualquer parte e em todos os tempos. Podemos perceber, então, que o que alimenta e embasa os textos em estudo não é somente a ligação temática da escritura com o povo, com o cotidiano, com a experiência, com a natureza, mas, também, a opção estilística direcionada para o reaproveitamento de expedientes com que a gente do nordeste constrói suas narrativas, imprimindo sentido ao seu existir. Daí um trabalho com a linguagem que, adotando mecanismos intertextuais, remete às tradições folclóricas, ao estilo dos cantadores e ao romanceiro popular, fonte de que provém grande parte do material poético. Isso é bem observado por Alfredo Bosi (1994, p. 471) quando aponta: ―O convívio com a meseta castelhana dos homens de pão escasso e com a poesia ibérica medieval, há um tempo severa e picaresca, acentuou em Cabral a tendência de apertar em versos breves e numa sintaxe incisiva o horizonte da vivência nordestina‖. Observação esta percebível em toda a obra cabralina, sobretudo em Morte e vida severina. Na trajetória retirante, tanto de Severino quanto do poema, aparece uma articulação de construção da peça às avessas. Pois, nada mais é que uma antítese, a presença da morte que paradoxalmente busca a vida é, por excelência, o eixo da narrativa. Assim, contrariando a lei natural da vida, temos, portanto, uma despoetização da existência. Dado este percebido pelo próprio retirante ao declarar: – Desde que estou retirando só a morte vejo ativa, VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 141 só a morte deparei e às vezes até festiva; só a morte tem encontrado quem pensava encontrar vida, e o pouco que não foi morte foi de vida severina (aquela que é menos vivida que defendida, e é ainda mais severina para o homem que retira). (MELO NETO, 1994, p. 177 - 178) Luiz Costa Lima, em Lira e antilira (1995, p. 270), observa que todo o poema é construído a partir de um desdobramento ―mais que a história de Severino retirante, o poema é um desdobramento por dentro do que signifique a imagem da morte e vida severina‖. Considerando que acontece um desdobramento do personagem naquilo que vem retratar o caminho que Severino e o rio se propõem a fazer, se observa que o nome do herói dramático ―Severino‖ passa de substantivo próprio a, também, substantivo comum, pois na sua caminhada encontra diversos ―severinos‖, é qualquer um, ou seja, todos. É, também, substantivo abstrato pela própria condição que nomeia sua vida severina e é concreto porque os dois termos que articulam o poema ―morte e vida‖ são tão concretos quanto o próprio personagem – Severino. Essa característica do desdobramento é detectada não somente em Morte e vida severina, mas, também, nas co-relações temáticas do conjunto literário cabralino. As obras O cão sem plumas, O rio e Morte e vida severina apresentam uma maior evidência por acomodar uma tensão temática coletiva, pois os elementos poéticos cão, rio, homem são construídos a partir de um molde descritivo através do poema narrativo, os quais mantêm uma relação de traspassamento, em que todos eles sincronicamente compõem uma extensão de suas imagens, descritas como opacas, espessas, estagnadas. É o que apresenta os versos a seguir de O cão sem plumas: § Como o rio aqueles homens são como cães sem plumas VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 142 (um cão sem plumas é mais que um cão saqueado; é mais que um cão assassinado. § Um cão sem plumas é quando uma árvore sem voz. [...] § O rio sabia daqueles homens sem plumas. [...] (MELO NETO, 1994, p. 105 – 108) Em, O rio: [...] Eu não sei o que os rios têm de homem do mar; sei que sente o mesmo e exigente chamar. [...] Vou andando lado a lado de gente que vai retirando; vou levando comigo os rios que vou encontrando. [...] Vou na mesma paisagem reduzida à sua pedra. A vida veste ainda sua mais dura pele. Só que aqui há mais homens para vencer tanta pedra, VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 143 [...] Há aqui homens mais homens que em sua luta contra a pedra sabem como se armar com as qualidades da pedra. (Ibid., p. 119, 121 e 124) Em Morte e vida severina, revela-se a voz do rio. O discurso do Capibaribe é personificado através do personagem Severino, fazendo, então, acontecer o desdobramento do discurso que se amplia passando por diversos níveis descritíveis – o geográfico, o humano e o social, os quais se integram entre si, dentro de uma mesma realidade. Severino insiste, tentando fazer-se ouvir: [...] Como então dizer quem fala ora a Vossas Senhorias? Vejamos: é o Severino da Maria do Zacarias, lá da serra da Costela, limites da Paraíba. Mas isso ainda diz pouco: se ao menos mais cinco havia com nome de Severino filhos de tantas Marias (Ibid., p. 171 ) (grifo nosso) O herói nordestino, de forma cerimoniosa, usando o pronome de tratamento na segunda pessoa do plural (vossas senhorias), dirige-se ao público que não se empolga com sua apresentação, tendo em vista que ele ―Severino‖ é simplesmente mais um dentre tantos outros. Configurando, mais uma vez, o desdobramento do perfil do personagem, afirma: ―Mas isso ainda diz pouco: [...] se ao menos mais cinco havia [...] com nome de Severino [...] filhos de tantas Marias‖. Demonstrando a responsabilidade com o objeto poético em VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 144 relação à composição e à tessitura, o poeta constrói um desdobramento interno da imagem que se transpõe para o nome do personagem, seu prosaísmo voluntário da linguagem configura o romanceiro popular do nordeste expresso através da uniformidade dos versos em redondilha. A responsabilidade do poeta não somente quanto artista, mas, sobretudo ética, leva o leitor à construção de uma leitura também ética, visto que o texto não é simplesmente o lamento do personagem que se mostra pobre e impotente e sim uma chamada à consciência, de forma elegante e intelectualizada, ao comprometimento humano, social, cultural e artístico. REFERÊNCIAS LIMA, Luiz Costa. Lira e antilira. 2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995. MELO NETO, João Cabral de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. __________. Cadernos de Literatura Brasileira. São Paulo, n. 1. Março, 1996. NUNES, Benedito. João Cabral de Melo Neto: Poetas modernos do Brasil. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 1974. PAZ, Octávio. O arco e a lira. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. SARDUY, Severo. Barroco. Trad. Maria de Lurdes Júdice e José Manuel de Vasconcelos. Lisboa: Vega, 1989. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 145 3. O TEATRO DA MORTE E DA VIDA: A ESCRITA BARROCA DE JOÃO CABRAL DE MELO NETO Francisco Israel de Carvalho (UFRN) A obra objeto deste trabalho é o poema/peça Morte e vida severina – O Auto de Natal pernambucano, quando procuramos identificar marcas, rastros, confluências do Barroco como expressão da modernidade, na obra cabralina. O Barroco em que todos os poetas de vanguarda se inspiraram, por ser um estilo de elaboração da linguagem como expressão poética, tradição que chega aos poetas contemporâneos como Severo Sarduy, Eugênio D´Ors, Haroldo de Campos, Lezama Lima, críticos e teóricos do século XX. Assim, em Morte e vida severina, João Cabral trata temas clássicos do Barroco, como morte e vida, no mesmo plano da importância, construindo o seu poema entre esses dois paradoxos da existência humana, fazendo uma releitura desse Barroco que rompe as fronteiras do Século XVII. Em Morte e vida severina, o personagem vive toda a via crucis da vida do sertanejo, sempre às voltas com as constantes estiagens e o êxodo rural permanente. Vê a morte de perto, carrega todas as dores da alma nordestina na busca pela sobrevivência: morte e vida, dor e alegria, seca e abundância, desilusão e esperança. A escrita de João Cabral de Melo Neto transporta para o século XX essa contemporaneidade do Barroco, em um rigoroso trabalho de construção da linguagem, onde a métrica e as palavras são minuciosamente trabalhadas. Nesses termos, encontramos uma relação Barroco versus Modernidade em Morte e vida severina, no que afirma Irlemar Chiampi: A relação Barroco x Modernidade quer situar-se, pois, após o debate acadêmico gerado com a oposição entre um conceito do Barroco como estrutura histórica (um estilo, uma prática discursiva do Século XVII), fortemente ligado à Contra-Reforma, às monarquias e à classe aristocrática – logo, reacionário e antimoderno – e o conceito de barroco eterno, atemporal, uma forma que ressurge, não importa quando nem onde. (CHIAMPI, 2000, p. XVII) Além do Barroco que permeia toda a obra Morte e vida severina é de importância destacar também os aspectos formais e estruturais da composição, além de toda temática voltada para as VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 146 questões de ordem social que afligem o Nordeste e os nordestinos, tais quais: a constante estiagem e o domínio do latifúndio que exclui do setor produtivo grande parte da população nordestina. Neste contexto, a poesia cabralina surge como uma voz que denuncia as situações, mas não anima as controvérsias, revela os desequilíbrios como estratégia, mas não aponta soluções, porque não é esse o papel da poesia. Apenas mostra, expõe a ferida. No discurso de Severino há um nivelamento dos muitos outros sertanejos severinos. Justificando essa constante diáspora do homem sertanejo na morte e na vida cabralina, Antonio Carlos Secchin assim escreve: Em Cabral, o Sertão nasce para anunciar a morte: sertão, serthânatos. Natureza desfalcada, palco de atores-bichos, homens, rios – em perpétua retirada, ele também não deixa de ser, por contraste, o emulador de uma afirmação vital: viver nele, apesar dele. É nesse jogo entre devastação e resistência que a poesia da morte e vida cabralina vai tentar traduzir o Sertão. Traduzi-lo num viés etimológico: atravessá-lo, levá-lo além, de um ponto a outro: do verso do poeta ao reverso do deserto (ou desertão) onde a vida severina pede passagem. Traduzir o deserto solar do Sertão no deserto polar da página branca, pois ―o sol de palavra/é natureza fria‖ (MELO NETO, 1994: p.414). (SECCHIN, apud CAMPOS [org], 1995: p.12-15) Nesse sentido é que lançamos um outro olhar sobre Morte e vida severina, obra que levou João Cabral a tratar de um tema clássico do Barroco: a morte. Focalizaremos essa tendência barroca de trabalhar os opostos no mesmo plano de valor: morte e vida, vida e morte, alegria e dor, seca e abundância, fome e fartura, herói e anti-herói, o um e o múltiplo, o jogo da parte pelo todo, o bem e o mal. Essa peleja entre a morte severina e a vida severina é tratado por João Cabral em todo o percurso de seu personagem principal, que tem uma existência esgueirando-se entre a morte e a vida, morte física e social, individual e coletiva. Vemos no personagem central do poema, o Severino retirante, características do homem barroco vivendo situações diferentes, em mundos diferentes, entretanto, trazendo no corpo e na alma, a mesma angústia, o medo, a incerteza, a perplexidade diante do novo. A incerteza da existência, o subdesenvolvimento das regiões pobres esmagadas pelas sociedades mais ricas e industrializadas, aproximam esses homens tão longe e tão perto, a um só tempo. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 147 Vejamos as palavras de Ávila (2000: p. 26) sobre essa ligação entre o homem de hoje e o homem barroco: O homem barroco e o do Século XX são um único e mesmo homem agônico, perplexo, dilemático, dilacerado, entre a consciência de um mundo novo – ontem revelado pelas grandes navegações e as ideias do humanismo, hoje pela conquista do espaço e os avanços da técnica – e as penas de uma estrutura anacrônica que o aliena das novas evidências da realidade – ontem a contra-reforma, a inquisição, o absolutismo, hoje o risco da guerra nuclear, o subdesenvolvimento das nações pobres, o sistema cruel das sociedades altamente industrializadas. Nesta afirmação, Ávila tanto coloca o personagem Severino no mesmo patamar de crise do homem barroco, como o próprio artista moderno, que assume, absorve, na sua arte, o mesmo ―status–quo‖ dos seus personagens, criando versos/formas agônicas, perplexas, dilemáticas, retratando o mundo atual. fazendo da viagem do retirante, uma empreitada da própria existência, procurando respostas, caminhos, alternativas, saídas...para entender a realidade de um mundo tão cruel. Como afirma Ávila (2000: p. 35): Um João Cabral de Melo Neto, ao trabalhar num remordimento formal barroco seus poemas que têm como pretexto o Nordeste açucareiro, faz incidir a sua visão crítica e criadora sobre a mesma realidade, a mesma estrutura econômica monocultura, a mesma sociedade de raízes patriarcais, feudais, que suscitaram no Século XVII a veemência satírica de Gregório de Matos. A presença de um Barroco, ou de um Neobarroco – como nomeia Omar Calabrese – , que não tem registro de nascimento, não é vinculado à Igreja como uma arma mortal da Contra-Reforma. Um passado que é recuperado por João Cabral com gosto de presente, de atualidade, buscando no Barroco, algo que podemos chamar de modernidade, extraindo o poético do histórico, o eterno do transitório. Conforme Ávila (idem: p.34) Há sem dúvida uma insinuação de formas barroquizantes em toda aquela vertente literária que entre nós se caracteriza pela propensão inventiva, pela VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 148 criatividade da linguagem, pela ascendência da informação estética sobre a semântica. E é o que faz João Cabral. Com uma escrita inventiva e bem elaborada, ele tanto lança mão das técnicas da poesia popular do Nordeste, quanto do cancioneiro popular/erudito da tradição ibérica, quando utiliza o heptassílabo e a assonância. Há ―um método‖, um modo na escrita cabralina, assim como existia no Barroco, no qual aparentemente se instalava a desordem, o desperdício, o inacabado, a instabilidade, a insegurança, o imprevisível, a nãoordem, havia uma harmonia interna fazendo a ligação do pormenor ao todo e relações nas quais os elementos contraditórios se explicavam. Na escrita cabralina, o Barroco tem um gosto do nosso tempo, aparentemente confuso, fragmentado, em ruínas e indecifrável, assim como no Seiscentos. Fugindo da etiqueta de uma escola de arte específica, não representa também um ―retorno‖ ao Barroco, mas um Barroco que começa a ter um significado de ―constante‖. Para Calabrese (2000: p.10): O ―Neobarroco‖ é simplesmente um ―ar do tempo‖ que alastra a muitos fenômenos culturais de hoje, em todos os campos do saber, tornando-os parentes uns dos outros, e que, ao mesmo tempo, os faz diferir de todos os outros fenômenos de cultura de um passado mais ou menos recente. João Cabral instaura, em Morte e vida severina, todo esse estado de coisas que o aproxima do Neobarroco quando denuncia, por meio do seu personagem central – o Severino retirante e o outros personagens flutuantes da história –, uma situação de miséria e abandono do homem do Nordeste a qual se arrasta há séculos. Essa mesma situação que ele próprio testemunhou, quando criança, e que o acompanhou durante a vida em outros países. O enredo de Morte e vida severina, engendrado por Cabral, confirma o ―ser barroco‖ nos tempos modernos, como define Sarduy (1989: p.96): Arrisco-me a defender o contrário. Ser barroco hoje significa ameaçar, julgar e parodiar a economia burguesa, baseada numa administração avarenta dos bens: ameaçá-la, julgá-la e parodiá-la no seu próprio centro e fundamento. O Barroco moderno, o Neobarroco, reflete estruturalmente uma discordância: a VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 149 ruptura da homogeneidade, a ausência de um logos absoluto, a carência em vez do fundamento como episteme. Tomando como suporte as palavras de Severo Sarduy e Omar Calabrese, identificamos na escrita de Morte e vida severina rastros desse Barroco regional, caracterizado por uma escrita inventiva, estruturada minuciosamente e elaborada sem a ―inspiração‖ comum aos poetas. Entretanto, essa escrita é trabalhada mentalmente, através de um rigoroso trabalho de linguagem e construção – a dura poesia cabralina feita de ―pedra bruta‖ e lapidada como a ―pérola irregular‖ do Barroco. Em Morte e vida severina, o personagem principal, a começar pelo próprio nome, já nos leva a uma discussão dos significados possíveis nele contidos – Severino, que de nome próprio, um ser individual, passa a representar o coletivo: todos os que sofrem, mesmo que em situações diferentes. É ele que articula os dois sintagmas: morte e vida, vida e morte presentes em todo o percurso do retirante. João Cabral, para contar a história do Severino, utiliza a forma dramática do teatro, como a dizer: Morte e vida severina é um poema não apenas para ser lido em voz baixa, mas, para ser visto, representando, teatralizado, como recomenda a estética barroca. Nesse sentido, Morte e vida severina se inscreve como uma obra do teatro barroco, o teatro da morte e da vida, não sendo possível distinguir o que é palco e o que é realidade. Nessa perspectiva, conforme Sant‘Anna (2000: p. 165): No Barroco, portanto, o espetáculo transcende as paredes do teatro, exorbita nos rituais religiosos, faz seu jogo de cena nos palácios e estende-se pelas ruas e campos de batalha. A própria vida não passa de um ato dentro de um drama que dirigindo-se para a morte espira ambiguamente do trágico e ao sublime. A viagem de Severino nada mais é que a representação da vida severina dos homens do sertão, mas também uma representação que diz da própria realidade. O personagem central, os cenários, os personagens secundários são obra de ficção e são reais. O simulacro do que é real e do que é fantástico, mítico. Eles existem na imaginação do poeta e na vida real e são facilmente identificados. O que em Morte e Vida é palco e o que é realidade? O palco funciona como um espelho da realidade, sendo o espaço cênico reinventado com a história ―verdadeira‖ do personagem, que tem como característica a inconstância de um ser que é uno, individual e VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 150 coletivo ao mesmo tempo. É um e muitos. E esse é um dos traços principais do Barroco. Assim é em Leibniz o conceito das mônadas: a mônada é um ser uno, assim como a mente, mas só é distante da outra pela sua atividade interna. Contudo, cada mônada espelha o universo inteiro, mesmo sendo essa unidade. Para Leibniz, ―só o indivíduo existe, e ao mesmo tempo, existe em virtude da potência do conceito: mônada ou alma‖ (DELEUZE, 1991, p.101). Podemos fazer relações desse conceito das mônadas com as primeiras cenas de abertura de Morte e vida severina quando nos trinta primeiros versos, Severino tenta apresentar-se ao público/leitor, mas depara-se com uma dificuldade: a falta de individualidade, pois mesmo sendo um único indivíduo, representa cada retirante despersonalizado, sem passado ou futuro, sem esperanças e ao mesmo tempo, há uma identidade coletiva contida em si mesmo e, representada por ele próprio: ―E se somos muitos Severinos /iguais em tudo na vida, /morremos de morte igual, /mesma morte severina: (MELO NETO, 1994: p. 172) Esse Severino representa outros Severinos ―iguais em tudo na vida‖, iguais até na mesma morte ―severina‖, desdobra-se em outros, aumenta, cresce, multiplica-se em outros. A desdobra não seria o contrário da dobra, mas segue a dobra até outra dobra. (DELEUZE, 1991, p.18). Seria uma transformação ou a extensão do outro. Nesse sentido, há em Severino essa característica barroca de ser multifacetado, que traz consigo a mesma dor, a mesma sina, a mesma igualdade, a mesma morte, os mesmos desejos de outros iguais a ele. Como diz Nunes (1974: p. 82-83), contraditoriamente, Severino dá nome ao que é anônimo, ao que é vinculado pela igualdade do anonimato, tanto na vida como na morte – morte e vida formando um todo em que a primeira envolve e determina a segunda. Ele, como figura, é o avesso do belo. É o oposto, o grotesco. João Cabral rompe a ideia de só se retratar o belo e o sublime na poesia. Ele assimila, assim, na construção do seu personagem, o feio que foi representado sistematicamente pelo Barroco. O feio e o belo se misturam. Por ser grotesco, o Severino está mais próximo do belo, ou seja, sua beleza está em ser grotesco. O Severino é lançado numa caminhada que representa ―um labirinto‖, pois os descaminhos levam somente à morte. Um labirinto como um enigma, um mistério representado naqueles personagens que cruzam a todo instante, nas mortes de outros ―severinos‖, como ele, que não conseguiram encontrar a saída do labirinto da fome, da miséria, do latifúndio, da morte, mesmo que no final encontre a vida, é uma ―vida severina‖, uma vida que é morte e uma morte que é vida. Tudo no mesmo patamar de igualdade. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 151 O percurso que faz o Severino podia ser representado pelo ―labirinto cúbico‖ tão comum no Barroco, quando a reta e a curva se encontram. O poema representando a imagem da serpente que morde o próprio rabo. O círculo que se fecha: o Severino que nasceu na Serra da Costela e migrou nessa caminhada incerta, caótica, labiríntica, retornando ao ponto de partida, ao advento de outra ―vida severina‖. Sobre esse labirinto tão presente no Barroco, assim descreve Sant‘Anna (2000: p. 61-66): O labirinto tem consonância com a vontade frustrada de se chegar a alguma parte...No entanto, para se entender mais estruturalmente o sentido, da imagem do labirinto no Barroco, é indispensável vinculá-la à temática do ―peregrino‖, tão reincidente nessa época. Essa afirmativa nomeia o Severino como um personagem barroco, mergulhado num labirinto representado por um itinerário pontilhado de obstáculos, de mortes, de vidas. O labirinto que existe porque há outro personagem que o percorre, representado por esse peregrino Severino, um ser que parece perdido, sem rumo ou direção, personagem presente também na poética de Cláudio Manoel da Costa, Gôngora e Padre Alexandre de Gusmão. Como podemos perceber, as viagens já eram comuns na literatura, mas foi no Barroco que tomou essa conotação de uma empreitada angustiosa e mítica de peregrinar nos labirintos do mundo. No Barroco, a imagem do peregrino está imbricada a outras imagens barrocas que remetem a peripécia, movimento, trânsito, instabilidade. Transportando essa imagem para o hoje, onde o sentido mítico e mágico dá lugar ao sentido social, o peregrino perde-se no labirinto social, onde não tem lugar definido. É um deslocado, um excluído, conforme a retórica social dos tempos atuais. Um ―faz tudo‖ em todos os ofícios, mas não tem uma profissão definida, uma peça que não se encaixa na engrenagem social e econômica dos nossos dias, Severino ―peregrino‖ não consegue um ofício na sua caminhada ‖pois sempre foi lavrador, lavrador de terra má‖ (MELO NETO, 1994: p.179). Segue como um excluído até chegar à parada final e João Cabral não dá conta se ele continua lá ou volta para sua terra, pois tudo é interrompido pelo presépio que é representando, quando ele pretendia ―saltar fora da ponte e da vida‖. Permanece um indivíduo perplexo diante da incerteza da vida, esgueirando-se no caos cotidiano. O Barroco é uma representação de tal perplexidade e os sinais dessa incerteza e desse caos é uma configuração barroca. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 152 O personagem de João Cabral é um herói atípico: magro, esquálido, pernas finas, cabeça grande, mas que não se dá por vencido. Um herói às avessas que, diferentemente do herói clássico, não tem que enfrentar o Minotauro; um herói moderno que enfrenta a fome, a seca, a morte, o latifúndio, a industrialização, mesmo que desamparado no labirinto do mundo. Se os heróis clássicos tinham deuses e senhas que os conduziam pelos labirintos e tempestades, os heróis modernos sentem-se perdidos em seus labirintos pessoais e nos labirintos do mundo, não encontrando saídas dignas para seus passos. Seria o ―herói problemático‖ como afirma Sant´Anna (2000: p. 69): ... O herói moderno, menos divino que seus arquétipos, sente-se mais desamparado diante dos labirintos. Mas em seu sentido original, o labirinto tem uma conotação iniciática. Conduz a um centro e quem o percorre realiza uma ―viagem‖ ou ―prova‖ que o leva (como no caso de Teseu ao enfrentar o Minotauro) a um certo poder. Mas, na modernidade a questão do poder do herói também foi arguida desde que a partir do Romantismo, foi se tornando frequente a presença do ―herói problemático‖, oposto ao herói divino e monolítico do mundo clássico. E Severino realiza essa ―viagem‖ que é uma ―prova‖ da própria existência. Uma imagem que tem o Rio como guia, mas, por conta da aridez, o rio seca e a viagem torna-se um labirinto a ser decifrado, vencido. Vencido este, João Cabral faz o seu personagem chegar ao fim da caminhada e deparar-se com o labirinto da cidade. No passado não havia futuro, no presente também não há expectativas de melhorias. Um presente que é lido através do passado, apontando diferenças e semelhanças. O drama barroco é pessimista. Os homens resistem penosamente ao mundo. Em João Cabral, o Severino revive esse drama. Como no Seiscentos, o herói moderno enfrenta uma época de instabilidade social, as pessoas migrando do campo para a cidade, guerras eclodindo por todos os lados. Assim como no Barroco, há uma sensação de desamparo pessoal e coletivo. O Severino sobrevive a esse caos social e pessoal. Chega ao fim da jornada testemunhando ―o espetáculo da vida‖(MELO NETO, 1994: p. 202). Essa similaridade entre o herói clássico e o herói barroco, também impregnada no personagem de João Cabral, é confirmada também nas palavras de Sant´Anna (2000: p. 222): VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 153 Se o herói clássico era aquele que se igualava aos deuses exercendo fisicamente todas as suas potencialidades humanas e sobre-humanas, no Barroco será o mártir, execrando seu cadavérico corpo, num conluio com os vermes, interessando-se pela epopéia celestial da alma peregrinando, extático, em busca da ressurreição. O percurso da jornada do Severino é, na verdade, um percurso-jogo, no qual em cada parada ele se depara com numerosos obstáculos – a morte, o principal deles – e trampolins a vencer. Severino é esse herói que chegará ao fim desse labirinto, não só encontrando saídas justas, – a maior delas a desistência da morte antecipada –, mas superando situações difíceis, individualizando seus próprios passos com uma velocidade sempre crescente até o destino final. Calabrese (1987: p. 149-150) define esse percurso numa comparação clara com a ―dobra barroca‖ que vai até ao infinito, confirmando assim marcas barrocas na escrita cabralina: ―Aparentemente, o percurso move-se até ao infinito. Na realidade, os diversos quadros estão ligados entre si, e haverá sempre um final que se relega ao primeiro‖. Morte e vida severina também trata de outros temas recorrentes no Barroco, como a passagem do tempo e da existência. O tempo é um dos temas mais constantes no universo barroco, isso reforçado pelo estado de crise presente no homem barroco, eternamente dilacerado e angustiado diante da alteração dos valores, com o advento do protestantismo e da brigada da Contra-Reforma, empreendida pela Igreja. Senna (1980: p. 69) faz um estudo sobre o tempo na poética cabralina e em Morte e vida severina, quando afirma que há uma aceleração do tempo provocada ―pela própria condição Severina da vida no Agreste‖, que faz o Severino migrar, para defender, estender o tempo da vida que é tão curta no sertão: ―O que me fez retirar / não foi grande cobiça; / o que apenas busquei / foi defender minha vida / da tal velhice que chega / antes de se inteirar trinta;‖ (MELO NETO, 1994: p.186) No nosso dia-a-dia é comum passarmos de um território para outro. É uma desterritorialização (DELEUZE e GUATTARI, 1995: p.17) cotidiana, nela se abandona, mas não se destrói o território abandonado. Podemos tomar a história de Severino como um caso concreto de desterritorialização e reterritorialização. O sertanejo enfrenta esses dois processos. Severino migra rumo à cidade grande, por ser época de seca. Como outros ―Severinos‖, termina por habitar as periferias urbanas, sendo envolvido num imenso conjunto de enunciação VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 154 totalmente diferente dos agenciamentos que teria enquanto trabalhador da lavoura. Os territórios são outros, mas essa dinâmica de transitar por vários territórios é semelhante. Existe o seu território de morador com seus códigos territoriais e as relações de poder da comunidade. Existe o território do trabalho, que é mais difícil de delimitar, pois ele passa por vários ofícios. Depois, acontece o movimento inverso. É comum na época da colheita, esse Severino se desterritorializar, abre os agenciamentos e vai se reterritorializar novamente no trabalho do campo de onde veio ou, em outro lugar. João Cabral não dá conta disso, dessa reterritorialização do Severino na sua volta para a Serra da Costela, mas na sua peregrinação ele passa por vários novos territórios e pensa em ficar. Mas, Severino termina no mangue, na beira do Rio Capibaribe, onde encontra uma comunidade e onde é testemunha do nascimento de um menino, metaforicamente uma alusão ao nascimento de Cristo, que representa a esperança de uma vida nova, mesmo que essa vida seja ―a explosão de uma vida severina‖. A história termina assim e não se sabe se haverá um processo de reterritorialização do Severino naquele lugar ou se ele retorna às suas origens, protagonizando um processo que se repete a cada estiagem. Na canção popular se prega que quando o verde se espalha pela plantação é hora de voltar (Asa Branca – Luiz Gonzaga-Humberto Teixeira). O que Marta Senna destaca, em relação ao tratamento do tempo, é ditado pelas ciganas, o que reputa como de mais original em toda obra cabralina: Mas, o que Morte e vida severina traz de original quanto ao tratamento do tempo no conjunto da obra de João Cabral de Melo Neto é a tentativa, traduzida pelas ciganas, de conquistar o futuro, de subjugar o tempo. (SENNA, 1980: p.70) Para essa autora, dos três poemas que formam a trilogia do rio (O cão sem plumas, O Rio e Morte e vida severina), ―este é o que quase ignora o problema do tempo, já que as condições de vida são tão adversas‖ (SENNA, 1980: p.20). Há uma passagem rápida do tempo, Severino quer chegar logo ao seu destino final, esperando uma vida melhor do que a vivida até então. É um tempo rotineiro, o tempo da ladainha e do rosário. Sempre o mesmo; igual e repetitivo, não fosse a diferença das mortes e das vilas, onde a vida é transformada a cada instante: ―Sim, o melhor é apressar / o fim dessa ladainha, / fim do rosário e nomes / que a linha do rio enfia; / é chegar logo ao Recife, / derradeira ave-maria (MELO NETO, 1994: p.187). VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 155 Na verdade, a viagem não finda. É o recomeço da mesma ―vida severina‖. João Cabral coloca o seu personagem no mundo real e exterior. O tempo também é real. O tempo da pressa, porque Severino não pode esperar mais. Quer outra forma de vida, ―longe das pás e enxadas, foices de corte e capina‖. Mas, o passado caminhou com ele até o presente. É o tempo da memória do poeta, que, mesmo sem perceber, integra sua vida, a sua obra, somando sensações, tanto do presente, quanto do passado, do menino dos engenhos de cana e do adulto peregrino, como o alicerce da sua poética. João Cabral utiliza, na construção da sua obra, não uma história distante ou alheia à realidade social, que ele presenciou desde a infância. Na sua poesia, o passado é sempre presente, porque é igual. O tempo é o fio condutor pelo qual o poeta conversa com a tradição e define trajetórias para o seu personagem, num movimento que é cíclico: o da migração. Através da seca e por conta dela, o poeta reproduz essa memória histórica, sendo ela o que determina todo o enredo, todo a trama e o desenrolar da história. Enfim, através da escrita, que assume o lugar da voz, ele recupera um tempo passado que começa rapidamente a se perder, desintegra-se frente às novas facetas da vida moderna, que rejeita a tradição e defende o novo como a grande novidade, mesmo sabendo que ele é impregnado do passado. As cenas do presépio são uma mistura do texto bíblico com os textos extraídos do folclore pernambucano, inspirados nos pastoris e nas tradições ibéricas, tudo utilizado textualmente em Morte e vida severina. João Cabral faz uma alegoria do nascimento de Cristo criando personagens profanas para o texto, tudo remetendo ao significado do sagrado trazendo para sua obra essas alegorias, assim como fazia o artista barroco. A inclusão de outros textos no presépio dá-se por conta das duas ciganas que prevêem o futuro da criança. No texto bíblico não faz alusão a esses personagens e suas previsões, mas estão em Pereira da Costa (COSTA, 1974: p.484). Na escrita cabralina tudo leva ao visual, o texto como uma tela de pintura. E como afirma Walter Benjamin, ―na alegoria a palavra escrita tende a expressão visual‖ (1994: p.197198). Em Morte e vida severina, todo o texto configura-se como uma alegoria político-étnicocultural de uma alteridade funcionalmente barroca, como uma representação também do movimento da contra-conquista que gerou tantos Severinos, sem rumo, sem trabalho, sem terra, sem esperança. Semelhante à alegoria de Walter Benjamin (1984: 38-39) também estruturada por meio da ruína, da dor e da morte. A alegoria barroca cabralina também se fundamenta na VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 156 dor, na morte, na ruína que se justifica por meio da pobreza, da fome, da miséria, da escassez, do latifúndio, das balas perdidas, das emboscadas, da industrialização, dando conta de um estado de coisas cujo devir vai remoer nossa realidade político-econômica e histórico-cultural, para digeri-la como angústia de crises, de tensões nitidamente barrocas. João Cabral promove essa dessacralização dos elementos sagrados, quando tira deles o caráter divino e os submete aos festejos e tradições populares. Ao mesmo tempo em que dessacraliza o ritual sagrado do nascimento do menino-Deus, ele promove uma sacralização às avessas da ordem social, como afirma Benedito Nunes:33 Neste caso, o pastoril, como ato de comemoração religiosa, é também um gesto de consagração da sociedade; festejando o advento da redenção sobrenatural do gênero humano, na apoteose dramática de seu estilo álacre, o pastoril transfigura a situação social dos indivíduos. O auto sacramental produziria assim um efeito obliquo, sacralizando a ordem social existente e a posição que os indivíduos ocupam dentro dela. Aqui temos a grande questão relacionada ao Barroco moderno ou à modernidade barroca de João Cabral: trabalho e ornamento de linguagem, abrigando-se ao lado do teor social, o que era quase que impraticável no Barroco histórico (pelo tom da Contra-Reforma). Então, João Cabral infiltra, mescla outros textos, como o ―auto dentro do auto‖ para conseguir a dramaticidade da trama. Utilizando a ambiência local, com todos os problemas sociais de pobreza e penúria, Morte e vida severina se contrapõe ao discurso da beleza do lugar, mostrando todas as mazelas que a corrói e evoca a teatralização da vida. A vida como o palco real onde se repete, de outra forma, o nascimento do filho de Deus, opondo-se a toda diversidade que o lugar propicia. O trajeto de Severino é dividido entre morte e vida. O sagrado que é profano. O profano que é sagrado. Dessacralização e sacralização social. E para Severo Sarduy isto é o Neobarroco, quando afirma: ―Neobarroco: reflexo necessariamente pulverizado de um saber que sabe que já está ―docemente‖ fechado sobre si mesmo. Arte da dessacralização e da discussão‖. (SARDUY: 1979, p.78). Também identificamos um certo erotismo nas entrelinhas do poema, quando a morte pode até assumir contornos suaves, eróticos, resgatados nos versos do enterro imaginado por Severino, nas águas do Rio Capibaribe. 33 . NUNES, Benedito. op. cit. p.86-87. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 157 João Cabral coloca em destaque essa morte que é exuberante, sensual, líquida e estabelece aí, um paradoxo perturbador com a vida áspera e dura do sertanejo, fazendo com que Severino faça a absurda constatação de que, nos muitos enterros que presenciou, na sua caminhada até o Recife, nada mais era do que seu próprio funeral, que por ironia, ele teria se antecipado. Além de líquida, macia, sensual, a morte que Severino evoca, quando pede que apresse, também aparece como uma mulher carinhosa, opulenta, que acolhe com generosidade o trabalhador do eito em sua morte: ―– Se abre o chão e te fecha / dando-te agora cama e coberta./ – Se abre o chão e te envolve, / como mulher com quem se dorme.‖ (MELO NETO: 1974: p. 186). Neste verso, quando o trabalhador é depositado na terra, podemos divisar nessa entrega à morte a simulação do ato sexual, o entrelaçar-se dos corpos dos amantes no ato amoroso. João Cabral, um poeta avesso as facilidades da linguagem, a poesia derramada, constrói, vê na reação defunto/chão uma relação amorosa, a terra envolvendo o corpo que chega, não com aspereza, mas o acolhendo com sensualidade, com delicadeza, ―como uma mulher com quem se dorme‖. O erotismo presente na escrita cabralina é um erotismo onde há evidência do ato sexual, quando o chão se abre para envolver o trabalhador do eito, o que também é uma alegoria da relação amorosa humana. Podemos dizer que nesta cena há traços marcantes do Barroco, pois toda a produção artística do período barroco estava impregnada de forte erotismo, apesar de que, entre os instrumentos utilizados pela Igreja para recuperar as ovelhas desviadas que sucumbiram aos apelos da Reforma Protestante, estava o Barroco, que foi eficaz, pois mesmo evocando a sublimidade das coisas celestiais, adotava também e seguia uma espécie de santíssima trindade reunindo: corpo – alma – espírito. O Barroco como uma arte simultaneamente popular e aristocrática, sensual e mística, festiva e melancólica. Para alguns autores contemporâneos, ―o Barroco funda a sua razão estética na ampla vertente luto/melancolia e luxo/prazer‖ (CHIAMPI, 1998: p.6). O artista barroco queria agradar a Deus, mas era tentado pelo desejo da vida cotidiana, mundana. Uma dualidade que inquietava o espírito do homem barroco e a Igreja, recém sacudida pela Reforma Protestante. A arte barroca cristalizava o fluxo do eterno devir, fluxo esse que se infiltrava nas coisas do mundo, através da alegoria, que nada mais era que a dissimulação da diferença – característica fundamental da sociedade européia na Idade Moderna – através de representações VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 158 tendentes à semelhança, O Barroco como uma experiência de contrastes – um dizer antitético da experiência humana e artística: o simulacro. E se é verdade que o desejo no indivíduo é sempre coletivo, ou seja, não nasce nele, mas no campo social, os indivíduos em grupo, enquanto grupos-sujeito e não grupos sujeitados, podem escapar através de linhas de fuga e fazer a afirmação do desejo, das máquinas desejantes. Para Deleuze e Guattari, há sempre um agenciamento coletivo de enunciação, já que não existe esse sujeito sozinho, sendo máquinas de guerra nômades que enfrentam o Estado, sendo corpos sem órgãos. Nesse sentido, esse ―desejo‖ também é o desejo do próprio artista: desejo de representar o devir, de transcender, desejo de salvação. Detecta-se um conflito constante entre a carne e o espírito, já que a satisfação de um representa, por extensão, a negação do outro. Esse duelo alma/espírito x carne/corpo, paradoxalmente é que possibilita a transcendência. Gilles Deleuze, ao resgatar a obra de Leibniz, explica essa aparente contradição: No Barroco, a alma tem com o corpo uma relação complexa: sempre inseparável do corpo, ela encontra nele uma animalidade que a atordoa, que a trava nas redobras da matéria, mas nele encontra também uma humanidade orgânica ou cerebral (o grau de desenvolvimento) que lhe permite elevar-se e que fará ascender a dobras totalmente distintas. (DELEUZE, 1991: p. 26). Mais ainda, segundo Deleuze, cada intervalo na obra barroca é um espaço aberto ao surgimento de uma nova dobra, uma redobra. O dobrar e o redobrar, dois movimentos de contenção, não se opõem diretamente ao desdobrar, que por essência é uma expansão de algo anteriormente escondido na dobra. Podemos dizer que esses movimentos são complementares e representam o afastar-se e o aproximar-se da essência divina através de uma continua ―tangência‖ que coloca a obra em constante estado de ―suspensão‖ no espaço, visto que não consegue superar o conflito divindade x vida profana. E o que move essa vida profana, senão o desejo? É o desejo que vai moldar a criação das dobras e redobras, como forma de dissimular sua própria essência frente ao número de dogmas e exemplos catequizantes que vieram a povoar as artes no período barroco. João Cabral consegue em meio ao caos que se transforma a viagem de Severino, fazer com que esse erotismo aflore, mesmo quando a realidade é de morte, vislumbrando nas águas do Capibaribe, VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 159 uma mortalha líquida de lama que envolve o corpo cansado da jornada e o chão que acolhe como ―uma mulher com quem se dorme‖. A carnavalização também é presente no poema/peça Morte e vida severina, quando João Cabral reinventa o nascimento do menino, como um tênue símbolo de esperança, no final da grande jornada do Severino. Há uma mistura do sagrado e do profano na alegoria do nascimento de Cristo e do menino do mangue. A carnavalização se dá nas cenas do nascimento do menino ―guenzo‖, um outro Severino, aproximando o auto dos modelos pastoris às peças medievais. O sagrado e o profano se confundem. O presépio cabralino é metaforicamente uma paródia do nascimento de Jesus, em meio a pobreza do mangue. O subtítulo do poema se explica agora: Auto de Natal pernambucano. Se todo percurso do Severino tem uma relação estreita com a morte, as cenas do Auto, que são leves e alegres, retratam a vida. Vejamos o que diz Nunes: Aqui o Auto dentro do Auto retoma os tradicionais quadros e personagens do pastoril ou pastoral. Podemos, até mesmo, estabelecer, quase que de cena a cena, os traços analógicos desse parentesco formal, que as mudanças de figuras e situações apenas conseguem disfarçar: uma mulher do povo substitui o anjo da Anunciação; os vizinhos, com os seus elogios, tomam o lugar dos anjos que guardam e adoram o Menino, com os seus presentes, o dos Reis Magos; o mocambo é o presépio do Menino-Deus, e seu José, são José. 34 A alusão ao nascimento de Jesus, onde os personagens históricos são substituídos por pessoas comuns, representa a negação da morte, quando um outro Severino salta ―para dentro da vida‖, modificando a forma tradicional, o que para Severo Sarduy já representa a carnavalização, quando promove essa mistura dos gêneros sagrado e profano. A carnavalização implica a paródia na medida em que equivale a confusão e afrontamento, a interação de diferentes estratos, de diferentes texturas lingüísticas, a intertextualidade. Textos que na obra estabelecem um diálogo, um espetáculo teatral cujos portadores de textos (...) são outros textos. 35 34 35 . NUNES, Benedito. op. cit., p.86 . SARDUY. Severo. op. cit., p.69 VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 160 E isso acontece em Morte e vida severina, quando João Cabral reúne todos esses elementos, propositalmente ou não, quando mistura esses estratos, revelando a presença do (Neo)Barroco na sua obra, quando insere os vizinhos que chegam com suas oferendas, alegoricamente, um alusão aos três Reis Magos ofertando ouro, incenso e mirra, e esses personagens são multiplicados, vêm em grande número e presenteiam com aquilo que podem. Nesta cena, João Cabral incorpora, recria em sua obra, o banquete barroco/literário de que fala Lezama Lima em seu livro A Expressão Americana, na qual enfatiza a característica de despertar os sentidos humanos com a finalidade de encaminhamento místico ao aludir metaforicamente ao ―banquete literário‖ quando faz uma referência aos seus estudos da literatura de origem barroca: Nessa festa vários poetas barrocos contribuem com seus versos para a montagem de um grande banquete, entre eles Lope de Vega, Dominguez Camargo, Don Luis de Gôngora, Sor Juana Inês de la Cruz, Afonso Reyes... entre outros. Transcrevemos parte do texto referente ao banquete como no livro A Expressão Americana e em Morte e vida severina para que possamos fazer comparações pela intertextualidade: ...E para que as ramagens da naturalidade se encostem nas grutas do artifício, a alegre saúde de Lope de Vega trará a couve e a berinjela, Um pouco de alegre vegetação em meio às viandas que o fogo doura e transmuta: Matize essas hortas logo a berinjela amorada a verde couve amigada como pergaminho ao fogo. 36 ...O cordobês Don Luis trará outra sutileza, a azeitona, que acrescenta à natureza irrompendo nos mantéis, uma invenção, meio artifício e meio naturalidade: e ao verde, jovem, florescente plano brancas ovelhas suas tornem, cano, em breves horas caducar a erva; ouro lhe extraem líquido a Minerva, 36 Nota da tradutora: Em vão rebusquei esses versos nos três volumes das Obras selectas, da Ed.Aguilar, além de diversas antologias (líricas e dramáticas) de Lope de Vega . VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 161 e – os olmos casando com as vides – quando coroam pâmpanos a Alcides. 37 (...) faróis sacros de perene chama que extingue, se não infama, em licor claro a matéria crassa consumindo, que a árvore de Minerva de seu fruto, de prensas agravado, compungido suou e rendeu forçado.38 ...vem frei Plácido de Aguillar oferece-nos um primeiro prato, uma toronja bem refrigerada: a amarela toronja em quem Pomona da velhice retrata os pesares em pálidas verrugas ou lunares. 39 ...volta agora Lope de Vega, com os caranguejos vestidos, resistentes à doma do fogo da sua alva ternura e perfeição: Não os mariscos ao penhasco cosidos cujos salgados côncavos deságua, retrógrados caranguejos parecidos ao signo que do sol por signo é frágua. 40 (...) Já é hora de introduzir o vinho, que vem demonstrar a onda longa da assimilação do Barroco, com um robusto e delicado vinho francês, trazido 37 Luis de Gôngora. ―Soledad primeira‖. . Sor Juana Inês de la Cruz. El sueño (Primero sueño). 39 .Frei Plácido de Aguillar. Fábula de Siringa y Pan. 40 Idem, nota 8. 38 VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 162 por Alfonso Reyes, elixir de muitos corpúsculos sutis, numa de suas variadas excursões pelas quais guardamos tão perene reconhecimento: Fui general de penacho e jarreteira Tição de amores e trovão de alarmes Lancei, estentôreo pela carreiteira Ante Chateau Lafite: Apresentam ...Armas.41 (...) (LIMA, 1988: p. 90 a 94) E complementando esse banquete barroco, o café à turca, não mais regado a poesia, ―mas com a forma adquirida pelos mistérios numa cantata de João Sebastião Bach, em seus nobres e graciosos compassos para acompanhar o café, num lento recontar...‖ (LIMA, 1988: p. 94). Em Cabral, o banquete barroco se faz nas oferendas da gente simples do mangue, que ele transforma também em versos: as coisas da terra, dadas de coração, dentro das possibilidades de cada um, considerando ainda a pobreza reinante entre os habitantes dos mocambos: – Trago abacaxi de Goiana e de todo o Estado rolete de cana. – Eis ostras chegadas agora, apanhadas no cais da Aurora. – Eis tamarindos da Jaqueira e jaca da Tamarineira. – Mangabas do Cajueiro e cajus da Mangabeira. – Peixe pescado no Passarinho, carne de boi dos Peixinhos. – Siris apanhados do lamaçal que há no avesso da rua Imperial. 41 Alfonso Reyes. Poema ―Vino tinto‖. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 163 – Mangas compradas nos quintais ricos do Espinheiro e dos Aflitos. – Goiamuns dados pela gente pobre da Avenida Sul e da Avenida Norte. (MELO NETO, 1994: p.198) Mesmo presentes pobres, sem nenhum valor material, mas que trazem a cor do lugar com oferendas que formam um grande banquete, com os alimentos, frutas e objetos característicos da região: a arte popular, o artesanato, a água da bica da chuva escassa, frutas variadas dos lugares pobres e lugares ricos do Recife, oferecendo esse contraste, esse jogo, essa variedade, esse colorido e fartura que impressiona aos olhos, recursos tão bem utilizados no Barroco. Neste sentido, comparando os textos de Lezama Lima e o de Cabral encontramos singularidades e similaridades do banquete literário barroco com o banquete cabralino. Há em Cabral a mesma intenção da apoteose barroca, do artifício, da festa. O banquete oferecido pelos vizinhos ao recém-nascido é a celebração ao espetáculo que essa ―nova vida explodida‖ proporciona, fazendo funcionar ―a fábrica que ela mesma teimosamente se fabrica‖ ( op.cit. p. 202). Quando tudo é negação, a vida dá uma resposta. Tudo se recicla, se dobra, desdobra, o recomeço, a máquina humana dando as respostas que mesmo em situações tão adversas continua a funcionar, a gerar novas vidas. O palco e a realidade se confundem. O palco é o mocambo, as vielas cheias de lama, mas de onde ecoam as vozes das mulheres cantando a boa nova. O teatro da vida e da morte. Vida que se anuncia depois da morte, no final. A representação e a realidade que se confundem. Deleuze em A Dobra também trata da incompossibilidade ou a divergência de séries, dos mundos possíveis e incompossíveis. Em Leibniz ―o mundo é uma infinidade de séries convergentes, prolongáveis uma nas outras.‖ (DELEUZE, 1919, p.94). Podemos dizer que na perspectiva de Leibniz, Severino é supostamente incompossível com os novos mundos que ele percorre em busca de dias melhores. Os novos mundos são mundos possíveis, mas não para o nosso caminhante. Haverá de ter todo um processo para que esses novos mundos se tornem compossíveis para o personagem Severino João Cabral trabalha exatamente o jogo do mundo barroco, tal qual o descreve Deleuze. Esse jogo que emite singularidades; estende séries infinitas que vão de uma singularidade a outra; dita regras de convergências e divergências de acordo com as quais essas séries de VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 164 possíveis organizam-se em conjuntos infinitos. O Barroco é isso. Nessa nossa época marcada pela perspectiva de enormes avanços científicos, tecnológicos, culturais e sociais, volta à tona a discussão sobre a estética barroca, mas sob novo enfoque. A multiplicidade de nosso mundo, com tudo se partindo em inúmeros fragmentos, plenos de significados, mas, apesar disso, carregados de uma instabilidade e de uma mutabilidade que lhe é inerente, tem levado muitos teóricos a reconhecer em nossos dias algumas características do Barroco sob nova roupagem e, por isso mesmo, transmutadas no conceito do Neobarroco. Parece inquietante, mas nos remete a um encadeamento de questões interessantes: o fato de estarmos todos os momentos nos dividindo em um extenso rol de fragmentos, dentro dos quais quase sempre utilizamos diferentes máscaras, aumentando cada vez mais a multiplicidade que essa fragmentação acarreta não seria uma característica intrínseca ao Barroco? Mais ainda: essa busca constante pelo devir que todos vivenciam diuturnamente, carregada de tensões entre carne e espírito, desejo e quietude, não é também um aspecto que estava presente no Barroco? As mônadas de Leibniz, sempre se dobrando e redobrando sobre si mesmas, junto à constatação científica de que a estrutura micro-física e até mesmo atômica dos elementos, como os fractais42, não nos remetem à estética barroca? Por fim, a falta de certezas absolutas, característica maior de nossa época, não seria o principal elemento a nos aproximar do mundo barroco? Em João Cabral e Deleuze esse Barroco é detectado como um momento de crise, caótico, produzindo um desmoronamento do mundo, que vem a ser reconstruído sobre as ruínas deste mesmo mundo, mas sobre uma cena nova e relacionada a novos princípios, para deles extrair a potência e a glória. Na escrita cabralina, o Barroco representa uma tentativa de salvar a razão teológica e o homem. Ele atesta a crise do mundo moderno, com uma escritura reflexiva e crítica, trazendo o Barroco fora do seu suporte histórico para ser uma resposta ao tempo de hoje, num mundo caótico, da máquina e da técnica, porém com problemas sociais como a fome, a guerra, a mortalidade infantil e as epidemias que continuam a infligir a dor, sendo essa uma reação inevitável, questionando a ideia do progresso em sua essência ideológica e em suas representações. 42 Fractal – entende-se qualquer coisa cuja forma seja extremamente irregular, extremamente interrompida ou descontínua, seja qual for a escala em que examinamos. A presença dos fractais na nossa época contemporânea permite-nos definir com ―neobarroca‖ também esse tipo de produção substancialmente cultural. (CALABRESE, Omar. op. cit., p. 135-139). VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 165 O que nos propusemos abordar neste trabalho, através das diversas leituras que empreendemos, foi estabelecer uma relação entre a obra Morte e vida severina - Auto de Natal Pernambucano e o Barroco ou Neobarroco, como nomeia Haroldo de Campos, em seu artigo ―A obra de arte aberta‖(1955) e Severo Sarduy (1972), buscando confluências que nos levaram a identificar e afirmar que há marcas, pegadas, imagens da poesia de tradição barroca na poética cabralina. No decorrer da nossa pesquisa, percebemos a frágil fronteira criada pelos historicistas, que separam as diversas escolas literárias e delimitam o período da sua sobrevida, em relação aos séculos futuros. O Barroco rompe essas fronteiras chegando aos Séculos XX e XXI com fôlego de novidade, deixando de ser a estética de uma determinada época, para ser uma forma transitória que ressurge em momentos caóticos, de crise, de confusão, de desordem... como uma arte atemporal, que se atualiza numa época que é um terreno fértil para essa arte do caos, da crise, da conturbação. Em Morte e vida severina detectamos o Barroco – que surge no século XVII, época da Contra-Reforma, do Absolutismo, do sujeito em constante crise diante das coisas do espírito e dos desejos da carne, atualizados no personagem título ―Severino retirante‖ , que vive esse homem barroco moderno, que é nômade, em constante conflito entre a morte e a busca de sobrevivência. Assim como o homem barroco, o sujeito moderno está fragmentado, fluido, num redemoinho de várias identidades contraditórias e mal-resolvidas. Essa angústia marcada por uma sensação de sobrevivência e de tentar viver entre a identidade e a diferença, o passado e o presente, o interior e o exterior, alternando-se rumo à pluralidade dos sentidos que existe nos excessos. No olhar que lançamos sobre o nosso foco de estudo procuramos enumerar o maior número de confluências barrocas que identificamos em Morte e vida severina. Assim, o duelo entre morte e vida, o corpo e a alma, a relação tempo e espaço, o herói, o labirinto, o sagrado e o profano, o trágico e o cômico, o erotismo, a carnavalização, o banquete barroco, a territorialização e desterritorialização segundo Deleuze, o perecível das coisas, todas essas marcas tão recorrentes na arte barroca, alinhavam o texto deste poema/peça escrito na sombra dos autos da tradição ibérica e do cancioneiro popular nordestino. Morte e vida severina traduz de forma concreta a poesia cabralina, que é imagem, que é mítica, poética, sempre flertando com a realidade, como um palco à espera do drama humano. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 166 O poema não se fecha no indivíduo, não se passa no seu interior, mas numa grande arena pública onde o homem, ―os severinos‖ enfrentam com engenho e coragem o seu maior inimigo e desafio: a morte. Sem concessões, João Cabral quebra a tradição brasileira de uma poesia discursiva, romântica, parnasiana e rompe com os paradigmas formais poéticos em voga, lugar ideal para confessionismos, sentimentalismos e testemunhos vãos. Sua poesia é um exercício de formas, significados, um trabalho de ―engenharia‖, de uma matéria em construção. Explica a sua afinidade com a arquitetura e as artes plásticas. Justifica-se sua afinidade com os pintores surrealistas e cubistas, a Espanha que em muitos aspectos, o fazia rever/reviver seu Nordeste, reacender sua pernambucanidade. João Cabral traz uma proposta agreste que se torna mais ácida pela questão da terra, do latifúndio, da exploração humana, que ela no seu estilo indireto e contido, mas certeiro, denuncia. Também paradoxalmente surrealista e barroca a um só tempo. Surrealista pela ousadia de suas metáforas desconcertantes e barroca pelo seu discurso circular, labiríntico e retorcido. O Barroco é mesmo esta conjunção de estilos e influências, mistura de estratos, como, de resto, toda a cultura ibero-americana. Dessa maneira, o nosso estudo destacou esses aspectos barrocos na obra cabralina e acreditamos ter contribuído para reforçar os estudos já apresentados sobre o tema, enriquecendo e ampliando a sua fortuna crítica, para uma melhor compreensão de Morte e Vida severina, inserida no universo do Barroco ao abordarmos várias cenas do poema pintadas com as tintas do Barroco, quando João Cabral retrata essas imagens sublimes de um Nordeste mítico e real, que é cenário de seca, fome, violência e desolação, num registro solene de um realismo que transita do regional ao universal, do local ao global privilegiado por uma força poética vigorosa ao mostrar uma realidade histórico-social que permanece miserável, devastada pelas intempéries da natureza e pela ineficácia dos homens. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ÁVILA, Affonso. O lúdico e as projeções do mundo barroco I. 3ª ed. atualizada e ampliada. – São Paulo: Perspectiva, 1994.b BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Trad., apresentação e notas: Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 167 CALABRESE, Omar. A idade neobarroca. Trad. de Carmen de Carvalho (até a p. 130) e Artur Morais (a partir da p.131). Lisboa: Ed. Edições 70, 1987. CAMPOS, Maria do Carmo (org). João Cabral em perspectiva. Porto Alegre. Editora da Universidade/UFRGS, 1995. CHIAMPI, Irlemar. Barroco e modernidade: ensaios sobre literatura latino-americana. São Paulo; Perspectiva : FAPESP, 1998. COSTA, Pereira da. Folk-lore pernambucano: subsídio para a história da poesia em |Pernambuco. Recife: 1ª edição autônoma. Arquivo Público Estadual, 1974. D´ORS, Eugênio. O Barroco. Trad. de Luis Alves da Costa. Lisboa: Vega, 1990. DELEUZE, Gilles. A dobra. Leibniz e o barroco. Trad. Luiz B. L.Orlandi. Campinas, São Paulo: Papirus, 1991. DELEUZE, Gilles: GUATARI, Félix. Mil platôs – vol. 1 e 3. Trad. Aurélio Guerra e Célia Pinto Costa. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995. LIMA, Lezama. A expressão americana. Tradução, Introdução e Notas de Irlemar Chiampi. São Paulo: Brasiliense, 1998. MELO NETO, João Cabral de. Obra Completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguillar, 1994. NUNES, Benedito. Poetas modernos do Brasil 1 – João Cabral de Melo Neto. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1971. SANT´ANNA, Affonso Romano de. Barroco: do quadrado à elipse. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. SARDUY, Severo. Escrito sobre um corpo. Trad. de Lígia Chiappini Moraes Leite e Lúcia Teixeira Wisnik. Revisão: Haroldo de Campos e Jacó Guinburg. São Paulo: Perspectiva, 1979. SENNA, Marta de. João Cabral: tempo e memória. Rio de Janeiro. Edições Antares; Brasília: INL, 1980. FRANCISCO ISRAEL DE CARVALHO é bacharel em Letras – Língua Francesa pela UFRN; mestre em Literatura Comparada pela UFRN; pesquisador vinculado ao Grupo de Pesquisa Ponte Literária Hispano-Brasileira da UFRN com trabalhos publicados sobre as confluências barrocas na obra de João Cabral de Melo Neto. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 168 4. APONTAMENTOS SOBRE A POESIA DE MURILO MENDES: OBRA ABERTA E NEOBARROCO Ana Carolina Moura Mendonça (Universidade Federal do Rio Grande do Norte) 43 Andrey Pereira de Oliveira (Universidade Federal do Rio Grande do Norte) 44 1. Introdução Vários críticos de arte, principalmente a partir da metade do século XX, desenvolveram importantes estudos aproximando as manifestações das artes contemporâneas, ditas pós-modernas, à arte do período barroco. Surge nesse contexto de reflexão teórico-crítica o conceito de ―neobarroco‖. Muitos destes pensadores consideram o Barroco como um prenúncio à modernidade e aproximam o homem barroco ao homem moderno, como faz Affonso Ávila, Walter Benjamin, Arnold Hauser, Omar Calabrese, entre outros. O objetivo deste trabalho é tratar dos conceitos de ―neobarroco‖, proposto por Omar Calabrese, e de ―obra aberta‖, proposto por Umberto Eco, tomando-os como ponto de partida para o estudo dos textos ―Poema barroco‖ e ―A forma e a fôrma‖, do poeta brasileiro Murilo Mendes. Em particular, este trabalho procura destacar alguns aspectos estéticos presentes nestes poemas contemporâneos que, são, segundo os teóricos acima citados, provenientes da estética barroca do século XVII, a saber, a fragmentação, o excesso, o limite, a desordem e outros. Estes poemas apresentam-se como obras esteticamente inovadoras, proporcionando fundamentalmente uma ambigüidade estrutural típica das obras contemporâneas, o que nos induz a crer que são obras abertas. Neste sentido é preciso considerar que o que é aqui denominado por obras neobarrocas são, antes de tudo, produções da contemporaneidade e, assim, obras que apresentam um propósito de abertura típico das poéticas modernas. É claro que, como afirma Umberto Eco (2008, p.45), ―seria leviano ver na poética barroca uma teorização consciente da obra ‗aberta‘‖, mas, como dito, o objeto de interesse dessa investigação são, a rigor, as obras modernas que apresentam traços em comum com as 43 Graduanda do Curso de Licenciatura em Letras. Bolsista de Iniciação Científica REUNI/UFRN, vinculada ao Projeto ―Umberto Eco: percursos teóricos‖, sob a orientação do Prof. Dr. Andrey Pereira de Oliveira. 44 Professor do Departamento de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem (PPGeL). VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 169 poéticas barrocas ou simplesmente, ou, dito de modo mais simples, as poéticas neobarrocas. Murilo Mendes (1901-1975) utiliza-se de características barrocas, a exemplo da fragmentação e do caos, dois importantes traços que serão bem observados na análise posterior. Outro importante elemento próprio ao estilo de suas poesias diz respeito ao hermetismo. Seus poemas apresentam-se aos leitores como objetos de difícil interpretação, devido tanto a sua organização estrófica, quanto a suas metáforas imprevisíveis, a sua ousadia sintática e a sua associação muitas vezes esdrúxula de termos lexicais, que contribuem para o que Antonio Candido denomina de ―estéticas do exagero, que rompem as associações normais e criam nexos inesperados‖ (2004, p. 83). Por sua ousadia formal e semântica, Murilo Mendes é considerado por muitos como um poeta surrealista. As análises abaixo desenvolvidas não pretendem estabelecer leituras exaustivas dos poemas, revelando o que há por trás de cada metáfora, mas mostrar como esses poemas podem ser denominados obras ―abertas‖ e obras ―neobarrocas‖, a partir de seus traços dominantes e do estranhamento causado no leitor, em suas diversas leituras possíveis. 2. Conceitos teóricos Entre os numerosos teóricos da arte que ao longo do século XX refletiram acerca das manifestações artísticas contemporâneas como obras que dialogam com procedimentos barrocos, elegemos as reflexões de Umberto Eco e Omar Calabrese como as bases teóricas deste trabalho. O conceito de ―obra aberta‖ proposto por Eco mostra-se relevante pela sua tentativa de apreender as manifestações artísticas das poéticas contemporâneas como obras propensas a uma multiplicidade de interpretações, traço primariamente presente nas obras do século XVII, o que possibilita a aproximação de algumas propostas estéticas contemporâneas a certo conjunto de obras setecentistas. Já por meio do conceito de ―neobarroco‖, Omar Calabrese defende que os principais traços estéticos das obras artísticas contemporâneas são recorrências e derivações de procedimentos próprios do período barroco, e, por essa razão, caracteriza a arte contemporânea, também chamada de pós-moderna, como neobarrocas. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 170 2.1. Obra aberta No famoso volume de ensaios Obra aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas, publicado em 1962, Umberto Eco descreve a obra de arte como um objeto que se oferece ao receptor como um algo aberto a vários efeitos e possibilidades interpretativas. Eco trata da relação fruição/obra de arte, conceituando obra aberta como uma obra inacabada, que permite ao fruidor seguir caminhos interpretativos diversos a cada leitura, re-elaborando continuamente sua compreensão da obra. Inicialmente, Eco chega a este conceito ao se debruçar sobre as obras de vanguarda, porém, ao observar com maior atenção as obras anteriores a esse período moderno, ele percebe que obras como as barrocas também apresentam uma abertura para a fruição. Entretanto, como ele bem observa, essa abertura barroca é diferente da abertura das poéticas contemporâneas pelo fato de aquela não se estruturar como um campo de possibilidades realmente proposital, assim, ―seria leviano ver na poética barroca uma teorização consciente da obra ‗aberta‘‖ (ECO, 2008, p. 45). De todo modo, a obra barroca deu-nos novas visões acerca da arte, pois trouxe, comparada com o acerco artístico que lhe antecede, percebemos mudanças na concepção e nas realizações as manifestações artísticas bastante significativas. Quando comparado ao período clássico renascentista, o Barroco histórico – aqui entendido como o conjunto das manifestações artísticas do século XVII – apresenta como novidade uma concepção de ―abertura‖ no momento em que a obra afasta-se de um ponto interpretativo estável baseado numa mensagem aparentemente unívoca e passa a valorizar a polissemia de interpretações. Nesse sentido, a arte barroca reflete o momento histórico em que o homem se subtrai ao hábito do canônico e se depara com um mundo em movimento, o que, de certa maneira, pode ser visto como prenúncios do que ocorrerá de forma bem mais enfática ao longo do século XX. Nas poéticas do século XVII, a mensagem estética ganha um aspecto dinâmico e excessivo que não existia anteriormente. No Renascimento, por exemplo, há uma tentativa de imitação do real, isto é, as obras tinham o objetivo de se aproximarem cada vez mais do mundo real e para isso se serviam de técnicas matemáticas, linhas simétricas e uma precisão delimitada. A estética barroca, na época e ainda hoje, foi e é extremamente inovadora, já que quebrou com essa maneira de ver a arte. Eco afirma que o Barroco trouxe uma ―indeterminação de efeito e sugere uma progressiva dilatação do espaço‖ (ECO, 2008, p. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 171 44). Isso mostra a forma não-determinada e não-definida, resultando em uma espécie de mutação da obra, que a arte barroca aplica e que ainda hoje, nas manifestações contemporâneas, mostra-se cada vez mais fortalecida. Os efeitos de multiplicidade simbólica das obras barrocas foram retomados pelas obras contemporâneas de modo ainda mais acentuado, revelando, assim, um campo ainda maior de possibilidades, em um processo indefinido de interpretações. A distinção entre a abertura das obras barrocas e as obras contemporâneas resulta da consciência bem mais nítida que os artistas recentes têm da abertura inerente a qualquer manifestação artística. Partindo do princípio que a obra de arte é um objeto sempre dependente da circunstancialidade da recepção, o artista moderno busca estruturar sua produção como uma obra que se caracteriza justamente, e mais que tudo, como um objeto inesgotável, sempre propenso a possibilitar mais uma trilha interpretativa, elevando ao máximo as possibilidades cedidas à recepção pelas já abertas obras barrocas. Nesse sentido, as obras de vanguarda comportam-se como obras que apresentam uma abertura de segundo grau. As obras modernas apresentam o traço da inovação da poética barroca. Isto que dizer que, se as produções do século XVII caminham para um exagero ou um excesso, as obras das vanguardas contemporâneas buscam excedem o exagero, isto é, apresentam características barrocas de modo moderno, com um exagero intencional, um novo barroco. O próprio homem barroco tem essa característica do novo, é um homem que a partir de sua relação com a espiritualidade, pela primeira vez ―se defronta, na arte como na ciência, com um mundo em movimento que exige dele atos de invenção‖. (ECO, 2008, p. 44-45). E nessa mudança de atitude, o homem passa a ser tão excessivo, duvidoso e inovador quanto suas artes: As poéticas do pasmo, do gênio, da metáfora, visam, no fundo, além de suas aparências bizantinas, a estabelecer essa tarefa inventiva do homem novo, que vê na obra de arte, não um objeto baseado em relações evidentes, a ser desfrutado como belo, mas um mistério a investigar, uma missão a cumprir, um estímulo à vivacidade da imaginação. (ECO, 2008, p. 45) VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 172 Desse modo, o Barroco transcende a idéia de arte como contemplação passiva, ligada restritamente à religiosidade. Essas poéticas – barroca e contemporâneas – levam-nos a pensar em uma contemplação relacionada com o ―modo de fazer‖ da arte, isto é, o receptor não mais ficará preso a uma contemplação do belo que há na manifestação artística, mas pensará muito mais em seus elementos construtivos, seu efeito inovador, suas metáforas e simbologias. A contemplação das obras barrocas permanece, então, no estranhamento que é causado no fruidor, em que tal inquietação se desenvolve no ―campo de possibilidades‖ que essa obra revela. E quando se estuda a obra aberta contemporânea, essa visão de contemplação é ainda mais modificada, isto porque o campo de possibilidades interpretativas cresce exponencialmente, apresentando, a priori, uma desordem estrutural, induzindo, conseqüentemente, o aumento da inquietação no receptor. Portanto, o conceito de obra ―aberta‖, tanto nas produções do século XVII quanto nas produções de vanguarda, em que alguns traços daquela são utilizados também nesta, sugere um novo Barroco, em que tais características tornam-se notavelmente mais acentuadas e conscientes. 2.2 Neobarroco Numa perspectiva que se aproxima à de Umberto Eco, Omar Calabrese, no livro A idade neobarroca, de 1987, também aproxima a arte do século XX do Barroco. Todavia, ele propõe uma aproximação muito mais efetiva, a ponto de cunhar o termo neobarroco para referir-se à arte pós-moderna. Segundo o crítico, o neobarroco caracteriza-se como ―um ar do tempo que alastra a muitos fenômenos culturais de hoje‖ (CALABRESE, 1987, p. 10). Afirma ainda que se pode perceber nas poéticas contemporâneas uma série de aspectos, principalmente o excesso, típico de um passado barroco, e, desse modo, o neobarroco define-se como um conjunto de realizações estéticas da arte moderna que apresentam traços estéticos do Barroco, em uma transformação poética. A tese proposta por Calabrese defende que ―muitos importantes fenômenos culturais do nosso tempo são marcas de uma ‗forma‘ interna específica do que pode trazer à mente o barroco‖ (1987, p. 27). Neste sentido, o Barroco seria muito mais que um período da cultura, na verdade seria uma ―atitude e uma qualidade formal dos objetos que o exprimem‖ (CALABRESE, 1987, p. 27). Se for assim, Gillo Dorfles corroboraria esta tese. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 173 De fato, segundo Calabrese (1987, p. 28) Dorfles ―identifica o abandono (ou queda) de todas as características de ordem e simetria, e vislumbra o advento do desarmônico e do assimétrico‖, uma idéia semelhante à noção acerca das artes contemporâneas e seu excesso excedido. O Barroco estabelece um pensamento contraditório ao clássico no que diz respeito ao ―fazer artístico‖. As oposições nos estilos trouxeram um sentimento do inesperado, deixando para trás a idéia de arte relacionada ao belo e sublime, a arte meramente da contemplação. No século XVII o sentimento de estranhamento e do original da obra sobressaiu-se e até hoje predomina. Luciano Anceschi, a exemplo de outros pensadores, ―propunha que se considerasse o barroco como sistema cultural‖ (CALABRESE, 1987, p. 33) e, portanto, um sistema contínuo, não exclusivo de uma determinada época. Algumas dualidades principais que advém do Barroco histórico são fundamentais para a definição e a concepção do neobarroca, entre as quais destacamos: o limite e o excesso; o pormenor e o fragmento; a desordem e o caos; a complexidade e a dissipação. Para refletirmos sobre o princípio de limite e excesso é preciso considerar a existência de obras que apresentam sistemas fechados e abertos. Dentre as obras que seguem um sistema fechado, em que a manifestação artística segue uma simetria e obedece a um centro, temos o Renascimento como já foi anteriormente citado. As obras barrocas, ao contrário, seguem uma assimetria, não obedecendo, assim, essa noção de centralidade. Por isso, tais obras são consideradas sistemas abertos. Para fugir dessa centralidade, a dualidade limite e excesso são imprescindíveis, já que, de ante-mão ultrapassa um significado. Segundo Calabrese (1987, p. 63), ―o excesso manifesta a ultrapassagem de um limite visto como caminho de saída de um sistema fechado‖. Dessa forma, o que era um sistema fechado transforma-se em um sistema aberto, porque dificulta uma leitura unívoca. Em uma oposição temos a definição de limite como um ―trabalho de levar às extremas conseqüências a elasticidade do contorno, mas sem destruir‖ (CALABRESE, 1987, p. 65). O Barroco, e de modo mais intenso o Neobarroco, procuram não o limite, mas o excesso da obra, o excesso do pensamento, a hipérbole desse excesso. Calabrese fala de certo prazer das obras neobarrocas ao quebrar esse sistema fechado com a utilização desse tipo de dualidade e apresenta três formas de excesso: ―o excesso representado como conteúdo, há um excesso enquanto estrutura de representação, VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 174 e há um excesso enquanto fruição de uma representação‖ (1987, p. 73). Esses excessos ocorrem tanto nas manifestações artísticas como também advêm do próprio leitor. As obras contemporâneas também utilizam fortemente da dualidade pormenor e fragmento. Essa dualidade insere a dialética entre a parte e o todo. Esse pormenor é sinônimo de detalhe. As obras neobarrocas valem-se de um excesso de detalhamentos que tornam a obra mais complexa, mais complicada e até mesmo fragmentada, o que a faz resultar numa manifestação inacabada. O leitor ao ler uma obra fragmentada cria situações diversas para completá-la, solucioná-la. No uso extremo de pormenores, o receptor recebe variados detalhes excedidos que podem confundi-lo na elaboração de imagens artísticas acerca daquela obra. Desse modo, é importante ressaltar a intenção da abertura e do estranhamento da obra sobre o receptor. Neste sentido, Calabrese afirma o exagero dessa dualidade nas obras modernas, seguindo uma determinada lei de integridade entre o inteiro e a parte, o global e o local: Teremos uma dialética sistema/elemento se tornamos pertinentes o nosso par segundo a idéia da con-sistência, isto é, de funcionamento simultâneo do todo e das suas partes. Ou então teremos a do inteiro/fracção se, pelo contrário, tornamos pertinente o mesmo par segundo a idéia de integridade, isto é, de comportamento do todo e da parte em conseqüência de uma operação de exagero sobre o inteiro. (CALABRESE, 1987, p. 84) Outro aspecto pertinente na elaboração das obras de arte barroca e neobarrocas é a dialética entre desordem e caos. Essas obras apresentam uma irregularidade, imperfeição e insuficiência nas informações da forma artística, como veremos ao analisarmos os dois poemas de Murilo Mendes. A manifestação de arte promove uma ordem não-habitual, diferente daquela regra inicial que as obras clássicas seguiam. Isso é o que Calabrese denomina como uma ―teoria unificada da desordem‖ (1987, p. 132). Nesse caminho, chegamos a uma complexidade ou hermetismo da obra. Assim, as obras barrocas e conseqüentemente, as neobarrocas trazem o ideal do inefável ou do indizível, em que a explicação e a significação da obra levam-nos ao ―campo de possibilidades‖ que definimos VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 175 na obra ―aberta‖, ou seja, a um excesso de fruições. O jogo de possibilidades que revela uma matemática infinita é típico da modernidade da abertura proposital extremista. A função caótica da arte tem a intenção de dificultar a recepção ou de exceder as fruições de modo que se cria no leitor a inquietação do ―não-saber‖. Nessa perspectiva, o Neobarroco força o receptor perceber na obra uma contínua formação de imagens caóticas, fora dos esquadros de organização. Foi essa genialidade, sem intenção, que fez das obras produzidas no século XVII muito mais que um período qualquer, mas uma linha de pensamento que revela ainda a continuidade dual da noção barroca histórica. Por fim, resta-nos comentar acerca da dualidade complexidade/dissipação que envolve o conceito de entropia. A entropia envolve um equilíbrio e uma evolução. As obras contemporâneas estabelecem um equilíbrio de desordem que leva à certa complexidade máxima. As metáforas que permeiam a arte de vanguarda são carregadas semanticamente e expressivamente, atingindo uma alta entropia ou uma evolução excessiva da expressão. As metáforas atingem o ápice da inovação, gerando uma inquietação e um estranhamento contínuos, além da complexidade da compreensão, levando-nos a criar um sentimento não de leituras diversas, mas de re-criações. Dessa forma, o fenômeno estético que as manifestações artísticas dessa época atual estabelecem parte desse princípio de dualidades barrocas, o que nos permite considerar a obra contemporânea um Barroco moderno, um novo Barroco, ou, como quer Calabrese, um Neobarroco. 3. Análises dos poemas de Murilo Mendes De um modo geral, o ato de leitura de um texto significa a procura de um significado que nos faça compreendê-lo. Diante das obras de Murilo Mendes, em virtude de sua alta complexidade de ordem semântico-estética, perceberemos que essa busca por uma mensagem unívoca e uma interpretação estática é sempre fadada ao fracasso. São obras que em vez de possibilitar ao leitor uma contemplação passiva, cobra dele um percurso interpretativo bastante ativo, bastante questionador e criativo. Tanto ―Poema Barroco‖, publicado em Mundo enigma (1942), quanto ―A forma e a fôrma‖, encontrado em Poesia Liberdade (1943-1945), são textos que trazem um campo de possibilidades de fruições diversas que complicam a busca por um significado único. Ambos são estruturados com a finalidade de causar uma inquietação no receptor, que, VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 176 impossibilitado de esgotar o universo de significação do poema em uma única leitura, acaba enredando-se, a cada nova fruição, na abertura das obras, ou seja, em suas inesgotáveis e inesperadas possibilidades semânticas. Vejamos o primeiro poema: POEMA BARROCO Os cavalos da aurora derrubando pianos avançam furiosamente pelas portas da noite. dormem na penumbra antigos santos com os pés feridos, dormem relógios e cristais de outro tempo, esqueletos de atrizes. O poeta calça nuvens ornadas de cabeças gregas e ajoelha-se ante a imagem de Nossa Senhora das Vitórias enquanto os primeiros ruídos de carrocinhas de leiteiros atravessam o céu de açucenas e bronze. Preciso conhecer o meu sistema de artérias e saber até que ponto me sinto limitado pelos sonhos a galope, pelas últimas notícias de massacres, pelo caminhar das constelações, pela coreografia dos pássaros, pelo labirinto da esperança, pela respiração das plantas, e pelos vagidos da criança recém-parida na maternidade. Preciso conhecer os porões da minha miséria, tocar fogo nas ervas que crescem pelo corpo acima, ameaçando tapar meus olhos, meus ouvidos, e amordaçar a indefesa e nua castidade. É então que viro a bela imagem azul-vermelha: apresentando-me o outro lado coberto de punhais, Nossa Senhora das Derrotas, coroada de goivos, aponta seu coração e também pede auxílio. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 177 O título do poema remete-nos diretamente à estética barroca. Percebemos a simplicidade do título que, a priori, não apresenta uma ambigüidade. Mas, em outras leituras, observamos que esta simplicidade abre margem para diversas expectativas na construção de um pensamento sobre o poema. Podemos pensar que o texto traz os exageros da arte barroca, ou a transformação do homem, a dualidade e assim por diante. Esperaríamos o poema trazer todas as características barrocas para ele poder ser chamado ―Poema Barroco‖. Retomando o início e o fim do poema, observamos um jogo de oposição ao estabelecer uma nomenclatura própria de ―Nossa senhora‖. No começo o Eu-lírico fala de uma ―Nossa Senhora das Vitórias‖ em contraponto com a ―Nossa senhora das derrotas‖ no fim do texto. Esse jogo de oposição e a religiosidade são características principais da arte barroca e é importante ressaltar a menção dessas unidades vocabulares no texto. No corpo do poema, fica nítida a presença da linguagem poética rica no uso exacerbado de metáforas, em um aspecto surreal. Isso caracteriza a complexidade máxima dessas metáforas que apresentam um excesso de expressão e carga semântica, caracterizando uma ambigüidade fundamental da obra. São essas imagens caóticas que levam à inquietação e estranhamento do receptor e que faz da obra uma fonte inesgotável de interpretações, a exemplo do quinto verso da ultima estrofe ―É então que viro a bela imagem azul-vermelha‖. O aspecto de desordem no texto não advém apenas do jogo de metáforas, mas também da fragmentação entre as estrofes e em alguns versos. São essas partes que dificulta uma leitura do todo. Não há uma correspondência aparente entre estrofes, uma continuidade. O texto, assim, torna-se caótico como a compreensão do fruidor. Não há como desenvolver uma fruição contínua que relacione as estrofes. Não há como pensar em um texto completo quando as estrofes são completamente abertas e livres para interpretações à parte, isto é, cada estrofe parece um poema a mais, um poema aberto. E mais aberto ainda esse poema se torna, quando junta-se as partes sem uma relação entre elas. No quarto verso da primeira estrofe percebemos bem essa fragmentação caótica quando o eu-lírico diz ―dormem relógios e cristais de outro tempo, esqueletos de atrizes‖, em que não há uma relação, a priori, entre os relógios, cristais e esqueletos. Além do mais, os excessos e exageros poéticos criam aparentemente uma desordem estrutural, mas com um pouco de atenção percebemos uma ordem não habitual seguida VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 178 pelo Eu-lírico. Dessa forma, essa desordem seria apenas a fuga da regra ou de uma ordem imposta na poética da contemplação do belo e sublime. Os excessos de fragmentação, caoticidade e metáfora não permeiam apenas este poema de modo particular, mas vamos perceber também em outros poemas de Murilo Mendes como ―A forma e a fôrma‖ publicado no livro Poesia liberdade (1943-1945): A FORMA E A FÔRMA Minha ala tem a forma do meu corpo: Mas como é afinal meu corpo? Eu nunca exato o vi. Às vezes será uma esfera, Outras vezes pirâmide. Quantas coisas aparentes vi... Vi famílias dependuradas dum cabide Que dialogavam fuzis. Vi uma dançarina erguendo na ponta dos pés Um teatro com mil colunas, Vi o sol negro. Vi, vejo, tantas coisas vi... Vi se movendo meu corpo, Mas não, até hoje, sua forma. Neste poema percebemos também a fragmentação dos versos e das estrofes, em consonância com a complexidade das metáforas e antíteses, o que dar ao poema um caráter de abertura poética, como acontece também no poema anterior. Ainda observamos certa inquietude do ser e sua dualidade corpo/forma. Essa inquietação do Eu-lírico é passada para o receptor nas características citadas anteriormente como a fragmentação, as metáforas excessivas e sua caoticidade. São os detalhes e as metáforas imprevisíveis que fazem do poema algo caótico e desordenado. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 179 Talvez seja impossível ver no poema uma mimese perfeita da realidade ou uma busca por essa imitação. Pelo contrário, a terceira estrofe cria imagens aparentemente semnexo e que apenas com algumas outras leituras fica claro um dos aparentes significados da parte no todo. É importante ressaltar a criação dessas imagens poéticas em uma relação com a repetição do verbo ―ver‖ e seu vínculo na arte Barroca. No Barroco prevaleceu um jogo de imagens excessivas, que tinham a pretensão de chamar a atenção para elas mesmas, de forma muitas vezes independente umas das outras. Daí o excesso de detalhes e metáforas para se criar uma obra que alimente a visão e que compense o não ver a própria forma. Nessa perspectiva, ambos os poemas apresentam traços que remetem a um período Barroco como a fragmentação, a desordem, a dualidade, a complexidade, o caos e outros. Tendo em vista a noção de neobarroco como obras modernas que apresentam algumas particularidades do pensamento barroco, poderíamos afirmar que estes poemas são considerados neobarrocos. Além do mais, apresentam uma ambigüidade estrutural, na qual esses traços Barrocos se sobrepõem de modo acentuado, causando no receptor, como bem foi esclarecido, uma inquietude sobre o modo de fazer da arte e chamando a atenção para a criação de um jogo de possibilidades de fruição, característica típica uma abertura das obras modernas. BIBLIOGRAFIA CALABRESE, Omar. A idade neobarroca. Lisboa: Edições 70, s.d. CANDIDO, Antonio. Na sala de aula: caderno de análise literária. São Paulo: Ática, 2004. ECO, Umberto. Obra aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. São Paulo: Perspectiva, 2008. MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 180 5. A ASA ESQUERDA DO ANJO PELO VIÉS DO DISCURSO MELANCÓLICO Profª. Ms. Adriana Sena (UFRN) O presente trabalho origina-se, na verdade, do título da dissertação, à nível de mestrado, A melancolia em A Asa Esquerda do Anjo. A Asa Esquerda do Anjo, de autoria de Lya Luft, é uma obra que, desde os tempos da graduação, foi refletida e estudada. Já, na pós, acreditou-se ser relevante trabalhar com ela sob um novo viés – o viés da melancolia. E, assim, achou-se, por ocasião, estender as reflexões subsequentes à defesa em congressos, encontros para uma melhor contribuição nas discussões e análises da obra em questão. Melancolia, sema escorregadio, de formação histórica irregular e assustador, apresenta, no entanto, o lado reflexivo, o lado mágico da linguagem, remetendo também ao seu lado sígnico, semiótico: Nos fenômenos, sejam eles quais forem – uma nesga de luz ou um teorema matemático, um lamento de dor ou uma idéia abstrata da ciência , a Semiótica busca divisar e deslindar seu ser de linguagem, isto é, sua ação de signo. Tão-só e apenas. E isso já é muito (SANTAELLA, 1983, p. 14). Perpassada pelo viés do discurso melancólico, a narrativa de Asa Esquerda do Anjo nos conduz ao labirinto da linguagem melancólica (peculiaridade barroca e moderna) na voz da protagonista – Gisela. Gisela constrói sua fala por intermédio de lembranças vividas na infância: Tenho sete, oito anos. Ao menos três vezes por semana passo nesta rua para visitar minha avó e estudar piano na sua sala de música. Um ritual a ser cumprido, como tantos numa família organizada: tudo é bem organizado na família Wolf, ao compasso da voz seca da matriarca, minha avó. Só eu me sinto fora de ritmo, com o corpo miúdo, as orelhas grandes VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 181 teimando em aparecer por entre o cabelo que me obrigam a usar bem curto, ―assim fica mais forte‖ (LUFT, p.11). Menina canhota, de lado esquerdo, de família tradicional alemã, porém nascida no Brasil, de pai sulista e mãe nordestina, busca se autoafirmar diante de seu núcleo familiar. Sua linguagem deriva em fragmentos, tecida de frangalhos vocabulares: Eu queria que Anemarie me visse, me amasse. Ao menos ela, que a música transportava para fora dessa família composta de gente que, eu adivinhava, não conhecia nenhum amor. As pessoas deviam se amar, mas aquela gente, a minha gente, realmente se queria bem? Às vezes eu corria para minha avó e indagava: - Vovó, você gosta da minha mãe? Sem hesitar mas sem dar muita importância, ela respondia: - Claro, Guísela. Ela não é a mulher de meu filho? Depois eu fazia a pergunta inversa a minha mãe, dessa vez em português, e ela retrucava: - Mas claro, Gisela, ela não é a mãe de meu marido? Uma vez, descobrindo minha manobra, as duas riram de mim: Não é que eu tinha idéias engraçadas? Guísela para uma, Gisela para outra. À noite, fantasmas, de dia, dúvidas. E eu? (p. 41-42). Representante de uma dualidade inscrita em seu próprio nome, Gisela fica indecisa com relação ao seu vocativo: a qual deles atender? E nesta ambivalência clara, aberta, emerge uma linguagem transitória, fragmentária, compondo um quadro, feito por emaranhado de linhas de dispersão e pontos de concentração (LOPES, 1999, p. 12). Pode-se, assim, dizer que na voz de Gisela há uma representativa barroca moderna. Barroca, pois Gisela fica indecisa entre o nome alemão e o nome brasileiro. Há também a presença da melancolia, que, na nossa modernidade, tem-se por depressão. Moderna, pois sua linguagem é fragmentária, inconsistente, ela não se sente enquadrada em um modelo. Questionando este, Gisela apresenta características modernas em seu modo de vida. Mostra, pois, o quanto é instável e melancólica. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 182 A protagonista vive uma crise subjetiva desde criança. À medida que a narrativa se descortina, este momento crítico interior ganha amplitude, revelando o impacto de seu discurso melancólico: À noite, insone por causa da solidão e de tantas recordações escutando os rumores da casa, eu meditava sobre a minha vida. Vida sem graça: já estava envelhecendo. Tormentos e exílios na infância. Orelhas grandes. Alemão ou português? Qual a mão certa? Onde o meu lugar? Minha avó me ama ou me despreza? E eu, o que sinto por ela? (p. 96). A melancolia não é apenas um discurso que abre porta para uma leitura perceptiva de uma profunda tristeza, mas também, como coloca Lopes (1999, p. 18), a escritura fragmentária se torna, portanto, um instrumento capaz de encenar uma história de dispersões que incorpora os acidentes, os desvios, na análise, no texto, na vida. A fala melancólica e a plurissignificação de seus signos nos remetem a idéia de palimpsesto, em que um texto é lido através de outro texto, uma imagem lida através de outra imagem, numa memória intertextual e visual. Seu sentido não apenas está prenhe de auto-repreensão; auto-punição, mas também de um empobrecimento de seu ego em grande escala, como bem nos coloca Freud (1980) em seu texto Luto e Melancolia: Os traços mentais distintivos da melancolia são um desânimo profundamente penoso, a cessação de interesse pelo mundo externo, a perda da capacidade de amar, a inibição de toda e qualquer atividade, e uma diminuição dos sentimentos de auto-estima a ponto de encontrar expressão em auto-recriminação e auto-envilecimento, culminando numa expectativa delirante de punição. Freud, estudioso das análises clínicas, faz um contraponto entre o afeto normal do luto e a melancolia para melhor entender o efeito simultâneo de sedução e ojeriza que a melancolia exerce sobre o individuo. Enquadra, assim, o discurso melancólico, ou a própria melancolia, no quadro das neuroses de angústia. Lança este olhar na tentativa de apreender o significado do tecido constitutivo do ego humano. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 183 Por motivos de ordem moral, a insatisfação do sujeito melancólico com o ego constitui a característica mais marcante de sua personalidade cambiante, móvel. E nesta mobilidade, o sujeito, junto com o seu discurso, fragmenta-se. Esfacela-se. Ou seja, perde consistência e estabilidade (peculiaridades de uma modernidade líquida). Ao adquirir tal movimento, descobre-se que não é o todo, nem o caminho para o todo, nem se define positiva ou negativamente face ao todo: Nenhum deles exceto talvez minha mãe suspeitava da extensão da minha dor, e do meu medo de jamais vir a pertencer a nada ou a ninguém. Nem nome certo eu tinha. E as coisas, as que pensava e sentia, em que palavras expressá-las: em alemão ou português? Recordar é uma particularidade intrínseca ao sujeito melancólico. Através do rememorar, ele busca localizar, no espaço, o tempo como fonte de recordações. Este relembrar-localizar o remete não ao todo, ou a leituras lineares, horizontais, ou, ainda, a uma reconstrução de um passado tal qual ele supostamente foi, porém, acima de tudo, remete a um reencontro, no conflito de tempos e com outras imagens, de si com o próprio Eu, revelando, assim, que a fala melancólica indica uma possibilidade de apreender a dor como uma outra face do pensar, de um pensar. Neste caminhar reflexivo, pelo viés do discurso melancólico, a construção histórica de mundo, de lugares se dá de forma diferenciada, e não nos leva a espaços seguros ou definitivos. É um risco de material misterioso. Como diz Walter Benjamin: A melancolia é a disposição do espírito na qual o sentimento dá uma vida nova, como uma máscara, ao mundo esvaziado, a fim de usufruir a sua maneira de um prazer misterioso. Já de início em sua fala, a protagonista revela sua perturbação subjetiva. Ela tem consciência de algo errado em sua vida, porém, pela dificuldade de identificar, de encontrar um signo correlato, não consegue emitir a nomeação. Se não há um significante expressivo, então, também não existi possibilidade de desvelar significações, de tornar em substância esse algo. Isto é a própria modernidade circunscrita no corpo mirrado de Gisela. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 184 Para Freud, a melancolia é sinônimo de uma perda desconhecida. Isto é, de um produto não dado ao conhecimento. O paciente sabe quem ele perdeu, seu conteúdo, no entanto, não pode, por alguma razão que o próprio Freud desconhece, ser visualizado: Isso, realmente, talvez ocorra dessa forma, mesmo que o paciente esteja cônscio da perda que deu origem à sua melancolia, mas apenas no sentido de que ele sabe quem ele perdeu, mas não o que perdeu nesse alguém. Isso sugeriria que a melancolia está de alguma forma relacionada a uma perda objetal retirada da consciência, em contraposição ao luto, no qual nada existe de inconsciente a respeito da perda (FREUD, 1980, p.251). As imagens não se encontram no sim ou no não. Não obstante, num limiar. Não entre o sono e a vigília, entre o mito e o despertar, mas imagens crepusculares, evanescentes no momento anterior à morte do sol, à noite escura. Sua significação está no entre-mundos, no intervalo. E é mediante este intervalo, esse espaço trans, de caráter intervalar e polissêmico da imagem de si mesma e de seu fio existencial, que Gisela reconstrói seu falar. Ao buscar um lugar, Gisela percebe que não é uma tarefa simples. Ela rompe com a idéia de que tudo está perfeito, de praias lisas e calmas. Percebe que não é fácil reconstruir o fio da meada e que este, devido à corrente temporal, vai se transformando e se perdendo na constituição de sua incompletude permanente, mergulhando, cada vez mais, no limiar inominável de si mesma: Chegava junto de minha mãe, que estava ocupada atendendo a todos. Logo alguém me pegava pelo braço, sempre aqueles apertos decididos, pondo-me no meu lugar – mas onde era mesmo o meu lugar? Jogar bola com as primas, pular corda, brincar? (p. 26) Sensível ao toque da vida e sua constante mobilidade, Gisela refaz seu contexto pelo viés do discurso melancólico. Revela-nos, pois, sua fragilidade em meio à dor da morte de entes queridos: VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 185 Anemarie toca violoncelo num circulo de luz. Amei Anemarie, um amor inocente, mas ela morreu. O câncer começara no útero dissera a enfermeira. A morte roendo a raiz da vida (p. 97). Pela lente da sensibilidade, Gisela rever as mortes no/do seu passado. Pondera-nos seus medos, angústias, principalmente, com relação à infância, da qual se sente prisioneira, arraigada. Sua fala permeia-se pelo viés singular da melancolia. Deste solo imagético, emergem diferentes momentos históricos vividos pela personagem em foco: barroco e modernidade. Mas isto não significa que ela busca criar um conceito, uma noção unívoca, como a base das teorias behavioristas, E→R (estímulo → resposta): A sensibilidade é uma categoria trans, para um mundo de identidades frágeis, fugazes, multiplamente simultâneas, mesmo aparentemente incongruentes, ou de fato contraditórias, desprezadas como ecletismo ou pura heterogeneização decorrente do consumo (LOPES, 1999, p. 40). As interfaces da fala melancólica se conjugam e, na soma de suas partes, encontrase o sujeito. O sujeito é o eixo em torno do qual giram a esfera da alegria e da dor, oscilando entre a exaltação e a depressão, sem nunca estar totalmente em nenhuma das duas. Ou seja, só se pode discutir melancolia pelo viés do sujeito. Quando assim explicitamos, queremos dizer que a melancolia talvez seja sobretudo um olhar, um olhar de lado, que não se fixa precisamente sobre nada, porém que vê o que existe entre os mundos, na vibração das esferas. Um olhar barroco, um olhar instável, inconsistente e, por isso, também moderno. Desde a tenra infância, Gisela abriga, dentro de seu ventre, um ser inominável, ausente de toda e qualquer significação, alguém que ela não consegue emitir, nem simbolicamente, os atributos necessários à nomeação: Preciso concentrar-me neste ritual: ficarei aliviada e limpa depois do horrendo parto. Deitar-me nesta cama branca e deixar que meu corpo expulse seu violador. Por muito tempo esteve esquecido. Hibernava? Pensei que morrera, ou não passava de um daqueles medos que me VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 186 atormentavam antigamente, eu era a criança mais esquisita da família Wolf (p. 09). Gisela, durante todo o desenvolvimento da narrativa, está em busca de um saber, do qual já participa. Porém, ela ainda não detém o poder da verdade total. Sua mão é falhada, é canhota, sua fala prima pelo saber irredutível. Em seu consciente, não está apta a adentrar no núcleo dos Wolf. Considera-se um ser marginalizado e como tal se comporta. Engolida na falha da identificação, a protagonista erra à margem de seus familiares ou ao tentar agarrar-se a sinais de reconhecimento que elegeu como referente para si: Estou feliz, Gisela, escreveu ela, tão feliz. Você não pode imaginar, mas um dia vai me entender, tenho certeza. Só tenho pena de minha mãe, cuide bem dela por mim. Não me disse se tinha um filho. Então a tocadora de violoncelo, meu anjo de lábios macios, dormia com um homem e era feliz. Quem sabe eu também conseguiria. Gisela é portadora de muitos medos. Um deles é se casar. Mais: viver naturalmente uma vida a dois. Esse é um dos seus maiores temores. Sua fase infantil é permeada por medos. Medo de perder a mãe (a figura que mais admira), de não agradar a exigente Frau Wolf (sua avó), de não alcançar a beleza e o encanto naturais de Anemarie (sua prima), medo da morte, etc. Assim, sua linha vital vai sendo construída. Culpa, sempre culpa. E esta permeia a história da protagonista de forma bem esclarecida. Isto é, não resta dúvida quanto ao discurso melancólico de Gisela: Talvez meu irmãozinho fosse um aluno exemplar, eu pensava, se não tivesse morrido bebê. Anemarie era exemplar. Eu, um desastre. Eu saía da sala sabendo que em casa o sermão se repetiria, pois meu pai era avisado por telefone. Sentia-me vagamente injustiçada mas aceitava a culpa pela falta de atenção, de interesse, de habilidade. Eu sempre aceitava as culpas (LUFT, 2005, p. 18). VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 187 Constantes medos e culpas tornarão a existência de Gisela mais pesada, pois o futuro virá. E, com ele, as incertezas do passado se somarão às do presente. Sob o signo do recalcamento, ocorrido devido às interdições infantis e reforçada pelo temor de perder o amor dos seres mais indispensáveis à sua sobrevivência (sua mãe, Anemarie, Leo, sua avó), Gisela precipita-se para o jogo do insolúvel, no qual o ideal de perfeição se transformou num juiz cada vez mais exigente. Esta demanda exigente demais anulará a sua existência enquanto sujeito. Mais do que um modo subjetivo de apreensão e conceitualização, a melancolia se sobrepõe como discurso de linhas diversas. Para entendê-la como forma de debate contemporâneo, é preciso, antes de tudo, partir do e para o sujeito. Na confluência de sua temporalidade, quando se falar em nosso passado, nosso presente, pode-se entender quem é o sujeito da fala, de que passado e presente se trata, pois não só presente é plural, mas os passados transitam e emergem quando e onde menos se espera. O presente só pode se fazer tal qual, ou seja, na exata medida, quando se revelar o seu passado. Gisela, narradora-personagem, menina inconstante, moderna, que, ao final da narrativa, ganha uns fios anelados, descobre, na conjugação reflexiva-temporal de sua vida, que a criatura, o quase-saber, o ser inominável, existe realmente de fato: Crio coragem. Acho que agora nada mais me põe medo. Corpo dolorido do esforço que acabo de fazer, soergo-me na cama, apoiada nos cotovelos, viro-me um pouco, para pela primeira vez contemplar o que saiu de mim. Ali está. Sorve com esse ruído o resto de leite no cinzeiro. A pele esticada reluz à claridade amarela do abajur. É enorme. Enrodilhado, tem duas pontas iguais, a que deve ser a cabeça está metida no liquido que serviu de chamariz. Bebe calmamente o leite. Não posso acreditar que esteja ali. Até o fim achei que era pesadelo, alucinação, exagero de minha fantasia. Agora, está ali (LUFT, 2005, p. 108-109). De atitudes e fala errante, A Asa Esquerda do Anjo se projeta para o meio literário como uma obra moderna, de respaldo, enviesada pelo viés do discurso melancólico, por um olhar barroco. Gisela, indivíduo de olhar subjetivo e melancólico, VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 188 descobre-se grávida de um inquilino sem identidade, sem feições, sem olhos, sem nariz como a própria Gisela. Único lugar participante dela mesma é a soleira da porta, o limbo, o quase-saber, o quase-conhecer. Além da revelação da dor, a melancolia se presta à narrativa como parte integrante da constituição discursiva de Gisela. Assim, dá uma vida nova – como uma máscara – ao mundo caótico interior da personagem em questão, contribuindo para entendermos que o melancólico não dita o discurso da verdade e muito menos se enquadra em dicotomias generalizantes e consensuais. Mas, acima de tudo, o discurso melancólico refaz o estado de contínua e total rebelião contra o real e toda a idéia absoluta que gira em torno do cálculo efeito-realidade. REFERÊNCIAS ABRAHAM, Karl. Teoria psicanalítica da libido: sobre o caráter e desenvolvimento da libido. 6. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1970. ALEXANDER, Franz. Fundamentos da Psicanálise. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976. ANDRÉ, Serge. O que quer uma mulher? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1998. ANZIEU, Didier. A auto-análise de Freud e a descoberta da psicanálise. Trad. Francisco Frank Settineri. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989. ______________. O sujeito na filosofia e na psicanálise – Revista do programa da psicanálise na UFBA. ______________. Psicanálise e Universidade, nº 01, Salvador/1998. ______________. A dor da existência – Revista Insight, n. 101, nov., 1999. ______________. Lo que los clásicos nos enseñan sobre la melancolia – Nueva Biblioteca Psicoanalítica, Eólia: Paidós, 1997. ______________. La mélancolies selon lês classiques – Collection Cliniques – Dês Mélancolies, pauis, dez., 2001. AUERBACH, E. A meia marrom. IN: MIMESIS. A REPRESENTAÇÃO DA REALIDADE NA LITERATURA OCIDENTAL. São Paulo: Perspectiva, 1971. ______________. O narrador: observações sobre a obra de Nikolai Leskow. Trad. M. Carone. In: BENJAMIN, W. et al. Textos escolhidos. 2 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 189 BATAILLE, Georges. O erotismo, o proibido e a transgressão. 2 ed. Coleção Manuais Universitários. Portugal: Moraes Editores, 1980. BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984. ECO, Humberto. Como se faz uma tese. Trad. Gilson César Cardoso de Souza. São Paulo: Perspectiva, 2005. (Estudos) ESTEVAM, Carlos. Freud: vida e obra. Rio de Janeiro: Fon-Fon e Seleta, 1965. _______________ . O pensamento vivo de Freud. São Paulo: Martin Claret, 1986. FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. Rio de Janeiro, Imago; Ed. Standard Brasileira, v. XIV: 270 - 291, 1980. ________________. Mais além do princípio do prazer. Rio de Janeiro: Delta, S.A., v. VIII: 255 – 320, 1981. ________________. O Futuro de uma Ilusão, O Mal-Estar na Civilização e Outros Trabalhos. Obras Completas. Rio de Janeiro, Imago; Ed. Standard Brasileira, v. XXI, 1996. ________________. Rascunho K - As neuroses de defesa, ESB: Ed. Imago, 1969 ________________. Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade. Rio de Janeiro: Imago, 2002. JONES, Ernest. Vida e obra de Sigmund Freud. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1961. KLEIN, Melanie. O Sentimento de solidão, nosso mundo e outros ensaios. Rio de Janeiro: Imago, 1971. KRISTEVA, Julia. Sol negro: depressão e melancolia. Trad. Carlota Gomes. Rio de Janeiro: Rocco, 1989. LACAN, Jacques. A psicanálise e suas conexões, 1990. LAGES, Susana Kampf. Walter Benjamin: Tradução e Melancolia. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2002. LAMBOTTE, Marie-Claude. Estética da melancolia. Trad. Procópio Abreu. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2000. LINO, Joselita Bezerra da Silva. Dialegoria: a alegoria em Grande Sertão: Veredas e em Paradiso. João Pessoa: Idéia, 2004. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 190 Littérature et Mélancolie (dossier). In: _____ . Magazine Littéraire. Paris, n.244, juillet – août, 1977. LOPES, Denilson. Nós, os Mortos: Melancolia e Neo-barroco. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1999. LUDWIG, Emil. Freud desmascarado. Rio de Janeiro: José Olympio, 1948. LUFT, Lya. Mulher no palco. São Paulo: Siciliano, 1984. _________. Exílio. São Paulo: Siciliano, 1988a. _________ . O Lado fatal. São Paulo: Siciliano, 1988b. _________ . A sentinela. São Paulo: Siciliano, 1994. _________ . Secreta mirada. São Paulo: Siciliano, 1997. _________ . Histórias do tempo. São Paulo: Siciliano, 2000. _________ . Mar de dentro. São Paulo: Record, 2002. _________ . A asa esquerda do anjo. 13 ed. Rio de Janeiro: Record, 2005a. _________ . As parceiras. São Paulo: Record, 2003a. _________ . O ponto cego. São Paulo: Record, 2003b. _________ . O rio do meio. São Paulo: Record, 2004a. _________. Para não dizer adeus. São Paulo: Record, 2003c. _________ . Perdas e ganhos. São Paulo: Record, 2005b. _________ . Pensar é transgredir. São Paulo: Record, 2005c. _________ . Reunião de família. São Paulo: Record, 2004b. _________ . O quarto fechado. São Paulo: Record, 2004c. _________ . Histórias de bruxa boa. São Paulo: Record, 2004d. MOISES, Massaud. Dicionário de termos literários. Cultrix: São Paulo, 1974. MOSCOVICI, Marie. A sombra do objeto: a inatualidade da psicanálise. Trad. Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994. OLIVEIRA, Walderedo Ismael de. Sobre os sonhos. Rio de Janeiro: Imago, 1973. PERES, Urânia Tourinho. Depressão e melancolia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2003. ____________. Melancolia. São Paulo: Escuta, 1996. (Biblioteca de Psicopatologia Fundamental). QUINET, Antonio. O eu e o outro no espelho – Latusa, O eu, nº 01, RJ, agosto/1997. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 191 OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. et al. Pós- modernidade. 5.ed. Campinas, SP: UNICAMP, 1995. SALOMÃO, Jayme. Sigmund Freud: publicações pré-psicanalíticas e esboços inéditos. Rio de Janeiro: Imago, 1977. SANTOS, Jair Ferreira dos. O que é pós-moderno. São Paulo: Brasiliense, 2005. (Col. Primeiros Passos ; 165). SCLIAR, Moacyr. Saturno nos Trópicos: a melancolia européia chega ao Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. EDIÇÕES ESTRANGEIRAS: Alemanha/Perdas e Ganhos. (no prelo, Ulstein) Catalúnia/ Perdas e Ganhos (_______, grup 62). Coréia/ Perdas e Ganhos. (Grup 62, Book21). Espanha/ Perdas e Ganhos. (_____, El Pair/ Aguilar). França/ Perdas e Ganhos. (_______, Editions Metailie). Holanda / Perdas e Ganhos. (_____, De Boekerij). Itália/ Perdas e Ganhos. (_____, RCS Libri/ Bompiani). Portugal/ Perdas e Ganhos. (2004, Editorial Presença). ______/ Pensar é Transgredir. (no prelo, Ed. Presença). OBS.: Alguns dados concernentes à referência foram encontrados com a ajuda da internet. Principalmente, os de edição estrangeira. O site de busca é http://capitu.uol.com.br / http://www.bmsr.com.br/autores/lya%20luft/texto.htm/ http://imprimis.arteblog.com.br/4502/MELANCOLIA-I-de-DURER/ VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 192 6. CANTO PARALELO - O JOGO PARÓDICO NA OBRA TUTAMÉIA DE JOÃO GUIMARÃES ROSA Arlene Isabel Venâncio de Souza (Universidade Federal do Rio Grande do Norte) Ânsia voraz de me fazer em muitos, Fome angustiosa da fusão de tudo. Guimarães Rosa Ao escolhermos como objeto de estudo a obra Tutaméia de Guimarães Rosa percebemos a necessidade da ―tradução‖ da obra que mesmo escrita em Português é recheada de palavras novas e antigas e de palavras amalgamadas fazendo com que se consolide a sua advertência inicial no índice de leitura da obra em forma de epígrafe, tratase de uma citação de Schopenhauer ―Daí, pois, como já se disse, exigir da primeira leitura paciência, fundada na certeza de que, na segunda, muita coisa, ou tudo, se entenderá sob luz, inicialmente outra‖(Rosa, 1985, p.5) e segundo Jeane Spera Quanto à sua constituição formal, os vocábulos neológicos apontam para a familiaridade de João Guimarães Rosa com o esquema de possibilidades de estruturação vocabular previsíveis na língua portuguesa. De fato, as ousadias no plano da criação vocabular, detectadas em Tutaméia, se fazem sempre dentro das coordenadas abertas pelo sistema da nossa língua. Nesse sentido, o leitor do texto, ao deparar-se com os desvios léxicos, necessariamente ativará todo seu conhecimento sobre as diferentes formas de constituição vocabular, a fim de decodificar o vocábulo criado. Essa cumplicidade do leitor está, de resto, implícita e requerida na epígrafe da obra. (Spera, 1995, p.19) Guimarães é esse alquimista da palavra que a faz, refaz, desfaz trazendo sempre o novo de novo. A formação do livro é bem peculiar sendo composta de dois índices – um de leitura e outro de releitura – o primeiro em ordem alfabética invertendo apenas dois VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 193 contos para formar as suas iniciais J.G.R. (João Guimarães Rosa) e o segundo índice chamado de índice de releitura que o autor separa os quarenta contos dos quatro prefácios e mais uma vez coloca como epígrafe outra citação de Schopenhauer ― Já a construção, orgânica e não emendada, do conjunto, terá feito necessário por vezes ler-se duas vezes a mesma passagem‖. Nessas duas citações o autor dá pistas para a compreensão da obra assim como ao longo de seus prefácios e narrativas aparecem frases sínteses do pensamento do autor e é em busca dessas frases que na maioria das vezes são inversões de frases já conhecidas que delineamos nosso trabalho. Inicialmente citaremos o tão estudado e discutido crítico russo Mikail Bakhtin que no quarto capítulo de seu livro Problemas da Poética de Dostoievski, traduzido para o português pelo professor Paulo Bezerra, que nos fornece um conceito de paródia utilizado como ponto de partida para a nossa análise: ―parodiar é a criação do duplo destronante, do mesmo ―mundo às avessas‖. Por isso a paródia é ambivalente‖ (Bakhtin, 1997, p.127). Partindo dessa afirmativa do ―mundo às avessas‖ e da ambivalência da paródia que observamos a criação e desconstrução de frases ao longo do livro Tutaméia, seja nos contos ou nos prefácios. Guimarães Rosa usou e abusou desse recurso desde inversões de provérbios populares ―o pior cego é o que quer ver...‖ (Rosa, 1985, p. 20) até um parecer crítico a uma obra consagrada do Romantismo brasileiro como é o caso de Cassimiro de Abreu que em seu famoso poema ―Meus Oito Anos‖ inicia com o clichê romântico ―Oh! que saudade que eu tenho da aurora da minha vida ...‖ e Rosa nega-o com a seguinte frase ―Ah, que saudades que eu não tenha!‖ (Rosa, 1985, p. 197). No poema Saudade que está no livro Magma, Rosa diz o seguinte ―Saudade triste do passado,/ Saudade gloriosa do futuro,/ saudade de todos os presentes vividos fora de mim!...‖ (Rosa, 1997, p. 132). Nesse poema o autor mostra sua saudade do futuro e não do passado como é o tema do poema Romântico. Ao longo de sua obra observamos que a utilização desse recurso de modificação de clichês, de provérbios consagrados é uma forma de o autor enriquecer sua linguagem, de recriar novas formas de retraduzir o seu código, a utilização de estrangeirismos, de palavras amalgamadas, de frases novas utilizando o mesmo sentido é um recurso fundamental na escritura rosiana. Ela está repleta de reinterpretações da realidade mostrando a paródia como um duplo destronante que sempre acrescenta, uma forma de crítica do que já foi dito e o apresenta com uma roupagem nova. Como diz o crítico Francisco Ivan ―Fazendo um VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 194 percurso textual sobre o texto de Guimarães Rosa, descobrindo um traço/rastro barroco, Barroco moderno, cor constante na Literatura Brasileira‖(Silva, 1994, p. 74). Quando Rosa diz ―todo mundo tem onde cair morto‖ (Rosa, 1985, p. 128) ele nos leva para a frase de origem que é inversa e causa o efeito jocoso e ao mesmo tempo reflexivo assim como quando diz ―aquele caminho não ia dar a Roma nenhuma‖ (Rosa, 1985, p. 168) ou ainda ―Haja a barriga sem o rei‖ (Rosa, 1985, p. 16) ou ―A bonança nada tem a ver com a tempestade‖ (Rosa, 1985, p. 48), nesses exemplos ele está novamente contrariando os provérbios. Existem também frases que retomam a mesma temática do provérbio, mas utiliza outra forma como ―foram infelizes e felizes, misturadamente‖ (Rosa, 1985, p. 29); ―Vá-se a camisa, que não o dela dentro‖ (Rosa, 1985, p. 48); ―o roto só pode mesmo rir é do esfarrapado‖ (Rosa, 1985, p. 19) e como ápice desse processo de carnavalização do já dito e estabelecido temos o trecho do último prefácio intitulado ―sobre a escova e a dúvida‖ que diz o seguinte: Senhor, já fiz tudo – as batatas estando plantadas, os macacos penteados, já fui saindo, vi que o senhor não está na esquina, banhei-me caixa de fósforos, o boi se amolou, o outro também, os porcos idem, foi lambido o sabão; e a Lherda e a Nherda fui, cá estou, Senhor ?....(Rosa, 1985, p.172). Nesse exemplo, temos de forma inteligente ―respondido‖ todos os clichês utilizados para mandar alguém embora e a forma como o autor os colocou unidos é a prova de sua engenhosidade artística. Em toda a obra podemos observar essa paródia constante, esse canto paralelo que permeia todas as citações e que nos chama atenção para o processo criador que aparece como uma cilada, uma armadilha para seduzir e encantar a todos. Rosa não repete apenas os clichês, ele os recria, pois se fizesse simplesmente repeti-los não nos intrigaria tanto, ao criar essa linguagem criptográfica deseja que só tenha acesso os que não se contentam com a primeira leitura. A revista Tempo Brasileiro especial sobre paródia (n. 62) de Julho/setembro de 1980, analisa essa questão através de dez especialistas que refletem a paródia sob vários aspectos tendo sempre como ponto de partida o conceito já demonstrado de BAKHTIN, a referida revista foi organizada pela professora Selma Calazans Rodrigues com supervisão do professor Emir Rodrigues Monegal, eles definem a paródia como: Canto Paralelo, VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 195 diálogo intertextual, escritura especular ou simples retomada de um texto pré-existente afirmando ao negar-se, a paródia está de novo no centro das investigações literárias contemporâneas. Nessa definição é feita uma retomada dos textos dispostos e esses serviram de fundamentação para o nosso trabalho. Outro texto que trabalha a paródia entendendo essa como uma intertextualidade é o artigo do cubano Severo Sarduy sobre ―O Barroco e o Neobarroco‖ que foi publicado no livro A América em sua literatura, 1979 (Sarduy, 1997, p. 161). Neste texto o autor ver a paródia como mais um elemento barroco da linguagem, mas sua fundamentação também passa pelo conceito de BAKHTIN. Refletindo agora sobre esse conceito podemos dizer que vendo a paródia como um duplo destronante que desconstrói o anterior e traz sempre o elemento novo, tentamos analisar como isso se dá na obra de Rosa Tutaméia que ao longo dos seus quarenta contos e quatro prefácios nos brinda com textos de outros fazendo inversão / invenção. Como primeiros exemplos têm na epígrafe do conto ―A Vela ao Diabo‖ a seguinte frase: ―E se as unhas roessem os meninos?‖ (Rosa, 185, p.26) vemos aí uma inversão do estabelecido um ―mundo às avessas‖ que ele desconstrói, reconstruindo. Para subsidiarmos essa discussão utilizamos novamente o ensaio do professor Francisco Ivan ―A Expressão Barroca na Literatura Brasileira‖ em que nos diz que ―O Barroco é um discurso sobre a arte/escritura, e que, aqui chamaremos de metalinguagem ou paródia‖ (Silva, 1994, p.74). Percebemos nessa abordagem que a questão da paródia está diretamente relacionada ao fazer poético, ao criar observando suas estruturas e vendo ainda que é na análise dos elementos internos e externos do discurso que teremos a radiografia do texto. No caso da análise paródica que está dentro do conceito de polifonia como mais uma voz que aparece relacionada a outras que estão no texto formando assim a polifonia – termo esse vindo da música e trabalhado pelo teórico russo. Percebemos que o seu estudo é essencial para observarmos o que ocorre nas construções e desconstruções feitas nos textos de Tutaméia. O processo criador de Rosa é o grande personagem de sua obra e é através dele que se tenta decifrar o seu código, código de poesia que está sempre com saudades do futuro como Oswald de Andrade e tantos outros. Nesse livro, existem duas frases que sintetizam o seu processo de criação, a primeira está no final do seu primeiro prefácio ―Aletria e Hermenêutica‖ que é ―O livro pode valer pelo muito que nele não deveu caber‖ (Rosa, VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 196 1985, p.17) e a outra no seu último prefácio ―Sobre a escova e a dúvida‖ que diz: ―Às vezes, quase sempre, um livro é maior que a gente‖. (Rosa,1985, p.178). O uso da paródia ao longo da literatura tem esse sentido de revitalização do mesmo destronamento e criando novos paradigmas. E ela se dá no momento em que o artista se distancia do objeto para poder vê-lo melhor percebe-se aí novas possibilidades de realização. Em vez de criar uma obra dentro dos cânones estabelecidos pela tradição, o parodista burla, ou seja, carnavaliza a própria linguagem, satirizando procedimentos correntes para atingir novos objetivos. A paródia é um signo vivo, vivificando o que estava morto e esquecido. É a contaminação dos gêneros que ocorre por isso ela é ambígua, denunciando o fracasso do poder constituído. Quando ROSA critica os românticos ele está desconstruindo um discurso vigente em que diz que eles eram o modelo. JOYCE no seu Ulysses faz isso com a Odisséia a carnavalizando e criando um novo paradigma para aquele épico, e um estudo sério hoje sobre ela não pode ser feito sem o olhar para o de JOYCE, e é assim que a língua cresce. Por que esse poder constituído é estranho numa sociedade cheia de contrastes. Vimos que a questão do destronamento e da ambivalência da paródia é sempre retomada e quando no primeiro prefácio de Tutaméia ―Aletria e Hermenêutica‖ ROSA aproxima CERVANTES de CHAPLIN ele está mostrando esse destronamento da linearidade. No texto ele diz o seguinte: E que, na prática de arte, comicidade e humanismo atuem como catalizadores ou sensibilizantes ao alegórico espiritual e não-prosaico, é verdade que se confere de modo grande. Risada e meia? Acerte-se nisso em Chaplin e em Cervantes. Não é chiste rasa coisa ordinária; tanto seja porque escancha os planos da lógica, propondo-nos realidades superiores e dimensões para mágicos novos sistemas de pensamentos. (Rosa, 1985, p. 7). Com isso, ele nos mostra a paródia fazendo com que a contaminação dos gêneros ocorra não podendo mais haver diferenças. Um conto ou prefácio de ROSA não é mais um conto instituído como tal, ele tem elementos críticos, poéticos, filosóficos tendo que determinar a sua contaminação. O humor como sendo um recurso paródico é um humor desconfiado por que não se mostra completamente, ele não se desvincula do sério, como no ―mundo às avessas‖. A paródia pode ser considerada, de alguma maneira, um tipo de visão especular que a imagem original se apresenta invertida, reduzida e ampliada e de VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 197 acordo com a lente utilizada. Essa lente é o repertório, ou melhor, é a técnica para ver o que está sendo parodiado, é o jogo do espelho ou a câmara de ecos que Severo Sarduy nos apresenta no seu estudo sobre o Barroco. Outra coisa que ainda pode-se observar no texto paródico é a sua autonomia, já que ele coloca em movimento o novo modelo passa a viver a sua própria vida independente do que foi parodiado. Ao falar do velho para falar do novo de novo, recua-se no tempo para esse avançar. Para sintetizar e como mais um exemplo de conceituação da paródia, sendo esse o último, mostraremos o que o professor Flávio R. Kothe no seu texto ―Paródia & Cia‖ na referida revista diz sobre a paródia: ―Paródia, segundo o étimo significa ―Canto Paralelo‖: é um texto que contém outro texto em si do qual ela é uma negação, uma rejeição e uma alternativa. Ela geralmente diz o que o outro texto deixou de dizer e ela insiste no fato de não ter sido dito. A paródia é um texto duplo, pois contém o texto parodiado e, ao mesmo tempo, a negação dele. Ela é, portanto, a síntese de uma contradição, dando prioridade para a antítese, em detrimento de tese proposta pelo texto anterior parodiado. A paródia procura rebaixar um texto, um estilo, uma escola; a estilização, que, como a paródia, também tem alguma outra obra ou tendência anterior como referência diferencia-se por que procura criar uma obra que seja de nível mais elevado e que não viva mais apenas para negar algo anterior e apenas como negação de algo anterior. A paródia ―vive‖ num estado de tensão, pois indica o ―seu‖ ódio e o ―seu‖ desprezo para com o texto parodiado (de fato, porém, ela indica o ódio e o desprezo de seu autor e da tendência artística e ideologia a que ele pertence) e, ao mesmo tempo, ela denota o seu parentesco para com o texto parodiado. Quanto mais a paródia apresenta ser semelhante ao texto parodiado, tanto mais ela procura mostrar através da aparência de identidade a diferença radical de enfoque: isso ocorre, porém numa fase em que aquilo que o texto parodiado representa ainda tem muita força sobre quem o parodia. ―A paródia é um gesto de fechamento para o passado e de abertura para o futuro ou, mais exatamente, fechamento para certo tipo de produção do passado e de abertura para algum novo tipo de produção futura.‖ (Kothe, 1980, p. 97). Finalizando o ensaio e nunca querendo esgotar o assunto pretendo dizer que nosso objetivo foi tentar esboçar uma reflexão sobre a paródia através desses textos e chegar a pelo menos uma conclusão que a paródia se constrói e se relaciona com todo tipo de discurso literário e que faz da sua própria produção o objeto da indagação da realidade VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 198 estabelecida. E que essa questão da paródia ou metalinguagem por um lado aponta para a citação, reminiscência – intertextualidade e por outro para a intratextualidade que é a relação do texto com ele mesmo, com sua estrutura interna seja ela fonética, morfológica ou sintática. Para exemplicarmos como isso se dá observemos esses dois exemplos de ROSA no conto ―Lá, nas Campinas‖ – ORFANDANTE junção de orfão + andante e UTOPIEDADE junção de utopia + piedade mexendo na estrutura da língua a resignificando-a. A utilização da paródia hoje apesar de acenar sempre para o conceito de BAKHTIN, aponta também para a questão estrutural da língua mostrando sua significação, resignificação e principalmente reconstrução do código até chegar ao seu saturamento e é isso que estamos chamando de procedimento barroco. E é isso que Guimarães Rosa faz com a língua, a processa através de um ritual antropofágico de devoração da palavra, absorvendo-a e a devolvendo metamorfizada, ou melhor, relapidada com as facetas retrabalhados sob ângulos diferentes daqueles anteriormente apresentados. ROSA fez o que os grandes ícones da linguagem, como Dante, Rabelais, Shakeapeare e Joyce, fizeram com as suas línguas a modificaram para enriquecê-las. Rosa é esse autor-crítico-poeta consciente do seu papel e que nos apresenta sempre o novo de novo. A sua literatura é vida e está em toda parte. Guimarães Rosa vivia em estado de literatura e sua obra-testamento Tutaméia representa uma síntese do seu pensamento e de suas leituras, ela mostra sua busca pela tradição que vai de Cervantes a Chaplin, de Homero a Joyce. Como ele mesmo diz sobre a obra em questão através do seu amigo Paulo Rónai no artigo que está no como apêndice: Ele me segredou que dava a maior importância a este livro, surgido em seu espírito como um todo perfeito não obstante o que os contos necessariamente tivessem de fragmentário. Entre estes havia inter-relações as mais substanciais, as palavras todas eram medidas e pesadas, postas no seu exato lugar, não se podendo suprimir ou alterar mais de duas ou três em todo o livro sem desequilibrar o conjunto.‖ (Rosa, 1985, p. 216). BIBLIOGRAFIA VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 199 BAKHTIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Unversitária, 1997. KOTHE, Flávio R. ―Paródia & Cia‖ in: Revista Tempo Brasileiro – sobre paródia. Julho – Setembro de 1980 (62). ROSA, João Guimarães. Ficção Completa, em dois volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. __________ . Magma. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997. __________ . Tutaméia: terceiras estórias. 6ª.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. SARDUY, Severo. ―O Barroco e o Neobarroco‖ in: América em sua literatura. Org. César Fernández Moreno. São Paulo: Perspectiva, 1979. (Col. Estudos. Literatura Unesco 52). SILVA, Francisco Ivan da. “A Expressão Barroca na Literatura Brasileira” In: Revista FACE – Revista de Comunicação e Semiótica PUC-SP – número especial do Barroco. Org. Samira Chalhub. São Paulo, 1994. SPERA, Jeane Mari Sant‘Ana. As ousadias verbais em Tutaméia. São Paulo: Editora Arte & Cultura – UNIP, 1995. (Coleção Universidade Aberta, v.10). VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 200 7. LUTO E ALEGORIA EM “A HORA E A VEZ DE AUGUSTO MATRAGA” Paulo Henrique da Silva Gregório (Universidade Federal do Rio Grande do Norte) Em suas obras, Guimarães Rosa se utiliza do elemento regional, o sertão, para tratar de temas de caráter universal, nos quais o homem aparece como centro, e nesse sentido, as questões inerentes à existência humana adquirem relevância em meio à produção ficcional do autor. Não se pode deixar de ressaltar, no entanto, o trabalho que ele empreende com a linguagem, apresentando ao leitor um linguajar tipicamente sertanejo, carregado de regionalismos, marcas da oralidade e neologismos. É por meio desse linguajar que ele elabora os conflitos, as dúvidas, vivenciados por Riobaldo, em Grande Sertão: veredas; o confronto entre Primo Argemiro e Primo Ribeiro por causa do amor a uma mulher, em ―Sarapalha‖; a relação entre loucura e abandono em ―A terceira margem do rio‖, dentre inúmeros outros exemplos que se poderiam mencionar. A produção ficcional rosiana compreende romances e coletâneas de contos, dentre as quais pode ser destacada Sagarana, na qual estão incluídas os dois últimos contos supracitados. Além destes, o volume é formado por outros sete, podendo-se considerar como mais importante ―A hora e a vez de Augusto Matraga‖, em que se centrará a abordagem do presente artigo. Para Candido (1991, p. 247), essa é a ―obra-prima do livro‖, tendo em vista que Rosa, ―deixando de certo modo a objetividade da arte-pela-arte, entra em região quase épica de humanidade e cria um dos grandes tipos de nossa literatura‖. Nessa obra, o autor traz à tona a história de Nhô Augusto Esteves, um homem que, pela posse de bens e por seu comportamento imperativo e violento, passou a ser respeitado e até mesmo temido pelos habitantes do povoado do Murici. Era casado com Dinória e possuía uma filha, Mimita, mas não tinha o menor respeito e a mínima consideração pelas duas, uma vez que lhes dava pouca atenção e vivia se envolvendo com outras mulheres. Certa vez, foi surpreendido com a notícia de que elas o tinham abandonado, fugindo com um outro homem, Ovídio, que nutria um forte sentimento por Dinória. Decidido a matar os dois, convocou os seus capangas, mas eles não viriam: VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 201 estavam trabalhando para o Major Consilva, seu rival. Furioso, dirigiu-se à chácara do Major para fazer o acerto de contas, acabando por ser espancado e quase morto pelos excapangas, marcado com ferro em brasa, atirando-se, por fim, em um barranco. Foi encontrado por um preto, que, juntamente com sua esposa, cuidou dele até a recuperação parcial, depois da qual, orientado por um padre, decidiu mudar de vida e partir em busca da sua ―hora e sua vez‖. Mudou-se para o povoado do Tombador, onde passou a viver como um bom cristão, fazendo orações e ajudando aos outros, mas depois de passado algum tempo resolveu partir, alegando que precisava buscar pela sua ―vez‖ em outros lugares. Assim, guiado por um jumento, acabou chegando em um povoado próximo ao do Murici, onde morre, depois de um confronto com Joãozinho Bem-Bem, que também acaba morrendo. O povo passa a considerá-lo um santo, e ele é aclamado pela coragem de ter enfrentado Bem-Bem, temido em toda aquela região. A trajetória da personagem pode ser dividida em três fases: na primeira, é posto em relevo o seu comportamento libertino e desenfreado; na segunda, observa-se a mudança de postura e o desejo de buscar a salvação para a alma; por fim, no estágio em que parte em busca de sua ―hora‖ e ―vez‖, a personagem é impulsionada a agir em função de dois impulsos, relacionados às outras duas fases, os quais passam a se manifestar de modo equilibrado. É a partir dessa divisão que se pretende analisar o referido conto, de modo a inseri-lo na problemática referente ao Barroco, buscando-se perceber o modo como o luto se instala na narrativa, bem como a relação entre este e as questões relacionadas ao alegórico e à melancolia. A análise está ancorada, principalmente, nos estudos de Walter Benjamin acerca do drama barroco alemão, nos quais ele traz à tona concepções acerca de alegoria, luto e melancolia, que fornecerão subsídios para que se compreenda como esses elementos se apresentam na obra rosiana em questão. Pretende-se, também, observar certos aspectos por meio dos quais se pode afirmar que existem pontos de contato entre tal obra e o drama barroco. Augusto Esteves e o plano da matéria O que aqui se denomina primeira fase da personagem vai do início da narrativa até o ponto em que é espancada e marcada com ferro em brasa pelos capangas do Major Consilva, atirando-se, logo em seguida, em um penhasco. Já em sua primeira aparição no conto, Augusto Esteves é apresentado pelo narrador como um homem de índole VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 202 imperativa, que impunha a sua superioridade aos habitantes do povoado do Murici. O respeito e até certo temor que estes lhe destinavam eram devidos não só à posição de destaque da qual gozava em decorrência da posse de muitos bens, como fazendas e terras, mas também ao modo violento com que costumava agir quando eram impostos empecilhos aos seus objetivos. Vejamos o fragmento abaixo, em que ele aparece determinado a arrematar uma prostituta exposta em um leilão. E, aí, de repente, houve um deslocamento de gentes, e Nhô Augusto, alteado, peito largo, vestido de luto, pisando pé dos outros e com braço em tenso, angulando os cotovelos, varou a frente da massa, se encarou com a Sariema, e pôs-lhe o dedo no queixo. Depois, com voz de meio-dia, berrou para o leiloeiro Tião: – Cinqüenta mil-réis!... (ROSA, 2001, p. 364). Ele se desloca em meio ao povo tal qual um animal disposto a agarrar sua presa. O modo como age diante da Sariema, que parece indicar a supremacia do predador diante da fragilidade da presa, bem como o berro que solta para o leiloeiro revelam instintos primitivos, animalescos, da individualidade da personagem. Suas atitudes, nessa primeira fase, não entram em consonância com regras morais, leis, tampouco preceitos religiosos, pois o que importa para Nhô Augusto Esteves é a manutenção do seu desejo de potência, de superioridade, no contexto em que estava inserido. Como um típico homem profano, encontrava o verdadeiro prazer na vida de libertinagem junto aos capangas e às prostitutas, ou quando ia ―em busca de qualquer luz em porta aberta, aonde houvesse assombro de homens, para entrar no meio ou desapartar‖ (ROSA, 2001, p. 368), esbanjando sua valentia. Tal conduta pode ser compreendida como um ―berro‖ contra qualquer tipo de repressão ao seu desejo de experimentar sensações. No fragmento que segue, o narrador aponta os principais traços característicos da individualidade da personagem: E ela [Dinória] conhecia e temia os repentes de Nhô Augusto. Duro, doido e sem detença, como um bicho grande do mato. E, em casa, sempre fechado em si. Nem com a menina se importava. Dela, Dinória, gostava, às vezes; da sua boca, das suas carnes. Só. No mais, sempre com os capangas, com mulheres perdidas, com o que houvesse de pior. Na fazenda – no VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 203 Saco-da-Embira, nas Pindaíbas, ou no retiro do Morro Azul – ele tinha outros prazeres, outras mulheres, o jogo do truque e as caçadas. (ROSA, 2001, p. 368-369). Outro traço marcante que revela o modo de ser mundano e desregrado da personagem é o seu impulso para matar. ―Para isso, sim, ele prestava muito‖ (ROSA, 2001, p. 369), conforme assinala o narrador. Geralmente agindo por vingança, Nhô Augusto não hesita levar à morte alguém que, por exemplo, tenha ameaçado a sua honra, ou então contrariado seus desígnios, como foi o caso do abandono por parte da mulher e dos capangas, deixando-o furioso e decidido a fazer o acerto de conta com todos eles, assim como fica evidenciado no trecho abaixo: Nele, mal-e-mal, por debaixo da raiva, uma idéia resolveu por si: antes de ir à Mombuca, para matar o Ovídio e a Dinória, precisava de cair com o Major Consilva e os capangas. Se não, se deixasse o resto por acertar, perdia a força. E foi. (ROSA, 2001, p. 373). É sempre a obsessão de manter a força, de não se sentir em desvantagem, que o leva a agir de forma vil, principalmente quando se trata de eliminar seus adversários, aqueles que haviam se apropriado daquilo que lhe pertencia. O Quim Recadeiro, diante da resolução tomada pelo seu senhor, faz questão de alertá-lo acerca dos perigos aos quais estava exposto, tendo em vista os comentários que andavam sendo feitos a respeito dele: ―[...] estão dizendo que o senhor nunca respeitou filha dos outros nem mulher casada, e mais que é que nem cobra má, que quem vê tem de matar por obrigação...‖ (ROSA, 2001, p. 373). Assim, percebe-se a maldade como aspecto também marcante nessa primeira fase da personagem, maldade essa que, somada à vontade de vingança, faz com que não hesite avançar sobre seus inimigos, mesmo na iminência de ser aniquilado pelo ―Major Consilva mais outros grandes‖ (ROSA, 2001, p. 372), tal qual assinala o narrador neste fragmento: [...] quase qualquer um capiau outro, sem ser Augusto Estêves, naqueles dois contratempos teria percebido a chegada do azar, da unhaca, e passaria umas rodadas sem jogar, fazendo umas férias na vida: viagem, mudança, ou qualquer coisa ensossa, para esperar o cumprimento do ditado: ―Cada um tem seus seis meses...‖ VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 204 Mas Nhô Augusto era couro ainda por curtir, e para quem não sai, em tempo, de cima da linha, até apito de trem é mau agouro. (ROSA, 2001, p. 373). Nem mesmo no momento em que está sendo brutalmente espancado pelos seus excapangas ele demonstra passividade, visto que ―urrava e berrava, e estrebuchava tanto, que a roupa se estraçalhava, e o corpo parecia querer partir-se em dois, pela metade da barriga.‖ (ROSA, 2001, p. 374-375). Esse processo de fragmentação por que passa o corpo de Nhô Augusto são os primeiros indícios de uma nova fase que se inicia para ele, na qual, destituído de sua força, depois de ser ferido mortalmente e marcado com ferro em brasa, precisa assumir uma nova postura diante da vida. O próprio ato de se atirar do alto de um penhasco parece representar não só a queda física, mas também a moral, e, nesse sentido, o fundo do penhasco seria como um mundo desconhecido no qual ele estava imergindo. Nhô Augusto: confronto entre alma e matéria Depois de ser encontrado por um preto, Nhô Augusto passa a ficar sob os cuidados dele e de sua esposa, os quais moravam na boca do brejo. Depois que toma consciência do estado em que seu corpo se encontra, e vendo-se impossibilitado de nutrir qualquer desejo de vingança, torna-se triste, melancólico, chegando, inclusive, a recorrer a Deus, o que não era acostumado a fazer até então. Sentindo-se pecador, revela o desejo de receber a absolvição dos pecados, o qual é atendido por meio do intermédio dos pretos, que providenciam um encontro entre ele e um padre. Este recomendou-lhe que esquecesse a mulher, renunciasse à vingança, fizesse penitência, trabalhasse em prol dos outros, e acrescentou: ―[...] Modere esse mau gênio: faça de conta que ele é um poldro bravo, e que você é mais mandante do que ele...‖ (ROSA, 2001, p. 380). Por fim, o reverendo proferiu as últimas palavras, as quais ficaram incrustadas na mente de Nhô Augusto: – Reze e trabalhe, fazendo de conta que esta vida é um dia de capina com sol quente, que às vezes custa muito a passar, mas sempre passa. E você ainda pode ter muito pedaço bom de alegria... Cada um tem a sua hora e a sua vez: você há de ter a sua.‖ (ROSA, 2001, p. 380). VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 205 Assim, em busca de sua ―hora‖ e ―vez‖, a personagem adota uma nova forma de vida, mudando-se para um lugar isolado, o povoado do Tombador, ―onde, às vezes, pouco às vezes e somente quando transviados de boa rota, passavam uns bruaqueiros tangendo tropa, ou uns baianos corajosos migrando rumo sul‖. (ROSA 2001, p. 382). Esse isolamento da personagem se configura como um declínio sofrido por ela, pois não dispunha mais do status de que gozava outrora. O seu corpo estava destruído e, portanto, não tinha força para se insurgir contra aqueles que foram responsáveis pela sua ruína. Tal situação parece entrar em consonância com a questão da alegoria segundo Benjamin (1984, p. 188), para o qual o cerne da visão alegórica consiste na ―exposição barroca, mundana, da história como história mundial do sofrimento, significativa apenas nos episódios do declínio.‖ Nesse sentido, a destruição física do corpo de Nhô Augusto pode ser interpretada como uma alegoria do próprio fragmento a que ele foi reduzido depois da sua queda, precisando renunciar a toda aquela posição de supremacia para se apegar apenas a um ideal de libertação. Assim, ele não fumava mais, não bebia, não olhava para o bom-parecer das mulheres, não falava junto em discussão. Só o que ele não podia era se lembrar de sua vergonha; mas, ali, naquela biboca perdida, fim-de-mundo, cada dia que descia ajudava a esquecer. (ROSA, 2001, p. 383). Era inútil trazer de volta à memória a ―vergonha‖ oriunda do declínio sofrido, principalmente porque isso só faria com que a personagem pensasse em vingança, o que poderia desviá-la do desejo de buscar pela ―hora‖. Assim, lembrar-se de certos eventos dificultaria ainda mais o processo de mudança ao qual estava se submetendo, processo esse cujo principal fator era justamente domar o ―mau gênio‖, tal qual aconselhara o padre. Mas esse mal parecia estar na iminência de, a qualquer momento, apoderar-se completamente de Nhô Augusto e, por esse motivo, ele o combatia, sendo esse o único meio de garantir a própria existência, tendo em vista que, para ele, ―a vida já se acabara, e só esperava era a salvação da sua alma e a misericórdia de Deus Nosso Senhor. Nunca mais seria gente!‖ (ROSA 2001, p. 380). Essa situação da personagem entra em consonância com a concepção de dobra barroca, principalmente no que diz respeito ao confronto entre alma e matéria. De acordo com Deleuze (1991, p. 23) ―dobrar é diminuir, reduzir, ‗entrar no afundamento de um mundo‘.‖ O autor assinala ainda que o traço do barroco ―é a dobra VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 206 que vai ao infinito. Primeiramente, ele diferencia as dobras segundo duas direções, segundo dois infinitos, como se o infinito tivesse dois andares: as redobras da matéria e as dobras na alma.‖ (DELEUZE, 1991, p. 13). Nesse sentido, pode-se afirmar que a individualidade da personagem estava fragmentada em dois planos principais: o do passado, relacionado à matéria; e o do presente, relacionado à alma, ao desejo de buscar pela ―hora‖ e ―vez‖. Mas para que o plano da matéria não triunfasse, era preciso dobrá-lo, diminuí-lo, reduzi-lo, já que parecia impossível a sua extinção por completo, visto ser algo impregnado na essência do ser de Nhô Augusto. Essa matéria representava para ele a queda, o declínio e, portanto, corresponder aos desejos dela seria permanecer na mesma situação. Conforme assinala Deleuze (1991, p. 57), o mundo barroco ―organiza-se de acordo com dois vetores, o afundamento em baixo e o impulso para o alto.‖ Em consonância com essas ideias, Benjamin (1984, p. 47) afirma que a ―alegoria se instala mais duravelmente onde o efêmero e o eterno coexistem mais intimamente‖, ou seja, a fonte da inspiração alegoria reside no ―choque entre o desejo de eternidade e a consciência aguda da precariedade do mundo‖ (GAGNEBIN, 2004, p. 37). A questão do fragmento se torna mais evidente quando Nhô Augusto passa a transitar entre os planos do bem e do mal, referentes ao efêmero e ao eterno, respectivamente. O marco inicial desse transe é a ocorrência de alguns eventos ocorridos depois que ele já está aparentemente acostumado com a vida de servilismo e isolamento, como a visita de Tião e a chegada do bando de Joãozinho Bem-Bem no povoado do Tombador. O primeiro trouxe notícias sobre Dinória, Mimita, o Major Consilva e até o Quim, as quais não agradaram em nada o outro. Dinória ainda estava vivendo com Ovídio, pensando até em casar; a filha havia se tornado prostituta; o Major se apropriara de algumas de suas terras; e o Quim morrera baleado por tentar vingar a ―morte‖ do patrão. Este, abalado depois dessas notícias, parecia tomado por uma força que o levaria a abandonar toda aquela espera pela hora da libertação, tanto que precisou se apegar à jaculatória do coração manso e humilde, bem como se ajoelhar e rejurar: ―– P‘ra o céu eu vou, nem que seja a porrete!...‖ (ROSA, 2001, p. 385). Mas, mesmo assim, daí em seguida, ele não guardou mais poder para espantar a tristeza. E, com a tristeza, uma vontade doente de fazer coisas mal-feitas, uma vontade sem calor no corpo, só pensada: como que, se bebesse e cigarrasse, e ficasse sem trabalhar nem rezar, haveria de recuperar sua força de homem e seu acerto VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 207 de outro tempo, junto com a pressa das coisas, como os outros sabiam viver. (ROSA 2001, p. 385). Parecia difícil para Nhô Augusto se desprender completamente de seu passado para ter de viver ―escondido, encostado, que nem como se tivesse virado mulher‖...‖ (ROSA, 2001, p. 386). Só num outro plano, que não o terreno, é que teria de volta a sua ―força de homem‖, e, segundo os preceitos cristãos pregados pelo padre, apenas por meio da renúncia às práticas do passado é que esse outro plano poderia ser atingido. Em uma conversa com a preta Quitéria, ele diz: ―– Tem horas que eu fico pensando que, ao menos por honrar o Quim, que morreu por minha causa, eu tinha ordem de fazer alguma vantagem...Mas eu tenho medo... Já sei como é que o inferno é, mãe Quitéria...‖ (ROSA, 2001, p. 387). O inferno, nesse caso, pode ser interpretado como aquela condição à qual estava submetido, fazendo com que se sentisse um desgraçado. Esse sentimento pareceu tomar uma proporção ainda maior depois da chegada do bando de Joãozinho Bem-Bem, pois Nhô Augusto enxergava nesses homens, principalmente no chefe, um retrato de si próprio, de sua valentia de outrora, e, comparando-se com eles, chegou à conclusão de que Aqueles, sim, que estavam no bom, porque não tinham de pensar em coisa nenhuma de salvação de alma, e podiam andar no mundo, de cabeça em pé... Só ele, Nhô Augusto, era quem estava todo desonrado, porque, mesmo lá, na sua terra, se alguém se lembrava ainda do seu nome, havia de ser para arrastá-lo pela rua da amargura... (ROSA, 2001, p. 397). Como se vê, Nhô Augusto se considera um desgraçado sempre a partir de uma comparação com o passado, no qual ele era honrado, respeitado, e até mesmo temido. Essa relação entre presente e passado nos direciona para uma análise acerca da ideia da perda, tão presente nessa fase em que a personagem esteve no povoado do Tombador, e também na sua terceira e última fase, quando, finalmente, atinge a sua ―hora‖ e ―vez‖. Luto e alegoria na redenção de Augusto Matraga O luto, segundo a concepção benjaminiana, ―é o estado de espírito em que o sentimento reanima o mundo vazio sob a forma de uma máscara, para obter da visão desse VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 208 mundo uma satisfação enigmática‖. (BENJAMIN, 1984, p. 162). Nessa mesma perspectiva, Gagnebin (2004, p. 39) afirma que a linguagem alegórica extrai sua profusão de duas fontes que se juntam num mesmo rio de imagens: da tristeza, do luto provocado pela ausência de um referente último; da liberdade lúdica, do jogo que tal ausência acarreta para quem ousa inventar novas leis transitórias e novos sentidos efêmeros. No caso de Nhô Augusto, a perda da sua força de homem, da família, dos capangas, das terras, e da própria honra fez com que ele se apegasse ao ideal de libertação. Mas a ausência desses elementos o tornaram triste, e, tendo em vista a relação desse sentimento com a questão da perda, pode-se afirmar que a personagem entra em estado de luto. Este passa a se manifestar de modo mais acentuado após o recebimento das notícias transmitidas por Tião, quando Nhô Augusto passa a se mostrar triste, como podemos perceber neste fragmento, no qual ele expressa o seu sentimento a mãe Quitéria: ―Já fiz penitência esses anos todos, e não posso ter prejuízo deles! Se eu quisesse esperdiçar essa penitência feita, ficava sem uma coisa nem outra... Sou um desgraçado, mãe Quitéria, mas o meu dia há-de-chegar!...‖ (ROSA, 2001, p. 387). Conforme assinala Pereira (2007, p. 47), o sentimento de luto aponta para a ―nostalgia de uma ordem histórico-temporal, simbólica, quantitativamente distinta da que se apresenta ao homem lingüístico, profano, como única possível – todavia não satisfatória – do mundo das coisas.‖ Nesse sentido, envolto no luto oriundo das perdas que sofreu, Nhô Augusto passa a esperar pela sua ―hora‖ e ―vez‖, que pode ser associada a um resgate de certos elementos com a honra, cuja ausência era motivo de lamentação para ele. Essa falta se configura como um sinal de luto, ao qual está atrelada a melancolia, oriunda da tristeza da personagem quando se deparava com elementos daquela primeira fase. Assim, tendo em vista o confronto que passou a vivenciar entre alma e matéria, era primordial o triunfo da primeira, pois sendo a outra sinal da queda, do declínio, só pelo viés do plano espiritual poderia ser alcançada uma nova ascensão. Ascender pelo viés do espírito representava, para Nhô Augusto, a incorporação dos preceitos cristãos recomendados pelo padre. Mas ele, enquanto matéria, era impulsionado a renegar esses preceitos e corresponder aos desejos da carne, dentre os quais a vontade de vingança era o principal. Percebemos, aí, um paradoxo: a personagem é a única responsável VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 209 pela sua transcendência, mas, enquanto simples criatura, era destituída dessa transcendência. Assim, a sua consciência dessa fragilidade pode ser compreendida como mais um fator para a manifestação do estado de luto e melancolia. Benjamin (1984, p. 165), a partir da ideia de que o ―príncipe é o paradigma do melancólico‖, considera Hamlet uma obra que, por excelência, incorpora os traços próprios do drama barroco. Nesse sentido, tendo em vista as considerações que estão sendo tecidas acerca de luto e melancolia no conto rosiano, parece pertinente traçarmos um paralelo entre Nhô Augusto e o personagem homônimo da supracitada obra shakespeariana. De acordo com Benjamin (1984, p. 180), no ―drama barroco, somente Hamlet é espectador das graças de Deus; mas o que elas representam para ele não lhe basta, pois apenas seu próprio destino lhe interessa.‖ Do mesmo modo, podemos afirmar que Nhô Augusto, ao dobrar seus instintos maléficos e assumir uma vida de servilismo, tem como principal interesse menos ajudar ao próximo do que buscar a própria libertação. Quanto a Hamlet, passa a transitar entre o ser e o não ser, depois que é designado pelo fantasma do próprio pai para vingar a morte dele: ―Se você algum dia amou seu pai... [...] Vinga esse desnaturado, infame assassinato‖. (SHAKESPEARE, 2006, p. 31). O príncipe, por sua vez, aceita esse desígnio, cujo cumprimento corresponde ao destino da personagem, como podemos perceber neste fragmento: [...] vou apagar da lousa da minha memória Todas as anotações frívolas ou pretensiosas, Todas as idéias dos livros, todas as imagens, Todas as impressões passadas, Copiadas pela minha juventude e observação. No livro e no capítulo do meu cérebro Viverá apenas o teu mandamento, Sem mistura com qualquer matéria vil. (SHAKESPEARE, 2006, p. 33). Para Hamlet, conforme assinala Nemer (2002), matar ―ou morrer não faz a menor diferença. O que está em jogo é a honra. Vingar-se, essa é a questão.‖ O luto de que essa personagem se reveste está associado à perda do pai, e, nesse caso, a vingança surgiria VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 210 como uma compensação para essa perda, como se por meio da morte do assassino do Rei Hamlet fosse ocorrer um resgate dos tempos em que este último governava. Mas, contrariamente, a realização do plano de vingança representa a aniquilação do próprio Hamlet. ―Sua vida, objeto do seu luto, aponta, antes de extinguir-se, para a Providência cristã, em cujo regaço suas tristes imagens passam a viver uma existência bem-aventurada‖, conforme assinala Benjamin (1984, p. 180). Do mesmo modo, a morte, para a personagem rosiana, representa, ao mesmo tempo, aniquilamento e redenção. Quando combate com Joãozinho Bem-Bem em defesa de um homem do qual este queria se vingar, Nhô Augusto corresponde a impulsos referentes à alma e à matéria: ao matar Bem-Bem com um golpe de faca revela a sua essência de homem violento, valente; ao fazê-lo em nome de alguém que lhe havia pedido socorro em nome de Jesus Cristo e da Virgem Maria, traz à tona traços como a misericórdia e a compaixão, próprios do espírito que busca a salvação eterna, segundo os preceitos cristãos. Esse jogo entre alma e matéria, sagrado e profano, fica evidente neste fragmento, em que a personagem anuncia o início do confronto com o chefe dos jagunços: ―– Epa! Nomopadrofilhospritossantamêin! Avança, cambada de filhos-da-mãe, que chegou a minha vez!...‖ (ROSA, 2001, p. 410). Após o confronto, quando ambos os homens estão mortalmente feridos, perdoam-se mutuamente, atitude que reforça a ideia do jogo entre alma e matéria vivenciado pela personagem. Nos últimos instantes de vida, fez questão de proclamar, com o rosto radiante: ―– Perguntem quem é aí que algum dia já ouviu falar no nome de Nhô Augusto Esteves, das Pindaíbas!‖ (ROSA, 2001, p. 412). Parecia que a grande recompensa seria a aclamação por parte das pessoas, o reconhecimento do seu ato, como se por meio disso sentisse a restituição completa de sua ―homência‖ (ROSA, 2001, p. 385), tal qual um retorno àquela posição primordial. O próprio lugar onde ocorre o desfecho da narrativa, no povoado próximo ao Murici, onde ela havia se iniciado, pode remeter a essa ideia do retorno. Foi no Murici que Nhô Augusto perdeu sua potência, e foi lá que ele recuperou-a, daí a questão da circularidade na trajetória dessa personagem. Conforme assinala Pereira (2007, p. 5), o uso recorrente da palavra redenção, assim como outros termos correlatos de mesmo teor semântico, tais como restauração, recuperação, reabilitação e a própria rememoração, indicam, cada um à sua maneira e de antemão, uma VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 211 perda fundadora que condiciona o objeto e sua representação. Isso remete para o sentimento que funda um pensamento que se dirige insistentemente para o resgate dessa ordem primeira que se perdeu. Quanto à morte, configura-se como ―a grande fantasmagoria barroca, seu tema principal, ela representa a danação de todas as coisas, a depreciação gradativa do corpóreo em relação ao incorpóreo.‖ (PEREIRA, 2007, p. 6). Essa depreciação era, para Nhô Augusto, motivo de gozo, principalmente porque, ainda em vida, pôde ver a sua figura associada à de um santo, pelo homem em nome do qual ele entrara em confronto com Joãozinho Bem-Bem: ―– Traz meus filhos, para agradecerem a ele, para beijarem os pés dele!... Não deixem esse santo morrer assim...‖ (ROSA, 2007, p. 412). A personagem tornase, assim, Augusto Matraga, que é o sinal da degradação do corpóreo, o qual se reduz ao nada, conforme aponta o narrador no início do conto: ―Matraga não é Matraga, não é nada. Matraga é Esteves. Augusto Estêves, filho do Coronel Afonsão Esteves, das Pindaíbas e do Saco-da-Embira. Ou Nhô Augusto – o homem‖ (ROSA, 2001, p. 363). Essa primeira apresentação da personagem entra em consonância com a concepção do alegórico, principalmente no que diz respeito ao par ser e não ser, dizer uma coisa para significar outra, aspectos esses próprios da alegoria. A ―hora‖ e ―vez‖ representam o momento em que ela alcançaria uma nova ascensão, mas pelo viés do espírito, visto o estado de degradação de seu corpo. Assim, renegando a sua essência profana, Nhô Augusto parte em busca do que seria a salvação de acordo com a visão cristã, mas, na verdade, a força para permanecer nessa busca não provém dos céus, mas do desejo de restabelecer – ao menos no plano da honra, da moral – um passado perdido, daí a ideia do luto. Isso fica evidente em um sonho tido por ele, ―no qual havia um Deus valentão, o mais solerte de todos os valentões, assim parecido com seu Joãozinho Bem-Bem, e que o mandava ir brigar, só para lhe experimentar a força‖ (ROSA, 2001, p. 398). Esse Deus assume uma feição completamente distinta da que é veiculada pelo cristianismo, podendo ser essa imagem considerada, portanto, mais um retrato do conflito entre alma e matéria vivenciado pela personagem. É a partir da observação de aspectos como o luto e a alegoria que se pode afirmar que ―A hora e a vez de Augusto Matraga‖ apresenta pontos de contato com o drama barroco alemão, tal qual o apresenta Walter Benjamin. No prefácio de A origem do drama barroco alemão, Rouanet (1984, p. 18) aponta que esse gênero ―designa a tristeza de um VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 212 homem privado da transcendência (pois com ela a vida não seria absurda), numa natureza desprovida da Graça‖, e esses traços se fazem presentes na trajetória da personagem rosiana, conforme pudemos perceber ao longo da análise. Além disso, a relação que estabelecemos entre o conto e o Hamlet shakespeariano – obra exponencial do drama barroco, segundo Benjamin – parece corroborar a pertinência de se buscar estabelecer relações entre a obra rosiana em questão e aquele gênero. Nesse conto, Guimarães Rosa, ao trazer à tona esse jogo entre alma e matéria, acaba por representar algo inerente ao ser humano, o eterno conflito de forças com que normalmente se depara, precisando escolher entre certo ou errado, bem ou mal, orientado por forças que se opõem. Muitas vezes, dada a impossibilidade de escolha, vê-se obrigado a se apegar à única opção restante, embora precise dobrar a sua essência e se fragmentar sob o véu da aparência. Assim, muito mais do que contar uma história, Rosa, nesse conto, representa algo inerente ao homem, fazendo com que a experiência de leitura possa funcionar como um verdadeiro convite ao leitor a refletir sobre a própria existência. REFERÊNCIAS CANDIDO, Antonio. Sagarana. In: COUTINHO, F. Eduardo (Org.). Guimarães Rosa. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991. p. 243-247. BENJAMIN, Walter. A origem do drama barroco alemão. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984. DELEUZE, Gilles. A dobra: Leibniz e o barroco. Tradução de Luiz B. L. Orlandi. Campinas: Papirus, 1991. GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Alegoria, Morte, Modernidade. In: ______. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 2004. p. 31-53. NEMER, Sylvia R. B. Hamlet e a melancolia: uma tentativa de interpretação a partir da teoria de Walter Benjamin. Semiosfera, ano 2, n. 1, 2002. Disponível em: < http://www.semiosfera.eco.ufrj.br/anteriores/semiosfera02/perfil/mat5/frmat5.htm>. Acesso em: 15 out. 2010. PEREIRA, Marcelo de Andrade. Barroco, Símbolo e Alegoria em Walter Benjamin. Revista Analecta, Guarapuava, v. 8, n. 2, p. 47-54, 2007. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 213 ROSA, João Guimarães. A hora e a vez de Augusto Matraga. In: ______. Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. ROUANET, Sergio Paulo. Prefácio. In: BENJAMIN, Walter. A origem do drama barroco alemão. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984. SHAKESPEARE, William. Hamlet. Tradução de Millôr Fernandes. Porto Alegre: L&PM, 2006. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 214 8. ENTRE AS FRATURAS DO SUJEITO BAR/ROSIANO EM TUTAMÉIA E NO LIVRO SOBRE NADA Robeilza de Oliveira Lima (Universidade Federal do Rio Grande do Norte/Instituto Federal de Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte) Guimarães Rosa, num curto intervalo de cerca de dez anos, publicou várias obras, entre as quais está Tutaméia, que é conhecida por seu caráter fragmentário, embora seja capaz de formar um todo concatenado e repleto de significado. Essa obra rosiana, por sua natureza fragmentária, nos remete à escritura de Manoel de Barros, a qual chega a ser, por vezes, aforística. Uma das obras em que isso se manifesta de forma mais evidente é o Livro sobre nada. O estilhaçamento presente nas duas obras referidas acima afeta também a construção das personagens. Em contos como ―Desenredo‖ e ―Reminisção‖, os quais integram Tutaméia, observamos que circulam personagens amantes e amadas, vivendo de forma intensa a magia do amor ―e seu milhão de significados‖ (ROSA, 2001, p. 169). Essas personagens são ambíguas, múltiplas como o sentimento que as envolve. Em ―Desenredo‖, exemplifica isso o caso da personagem Livíria que, além desse nome, recebe três outros nomes diferentes (Rivília, Irlívia e Vilíria), conforme observamos no fragmento abaixo: Chamando-se Livíria, Rivília ou Irlívia, a que, nesta observação, a Jó Joaquim apareceu. [...] Apanhara o marido a mulher: com outro, um terceiro [...] Imaginara-a jamais a ter o pé em três estribos [...] Jó Joaquim e Vilíria retomaram-se, e conviveram, convolados, o verdadeiro e melhor de sua útil vida (ROSA, 2001, p. 72-75). Essa ―plurinomeação‖ tem uma estreita relação com o caráter multifacetado da personagem. Os três primeiros nomes remetem à situação nada estável e transparente, em que ela possui um marido e dois amantes. Assim, Livíria é Rivília não deixando de ser também Irlívia. Mesmo sendo denominada de Vilíria apenas num momento posterior (após a volta para Jó Joaquim, ex-amante e atual marido), pela simples troca na posição das letras, VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 215 a personagem pode assumir a última identidade facilmente. Em suma, ela é todas de uma só vez, reversivelmente. Uma outra forma de compreender essa variação de nomes é através da simbologia de cada um deles. Em um estudo sobre o conto ―Desenredo‖, Vera Novis (1989) explicita muito bem a ambivalência da personagem Livíria, a partir de uma relação com a personagem Anna Livia Plurabelle de James Joyce, da obra Finnegans Wake. Novis (1989) justifica a relação, afirmando que a variação de nomes em Rosa se assemelha àquela que se faz presente em Joyce no que tange à simbologia. Segundo Novis (1989, p. 131-132): Livíria remete a Lívia e retoma a imagem de lírio, símbolo da pureza do feminino. Rivília traz à lembrança a imagem de rio, simultaneamente curso d‘água e curso do tempo, e também de ilha. Irlívia remete a Irlanda, evidentemente não como espaço geográfico real, mas como referência ao espaço mito-poético no qual Joyce fez circular sua mulher-rio [...] o processo utilizado por Rosa na nomeação de sua personagem é bastante semelhante ao de Joyce: fazer variar a posição das letras ou das sílabas de uma palavra, criando novos conjuntos sonoros (outras palavras) que permitam novas associações semânticas sem anular as anteriores. A Lívia de Joyce é simultaneamente lírio (Lily, lilybit), rio (liffey, liffy, Missisliffi) e também Irlanda ou Dublin (Irish, doublin). A partir das palavras de Novis (1989), podemos dizer que a Livíria de Rosa encarna todos os símbolos abstraídos da Lívia joyciana e apresenta o mesmo princípio de construção. A mulher-lírio é também mulher-rio e ainda aquela que está ambientada num espaço mito-poético, onde a imaginação atua como força motriz. Mas, não é somente em ―Desenredo‖ que encontramos, de maneira prodigiosa, esse traço de multiplicidade, ele também se sobressai em ―Reminisção‖ com: ―Nhemaria, mais propriamente a Drá, dita também a Pintaxa‖ (ROSA, 2001, p. 126). Nesse conto, os nomes apontam para metamorfoses expressas na mudança de comportamento e de aspecto físico por que vai passando a personagem: VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 216 Divulgue-se a Drá: cor de folha seca escura, estafermiça, abexigada, feia feito fritura queimada, ximbé-ximbeva; [...] Medonha e má; não enganava pela cara [...] Não o deixava ela, enxerente, trabalhar nem lazer; ralhava a brados surdos [...] Todo o tempo o atanazava, demais de cenhosa, caveirosa, dele, aquela, mulher mandibular. [...] De por aí, embora, seresma ela se aquietou, em desleixo e relaxo [...] Vivia e gemia – paralelamente. Chamou-a então Pintaxa o bufo do povo. [...] Da Drá, num estalar de claridade, nela se assumia toda a luminosidade, alva, belíssima, futuramente... o rosto de Nhemaria (ROSA, 2001, p. 126-129). Drá se metamorfoseia em Pintaxa e num momento posterior em Nhemaria. Drá é descrita como alguém ―feia feito fritura queimada‖, ―medonha e má‖, ―cenhosa, caveirosa‖, uma ―mulher mandibular‖, conforme vimos acima. Pensando na feiúra e maldade dessa personagem, podemos entender o nome Drá como uma redução da palavra dragão, a qual pode remeter a um monstro fabuloso muito conhecido no horizonte ficcional, como também a uma pessoa de má índole. Na Bíblia, por exemplo, esse é um dos nomes usados para fazer referência ao próprio Satanás, o qual é apresentado como inimigo de Deus e de todo o bem. Entretanto, Drá, num instante, não mais que num instante de lampejo, torna-se uma manifestação de luminosidade e beleza, a ponto de receber posteriormente o nome de Nhemaria, o qual se subtraído do prefixo Nhe nos faz ter uma visão da virgem Maria, cujos atributos conferidos pela tradição cristã, especificamente o catolicismo, a eleva a uma condição de pureza e santidade que a torna uma mediadora entre Deus e os homens. O próprio nome Maria, por significar nobre, senhora, já aponta para uma elevação. Assim, Nhemaria representa a ascensão do mundo profano de Drá. Tal ascensão já era prenunciada pelo próprio espaço em que a Drá vivia: ―Cunhãberá, destinado lugar, onde o mal universal cochila e dá o céu um azul do qual emergir a Virgem‖ (ROSA, 2001, p. 126). Drá, no entanto, antes que viesse a assumir a aparência de Nhemaria, metamorfoseou-se em Pintaxa. O narrador diz que Romão (marido dela) a chamou de Pintaxa, quer dizer, ―o bufo do povo‖. Um dos significados do vocábulo bufo é coruja, que, por ser uma ave noturna, pode ser associada ao saber, à meditação. A palavra bufo VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 217 também pode ser entendida como sinônimo de misantropia. Dessa forma, Pintaxa pode ser considerado um estágio intermediário, de recolhimento para dentro de si, estágio de meditação. É interessante notar que o ser Pintaxa não faz Drá perder sua aparência feia e repugnante. A palavra seresma, usada pelo narrador para se referir à fase Pintaxa, indica muito bem isso. Mas algo parece se processar no interior da Drá, pois ela que antes atanazava a toda hora o Romão, agora se aquieta e chega a gemer, provavelmente remoendo suas culpas. Mas a ascensão da personagem Drá pode ser enganosa. Na visão de Paulo Rónai (2001, p. 25), Romão, ―ao morrer, transmite por um instante aos demais a enganosa imagem que dela formara‖. As metamorfoses descritas acima não passariam então de uma criação de Romão, ―amante obstinado de uma megera‖ (RÓNAI, 2001, p. 25). A imaginação e o amor dessa personagem seriam assim o fator decisivo para que as transfigurações ocorressem. Essa possibilidade de interpretação só vem a reforçar o caráter ambíguo da Drá, cuja imagem luminosa pode se quebrar facilmente com a morte do amante inveterado. Tal interpretação também opera uma transfiguração de Romão diante dos olhos do leitor, pois ele deixa de ser o mero ―Romão, meão, condicionado, normalote‖ (ROSA, 2001, p. 127) para se desvelar como sujeito de grande densidade que tem ―em si uma certa matemática [...] [e cogita] súbitos, encobertos acontecimentos‖ (ROSA, 2001, p. 127) em seu íntimo. Ele, que vivia ―a tragar borras‖ com a enxerente Drá, a qual ―não o deixava[...] trabalhar nem lazer; ralhava a brados surdos[...] todo o tempo o atanazava‖ (ROSA, 2001, p. 127), ―com pelejos de poeta, [...] troca pesares por prazeres‖ (ROSA, 2001, p. 128) e transfigura a Drá em outra que é o inverso: Nhemaria. À semelhança do que ocorre com Drá, Livíria, quer dizer Rivília, ou melhor Irlívia, em fim, Vilíria também experimenta uma dúbia ascensão, na qual tem grande importância a personagem Jó Joaquim. Para compreendermos isso, lembremos do personagem bíblico Jó, apresentado como um ―homem íntegro e reto, temente a Deus e que se desviava do mal‖ (Bíblia Sagrada, 1993, p. 537). Segundo a Bíblia, ele orou e três de seus amigos foram inocentados, tendo seus pecados perdoados por Deus45. 45 [...] o Senhor disse também a Elifaz, o temanita: a minha ira se acendeu contra ti e contra os teus dois amigos; porque não dissestes de mim o que era reto, como o meu servo Jó. Tomai, pois, sete novilhos e sete carneiros, e ide ao meu servo Jó, e oferecei holocaustos por vós. O meu servo Jó orará por vós; porque dele aceitarei a intercessão, para que eu não vos trate segundo a vossa loucura; porque vós não VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 218 De acordo ainda com o relato bíblico, Elifaz, Bildade e Zofar, os três amigos do patriarca Jó, durante o período em que ele foi acometido de lepra, falaram de Deus de uma forma errônea. Isso está explícito no intrigante diálogo de Jó com seus três amigos que perpassa quase todo o livro atribuído pela tradição cristã a Moisés. Num diálogo do próprio Deus com um dos três amigos, Elifaz, fica evidente o desagrado do Senhor pelos amigos do patriarca e a recomendação do próprio Deus de que ofereçam sacrifícios por si e ainda peçam a Jó para que interceda por eles, através da oração. No final da conversa, é dito que o ―Senhor aceitou a oração de Jó‖. A razão para a aceitação também é apresentada: Jó é ―íntegro e reto, temente a Deus‖, ou seja, é justo e obediente. A descrição de Jó Joaquim remete ao personagem bíblico Jó: ―[...] era quieto, respeitado, bom como o cheiro de cerveja.‖ (ROSA, 2001, p. 72). O que ele fez em prol de Livíria também. É Jó Joaquim quem vai levar a cabo a tarefa de inocentá-la perante o vilarejo em que morava: ―Cumpria-lhe descaluniá-la, obrigava-se por tudo. [...] Sem malícia, com paciência, sem insistência, principalmente‖ (ROSA, 2001, p. 74). A razão que motiva o Jó rosiano é o amor que devota à sua amada: ―Celebrava-a, ufanático, tendo-a por justa e averiguada, com convicção manifesta. Haja o absoluto amar – e qualquer causa se irrefuta‖ (ROSA, 2001, p. 75). E assim, ele consegue ―inocentá-la‖: ―Soube-se nua e pura. Veio sem culpa‖ (ROSA, 2001, p. 75). Ele faz tal proeza por sua devoção em dizer para todos, inclusive para si mesmo: ―Nunca tivera ela amantes! Não um. Não dois. Disse-se e dizia isso Jó Joaquim‖ (ROSA, 2001, p. 74). Impulsionado por suas ―defeituosas emoções‖, as quais emergiram quando ele ficou ―derrubadamente surpreso‖ de saber que a mulher amada estava com ―o pé em três estribos‖ (a saber, tinha, além do marido, dois amantes, dos quais ele era um), Jó Joaquim resolve se afastar fisicamente de Irlívia. Esse distanciamento o faz imaginá-la ―sempre ou ao máximo mais formosa‖ (ROSA, 2001, p. 73). Morto o marido, Jó se casa com Livíria, mas a alegria dele não dura muito, pois logo ele a flagra com outro. Esse ―abominoso‖ momento o faz expulsá-la, ―apostrofando-se como inédito poeta e homem‖ (ROSA, 2001, p. 74). Desde então, diz o narrador, o nosso Jó, ―que desejava a felicidade - idéia inata‖ (ROSA, 2001, p. 74), de tanto ―sofrer e amar‖, dedicou-se a ―redimir a mulher‖. Mas nesse dissestes de mim o que era reto, como o meu servo Jó. Então, foram Elifaz, o temanita, e Bildade, o suíta, e Zofar, o naamatita, e fizeram como o Senhor lhes ordenara; e o Senhor aceitou a oração de Jó. (Bíblia Sagrada, 1993, p. 566). VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 219 gesto, Jó Joaquim usa não só a devoção, mas também a imaginação, ―o inebriado engano‖, o engenho do poeta: Nunca tivera ela amantes! [...] Demonstrando-o, amatemático, contrário ao público pensamento e à lógica, desde que Aristóteles a fundou. [...] O ponto está em que o soube, de tal arte: por antipesquisas, acronologia miúda, conversinhas escudadas, remendados testemhnhos. Jó Joaquim, genial, operava o passado – plástico e contraditório rascunho. Criava, transformada realidade, mais alta. Mais certa? (ROSA, 2001, p. 74) Pensando na associação feita por Vera Novis (1989) de Irlívia com a Irlanda poética de Joyce, podemos dizer que Jó Joaquim se distancia de Livíria, de Rivília, mas se aproxima de Irlívia via poesia, o que culmina com a transfiguração da amada. Assim, o Jó rosiano remete ao Jó bíblico, todavia, ao mesmo tempo se distancia, pois não maneja mais a fé deste, mas a imaginação. Ele é outro Jó, é o que se banha nas águas da poesia e consegue dar o vôo da liberdade criativa que é cara ao próprio autor. As ascensões experimentadas por Livíria e Drá podem ser associadas à doutrina alegórica da redenção do objeto no campo da significação, pelo que tanto uma quanto a outra, ao passarem por essa ascese aceitam a salvação que o alegorista Rosa lhes oferece, a qual só ocorre em termos semânticos. Elas precisam também ser apreendidas em termos ambíguos, pois o nome Vilíria, como bem disse Novis (1989), remete à vileza e à pureza a um só tempo. Nhemaria pode ser não mais do que fruto da imaginação de Romão, conforme nos alerta Rónai (2001). Nesse movimento, em que ―o mundo profano é ao mesmo tempo exaltado e desvalorizado‖ (Benjamin, 1984, p. 197), existe uma dialética que é elementar na expressão alegórica, a qual implica em dizer que ―cada pessoa, cada coisa, cada relação pode significar qualquer outra.‖ (Benjamin, 1984, p. 197). Tal dialética, segundo Walter Benjamin (1984, p. 199), se manifesta porque ―a ambiguidade, a multiplicidade de sentidos é o traço fundamental da alegoria. A alegoria, o Barroco, se orgulham da riqueza das significações. Mas essa ambiguidade é a riqueza do desperdício‖ (BENJAMIN, 1984, p. 199). Tudo isso nos motiva a dizer que Livíria, Drá, bem como Jó Joaquim e Romão são personagens alegóricas, barrocas por excelência. Sua ambiguidade denuncia que elas são seres fraturados, cujas variações e metamorfoses revelam sua natureza descontínua. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 220 Somente seres fraturados podem adquirir a ambivalência que essas personagens adquirem, pois, conforme afirma Jean Baudrillard (2003, p. 48), ―passa-se algo na falha das coisas, na brecha e, portanto, em sua aparição‖. De acordo com esse autor, a brecha, isto é, a fratura, tem uma relação estreita com o fragmento e esse, por sua vez, tem um lado enigmático, que consiste no desafio à interpretação ou nas múltiplas e inesgotáveis interpretações. É entre as fraturas dessas personagens que emerge a profunda ambiguidade alegórica que as integra. Não é fortuito que, segundo Benjamin (1984), diferentemente do símbolo, a alegoria se constitui a partir do ―fragmento amorfo‖ e irrompe das entranhas, onde moram os segredos do ser. Tomando como ponto de partida que Livíria, Drá, bem como Jó Joaquim e Romão são personagens barrocas, podemos entender essas fraturas como resultado de uma tensão existencial presente também na modernidade. Lembrando as palavras de Afonso Ávila (1978, p. 17): ―o homem barroco e o do século XX são um único e mesmo homem agônico, perplexo, dilemático, dilacerado‖. Mas, conforme Ávila (1978, p. 19), o homem barroco (e, por extensão, o moderno), especialmente o artista, encontrou no jogo: [...] a saída instintiva que teve para deter, ainda que ilusoriamente, o lento escoar de sua situação absurda no mundo [...] jogou tanto ao elaborar a sua arte, [...] personalizando melhor que o homem de qualquer outro período a imagem do homo ludens de Huizinga. Aqui novamente o seu parentesco com o homem moderno, notadamente o da crise de apósguerra, o existencialista do primeiro momento sartriano na sua atitude de auto-alienação, de demissão, de descompromisso de viver-a-vida. Para que entendamos a noção de homo ludens, é importante frisar que Johan Huizinga (2008, p. 6-7) esclarece, em seu estudo, que seu interesse maior é abordar o jogo ―como forma específica de atividade, como ‗forma significante‘, como função social‖, isto é, como elemento cultural da vida. Huizinga (2008, p. 7) explica também que o jogo é apreendido ―em sua significação primária [baseada] [...] na manipulação de certas imagens, numa certa ‗imaginação‘ da realidade (ou seja, a transformação desta em imagens)‖. Assim, o jogo lúdico a que se refere Ávila (1978) pode ser entendido como sinônimo do jogo alegórico a que procede Guimarães Rosa ao construir suas personagens. Esse jogo é empreendido pelos próprios personagens Jó Joaquim e Romão. O primeiro, quando VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 221 deixa que o ―firme fascínio‖ de Vilíria o levante de seu ―decúbito dorsal‖ e o faça ultrapassar seu dolorido franciscanato. O segundo, quando usa sua imaginação para converter ―pesares em prazeres‖. Nesse gesto, segundo o próprio Rosa (2003, p. 38), personagens e autor se unem ―querendo subir à poesia e à metafísica, juntas, ou com uma e outra como asas, ascender a incapturáveis planos místicos‖. Eles constroem uma realidade mais alta, nova, como diria o narrador de ―Desenredo‖, mas talvez não mais certa. Como acontece em Tutaméia, as personagens do Livro sobre nada também são fraturadas e ambíguas. Para averiguarmos como isso se concretiza no universo ficcional de Manoel de Barros, tomemos como referência as personagens Mano Preto, Catre-Velho e Bernardo. À semelhança de muitos outros personagens que aparecem no universo barreano, Mano Preto é um indivíduo no limiar do não humano. Seu estatuto humano é posto em questão. Sobre ele é dito: ―Mano Preto não tinha entidade pessoal, só coisal‖ (BARROS, 2004, p. 15). As perguntas feitas por ele são repletas de ilogismo, o que aponta para sua dimensão fraturada, mas ao mesmo tempo poética, tendo em vista que elas aludem à brincadeira, ao jogo, o qual, para Huizinga (2008), é irracional e é o solo onde a poesia tem fincadas suas raízes de maneira profunda. Mano Preto é capaz de ter um olhar outro – o da poesia - sobre o cotidiano e, em especial, sobre as coisas da natureza. Percebemos então que, ironicamente, é dito que ele só tinha ―entidade[...] coisal‖, já que o vemos fazendo perguntas que revelam uma fina sensibilidade para perceber as coisas aparentemente sem importância, que passam despercebidas ao ―homem empalhado‖, ―coisificado‖ pela linguagem e pelos costumes sociais cristalizados. Seres mínimos, que normalmente não são notados, são enxergados por ele, através de um olhar outro, renovado e renovador. O pequeno passarinho e o minúsculo inseto ganham destaque e importância: são matéria de poesia, como transparece nos trechos abaixo: Mano Preto perguntava: Será que fizeram o beija-flor diminuído só para ele voar parado? (BARROS, 2004, p. 11) Mano Preto aproveitou: Grilo é um ser imprestável para o silêncio. (BARROS, 2004, p. 15) VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 222 É por meio do olhar transfigurador da poesia que ―os sabiás divinam‖, ou seja, as coisas ínfimas são enxergadas em sua grandeza. É assim também que as coisas aparentemente simples ganham complexidade. O próprio Mano Preto adquire o estatuto da grande poesia, a qual, de acordo com Octavio Paz (1982, p. 15), é uma ―operação capaz de transformar o mundo‖, revelando-o e criando outro. Mano Preto, que é uma criança (no poema ―Diário de Bugrinha (excertos)‖, a mãe dessa aparece batendo no Mano Preto, o que indica tratar-se de uma criança) habitante do brejo pantaneiro, cria uma linguagem nova (o que alguns críticos chamam de infância da linguagem) e, com isso, engendra um nova realidade, na qual moram os encantos da poesia. Na linguagem barreana, ocorre o que Octavio Paz (1982, p. 25-26) afirma a respeito do poema: a linguagem recupera sua originalidade primitiva, mutilada pela redução que lhe impõem a prosa e a fala cotidiana. A reconquista de sua natureza [...] afeta os valores sonoros e plásticos tanto como os valores significativos. A palavra, finalmente, em liberdade, mostra todas as suas entranhas, todos os seus sentidos e alusões. Daí, como diz ainda Octavio Paz (1982), o entusiasmo do poeta é o da criança diante das descobertas da linguagem. Confirma isso o contexto em que Mano Preto disse que ―Grilo é um ser imprestável para o silêncio‖: enquanto estava à mesa com a família e com um doutor que vem de fora. Como sabemos, muitas crianças costumam falar daquilo que as deixa admiradas quando estão diante de pessoas que não fazem parte de seu convívio. Elas parecem querer, com isso, extravasarem toda a sua alegria diante das novas descobertas. O poeta se assemelha um pouco à criança, ao dividir suas invenções de linguagem com o leitor. Diferentemente de Mano Preto, a personagem Catre-Velho traz à tona a noção de velhice. Ele é um cantador e violeiro, cujo nome já carrega a noção de algo imprestável. A personagem Bugrinha diz que ele é ―confortável para moscas‖. Mais adiante, num poema a ele dedicado, é dito que ele ―é um traste pessoal à-toa‖, ―não vale um cabelo‖ e ―não serve nem pra remendo‖, como fica evidente na transcrição abaixo: 2.I.I926 VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 223 Catre-Velho é um ser confortável para moscas. Ele nem espanta algumas. (BARROS, 2004, p. 32) Catre-Velho é um traste pessoal à-toa. Nossa mãe falava: Não vale um cabelo. Não serve nem pra remendo. Só presta pra cantar e tocar violão. (BARROS, 2004, p. 25) A personagem Catre-Velho traz para a escrita barreana a dimensão das coisas que se tornaram desprovidas de função, por estarem velhas, isto é, em deterioração, em ruínas. Catre-Velho é o rejeitado, o abandonado, o que não tem serventia, pelo menos, dentro da visão utilitarista que predomina em nossa sociedade capitalista. Afinal, ele ―presta pra cantar e tocar violão‖ (BARROS, 2004, p. 25). Ele tem ―uma voz de harpas destroçadas‖. (BARROS, 2004, p. 25). A palavra destroçada remete a três palavras importantes para compreendermos essa personagem: despedaçada, rasgada e dilacerada. Catre-Velho é um ser em pedaços, dilacerado por conflitos internos. Conforme nos diz o próprio poeta Manoel de Barros, ―só a alma atormentada pode trazer para a voz um formato de pássaro‖ (BARROS, 2004, p. 75) e Catre-Velho tem a alma assim, pois até ensina como ter grandezas na voz. A construção dessa personagem é eminentemente barroca, pois: ―o que jaz em ruínas, o fragmento significativo, o estilhaço: essa é a matéria mais nobre da criação barroca‖ (BENJAMIN, 1984, p. 200). Pelas imagens que o revestem e pelo caráter inédito dessas imagens, Catre é, como Antônio Ninguém, uma espécie de ―ruína concupiscente‖ (BARROS, 2004, p. 79), ou seja, um resto, um fragmento carnal, lascivo, sensual. Além disso, por ele ensinar que ―a voz de um cantador tem que chegar a traste para ter grandezas...‖ (BARROS, 2004, p. 25), isto é, que a condição para a voz de um cantador ser nobre é alcançar o imprestável, ele tem a antinomia na voz. Sendo esse ser barroco, ele é também uma expressão do fragmentado homem moderno, o qual, segundo o próprio Manoel de Barros (2009), em entrevista concedida a André Barros: ―não tem mais as grandes unidades, como Deus‖. Catre-Velho é também aquele que reúne em si tudo aquilo que é rechaçado pela sociedade moderna, cuja lógica predominante é a do capitalismo, a qual consiste em valorizar somente o que pode se converter em moeda de troca. Por isso mesmo, ele é uma VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 224 expressão de destaque dentro da lírica moderna, a qual, como nos lembra Theodor Adorno (2003), é uma expressão do antagonismo social, mas, ao mesmo tempo, tem em sua base uma corrente subterrânea coletiva. Dessa forma, ao incorporar as coisas que a sociedade ―pisa‖ e ―joga fora‖ (BARROS, 2001, p. 13), Catre-Velho expressa o desejo latente de cada indivíduo que compõe a sociedade de fazer oposição aos valores utilitaristas que se impõem no convívio social como regras de conduta. Outro personagem que nos chama a atenção por seu caráter ambíguo, embora exiba uma aparente simplicidade, é Bernardo. Ele é assemelhado, inicialmente, a um joãoninguém, ―passarinho que vive no cisco‖ e logo adiante é mencionado como aquele que ensinou à personagem Bugrinha a ―infantilizar formigas‖. Ele também é apresentado como um ser capaz de falar com pedra, nada e árvore. Isso é o que fica patente nos versos a seguir: 22.I O nome de um passarinho que vive no cisco é joão-ninguém. Ele parece com Bernardo. [...] 2.3 Bernardo me ensinou: Para infantilizar formigas é só pingar um pouquinho de água no coração delas. [...] I.I0 Bernardo fala com pedra, fala com nada, fala com árvore. As plantas querem o corpo dele para crescer por sobre. Passarinho já faz poleiro na sua cabeça (BARROS, 2004, p. 29-30). Entre os significados da palavra cisco, está o de lixo. Daí, podemos deduzir que Bernardo, como o joão-ninguém, é um ser que vive no lixo ou, pelo menos, nos restos, nos rejeitos, e procura retirar deles algo para seu proveito. É dessa vivência que ele aprende a ―infantilizar formigas‖. Mas Bernardo adentra num estágio mais profundo, ele começa a falar a linguagem das pedras e das árvores. Falando essa linguagem, ele fica à mercê das plantas, se confundindo com elas, afinal, ―passarinho já faz poleiro na sua cabeça‖. Com isso, ele acaba se colocando no limiar do não-humano, do irracional. Mais que isso, o ser VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 225 parece estar no limite do não ser, já que fala até com nada. As palavras da mãe de Bugrinha, segundo as quais ele ―é bocó. Uma pessoa sem pensa‖ (BARROS, 2004, p. 31), confirmam muito bem essa idéia. Pelo menos, é certo o seguinte: esse ser não pode existir com base no princípio ―penso, logo, existo‖. Ao mesmo tempo, Bernardo é um ser dotado de sabedoria vegetal, a qual, nas palavras de Barros (2004, p. 51), ―é receber com naturalidade uma rã no talo‖. Quando lemos a obra barreana O guardador de águas, observamos alguns detalhes interessantes que nos ajudam a compreender ainda melhor a personagem Bernardo. Primeiro, ele é chamado de ―Bernardo da Mata‖. Segundo, ele é apresentado como um ser capaz de fazer muitas peraltices, como ―encolher o horizonte/ No olho de um inseto‖ (BARROS, 2006, p. 10). Terceiro, ―como a foz de um rio Bernardo se inventa‖ (BARROS, 2006, p. 10). Quarto, ele ―escreve escorreito‖ ―o Dialeto-Rã‖ (BARROS, 2006, p. 20). Quinto, ele tem, no quintal, uma ―Oficina de Transfazer Natureza‖ (BARROS, 2006, p. 20). Com essas características, Bernardo é capaz de se transfigurar no próprio Manoel de Barros. Ele pode ser enxergado como um duplo do autor. Pensando no grande motivo do livro em pauta: a água, podemos entender essa mata como sinônimo de pantanal. As peraltices são de linguagem, são as do poeta que diz: ―posso dar alegria ao esgoto (palavra aceita tudo)‖ (BARROS, 2004, p. 49). A invenção a que Bernardo se submete é a especialidade do próprio autor mato-grossense, o qual, como Bernardo, ―é homem percorrido de existências‖ (BARROS, 2006, p. 10). A escrita em ―Dialeto-Rã‖ é a do poeta em O guardador de águas, a qual, no Livro sobre nada se converte no ―idioleto manoelês archaico‖, o qual ―é o dialeto que os idiotas usam para falar com as paredes e com as moscas‖ (BARROS, 2004, p. 43). Por fim, a oficina de Bernardo é uma viva demonstração da oficina poética barreana, a qual, em seu pendor barroco, é capaz de ―perceber na physis [...] o que ela [contém] de heterônimo, incompleto e despedaçado‖ (BENJAMIN, 1984, p. 198) e de jogar com isso habilmente, seguindo o princípio: Deus deu a forma. Os artistas desformam. É preciso desformar o mundo: Tirar da natureza as naturalidades. Fazer cavalo verde, por exemplo. Fazer noiva camponesa voar – como em Chagall. (BARROS, 2004, p. 75) VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 226 Bernardo, como Barros, é um ser que se transfigura e transvê o mundo ao seu redor pelo poder da imaginação. Na verdade, não só Bernardo, mas também Mano Preto e CatreVelho. Eles são, respectivamente, uma viva recorrência de três motivos muito presentes na poesia de Manoel de Barros: ele mesmo, a busca pela infância da linguagem e a valorização dos restos e das coisas ―desimportantes‖. O próprio autor ratifica isso quando diz: ―o tema da minha poesia sou eu mesmo‖ (BARROS, 2009) e ―tenho um lastro da infância [...], no meu Livro sobre nada, tem muitos versos que vieram da infância‖ (BARROS, 2009). Ele também confirma quando começa seu Matéria de poesia, em tom confessional, dizendo: ―todas as coisas cujos valores podem ser disputados no cuspe à distância servem para poesia‖ (BARROS, 2001, p. 11). É assim que esses personagens se tornam matéria-prima da poesia de Manoel de Barros, cuja originalidade [...] consiste em que, recusando grandes temas (o Sublime), elabora liricamente, com as coisas menores, verdadeiras relíquias de linguagem. Bem ao modo irônico de Rimbaud, ou Duchamps, transforma a matéria mais desimportante em poesia. (JÚNIOR, 2001) Diante do exposto até aqui, podemos dizer que as personagens estudadas são seres alegóricos, pois, a partir dos motivos mencionados acima, criam uma outra realidade, a qual, permeada pelo grande ilogismo que dá vez e voz à poesia barreana, aponta para inéditas possibilidades de sentido, através da rica camada de surpreendentes e vibrantes imagens. Elas são seres ambivalentes, que perderam sua unidade, humanos no limiar do inumano, civilizados no limiar do primitivo, seres ―ardentes de resto‖, mas perfazendo-se novos. Já as personagens rosianas, como vimos antes, são alegóricas em virtude de serem indivíduos móveis (sujeitos sempre a novas mudanças). As plurinomeadas Drá e Irlívia são seres metamórficos e multifacetados. Por sua vez, Jó Joaquim e Romão, impulsionados por suas ―defeituosas emoções‖ e por seu alto poder de imaginação, são contraditórios em sua trajetória, capazes de reinventar a realidade à sua volta. É assim que tanto Manoel de Barros quanto Guimarães Rosa trazem para o centro de seus projetos poéticos seres fragmentados, a saber, barroco/modernos, procurando descobrir, entre as fraturas desses, os ―sentidos poéticos profundos que os colocam além VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 227 das fronteiras da razão convencional, às margens do inefável, onde a vida, a poesia e a linguagem se enlaçam, fluindo à procura de infinito‖ (SECCO, 2000, p. 121). REFERÊNCIAS ADORNO, Theodor. Palestra sobre lírica e sociedade. In:______. Notas de literatura I. Trad. Jorge M. B. de Almeida. 34 ed. São Paulo: Duas Cidades, 2003. p. 65-89. ÁVILA, Afonso. O barroco e uma linha de tradição criativa. In:______. O poeta e a consciência crítica: uma linha de tradição, uma atitude de vanguarda. São Paulo: Summus, 1978. p. 15-23. BARROS, Manoel de. Livro sobre nada. 11. ed. Rio de Janeiro: Record, 2004. ______. Matéria de poesia. 5. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001. ______. O guardador de águas. 5. ed. Rio de Janeiro: Record, 2006. ______. O tema da minha poesia sou eu mesmo. Entrevista concedida a André Luís Barros. In: MARTINS, Floriano; Willer, Cláudio. Jornal de Poesia. Disponível em: <www.revista.agulha.nom.br/barros04.html>. Acesso em: 20 jun. 2009. BAUDRILLARD, Jean. De um fragmento ao outro. Trad. Guilherme João de Freitas Teixeira. São Paulo: Zouk, 2003. BENJAMIN, Walter. Origem do Drama Barroco Alemão. Trad., apresentação e notas: Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984. Bíblia sagrada. Trad. João Ferreira de Almeida. Ed. revista e atualizada. 2. ed. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, l993. p. 3. HUIZINGA, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. Trad. João Paulo Monteiro. São Paulo: Perspectiva, 2008. NOVIS, Vera. Tutaméia: engenho e arte. São Paulo: Debates (Editora da Universidade de São Paulo), 1989. PAZ, Octavio. O poema. In:______. O arco e a lira. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. p. 35-138. RÓNAI, Paulo. As estórias de Tutaméia. In: ROSA, João Guimarães. Tutaméia (Terceiras estórias). 8. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p. 21-27. ROSA, João Guimarães. Correspondência com seu tradutor italiano Edoardo Bizzarri. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003. ______.Tutaméia (Terceiras Estórias). 8. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 228 SECCO, Carmen Lucia Tindó Ribeiro. As margens do inefável: a significação poética dos velhos e aleijados em Guimarães, Luandino e Mia Couto. In: DUARTE, Lélia Pereira [et al]. Veredas de Rosa I. Belo Horizonte: PUC Minas, Cespuc, 2000. p. 117-121. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 229 9. A VOLTA DO MARIDO PRÓDIGO: ENTRE O CAMPO E A CIDADE ARAÚJO, Roberta. D. de. (IFRN) – autora46 PAIVA, Kalina. A. R. de. (IFRN) – coautora47 A vida é ingrata no macio de si; mas transtraz a esperança mesmo do meio do fel do desespero. (Guimarães Rosa, Grande Sertão: veredas). E o que era que eu queria? Ah, acho que não queria mesmo nada, de tanto que eu queria era – ficar sendo! (Guimarães Rosa, Grande Sertão: veredas) Viajante sem rumo pelas veredas labirínticas deste sertão, um flâneur enredado pelas tortuosidades deste enigma, a vida. João Guimarães Rosa é, sem dúvida, um nome de grande importância na história literária e cultural de nosso país e sua escritura é, na verdade, um labirinto escritural, matéria-prima de grande valor para a Literatura, pois sabemos que esta sempre se ocupou, lidou com o estranhamento e as inquietações do homem diante dos mistérios do ser e da existência. A Literatura é, pois, a arte da palavra, não da palavra solitária e conciliadora, mas da palavra inquietante e desagregadora e é essa inquietação que nos interessa neste momento. Inquietação vivida e vivenciada por Lalino Salãthiel, personagem principal de A volta do Marido Pródigo, segundo conto de Sagarana, livro de estreia de Guimarães Rosa, publicado pela primeira vez em 1946. Traços biográficos de Lalino Salãthiel ou A volta do marido pródigo, segundo Rosa, ―a 46 Roberta Duarte de Araújo é Professora do IFRN, graduada em Letras e mestra em Estudos da Linguagem pela UFRN. E-mail: [email protected] 47 Kalina Alessandra Rodrigues de Paiva é Professora do IFRN, graduada em Letras, especialista em Educação e Mestra em Estudos da Linguagem pela UFRN. E-mail: [email protected] VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 230 menos pensada das novelas de Sagarana, a única que foi pensada velozmente, na ponta do lápis‖. (ROSA, 2001, p. 26). Escrito em tom mais leve, um tanto quanto irônico, esse conto nos apresenta Eulálio de Souza Salãthiel, mais conhecido como Lalino Salãthiel. Homem de muito riso e pouco trabalho. — Mulatinho descarado! Vai em festa, dorme que-horas, e, quando chega, ainda é todo enfeitado e salamistrão!… (Vmp, p. 101).48 […] Lalino se afasta com o andar pachola, esboçando uns meios passos de corta-faca, e seu Waldemar o acompanha de olhar complacente. — Mulatinho levado! Entendo um assim, por ser divertido. E não é de adulador, mais sei que não é covarde. Agrada a gente, porque é alegre e quer ver todo-o-mundo alegre, perto de si. Isso, que remoça. Isso é reger o viver. (Vmp, p. 110). Lalino Salãthiel é homem falador, tem o dom da palavra, e sempre tira proveito disso, diante dos outros, sobressaindo aos seus companheiros de trabalho. Os gestos e atitudes do marido pródigo, entranham-se em sua personalidade de malandro que, por si só, já o definem como tal. (NOBRE, 2000, p. 30). Mas o que Lalino queria mesmo era partir em busca da sua satisfação pessoal, ou seja, ir para o Rio de Janeiro em busca de mulheres bonitas à vontade, iguais às que vira nas revistas. Começa então a juntar dinheiro e acaba pedindo uma parte emprestada ao espanhol Ramiro, alegando necessidade e dizendo-lhe que a mulher ficaria. Seu Ramiro quis, mas não pôde esquivar-se. Espigado e bigodudo, arranja um riso fora-de-horas, e faz, apressado, um rapapé: — Como lhe vão as saúdes, senhor Eulálio? Estava cá aguardando a sua vinda, a perguntar-lhe se há que haver mesmo uma festinha hoje, 48 Para este trabalho, adotaremos a abreviação Vmp para nos referirmos ao conto Traços biográficos de Lalino Salãthiel ou A volta do marido pródigo. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 231 donde os Moreiras… É dizer, a festa, sei que vai ser, mas queria saber… queria saber se o senhor também… (Nada importa. Foi o diabo quem mandou o espanhol aqui… Ele tem muito dinheiro junto, é o que o povo diz.) — Seu Ramiro, se chegue. Escuta: tenho um particular, muito importante com o senhor… — Mas, senhor Eulálio, eu lhe garanto… À ordem, senhor Eulálio… Que há? O senhor sabe, que, a mim, eu gosto de estimar e respeitar os meus amigos, e, grande principalmente, as suas famílias excelentíssimas… (É preciso um sorriso, um só, senão o espanhol fica com medo. Mas, depois, fecha-se a cara, para a boa decência…) — Eu sei, eu sei. Olhe aqui, seu Ramiro: eu quero é que o senhor me empreste um dinheiro. Uns dois contos de réis… Feito? — Mas, senhor Eulálio… O senhor sabe… As posses não dão… As coisas… Olhe, seu Ramiro… a estória é séria… Eu vou-m‘embora daqui. A mulher fica… vou me separar… Ela não sabe de nada, porque eu vou meio assim, de fugido… O senhor em empresta o dinheiro, que é o que falta. Senão, eu não posso ir… É só emprestado. Daqui a uns seis meses, lhe pago. Mando. Tenho um emprego bom, arranjei — vou ser tocador de bonde, no Rio de Janeiro… Se não, eu não posso ir… (Agora é a hora de uma série de ares.) Sem dinheiro não vou. Não vou ir… Como é que posso?!… (Vmp, p. 113-114). Lalino vai embora para o Rio de Janeiro e deixa a mulher, Maria Rita, entregue ou ―vendida‖ ao espanhol. Mas Lalino logo se cansa da vida na cidade grande e das mulheres de lá. […]. As huris eram interesseiras, diversas em tudo, indiferentes, apressadas, um desastre; não prezavam discursos, não queriam saber de românticas histórias. A vida… na Ritinha, nem não devia pensar. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 232 Mas, aquelas mulheres, de gozo e bordel, as bonitas, as lindas mesmo, mas que navegavam em desafino com a gente, assim em apartado, no real. Ah, era um outro sistema. Aquilo cansava, os ares. Havia mal o sossego, demais. Ah, ali não valia a pena. (Vmp, p. 118). Lalino desejava ir para a cidade grande e assim o fez. A princípio um flâneur, encantado com a modernidade, com a cidade, o novo. Muitas pessoas, muitas mulheres, tudo aquilo que vira nas revistas, mas Lalino desperta bruscamente para uma dura realidade: a correria da cidade grande torna as pessoas apressadas e ―indiferentes‖. ―As huris eram interesseiras, diversas em tudo [...] um desastre; não prezavam discursos, não queriam saber de românticas histórias. Realmente, as mulheres da cidade grande não eram iguais a Ritinha, o tempo delas era diferente, era o tempo da modernidade. Ritinha representa, portanto, a tradição, não somente pelo fato de estar no campo, mas por trazer consigo o ideal de família, de porto seguro, de uma mulher cuja função social seria cuidar da casa, do marido e dos possíveis filhos. As aventuras de Lalino Salãthiel na capital do país foram bonitas, mas só podem ser pensadas e não contadas, porque meio houve demasia de imoralidade. Todavia convenientemente expurgadas, talvez mais tarde apareçam, juntamente com a história daquela rã catacega, que, trepando na laje e vendo o areal rebrilhante à soalheira, gritou – ―Eh, aguão!...‖ – e pulou com gosto, e, queimando as patinhas, deu outro pulo depressa para trás. (Vmp, p. 118). Lalino se desilude com a cidade grande, com a falta de sossego e, segundo Benjamin (1984), essa desilusão é uma alegoria barroca, uma vez que a anulação do sujeito e a desintegração dos valores e objetos fazem parte do mundo moderno. A riqueza de imagens existentes na cidade grande chamou a atenção de Lalino Salãthiel que passou a desejá-las, partindo ao encontro delas, mesmo que para isso tenha precisado ―vender‖ a própria mulher. Porém, o ―mulatinho levado‖ depara-se com a descontinuidade dessas imagens e sua fragmentação, as ruínas, a perda dos valores de uma tradição que representa a própria morte do sujeito, Lalino Salãthiel. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 233 A alegoria da morte do sujeito, Eulálio, tem início quando este, ao despertar que a realidade da cidade grande não mais o satisfaz, tenta retornar à situação antiga, procurando ajeitar-se à sua maneira. Amadurece a custa de decepções; reflete sobre a vida por meio de uma filosofia desencadeada em virtude das suas ações e conclui que, será melhor voltar para a mulher, para o campo, a tradição. Resolve então voltar. — E se eu voltasse p’ra lá? É, volto! P’ra ver a cara que aquela gente vai fazer quando me ver… Mas sua mulher, Maria Rita, já estava vivendo com o espanhol. Lalino não vê a possibilidade de ter a sua mulher de volta, mas, com o passar do tempo, almeja ganhar de volta a consideração do povo do arraial e de sua Maria Rita, pois assim como Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, Lalino Salãthiel é dotado de uma esperteza que sempre o leva aonde deseja. Em virtude de seu poder persuasivo, consegue chegar até o Senhor Major Anacleto, homem de grande prestígio social naquela região, e lhe aparece a oportunidade de entrar para a política, trabalhando como cabo eleitoral do Major Anacleto, devido à sua esperteza e inteligência. Com o passar do tempo, portando-se como excelente cabo eleitoral, ele garante a vitória ao Major. Tempos depois, Maria Rita fugiu do espanhol porque estava sendo judiada por causa do ciúme e vai até a casa do Major, pedindo proteção. Quando acordou, horas depois, foi a sustos com uma matinada montante: o mulherio no meio da casa; os capangas, lá fora, empunhando os cacetes, farejando barulho grosso; e muita gente rodeando uma rapariga bonita, em pranto, com grandes olhos pretos que pareciam os de uma veadinha acuada em campo aberto. Com a presença enérgica do patriarca, amainou-se o rebuliço, e a moça veio cair-lhe aos pés, exclamando: — Tem pena de mim, seu Coronel, seu Major!… Não deix‘eles me levarem! Pelo amor de suas filhas, pelo amor de sua mulher dona Vitalina… Não me desampare seu Major… […] — Sou a Mulher do Laio, seu Major… Me perdoe, seu Major… Eu sei que o senhor tem bom coração… Sou uma infeliz, seu Major… É VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 234 o Ramiro, o espanhol, que me desgraçou… Desde que o Laio voltou, que ele anda com ciúme, só falando… Eu não gosto dele, seu Major, gosto é do Laio… Bom ou ruim, não tem juízo nenhum, ms eu tenho amor a ele, seu Major… Agora o espanhol deu para judiar comigo, só por conta do ciúme… […] Quis me bater, o cachorro! Disse que me mata, mata o Laio, e depois vai se suicidar, já que está mesmo treslouco… Então eu fugi, para vir pedir proteção ao senhor, seu Major. Pela Virgem Santíssima, não me largue na mão dele, seu Majorzinho nosso! (Vmp, p. 144-145). Acontece que Major Anacleto chama Lalino, e as mulheres trazem Maria Rita, para os dois fazerem as pazes. ―O chefam agora é quem se ri, porque a mulherzinha chora de alegria e Lalino perdeu o jeito‖ (Vpm, p. 149). Marcas da Oralidade Ao lermos Guimarães Rosa, deparamo-nos com uma beleza inexplicável. Jogo de palavras, invencionices, trocadilhos, filosofia, enfim, todo o mundo surpreendente das estórias49 rosianas, causa-nos impacto, estranhamento. As manifestações culturais ocorridas nos sertões de Minas Gerais tomam formas poéticas nas mãos de Rosa, o alquimista da palavra, segundo Eduardo de Faria Coutinho (1991). Rosa, entre 1946 e 1967, interveio no paradigma da literatura brasileira, ocorrido a partir de 1922 no cenário nacional, passando a influenciar no processo de repensar a tradição narrativa brasileira. Em carta escrita ao amigo João Condé, revelando os segredos de Sagarana, João Guimarães Rosa explica por que escolheu sua terra para transformá-la em arte: 49 Segundo Guimarães Rosa, a palavra estória diz respeito à ficcionalidade em si. E que a obra de arte tem que ser basicamente invenção, acionada pelo mecanismo do imaginário enquanto que história é a narração dos fatos que supostamente ocorreram, ou seja, qualquer narração da realidade objetiva. Para este trabalho, adotaremos, portanto, de acordo com proposta rosiana, a palavra estória. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 235 Àquela altura, porém, eu tinha de escolher o terreno onde localizar as minhas histórias. Podia ser Barbacena, Belo Horizonte, o Rio, a China, o arquipélago de Neo-Baratária, o espaço astral, ou mesmo, o pedaço de Minas Gerais que era mais meu. E foi o que preferi. Porque tinha muitas saudades de lá. Porque conhecia um pouco melhor a terra, a gente, bichos, árvores. Porque o povo do interior – sem convenções, ―poses‖ – dá melhores personagens de parábolas: lá se vêem bem as reações humanas e a ação do destino: lá se vê bem um rio cair na cachoeira ou contornar a montanha, e as grandes árvores estalarem sob o raio, e cada talo do capim humano rebrotar com a chuva ou se estorricar com a seca. (ROSA, 2001, p. 25). Em suas viagens de cunho etnográfico pelo sertão de Minas Gerais, Rosa retoma contato com os costumes, as falas, as estórias, os cantos e as danças do homem do sertão, sendo, portanto, uma das marcas da sua escritura a mediação entre dois modos de vida, um rural e tradicional e outro urbano e moderno. Chega a ser quase impossível falar da obra de Guimarães Rosa, abstraindo-se a importância da elaboração linguística em busca da revitalização da linguagem. Em sua obra, as dicotomias entre a modernidade urbana e a cultura tradicional vigentes até então, na ficção da literatura brasileira, são quebradas, através da fusão dessas polaridades, momento em que o erudito e o popular, palavra falada e palavra escrita se misturam no mesmo grau de importância, restaurando o sentido poético, através da exploração das potencialidades da língua, reinvenção da língua escrita. Ainda em carta a João Condé, Rosa explica como se deu o início do processo de sua escritura. Tinha de pensar, igualmente, na palavra ―arte‖, em tudo o que ela para mim representava, como corpo e como alma; como um daqueles variados caminhos que levam do temporal ao eterno, principalmente [...]. Rezei, de verdade, para que pudesse esquecer-me, por completo, de que algum dia já tivessem existido septos, limitações, tabiques, preconceitos, a respeito de normas, modas, tendências, escolas literárias, doutrinas, conceitos, atualidades e tradições – no tempo e no espaço. Isso porque na panela do pobre, tudo é tempero. E, conforme aquele sábio salmão VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 236 grego de André Maurois: um rio sem margens é o ideal do peixe. [...] Aí, experimentei o meu estilo, como é que estaria. Me agradou. (ROSA, 2001, p. 24). Nos contos de Sagarana, alia-se ao falar do homem do sertão uma linguagem culta, extremamente elaborada. A arte da narrativa rosiana é marcada pela experimentação linguística, por frases sintéticas, entrecortadas, pelo discurso justaposto, em oposição à linearidade utilizada até então por outros escritores. Sendo assim, Rosa rompe com as estruturas tradicionais, incorporando o ―não-senso‖ da linguagem oral (da poesia), impondo ao leitor uma lógica particular. Segundo Simões (1976), a criação das palavras surge da necessidade de se expressar diante de um novo acontecimento, ou uma outra realidade, tanto por parte do escritor, quanto por parte do homem comum. A arte de contar estórias inventadas é própria do protagonista falador, Lalino Salãthiel, que, dotado de fértil imaginação não se cansa de contar uma estória dentro da outra. Para Candido (1993), Sagarana se caracteriza pela paixão de contar. Seus personagens, contadores de estórias, são inspirados na vivência do povo brasileiro, e, apesar de absorver algumas experiências da literatura estrangeira, representam uma vivência nossa, do sertão, e ao mesmo tempo universal, do mundo, dos sertões. Os contos de Sagarana estão permeados de expressões populares e provérbios, poetizados pelo autor. Quem não tem brio engorda!/ Quem não trabuca, não manduca. (Vmp, p. 103). Essas expressões populares fazem parte da sabedoria do homem do sertão, assim como do convívio de Lalino Salãthiel. Sabedoria essa que advém da tradição oral. Baseada na teoria da oralidade de Zumthor e nos estudos de Cascudo, esta leitura nos possibilita uma visão da escritura rosiana como representação da literatura modernista, em que valores como o erudito e o popular estão mesclados num mesmo discurso, sem que haja, portanto, um distanciamento dessas duas categorias, as quais se apresentam intrínsecas, proporcionando assim, uma erudição do popular na narrativa rosiana. Em ―A volta do marido pródigo‖, percebemos a palavra como elemento-chave, pertencente ao personagem central. Para Nobre (2000), as estórias de Sagarana são consideradas rapsódias, contos em grande forma que trazem, em seu âmago, a representação poética VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 237 do espírito da realidade de uma região. (NOBRE, 2000, p. 29). De acordo com Nelly Novaes Coelho (1975), as narrativas de Sagarana transformam-se em poesia, levando o leitor a se deleitar com esse contato com a palavra/verbo. ―Pau! Pau! Pau! Pau de jacarandá!… Depois do cabra na unha, quero ver quem vai tomar!… (Vmp, p. 149) Em todas as estórias de Sagarana, a poesia é presentificada pelo canto, e essas cantorias representam a cultura desse povo, que as entoa e ouve daqueles a quem chamamos cantadores, ou, caso nos reportemos à Idade Média, os chamaremos de trovadores (cantores, músicos e recitadores ambulantes que eram contratados pelo senhor para divertir a corte através de suas cantigas). O ouvir/contar e transmitir a outrem o contado e o sabido também de outrem são próprios de uma cultura. Assim como as dos trovadores, as manifestações orais do sertanejo, através do contar/cantar, para repassar o sabido e o conhecido, são garantia de continuidade dessa cultura, é tradição50 como permanência. (MORAIS, 2004). Em Sagarana, os contadores de estórias são semelhantes aos narradores dos textos literários populares publicados em folhetos, literatura de cordel, em que existe um mediador entre a narrativa e o público ouvinte (seja o próprio autor, seja outra pessoa que memoriza o texto ou, apenas, conta para os presentes). As estórias de Sagarana, assim como os cordéis, são textos para serem recitados em voz alta, oscilando da leitura à verbalização 50 Cascudo (2006, p. 29) esclarece: Entende-se por tradição, traditio, tradere, entregar, transmitir, passar adiante, o processo divulgativo do conhecimento popular ágrafo. Para Cascudo, a tradição reúne elementos de estórias e de história popular, anedotas reais ou sucessos imaginários, críticas sociais, vestígios de lendas, amalgamados, confusos, díspares, na memória geral. Confundem com certas superstições. Parece-me articular-se aos ‘rumores’ clássicos, o ‘rumor antigo conta’, como dizia Camões, uma forma de comunicação de valores indistintos do saber coletivo. Sua caracterização é compreendida quando uma tradição é equivocada. Quase sempre inicia-se pela frase: ’ — Os antigos diziam…’ Não é uma lenda, nem um mito, fábula ou conto. É uma informação, um dado, um elemento indispensável para que se possa sentir o conjunto mental de um julgamento antigo, de meio século, de cem anos, do século XVIII. ‘Como diz o provérbio dos antigos’, lê-se no primeiro livro de Samuel, XXIV, 13. (CASCUDO, 2006, p. 53). VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 238 oral. Sendo assim, a oralidade se faz imprescindível na constituição do texto escrito, porém precisa deste para demarcar sua presença. Ainda no conto em estudo, assim como em todas as estórias de Sagarana, percebemos que as antinomias escrita x fala, letrado x iletrado, professor x jagunço não são vistas sob a forma de ambigüidade, e sim, de entrecruzamento, uma ligação entre a literatura e as raízes profundas do homem. O narrador rosiano dá voz às falas populares, a elas sede espaço no cenário textual, fazendo a necessária travessia em direção a esse imaginário, a outras esferas, assim como afirma Bosi (1999, p. 343): Nessa luta, a obra é tanto mais rica e densa quanto mais intensamente o criador participar da dialética que está vivendo a sua própria cultura, também ela dilacerada entre instâncias altas, internacionalizantes e instâncias populares. (Grifo do autor) Sendo assim, percebemos que o narrador rosiano, ao contrário da tradição canônica, vigente até então, dá ensejo à articulação de outras vozes, que de certa forma haviam sido marginalizadas até o momento (NOBRE, 2000). Em Sagarana, encontramos o fabulário popular arraigado pela epopéia, momento em que as culturas popular e erudita se dão as mãos num entrecruzamento de caráter plural, através da penetração da oralidade na ficção da literatura brasileira, comprovando-se que, ao invés de diluir-se, enraizou-se no comportamento cultural brasileiro e, de forma singular, na narrativa rosiana. (NOBRE, 2000). A terceira margem, por onde se constrói a obra de Guimarães Rosa, não é um lugar definido, que possamos encontrar e nomear, pois, propositadamente, joio e trigo, erudito e popular, palavra falada e palavra escrita se misturam num mesmo grau de importância, como materiais de construção e de composição. (ALMEIDA, 2003, p. 410). Ao dizermos que o erudito e o popular e a palavra escrita e a falada se misturam num mesmo grau de importância, o que talvez seja a marca mais importante da escritura de Guimarães Rosa, talvez muito mais que uma marca seria o princípio norteador e fundador, o âmago, quase religioso da sua poética. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 239 A criação de uma língua própria, que incorpora as diversidades linguísticas e as técnicas de criação artística produzidas em todos os tempos e, no caso das manifestações da oralidade, as marcas da cultura popular que persistiram até hoje nos sertões, causa um rompimento entre os limites e as limitações impostas pelo rigor da gramática dos textos impressos, fazendo de Rosa, reinventor da língua escrita, ao incorporar a esta o vigor da língua falada que os séculos de língua escrita haviam enfraquecido. (ALMEIDA, 2003, p. 410). Diante dessa perspectiva, a trajetória aqui intentada traduziu a possibilidade de uma (re) leitura do conto Traços biográficos de Lalino Salãthiel ou A volta do marido pródigo, assim como também nas demais estórias de Sagarana cujo engendramento consubstancia a multissignificação da palavra lavrada em terra e gente sertaneja, tecida por Guimarães Rosa com uma linha de expressão e estilo geniais, atingindo uma transcendência ímpar na história da literatura brasileira. O estudo sobre o autor e sua obra nos revela uma síntese entre o regionalismo e a reação espiritualista em nossa literatura. Síntese esta que inclui, além do apreço à transcendência e a metafísica, a valorização e exploração dos fatos vividos pelo povo sertanejo, suas estórias e sua cultura, detalhando seus pormenores, indo além do valor documental, chegando à recriação literária. Sagarana é um monumento, esculpido em palavras, ao e pelo homem do sertão, que nos dá testemunho do universo singular desse espaço em que a presença de jagunços se faz constante nas estradas acompanhada pelo som das cantorias, das cantigas desse povo que comprova a não inferioridade da literatura oral, fator este que constata que a literatura brasileira, muitas vezes, recorre a fontes de inspiração na memória do povo. Um mundo de vivências que habita a linguagem e é um constructo do próprio homem. A narrativas aqui estudada é uma clara síntese entre o regionalismo e a reação espiritualista em nossa literatura, entre a modernidade e os valores de uma tradição, cidade versus campo. A reinvenção da linguagem, associada à sua rara capacidade de contar estórias e criar seres e situações, se mostra alheia a qualquer experimentalismo estéril. Obra de caráter essencialmente épico, revela-se como um momento privilegiado da moderna literatura brasileira, haja vista que Guimarães Rosa faz prosa como se estivesse fazendo poesia, uma vez que valoriza sobretudo a palavra e busca adequar a linguagem altamente condensada da poesia a uma cadência e ritmos lógicos, com uma fluência própria da musicalidade dos versos. Dizemos, pois, que sua narrativa realça a rima e a matéria a ser VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 240 narrada, tornando sua arte não apenas expressão, mas fundamentalmente construção, assim como a poesia. Dessa forma, destacamos que antes de qualquer questão filosófica, a abordagem engendrada neste estudo pretendeu levantar pontos fundamentais sobre a escritura tão laboriosa e magnífica de Guimarães Rosa. A estrutura textual, as artimanhas presentes no desenrolar da estória contada, as estratégias utilizadas no plano do enunciado e da enunciação, a revitalização da linguagem, as diversidades entre a cidade e o campo e o mais importante de tudo, a magia, associada à profunda harmonização, com que tece o entrecruzamento entre as culturas popular e erudita, linguagem falada e linguagem escrita, fazendo parte de um mesmo patamar de construção, a poesia, momento este que as manifestações da literatura oral se fazem presente. Dizemos assim que não existe um roteiro prévio para se adentrar na poesia rosiana, visto que as trilhas e os percursos são inesgotáveis, o que causa-nos, na maioria das vezes, uma experiência de muita inquietação diante da possibilidade de atravessarmos, ou mesmo, sermos atravessados pelo grande sertão rosiano, visto que, através da poesia imensurável, da sabedoria latente, o verdadeiro artista, poeta, consegue, mais uma vez, impulsionar-nos, homens, a mergulhar, incansavelmente, dentro de si mesmo. REFERÊNCIAS ALMEIDA, Lenival Gomes de. A terceira margem da palavra: um ensaio sobre Grande Sertão: veredas. In: DUARTE, Lélia Parreira et al. (Org.). Veredas de Rosa II. II Seminário Internacional Guimarães Rosa 2001. Belo Horizonte: PUCMinas, 2003. p. 409-413. ANDRADE, Mário de. Cartas a Manuel Bandeira. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1966. BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora da Universidade Brasília, 1999. BIZARRI, Edoardo. João Guimarães Rosa: correspondência com o tradutor italiano. 2. ed. São Paulo: T. ª Queiroz; Instituto Cultural Ítalo-brasileiro, 1980. BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. ______. Céu, Inferno. Rio de Janeiro: 34, 2003. (Espírito Crítico). CANDIDO, Antonio. Entre campo e cidade. In: Tese e Antítese. São Paulo: Nacional, 1964, _______. A literatura brasileira em 1972. Arte em revista, São Paulo, n. 1, 1979. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 241 _______. Formação da literatura brasileira. São Paulo: Martins, 1986. _______. A educação pela noite e outros ensaios. 2. ed. São Paulo: Ática, 1989. v. 1. (Temas). ______. O discurso e a cidade. São Paulo: Duas Cidades, 1993. ______. Guimarães Rosa: ficção completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. ______. Uma palavra instável (Nacionalismo). In: ______. Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1995. CASCUDO, Luís da Câmara. Cinco livros do povo. João Pessoa: Editora Universitária da UFPB, 1994. ______. Dicionário do Folclore Brasileiro. 10. ed. São Paulo: Global, 2001. ______. Literatura oral no Brasil. São Paulo: Global, 2006. COELHO, Nelly Novaes; VERSIANI, Ivana. Guimarães Rosa: dois estudos. São Paulo; Brasília: Quíron/INC, 1975. (Escritores de Hoje). COUTINHO, Eduardo de Faria (org.). Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; INL, 1991. (Fortuna Crítica, 6). DIEGUES JÚNIOR, Manuel. Ciclos temáticos na literatura de cordel. In: ______. Literatura popular em verso. Belo Horizonte: Itatiaia, 1986. GALVÃO, Walnice Nogueira. As formas do falso. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1986. (Debates, 51). ______. Guimarães Rosa. São Paulo: Publifolha, 2000. (Folha Explica). INSTITUTO MOREIRA SALES. Guimarães Rosa.Cadernos de Literatura. n. 20-21 São Paulo, 2006. LEÃO, Ângela Vaz. Ritmo, som e letra em Guimarães Rosa (A prosa poética de O Burrinho Pedrês). Extensão: cadernos da Pró-reitoria de Extensão da PUC de Minas, Belo Horizonte, v. 6. n. 2, p. 9-27, ago. 1996. LEITE, Dante Moreira Leite. O caráter nacional brasileiro: história de uma ideologia. 4. ed. São Paulo: Pioneira: 1983. LIMA, Lezama. A expressão americana. Trad., introd. e notas Irlemar Chiampi. São Paulo: Brasiliense, 1988. LIMA, Sônia Maria van Dijck. Guimarães Rosa: escritura de Sagarana. São Paulo: Navegar, 2003. (Ensaios). LINO, Joselita Bezerra da Silva. A alegoria no Iauretê. João Pessoa, 1996. Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira). Universidade Federal da Paraíba, Centro de Ciências VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 242 Humanas Letras e Artes. ______. Dialegoria: a alegoria em Grande sertão: veredas e em Paradiso. João Pessoa: Ideia, 2004. MARTINS, Heitor. Do Barroco a Guimarães Rosa. Belo Horizonte: Itatiaia; Brasília: INL, Fundação Nacional Pró-Memória, 1983. v. 12. (Coleção Ensaios). MARTINS, Nilce Santana. O léxico de Guimarães Rosa. São Paulo: EDUSP, 2001. MELLO, Cléa Corrêa. A construção discursiva do nacional em Guimarães Rosa. Seminário Internacional Guimarães Rosa — Veredas de Rosa, PUC-Minas, 1998-2000, p. 153. MORAES, M. A. Coragem de escrever brasileiro. Portal da Fundação Perseu Abramo. Cultura, n. 4. Disponível em: http://www2.fpa.org.br/portal/moules/news/article.php?storyid=1501. Acesso em: 30 jul. 2007. MORAIS, Eduardo Jardim. A brasilidade modernista: sua dimensão filosófica. Rio de Janeiro: Graal, 1978. NOBRE, Lúcia. A arte Rosa do popular ao erudito: uma incursão na tradição cultural na contística de Guimarães Rosa. Maceió: EDUFAL, 2000. NUNES, Ana Rosa de Mendonça. Modernismo e tradição da oralidade na poesia: uma leitura de Clã do jabuti, e Mário de Andrade, e Catimbó, de Ascenso Ferreira. Natal, 2006. Dissertação (Mestrado em Literatura Comparada). Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem. ONG, Walter. Oralidade e cultura escrita: a tecnologização da palavra. Campinas, SP: Papirus, 1998. PROENÇA, M. Cavalcanti. Trilhas no Grande sertão. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1958. RAMOS, Graciliano. Conversa de bastidores. In: Vários autores. Em memória de João Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: José Olympio, 1968. p. 38-45. ROMERO, Sílvio Romero. Estudo sobre a poesia popular no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1977. ______. Folclore brasileiro: cantos populares do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1985. v. 86 e 87. (Coleção Reconquista do Brasil; Nova Série). ROSA, João Guimarães. Sagarana. 54. impr. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. SILVA, Marcos (org.). Dicionário crítico Câmara Cascudo. São Paulo: Perspectiva; VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 243 FFLCH/USP; Fapesp; Natal: EDUFRN; Fundação José Augusto, 2003. SIMÕES, Irene Gilberto. Guimarães Rosa: as paragens mágicas. São Paulo: Perspectiva, [s.d.]. (Debates). TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda européia e modernismo brasileiro: apresentação e crítica dos manifestos vanguardistas. 15. ed. Petrópolis: Vozes, 1999. VASCONCELOS, Sandra Guardini T. Puras misturas: estórias em Guimarães Rosa. São Paulo: Hucitec, 1997. ______. Os mundos de Rosa. Revista USP, São Paulo, n. 36, p. 78-87, dez./fev. 1997-1998. WARD, Teresinha Souto. O discurso oral em Grande sertão: veredas. São Paulo: Duas Cidades; Brasília: INL; Fundação Pró-Memória, 194. WITTE, Bernd. O que é mais importante: a escrita ou o escrito? Revista USP, Dossiê Walter Benjamin, São Paulo, USP, n. 15, p. 85-89, set./nov. 1992. ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a 'literatura' medieval. Trad. Amalio Pinheiro e Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. ______. Introdução à poesia oral. Trad. Jerusa Pires Ferreira, Maria Lúcia Diniz Pochal e Maria Inês de Almeida. São Paulo: HUCITEC, 1997. ______. Escritura e nomadismo: entrevistas e ensaios. Trad. Jerusa Pires Ferreira e Sonia Queiroz. Cotia: Ateliê, 2005. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 244 10. MINHA VIDA DE MENINA: DIÁRIO DE HELENA MORLEY BOEIRA, Eloísa Elena Prates51 ARAÚJO, Roberta Duarte de52 O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza! Só assim de repente, na horinha em que se quer, de propósito – por coragem. Será? Era o que eu às vezes achava. Ao clarear do dia. (Grande Sertão:Veredas, p. 278). O livro Minha vida de menina, escrito pela adolescente Alice Dayrell Caldeira Brant que usou o pseudônimo de Helena Morley, mostra um período da história do Brasil no final do século XIX, na pequena Diamantina em Minas Gerais. Aconselhada pelo pai a escrever diariamente num caderno suas observações sobre o mundo a sua volta, a menina dos treze aos quinze anos manteve um diário em que anotava não apenas o dia-a-dia na família e na escola como também alguns comentários sobre a vida da cidade e da região, com seus costumes arraigados, suas relações sociais, suas contradições. Além do pai, Helena teve um outro incentivador, seu professor de Língua Portuguesa da Escola Normal na qual estudava, que exigia uma composição semanal e percebendo a desenvoltura e o gosto de Helena ao escrever, incentivava-a cada vez mais. 51 Eloísa Elena Prates Boeira é graduada em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Especialista Leitura e Literatura pela UnP, Especialista em Psicopedagogia pela UnP e aluna especial do mestrado em Literatura Comparada – UFRN. 52 Roberta Duarte de Araújo é graduada em Letras pela UFRN e mestra em Estudos da Linguagem – Literatura Comparada pela UFRN e aluna especial do doutorado pela UFRN. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 245 O diário de Helena Morley traça um retrato bem-humorado do dia-a-dia em Diamantina entre os anos de 1893 e 1895, faz uma radiografia da sociedade brasileira provinciana nos primórdios da República, momento em que ―a escravidão acabava de ser abolida e o trabalho livre não estava ainda enquadrado nas alienações da forma salarial,‖ como observou o crítico Roberto Schwarz em seu ensaio sobre Morley, ―Outra Capitu‖ (SCHWARZ, 1977). A menina magra sardenta e rebelde cresceu respondendo às contradições de seu tempo. Dividida entre a infância e a puberdade, entre o sonho do diamante redentor e as lavras e minas esgotadas, ela criou um olhar independente sobre a província tacanha e decadente. No seu diário Helena se revelou determinada e única. Outros registros da vida infantil, assinados por pessoas que, chegando à idade madura se voltaram com nostalgia à sua infância, foram comentados pelo poeta Carlos Drummond de Andrade que nenhum desses testemunhos, que ele chamava de ―aurora da minha vida, oferece a singularidade que torna o livro de Helena Morley incomparável: ele não recompõe o passado com maior ou menor fidelidade; vive-o, respira-o, insere-se nele‖. ( SCHWARZ, 1977, p. 60). Uma espécie de diário doméstico o livro atinge fundo na descrição do ambiente da família brasileira modesta em zona de mineração, ali está refletido a pobreza, o sonho de libertação das necessidades, o convívio social, a despreocupação, a alegria e a tristeza do viver, sobretudo a alegria, pois a infância de Helena ―tem o gênio de rir de tudo.‖ Ela se confessa impaciente, rebelde, respondona, passeadeira, incapaz de obedecer a tudo que querem que ela seja; dona de um espírito vivaz, bem-humorado, que capta o aspecto grotesco das cenas e das coisas e se diverte em passar em revista o mundinho de Diamantina. O livro ―Minha vida de menina‖ despertou a atenção da poetisa norte-americana Elizabeth Bishop que vivia no Brasil e traduziu a obra para o inglês; outro admirador das histórias de Helena Morley foi o pensador francês George Bernanos, que morou no Brasil na década de 1940. Em 1969 foi produzida a primeira filmagem, de David Neves, com o título de ―Memória de Helena‖; a segunda versão para o cinema chamou-se ―Vida de Menina‖ (2004). O interesse pelo livro foi renovado, nos últimos anos, com estudos de alto nível do crítico Roberto Schwarz (no livro ―Duas Meninas‖, 1997), que aproxima a menina de Matacavalos, Capitu de Dom Casmurro, com a menina de Diamantina, Helena de Minha VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 246 Vida de Menina, uma distância tão próxima, duas histórias semelhantes, e irreverentes. Roberto Schwarz consegue aproximar uma obra prima de Machado de Assis a uma escrita ingênua e sem intenção de uma adolescente descendente de ingleses em Diamantina, no final do século XIX. A ousadia maior coube, sem dúvida, a Roberto Schwarz que comparou as histórias de Helena Morley à Capitu de Machado de Assis. Diz o autor de Um mestre na Periferia do Capitalismo: As duas meninas surpreendem pelo iluminismo e clarividência de capturar a história daqueles tempos. Comenta que Minha vida de menina é um dos bons livros da literatura brasileira, e não há quase nada a sua altura em nosso século XIX, se deixarmos de lado Machado de Assis. Transcrevo o que o crítico Roberto Schwarz coloca no início do capítulo que chamou de ―Outra Capitu‖, sobre o prefácio notável de Alexandre Eulálio: [...] nada impede o leitor de imaginar que a escrita tão espontânea da guria seja obra da autora já adulta, e que se trate então de uma impostura literária. Mas conta ainda que Guimarães Rosa em conversa dizia que neste caso o diário seria até mais extraordinário, pois que soubesse, não existia em nenhuma outra literatura mais pujante exemplo de tão literal reconstrução da infância. Noutro ensaio posterior, em que retoma e amplia o seu prefácio, Alexandre acredita que a hipótese do ―pasticho de gênio‖ deva ser afastada, e conclui, agora como que sabendo mais, e criando novo mistério, que não resta senão louvar a leveza da mão experiente que preparou para o prelo os velhos cadernos da mocinha (publicados pela primeira vez em 1942), sem deturpar em nada o caráter genuíno deles. O Diário de Helena Morley abre com estas palavras: ―quinta-feira, 5 de janeiro de 1893. Hoje foi nosso bom dia da semana.‖ (p. 5) É o dia em que a família acorda de madrugada, arruma a casa e vai para o campo lavar a roupa. Nesse lugar, enquanto a mãe e as filhas Helena e Luizinha lavam as roupas embaixo da ponte, os filhos Renato e Nhonhô um pesca e o outro pega passarinhos, enquanto Emídio, um crioulo agregado, vai procurar VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 247 lenha. As meninas lavam e botam as roupas pra corar, para que a mãe prepare o almoço de tutu de feijão com torresmos e arroz, depois do almoço a mãe fica vigiando o caminho pra ver se vem alguém, para que possam entrar no rio, tomar banho e lavar os cabelos, enquanto isso a roupa seca pendurada nos galhos. Depois é só procurar frutas no campo, ninhos de passarinho, casulos de borboletas e pedrinhas redondas para o jogo. Roberto Schwarz fala das primeiras quatro entradas do diário que formam um bloco: Vimos a quinta-feira dos Morley, em que a tônica na frugalidade e no trabalho em comum dissolve as distinções sociais. Em seguida veremos a mesma família em casa, no seu papel de gente respeitada e apadrinhadora, isto é, distinta, a que os pobres tomam a bênção. Na terceira cena as posições se invertem e serão os Morley que estarão de visita meio de cortesia e meio interesseira na chácara de vizinhos abastados, que os costumam obsequiar. A quarta entrada por fim inclui todos estes temas e põe o acento na relação já mais crua com a propriedade privada e o pagamento em dinheiro. Os contrastes são secos, estão à vista como um fato, além de intocados pela glosa, o que os recomenda à contemplação reflexiva. ( SCHWARZ, 1977, p. 62). Conforme Schwarz (1977, p. 62-63), no Diário de Helena Morley os conflitos e as aflições morais das personagens figuram com mais beleza, mais variedade, profundidade e humor do que os que aconteceram nos romances da primeira fase de Machado de Assis. Os ―frouxos de risos‖ são peculiaridades simpáticas da família Morley, que mal ou bem se conforma e veve com eles, como Benvinda com o noivo sem perna. O Diário de Helena Morley traz à tona as segregações e formas de estupidez da sociedade brasileira, fala das relações entre negros e brancos, a abolição da escravatura e a liberdade sem trabalho, os agregados e a troca de favores, trocas e vendas, da pobreza, da religião, da política e economia e os interesses e interesseiros. Denuncia a face verdadeira e oculta das mazelas sociais daquela época. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 248 Minha vida de menina é sublime, é uma verdadeira viagem ao final do século XIX; os dias desses dois anos de anotações feitas pela menina Helena são puro encantamento, vejamos algumas passagens: Benvinda vem participar o seu casamento a D. Carolina e seu Alexandre, pais de Helena, a moça conta que o noivo tem um defeito, não tem perna e D. Carolina pergunta: ―Coitado! Então ele não anda?‖ Em seguida a mãe de Helena pergunta se já sabem como vão viver. ―Não pensei ainda não, mas viver a gente veve de qualquer jeito. Deus é que ajuda.‖ Conforme Schwarz (p. 58), a resposta de Dona Carolina faria a felicidade de Machado de Assis. Observamos que os Morley aproveitam a parecença para comer as frutas, dissonância entre ―obsequiar e aproveitar.‖ Nessa cena os Morley estão de visita na chácara de uma família da vizinhança, que costuma obsequiar com frutas, ovos, frangos e verduras. Esses obséquios ligam-se a um movimento muito brasileiro. Luizinha (irmã de Helena) dizem que se parece com Quitinha, que viajou. Os tios desta, donos da chácara e casal sem filhos, têm muito apego à sobrinha; para matar a saudade, gostam de olhar a menina tão parecida e comentar as semelhanças, além de lhe encher a família de presentes. Os Morley não se fazem de rogados. Fica evidente as aflições morais das personagens imbricadas entre razão individual e familismo paternalista. Schwarz comenta que o leitor interessado no nervo social da forma artística reconhecerá ao vivo o conflito que organiza os romances da primeira fase de Machado de Assis, embora com mais beleza, variedade, profundidade e humor no livro de Helena. Helena comenta em uma das belas passagens do diário: [...] penso que a educação nada vale. Cada pessoa nasceu como Deus fez e assim terá de ser. Somos quatro irmãos e mamãe disse que eu nem pareço filha dela, nem de ninguém da família. Meu pai disse que sou igual a irmã dele Alice que casou e foi embora para São Paulo e nunca mais voltou. (p. 90). A menina Helena gostava muito de criança e costumava ajudar a cuidar dos filhos das negras que moravam na fazenda da sua avó. Certa vez a filha de um casal de negros adoeceu e Helena passava as noites cuidando da menina e isso incomodava a sua mãe que dizia: VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 249 Você não sabe como eu fico aborrecida de vê-la sair da cama com este frio, e ficar descalça carregando negrinha dos outros. Eu dou razão a mamãe de ficar zangada comigo. Mas que hei de fazer se não posso mudar meu gênio? Penso que se a menina fosse branquinha mamãe não se incomodava. Mas ela sempre ralha da gente pajear negrinhos. Que culpa têm os pobrezinhos de serem pretos? Eu não diferenço, gosto de todos (p. 94). Sente-se incomodada quando tem que ir para o Bom Sucesso, prefere o seu interior, a Boa Vista e escreve em seu diário no dia 13 de fevereiro de 1894, terça-feira: As férias acabaram esta semana. Graças a Deus vai acabar meu sofrimento de ficar com inveja de mamãe e meus irmãos que ainda estão na Boa Vista. Quando acordo todas as manhãs e abro os olhos e me vejo na cidade, em vez de estar na Boa Vista, me dá tal tristeza que ofereço o sacrifício a Deus. Passo a maior parte do tempo pensando: ―Ah, se eu estivesse na Boa Vista!‖(p. 94). Helena sente pena da falta de pena do pai, habitualmente boníssimo, ao comentar sobre a ignorância do pai de Arinda, a menina que achou o diamante no desbarranque: Que idiota! Eu sei onde ele vai enterrar o dinheiro; é naquela grupiara do Bom Sucesso que nós já lavramos‖. Segundo Schwarz (p. 65), Machado de Assis completaria que seria mais metódico e racional que Helena e não Arinda tivesse apanhado a pedra? ―Quando eu tenho inveja da sorte dos outros, mamãe e vovó dizem: ‗Deus sabe a quem dá sorte‘- comentário de Helena sobre o diamante achado. Roberto Schwarz vai mais longe, trás para a sua análise o parentesco que o leitor da literatura infantil de Monteiro Lobato sentirá entre a Diamantina de Helena e o Sitio do Pica-Pau Amarelo, com pouca diferença, aí estão as avós boníssimas, o mundo dos primos, o culto das travessuras, as meninas com resposta para tudo, a cozinheira negra que é uma santa, e sobretudo a informalidade, que é o remédio a que os males não resistem. Schwarz fala da irreverência juvenil e belicosa de que se nutre a estética de Helena com birra por tudo que seja ostentação social. Ao término do livro Duas Meninas, Roberto Schwarz (1977) diz que: VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 250 Minha vida de menina integra uma lista substantiva da literatura brasileira, compara o livro de Helena Morley a algo à maneira do Sargento de milícias, que pouco rema contra a corrente, e nem por isso é trivial, nem cheira a justificação ideológica. Por contraste, sugerimos que as visões simpáticas do país, mesmo em autores de grande calibre, dependeram da exclusão de aspectos evidentes da realidade. Na prosa da menina isto não ocorre, não por artifício artístico superior, e sim porque o momento histórico se havia encarregado da filtragem: a Abolição acabava de suspender o trabalho escravo, e a involução relativa da economia regional barrava o progresso burguês desimpedido, abrindo a brecha para um progresso de outra sorte, da ordem da reacomodação interna, de cuja humanidade a beleza do livro fala e dá prova. (p. 144). [...] Terça-feira, 31 de dezembro de 1895: ―Hoje estou me lembrando de vovó, porque a alma dela nos tem protegido desde que morreu. [...] as coisas mudaram e nossa vida tem melhorado tanto, [...]. Meu pai entrou para a Companhia Boa Vista [...]. Agora não vamos sofrer mais faltas, graças a Deus. Não é mesmo proteção de vovó lá do Céu?‖ (p. 271). Helena vive um conflito constante, um querer audacioso, pois, nas suas memórias, projeta um desejo imaginário de consertar o mundo que se encontra desmoronando, afetado pelos questionamentos religiosos, pelo desenvolvimento mercantil e pelas contradições sociais, vivencia no seu diário de menina já adolescente a angústia da morte e vida, dor e alegria, falta e abundância. Carrega nas suas lembranças, as inquietudes, as alegrias, as descobertas, as paisagens, a poesia, as histórias e recordações. REFERÊNCIAS ASSIS, Machado de. Dom casmurro. Rio – São Paulo – Fortaleza: ABC Editora, 2006. BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. ______. Céu, Inferno. Rio de Janeiro: 34, 2003. (Espírito Crítico). VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 251 CANDIDO, Antonio. A literatura brasileira em 1972. Arte em revista, São Paulo, n. 1, 1979. _______. Formação da literatura brasileira. São Paulo: Martins, 1986. _______. A educação pela noite e outros ensaios. 2. ed. São Paulo: Ática, 1989. v. 1. (Temas). ______. O discurso e a cidade. São Paulo: Duas Cidades, 1993. FALLEIROS, Marcos Falchero. In: Revista Novos Estudos-Cebrap. São Paulo: n. 58, novembro 2000. CHIAMPI, Irlemar. Barroco e modernidade. São Paulo: Perspectiva: FAPESP, 1998. CANDIDO, Antonio. Entre campo e cidade. In: Tese e antítese. São Paulo: Nacional, 1964. MORLEY, Helena (Alice Dayrell Caldeira Brant). Minha vida de menina. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1973. SCHWARZ, Roberto. Duas meninas. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. __________. Um mestre na periferia do capitalismo. São Paulo: Duas Cidades, 1990. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 252 11. AS RUÍNAS BARROCAS D’O ATENEU, OU DA ESTÉTICA DO ROMANCE Francisco Magno de Araújo (Universidade Federal do Rio Grande do Norte) ―Vais encontrar o mundo [...]. Coragem para a luta‖. Assim começa um romance como se poema épico; um dos livros mais radicais da Literatura Brasileira, embora não o bastante polêmico aos olhos de nossa crítica literária, a qual, grosso modo, ainda restrita a identificações autobiográficas, se mantém mais ou menos contida frente ao tom arrebatado e à forma apoteótica deste monumento poético de nossa prosa de ficção. O Ateneu, de Raul d‘Ávila Pompéia – já no subtítulo se nos indica – abre as portas da ―crônica de saudades‖ do menino Sérgio: a volta retrospectiva de quem sai de casa para moldar-se no gesso microscópico do internato, ―a escola da sociedade‖. Publicado em série na Gazeta de Notícias, na antológica década de 1888, os corredores deste livro ―decadente‖ desde então nos enveredam pelas reminiscências de um colegial que muitos identificam com o próprio autor e sua experiência no Colégio Abílio, concorrido estabelecimento de ensino do Segundo Reinado: A irradiação do reclame alongava de tal modo os tentáculos através do país, que não havia família de dinheiro, enriquecida pela setentrional borracha ou pela charqueada do sul, que não reputasse um compromisso de honra com a posteridade doméstica mandar dentre seus jovens, um, dois, três representantes abeberar-se à fonte espiritual do Ateneu (POMPÉIA, 1905: 10). O ambiente da escola, como signo institucional, como resumo dos códigos sociais e depósito de cultura – ou seja, mecanismo de moldagem do espírito, e mesmo dos gestos e do corpo – é recorrente em certo gênero romanesco a partir do século XVIII, onde assoma a personagem jovem, nuclear, geralmente em meio a aventuras: seus primeiros contatos com a sociedade e o pensamento da época e, por conseguinte, suas primeiras reflexões morais e estéticas etc. Basta lembrarmos – sem que esqueçamos As aventuras de Telêmaco, de Fénelon, ou o Tom Jones, de Fielding, e mesmo os ainda mais remotos diálogos platônicos, e VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 253 determinado episódio do texto homérico que vale citar logo mais – o exemplo categórico do Wilhelm Meister, de Goethe, onde se mostra o conceito explícito de ―romance de formação‖ (Bildungsroman, ou Künstlerroman, quando se refere especificamente à formação de um artista). Mas é no século XIX quando esse tipo de obra de ―formação‖ se identifica com a tendência subjetiva e mesmo autobiográfica então delineadora dos gêneros novelísticos, sobretudo o romance, quando as metamorfoses do espírito adolescente e a própria modulação discursiva do gênero romanesco ―em formação‖, ou deformação, se correspondem na busca ainda romântica da personalidade pelo ―equilíbrio entre o eu e o mundo, o subjetivo e o objetivo‖ (MUTRAN: 2002, 73), enfim, na busca pela estátua unitária do caráter psicológico e da estrutura de um gênero que a moldasse: estátua a qual, no século XX, destinar-se-ia à decadência simultânea do indivíduo e do romance, prometida logo em seguida, no século XX, em obras como A portrait of the artist as a young man e realizada, de maneira radical, por um Ulysses. N‘O Ateneu, assim como no texto de James Joyce, o jovem artista se lança na busca em comum – no mesmo périplo epopeico dramatizado no espaço da escola – por uma ―boa forma‖. Que nostalgia de forma persegue Stephen Dedalus? Talvez a mesma de Sérgio, de tantas maneiras metamorfoseada, que leva a maioria dos leitores d‘O Ateneu a identificá-lo como núcleo do livro, como protagonista, ora estarrecidos com suas maldades, ora emocionados com sua máscara de garoto de internato à Charles Dickens. Em ambos os livros, o ambiente do colégio é imprescindível como referência aos resíduos livrescos tanto de Stephen quanto de Sérgio, e seus desdobramentos estilísticos; mas no caso deste, alimenta ainda a polarização crítica, ou melhor, moralista, em torno ao jovem narrador e à formação de sua personalidade ambígua – dentro do gênero romanesco – emoldurada na forma proteica que o disfarça entre menino ingênuo e o artífice de uma crônica cheia de malícias. Muitas leituras têm buscado, portanto, desnudar a personalidade deste garoto entre as paredes da escola, como em sendo esta o microcosmo do mundo, como diz o próprio autor, em mais uma das muitas pistas que despistam nossa leitura; poucas, no entanto, lograram ultrapassar o ambiente físico e humano do Ateneu, em busca de suas raízes míticas, ou melhor, da estrutura fabulosa onde se modela todo o procedimento de criação radical de Raul Pompéia – e onde, em verdade, não Sérgio, mas a própria linguagem se revela como protagonista. Não falta quem haja apontado indícios dessa linguagem estilística VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 254 e literalmente ―dramática‖, a exemplo da caricatura e da paródia, numa perspectiva, no entanto, apenas sociológica/ naturalista, como mero rechaço ao sistema escolar da época; o que não se faz, ou pelo menos não se tem feito expressamente – quiçá porque fazê-lo é tão radical quanto a criação deste escritor artista (e o radicalismo afugenta os gênios cautelosos da crítica literária, cada vez menos idiossincrática e nem por isso mais arguta) – é admitir O Ateneu como obra simultaneamente de tese e criação, a grande metalinguagem alegórica do gênero romanesco, estruturada em fragmentos da historiografia literária que, partindo de uma remota origem fabulosa das narrativas modernas, busca as raízes poéticas do seu gênero mais representativo: o gênero da unidade utópica da classe burguesa, da plenitude romântica, da psicologia moderna, e, por ironia, o mais fragmentário e residual de todos os gêneros – o romance. Vejam como Sérgio, enquanto personagem, desloca a vida subjetiva para o espaço dramatizado de sua luta: Apesar deste ensaio da vida escolar a que me sujeitou a família, antes da verdadeira provação, eu estava perfeitamente virgem para as sensações novas da nova fase. O internato! Destacado do conchego placentário da dieta caseira, vinha próximo o momento de se definir a minha individualidade (POMPÉIA, ibidem: 7). Quem fala é apenas uma das muitas faces de Sérgio, o clichê da criança que sai ―do conchego placentário da dieta caseira‖ ao encontro da ―verdadeira provação‖, ou seja, da luta algo epopeica em busca do tempo perdido de suas reminiscências: em busca do arquétipo mítico que lhe serve de modelo, e que o jovem narrador ardentemente emula, virgem apenas na perspectiva cronológica, mas em verdade envelhecido sob o signo do livro. Não à toa, a ―crônica de saudades‖ aqui se articula em uma espécie de dialética própria do século XIX, entre o signo romântico e o realista/naturalista (e, de modo mais remoto, em face do poema épico); entre o sonho e a realidade; entre a vida e a ficção: ou melhor, entre o lar e o internato. Daí o jogo de antíteses responsável pela sequência de contrastes que impulsionam o próprio ritmo da ―crônica de saudades‖ de Sérgio e, por fim, sua mecânica alegórica. No espaço de contrastes, o colégio se codifica como alegoria da própria desconstrução – o pensamento crítico, em crise – do romance (lembremos Bakhtin e Lukács, e imaginemo-los ―operacionalizados‖, com menos preconceitos teóricos de época e mais ousadia criativa, na ―obra‖ em si mesma, em marcha substancial e concreta...). VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 255 Todo o radicalismo dessa postura sobre o pensamento crítico/criador do romance se oculta, se disfarça, na pose ―ingênua‖ de Sérgio, que tem burlado muitos leitores alheios às artes do engenho deste que pega nas letras e armas em busca de uma personalidade que já não lhe pertence, ou que lhe pertence apenas como máscara. Ocultando a persona, resta a pessoa, a instância psicológica e social, em verdade artificiosamente emotiva, que Sérgio finge para a crença dos muitos que identificam suas emoções com as do próprio Raul Pompéia, enveredando algumas vezes por nuances psicanalíticas (as quais se viabilizariam uma vez somente se em correspondência com a matéria concreta da obra em questão). Assim, Mário de Andrade, num ensaio por demais paradoxal, reconhece que Raul Pompéia ―saiu-se com uma obra-de-arte esplêndida, filigranada, trabalhada, magnificente de graças e belezas‖ (ANDRADE, 1972: 183), uma ―obra-prima‖, não se escusando da maravilhosa sacada de tê-la como ―a última e derradeiramente legítima expressão do barroco entre nós‖. No entanto, no mesmo ensaio, Mário vê n‘O Ateneu uma acanhada perspectiva de ―caricatura sarcástica e, relativamente a Raul Pompéia, dolorosíssima, da vida psicológica dos internatos‖; ou: ―O Ateneu é um livro de vingança pessoal. Contra a vida?... Contra o internato que lhe desorientou o desejado destino?... Contra si mesmo?...‖; ou ainda: ―O Ateneu castiga o regime dos internatos. Dos internatos exatamente? Não. Um internato errado que se individualiza logo, é o Ateneu – em grande parte o colégio Abílio que é a base de inspiração do livro‖. Quando afirma que Raul Pompéia ―se vinga do colégio com uma generalização tão abusiva e sentimental que chega à ingenuidade‖, é que o autor de Macunaíma se deixa burlar de vez pela malícia de nosso pequeno herói de múltiplo caráter, que dele ri não menos sarcástico do que sua personagem tropical, proteica e igualmente alegórica. * O romance é, por si mesmo, o gênero residual da modernidade, em cujo arcabouço se debatem antigas estruturas no afã burguês, romântico, de uma forma subjetiva e unitária – remanescente, quanto à unidade, das poéticas clássicas, inclusive em torno ao gênero épico –, o que se inviabiliza desde logo pela natureza fragmentária, polifônica e híbrida do próprio romance. Na paródia dos outros gêneros, o romance ―revela o convencionalismo das suas formas e da linguagem, elimina alguns gêneros, e integra outros à sua construção VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 256 particular, reinterpretando-os e dando-lhes um outro tom‖ (BAKHTIN, 1988: 399); mas não tarda ele próprio a tornar-se convenção, limitando-se em termos de linguagem, técnica e estrutura, calcificando-se assim no discurso das escolas de época. Não estranha que, nos fins do século XIX, uma vez reconhecida sua decadência, uma vez saturado como obra de ficção, o romance se haja voltado de maneira explícita à origem poética, seja ao encontro da fábula ou do próprio viço ancestral, metafórico, da linguagem como de quando era uma vez no tempo dos antigos aedos... Essa volta é o núcleo alegórico d‘O Ateneu, sob ambos os aspectos, e muito se identifica com o cenário finissecular de sua gênese. Por conseguinte, a gênese paródica, assinalada por Bakhtin, do romance como ―gênero em formação‖, mostra-se patente desde sua origem nos romanços nacionais, glosados em verso, nas crônicas régias, e sobremaneira num Don Quijote, paródia por excelência; e ainda nesta paródia da paródia quixotesca, o Tom Jones, já dentro de um escopo romanesco que o próprio Fielding teoriza nas introduções aos capítulos, sem que escapasse à ironia machadiana, íntima das técnicas inglesas de ficção. Sérgio (assim como Stephen Dedalus) é um herói, igualmente labiríntico. Mas uma coisa é situar seu heroísmo apenas na instância da vida, ainda que reconhecendo os valores estilísticos da enunciação, as ―graças e belezas‖ da obra-prima... Ou situá-lo sim como ficção, mas ainda nos limites de uma psicologia condicionadora da personagem e da linguagem por ela enunciada, que se deixa levar pela malícia de um narrador em primeira pessoa sem perceber que no jogo antitético de clichês – por exemplo, no lugar-comum da infância fragilizada no internato – da narrativa se oculta a busca alegórica pelos arquétipos de um heroísmo muito mais antigo e as próprias fontes épicas que impregnam, como palimpsesto de ecos, a estrutura do romance moderno. Sérgio se limitaria, assim, a meras questões técnicas da ficção, como herói apenas porque personagem em primeira pessoa, onisciente e onipresente em uma narrativa ―psicológica‖: O Ateneu pode ser considerado como uma sucessão de quadros [...]. Mas, apreciadas em conjunto, essas cenas, por mais nítidas que sejam, tornamse meros elementos ilustrativos de uma figura única, a de Sérgio: este aparece indiretamente, reconstituído pelas sensações que cada episódio lhe despertara. De realistas, os quadros se fazem impressionistas, já que seu verdadeiro sentido provém, não de si mesmos, das minúcias que os compõem, mas nas reações que provocam no adolescente. A VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 257 personalidade de Sérgio, que nenhuma análise decompõe, se vai assim fixando aos poucos, como se os leitores o vissem viver. E o verdadeiro herói do livro não é o Ateneu, é esse menino que lá esteve sempre só, entre companheiros de sua idade, murado pela barreira que a timidez e o orgulho levantavam entre ele e os outros (MIGUEL-PEREIRA: 1973: p. 115). Outra coisa, no entanto, é admiti-lo herói como paradigma da própria fábula, no gesto heroico de reinventar a ficção a partir da alegoria teatral de seus resíduos históricos, acumulados numa época da escrita onde se situa o próprio romance. Ao contrário da epopeia e sua ―natureza oral e declamatória‖, o romance está ―organicamente adaptado às novas formas da percepção silenciosa, ou seja, à leitura‖ (BAKHTIN, ibidem: 397). A volta nostálgica à origem poética da linguagem, que balizou os processos de criação dos modernos, remete, pelo contrário, a uma mnemônica muito mais rica, a uma verdadeira relíquia da historiografia literária – nos termos que lhe dão Haroldo de Campos e, especificamente no que tange a O Ateneu, Leyla Perrone-Moisés53. Assim, a natureza livresca, e seus mitos calcificados no código alfabético, voltam-se cada vez mais para a imagem, naquele sentido barroco, segundo Walter Benjamin, da ruína, ou de acordo com McLuhan: ―A idéia das palavras apenas como correspondência da realidade, a idéia de combinar, é característica somente de uma cultura altamente literal em que o sentido visual é dominante‖ (MACLUHAN, 1973: 141), isto é, de uma cultura decadente, assombrada pelos espetros do passado. No século de Raul Pompéia, basta lembrarmos o Balzac de Ilusões Perdidas, e as ganas de Lucien de Rubempré por revisitar a cultura humana sob o signo da produção/ proliferação em série da tipografia; ou, no mesmo caminho enciclopédico, o Flaubert de Bouvard e Pécuchet (e o ainda mais engenhoso de Salambôo e das Tentações de Santo Antão) etc. No século XX, como alguns exemplos, o Mann de Doutor Fausto (ironicamente muito mais radical, no sentido de paródia, é o de Goethe54); Proust em busca do tempo perdido; e o Joyce de Ulysses e Finnegans Wake, esses dois amontoados de 53 Conferir, respectivamente: 1) Haroldo de Campos: ―Esta ‗estória‘ na ‗História‘ poderia também ser rebatizada como uma ‗História do epifânico‘ (protagonizada pelo ‗como‘) versus (ou paralelamente a) uma ‗história do epos‘ (cujos heróis, no nível funcional da gramática narrativa, são os verbos de ação, factivos e performativos)‖ etc. (CAMPOS, s/d: 125); 2) Leyla Perrone-Moisés, numa leitura que emparelha as retóricas e paixões de Raul Pompéia e Lautrèamont (PERRONE-MOISÉS, 1988: 19). 54 A esse propósito, vejam meu ensaio ―Goethe, o Fausto (in scena) barroco‖, in SILVA, Francisco Ivan da (org.). Colóquio Barroco, vol. I. Natal: EDUFRN, 2008, pp. 125-179. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 258 ruínas da história, protagonizados por heróis em frangalhos (sem esquecermos os dois aedos da contemporaneidade, misto de síntese formalista e lirismo polilíngue, Eliot e Pound)... Quando Walter Benjamin sublinha que O herói é o verdadeiro tema da modernité. Isto significa que para viver a modernidade é preciso uma formação heróica. Esta era também a opinião de Balzac. Assim, Balzac e Baudelaire se opõem ao romantismo. Sublimam as paixões e as forças de decisão; o romantismo sublinha a renúncia e dedicação. Essa nova concepção é muito mais complexa e rica no poeta do que no romancista (BENJAMIN, 1975: 12), lembramos que Raul Pompéia, logo às portas de sua crônica de saudades, satiriza de maneira simultaneamente poética e heroica o conceito vulgar de espaço e tempo – duas categorias intrínsecas à ―crônica‖ enquanto gênero –, deslocando-o para a metamorfose cênica, alegórica, como um alternar dramático de quadros fragmentários que, inevitavelmente, se voltam àquela origem fabulosa dos que primeiro manejaram a fábula em linguagem humana, imitando-os naquilo que foram desde logo, ou seja, poetas, então sagrados porque criadores. Raul Pompéia, votando-se de maneira paródica ao passado não histórico, ou antes trans-histórico, para logo arquetípico, por meio de seus fragmentos, desmistifica tais categorias e, enfim, a utopia neokantiana/ hegeliana de uma arte abstrata, espiritual, plena e unitária – como a estátua neoclássica, desenterrada intacta –, e mesmo de um tempo ―absoluto‖ por sua vez já desmentido como lugar-comum da ―crônica de saudades‖ que Sérgio artificiosamente encarna sob o signo romântico. Vejam como ele parodia o discurso histórico, de matiz religioso, lançando-o à derrisão para o campo dos jogos pueris: Amarguei por antecipação o adeus às primeiras alegrias; olhei triste os meus brinquedos, antigos já! os meus queridos pelotões de chumbo! espécie de museu militar de todas as fardas, de todas as bandeiras, escolhida amostra da força dos estados, em proporções de microscópio, que eu fazia formar em combate como uma ameaça tenebrosa ao equilíbrio do mundo; que eu fazia guerrear em desordenado aperto, – massa tempestuosa das antipatias geográficas, encontro definitivo e VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 259 ebulição dos seculares ódios de fronteira e de raça, que eu pacificava por fim, com uma facilidade de Providência Divina, intervindo sabiamente, resolvendo as pendências pela concórdia promiscua das caixas de pau (POMPÉIA, ibidem: 7). E outra vez se volta ao clichê de uma Idade de Ouro: Força era deixar à ferrugem do abandono o elegante vapor da linha circular do lago, no jardim, onde talvez não mais tornasse a perturbar com a palpitação das rodas a sonolência morosa dos peixinhos rubros, dourados, argentados, pensativos à sombra dos tinhorões, na transparência adamantinada da água... (POMPÉIA, idem, ibidem). Desmistificando, por conseguinte, o discurso histórico, de modo autocrítico, e acionando assim, dentro de seu próprio discurso, a constante dialética acirrada no século XIX entre o sonho e a realidade, a história e a ficção, a vida e a arte: Eufemismo, os felizes tempos, eufemismo apenas, igual aos outros que nos alimentam, a saudade dos dias que correram como melhores. Bem considerando, a atualidade é a mesma em todas as datas. Feita a compensação dos desejos que variam, das aparições que se transformam, alentadas perpetuamente do mesmo ardor, sobre a mesma base fantástica de esperanças, a atualidade é uma. Sob a coloração cambiante das horas, um pouco de ouro mais pela manhã, um pouco mais de púrpura ao crepúsculo – a paisagem é a mesma de cada lado beirando a estrada da vida (POMPÉIA, ibidem: 6). O herói moderno é melancólico, pessimista, justo porque se desengana com a imortalidade, apenas sonhada na feira das vaidades do velho Aristarco... A ―formação heróica‖ do artista moderno evoca, pois, antigos modelos, tanto da iconografia literária quanto da própria forma da linguagem estética, sabendo-os desde logo não como verdades absolutas, mas sim artifício estético; modelos, por conseguinte, já desgastados seja pelo uso ou pelo próprio tempo, que satura o sentido das coisas e as deforma, soterrando-as com seu entulho, o que se mostra patente nas próprias línguas. Resta-lhe a caricatura: ―O artista VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 260 exagera, no contrário disto, o momento presente, e dissolve-se na visão literária. Nessa decomposição de suas forças pela obra de arte, e no contraste que resulta desse estado, com a aspereza do ambiente, reside todo o preconizado pessimismo dos tempos atuais‖ (ARARIPE JÚNIOR, 1978: 151). O heroísmo de Sérgio assemelha-se, assim, ao gesto arqueológico de sua época: ―O herói cultural empreende relatar seu mundo à realidade pelos labores hercúleos de sondagem, recuperação e purgação‖ (MCLUHAN, ibidem: 137). O romancista, heroico como um poeta, volta-se às formas antigas, que em sua origem correspondiam à linguagem fabulosa do mito, um dia apoteótica na poesia e já estéril na prosa de ficção, no gênero por si mesmo saturado e residual que é o romance. A frase que Sérgio ouve do pai ―biológico‖, às portas da vida, na verdade traduz dentro do romance – em termos de dramatização alegórica – o eco de uma paternidade arquetípica, ambientada e atualizada no espaço pluridimensional do Ateneu, cuja síntese é a imagem do próprio Aristarco. Sabemos, lição barroca: ―o absolutamente singular, a pessoa, se multiplica no alegórico‖ (BENJAMIN, 1984: 217). No que se refere a Sérgio, o herói, O Ateneu se abre de maneira apoteótica, como a forma de um sonho fantástico, tão fascinante e artificial quanto um mural de biscuit, e não mais verossímil: Eu me sentia compenetrado daquilo tudo; não por entender bem, como pela facilidade da fé cega a que estava disposto. As paredes pintadas da ante-sala imitavam pórfiro verde; em frente ao pórtico aberto para o jardim, graduava-se uma ampla escada, caminho do andar superior. Flanqueando a majestosa porta desta escada, havia dois quadros de altorelevo; à direita, uma alegoria das artes e do estudo; à esquerda, as indústrias humanas, meninos nus como nos frisos de Kaulbach, risonhos, com a ferramenta simbólica – psicologia pura do trabalho, modelada idealmente na candura do gesso e da inocência. Eram meus irmãos! Eu estava a esperar que um deles, convidativo, me estendesse a mão para o bailado feliz que os levava. Oh! que não seria o colégio, tradução concreta da alegoria, ronda angélica de corações à porta de um templo, dulia permanente das almas jovens no ritual austero da virtude! (POMPÉIA: 1905, 13). VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 261 Sérgio ainda é, ou se faz, dominado pela fé cega da inocência, em contraste dialético contra a qual logo se mostrará a metamorfose da ronda angélica de corações ainda ―virgens‖ para a luta vaticinada à porta do colégio, enfim levada a cabo na tradução mais concreta do Ateneu – ou seja, na própria alegoria, pictórica, ou mesmo ―combinação esplêndida da beleza da forma com a suprema plenitude do ser‖ a qual, ―porque chegou à sua mais alta expressão na escultura grega, pode ser chamado o símbolo plástico‖ (BENJAMIN, 1984: 186). Desde então, desmistificado o símbolo romântico, despojada a infância das vestes angelicais, Sérgio experimenta a melancolia da realidade do internato, que lhe exige não menos a manha humana do que as letras e armas do artifício artístico (lição acirrada a partir do segundo capítulo do livro e, sobretudo, do terceiro, junto ao mentor mefistofélico, o Sanches). Vemos o amadurecimento de um menino, quiçá autobiográfico; mas em verdade o que se projeta é o próprio romance em sua decadência, que o narrador busca atualizar desde a estrutura narrativa aos artifícios da linguagem, numa volta utópica à origem poética onde bebe sua narrativa ―pessoal‖, como uma criança fascinada frente ao espetáculo de um livro de figuras, de um Tesouro da Juventude: Na ocasião em que me ia embora, estavam acendendo luzes variadas de Bengala diante da casa. O Ateneu, quarenta janelas, resplendentes do gás interior, dava-se ares de encantamento com a iluminação de fora. Erigiase na escuridão da noite, como imensa muralha de coral flamante, como um cenário animado de safira com horripilações errantes de sombra, como um castelo fantasma batido de luar verde emprestado à selva intensa dos romances cavalheirescos, despertado um momento da legenda morta para uma entrevista de espectros e recordações. Um jato de luz elétrica, derivado de foco invisível, feria a inscrição dourada [ATHENAEUM] em arco sobre as janelas centrais, no alto do prédio (POMPÉIA, ibidem: 19-20) Mas logo se desvanece o brilho de papel de bala, o sonho se mostra tão verdadeiro quanto os ideais camuflados no alto-relevo de gesso, ou seja, tão convencional quanto o próprio símbolo, e assim como este, inexoravelmente perecível. No Ateneu, tudo lembra fingimento, e o próprio Aristarco, uma estátua. Uma imagem que se vende primeiro como onipotente: VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 262 A uma delas, à sacada, Aristarco mostrava-se. Na expressão olímpica do semblante transpirava a beatitude de um gozo superior. Gozava a sensação prévia, no banho luminoso, da imortalidade a que se julgava consagrado. Devia ser assim: - luz benigna e fria, sobre bustos eternos, o ambiente glorioso do Panteon. A contemplação da posteridade embaixo (POMPÉIA, ibidem: 20). Para logo cair em derrisão: Uma hora trovejou-lhe à boca, em sanguínea eloqüência, o gênio do anúncio. Miramo-lo na inteira expansão oral, como, por ocasião das festas, na plenitude da sua vivacidade prática. Contemplávamos (eu com aterrado espanto) distendido em sua grandeza épica – o homem sandwich da educação nacional, lardeado entre dois monstruosos cartazes. Às costas, o seu passado incalculável de trabalhos; sobre o ventre, para a frente, o seu futuro: o reclame dos imortais projetos. (POMPÉIA: ibidem, 25). O primeiro capítulo d‘O Ateneu foi todo um sonho; mas a ―realidade‖ que Sérgio aos poucos descobre não é menos fabulosa, apenas deliberadamente híbrida de traços da circunstância enunciativa e de outra, um tempo próprio da obra de ficção. Uma das consequências dessa dialética, sob o signo da alegoria e do fragmento, é a plasticidade com que Sérgio reinventa a própria vida, a exemplo da ininterrupta caricatura que faz de Aristarco: Nas ocasiões de aparato é que se podia tomar pulso ao homem. Não só as condecorações gritavam-lhe do peito como uma couraça de grilos: Ateneu! Ateneu! Aristarco todo era um anúncio. Os gestos, calmos, soberanos, eram de um rei – o autocrata excelso dos silabários; a pausa hierática do andar deixava sentir o esforço, a cada passo, que ele fazia para levar adiante, de empurrão, o progresso do ensino público; o olhar fulgurante, sob a crispação áspera dos supercílios de monstro japonês, penetrando de luz as almas circunstantes – era a educação da inteligência; o queixo, severamente escanhoado, de orelha a orelha, lembrava a lisura das consciências limpas – era a educação moral. A própria estatura, na VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 263 imobilidade do gesto, na mudez do vulto, a simples estatura dizia dele:aqui está um grande homem... não vêem os côvados de Golias?!... Retorça-se sobre tudo isso um par de bigodes, volutas maciças de fios alvos, torneadas a capricho, cobrindo os lábios fecho de prata sobre o silêncio de ouro, que belamente impunha como o retraimento fecundo do seu espírito – teremos esboçado, moralmente, materialmente, o perfil do ilustre diretor. (POMPÉIA, ibidem: 23) E enfim conclui: ―Em suma, um personagem que, ao primeiro exame, produzia-nos a impressão de um enfermo, desta enfermidade atroz e estranha: a obsessão da própria estátua‖. Nada mais semelhante, nem menos atual, do que a perspectiva de McLuhan sobre a reciclagem de lugares-comuns e sua revitalização em novos discursos: ―Qualquer clichê, levado a um alto estágio, é desprezado em favor de um novo clichê que pode ser a ressurreição de um antigo, por exemplo, um velho clichê como um novo arquétipo = arquétipo como novo clichê‖ (MCLUHAN, ibidem: 69); ou: ―Esses resíduos verbais das tecnologias primordiais do homem ilustram a maneira pela qual se desenvolve um clichê. Qualquer extensão da vida sensorial, tal como o cão ou o automóvel, imprime numerosos clichês em qualquer linguagem, estendendo seu alcance como sonda‖ (MCLUHAN, ibidem: 75); ou ainda: ―Inicialmente todo clichê é uma ruptura para dentro de uma nova dimensão de experiência‖ (MCLUHAN, ibidem: 77). Aí está como Raul Pompéia vai do clichê de um ridículo diretor de colégio do Segundo Império ao arquétipo da figura aristocrática, mítica, de Aristarco. Aí está um exemplo fecundo do culto barroco de Pompéia pelas ruínas... Observem a sagacidade hieroglífica do poeta, quando une ao signo pictórico, à imagem – a caricatura, ou seja, a ruína da origem –, o signo alfabético, a palavra, criptografando assim, por meio de anagrama, os fragmentos de Aristarco Argolo de Ramos: a) arist (do gr. áristos)/arco (do gr. arkhê), literalmente, ―origem do melhor poder‖, ou seja, do poder aristocrático dos homens primevos (um aspecto de ordenamento e hierarquia intrínseco não apenas à organização social, de genes, mas também à própria ordem alfabética, que sucedeu às linguagens icônicas dos primitivos); b) argolo (do gr. argós), ―brilhante‖, ―alvo‖, ―branco‖, com acepção de fama e pureza, como se do papel ―em branco‖ onde nada houvesse sido escrito, donde se derivam, também, ―argila‖, o barro adônico, moldado originalmente pelo Criador, que pode ganhar feição demoníaca se o do que deu forma ao que primeiro se rebelou VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 264 contra Ele, ou ―argentado‖, o brilho da prata, em parte com ideia apenas de brilho, mas igualmente da usura monetária dos povos em geral e do diretor em particular, o valor de troca e combinatória do dinheiro, algo próprio da civilização e também muito parecido com a ordem alfabética, ou também de ―argumento‖, ―argúcia‖, ―agudeza‖, característica tanto do matreiro mestre de meninos quanto dos que primeiro manejaram a linguagem humana, os quais, por serem engenhosos, falaram a linguagem poética, isto é, simulada; c) ramos (do lat. rámus), árvore ―que gera frutos‖, cópias, ou raiz ―genealógica‖ etc. Esta última raiz latina, por conseguinte, lembrar-nos-ia desde os ramos, os louros no arroz dos que manejam letras e armas, nos tempos de Horácio e Virgílio, aos poetas e heróis, à cidade eterna, Roma, incinerada assim como o Ateneu. Mas nela está cifrada outra cidade, Samos, outro nome de Samotrácia, ilha do Chipre onde nasceu o primeiro Aristarco, gramático e filólogo do século II a. C., primeiro crítico do texto homérico, por ele compilado. Muitas são as inferências arqueológicas a tal personagem... Aquela passagem, quando sintetiza a antes aparição homérica de Aristarco, agora como ―o homem sandwich da educação nacional, lardeado entre dois monstruosos cartazes‖, elucida bem a dialética entre as categorias de ―romance de personagem‖ e ―romance dramático‖, segundo Edwin Muir, as quais muito se adéquam à alegorização do Ateneu: O romance de personagem [...] preocupa-se de imediato apenas com a exibição externa da realidade e encerra, sob isso, não algo correspondente a ela mas algo relativamente incôngruo com ela. O romance de personagem revela o contraste entre aparência e realidade, entre as pessoas como elas se apresentam à sociedade e como elas são. O romance dramático mostra que tanto a aparência como a realidade são idênticas, e que o personagem é a ação e a ação, personagem (MUIR, s/d: 24-25). Um jogo antitético entre realidade e ficção que permite, não à toa, que Sérgio largue os brinquedos e corte os cachinhos dourados, como se fosse outro que não ele mesmo, o próprio Telêmaco no episódio homérico com Minerva, ou melhor, com o caricato Aristarco: ―Como se chama o amiguinho?‖ perguntou-me o diretor. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 265 – Sérgio... – dei o nome todo, baixando os olhos e sem esquecer o ―seu criado‖ da estrita cortesia. – Pois, meu caro Sr. Sérgio, o amigo há de ter a bondade de ir ao cabeleireiro deitar fora estes cachinhos... Eu tinha ainda os cabelos compridos, por um capricho amoroso de minha mãe. O conselho era visivelmente salgado de censura. O diretor, explicando a meu pai, acrescentou com o risinho nasal que sabia fazer: ―Sim, senhor, os meninos bonitos não provam bem no meu colégio...‖ (POMPÉIA, ibidem: 23). A passagem suscita muitos pruridos psicanalíticos, que se ouriçam ainda mais com a entrada da personagem feminina, a mulher do diretor, Ema, misto edipiano de mãe e primeira amante dos amores intransitivos de Sérgio, a qual, semelhante à canarina Ângela, conduz de propósito a leituras maliciosas, de ranço naturalista. Mas tais pruridos, em respeito ao próprio substrato mítico da ciência freudiana, logram êxito apenas se apercebidos da intenção estritamente artística de Raul Pompéia na arqueologia das fontes míticas. A memória de Homero, não nos parece demasiado crê-lo, ilustra explicitamente o ricorso à origem épica do romance, coisa que poucos leitores têm percebido: ―Sérgio terá, então, a ocasião de testar o ‗caráter‘ de sua identidade. Temos, portanto, de um lado, Sérgio face à forma do ‗mito‘ [...]‖, ou ―Sérgio já se revela conhecedor das formas do mito; e faz uso delas na ocasião de seu encontro com o Diretor‖ (SILVA, s/d: 122). É uma perfeita identidade híbrida entre modulações de velhos discursos e seus respectivos tons poéticos na estrutura ―dramática‖ do romance moderno: As qualidades conhecidas dos personagens determinam a ação, e a ação, por sua vez, modifica de maneira progressiva os personagens e assim tudo é impelido para diante em direção a um fim. No seu ponto máximo a afinidade do romance dramático se dá com a tragédia poética, exatamente como a do romance de personagem com a comédia. O diálogo [...] mal se distingue da elocução poética; as figuras mais memoráveis [...] estão sempre à beira de se tornarem figuras puramente cômicas [...] (MUIR, s/d: 21-22). VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 266 As saudades heroicas de Sérgio, evocando o mundo das origens, o mundo dos pais ancestrais, o mundo dos primeiros e dos melhores – como o da epopeia – deslocam-se assim à fonte épica, que ―atua somente para os descendentes como um poema sobre o passado‖ (BAKHTIN, ibidem: 405). Diante de Aristarco, Sérgio se porta como um descendente que se rebela contra a paternidade hierática, ―baixando os olhos e sem esquecer o ‗seu criado‘ da estrita cortesia‖. Aristarco, gabando-se da superioridade, apaixonado pela própria estátua, delicia-se na ―chusma por alter-egos, glorificado por uma multidão de si-mesmos‖. Mas logo o filho subverterá as influências, e quem primeiro sofre a subversão é o próprio Aristarco, pai ancestral de nosso pequeno herói, tão logo arrastado à derrisão caricaturesca. Os dois chegam mesmo ao embate físico, na verdade alegórico, entre pai e filho: – Sérgio, ousaste tocar-me! – Fui primeiro tocado! repliquei fortemente. – Criança! feriste um velho! Reparei que havia no chão fios brancos de bigode. – Fui vilmente injuriado, disse. – Ah! meu filho, ferir a um mestre é como ferir ao próprio pai, e os parricidas serão malditos! (POMPÉIA, ibidem: 191). Sérgio, embora impressionado ―até o íntimo da alma‖ com o desgosto do mestre, e uma vez delegado ao ―abutre‖ da consciência ―o encargo da sua justiça e desafronta‖, valese de uma digressão narrativa para desmistificar o mito: ―Hoje penso diversamente: não valia a pena perder de uma vez dois pagadores prontos, só pela futilidade de uma ocorrência, desagradável, não sem dúvida, mas sem testemunhas‖. Que ―hoje‖ problemático em um romance artístico! Aristarco, por um lado, é o mestre, o melhor de uma estirpe aristocrática e hierática; por outro, é o simples diretor de colégio, que Sérgio desmistifica em várias passagens por meio da caricatura, a exemplo desta maravilhosa síntese metafórica que o mostra como ―o homem sandwich da educação nacional, lardeado entre dois monstruosos cartazes‖. A perspectiva do heroísmo de Sérgio, sob o signo da modernidade, leva-nos ao caminho não menos melancólico dos que, desenganados com a verdade prometida pelas ciências sociais e tecnológicas oitocentistas, voltam-se para o regaço da fábula, ao tempo VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 267 primitivo da linguagem poética. O caminho da decadência. Os decadentes, nostálgicos do passado, revisitaram-no todavia de maneira muito diversa do romantismo neokantiano/ hegeliano; mas igualmente seduzidos por aquelas promessas que emergiram no início do século XIX, para findá-lo desenganadas, melancólicas, voltadas outra vez – lição viquiana – ao dialeto fabuloso dos antigos. Um ensaio de Oscar Wilde ilustra bem esse momento cultural, que é o mesmo da gênese d‘O Ateneu, quando, analisando a ―decadência da mentira‖, mostra-se igualmente nostálgico da forma fabulosa dos antigos narradores, a exemplo de Heródoto, não obstante metonímia da historiografia, também ―o Pai das Mentiras‖. Eis como Wilde lamenta a gana verídica de sua época: ―Não somente os fatos se introduzem na história, mas usurpam o domínio da Fantasia e invadiram o reino do Romance‖ (WILDE, 1961: 1081). Ou, de maneira ainda mais epigramática: A literatura sempre se antecipa à vida. Não a copia, mas a modela à sua vontade. O século XIX, tal como o conhecemos, é largamente uma invenção de Balzac. [...] Não fazemos mais do que praticar – com notas ao pé da página e com acréscimos inúteis – o capricho, a fantasia ou a visão criadora de um grande romancista (WILDE, ibidem: 1085). Balzac criou a vida, não a copiou; não se valeu assim do realismo sem imaginação, ou do naturalismo de tese, ambos então em voga, mas de uma realidade imaginada: segundo Wilde, não cometeu o erro fatal de utilizar a vida como método – como um realista/naturalista –, senão apenas como matéria moldável pelo gênio artístico. Opinião que também era de Baudelaire, uma das influências diretas sobre Raul Pompéia e, assim como Flaubert, um dos ícones do Decadentismo. Os primeiros leitores d‘O Ateneu não titubearam em identificar os matizes decadentistas do livro de Pompéia, dentre os quais, o da prosa poética, o velo de ouro do herói moderno. A obsessão de Raul Pompéia pela forma poética mesura toda sua prosa, estruturando os outros gêneros por ele exercitados, seja o teatro, a novela, a crônica, a crítica de arte e, sobretudo, seu único romance. Uma obsessão mais visível nas Canções sem metro, mas que se codifica de maneira importantíssima na estrutura ―vibrante‖ e ―colorida‖ d‘O Ateneu. Eis como o sublinham: ―Quem quiser captar decassílabos e alexandrinos no estilo de Pompéia encontrá-los-á em toda a parte de suas obras, sobretudo em ‗O Ateneu‘, mas em certos trechos desse romance é que o VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 268 número cedeu a uma fluidez mais característica de impregnação simbolista‖ (GOMES, 1958). Vejam um Huysmans: O estilo vívido e sumamente maneiroso de Huysmans, com os seus arcaísmos, a sua aglomeração de epítetos, a um tempo rico e recherché, a sua grande cópia de imagens visuais, vinham apresentar uma espécie de santo do estetismo, que abrira mão de todas as distrações normais da vida social, afim de arder, tal como Pater, com a chama viva e fugaz da sensibilidade estética (LAVER, 1961: 22). E, outra vez, Wilde: A arte começa com uma decoração, com um trabalho puramente imaginativo e agradável, aplicado ao irreal e ao não existente. É esta a primeira etapa. Depois a Vida, fascinada por esta nova maravilha, solicita sua entrada no círculo encantado. A Arte toma a vida entre seus materiais toscos, cria-a de novo e torna a modelá-la em novas formas e com uma absoluta indiferença pelos fatos, inventa, imagina, sonha e conserva entre ela e a irrealidade a intransponível barreira do belo estilo, do método decorativo ou ideal. A terceira etapa se inicia, quando a vida predomina e atira a Arte ao deserto. Esta é a verdadeira decadência e é por isso que sofremos atualmente (WILDE, 1961: 1079). Vejam agora como nesses decadentes identificamos muito da ―sensibilidade estética‖ de Raul Pompéia. Eis o panorama onde melhor podemos situar a psicologia estética, segundo Araripe Júnior, de Raul Pompéia no século XIX e que o projeta, por conseguinte, no diálogo com autores da mais sofisticada modernidade, a exemplo de James Joyce. Desmistificada a leitura naturalista d‘O Ateneu, que toma o internato por simulacro sociológico a partir do qual o autor vilipendiaria o mundo, desmistifica-se também a que se ocupa de Sérgio como autobiografia de Raul Pompéia, leitura esta incompatível com o próprio caráter protéico da personagem. A revisão de uma obra guarda surpresas, algo como relíquias. Hoje, por meio de certo distanciamento, é possível averiguar como O Ateneu logrou, tão logo publicado, a recepção esclarecedora e até hoje singular destes titãs da crítica literária nacional, Araripe Júnior e Sílvio Romero. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 269 Sílvio, embora lendo o livro de Raul Pompéia tão logo de sua publicação, em pleno frenesi naturalista, teve a sensibilidade escassa na maioria das críticas imediatas, e mesmo em algumas leituras posteriores desse livro, de justamente distingui-lo de certos caracteres daquela escola com os quais, segundo ele, opor-se-ia a crônica de saudades de Sérgio. O crítico sublinha, primeiro, as ―belas qualidades estilísticas‖ (ROMERO, 1949: 436) do autor, seja no bem manejar ―a difícil arte da prosa‖, seja no construí-la a partir do ―brilho, no cintilar das frases‖ (ibidem, 447-448). O mais curioso, no entanto, está nas refutações idiossincráticas contra a escola naturalista, que se adéquam tanto à perspectiva alegórica quanto ao entendimento da obra de arte ―como estilo‖ que vemos patente em Raul Pompéia e sintetizada na figura de Dr. Cláudio. Quando aponta a ―intuição monística‖ do século XIX, o século da historiografia arqueológica, em mostrar a ―continuidade, a unidade de todos os fatos, de todos os fenômenos, que são o objeto da ciência‖ (idem, 255), intui sobre uma perspectiva muito barroca. Se pensarmos tal continuidade não como algo que se repete de maneira uniforme, mas ainda que se transformando, continua a movimentar-se (algo que Bakhtin apontou no romance, como ―gênero em formação‖, e tanto Pompéia quanto Joyce o praticaram como ―obra em progresso‖), se pensarmos enfim na correspondência cíclica dos fragmentos históricos, podemos a leitura de Sílvio Romero quando, por conseguinte, a confrontamos com os discursos do Dr. Cláudio, segundo o entendimento da arte como obra social, que em vez de se educar pela natureza, termina educando-a. Dr. Cláudio, por um lado, afirma: ―Arte, estética, estesia é a educação do instinto sexual‖. Sílvio Romero, por outro: A natureza não tem arte; a arte é um produto da cultura humana. [...] A teoria de Zola fere o princípio fundamental de ser a evolução, o desenvolvimento, o fieri perpétuo da humanidade o resultado justamente de uma luta contra a estreiteza, contra a esterilidade da natureza; desconhece o combate da cultura contra a natura (ROMERO, ibidem: 256). E segue: Tudo quanto de elevado e grandioso tem a humanidade produzido é um resultado dessa luta, desse combate diuturno. A civilização é o coeficiente desse esforço. O homem natural é o das cavernas, o coevo do VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 270 megatério e do mamute. O homem pode ser definido o animal que faz estátuas, músicas, edifícios e poemas. É o animal que faz livros (ROMERO, ibidem: 256-257). Essa perspectiva é o contrário do que ensejou o Romantismo, o Realismo, o Naturalismo... Aqui, a psicologia humana em vez de educar o livro, educa-se nele. Ou, segundo Wilde (ibidem: 1082), a verdade da vida se educa na fantasia da arte, qual a do primeiro mentiroso que, nos tempos primitivos, sem haver ido à caçada, falou aos seus como pelejou com o megatério... Eis a educação sentimental do romance, por exemplo, no autor destas duas fábulas que partem do excremento histórico para a vida moderna, e vice e versa, que são Bouvard e Pécuchet e Salambôo. Quando Raul Pompéia delineia uma personagem como Ângela, reiteremos, na qual muitos notam o exemplo perfeito do naturalismo (como o fez Mário de Andrade), fá-lo também sob o signo da caricatura, da ironia. Não é o caso de um objeto de tese, ou rechaço ao mundo sexual do internato, tampouco a válvula autobiográfica que desenha, de jeito igualmente artificioso, a figura feminina como se a não conhecesse... Nesse desenho caricato o que funciona é a personagem, não a vida; e o autor deliberadamente a modela como se uma cigana, uma Carmem das óperas. Mostra-se a sabedoria, tão velha quanto muitas vezes esquecida pelo século XIX, de que ―a arte não consiste na imitação exata e completa dos fatos e sim na das simples relações necessárias‖ (ROMERO, ibidem: 257). * Enquanto Victor Bérard busca a veracidade da cartografia homérica, sob o frisson historiográfico do século XIX, James Joyce deliberadamente a reinventa no século XX sobre o concreto de uma cidade moderna e, em muitos aspectos, comezinha, escavando assim no demasiadamente humano a forma arquetípica do mito. A forma moderna almejada por Joyce se delineia num acúmulo de ruínas literárias, num palimpsesto de fábulas e resíduos etimológicos que lhe permitem atualizar, dentro da estrutura já decrépita da linguagem literária e, em particular, do romance, os passos épicos de Ulisses. Pouco importa se o códice de antigos escoliastas – de algum Aristarco de Samos, por exemplo – ou a trivial novela de Charles Lamb: em outras palavras, não importa a verdade, mas a fábula, a obra de ficção. Sabemos o quanto Stephen apreciava Wilde; muitos resíduos da VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 271 decadência finissecular apregoada nos aforismos daquele esteta se abeiram da obra joyceana, sobretudo no A portrait of the artist as a young man, de 1916. Também aqui, assim como n‘O Ateneu, a escola se abre como espaço saturado de referências culturais onde o jovem herói moderno trava, cheio de utopias românticas, mas também de malícia sarcástica, a luta pela sua própria identidade. A identidade se torna heróica como reciclagem – como queira McLuhan – das muitas técnicas modernas, dentre as quais a da ficção, como já dito, sob o signo da escrita e da tipografia. No périplo de sua aventura para as páginas do Ulysses, de 1922, Stephen Dedalus infla o peito como um Teseu vitorioso, invocando ao Criador boas alvíssaras na busca do que ele chama ―a forma ainda não moldada‖ de minha raça – ou melhor, a forma artística já impossível no romance, senão estraçalhado como no Finnegans Wake, em todo caso uma forma em contínuo devir, ou obra em progresso como o próprio romance... O signo viqueano, barroco, do ricorso às ruínas ancestrais, é importantíssimo no entendimento histórico a partir do século XIX, contrapondo o espiritualismo romântico, neo-hegeliano e neokantista de uma unidade infinita à compreensão barroca da história como ruína revisitada por Walter Benjamin, que sintetiza toda a crise não apenas conceitual como formal da contemporaneidade e sua própria ausência de forma. Daí a identificação dos contemporâneos, a partir dos impressionistas e decadentes, com o barroco no que este implica, em parte, de fragmentação e metamorfose, mas também de uma apoteose da forma não como verdade, mas antes como artes do engenho, criação artística (ou, como lembrado por alguns leitores, dentre os quais Machado de Assis, da écriture artiste que Raul Pompéia apreende de seu panorama, a partir dos Goncourt). A decadência dos séculos XIX e XX reitera o limite das civilizações assinalado por Vico, quando estas atingem o acúmulo – o acúmulo técnico, científico, cultural da burguesia democrática –, saturando-se, até se voltarem à decadência, devorando-se umas as outras, enfim, arruinando-se. A linguagem, primeiro código das civilizações, é quem primeiro o denota, tornando-se estéril pelo uso, algo como o lixo de uma lixívia. A cultura, por demais civilizada, como se cristaliza e quebra, voltando outra vez ao caos de sua origem. Nessa volta – que segundo McLuhan implica na reciclagem do lixo civilizatório – ganha vulto outra vez o poeta, aquele que se distingue porque inventa e, por isso mesmo, se reveste das formas heróicas do mito. O poeta é o herói da modernidade porque inventa, mas já não inventa como nos tempos VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 272 arcaicos, fingindo a natureza; resta-lhe agora fingir a partir dos próprios detritos da história, ou seja, reciclando a ruína. Flaubert foi mestre disso. Não é difícil perceber como a vida, a social e biológica, e não menos a verdade histórica, deixam-se negligenciar nas páginas d‘O Ateneu, em favor da invenção. Uma olhadela num fragmento do discurso do Dr. Cláudio: ―Extasia, educação do instinto sexual‖. Além de uma espécie de alter ego do pensamento estético de Raul Pompéia, Dr. Cláudio sintetiza um núcleo teórico que se realiza em todo o romance, do começo ao fim. No século de Raul Pompéia, ou melhor, na decadência finissecular quando publica O Ateneu, todos os meios sociais da elite se empanturram das últimas tecnologias. É a sociedade de Dom Pedro II, um entusiasta do progresso das civilizações (ao passo que um dos primeiros a escavar o passado). A escola, que se apresenta como microcosmo formador da sociedade, não deixa também de consumi-las. O próprio Aristarco se arvora a última tendência da pedagogia moderna. Os manuais didáticos, os aparelhos científicos e ginásticos etc., tudo no Ateneu rescende a novidade... Menos o diretor, que Sérgio descreve tão decrépito como uma múmia engalanada de condecorações por seu labor pedagógico, imortal e também ―heróico‖; enfim, como uma ―couraça de grilos gritando ao peito‖. Sob toda a casca de plaquê do Ateneu jazem as raízes de sua antiguidade arquetípica, a única que dá sentido aos clichês, caricaturas, metáforas e, por fim, a todo o mecanismo alegórico da supostamente ingênua, ou despeitada, crônica de saudades de Sérgio. Nisto reside a identificação do poeta, como inventor de linguagem, com o herói mítico: ―O inventor, o descobridor de novas formas e novas tecnologias, era, para o homem arcaico, alguém que era mais que um homem [...]. Para o homem arcaico a linguagem é algo que conjura de imediato a realidade, uma forma mágica‖ (MACLUHAN, 1973: 141). Sobretudo quando dos alfabetos, e sua organização automática, permanecer inventando sobre o código social era algo apenas do poeta. O heroísmo de Sérgio se identifica, assim, com os antigos poetas os quais, algo divinos, algo míticos, manejavam as forças criativas da linguagem. O poeta, como inventor de linguagem, se identifica com o herói mítico: ―O inventor, o descobridor de novas formas e novas tecnologias, era, para o homem arcaico, alguém que era mais que um homem [...]. Para o homem arcaico a linguagem é algo que conjura de imediato a realidade, uma forma mágica‖ (MACLUHAN, ibidem: 141). Ou: ―A sacralização do arquétipo foi trabalho do homem civilizado com sua perspectiva literal e histórica‖ (idem, ibidem: 144). O romântico almeja a estátua; o decadente, neobarroco, o pedaço de VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 273 mármore. O primeiro se lança ao encontro de sua personalidade; o segundo põe a máscara, e outra vez mente... Quando Sérgio se mostra um romântico, na verdade é o clichê que ele incorpora, é o fragmento que ele submete ao processo de suas colagens, digna de um estilo que levou a considerá-lo última expressão de um barroco tardio entre nós (bem, não esqueçamos os sertões de Euclides da Cunha e Guimarães Rosa...). Naquela ―fonte espiritual‖, aonde afluía ―a fina flor da sociedade brasileira‖, bebe Sérgio, o protagonista, e com ele, nós leitores; mas é preciso sondar com mais perícia justamente a água turva, prolífera, cheia de microorganismos sígnicos, na qual a imagem narcisista de um narrador em primeira pessoa, supostamente inteiriço, se quebra dentro do discurso literário, multiplicada já em estilhaços e modulações que se metamorfoseiam a todo instante em imagens outras, especulares. Sérgio é a voz onipresente e onipotente desta ―crônica de saudades‖, mas não a única, ou melhor, uma voz polifônica, impregnada de outros discursos, de ecos remissivos à origem da própria obra de ficção: nostálgico, de maneira dramática, das fontes primevas da fábula. À crítica resta voltar-se a essa origem, manejando os resultados positivos de sua pesquisa (e há vários, dos primeiros aos mais recentes críticos, no sentido da compreensão do valor estético de Raul Pompéia) e entendêla como vital ao processo de criação deste livro. O Ateneu é, simultaneamente, uma tese e uma obra de criação, ou seja, uma metalinguagem do discurso literário em geral e do romance em particular, que decompõe a historiografia literária por meio de processos fragmentários como a paródia e a caricatura, resultando daí quadros sintéticos, fragmentos alegóricos que ao mesmo tempo ilustram e materializam o pensamento estético do autor por meio de múltiplos artifícios verbais e imagéticos. Não seria demais evocar para O Ateneu as referências de Edwin Muir a respeito da saga em busca do tempo perdido de Marcel Proust, quanto à epopeia deste como uma ―coleção de outros romances dramáticos e de personagens entretecidos uns com os outros‖, segundo ele, ―com um fim não na ação externa, mas na mente do autor: antes o fim de uma busca do que de um conflito‖ (MUIR, s/d: 73). O incêndio pode não resultar de um ―conflito‖ em parte dispensável dentro do enredo (BARBOSA, 2000: 16), mas inegavelmente sucede a uma sequência de conflitos estruturais e imagéticos entremeados no plano expressivo da linguagem de Sérgio. Outrossim, resulta da busca nostálgica deste jovem aedo pela origem poética do romance a qual, sabemos, é o texto épico, lançado em sua crônica de saudades desde o signo da ―luta‖; um intertexto ou palimpsesto que termina, VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 274 sempre, sobre ruínas, como já notado, e que vale reiterar, em relação ao tempo no romance dramático ou, melhor, dramatizado: O sentimento de tempo, então, pode ser amplamente dissimilar em diferentes romances dramáticos; nossa captação do fim para o qual ele se movimenta pode ser definida ou indefinida; a marcha da ação pode ser mais lenta ou mais rápida, mas talvez se tenha dito o suficiente para mostrar que a sensação de tempo esgotando-se dá a verdadeira margem à emoção dramática. No romance dramático, pois, como em toda a literatura dramática, o tempo se move e, portanto, vai mover-se para seu fim e destruir-se (MUIR, s/d: 46). Ou ainda: O final de qualquer romance dramático será uma solução do problema que põe os eventos em movimento; a ação específica terá se completado, produzindo um equilíbrio ou resultando em alguma catástrofe que não pode ter prosseguimento por mais tempo. equilíbrio ou morte, estes são os dois finais em direção aos quais se move o romance dramático (MUIR, s/d: 3132). Eis Aristarco sobre o ―desastre universal de sua obra‖. E nós ante as ruínas do espetáculo... Neste livro, é preciso vê-lo com olhos de artista, Raul Pompéia evoca a origem poética da linguagem literária – aí sim, não se tem percebido tal radicalismo, tal beleza! – por meio de uma mecânica que desloca a circunstância enunciativa de Sérgio, o narrador ―psicológico‖, para uma voz arquetípica, ou polifonia, por meio das artes do engenho de um barroco moderno que revisita o pensamento estético da linguagem, materializando-o na estrutura, na forma outra vez apoteótica – como se uma rapsódia epopeica – deste resíduo da fábula, o romance. REFERÊNCIAS ANDRADE, Mário de. ―O Ateneu‖, in ANDRADE, Mário de. Aspectos da literatura brasileira. São Paulo: Martins Editora, 1972. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 275 ARARIPE JÚNIOR, Tristão de Alencar. ―Raul Pompéia, ‗O Ateneu‘ e o romance psicológico‖, in ARARIPE JÚNIOR, Tristão de Alencar. Teoria, crítica e história literária. Org. Alfredo Bosi. [?] EDUSP, 1978. BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e estética: a teoria do romance. São Paulo: UNESP/Hucitec, 1988. BARBOSA, João Alexandre Barbosa. ―O Ateneu, de Raul Pompéia‖, in Cult, revista brasileira de literatura. São Paulo: Lemos Editorial, ano 3, nº 30, pp. 14-17, janeiro de 2000. BENJAMIN, Walter. A modernidade e os modernos. Traduções de H. K. Mendes da Silva; A. de Brito ; T. Jatobá. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975 (Biblioteca Tempo Brasileiro, 41). _________________ . O drama barroco alemão. Tradução, apresentação e notas de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984. CAMPOS, Haroldo. Ruptura dos gêneros na literatura latino-americana. São Paulo: Editora Perspectiva, 1977. ________________. Tópicos (fragmentários) para uma historiografia do como. São Paulo: Cadernos PUC, 14, s/d. GOMES, Eugenio. ―Pompéia e a Métrica‖, in GOMES, Eugenio. Visões e revisões. Rio de Janeiro: MEC, Instituto Nacional do Livro, 1958. HUYSMANS, J. K. Às avessas. Tradução de José Paulo Paes. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. LAVER, James. ―Ensaio biográfico-crítico‖, in Obra completa de Oscar Wilde. Tradução de Neil R. da Silva. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1961. MCLUHAN, Marshall; WATSON, Wilfred. Do clichê ao arquétipo. Tradução de Ivan Pedro de Martins. Rio de Janeiro: Record, 1973. MIGUEL-PEREIRA, Lúcia. ―Raul Pompéia‖, in MIGUEL-PEREIRA, Lúcia. Prosa de ficção: 1870 a 1920. 3. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973. MUIR, Edwin. A estrutura do romance. Porto Alegre: Globo, s/d. MUTRAN, Munira. Álbum de retratos: George Moore, Oscar Wilde e William Butler Yeats no fim do século XIX: um momento cultural. São Paulo: Humanitas/USP, 2002. POMPÉIA, Raul. O Atheneu. 2.ª ed. ilustrada. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1905. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 276 ROMERO, Sílvio. História da Literatura Brasileira. 4.ª ed. Vol. 5. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1949. SILVA, Francisco Ivan da. ―O Ateneu revisitado‖, in Arte e linguagem – língua e literatura na educação (cadernos PUC). São Paulo: Cortez Editora, 1985, pp. 111-123. WILDE, Oscar. ―A decadência da mentira‖, in Obra completa. Tradução de Oscar Mendes. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1961. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 277 12. A CARNAVALIZAÇÃO LITERÁRIA EM SARAMAGO: ENTRE O RISO E AS RUÍNAS PAIVA, K. A. R. de. (IFRN) - autora55 ARAÚJO, R. D. de. (IFRN) - coautora56 Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara. (Epígrafe de abertura de Ensaio sobre a Cegueira, extraída do Livro dos Conselhos) Mal abrimos o Ensaio sobre a Cegueira e lá está uma epígrafe nos desafiando a reparar. Mas, o que será mostrado a ponto de necessitar ―reparação‖? Se explorarmos a carga semântica dessa recomendação inicial de leitura, essa reparação tanto pode significar dirigir ou fixar a vista, perceber ou notar, consertar ou restaurar. Assim, iniciamos uma leitura: cheios de questionamentos, deparando-nos com um enredo que se propõe dialógico e paradoxal antes mesmo de começar, já que o título nos dá pistas de que o romance pretende ressaltar a cegueira, enquanto a epígrafe nos desafia ao exercício do olhar. O livro, ironicamente, faz com que o leitor enxergue e tema a própria humanidade da qual faz parte, diante de uma situação de caos: uma epidemia de cegueira. A partir da súbita e inexplicável epidemia, o enredo passeia livremente pelas vias da desorganização e da superação de valores mais básicos da sociedade, mostrando as faces ocultas dos seus personagens egoístas, numa luta travada consigo e com o mundo desolador que os cerca, em favor da própria sobrevivência. Esse mundo os rejeita em virtude de estarem cegos e por temerem acontecer o mesmo com os demais indivíduos que ainda vêem, isolando aqueles no manicômio - submundo dos cegos. Em meio a esse caos, existe a mulher do médico, única personagem que transita incólume sem ser infectada pela epidemia. É através dos olhos dela que assistimos aos acontecimentos. Seu cônjuge, um oftalmologista, não consegue explicar ou sequer solucionar a enfermidade que acomete os humanos, aliás, ele 55 Kalina Alessandra Rodrigues de Paiva é professora do IFRN, graduada em Letras, especialista em Educação e mestra em Estudos da Linguagem pela UFRN. E-mail: [email protected] 56 Roberta Duarte de Araújo é professora substituta do IFRN, graduada em Letras e mestra em Estudos da Linguagem pela UFRN. E-mail: [email protected] VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 278 figurará como cego no enredo, não diferindo dos demais. Ao peregrinarmos pelo enredo, acompanhando esses cegos, percebemos que Saramago confere ao humor um espaço que habita as entrelinhas do romance. Não se trata de um humor desbragado, mas amargo, lapidado a partir de situações experimentadas pelos personagens à semelhança do estado de exceção vivido em contexto de guerra. Nesse sentido, Saramago fornece-nos material suficiente para investigarmos um campo importante na literatura: o cômico, permeado pela ironia, paródia, sarcasmo,enfim diferentes níveis de humor. Em entrevista para a Revista de Língua Portuguesa (2005), sobre o procedimento narrativo presente no Ensaio sobre a Cegueira, Saramago afirmou escrever como quem faz música, decidindo abolir os sinais de pontuação para criar um ritmo próximo da palavra falada em seus romances. Assim, lembrando-nos que ―A voz é a vista de quem não vê‖ (SARAMAGO, 1996, p. 120), a musicalidade aparece em sua obra. No romance, a ligação entre o que se diz e o modo como se diz tem um lugar muito especial. É claro que, se escrevesse de outra maneira, contava a mesma história. O que ocorre é que transponho para o discurso escrito os mecanismos da fala. Afinal, quando nós falamos não estamos a fazer parágrafos nem pontos de interrogação. Falamos como se estivéssemos a fazer música, com sons e pausas. Proponho, então, um pacto, dizendo: aqui não há sinais de pontuação, o que há são sinalizações de pausa; uma leve, simbolizada por uma vírgula, e outra um pouco mais longa, representada pelo ponto final. Se o leitor aceita esse pacto, a história segue. (SARAMAGO, 2005, p. 18). Neste pacto estabelecido entre leitor e texto, a leitura se transforma numa via de possibilidades musicais, marcadas pela leitura ora pausada, ora mais acelerada. Essas possibilidades musicais são permitidas e alcançadas a partir da forma saramagueana de organizar o discurso, isto é, a substituição das marcas tipográficas que separam a fala do narrador da fala dos personagens por vírgulas, seguidas de uma letra maiúscula, demarcando mudança de fala. O ESC não só discorre sobre o olhar como exerce uma função metalinguística, exigindo um olhar diferente do usual para a obra de arte e o faz a começar pelos aspectos gráficos. É uma educação do olhar, através de um jogo VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 279 temático, verbal e musical; um mosaico, um labirinto a ser percebido via plano de expressão (forma como o enredo se apresenta) aliado ao plano de conteúdo (temática abordada pelo ensaio). E quanto mais se joga, mais elementos se percebem, bem ao estilo Barroco. Se por um lado, temos inovações nos aspectos sonoros e tipográficos da obra em estudo, também encontramos marcas implícitas na estrutura do romance, por meio das quais detectamos rebaixamento paródico em diferentes níveis de riso, à luz de Bakhtin. Ao comentar sobre a estrutura romanesca em Dostoievski, Bakhtin falava sobre a capacidade de renovação do gênero literário, afirmando que O gênero sempre é e não é o mesmo, sempre é novo e velho ao mesmo tempo. O gênero renasce e se renova em cada nova etapa do desenvolvimento da literatura e em cada obra individual de um dado gênero. Nisto consiste a vida do gênero (BAKHTIN, 1997, p. 106). Isso implica assegurar a unidade e a continuidade do desenvolvimento literário, ou, caso contrário, as obras de arte enquadradas como romance manteriam sempre a mesma estrutura, não oferecendo nada de novo. Nessa busca de desenvolvimento do gênero, tomando como exemplo o ESC, percebemos a presença de uma literatura que sofreu influência de diferentes modalidades de folclore carnavalesco, intitulada de literatura carnavalizada que figura o campo do sériocômico. Bakhtin (1997) nos alerta que, enquanto festividade, o carnaval não é um fenômeno literário, mas como criou uma linguagem de formas concreto-sensoriais simbólicas, o teórico toma a cosmovisão carnavalesca como empréstimo para compor a teoria da carnavalização na literatura. Segundo o teórico, uma literatura sofre processo de carnavalização quando: a) o objeto da representação passa a ser a realidade inacabada e não o elemento mítico; b) não se baseia na lenda nem se consagra através dela, mas sim na fantasia livre, desmascarando a lenda de forma crítica e cínica (leia-se: por meio do humor); c) há pluralidade de estilos e variedade de vozes, renunciando a unidade estilística para dar lugar à politonalidade da narração, fundindo sublime e vulgar, sério e cômico, empregando VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 280 gêneros intercalados (cartas, diálogos relatados, paródia de gêneros literários elevados, citações recriadas em paródia). Essas mudanças provocam outros efeitos na narrativa, tais como: a quebra da hierarquia socialmente imposta; a permissão da liberdade comportamental, gestual e discursiva de forma excêntrica; as mésalliances carnavalescas, isto é, as livres relações que se estendem a tudo (valores, ideias, fenômenos e coisas), combinando elementos antes fechados, separados, distanciados pela cosmovisão hierárquica extracarnavalesca (sagrado/profano); a profanação, resultante da paródia de textos sagrados, configurando sacrilégios, descidas e indecências. Exatamente por promoverem a livre familiarização do homem com o mundo, essas categorias carnavalescas foram transpostas para a literatura. Isso destruiu as distâncias épica e trágica e refletiu substancialmente na estrutura do enredo. A fim de entendermos melhor essas categorias carnavalescas, entrelaçaremos a teoria bakhtiniana com algumas cenas do romance saramagueano. Para Bakhtin (1988), a paródia consiste numa construção dialógica muito especial por meio da qual o discurso que representa estabelece uma relação de desmascaramento em relação ao discurso representado, desentronizando-o. Nela, encontram-se as mais variadas formas de linguagens determinadas por inter-relações, desejos verbais e discursivos que se encontram nos enunciados. Ainda segundo o autor, a paródia ―introduz livremente um material de outrem nos temas contemporâneos [...], põe à prova a língua estilizada, colocando-a em situações novas e impossíveis para ela‖. (BAKHTIN, 1997, p. 102). Acreditamos que a paródia não somente desentroniza uma imagem primeira, um texto primeiro, mas também a resgata, não a deixando cair no esquecimento, pois a paródia também apresenta essa função: a de trazer à memória um elemento parodiado, mesmo que, para isso, subverta-o. Em ESC, existe fusão do trágico com o cômico que, em si, já constitui uma hibridização de gêneros e oferece outras fusões do sublime com o vulgar, empregando gêneros intercalados. No segundo capítulo do livro, encontramos elementos do cômico por meio do uso parodiado de um dito popular. Enquanto o primeiro cego sofre o infortúnio da desgraçada cegueira e um homem se oferece para ajudá-lo a voltar para casa dirigindo seu carro, o narrador nos lembra: ―se é certo que a ocasião nem sempre faz o ladrão, também é certo que o ajuda muito‖ (SARAMAGO, 1996, p. 25). Enquanto a dor de um dos personagens é VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 281 apresentada, o narrador faz do momento uma piada em forma de dito popular reconstruído como prenúncio de que assistiremos à ação de um ladrão de cego que também cegará após o roubo. Mais requintada ainda é a expressão ―bom samaritano‖, remetendo-nos parodicamente à parábola cristã que assegura a honestidade neste mundo, muito embora – no contexto do romance - o ―bom samaritano‖ que se dispõe a ajudar o primeiro cego não faça jus ao episódio bíblico original que motiva a paródia. A própria descrição da linguagem com que os cegos se comunicam é de um humor amargo, pois eles não falam, eles ladram. Considerando que ladrar significa latir ou proferir com violência, então, que tipo de comportamento esperamos desta ―outra raça de cães‖ (SARAMAGO, 1996, p. 64)? A narrativa segue dando lugar à musicalidade da linguagem canina falada pelos homens, funcionando como melodia para a metamorfose por que passam os cegos, pois passam de humanos a animais, de animais a seres bestializados; um prenúncio do caos em que a humanidade vai adentrando. No liame entre o sério e o cômico, o romance prossegue através das palavras das personagens que insistem em falar sobre impossibilidades de nomeação da cegueira, do que estão vivendo, enfim, de tudo que os cerca. Enquanto isso, o adâmico narrador esbanja imagens e situações sem economizar as classes de palavras, desenhando as cenas de horror com humor amargo. No 5º capítulo, os cegos questionam a validade de um especialista em olhos que não pode ver: Quem é este, a resposta veio do primeiro cego, É médico, um médico dos olhos, Esta é das melhores que ouvi na vida, disse o motorista, logo nos havia de ter saído na rifa o único médico que não nos vai servir para nada, Também nos saiu na rifa um motorista que não nos levará a parte alguma, rispostou com sarcasmo a rapariga de óculos escuros. (SARAMAGO, 1996, p. 68). Retextualizando o que nos diz as personagens para o provérbio popular: ―chumbo trocado não dói‖. É bem isso que acontece entre as afirmações sarcásticas das personagens. À medida que lemos, o nível de linguagem avança em violência e animalidade. Aqui, por enquanto, as ironias são refinadas, alegóricas – porque dizem uma coisa para significar outra – e sinalizam para o leitor que os ânimos das personagens, por enquanto, estão sob controle. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 282 Ainda neste capítulo, mais adiante no enredo, a rapariga de óculos escuros disfarça as lágrimas, usando colírio em olhos que já não vêem. E quanto mais o romance avança, encontramos o surrealismo da obra, à medida que temos a sensação de passar os nossos olhos por uma nau de loucos. Ao fim deste capítulo, acontece uma execução. Ela permitirá uma pausa para um olhar mais apurado, já que consideramos uma cena representativa, haja vista que o cadáver se torna um problema. ―Esse problema‖ se instala quando a mulher do médico aponta a possibilidade de o cadáver contagiar os outros que não cegaram, inclusive os militares de serviço. Estes últimos providenciam uma enxada para cavar uma sepultura, a fim de enterrar não só o corpo, mas também qualquer possibilidade de propagação da doença. Ademais, um fato que deve ser lembrado é a justificativa para a execução, a saber, ―a legítima defesa do soldado‖. Agora, imaginemos um soldado com uma arma de última geração atirando num homem desarmado e cego – Eis a representação da covardia diante do que existe de mais inofensivo: um cego desarmado. Vejamos o fragmento em que a mulher do médico, supostamente cega, é guiada pelos militares, até uma enxada para cavar e enterrar o cadáver do ladrão: Não me posso esquecer de que estou cega, pensou a mulher do médico, Onde está, perguntou, Desce a escada, que já te irei guiando, respondeu o sargento, muito bem, agora anda na direção em que estás, assim, assim, alto, vira-te um pouco para a direita, não, para a esquerda, menos, menos do que isso, agora em frente, se não te desviares vais dar com o nariz mesmo em cima dela, quente, a escaldar, merda, eu disse que não te desviasses, frio, frio, está a aquecer outra vez, quente, cada vez mais quente, pronto, agora dá meia volta que eu torno a guiar-te, não quero que fiques para aí como uma burra à nora, às voltas, e me venhas parar ao portão, Não estejas tão preocupado, pensou ela, irei daqui à porta em linha reta, no fim de contas tanto faz, ainda que ficasses a desconfiar de que não estou cega, a mim que me importa, não virás cá dentro buscarme. Pôs a enxada ao ombro, como um cavador que vai ao seu trabalho, e caminhou na direcção da porta sem se desviar um passo, Nosso sargento, já viu aquilo, exclamou um dos soldados, até parece que ela tem olhos, Os cegos aprendem depressa a orientar-se, explicou, convicto, o sargento. (SARAMAGO, 1996, p. 85-6). VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 283 Afinal, quem é o cego nesta passagem? O sargento pensa que guia uma cega, e o faz semelhantemente a uma brincadeira do folclore infantil, o jogo do quente/frio que, segundo Duarte (2000), é originário da Suíça. Percebemos, então, uma hibridização de gêneros com introdução de um jogo folclórico no enredo do romance estudado. Refletindo sobre a inserção de um gênero em outro, encontramos uma das peculiaridades da literatura carnavalizada que, segundo Bakhtin (1997), se caracteriza pela pluralidade de estilos e a variedade de vozes de todos esses gêneros, isto é, pela politonalidade da narração, no momento em que intercala gêneros, a fim de dar andamento ao enredo por meio da fantasia livre, oferecendo novo tratamento à realidade. Dessa forma, o discurso da representação faz surgir o discurso representado. No oitavo capítulo, aparece um elemento da arte pictórica, no mínimo, curioso: uma tela que, na verdade, contém 7 telas conhecidas. Como se era de esperar, Saramago decidiu lançar mais um desafio ao olhar dos leitores, pois não há nomes de pintores e sim nacionalidade de alguns; inexistem os nomes das obras, porém há uma descrição das imagens. É com essas pistas que o leitor tem de chegar a uma imagem paródica e alegórica. [...] O último que eu vi foi um quadro, Um quadro, repetiu o velho da venda preta, e onde estava, Tinha ido ao museu, era uma seara com corvos e ciprestes e um sol que dava a ideia de ter sido feito com bocados doutros sóis, Isso tem todo o aspecto de ser de um holandês, Creio que sim, mas havia também um cão a afundar-se, já estava meio enterrado, o infeliz, Quanto a esse, só pode ser de um espanhol, antes dele ninguém tinha pintado assim um cão, depois dele ninguém mais se atreveu, Provavelmente, e havia uma carroça carregada de feno, puxada por cavalos, a atravessar uma ribeira, Tinha uma casa à esquerda, Sim, Então é de inglês, Poderia ser, mas não creio, porque havia lá também uma mulher com uma criança ao colo, Crianças ao colo de mulheres é do mais que se vê em pintura, De facto, tenho reparado, O que eu não entendo é como poderiam encontrar-se em um único quadro pinturas tão diferentes e de tão diferentes pintores, assim. (SARAMAGO, 1996, p. 130-1). A conclusão a que chegamos sobre essas várias imagens, fundidas numa só? São VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 284 excessivas e despertam a sensação de angústia no observador, tal como as imagens barrocas. A sensação decorrente da leitura dessa tela, à medida que os objetos artísticos são descritos na obra, é de uma ansiedade sem precedente, pois o narrador revela pistas sobre o objeto artístico, envolvendo o leitor como peça desse jogo. Num livre exercício semiótico, decidimos materializar a descrição saramagueana: Não por acaso A Seara com Corvos (1890), do holandês Van Gogh é citada inicialmente. Essa tela foi a última produção desse artista, antes do seu suicídio. As cores quentes nela utilizadas marcam a intensa fase em que o pintor produzia (uma tela por dia!) dentro do manicômio onde esteve internado. Tais cores são as preferidas dos loucos. Por sua vez, o cão enterrado, pelas características estéticas, corresponde ao de Picasso, muito embora Dali também tenha produzido uma tela em que aparece um animal semelhante. O que nos faz optar pelo primeiro? O traço jamais utilizado em pintura outrora. Dali se inspirou nos modelos neoclássicos para compor sua arte surrealista, já Pablo Picasso, não. Esse último parece ―rascunhar‖ sua imagem. Além disso, o próprio enredo do ESC é fragmentado, tal qual a arte cubista. Mesmo assim, se necessitássemos VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 285 traduzir a linguagem do ESC em pintura, certamente, a obra seria cubista, pela sua fragmentação cenográfica; barroca, pelos contrastes não só pelo jogo de luz e sombra, mas pela suntuosidade da catástrofe; moderna, pela capacidade de reunir várias tendências estéticas. Seguindo a linha de raciocínio da narrativa, é-nos apresentada a tela do inglês John Constable, O carro de feno (1820-1821). O que a tela de cenário bucólico tem a acrescentar a este conjunto ―desarmônico‖? À semelhança de Saramago, o inglês produziu uma arte fora dos padrões acadêmicos. Aliás, o português é contrário ao academicismo que impede a criação artística. Constable está para a ruptura no tratamento impressionista da cor, sendo um dos pioneiros a pintar ao ar livre, assim como Saramago o está para a ruptura com a sintaxe, com a gramática normativa. Já que o romancista não é adepto do academicismo, seria natural que ele instigasse a imaginação do leitor para a tela seguinte: a mãe com uma criança no colo. Presente na cultura judaico-cristã, a mãe de Jesus segurando-o no colo ainda menino figura na lista das imagens mais parodiadas na pintura. As representações da mãe de Nosso Senhor ultrapassam as barreiras do tempo e a nacionalidade dos artistas, aparecendo nas estéticas bizantina, barroca, renascentista, romântica, entre outras. Escolhemos, portanto, a Madona de Salvador Dali, Madonna Port Lligat (2ª versão -1950), a título de composição da imagem, muito embora ela não seja descrita no texto. Em seguida, A Última Ceia (1495-1498), de Da Vinci, que nos prepara mais uma vez para a morte. A escolha dessas telas é regida pelo signo da morte. Então, passamos a ―reparar‖ que a tela é metalinguística, visto que a vida das personagens e a representação da vida na arte se irmanam. A seguir, Vênus é revelada entre as telas A Última Ceia e a cena da batalha. Na tela, Vênus é a deusa, emergindo das águas em uma concha, empurrada para a margem pelos ventos do oeste. Símbolo das paixões espirituais, assemelha-se à mesma representação produzida pelas antigas estátuas de mármore com longos membros e traços harmoniosos. É surpreendente que o quadro tenha escapado das fogueiras que consumiram tantas outras obras de Botticelli, já que possui um tema pagão e foi pintado em um período histórico o qual os artistas se atinham a temas católicos. Ao inserir este quadro como fragmento da imagem descrita pelo cego, Saramago consegue unir as duas pontas do sagrado e do profano, regados pela sinergia afetiva das sensações, de VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 286 sentimentos e da sensualidade. Em torno de Vênus existe ―a atração simpática pelo objeto, a embriaguez, o sorriso, a sedução, o impulso de prazer‖. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2005, pág. 938). A última das telas fecha o ciclo vital, trazendo uma batalha que não escolhe faixa etária, raça, crença ou gênero. Estamos mais uma vez sob o signo da morte, da finitude. E a imagem faz questão de deixar isso claro, iniciando com a temática e fechando-se nela de igual modo: apontando na direção da morte. Na realidade, acreditamos que a tela do ESC é uma alegoria da vida e da arte, da estética e da concepção artística como um todo. Por meio dela, a memória da modernidade é forjada numa imagem que abarca sete outras diferentes em todos os sentidos. Tais diferenças são necessárias para a compreensão do convite ao olhar feito desde a epígrafe de abertura. Nesse sentido, Saramago empreende um meticuloso trabalho de investigação, demonstrando conhecimento da tradição pictórica que, à semelhança de um exímio retratista e pintor de paisagem, vai oferecendo detalhes históricos na tela antropofágica. No contexto da tela, a representação de cada paisagem é importante, quando relacionada às ações humanas se levarmos para o que está ocorrendo com os personagens do enredo. Para discutirmos essa ―humanidade‖, temos um contraponto personificado na figura de um cão, o das lágrimas, mais humano e autêntico do que os cegos que, mesmo padecendo do mal branco, são incapazes de se verem inseridos num padrão de normalidade imposto pelo ―filtro condicionado socialmente‖. (BARROS, 2004, p. 45). O filtro social seria constituído por uma série de elementos, como a linguagem, a lógica, os tabus sociais, mas também por uma série de hábitos enraizados, de atitudes automatizadas e de impulsos que dão origem a práticas culturais diversas. Esse caráter social corresponde a ―um núcleo da estrutura do caráter que é inerente à maioria dos membros da mesma cultura, diferentemente do caráter individual que varia entre as pessoas da mesma cultura‖. (BARROS apud FROMM, 2004, p. 45). Relacionando esse pensamento com a personagem o cão das lágrimas do romance e o cão pintado por Picasso, percebemos o porquê de serem tão diferentes, visto que são personagens autênticas e que preservam um caráter individual que parece faltar aos cegos, por isso encontramos a humanidade nos cães e não nos homens. Estes últimos, inclusive, decidiram usam a mesma linguagem: ladrar. A cena chama a atenção do espectador, pois legitima um pensamento coletivo VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 287 condicionado pelo filtro social sobre a arte, sobre o fazer artístico. A representação dessa imagem assegura a comunicação entre um passado histórico, dependente das regras artísticas ditadas pelo consumidor da obra de arte. Esse tipo de discussão sobre o mercado da arte e o simbólico é recorrente nas obras de Saramago. Em Manual de Pintura e Caligrafia, o narrador diferencia o retratista do pintor, mostrando ainda que a arte, muitas vezes, não percebida completamente no presente em que é feita, já que carrega mensagens subliminares. Faço retratos para pessoas que estimam suficientemente para os encomendarem e pendurarem em átrios, escritórios, livingues- rumes ou salas de conselho. Garanto a duração, não garanto a arte, nem ma pedem, mesmo que eu pudesse dá-la. Uma semelhança melhorada é ao mais longe que chegam. E como nisso podemos coincidir, não há decepção para ninguém. Mas isto que faço não é pintura. Apesar das insuficiências que me deu para aqui confessar, sempre soube que o retrato justo não foi nunca o retrato feito. (SARAMAGO, 2001, p. 7). O fator que motiva a produção de uma linguagem implícita na obra de arte, dependendo do contexto, é o medo de o autor se denunciar: Só eu sabia que o quadro já estava feito antes da primeira sessão de posse e que todo o meu trabalho iria disfarçar o que não poderia ser mostrado. Quanto aos olhos, esses estavam cegos. Assustados e ridículos estão sempre o pintor e o modelo diante da tela branca, um porque se teme de ver-se denunciado, outro porque sabe que nunca será capaz de fazer essa denúncia [...]. (SARAMAGO, 2001, p. 8). De certa forma, esse ―desabafo‖ do pintor que exerce a função de retratista, serve como legenda para as obras reunidas na tela do ESC, pois todas elas sofreram críticas, cada uma em sua época, sobre o conteúdo veiculado entendido como subversivo, herético, entre outras concepções pejorativas. Essas telas reunidas numa só constroem e legitimam uma representação do passado. Expor essas obras ao público possibilita a criação de um consenso acerca do discurso sobre o passado, através da circulação dos códigos de VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 288 significação dessas telas, no entanto, a tela do ESC aliada à escrita de Saramago nos faz questionar sobre as tradições em arte, os modelos, as mensagens moralizadoras da pintura histórica, pensada e criada para entrar em contato com o público. Saramago, de certa forma, nos conduz à visão de que, mesmo sendo um bem encomendado, a obra de arte é fruto de um longo processo que envolve observação, pesquisa e estudo. Retomando a discussão sobre o processo de carnavalização, a partir de agora, ressaltaremos outra particularidade do enredo, a saber, a ―combinação orgânica do fantástico livre e do simbolismo e, às vezes, do elemento místico-religioso com o naturalismo de submundo‖ (BAKHTIN, 1997, p. 115). Isto que o teórico chama de naturalismo de submundo mostra que as idéias não são temerosas quanto à lama da vida, ou seja, o homem se depara com o mal universal, a baixeza e a vulgaridade, ocorrendo em espaços como prisões, covis de ladrões, entre outros. O espaço mais baixo entra em primeiro plano. Dessa forma, temos o manicômio como espaço de elevado simbolismo, do fantástico da aventura e do naturalismo de submundo. É sobre este propício lugar do ESC que o narrador experimenta suas posições filosóficas e busca mostrar palavras derradeiras, decisivas diante dos atos humanos, por isso se tornam comuns as cenas de escândalos, os comportamentos excêntricos dos personagens, os discursos e declarações inoportunos. Assim, percebemos, através do narrador, as dúvidas, perplexidades, ilusões e decepções das quais falava Saramago ao escrever sobre um assunto tão universal: o homem diante de situações-problemas em espaço marginalizado. Na cena do estupro, não temos apenas corpos violados, temos discursos violados também. Um exemplo? As vozes femininas que não têm a liberdade para gritar, para protestar contra o estupro. No manicômio, as pessoas se reconhecem pela voz, contudo às mulheres esse direito é privado. Assim, elas seguem silenciando a própria identidade, a sevícia e o sofrimento, adotando a servidão. O fato de escolherem para espaço de reclusão um manicômio e, posteriormente, comparar cegos a loucos já nos prepara para o riso acre e flutuante entre as cenas de tragédia durante todo o romance. São três camaratas de cada lado, há que ver como é isto cá dentro, uns vãos de portas tão estreitos que mais parecem gargalos, uns corredores tão loucos como os outros ocupantes da casa, começam não se sabe VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 289 porquê, acabam não se sabe onde, e não chega a saber-se o que querem. (SARAMAGO, 1996, p. 112). Dentro da atmosfera melancólica do manicômio, os cegos são tidos como loucos. Aliás, são nomeados assim em vários momentos. Chevalier (2005) nos lembra que o poeta, assim como o iniciado e o inspirado aparecem como loucos, de acordo com algum aspecto de seu comportamento, que escapa às normas habituais. A sabedoria, neste sentido, é a loucura encarnada para aqueles que não conhecem outra regra que o bom senso. O louco está fora dos limites da razão, fora das normas da sociedade. Segundo o Evangelho, a sabedoria dos homens é loucura aos olhos de Deus e a sabedoria de Deus, loucura aos olhos dos homens: por detrás da palavra loucura se esconde a palavra transcendência. (...) O louco, segundo a simbologia dos números [no Tarô], quer dizer o limite da palavra, o lado de lá da soma que não é outra coisa senão o vazio, a presença superada, que se transforma em ausência, o saber último, que se torna ignorância, disponibilidade: a cultura, aquilo que fica quando tudo o mais é esquecido, como se diz. O Louco não é o nada, mas o vácuo do fana dos sufis, uma vez que nenhum haver é mais necessário, tornandose a consciência do ser a consciência do mundo, da totalidade humana e material, da qual ele se desligou para avançar mais à frente. (...) ele caminha na frente, com uma evidência solar, sobre as terras virgens do conhecimento, para além da cidade dos homens. (CHEVALIER, 2005, p. 560). A experiência do manicômio, neste sentido, mostra-nos seres humanos em seu primitivismo, experimentando, inclusive, a linguagem em sua forma sonora, imprecisa, com rupturas, elipses, com sua estrutura linguística fraturada, por sinal, características da música moderna. Um louco falando da loucura é a própria insanidade enlouquecida. Ser louco é renunciar ao mundo e procurar algo cujo fim não se conhece. Por buscar o desconhecido, a todo instante, no romance, toda a situação é mencionada como aquilo que não tem nome, pois ―começam não se sabe o porquê, acabam não se sabe onde, e não chega a saber-se o que querem‖. (SARAMAGO, 1996, p. 112). VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 290 Para renunciar ao mundo regrado, o louco passa a controverter a ordem. O mesmo acontece no ambiente carnavalesco que Bakhtin (1997) apresenta da seguinte forma: Esta é uma vida desviada da sua ordem habitual, em certo sentido uma vida às avessas, um mundo invertido. As leis, proibições e restrições, que determinavam o sistema e a ordem da vida comum, isto é, extracarnavalesca, revogam-se durante o carnaval: revogam-se antes de tudo o sistema hierárquico. (BAKHTIN, 1997, p. 123). Quando armados, os cegos malvados se apropriam da comida e a utilizam para estabelecer uma nova hierarquia. Esquecem-se de que a cegueira é igual para todos, de que as relações mútuas do homem com o homem são modificadas e que as mésalliances carnavalescas são necessárias para reorganizar valores, idéias, fenômenos e coisas. Como não se adéquam à nova organização que tornam iguais todos os cegos, sofrem destronamento quando seu líder é assassinado pela mulher do médico, cuja ação homicida traduz um riso de júbilo contra a supremacia. No carnaval é assim: tudo se destrói, mas também se renova. Apegados a essa afirmativa/promessa, seguimos esperançosos por uma reviravolta no enredo. Diante disto, questionamo-nos: até que ponto o limite da insanidade humana é capaz de chegar? Vítimas da própria loucura, uns mais que outros, vagando e percebendo a humanidade através dos outros sentidos que lhes restaram, os personagens, silenciados pela dor e pelo isolamento, esquecem que ainda existe a palavra. Enquanto os personagens poupam os verbos, o narrador desata mares sonoros de palavras, velozmente desenhando o amargor que parece não esgotar diante da vitrine de pessoas que perderam a si mesmas. Riso cortante, corrosivo e implacável do narrador bem ao gosto de Bakhtin que vê o riso como eco das vozes de seu tempo, da história de um grupo social, de seus valores, crenças, preconceitos, medos e esperanças. Pensamos que a loucura em sua forma de sabedoria só pode inspirar temor, o que faz com que tenhamos piedade dos homens de bom senso. Neste sentido, ter olhos quando todos perderam pode provocar furor, daí o pedido do médico para que a esposa se mantivesse calada sobre o fato de ainda ter a capacidade de ver, não só porque os cegos delas tirariam proveito, mas principalmente porque a sabedoria e, por conseguinte, os olhos críticos são um perigo numa sociedade que nem se reconhece como tal. Amar a sabedoria é VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 291 assumir a própria loucura. O saber incomoda assim como o louco que profere aparentes desatinos, subvertendo a ordem, o poder. Como nem só de loucura e angústia vive o personagem, esperamos a experiência com o sagrado para dar suporte ao ser ante o peso da morte que ronda o seu destino. No entanto, ao invés de amenizar a cruel realidade, o sagrado é tocado pelo humor corrosivosubversivo de Saramago, na cômica passagem em que a mulher do médico entra numa igreja, desmaia e, após recobrar os sentidos, pensa que está louca: [...] naquele mesmo instante pensou que tinha enlouquecido, ou que desaparecida a vertigem ficara a sofrer de alucinações, não podia ser verdade o que os olhos lhe mostravam, aquele homem pregado na cruz com uma venda branca a tapar-lhe os olhos, e ao lado uma mulher com o coração trespassado por sete espadas e os olhos também tapados por uma venda branca, e não eram só este homem e esta mulher que assim estavam, todas as imagens da igreja tinham olhos vendados, (...) só havia uma mulher que não tinha os olhos tapados porque já os levava arrancados numa bandeja de prata. (SARAMAGO, 1996, p. 301). Na página inteira, o autor repete 18 vezes a palavra ―tapado‖, causando musicalidade e certo humor corrosivo, pois a palavra ganha uma nova conotação: além do sentido de venda, aparece como estupidez. Todos estão ―tapados‖, isto é, nem os santos estão disponíveis para amenizar a desgraçada experiência da cegueira, posto que, inclusive eles, também possuem olhos e não vêem, contrariando a máxima de que os representantes e mediadores de Deus, feitos de gesso, a tudo podem ver, estando disponíveis para a tarefa da salvação dos seus filhos. Aqui, se por um lado a cegueira não faz distinção de cor, raça, situação econômica, assemelha-se a Deus quanto à onipresença, à onipotência e à formação de um rebanho implacável na terra, composto por cegos. Assim, Saramago faz do riso um mecanismo que ridiculariza a idéia de salvação, ironiza a clemência, subverte a ordem por meio do discurso, devassando qualquer possibilidade de esperança, diante do catastrófico mal branco. Ao leitor, só resta mesmo esperar pela morte dos personagens de olhos iluminadamente abertos. Saramago conduz os personagens, alimentando o andamento da narrativa com a musicalidade das palavras numa espécie de dança macabra, como se a morte afinasse sua VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 292 rabeca para começar a grotescamente ceifar vidas em potencial, entre aliterações, repetições, assonâncias. Ao repetir 18 vezes a palavra ―tapado‖, o narrador paulatinamente vai fechando as possibilidades de salvação que o cego encontraria ao pedir a São João, São Pedro, São Sebastião, entre tantos outros. É nessa passagem que a situação grotesca se mistura ao riso. A morte não só ronda como também dança grotescamente mais selvagem e febril, cercando os cegos, acelerando seu ritmo à medida que o texto corre, sacudindo e chacoalhando seus ossos. O seu riso lembra sua universalidade celebrada: não importa o estatuto de uma pessoa em vida, ela, a morte, unirá a todos. Fomos avisados ainda no capítulo 7 que ―na terra de cegos quem tem um olho é rei, Deixa lá o outro, Este não é o mesmo, Aqui nem os zarolhos se salvariam‖ (SARAMAGO, 1996, p. 103). A palavra ―outro‖ se refere ao dito popular inadequado à situação de calamidade em que se encontravam os cegos, antecipando aos leitores que não há cura para a cegueira da humanidade. O mar de leite prossegue como num pesadelo cinematográfico. Finalmente, quando todos os personagens voltam a enxergar, a única mulher que atravessou o romance assistindo a tudo sente medo e pensa que sua vez é chegada. Movida pelo medo, ela baixa os olhos e, ao mirar seu rosto para o céu, percebe que a cidade ainda estava lá. E assim o romance termina: numa felicidade amarga flutuando num céu de um azul ilusório. Terminamos a leitura não deixando de ver que há – como em Machado de Assis – uma gota da baba de Caim em toda essa ―felicidade‖ presente. REFERÊNCIAS BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. ______. Problemas da Poética de Dostoievski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. BARROS, José D´Assunção. O Campo da História. Especialidade e abordagens. 4. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2004. BENJAMIN, Walter. A Modernidade e os Modernos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2000. CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. 19. ed. Rio de VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 293 Janeiro: José Olympio, 2005. COSTA, Horácio. Entrevista com José Saramago. In: Revista CULT. São Paulo: Lemos editorial, dez/1998. Número 17. FOUCAULT, Michael. História da Loucura. São Paulo: Perspectiva, 2004. JÚNIOR, Luiz Costa Pereira. José Saramago. Um português de sons e pausas. In: Revista Língua Portuguesa. São Paulo: Editora Segmento, Dez/2005. Ano I, n. 3. KONDER, Leandro. Walter Benjamin: O Marxismo da Melancolia. Rio de Janeiro: Campos, 1988. SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Cia das Letras, 1996. ______. Manual de Pintura e Caligrafia. São Paulo: Cia das Letras, 1996. ______. O autor como narrador. In: Revista CULT. São Paulo: Lemos Editorial, dez/1998. Número 17. SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 294 13. DOM QUIXOTE - ENTRE O BARROCO E A MODERNIDADE Jóis Alberto da Silva (Mestrando em Ciências Sociais da UFRN) 1 – Nosso Senhor Dom Quixote Analisar as relações do Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, com o Barroco e a Modernidade é um dos principais objetivos deste artigo. Dom Quixote é considerado, por muitos críticos literários, o melhor romance já escrito em todos os tempos. Figurando entre os livros mais traduzidos no mundo, depois da Bíblia, Dom Quixote é um orgulho não somente para os espanhóis, mas, sobretudo, para toda a humanidade. O El ingenioso hidalgo don Quijote de la Mancha alcançou sucesso desde o lançamento da primeira parte do livro, em 1605 - a segunda parte foi lançada em 1615, não apenas em decorrência do êxito anterior, mas também para desmascarar uma fraude: a falsa continuação, ou edição apócrifa do livro, publicada em 1614 por Alonso Fernández Avellaneda. A partir de então, o livro de Cervantes conquistou inúmeros leitores em vários países. Cerca de três séculos depois, entre a segunda metade do século 19 e as três primeiras décadas do século 20, um dos primeiros escritores da Espanha a destacar a importância da obra-prima de Cervantes para a formação do caráter nacional espanhol foi o pensador Miguel de Unamuno, nascido em Bilbao em 1864 e morto em Salamanca em 1936. Para Unamuno, famoso escritor e reitor da Universidade de Salamanca, com doutorado em Filosofia e Letras pela Universidade de Madri, essa que é uma das obras-primas da literatura de todos os tempos, ―é a verdadeira bíblia espanhola, e ‗Nosso Senhor Dom Quixote‘ é um autêntico Cristo‖, conforme citação de Harold BLOOM (2001). Crítico literário e professor universitário norte-americano da contemporaneidade, que tornou-se conhecido no Brasil a partir, principalmente, dos anos 80 do século 20 para cá, Harold Bloom, na citação, não menciona os livros de Unamuno aos quais se refere. Eu acrescento aqui, a título de esclarecimento, que possivelmente Bloom se refere à conferência ―Espanha e os Espanhóis‖ e ao fim do penúltimo capítulo do livro O Sentimento Trágico da vida, de Miguel de Unamuno. Na conferência, publicada no livro ―Titãs da Oratória‖, vol. X da antiga coleção ―Os Titãs‖ publicada pela Livraria ―El Ateneo‖, VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 295 UNAMUNO (s/d) comenta: ―(...) comparai o culto dos ingleses a Shakespeare ou dos alemães a Goethe, com o que acontece entre nós com o bom Cervantes, cuja obra imortal, a Bíblia Nacional, deveria ser nosso breviário patriótico e matéria de meditação frequente‖ (p. 421). Já em O Sentimento Trágico da Vida, UNAMUNO (1953) faz a seguinte interpretação do personagem: ―(...) e há uma figura, figura comicamente trágica, figura em que se vê todo o trágico profundo da comédia humana, a figura de Nosso Senhor D. Quixote, o Cristo espanhol, em que se cifra e inclui a alma imortal do meu povo‖ (op. cit, p 349). Nesse sentido, segundo a opinião de BLOOM (op. cit, p. 139), Cervantes lhe parece ―o único rival possível de Shakespeare, na literatura de ficção produzida ao longo dos últimos quatro séculos‖. Ambos, Cervantes e Shakespeare, morreram em 1616. O dramaturgo inglês era mais moço, já que nasceu em 1564; o pioneiro romancista espanhol nasceu em 1547. De acordo com Bloom, Shakespeare, evidentemente, leu ‗Dom Quixote‘, porém é improvável que Cervantes soubesse da existência de Shakespeare. Pertencente à famosa ―Geração de 98‖, Unamuno é autor de uma vasta obra – que vai do ensaio, em títulos como Vida de Don Quijote y Sancho (1906), Del Sentimiento Trágico de la Vida (1912) e La Agonia del Cristianismo (1924) às poesias, como ―El Cristo de Velázques‖ (1920 – considerado o maior poema religioso espanhol desde o século de ouro – passando pelo teatro e, principalmente, pela novela ou romance, em títulos como Niebla (1914), Abel Sánchez (1917) e La Tia Tula (1921). Um dos mais destacados sucessores de Unamuno no cenário cultural da Espanha, da transição do espírito do século 19 para o modernismo do sec. 20, foi José Ortega y Gasset, autor também de estudos sobre o Dom Quixote, como por exemplo Meditaciones del Quijote, de 1914. Mais conhecido do público leitor brasileiro, por títulos como O homem e sua circunstância e La rebelión de las masas (1930), Ortega y Gasset, que nasceu em Madri em 1883 e morreu na mesma cidade em 1955, tendo se licenciado em Filosofia e Letras na Universidade de Madri e obtido seu doutorado em 1904, é considerado ―o máximo filósofo espanhol‖, segundo Julián MARÍAS (2004). Em 1905, Ortega y Gasset foi para a Alemanha e estudou nas Universidades de Leipzig, Berlim e Marburgo – nesta última foi discípulo do grande neokantiano Hermann Cohen. Escritor produtivo – próximo a escritores do movimento literário ultraísmo – e grande estudioso das principais correntes filosóficas de então, como a fenomenologia de Edmund Husserl, Ortega posteriormente desenvolveu uma filosofia própria, determinada pela superação de todo subjetivismo e idealismo, com base no seu sistema de ―metafísica segundo a razão VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 296 vital‖ A partir de 1910 foi catedrático de Metafísica da Universidade de Madri, onde ministrou cursos até 1936. Segundo MARÍAS, ―A fórmula mais sintética da filosofia de Ortega é a frase das ‗Meditaciones Del Quijote‘, já citada: ‗eu sou eu e minha circunstância‘. As coisas aparecem interpretadas como circunstância, como o que está ao redor do eu, referidas, portanto, a ele. Trata-se, portanto, de um mundo, que não é a soma das coisas, mas o horizonte de totalidade sobre as coisas e distinto delas; as coisas estão – como eu – no mundo, mas esse mundo é meu mundo, ou seja, minha circunstância‖ (op. cit, p. 508). Acerca do texto, que, além do quixotismo, aborda outros temas, ORTEGA Y GASSET (1953) comenta: ―En las ‗Meditaciones del Quijote‘ intento hacer um estudio del quijotismo. Pero hay en esta palabra un equívoco. Mi quijotismo no tiene nada que ver con la mercancia bajo tal nombre ostentada en el mercado. ‗Don Quijote‘ puede significar dos cosas muy distintas: ‗Don Quijote‘ es um libro y ‗Don Quijote‘ es un personaje de ese libro. Generalmente, lo que en bueno o en mal sentido se entiende por ‗quijotismo‘, es el quijotismo del personaje. Estos ensayos, en cambio, investigan el quijotismo del libro. La figura de Don Quijote, plantada en medio de la obra como una antena que recoge todas las alusiones, ha atraído la atención exclusivamente, en perjuicio del resto de ella, y, en consecuencia, del personaje mismo. Cierto; con un poco de amor y otro poco de modéstia – sin ambas cosas no –, podria componerse una parodia sutil de los ‗Nombres de Cristo‘, aquel lindo libro de simbolización românica que fué urdiendo Fray Luis com teológica voluptuosidad en el huerto de la Flecha. Podrian escribirse unos ‗Nombres de Don Quijote‘. Porque en cierto modo es Don Quijote la parodia triste de VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 297 un cristo más divino y sereno: es él un cristo gótico, macerado en angustias modernas; un cristo ridículo de nuestro barrio creado por una imaginación dolorida que perdió su inocencia y su voluntad y anda buscando otras nuevas (...)‖ (p.326). Nascido em Alcalá de Henares, Espanha, em 1547, Miguel de Cervantes Saavedra viveu numa época em que a Idade Moderna estava no início. Poucas décadas antes haviam ocorrido as grandes viagens marítimas capitaneadas por espanhóis, portugueses, ingleses, franceses, holandeses, descobridores e colonizadores de novas terras e continentes. Nesse sentido, o nascente comércio com as colônias européias do Novo Mundo contribuía com a revolução inicial do capitalismo. Nos campos político e cultural, era uma época em que, na Europa, começavam a se formar os grandes Estados modernos; a Igreja passava pela Reforma e pela Contra-Reforma; o Renascimento promovia importantes mudanças nas artes e se iniciava a Revolução Científica que teve como pioneiros Copérnico, Galileu, Francis Bacon e Descartes. Nesse contexto, a Espanha, sob o reinado de Carlos V, imperador do Sacro Império Romano-Germânico, a partir de 1519, estava envolvida em guerras contra os mouros no norte da África. Após 40 anos de reinado, Carlos V retirou-se para um mosteiro. Em 1556 começou o reinado de Felipe II que acompanhou boa parte da vida de Cervantes, até 1598, ano em Cervantes deixou a prisão, depois de ter sido preso em Sevilha, no ano anterior, após ser condenado a pagar dívida exorbitante. Filho de um modesto barbeiro-cirurgião e de uma plebéia, Cervantes, quarto filho dos sete do casal, cresceu sem cuidados e sem conforto, conforme informações de algumas de suas biografias. Sua educação formal lhe foi ministrada por volta dos vinte anos, pelo mestre Juan López de Hoyos, um humanista espanhol. Nessa época da juventude, Cervantes viveu em Valladolid e em Madri. Começou a se interessar pela literatura, inicialmente escrevendo poesias, depois despertou o interesse pelo teatro, além de ter mantido contatos com outros estudantes e aventureiros. Aos 22 anos mudou-se para a Itália, a convite de um nobre cardeal. A Itália era palco, então, do Renascimento. Aos 24 anos, Cervantes juntou-se ao exército espanhol e lutou com coragem contra os turcos na Batalha de Lepanto, na costa oeste da Grécia. Nessa batalha, em outubro de 1571, embora as forças cristãs da Santa Liga tenham saído vitoriosas, Cervantes foi ferido e perdeu uma mão (o que lhe valeu o apelido de ―El manco de Lepanto‖). Após um período de VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 298 recuperação e depois de outra expedição militar em 1575 ao norte da África, foi preso por corsários turcos em seu regresso à Espanha. Passou cinco anos e meio em cativeiro em Argel, de onde só foi libertado quando foi pago o resgate, embora antes ele tenha tentado fugir, por quatro vezes. De volta à Espanha, em 1584, após passar um período em Lisboa, Miguel de Cervantes teve uma filha, Isabel, do relacionamento com Ana Franca, de quem se separou e em seguida casou-se com Catalina de Salazar. Trabalhou, a partir de 1587, como coletor de imposto. Dez anos depois, em 1597, voltou a ser preso, desta vez por supostas fraudes na arrecadação. Enquanto isso, nas atividades literárias, escreveu para o teatro e, posteriormente, novelas. Após a publicação do ―Dom Quixote‖, em 1605, veio o sucesso literário, mas o escritor continuou enfrentando uma série de adversidades econômicas na vida pessoal. Morreu em Madri, em 1616, às voltas com uma pobreza franciscana, literalmente, já que três anos antes havia ingressado na Ordem Terceira de São Francisco. As Novelas exemplares, editadas em 1613, se destacam dentre as outras obras literárias de Cervantes, embora a sua obra-prima seja, sem dúvidas, ―Dom Quixote‖, na qual o protagonista, um fidalgo castelhano, dom Alonso Quijano, enlouquece por excesso de leituras dos livros de cavalaria e acredita ser ele mesmo um cavaleiro andante, passando a imitar seus heróis preferidos. Alonso Quijano passa a autodenominar-se com o título de Don Quijote de la Mancha. Convencido de que necessita dedicar-se a uma dama por cujo amor deverá lutar, de acordo com preceitos da cavalaria, Dom Quixote escolhe a camponesa Aldonza Lorenzo, que ele passa a chamar Dulcinea del Toboso e a considerá-la uma dama de alta nobreza. Assim, montado no cavalo Rocinante, Dom Quixote parte pelas terras da Mancha, de Aragão e de Catalunha. Depois de viver as mais tragicômicas aventuras, na companhia do camponês Sancho Pança, a quem havia convencido a acompanhá-lo, prometendo-lhe fama e poder, seus vizinhos conseguem, finalmente, recorrendo a várias artimanhas, fazê-lo retornar à casa. Antes de morrer, Dom Quixote recupera o juízo e toma consciência das loucuras cometidas. 2 – Espírito Barroco e Tempos Modernos O Dom Quixote situa-se entre o espírito barroco da época e o advento dos tempos modernos. No século 18, o termo barroco designava tudo o que ia contra as normas VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 299 clássicas e e, por extensão, tudo o que fosse extravagante e raro. Na atualidade, notadamente a partir do século 20, o vocábulo perdeu sua conotação pejorativa, e o barroco passou a ser considerado um sistema que se opõe formalmente ao renascentista. Sobre a questão do Barroco em Cervantes, uma das fontes imprescindíveis no Brasil é a coleção ―História da Literatura Ocidental‖, de Otto Maria Carpeaux, especificamente o volume três, que trata do Barroco e do Classicismo, e em seis capítulos aborda o problema da literatura barroca, poesia e teatro da contra-reforma, pastorais, epopéias, epopéia heróicômica e romance picaresco, o barroco protestante, misticismo, moralismo e classicismo, e o antibarroco. Neste último capítulo, CARPEAUX (1987) afirma inicialmente que ―por mais poderoso que o Barroco seja como expressão política e social e como expressão estilística, não lhe falta oposição‖ (op. cit. 734). De acordo com esse crítico, ―(...) Américo Castro e seus sucessores provaram que López de Hoyos, o mestre de Cervantes foi erasmiano e que Cervantes deve a ele seu perspectivismo ‗liberal‘ e céptico‖ (op. cit., p. 740). Mais adiante, Carpeaux é taxativo: ―o erasmismo de Cervantes basta para justificar seu antibarroquismo‖ (op. cit., p. 741), embora ressalve: ―(...) O único argumento contra a interpretação de Américo Castro é a última obra de Cervantes, o romance ‗Persiles y Segismunda‘. É um romance de cavalaria, cheio de episódios fantásticos passados em ambiente fabuloso. Os críticos antigos registraram a obra como recidiva lamentável; confessaram-se incapazes de explicar por que Cervantes deu a esse romance importância muito grande, considerando-o como o principal dos seus livros. Neste ponto, todos caíram na confusão entre cervantismo e quixotismo. Para Américo Castro, a última obra de Cervantes é a profissão de fé definitiva do seu idealismo platônico; mas não é possível ignorar as sombras escuras de angústia barroca em ‗Persilles y Segismunda‘ (...). O fenômeno Cervantes é muito mais complicado do que se pensava. Com razão se salientaram os elementos platônicos e renascentistas em sua obra. Mas também com razão Casalduero destaca os elementos de Barroco idealizado, em Cervantes, apoiandose especialmente na demonstração bem sucedida da homogeneidade VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 300 das ‗Novelas Exemplares‘: são todas elas, sem exceção, expressões de um elevado idealismo moral, estritamente conforme a moral severa e aristocrática da Contra-Reforma‖ (idem, p. 741-742). . Mas o Dom Quixote não deve ser visto tão somente por esse viés dicotômico, que opõe fantasia e realidade, espiritualismo e materialismo, dualidade do ser humano, voltado para o céu e preso à terra, etc. E mais: Sancho Pança tem um papel tão importante quanto o Cavaleiro da Triste Figura. Essa é a tese de Hipólito ROMERO FLORES (1969), autor da ―Biografia de Sancho Panza – Filósofo de la Sensatez‖. No prólogo desse livro, Julian Marías afirma: ―Hace ya muchos anos, y por mérito principal de Unamuno, aunque no solo suyo, que se superó e rectificó la imagen habital de um Sancho ‗opuesto‘ a Don Quijote, como se oponem el realismo y el idealismo, lo material e lo espiritual, la generosidad y el ‗egoísmo´. Se comprendió la participación de Sancho em la empresa quijotesca, la ‗quijotizacion´ del escudero – con no poca ‗sanchificacion´ del Caballero de la Triste Figura –, frente a los que aconsejan ser Quijotes o bien Sanchos, Ortega advirtió hace más de cuarenta años que Cervantes vino al mundo para ponernos más allá de esa oposición, que eso precisamente significa su libro, y que si no fuera así, se hubiera fatigado en vano escribiéndolo. El personaje principal del ‗Quijote‘ no es Don Quijote: es la pareja, es Don Quijote y Sancho, personage dual, esencial amistad desnivelada y, por eso, dinámica. Don Quijote y Sancho no están, em efecto – como suelen los amigos –, al mismo nível, a igual altura humana: hay entre ellos lo que podríamos llamar una ‗diferencia de potencial‘, y por eso pasa de uno a outro una corriente eléctrica y, en ocasiones – cuando se separan un poco -, violentos, tonificadores chispazos‖ (op. cit, p. 8). Na conclusão de O Sentimento Trágico da Vida, UNAMUNO (op. cit. p. 355) analisa acerca da cultura e da Europa da sua época, lançando uma pergunta que permanece atual: VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 301 ―quem sabe já hoje, pelo menos em Espanha, que é a Europa?‖. Uma questão que será retomada por um autor da atualidade, o escritor tcheco Milan Kundera, numa abordagem igualmente filosófica e literária, a exemplo de Unamuno que, no texto citado, comenta ainda sobre o Dom Quixote, faz referência ao ensaio de autoria dele, Vida de Dom Quijote y Sancho e ao ―culto do quixotismo, considerado como religião nacional‖. Hoje, passado cerca de um século desde a publicação dos ensaios aqui comentados de Unamuno, e, parafraseando este último, considero ser fato inegável que o quixotismo tornou-se religião internacional – religião aqui não como mero dogmatismo ou ritual de reverências, mas como fenômeno cultural e expressão de amor profundo ao que há de melhor na criação humana. É nessa direção também que Milan KUNDERA (1988), ao abordar, na primeira parte do livro A Arte do Romance, ―A herança depreciada de Cervantes‖, afirma: ―o fundador dos Tempos Modernos não é somente Descartes, mas também Cervantes‖ (op. cit. p. 10). O escritor inicia essa seção fazendo referência às conferências que Edmund Husserl realizou, em Viena e Praga, em 1935, sobre a crise da humanidade européia. Como ele enfatiza, o adjetivo ―europeu‖ designava para Husserl a identidade espiritual que se estende além da Europa geográfica (à América, por exemplo) e que nasceu com a antiga filosofia grega. Kundera comenta também a análise que Heidegger dá a essa questão, quando fala em ―o esquecimento do ser‖. Em seguida esse escritor a relaciona com a evolução do romance, destacando nesse sentido as contribuições pioneiras do Dom Quixote. De acordo com o autor de A insustentável leveza do ser, ― todos os grandes temas existenciais que Heidegger analisa em ‗Ser e tempo’, julgando-os abandonados por toda a filosofia européia anterior, foram desvendados, mostrados, esclarecidos por quatro séculos de romance (...)‖ (idem, p. 10). Na argumentação inicial, Milan Kundera comenta que ―elevado outrora por Descartes a ‗senhor e dono da natureza‘, o homem se torna uma simples coisa para as forças (da técnica, da política, da História), que o ultrapassam, o sobrepassam, o possuem‖(idem, ibidem, p.10). Outro grande escritor, Jorge Luis Borges, mais que um leitor erudito, escreveu um dos textos mais inovadores a respeito da obra imortal de Cervantes: Pierre Menard, Autor do Quixote, um dos contos do livro Ficções. Cervantes é um dos autores que povoaram o universo literário de Jorge Luís Borges ao longo da vida, desde a infância desse escritor argentino – ele conta que um dos primeiros textos que escreveu, quando menino, foi uma imitação da escrita de Cervantes – até a fase adulta, quando Borges recebeu o Prêmio VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 302 Cervantes, em 1979. Pierre Menard, Autor do Quixote foi publicado na revista Sur, em maio de 1939, posteriormente incluído no volume que inicialmente se chamou O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam, em 1941, e depois, com a inclusão de novos textos, passou a ter como título geral Ficções, de 1944. Trata-se de um texto em que BORGES (1999) mistura ficção e ensaio, escritura e reescritura, numa narrativa de muita originalidade, que tem desafiado leitores e críticos. 3 – Dom Quixote no Brasil De acordo com Luís da Câmara CASCUDO (1954), no prefácio para a edição de Dom Quixote, da José Olympio Editora, os primeiros exemplares do livro chegaram ao continente americano já em 1605, ou seja, no mesmo ano da publicação da primeira parte, na Espanha: ―Desde quando é lido no Brasil Dom Quixote, Rodriguez Marin apurou que a primeira remessa do Dom Quixote para a América foi em 1605, poucas semanas depois de publicar-se a primeira parte do El ingenioso hidalgo Don Quijote de La Mancha (...). O indispensável mestre Rodriguez Marin informa que antes de terminar o ano da publicação (1605) e começo do seguinte, em 1606, habia em las tierras americanas cerca de mil quinientos ejemplares de ella. Não encontrei registro no Brasil seiscentista mas não é crível o desconhecimento do Engenhoso Fidalgo para os olhos coloniais brasileiros‖ (op. cit. p. 22). A obra chegou ao Brasil na versão original. A primeira tradução para o português só foi publicada quase dois séculos depois, em 1794. No Brasil, circulam várias traduções, desde a mais tradicional, que é a dos viscondes de Castilho e Azevedo, publicada pela primeira vez no país nos anos 1970 – segundo informações de Denise GÓES (2005) – e relançada pela Nova Cultural, até a edição integral de bolso da LP&M, em dois volumes, e uma edição luxuosa, de 2004, em capa dura, da Nova Agullar. Existem também várias edições e adaptações desse clássico para o público infanto-juvenil, em texto traduzido e adaptado por grandes nomes da literatura brasileira, desde Monteiro Lobato, passando por Orígenes Lessa, até Ana Maria Machado. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 303 No livro Dom Quixote – A Letra e os Caminhos, coletânea de ensaios, organizada por Maria Augusta da Costa VIEIRA ( 2006), esta autora, no texto ―A recepção crítica do Quixote no Brasil‖, afirma que se fosse o caso de identificar os movimentos da recepção crítica do ―Quixote‖ no Brasil, seria possível dizer que, de modo geral, oscilou entre a leitura livre e interpretativa e a que se preocupa com os aspectos estruturais do texto, destacando o envolvimento da obra com seu universo cultural. Ainda segundo essa autora, ―um marco importante da história do ‗Quixote‘ em terras brasileiras foi, sem dúvidas, a comemoração realizada em torno do terceiro centenário da publicação da primeira parte da obra, cuidadosamente preparada pelo Gabinete Português de Leitura, em 1905, o que constituiu, segundo relato de José Carlos de Macedo Soares, um verdadeiro acontecimento na vida literária do Rio de Janeiro‖ (op. cit, p. 343). Foi nesse evento que o poeta Olavo Bilac realizou a conferência intitulada ―Don Quixote‖, posteriormente publicada em ―Conferências Literárias‖, em 1906, pela ―Revista Kósmos‖ do Rio de Janeiro. De acordo com Costa VIEIRA, ―pelo que se tem notícia, esse foi o primeiro estudo interpretativo da obra de Cervantes publicado no Brasil‖ (idem, p. 344). No tópico ―Fortuna crítica no âmbito brasileiro‖, essa professora afirma que de um conjunto de estudos produzidos ao longo do século 20, destacam-se alguns ensaios, entre eles o de José Veríssimo; o do advogado paraense José Pérez, que passou quase toda sua vida em São Paulo, dedicando-se com empenho aos estudos cervantinos, tendo publicado A Psicologia Social do Quixote (1936) e Sabedoria do Quixote (1937), dentre outros. A autora cita ainda textos, sobre o assunto, de autoria dos diplomatas e escritores Vianna Moog e Osvaldo Orico; de Nelson Omegna e San Tiago Dantas, Josué Montello, Brito Brocca, Augusto Meyer; até trabalhos de autores mais recentes, como a tese de doutorado de Luiz Fernando Franklin de Matos, ―O Leitor Quixotesco: o Leitor de Dom Quixote‖, e Luís Costa Lima, com o ensaio ―A Preocupação Nacional como Forma de Controle: o Caso do Quixote‖, publicado nos ―Anais do 1 e 2 Simpósios de Literatura Comparada‖ (Belo Horizonte, Imprensa da UFMG, 1987, vol. 1, p. 239-257). REFERÊNCIAS VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 304 BLOOM, Harold. Como e por que ler. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. BORGES, Jorge Luis. Ficções. Prefácio Davi Arrigucci Jr; tradução Carlos Nejar. 8.ed. São Paulo: Globo, 1999. CARPEAUX, Otto Maria. História da Literatura Ocidental. Vol. III. Rio de Janeiro: Alhambra, 1987. CASCUDO, Luís da Câmara. Com Dom Quixote no Folclore do Brasil. In: ___. Dom Quixote. Rio de Janeiro: José Olympio, 1954. CERVANTES, Miguel de. Dom Quixote. Prefácio de Luís da Câmara Cascudo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1954. ________. Dom Quixote. São Paulo: Nova Cultural, 2003. Tradução: Viscondes de Castilho e Azevedo. GÓES, Denis. Uma vida de tinta e sangue. Entre Livros. São Paulo, ano I, n. 8, p. 48-53, 2005. KUNDERA, Milan. A Arte do Romance. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988. MARÍAS, Julián. História da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2004. ORTEGA Y GASSET, Jose. Obras Completas. Tomo 1 (1902-1916). Tercera edicion. Madri: Revista de Occidente, 1953. ROMERO FLORES, Hipólito R. Biografia de Sancho Panza – Filósofo de la Sensatez. Barcelona: Editorial Aedos, 1969. UNAMUNO, Miguel. O sentimento trágico da vida. Porto: Editora Educação Nacional, 1953. _______. Espanha e os Espanhóis. In: __. Titãs da Oratória. Coleção ―Os Titãs‖. Vol. X. Rio de Janeiro – São Paulo: Livraria ―El Ateneo‖ do Brasil, s/d. VIEIRA, Maria Augusta da Costa. A recepção crítica do Quixote no Brasil. In:_____.VIEIRA, Maria A. da Costa (org.). Dom Quixote: a Letra e os Caminhos. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 305 14. O NEOBARROCO EM “CONTO BARROCO OU UNIDADE TRIPARTITA”, DE OSMAN LINS Maria Luíza Assunção Chacon (Universidade Federal do Rio Grande do Norte) 57 Andrey Pereira de Oliveira (Universidade Federal do Rio Grande do Norte)58 Introdução Osman Lins, escritor nascido em Vitória de Santo Antão (PE), no ano de 1924, publica em 1966, Nove, novena, uma coletânea de nove narrativas. Na obra, é possível perceber um rompimento com as estruturas convencionais. ―Narrativas‖, o subtítulo do livro, demonstra o desinteresse, por parte do autor, em classificar os textos como contos. Mesmo a narrativa ―Conto barroco ou unidade tripartita‖, que, a primeira vista, poderia nos sugerir tratar-se realmente de um conto devido ao seu título, foge do padrão de conto por não ter seu conjunto de eventos amarrados pela causalidade, pela lógica de causa e efeito. O título da narrativa seria assim, irônico, completamente passível de desconfiança. Para Anatol Rosenfeld, Nove, novena é ―uma das mais importantes obras de ficção que apareceram na década de 1960‖ (apud LINS, 2003, p. 9). Já para o crítico francês Maurice Nadeau, é ―um dos sete melhores lançamentos de ficção estrangeira de 1971‖ (apud LINS, 2003, p. 9). Sandra Nitrini (apud LINS, 2003) mostra-nos, ainda, que a obra foi um marco na transformação do modo de Osman Lins narrar – o autor buscava produzir narrativas peculiares, nesse quesito, diferentes das mais tradicionais que compunham, por exemplo, Os gestos, uma de suas primeiras obras, publicada em 1957. Percebemos, em Nove, novena, a tentativa de equilíbrio em meio à desordem, o homem desejando unificar-se, ―o homem diante da consciência: da arte, da história, da política, do cosmos (tempo e espaço)‖ (FRITOLI, 2006, p. 22). Pretendemos, assim, no presente trabalho, mostrar como essa atmosfera caótica na qual os personagens de Nove, novena estão inseridos, permite-nos pensar ―Conto barroco ou unidade tripartita‖ a partir do 57 Graduanda do Curso de Licenciatura em Letras. Bolsista de Iniciação Científica do CNPq, vinculada ao Projeto ―Quixote intersemiótico: estudos de semiótica comparada‖, sob orientação do Prof. Dr. Andrey Pereira de Oliveira. 58 Professor do Departamento de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem (PPGeL). VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 306 conceito de neobarroco, usando como principal referencial teórico o livro A idade neobarroca, de Omar Calabrese. ―Conto barroco ou unidade tripartita‖, por meio de um ―ou‖ várias vezes repetido, estrutura-se numa sucessão de alternativas ou possibilidades narrativas, e, por isso, prestase a uma quase-infinidade de leituras. O texto, narrado em primeira pessoa, tem como narrador-personagem um matador de aluguel encarregado de matar José Gervársio. O matador conhece uma negra que teve um filho de José Gervásio e pede que ela lhe mostre sua futura vítima. Como ela demonstra insatisfação pelo fato de o pai do seu filho tê-la abandonado, concorda em indicar a pessoa procurada. Podemos entender que a negra indica José Gervásio em três versões e cidades diferentes – Congonhas, Ouro Preto e Tiradentes. Em Congonhas, no entanto, podemos apreender somente que a negra espera a chegada de José Gervásio, mas ela não chega realmente a indicá-lo para o matador de aluguel – essa possibilidade de leitura chega ao fim quando a indicação ainda está prestes a acontecer. O matador de aluguel passa então a ter um relacionamento afetivo-sexual com a negra, havendo uma despedida de ambos também em três versões diferentes. O matador é procurado pelo pai da vítima que se oferece para morrer no lugar do filho, pelo próprio José Gervásio e pela negra. Temos, então, para o desfecho, três assassinatos possíveis: o da negra, de um homem até então não citado na narrativa e do pai de José Gervásio que, somente na segunda na segunda versão em que procurar o matador para morrer no lugar do filho, tem a sua súplica atendida. Pretendemos, ao longo deste estudo, observar de que forma o caos e a desordem, características das obras neobarrocas, inserem-se na linguagem utilizada por Osman Lins. O homem imerso em dúvidas e dualidades não seria, portanto, característica exclusiva do homem barroco do século XVII. Conceitos teóricos Quando se fala em neobarroco, é de fundamental importância pensá-lo não como o barroco histórico ou como um mero retorno a esse período – o termo ―neo‖ funcionaria apenas por analogia, não como um regresso. O neobarroco apresenta traços da modernidade, tem peculiaridades da contemporaneidade, embora tenha semelhanças com a estética barroca do século XVII. Como bem nos mostra Omar Calabrese, VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 307 O neobarroco é simplesmente um ar do tempo que alastra a muitos fenómenos culturais de hoje, em todos os campos do saber, tornando-os parentes uns dos outros, e que, ao mesmo tempo, os faz diferir de todos os outros fenómenos de cultura de um passado mais ou menos recente. (CALABRESE, 1987, p. 10) A desordem e o caos presentes nos textos considerados neobarrocos rompem com a tradição do que antes era considerado arte. Com a modernidade, o conteúdo literário adquire pluridimensionalidade e instabilidade, bem como se utiliza de metáforas e palavras que antes seriam inaceitáveis dentro de uma poética clássica. O caos, no entanto, é proposital, o autor preocupa-se cada vez menos em facilitar o ofício do leitor, e se preocupa mais em romper com o tradicional, seja por meio da pontuação, da linguagem utilizada ou até mesmo pelo grande grau de abertura da obra. No neobarroco, as noções de uma estética perfeita deixam de existir, cedendo lugar a dualidades, à miséria humana, ao incompreensível, ao duvidoso, ao assimétrico. A beleza é relativizada, e o que antes era considerado idílico e simétrico tende a ficar em segundo plano. O neobarroco encontra sua ordem na assimetria, no caos. Calabrese mostra-nos, ainda, que ―qualquer fenómeno seria clássico ou barroco‖ (1987, p. 28), fazendo-nos realmente ver nas obras modernas subversivas uma forma expressiva predominantemente barroca. Para a análise de ―Conto barroco ou unidade tripartita‖ pretendemos utilizar algumas dualidades advindas do Barroco e conceitos utilizados por Omar Calabrese, a saber: limite e excesso, desordem e caos, nó e labirinto, pormenor e fragmento, quase e não-sei-quê. Essas noções nos ajudam a compreender o alto grau de complexidade presente nas obras do neobarroco. As noções de limite e excesso trabalham com o conceito de ―confim‖, sendo uma abstração que pertence ao espaço interno e externo de uma configuração, articulando esses dois espaços, determinando abertura ou fechamento. O confim constitui um limite; quando há excesso, o limite é então ultrapassado e o limiar do sistema fechado sofre ruptura. Sendo assim, podemos entender que obras simétricas e ditas ―harmônicas‖ ficam no âmbito do sistema fechado. Já as obras assimétricas e excessivas, a exemplo das neobarrocas, fazem parte do sistema aberto, pois ultrapassam os limites. Essa VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 308 desobediência aos limites não ocorreria, no entanto, por acaso – o autor moderno tem a intenção de ser excessivo, utilizando-se da estrutura ou do conteúdo do texto como meio de alcançar tal objetivo. As obras que fazem parte do sistema aberto têm mais elasticidade, e por isso o contorno se torna menos propenso à destruição. O exagero faz parte da cultura contemporânea, proporcionando múltiplas interpretações dentro de uma única obra. No que diz respeito à desordem e o caos, percebemos nas obras neobarrocas, de modo semelhante ao período Barroco, a busca da imprevisibilidade e do ininteligível, as noções de desordem, assimetria e caos em forte evidência. Omar Calabrese divide, todavia, a compreensão dessas noções em três posições distintas. A primeira consiste em: ―(...) pensar a ordem como um princípio de regularidade que se sobrepõe a um instindo originário, ou inversamente, como uma condição que, no entanto, tende para a dissolução final, absoluta eqüiprobabilidade dos fenômenos‖. (CALABRESE, 1987, p. 132) A ordem, nessa primeira posição, seria derivada do caos. Na segunda posição, há uma ordem que rege qualquer acontecimento. Essa ordem pode ser chamada de ―irregular‖ caso seja obscura a ponto de não poder ser resgatada pelo leitor. Para a terceira posição, a irregularidade dependerá de como a obra é explicitada e interpretada, sendo assim uma posição mais relativista. Podemos pensar também as obras neobarrocas a partir da dualidade nó e labirinto. O entrançamento presente nessa dualidade está muito ligado às manifestações de arte do período Barroco, mas transcendem esse período, surgindo também nas manifestações artísticas modernas. A complexidade da literatura moderna, por exemplo, não pode ser automaticamente interpretada como labiríntica – ―O caos do indefinido não torna forçosamente a figura em um nó.‖ (CALABRESE, 1987, p. 147). O labirinto implica, necessariamente, na ambiguidade, no movimento, ainda que a existência da ordem, ainda que causadora de confusão, em si não seja questionada . O leitor traça um itinerário em que se perde e se reencontra diante do objeto de arte, porque ―não se possuem mapas para se chegar ao centro do labirinto.‖ (CALABRESE, 1987, p. 147). O labirinto deve ser ―experenciado‖ pelo leitor, pois é imprescindível que ele cumpra seu itinerário dentro do texto para, além de desfazer os nós, captar a infinidade de sentidos oferecidos na obra ou VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 309 pelo menos alguns deles. Falar do esgotamento da obra labiríntica, em muitos casos, é algo tão improvável que só poderia ser feito por um leitor altamente idealizado. Nas obras neobarrocas, podemos perceber a atmosfera enigmática como forma de, propositalmente, fazer o leitor se debruçar de forma lúdica sobre o texto, percorrendo os sentidos mais diversos a fim de encontrar o centro do labirinto. No entanto, Affonso Romano de Sant‘anna nos diz que ―O labirinto não existe apenas como desenho, como jogo, como enigma. Tem uma conotação existencial‖ (2000, p. 66), uma vez que se tem o personagem vagante que percorre o labirinto. O pormenor e o fragmento, por sua vez, estão de tal forma unificados que não é possível explicar um sem o outro. O pormenor seria o detalhe, podendo aparecer com mais ou menos frequência nas obras neobarrocas, indo em direção ao excesso de detalhamento de um texto ou a uma espécie proposital de enxugamento e tolhimento desses detalhes. Acreditamos que a obscuridade de um texto independe da quantidade de detalhes que nele são fornecidos. A obscuridade da obra pode ocorrer ao passo em que o leitor tem a sensação de que falta algum pormenor, mas também ao mesmo tempo em que o texto é tão detalhado que se torna confuso atribuir funções a cada detalhe. A fragmentação da obra pode indicar seu inacabamento, sugerindo assim leituras diversas. ―Diferentemente do detalhe, o fragmento, embora fazendo parte de um inteiro anterior, não contempla, para ser definido, a sua presença‖ (CALABRESE, 1987, p. 88). O fragmento não possui um limite nítido, não evidencia o sujeito, o tempo, o espaço, funciona mais como recorte. Podemos, ainda, falar em quase e não-sei-quê. É possível pensar uma representação que almeja a perfeição como sendo mais peculiar ao período clássico, e a busca da quaserepresentação como mais uma das características que confirmam a caos e a vaguidade do barroco e, consequentemente, do que chamamos neobarroco. Diante do indizível, da incapacidade, e da insuficiência ao definir um objeto, a obra resulta no quase. Nesse quesito, Calabrese faz três especificações importantes: Actuação: não se consegue pôr em foco o objeto, ou então, desfoca-se propositadamente. Espacialização: não se consegue captar o contorno, o perfil, o confim do objeto por causa da distância errada entre sujeito e objecto, ou então produz-se uma distância inadequada. Temporalização: falta a capacidade de fixar a duração do objecto (e em particular o seu VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 310 caráter instantâneo), mas também este sentido pode ser construído. (CALABRESE, 1987, p. 174) Análise da narrativa Em ―Conto barroco ou unidade tripartita‖, elementos que evocam o período Barroco são constantemente mencionados. A escolha das cidades de Congonhas, Ouro Preto e Tiradentes, localizadas em Minas Gerais, não é aleatória, uma vez que essas cidades foram verdadeiros marcos do barroco brasileiro. A caracterização dos ambientes externos em que os personagens vivem nos permite quase que visualizar as marcas que o barroco deixou no Brasil. Elementos como o vestido suntuoso da negra com desenhos a ouro sobre carmesim, a descrição da ladeira de Congonhas ―cheia de Cristos e apóstolos imóveis (...)‖ (LINS, 2004, p. 120), a imagem recorrente das igrejas, casas com beirais e as ruas sinuosas comprovam essa atmosfera barroca. No seguinte trecho da obra, vemos também que o narrador-personagem, além de evidenciar a sinuosidade dos ambientes externos, reflete sobre eles: Sentei-me, abri um livro e pus-me a dissertar, solícito, sobre os arabescos, festões, bordaduras, conchas e volutas que o ilustravam. Declarava-me inferior a todos os enigmas e me desculpava por ter o dom de penetrá-los. (LINS, 2004, p. 133) Podemos citar como exemplos de confusão presentes nas narrativas neobarrocas, o fato de, no primeiro ―ou‖ do conto, haver um enterro em Ouro Preto que podemos considerar como sendo de José Gervásio, embora isso não fique claro – em nenhum momento o narrador nos dá tal informação. Já no segundo ―ou‖, percebemos, no texto, um espaçamento maior que o habitual para o próximo parágrafo, o que ocorre por diversas vezes nesse e em outros textos de Osman Lins, a exemplo de ―Retábulo de Santa Joana Carolina‖, novela presente em Nove, novena. É possível que o afastamento dos trechos indique além do afastamento físico – seria uma forma de separar dois acontecimentos muito distintos, funcionando talvez como um distanciamento temporal. A forma que o VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 311 autor se utiliza para separar dois acontecimentos é que, a primeira vista, causa estranhamento, confusão e surpresa ao leitor. Após o espaçamento, temos: Nua, no leito, os joelhos redondos para cima, pernas abertas, o braço esquerdo em repouso ao lado dos quadris, a mão direita presa ao gradil recurvo da cama, a colcha de chitão com desenho de papoulas, palmas entrançadas e grandes magnólias ocultando o sexo e subindo à altura do seu ombro direito, lembra, com o redondo umbigo e os ombros achatados, a atitude de um anjo que vi não me recordo onde, erguendo um cálice. (LINS, 2004, p. 122) A descrição que o narrador faz da negra é tão meticulosa que permite ao leitor a visualização do que é dito, como se o determinado momento da negra fosse um quadro pintado com palavras. A negra é comparada, ainda, com um anjo que o narrador diz ter visto não sabe onde, o que além de nos remeter a religiosidade do período Barroco, reafirma mais uma vez a atmosfera de incerteza e confusão na qual o narrador está mergulhado. A narrativa se mostra excessiva, elástica, fazendo parte do sistema aberto – permitindo várias interpretações possíveis, sendo labiríntica. Quando o próprio Osman Lins informa que, ―segundo os cálculos de um professor de matemática, ‗Conto barroco ou unidade tripartita‘ se presta a quatro mil e novecentas e noventa e cinco recriações possíveis‖ (NITRINI, 2002, p. 18, n. 4), a ideia de que o autor neobarroco tem consciência dos limites tradicionais que deseja subverter é apenas reafirmada. Além da riqueza de interpretações proporcionada pela quantidade de leituras a qual a obra, de forma geral se presta, podemos tratar ainda das várias interpretações que uma única passagem pode ter, sendo assim alegórica. No segundo ―ou‖, durante o diálogo empreendido pelo matador de aluguel e a negra sobre o filho que ela teve de José Gervásio e o respectivo abandono do pai da criança, o matador diz que a negra não prossegue em sua fala, mas sim que ―volta aos começos, aos meios, ao tortuoso giro de sua memória, maldizendo homens, um homem, esse Gervásio que ao mesmo tempo é ele e eu, e outros (...)‖ (LINS, 2004, p. 123). O fato de a negra voltar aos começos, aos meios, aos giros, nos remete à figura da espiral que não tem começo e nem fim. Já quando o matador fala desse VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 312 ―Gervásio que ao mesmo tempo é ele e eu, e outros‖, percebemos a indefinição própria do barroco e do neobarroco. O matador risca, ainda, uma espiral no ventre da negra. A espiral está ligada ao movimento, transitoriedade que se repete, interminável. Ao mesmo tempo, o ventre feminino está diretamente relacionado à fertilidade e, nesse caso, invariavelmente ao filho morto da negra. Podemos dizer, assim, que a figura da espiral tem caráter alegórico. Em Avalovara, Osman Lins utiliza-se do labirinto barroco, o palíndromo inscrito em um quadrado atravessado por uma espiral, e esse é o centro da narrativa. Características neobarrocas podem ser, portanto, encontradas de forma recorrente na obra de Lins, tais como alegorias, instabilidade, movimento, teor enigmático e obscuro. Podemos pensar, ainda, a espiral com o significado ligado à figura do ouroboros – a serpente egípcia que morde a própria cauda e transmite a ideia de circularidade, eterno retorno. A mesma noção de alegoria pode ser pensada no que diz respeito ao número três, presente no ―tripartita‖ do título e na quantidade de assassinatos possíveis. As conotações religiosas do conto comprovam uma possível ligação entre o ―tripartita‖ e a santíssima trindade que, apesar de subdividir-se em três, constitui uma unidade. O texto, apesar da tripartição, constitui também uma unidade, só que criativa, capaz de reinventar-se. ―Conto barroco ou unidade tripartita‖ suscita, assim, o conceito de obra inacabada, a dificuldade e estranhamento do leitor diante de uma infinidade de desdobramentos. No quarto ―ou‖, o homem fala de uma mulher que podemos pensar ser a negra. Diferindo da forma de tratamento ―negra‖ que ele usa durante todo o conto, usa agora ―mulher‖. O matador pensa em deixá-la ou em deitar-se novamente com ela, nos fazendo pensar, embora não possamos assegurar com certeza, que a ―mulher‖ realmente se trata da ―negra‖, já que ele mantinha um relacionamento afetivo-sexual prévio com ela e, em uma das alternativas de leitura, já havia abandonado-a. A sensação de estranhamento do leitor, no entanto, não para por aí. O homem mergulha em suas lembranças da infância, lembra da irmã. A lembrança é esquisitíssima, completamente fantástica – o rato sorve a irmã do homem; o pavão sangra o rato com uma faca; a irmã casa-se com um cachorro; o cachorro faz um bolo de terra para que a irmã do homem coma; a irmã aponta um pão na mesa e diz para o homem que é um menino – esse lhe responde dizendo que não é um menino, mas um escorpião; o homem diz que nos seus pratos transbordam crianças, jacarés, cavalos, VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 313 búfalos, lacraias, mães e flores, que eles devoram. Revela-se aí, o extravagante, o bizarro, o imprevisível – características essas que constituem as obras neobarrocas. Na narrativa, a confusão e o caótico trânsito de acontecimentos não param de desnortear e sugerir ambiguidade ao leitor. O quinto ―ou‖, de início, provoca confusão – temos a impressão de que o diálogo entre o homem e o pai da vítima ainda acontece, a mão que no ―ou‖ anterior sustenta um gesto, agora não se estende. O matador conversa, no entanto, com o próprio José Gervársio. A confusão proposital a qual o leitor é submetido confirma a aproximação existente entre pai e filho: de início, os dois fundem-se, confundem-se. A vítima coloca, ainda, que o seu verdadeiro nome não é José Gervásio, ao que o matador complementa com ―Sei. É Artur.‖ (LINS, 2004, p. 128), levantando inúmeras questões ao leitor. Entre elas: por que teria, a vítima, um nome falso? A informação de que o nome da vítima não é José Gervársio ocorre sem precedentes, de forma totalmente inusitada na narrativa. A vítima, no entanto, não confirma se o seu real nome é mesmo Artur. Diante dessas estranhezas, Lins confere certo caráter onírico ao texto: a imprecisão e a esquisitice trazem a sensação de sonho ao leitor. A evocação feita por José Gervársio, quando crucificado, no momento em que seus pais o abandonam levando o dinheiro que estava no bisaco, nos remete diretamente a Jesus Cristo. José Gervársio, que tem cabelo à nazarena – ou seja, cabelos longos? – gritava: ―Meus pais, meus pais, por que vocês me desampararam?‖ (LINS, 2004, p. 129), mantendo ligação direta com ―Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?‖ (Sal. 22), proferido por Jesus Cristo, em sofrimento, no momento de sua crucificação. José Gervásio se coloca, ainda, como homem que perdoa tudo, nos lembrando a figura do Jesus Cristo. No entanto, não fica somente no âmbito do sagrado o caráter da religiosidade na narrativa – após José Gervársio dizer que andava a pé quando era explorado pelos seus pais, enquanto eles se locomoviam de trem ou de ônibus, mostra-se vingativo ao inverter os papeis: depois de crescido, anda de carro enquanto os pais andam a pé. Podemos perceber aí, o contraponto entre o sagrado e o profano, pois ao mesmo tempo em que José Gervásio se assemelha fortemente a Jesus, mostra-se vingativo como um homem qualquer. Já a figura do pai que se oferece para morrer em lugar do filho José Gervársio, como nos mostra José Paulo Paes, ―inverte o episódio de Gólgota, e o abandono do Filho pelo Pai, numa palinódia onde ressoam ecos paródicos da teologia do ‗Deus está morto‘‖ (2004, p. 207, n. 5). VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 314 Podemos, portanto, classificar ―Conto barroco ou unidade tripartita‖ como uma obra neobarroca por encontrarmos nela um alto grau de instabilidade, ambiguidade, entrançamento, dúvidas, incertezas, detalhes e dualidades. A obra é rica em detalhes, mas se mostra caótica e propositalmente desordenada, tendo uma confusa ordem dos atos, sendo difícil, por exemplo, resumi-la. Essa dificuldade e confusão provocada pela obra são peculiares às obras modernas que, muitas vezes, são herméticas e exigem extrema competência do leitor. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CALABRESE, Omar. A idade neobarroca. Lisboa: Edições 70, s.d. LINS, Osman. Nove, novena. 4. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. LINS, Osman. Melhores contos de Osman Lins. Seleção e prefácio de Sandra Nitrini. São Paulo: Global, 2003. SANT‘ANNA, Affonso Romano de. Barroco: do quadrado à elipse. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. Fontes da internet http://www.destiempos.com/n14/hansen2.pdf (acesso em 17 de setembro de 2010) http://www.google.com.br/#hl=ptBR&q=FRITOLI%2C+2006+o+homem+diante+da +consci%C3%AAncia&aq=f&aqi=&aql=&oq=&gs_rfai=&fp=f3b53f9ebc94cbd8 (acesso em 18 de setembro de 2010) http://www.revistaletras.ufpr.br/edicao/69/LuizFritoliOsMisteriosDaPinturaEscritaNaNarrativaDeOsmanLins.pdf VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 315 15. UMA LEITURA ALEGÓRICA DO CONTO “ELES”, DA OBRA O OVO APUNHALADO, DE CAIO FERNANDO ABREU Antonio Peterson Nogueira do Vale (Universidade Federal do Rio Grande do Norte) ―Apesar de você amanhã há de ser outro dia Você vai ter que ver a manhã renascer a esbanjar poesia Como vai se explicar, vendo o céu clarear de repente, impunemente? Como vai abafar nosso coro a cantar na sua frente?‖ (Chico Buarque, Apesar de você, 1972) 01. Panorama de uma época A obra de Caio Fernando Abreu está repleta de fatos ocorridos durante as décadas de 1960 e 1970, período este em que o Brasil sofreu com as repressões ditatoriais dos governos militares; dentre elas, o mais repressivo de todos os atos, o AI-5, que cassava deliberada e exaustivamente os direitos políticos dos brasileiros. Muitos outros artistas, ligados direta e/ou indiretamente com o movimento considerado subversivo, tiveram seus direitos limitados e uma grande parcela deles foi mantida exilada em outros países. Histórica e oficialmente, a ditadura no Brasil prevaleceu até o ano de 1985, embora no ano anterior houvesse acontecido o movimento ―Diretas Já‖, ato político que mobilizou milhões de brasileiros com a finalidade de tornar democrática a política vigente no país. Foi em 1985, no entanto, que houve a eleição para presidente no país, em que Tancredo Neves – que não chegaria a assumir a presidência – venceu as eleições, na época, contra Paulo Maluf. O vice de Tancredo, José Sarney, assume a presidência. Em 1988 é aprovada a nova Constituição do Brasil, que apagaria os resquícios políticos da ditadura militar, ao estabelecer novos princípios democráticos na nação. Nesse ínterim, o autor gaúcho Caio Fernando Abreu escreve, registrando a sua época, desenvolvendo habilidades narrativas, usando a situação política enquanto literatura, inserindo o seu ponto de vista na história do país. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 316 Dentre os seus livros, Ovo apunhalado se encontra num período marcante da ditadura, pois, conforme o próprio autor, os contos que compõem a obra ―foram escritos entre 1969 e 1973‖, num tempo de ―lindos sonhos dourados e negra repressão‖. (ABREU, 2008, p. 11). Outros livros de Caio também giram nessa época repressiva, contendo, de igual forma, um cunho massivo contra a ideologia da ditadura, consoante as suas palavras na apresentação do romance ―Limite Branco‖, publicado em 1970: ―é um romance de e sobre um adolescente no final dos anos 60. Naquela transição, no Brasil, entre o golpe militar e o fatal AI-5, um pouco antes do psicodelismo e do sonho hippie mudarem os comportamentos.‖ (ABREU, 2007, p. 15) Dado esse contexto, e vertendo sobre uma análise minuciosa com ênfase para o barroco, e mais detidamente para os aspectos da alegoria, vemos no conto ―Eles‖, através das imagens alegóricas construídas neste trabalho, um substancial poder repressivo ao governo de então. É importante acentuar que a noção de leitura alegórica aqui intencionada vai ao encontro do que propõe Walter Benjamin, ao se referir à imagem enquanto fragmento, e João Adolfo Hansen e Olivier Reboul, entendendo a alegoria como figura retórica de significação. Nossa proposição é, então, empreender uma conjectura interpretativa para o conto, analisando alguns trechos e não os concluindo hermeticamente, pois, justamente por se tratar de texto literário, acreditamos haver outras leituras cujas interpretações e métodos podem ser eleitos para estar em harmonia com o escopo de leitura a que cada um se propõe. 2. “Eles”, de Caio Fernando Abreu Do conto ―Eles‖, Caio Fernando Abreu diz não lembrar absolutamente nada. ―Nem sequer precisar de onde exatamente brotaram – de que região submersa da cabeça, de que fugidia impressão do real. Mistério.‖ (ABREU, 2008, p. 12). Pode ser uma das formas de tentar apagar o passado para que não se desvende a fugidia impressão do real, o mistério. Esse se enquadra, na literatura, dentro de um panorama que vai do fantasioso imaginário ao maravilhoso encantado, dentro de uma VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 317 perspectiva fantástica. Rodrigues (1988, p. 9) clarifica a palavra com as bases etimológicas explicando que o fantástico se refere ―ao que é criado pela imaginação, o que não existe na realidade, o imaginário, o fabuloso‖. A obra de Caio, como um todo, está longe de se enquadrar em características embasadas no irreal, embora exista em sua antologia um livro infantil – o que já se explica – com essas ditas características, As frangas. No entanto, o leitor desatento que encetar a leitura do conto ―Eles‖ pode ter uma compreensão inocente acerca da narrativa, que gira em torno de alguns elementos estruturais, que têm, supostamente, aspectos fantasiosos. Um narrador o qual, conforme ele próprio diz, não sabe nada sobre si mesmo, como se observa neste trecho: ―Eu não tenho importância, não procure saber nada sobre mim porque ninguém saberá dizer, nem eu próprio, estou apenas contando esta história que não é minha e a que assisti como todos os outros habitantes da vila [...]‖ (ABREU, 2008; p. 61). A escolha por um narrador que não sabe quem é traz à tona a necessidade do anonimato para aqueles que se insurgiam contra o governo. Um menino – assim não identificado, sem nome – mais uma vez o autor reforça o recurso de deixar anônimas as personagens – mas que propaga importante papel no conto, devido a sua coragem, pois, a partir dela é que se tem conhecimento da história relatada, conforme assinala o narrador: Mas como eu ia dizendo, se aquele menino não tivesse ido lá ninguém saberia jamais, porque não creio que um outro menino ou qualquer outra pessoa se atrevesse a ir, inventavam coisas, cobras, plantas, animais estranhos, medos – e não se atreviam. Aquele menino, não. (ABREU, 2008, p. 61); Há, ainda, três ―seres estranhos‖ que, dentro da história, habitam um bosque, onde fatos estranhos acontecem. Esses fatos são a mola propulsora para encetar a história. O menino, que tem coragem de ir conhecer os tais seres, tenta descrevê-los sob os delírios de uma febre, não sabendo dizer se eram ―homens ou mulheres‖, mas sabia que ―eram altos, claros, tinham grandes olhos azuis e gestos compassados, cabelos compridos até os ombros, movimentavam-se mansos dentro de vestes brancas com amuletos sobre o peito. Falavam uma língua estranha e sorriam [...].‖ (ABREU, 2008, p. 63). Um impasse na narrativa é resolvido quando o narrador vai ao bosque com o menino, e aquele vê mudanças neste, enquanto divaga e aconselha: VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 318 Quando entramos no bosque, senti que ele [o menino] se modificava e seu olhar ganhava aquela espécie de luz de que falei a você. Foi então que eu o senti maior do que eu – maior porque sendo apenas um menino se atrevera a penetrar no que me assustava, embora soubesse do irreversível do que o menino vira. Porque você não pode voltar atrás no que vê. Você pode se recusar a ver, o tempo que quiser: até o fim de sua maldita vida, você pode recusar, sem necessidade de rever seus mitos ou movimentar-se de seu lugarzinho confortável. Mas a partir do momento em que você vê, mesmo involuntariamente, você está perdido: as coisas não voltarão a ser mais as mesmas e você próprio já não será o mesmo. O que vem depois, não se sabe. (ABREU, 2008, p. 64) Do narrador – a quem devemos o registro da história – concluímos também o seu status de detetive ao investigar, ir em busca dos acontecimentos estranhos e presenciar os fatos nos quais o menino é envolvido. Esse, depois da ida ao bosque, volta para a vila, onde incendeia a casa dos líderes locais, transformando então a cidade num verdadeiro pandemônio: casas incendiadas, população revolta com os seres estranhos, que são massacrados e queimados vivos, enquanto lançavam uma essência alucinógena – da qual o narrador não era inebriado. Uma marca da insurreição deliberada contra o poder local, contra os desmandos. O menino marca, nesse trecho, o poder que a população tem e demonstra, quando não se cala diante da violência que a ditadura tem como legítima patente. Sobre o menino, o narrador o viu pela última vez e constatou que aquele não era mais o mesmo: ―Não era mais aquele menino. Era um deles, com os mesmos olhos azuis em luz, sem sexo, lento e decidido.‖ (ABREU, 2008, p. 68). Ser um deles, para um entendimento alegórico, é ratificar o poder unido do povo contra o autoritarismo perverso que o regime governamental pós-64 denotava. O conto é finalizado com as impressões do narrador, tal qual ocorre durante toda a história relatada, com o seu toque de cautela para o ouvinte/leitor: ―A história é essa, talvez eu tenha falado mais do que devia, mas tenho uma certeza dura de que nem você nem os outros todos perdem por esperar. Cuidado: eles estão aqui: à nossa volta: entre nós: ao seu lado: dentro de você.‖ (ABREU, 2008, p. 70). VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 319 3. Sob uma perspectiva alegórica Empreender a leitura do conto ―Eles‖ – cuja demarcação cronológica insere a sua feitura no pós-modernismo – e direcionar os objetivos para detectar noções do barroco, como a alegoria, é fomentar a ideia de que o Barroco, conforme afirma Deleuze (1991, p. 13), é o traço que vai ao infinito. A fim de ressignificar essa proposição, aduz: ―O barroco remete não a uma essência, mas sobretudo a uma função operatória, a um traço. Não pára de fazer dobras.‖ (DELEUZE, 1991, p. 13) Essa ideia de dobra está intimamente ligada à subjetividade, enquanto evidencia as inúmeras formas de relação consigo e com o mundo. Tal como experimentou o escritor gaúcho Caio Fernando Abreu ao registrar, sob aspectos que remetem ao fantástico, uma narrativa que estabelece o seu convívio com as relações de poder e de estar no mundo. Todorov (2008, p. 16) expõe sobre o fantástico, ao remetê-lo à ―vacilação experimentada por um ser que não conhece mais do que as leis naturais, frente a um acontecimento aparentemente sobrenatural.‖ Na narrativa ―Eles‖, a partir de uma leitura alegórica, percebem-se os meandros da época da ditadura militar, com suas intrigas carregadas de subordinação e repressão. O conto em análise restaura esse clima de tensão, de medo e de revolta. Paramentada sob as afirmações de Benjamin, a alegoria se apresenta enquanto imagem fragmentada. ―Sua beleza simbólica evapora, quando tocada pelo clarão do saber divino. O falso brilho da totalidade se extingue.‖ (BENJAMIN, 1984, p. 198) A multiplicidade da significação respaldada pela alegoria faz perceber os traços que desenham essa característica do barroco na obra de Caio. Assim, em ―Eles‖, a visão fragmentada das lembranças do narrador deixa no vácuo a percepção do que poderia ter acontecido de fato. O narrador se encontra sob a égide da investigação, colaborando para que a visão seja parcial, contando apenas aquilo que quer narrar. Ora ele adormece, deixando sempre preso ao tempo alguns detalhes da história, ora observa as coisas a sua volta, registrando aquilo a que ele assistiu. Para outro crítico, Olivier Reboul, a alegoria pode ser vista como elemento didático. Segundo ele: ―A alegoria é uma descrição ou uma narrativa que enuncia realidades VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 320 conhecidas, concretas, para comunicar metaforicamente uma verdade abstrata. Ela é a estrutura do provérbio, da fábula, do romance de tese, da parábola.‖ (1998, p. 130) Aqui, os nossos esforços são visitados a partir da corroboração ideológica que cerca a nossa leitura, pois, desde o título do livro, O ovo apunhalado, há o início de uma leitura que lança uma ideia para anunciar outra. Nesse entendimento, vemos uma tensão que envolve os elementos ovo e apunhalado. Sob o primeiro elemento, Campelo discorre: O objeto ovo terá para todos os homens de qualquer cultura um acréscimo no entendimento que acarreta: é a lembrança de vida, de transformação, de fecundação, de dualidade (na representação fora/dentro, fechado/aberto, simplicidade/complexidade, amarelo/branco, duro/mole, vida/não-vida, por exemplo), de gênese, de nascimento, de totalidade, de múltiplas possibilidades, de ciclo, de abrigo ou útero, de prosperidade. (CAMPELO, 1996, p. 23) Ainda Campelo, ao retomar o sentido universal do ovo, clarifica: Um ovo possui desde o início todo o material essencial para desenvolver suas potencialidades, sendo uma complexidade químico-biológica dentro de uma simplicidade aparente. É um texto universal, comum a todos, um texto um tanto óbvio, quase passando despercebido ante a complexidade e multiplicidade sígnica em que vivemos. [...] O ovo guarda a qualidade do maravilhoso e por isso permitirá sempre uma nova leitura que iluminará a vida. (CAMPELO, 1996, p. 24-5) Assim, inferimos que o adjetivo apunhalado margeia a significação corriqueira da era ditatorial, rompendo a obviedade dos direitos e a significação da vida, sentido recuperado pela palavra ovo. O sentido de traição, da perda da inocência, do aborto, de subversão, do expugnado ante as atitudes ditatoriais que cercavam o país, fica óbvio diante dessa análise. Finalmente, no cabo da tríade que aqui fomenta a alegoria, Hansen (2006, p. 07) apresenta: ―A alegoria (grego allós = outro; agourein = falar) diz b para significar a. A retórica antiga assim a constitui, teorizando-a como modalidade da elocução, isto é, como ornatus ou ornamento do discurso.‖ VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 321 Nesse sentido, nos apropriamos em dizer que o menino – elemento central da narrativa – ao ir ao bosque, ao ser identificado como aquele que ―trazia na testa a marca inconfundível‖ (ABREU, 2008, p. 61), ao ter coragem e enfrentar – no sentido de experimentar o desconhecido – os seres estranhos dos bosques, transmuta a perda da inocência, e mesmo quando volta febril para o colo da mãe – a segurança – já não era mais o mesmo. O menino não luta contra os seres que conhece no bosque. Não há embate entre eles. Lepargneur (apud Leal, 2002, p. 69) aduz: ―O embate com o que não se conhece, com o que não se consegue apreender do mundo, ainda legitimaria um confronto do indivíduo com uma vontade superior, com um determinismo vago e impreciso.‖ (LEAL, 1989, p. 69). Assim, percebe-se que o menino aceita o desconhecido, está ―do lado‖ deles, não contra si mesmo, ele se insurge contra os poderes locais, tais quais fizeram os jovens durante a ditadura, rompendo com a máscara do anonimato, quebrando a barreira do status que se lhe evidenciava uma resignação mórbida. Agora era ―o‖ menino, não mais ―um‖ qualquer. A revolta proporcionou um novo status quo, uma nova situação, na qual, depois de experimentada – conforme repetidas vezes alertou o narrador – jamais voltaria à situação primeira. O ovo fora apunhalado. O menino quebra o sentido da vida da população e o narrador observa: Os habitantes da vila levaram muitos dias para voltarem ao normal [...] Agora os dias não são mais de pesca, sono, sesta, cadeiras sem procuras na frente das casas. Todos buscam com olhos desvairados luzes estranhas no céu, alfa, beta, gama, delta, sinas, signos, cumprem esquisitos rituais de devoção e perdição. (ABREU, 2008, p. 68-9) O trecho analisado encontra confluência com as ideias de Benjamin, para o qual a ideia fragmentária está na esfera da alegoria, respaldando o teor barroco na ―exposição barroca, mundana, da história como história mundial do sofrimento, significativa apenas nos episódios do declínio.‖ (BENJAMIN, 1984, p. 188). A destruição dos costumes da vila, da própria vila, do sumiço do menino podem ser interpretados como alegoria a que a cidade foi reduzida. A alegoria de Hansen, a partir dos processos retóricos, nos ajuda a entender o conto em análise como uma estrutura receptiva dos diversos olhares que o entendimento barroco VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 322 pode perpassar, conforme afirma: ―Como procedimento retórico, a alegoria subentende o projeto de afirmar uma presença in absentia – coisa que se exacerba, por exemplo, em artes dos séculos XVI e XVII hoje classificadas como ‗maneirismo‘ e ‗barroco‘.‖ (HANSEN, 2006, p. 33, grifo do autor). E continua respaldando o teor fragmentário da narrativa lida: ―Mais fortemente, a alegoria serve para demonstrar (ad demonstrandum), pois evidencia uma ubiqüidade do significado ausente, que se vai presentificando nas ‗partes‘ e no seu encadeamento no enunciado.‖ (HANSEN, 2006, p. 33, grifo do autor). Os seres, alegoricamente iguais à ditadura militar, deixaram três postulados: ―importante é a luz, mesmo quando consome; a cinza é mais digna que a matéria intacta e a salvação pertence apenas àqueles que aceitarem a loucura escorrendo em suas veias.‖ (ABREU, 2008, p. 60). A luz é esperança, uma nova saída para a população amedrontada pelos desmandos dos militares. As cinzas remetem à morte – no contexto do conto, uma morte que não se resguarda diante da covardia da espera pelo tempo bom. A salvação, sob o pretexto da ditadura, seria aliar-se àqueles que se insurgem contra o poder. Conforme percurso feito, muitas vezes, por incontáveis e desaparecidas pessoas que afrontaram o regime ditatorial. Isso posto, entendemos que a obra em análise de Caio Fernando Abreu está ligada ao fragmentário da ditadura militar, repleta de facetas que a população de então sofria e da situação que resultava nas ações dos ditos subversivos contra os militares. 4 – Últimas palavras O conto em análise clarifica a escritura de Caio Fernando Abreu enquanto instrumento para delinear o momento histórico em que o autor gaúcho vivenciou. O conto ―Eles‖ é uma base para as interpretações das marcas que o Brasil ganhou após 64. A alegoria nos serviu para entendermos o texto como aporte para as inúmeras imagens construídas pelo autor ao denunciar o autoritarismo do poder que a ditadura exercia no Brasil, nos anos compreendidos entre 1964 a 1985. Nesse sentido, foram analisadas algumas características que, sob um entendimento mais profícuo, por serem mais bem delineadas, ganham nova força interpretativa. É interessante também perceber que os contos do livro em questão, O ovo apunhalado, foram elencados sob três partes distintas, com nomes que derivam da Química e Física: VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 323 Alfa, Beta e Gama. Líria Alves, em poucas palavras, nos explica o fator radiação: ―A radioatividade é definida como a capacidade que alguns elementos fisicamente instáveis possuem de emitir energia sob forma de partículas ou radiação eletromagnética.‖59 Ao perceber o estudo de radiações na Química, entende-se que esses três elementos nomeiam raios que, segundo sua potência, respectivamente, têm um poder menos penetrante, razoavelemente penetrante e muito penetrante. Sendo que as partículas Beta, segundo Alves ―são mais penetrantes e menos energéticas que as partículas alfa‖. 60 O conto ―Eles‖ está inserido na parte Beta, o que nos leva a pensar que o autor sugeriu uma alegoria quanto a interpretação dos poderes abusivos da ditadura, mas poderes de penetração beta indicaria o insucesso do autoritarismo: emissão alta, mas não tão penetrante quanto a vontade popular, resultando nas inúmeras revoltas nas quais a população se insurgiu contra o governo de então. ―Eles‖ sugere a ideia de pessoas das quais não se pode falar o nome, como era feito na ditadura, que exilou políticos, artistas, estudantes, pessoas comuns e quaisquer outras que demonstrassem ser contrário ao regime vigente. O pronome de terceira pessoa plural ―eles‖, no conto, remete aos seres estranhos, os que triunfam sobre o ―mal estabelecido‖, mesmo pagando com as próprias vidas, o mesmo que acontecera durante os governos militaristas. O conto nos mostra o menino que foi exilado de sua infância, sem saber ao certo quem eram as pessoas que o afastaram dessa sua fase, à qual jamais voltaria com a visão pueril e inocente que tinha antes, fomentando assim outra visão: a adulta, cheia de riscos a serem assumidos. O menino já é um menino de grandes responsabilidades. Essa reflexão de estar no mundo nos é dada pelo narrador, que nos mostra a sua incompletude, mas ratifica a inquietude de um momento marcadamente repressor em nosso país. Cumpre ratificar aqui que as leituras feitas adotaram um viés alegórico para o conto em referência. Assim, entende-se que o apossamento das metáforas, da complexidade, do estranhamento, por parte do narrador, traz à superfície a lembrança de um sistema injusto, no qual cassava direitos e desumanizava os indivíduos, ressaltando ainda que esses indivíduos, enquanto participantes de uma sociedade acuada pelo medo, temiam não encontrar na união a vontade de sair do ovo apunhalado, desmascarar os ―eles‖, 59 O artigo se encontra, na íntegra, no artigo ―Radioatividade‖ no site: http://www.brasilescola.com/quimica/radioatividade.htm 60 O artigo ―Raios Alfa Beta Gama‖, de Alves se encontra, na íntegra, no site: http://www.brasilescola.com/quimica/raios-alfa-beta-gama.htm VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 324 deturpadores da ideologia que deveria ser predominante, segundo a vontade popular. As estratégias estruturais de Caio rompem com o convencionalismo adotado e mostra a originalidade de fazer pensar o leitor. Essa ligação feita entre o conto narrado e o ponto de vista depreendido sobre a contextualização histórico-social é um dos enfoques críticos possíveis diante do texto de Caio Fernando Abreu. A intenção dessa leitura é provocar uma reflexão sobre o autoritarismo e a dimensão do processo de criação literária. Ler o conto do autor gaúcho em análise é, sobretudo, empreender no processo criativo uma crítica relevante ao regime político adotado durante o período da ditadura militar, sem fazer esquecer as tormentas e agonias revisitadas nessas páginas da história do país, marcada pela dor e supressão de direitos do brasileiro. Referências Bibliográficas ABREU, Caio Fernando. Limite Branco. Rio de Janeiro: Agir, 2007. ______. O ovo apunhalado. Rio de Janeiro: Agir, 2008. BENJAMIN, Walter. A origem do drama barroco alemão. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984. DELEUZE, Gilles. A dobra: Leibniz e o Barroco. Tradução Luiz B. L. Orlandi. Campinas, SP: Papirus, 1991. HANSEN, João Adolfo. Alegoria – construção e interpretação da metáfora. São Paulo, SP: Hedra: Campinas. SP: Editora da Unicamp, 2006. LEAL, Bruno Souza. Caio Fernando Abreu, a metrópole e a paixão do estrangeiro: contos, identidade e sexualidade em trânsito. São Paulo: Annablume, 2002. REBOUL, Olivier. Introdução à retórica. Tradução Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 1998. RODRIGUES, Selma Calasans. O Fantástico. São Paulo: Ática, 1988. TODOROV, Tzvetan. . Introdução à Literatura Fantástica. Tradução de Maria Clara Correa Castello. São Paulo: Perspectiva, 2008. Sítios visitados: Alves, Líria. Radioatividade. http://www.brasilescola.com/quimica/radioatividade.htm VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 325 Alves, Líria. Raios Alfa Beta Gama. http://www.brasilescola.com/quimica/raios-alfabeta-gama.htm BUARQUE, Chico. Apesar de você. Letras. Disponível em: http://letras.terra.com.br/chico-buarque/7582/ VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 326 16. O BARROQUISMO NA SIMBOLOGIA DOS ELEMENTOS DA NATUREZA: AR, FOGO, ÁGUA E TERRA, EM LOS PERROS DEL PARAÍSO, DE ABEL POSSE Regina Simon da Silva (UFRN) Introdução O romance Los perros del Paraíso situa seu enredo em um período histórico que compreende os anos de 1461 a 1500 – de fins da Idade Média, ao ano em que Cristóvão Colombo é detido por Francisco de Bobadilla e deportado à Espanha – portanto, um tempo histórico do passado. Porém, o que o leitor americano tem de ler nesse romance não é o passado que ele encerra e sim a raiz do seu presente. Isso quer dizer que o autor ao se referir a um tempo histórico do passado o faz à luz do seu tempo. Abel Posse ao ―romancear‖ o descobrimento da América nos aproxima daquele episódio sem que nos afastemos ou nos esqueçamos do tempo real em que nos encontramos. O ano de 1492 é uma data que representa não só a ―descoberta da América como também a ―re-descoberta‖ da Europa. O feito de Colombo desestruturou as convenções formadas sobre o mundo, tanto no campo científico, como no religioso e no social. Uma nova ordem foi gerada. Esta data marca o instante em que se põem frente a frente dois mundos que se ignoravam e que a partir de então passariam a ―conviver‖ em um mesmo tempo e espaço. Para o mundo ocidental os acontecimentos históricos anteriores a este episódio ocorriam entre povos europeus, culturas conhecidas e reveladas, portanto, conceitos pré-estabelecidos. A necessidade de uma nova interpretação surgiu com Colombo. Nesse momento, segundo Dussel, entramos na Modernidade, já que em sua opinião: […] el fenómeno que lanzó a Europa a auto-interpretarse de manera completamente nueva fue, exactamente, la expansión que se produjo en 1492, donde un ‗Nuevo Mundo‘ –para Europa fue ‗Nuevo‘– vino a cambiar cotidiana y geopoliticamente la vida y el pensamiento de todos los europeos –y, por supuesto, la vida y el pensamiento de todos los pueblos ‗impactados‘ en VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 327 la ‗periferia‘ por tal evento–. Europa, sin notarlo casi, se transformó en el ‗centro‘ de la recién nacida empíricamente Historia Mundial. […] Pienso que este ‗hecho‘, el 1492 inicia exactamente esta ‗centralidad‘ europea y es el fundamento de lo que hoy se denomina ‗Modernidad‘ (DUSSEL, 1992, p. 20). Esta perspectiva pode ser identificada no romance de Posse, que estende o tempo do relato da narrativa à contemporaneidade da escrita da obra, ou seja, ao século XX, promovendo uma continuidade do processo histórico, onde se desenvolve o paradoxo do mundo moderno descrito por Berman como ―a união da desunião‖ (In: CASULLO, 1993, p. 67). Assim, os conflitos de ontem se repetem no presente ―globalizado‖ que integra e que exclui. Em Los perros del Paraíso, o narrador heterodiegético, desenvolve a ficção de forma fragmentada, representando o redemoinho em que o homem moderno está inserido, como também a memória destruída do povo indígena, incumbindo o leitor da reconstrução da narrativa. Os jogos anacrônicos, tão frequentes na obra, dificultam a sua compreensão. O narrador elimina os elementos tradicionais de coesão do texto, mas as datas dos acontecimentos – históricos ou não – e as descrições do narrador direcionam o leitor para frente (prolepse) ou para trás (analepse). Assim, identificamos três momentos e espaços diferentes anteriores ao descobrimento: a Espanha e a adolescência de Isabel e Fernando; a Itália e a adolescência de Cristóvão Colombo; a América e o encontro hipotético dos líderes das civilizações asteca e inca. São três relatos que se desenvolvem simultaneamente, sem que um tenha conhecimento da existência do outro (exceto o narrador e os leitores), mas que se unirão em um momento único da História: o Descobrimento. O elo de união entre esses três fios narrativos é proporcionado por Colombo, personagem ambíguo tanto para a história como na ficção. Segundo palavras de Posse, quando ele teve de enfrentar tudo isso, ele se deu conta de que a linguagem que melhor estaria à altura de tal incumbência era uma linguagem muito fantasiosa e poética, às vezes contraditória com o uso conceitual. Ou seja, o barroco, em Los perros del paraíso, reside no estilo adotado pelo autor, na linguagem empregada, que funciona como um instrumento hermenêutico para compreender a realidade americana. Buscaremos, portanto, analisar a linguagem fantasiosa adotada por Posse para desvendar a simbologia dos elementos da natureza: ar, fogo, água e terra. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 328 Estrutura quaternária: ar, fogo, água e terra Los perros del Paraíso apresenta uma primeira grande divisão quaternária. Para a aritmética esta palavra significa a progressão dos quatro primeiros números: 1, 2, 3, 4. Somando esses números obtemos a Década, ―símbolo da perfeição e chave do universo‖ (CHEVALIER, 1998, p. 758). Incita a que se pense no número quatro61, que por sua vez também traz consigo uma significação simbólica: os quatro braços da cruz, que, ao lado da Bíblia, são os expoentes do Cristianismo – doutrina implantada pelo Império Espanhol nas terras conquistadas –. A relação do número quatro com a cruz faz dele ―um símbolo incomparável de plenitude, de universalidade, um símbolo totalizador‖ (CHEVALIER, 1998, p. 759), reforçando os planos de construção – por parte dos Reis Católicos – de um mundo unitário, subjugado a uma única crença. Em Posse, também observamos a totalização do tempo e do espaço, já que o autor descreve o passado sem se afastar do presente, ou seja, a compreensão de nossa realidade passa pelo conhecimento de nossas raízes – daí a importância de se conservar a memória –. Sua obra totaliza – de forma ao mesmo tempo integradora e caleidoscópica – a modernidade, onde ―os distintos tempos e os distintos espaços se combinam em um agora e um aqui que está em todas as partes e sucede a qualquer hora‖ (PAZ, 1976, p. 137). Como forma de demonstrar essa contradição da modernidade, que totaliza e ao mesmo tempo desintegra, Posse divide a sua ficção em quatro partes bem delimitadas, representando os quatro elementos da natureza, deixando que o leitor se encarregue de fazer a união, um jogo de memória. Para os adeptos da via mística o número dos elementos significa o número de portas a ser transposto. Cada uma dessas portas está associada a um dos quatro elementos na seguinte ordem de progressão: ar, fogo, água, terra (CHEVALIER, 1998, p. 561). 61 O número quatro tem uma série de representações: o cruzamento de um meridiano e de um paralelo divide a terra em quatro partes, existem quatro pontos cardeais, quatro ventos, quatro pilares do Universo, quatro fases da lua, quatro estações, quatro elementos, quatro humores, quatro rios do Paraíso, quatro letras no nome de Deus (YHVH) e no do primeiro homem (Adão), quatro braços da cruz, quatro Evangelistas (CHEVALIER, 1998, p.759). Em Los perros del Paraíso Seymour Menton também identificou uma série de repetições com o número quatro: ―‗Desde los cuatro extremos del mundo civilizado‘ (36); ‗durante los cuatro años de guerra civil‘ (93); durante la visita de Colón a Beatriz de Bobadilla en las Islas Canarias, ‗eran deliciosas las cuatro jóvenes que atendían‘ (130), y lo bañan ‗las cuatro ciervas‘ (138); los cuatro curas subversivos: ‗Buil, Valverde, Colangelo y Pane‘ (191); cuatro superhombres de los Reyes Católicos: ‗Gonzalo de Córdoba, el chancherro Pizarro, el amoral genovés, el aventurero Cortés‘ (110); etc.‖ (1993, p. 124). VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 329 Coincidentemente esta também é a ordem disposta em Los perros del Paraíso e em cada uma dessas partes – ou portas – histórias simultâneas são narradas, progressivamente, até a sua transposição para a próxima parte – ou porta –. Discorreremos sobre cada uma dessas partes na sequência em que estas se apresentam. A) O elemento ar simbolicamente está associado ao vento, ao sopro – Deus soprou no rosto do primeiro homem o espírito da vida –; representa o mundo em expansão. É um elemento ativo, masculino (CHEVALIER, 1998, p. 68). Nesta primeira parte, antes mesmo de começar o capítulo propriamente dito, nos certificamos da força motriz que dá vida à obra: o livro começa e termina com a palavra ―Paraíso Terrestre‖. A presença de cinco epígrafes, tanto históricas – ―Aquí es el Paraíso Terrenal, adonde no puede llegar nadie, salvo por voluntad divina‖ (carta del Almirante a los Reyes Católicos) –, como fictícias – ―¡se le envió a que fuera por oro y demonios, y él que nos viene con plumas de ángeles!‖ – (Fernando de Aragón) (POSSE, 1987, p. 8) 62, dão a tônica do texto. História e ficção se misturam e dialogam com diversos intertextos, quase sempre anacrônicos. Como exemplo desse anacronismo podemos citar o momento em que o narrador descreve o comportamento autoritário de Isabel (ainda não havia se tornado rainha) e sem nenhum esclarecimento prévio dá aos leitores uma informação correspondente ao ano de 1940: Penumbra. Un amanuense triste frente al libro de audiencias. Aparentemente nadie. Pero en el rincón del eterno retorno de lo mismo, casi invisibles, el general Quipo de Llano con altas botas muy lustradas y planchadísimos breeches preside la comitiva de académicos y magistrados (¿Días Plaja? ¿El doctor Derisi? ¿Battistesa? ¿D‘Ors?). Le pedirán al Rey patrocinio y fondos para el Congreso de Cultura Hispánica de 1940 (PP, p. 17). Também é anacrônico o encontro entre Colombo e Nietzche – representado no romance pelo personagem Ulrico Nietz, soldado mercenário alemão que cuida do 62 Los perros del Paraíso (POSSE, 1987, p. 8). A partir de agora todas as referências do corpus serão feitas no corpo do trabalho indicadas pelas letras PP e a página correspondente. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 330 ferimento de Cristóvão, resultado da surra que seu cunhado Santiago Bavarello e seus primos lhe deram –. Ulrico chega ao Vico de l‘Olivella foragido da Alemanha por haver revelado seus pensamentos: En la odiosa Berna de los relojeros había osado decir que ―el hombre es una cosa que debe ser superada.‖ Amaneció brutalmente golpeado. Desde entonces ocultaba celosamente un terrible secreto que sólo podía revelar a los fundadores de un Imperio (PP, p. 23). Neste discurso identificamos o elo que o unirá a Colombo, possibilitando que ambos se reencontrem na grande viagem rumo a América: o seu segredo só poderia ser revelado aos fundadores de um Império. No esquema cronológico que antecede cada parte e pretende dar caráter verossímil aos fatos ao resumir os pontos mais representativos de cada capítulo, já é possível identificar os três fios narrativos que se desenrolarão ao longo da narrativa. O narrador descreve uma Europa em crise, decadente e sem esperança. A Espanha amarga anos sob o domínio árabe e vê fracassar as tentativas da Igreja Católica de uma reconquista do território. O homem sente-se aprisionado dentro de um espaço que já não comporta as novas aspirações; deseja expandir, construir um Novo Mundo. O narrador comenta ironicamente que ―las multinacionales se asfixiaban reducidas a un comercio entre burgos‖ (PP, p. 13). Essa insatisfação generalizada levava o homem a cobiçar um mundo perfeito, uma vez que o Ocidente, ―vieja Ave Fenix, juntaba leña de cinamomo para la hoguera de su último renacimiento. Necesitaba ángeles y superhombres. Nacía, con fuerza irresistible, la secta de los buscadores del Paraíso‖(PP, p.13). Faltavam, para a concretização desses anseios, homens de coragem, conhecimento científico, reis com força política, tudo o que a Espanha do momento era incapaz de oferecer. Gradativamente o narrador vai elaborando esses itens. O destino do homem que abriria as portas para a expansão espanhola estava traçado desde a sua infância. O mar confidenciava um presságio a Colombo em um momento de pura contemplação e poesia: ―El mar no decía Coo-lom-bó. No. Decía claro (en español): ‗Cooo-lón‘. El ‗lón‘, de una forma seca y rápida, diríase autoritaria. O como quien pronuncia la última palabra amenazado de estornudo‖ (PP, p. 20), revelando que o destino de Colombo estava VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 331 vinculado à Espanha, ele era o ―eleito‖ para realizar essa parte da história ―posseana‖. O conhecimento necessário nosso protagonista conquistará de várias fontes, mas a paixão e a nostalgia do Paraíso lhe foram incutidas ainda na infância, na paróquia onde o até então Cristoforo recebia sua pouca educação: … fue el cura Frisón el que contagió a Cristoforo la pasión, pena y nostalgia del Paraíso. Un viernes lluvioso (pleno invierno) después de un almuerzo con una botella entera de Lacrima Christi, el cura, ante los asombrados niños, comenzó a describir playas de arena blanquísima, palmeras que rumoreaban con la suave brisa, sol de mediodía en cielo azul de porcelana, leche de cocos y frutas de desconocido dulzor, cuerpos desnudos en agua clara y salina, músicas suaves. Pajaritos de colores. Trinos. Fieras tranquilas. El colibrí libando en la rosa. El mundo de los ángeles, seres perfectos, sin tiempo. ‗¡Eso es el Paraíso! ¡Y de allí hemos sido expulsados por Adán y por los judíos! ¡Ahora mejor morir, mejor ser abandonados por esta sucia y triste carne y estos días! ¡Lo mejor, muchachos, el Paraíso! ¡Es lo único que vale la pena! (PP, p. 26). A geografia da cidade de Gênova protegia seus moradores da cultura humanista que crescia na Itália, deixando-os em uma total ignorância, livres de ―michelángelos y dantes (…) de aquel tiempo de mutaciones profundas‖ (PP, p. 25). Simultaneamente à narrativa da adolescência de Colombo, o narrador também descreve a formação dos futuros reis da Espanha, alternando as entradas em cena. Isabel, uma adolescente impetuosa e ambiciosa, consegue a legitimidade do trono da Espanha em uma batalha entre ―feras‖; monta e domina um leão que protegia o leito do Rei Enrique IV, cuja impotência consegue provar, o que impossibilitaria que Juana, la Beltraneja, fosse sua filha, logo, sua herdeira, declarando-se, portanto, a futura herdeira do trono: ―la batalla entre la ilegal legitimidad y la ambición quedaba declarada‖ (PP, p. 19). O erotismo na obra aparece explícito e impulsiona Isabel a conquistar seu primo Fernando, com quem acaba mantendo relações sexuais antes do casamento, embora estivesse proibida de vê-lo – ―para los poderes establecidos, resultaba bien claro que la unión de aquellas fuerzas, compelidas por una cósmica eroticidad, tendría por resultante una mutación política, económica y social sin precedentes‖ (PP, p. 51) – a adolescente VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 332 queima de desejo, ―ni el viento frío de septiembre, que ya soplaba, la calmaba‖ (PP, p. 45). Aconselhada pela mãe que lhe diz ―mata como puedas la fiera del deseo. El deseo es la esencia del Mal‖ (PP, p. 46), Isabel compreendeu que poderia transformar aquela compulsão sexual em algo mais produtivo, mais vantajoso, e ―freudianamente buscó una ideología para encauzar tanto deseo, una superestructura adecuada‖ (PP, p. 47). Nasce a congregação dos partidários fiéis aos reis sob o signo da SS. Não podendo mais se opor à união dos adolescentes, estes se casam, vivem momentos fortes de erotismo, sadismo e luxúria, para finalmente o narrador introduzir o primeiro diálogo entre o casal: — ¡Acabar con esa pecaminosa felicidad de los moros en sus territorios de Al-Andalus! — ¡Un Imperio, un pueblo, un conductor! — ¿Y el terror? ¿Cómo conseguir alguna unidad sin terror? — ¿y el dinero? — Lo tienen los judíos. Si ellos lo prestan, ¿por qué no quitarles el capital en nombre de la religión verdadera? ¿Un judío sin sufrimiento se vulgariza como cualquier cristiano…? — ¡Todo por hacer! ¡El mundo, la vida! ¡Hay que conquistar Francia, Portugal, Italia, Flandes! ¡Despedazar a los moros! ¡Los mares! ¡Los mares! — ¡Y el Santo Sepulcro! — No lo olvidaremos. (PP, p. 56) A linguagem, rica em detalhes, muito humor, ironia e crítica, engendra os quesitos necessários para a realização da expansão que o elemento ar sugere. A virilidade do elemento ―ar‖, ao contrário do que se imagina, é representada em Los perros del Paraíso pela figura feminina de Isabel, que, seduzida pelo poder, acaba dominando Fernando. Enquanto o Ocidente se preparava para a grande conquista, do outro lado do Atlântico uma outra história se desenvolve paralela às narradas anteriormente. Ao falar das civilizações ameríndias a criatividade do autor surpreende o leitor ao promover um encontro entre as civilizações asteca e inca para resolverem o problema da morte do sol, na cerimônia do Fogo Novo, assim explicada por Vaillant: ―La ceremonia del Fuego Nuevo se simbolizaba por la extinción del fuego del altar antiguo, que había ardido VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 333 continuamente durante cincuenta y dos años y encendido otro nuevo, en prueba de la nueva concesión de vida‖ (VAILLANT, 1973, p. 166). A cada cinquenta e dois anos se fechava o ciclo da história, ou seja, o Fogo Novo simbolizava o fim da história. Para se assegurarem de que um novo ciclo se iniciasse, neste dia se realizavam sacrifícios em homenagem ao deus sol e o chefe inca foi convidado para a festa. O narrador traça perfis diferentes entre as culturas, o que dificulta as negociações entre elas. O chefe asteca, o tecuhtli, deseja convencer o representante inca Huamán a invadir as terras geladas e fazer prisioneiros ―veinte o treinta mil de aquellos brutos pálidos para inaugurar, en el año azteca 219, el tiemplo de Huitzilipochtli y conjurar el drama de la anemia solar‖ (PP, p. 33). Na ficção ―posseana‖ os incas possuíam as técnicas para se chegar à Europa; conheciam ―el secreto de los ríos que corren en el mar‖ (PP, p. 34); dominavam a difícil ciência de voar em balões. Segundo Huamán ―uno de nuestros globos llegó a Düsselfort‖ (PP, p. 35). Mas o leitor logo percebe a inviabilidade do projeto, pois quando o narrador descreve essas civilizações as põe em lados opostos, declarando sua opinião sobre elas: ―Estos aztecas tenían aperturas a la gracia, a la inexactitud. Toleraban el comercio libre y la lírica. El Incario, en cambio, era geométrico, estadístico, racional, bidimencional, simétrico. Socialista, en suma‖ (PP, p. 33). Logo, também o tecuhtli se conscientiza de que seria impossível convencer Huamán e seu povo, eles ―no se comprometerían en una aventura imperial hacia las tierras frías‖ (PP, p. 35); as negociações fracassaram. O narrador finaliza esse encontro com uma imagem solene. Em sua narrativa os chefes indígenas realizam o último banquete no Palácio Imperial. Esse episódio estaria registrado no Codex Vaticanus C. O narrador antecipa o futuro e lamenta que essa memória tenha sido destruída pelos espanhóis: ―Ceremoniosamente se encaminaron hacia el banquete en el Palacio Imperial. Ingresaron en ese panteón de luz y calor que es el Codex Vaticanus C, tercera parte, perdida para siempre en la quemazón de documentos aztecas ordenada por el atroz obispo Zumárraga‖ (PP, p. 35). De forma humorística, antropofágica e trágica, o tecuhtli tenta, sem sucesso, convencer Huamán de que a única forma de evitar uma conquista é conquistando: ―Señor, ¡mejor será que los almorcemos antes que los blanquiñosos nos cenen…!‖ (PP, p. 35). O narrador decifra o Codex enquanto os chefes indígenas ―a punta de sandalia avanzaban por el papel delicadamente pintado del Codex Vaticanus C‖ (PP, p. 57). Era a descrição do último banquete, uma festa que terminaria com o sacrifício de escravos. Neste VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 334 momento temos acesso ao fluxo de consciência de Huamán ―¿Por qué esclavos? ¿Por qué no todos trabajadores del Imperio, como en el Incario?‖ (PP, p. 57), e se evidencia a diferença entre as duas culturas. Antes de transpor a porta, o narrador faz mais uma referência ao fogo, que na mão do homem é metáfora da destruição, consome a história e tudo o que poderia representar de luz para o conhecimento da evolução do mundo: ―Son harto extrañas las imágenes que aparecían en el rollo Vaticanus C quemado por el atroz cura Zumárraga (él y el Obispo Landa equivalen a todas las pérfidas llamas que abrasaron la Biblioteca de Alexandría), (PP, p. 59). B) O elemento fogo por sua característica está sempre relacionado à cor vermelha e a alta temperatura. Simboliza o amor – seu lado positivo –, mas também a cólera – seu lado negativo –. O fogo que destrói e consome favorece o ressurgimento da vida (técnica utilizada por agricultores para adubar a terra), revertendo o aspecto negativo da destruição. A dualidade na representação do fogo, onde tudo tem seu oposto, pode ser identificada em outros elementos: os raios do sol – celeste, positivo –; o fogo do inferno – terrestre, negativo –; os círios em funerais representam a morte – negativo –, mas a luz que emana representa a outra vida – positivo –. Ainda que exista vida no elemento fogo o seu aspecto negativo sobressai, se manifesta com maior intensidade: ―obscurece e sufoca, por causa da fumaça; queima, devora e destrói: o fogo das paixões, do castigo e da guerra‖ (CHEVALIER, 1998, p. 443), o ―domínio do fogo é igualmente uma função diabólica‖ (Ibid. p. 441). Esta parte ou porta representada pelo elemento ―fogo‖ cobre o período de 1476 a 1488. Aqui se consolidarão os elementos forjados para a expansão. Cada história seguirá o seu curso conforme a busca empreendida pelos personagens no intuito de atingirem seus objetivos. O narrador seguirá a mesma técnica até a finalização da obra: saltos anacrônicos, metaficção, intertextualidade, humor, crítica e ironia, parodiando a história. Em Los perros del Paraíso o fogo ganha representação na sua polaridade negativa, representando o período negro da Espanha da época, por isso o fogo destruidor: a guerra civil, a Inquisição. Os presságios aparecem sempre com um sinal de fogo, como mau agouro. No entanto não podemos deixar de pensar que a ciência ganha espaço, o antropocentrismo divulgado pelo humanismo leva o homem a acreditar em si mesmo, a VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 335 traçar o seu destino livre da intervenção da Igreja, e isso significa crescimento, expansão. Passaremos a observar essas considerações dentro da obra, seguindo a trajetória de nossos personagens na transposição para esta segunda parte. Seguindo seu destino, o Colombo de Posse já se encontra na Espanha com o nome de Cristóbal, conforme havia anunciado o mar. O protagonista pensa na melhor forma de aproximar-se do poder – os Reis Católicos – e revelar seu segredo, mas por enquanto é apenas uma figura ridícula que sofre com a zombaria alheia ―se burlaron desde varias mesas. Le tiraron algún hueso, ya roído por los perros naturalmente‖ (PP, p. 64). Dialogando com a História, o Colombo de Posse também passa por Portugal antes de chegar à Espanha. O narrador faz um retrato de Colombo através da retrospectiva dos últimos vinte anos de sua vida. Sentado em uma mesa de taberna, Colombo passa por uma crise existencial, se questiona sobre a vida e recorda melancolicamente seu passado: Sobreboló su largo ventenio de navegante y náufrago, de cartógrafo improvisado y de marido por interés (PP, p.71). […] Y recordó con melancolía su perdida posibilidad de orden y felicidad, su matrimonio con Felipa Moñiz Perestrello, en una Lisboa que para siempre quedaría atrás (PP, p. 73). O narrador revela alguns dos métodos utilizados pelo personagem Colombo para conseguir as informações que tanto desejava. Descobrimos que nosso protagonista explorava as mulheres, ―largos años juntando datos. Buscando signos entre las medias palabras. Robando mapas apolillados en los cajones de la cómoda cuando las seducidas viudas de infaustos navegantes se dormían fatigadas de saciamiento y culpa‖ (PP, p.71); torturava indefesos, ―abofeteó al náufrago que agonizaba en la playa de Madeira‖ (PP, p.71); e também ―torturó a un vikingo que tuvo que explicarle con sus dos docenas de palabras latinas cómo era la costa de esa Vinland donde hasta había llegado el obispo Gnuppron en misión pastoral‖ (PP. p. 72). Sua esposa Felipa tampouco foi poupada. Conhecemos um Colombo com requintes de sadismo em suas núpcias, mas nem esse momento de erotismo o afasta de seu destino, de sua obsessão: VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 336 En ese mismo cajón, al fondo, a la derecha, encontró la famosa carta secreta del geógrafo y cosmólogo florentino Paolo Toscanelli, dirigida al finado Perestello con un claro croquís sobre las Antillas y el Cipango, no muy lejos de la costa portuguesa. […] Se trataba de un hecho decisivo en su destino: ignaro de aquella erótica geografía, que le pareció fantástica, creyó haber descubierto el mapa del Paraíso terrenal (PP, p. 77-78). Ao mesmo tempo em que crescia a sua convicção na existência de um Paraíso Terrestre advinda de sua formação religiosa, de suas novas descobertas e de leituras populares que o influenciavam, principalmente o livro do cardeal Pedro d‘Ailly Imago Mundi, lido repetidas vezes, Colombo chega a algumas conclusões: 1º) de que podía retornar al Paraíso Terrenal, que como anotaba el Cardenal: ―Hay en él una fuente que riega el Jardín de las Delicias y que se divide en cuatro ríos.‖ 2º) ―El Paraíso Terrenal es un lugar agradable situado en Oriente, muy lejos de nuestro mundo.‖ Colón anotó al margen: ―Allende el Trópico de Capricornio se encuentra la morada más hermosa, pues es la parte más alta e noble del mundo, el Paraíso Terrenal.‖ 3º) Supo que en él no podía haber otra decoración que no fuese de joyas y de oro. ¡Por lo tanto se podía saquear, invertir en las empresas genovesas y comprar la mayoría accionaria! Por último, sí, se podría rescatar el Santo Sepulcro y reabrir el camino de Oriente en manos de la ferocidad tártara y la ―cortina de cimitarras de hierro‖. 4º) Definió un conocimiento esotérico que no podía anotar y que confió a la memoria (PP, p. 79). VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 337 Também se intensificava a procura, por parte de Colombo, de conhecimento científico que possibilitasse essa grande viagem, mas isso esbarrava, obviamente, na crença de que a terra era uma grande esfera, teoria de que Colombo discordava, porém, como revelar sua descoberta a um mundo onde os homens temen arrojarse mar adentro porque saben que avanzan peligrosamente por una esfera, la de la curvatura de la Tierra. Saben que al no tener goma en la planta de los pies, ni estar las naves fijadas al agua, caerían en el Vacío Estelar irremediablemente una vez superado el máximo tolerable del ángulo de curvatura que atribuían –equivocadamente– al planeta (PP, p. 73). Colombo sabia que deveria ser prudente ao revelar a descoberta de que a Terra não era redonda, pois em Portugal não o levaram a sério; portanto, aguardar o momento ideal fazia parte de sua tática e essa espera o atormentava: ―le costaba aceptar el increíble juego del mundo. Tenía que comprender que si echase a correr hacia la tienda real vociferando sus revelaciones, sería despedazado por la jauría de guardia‖ (PP, p. 72). Neste momento da ficção o personagem Colombo unirá os três fios da narrativa, ou seja, fará o elo entre as histórias que ainda se desenvolviam de forma simultânea, mas em cenários distintos. Falta promover esse encontro que se realizará em duas etapas: 1º) Colombo revela seu segredo aos Reis e os convence a investir em sua Empresa; 2º) Colombo transpõe o mar e expande o império espanhol, encontrando-se com a terceira história narrada. Vejamos a primeira etapa desse encontro. Como dissemos anteriormente, o domínio do fogo é uma função diabólica e Isabel demonstra conhecer bem o que isso significa. Nesta parte da narrativa vemos que essa personagem se fortifica e o narrador justifica seu crescimento devido a uma guerra íntima. O comentário do autor dentro do relato esclarece ao leitor a posição crítica deste com relação à visão de que apenas a história dos grandes feitos seja registrada: El Reino se consolidaba apenas. Paralelamente, una guerra secreta, íntima, correspondía a la exterior, la que registraron los historiadores (sólo hay Historia de lo grandilocuente, lo visible, de actos que terminan en catedrales y desfiles; por eso es tan banal el sentido de historia que se construyó para consumo oficial) (PP, p. 66). VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 338 Essa guerra íntima se refere à guerra de sexos, de poder, que existe entre Isabel e Fernando, onde a ―fêmea‖ resultou mais astuta e sagrou-se Rainha após a morte de Enrique IV, não respeitando a supremacia do homem, e ―Fernando quedó herido en su más delicado machismo‖ (PP, p. 66). Isabel empreendeu uma luta intensa para confirmar seu poder e unificar a Espanha. A linguagem adotada nesse instante e a sonoridade criada pelas palavras provocam no leitor a sensação de estar cavalgando, junto com a Rainha, pelos campos incendiados e ardendo pelo fogo da batalha: Monta tanto Tanto monta Isabel como Fernando. ¡Ya la caballería! ¡y los lanceros! ¡infantes, alabarderos, ballestas! ¡ya que hay que morir, mejor morir a puñaladas! ¡y fuego, mucho fuego, hasta que la unidad se imponga y la tolerancia impere! ¡Muerte a los intolerantes! (PP, p. 84). O poder domina a Rainha que se mostra cruel, diabólica, ressaltando, neste momento, seu lado negativo: ―El Orden Nuevo se consolidaba‖ (PP, p. 86) e com ele a Inquisição e a figura impressionante de Torquemada, sempre submisso à Rainha. Como bons estrategistas os Reis percebem a necessidade da legitimação dos atos de seu governo, do apoio de uma Igreja que fosse conivente com a nova ordem criada e subjugasse as massas sem piedade. Cria-se então um ―Papado a medida de su Imperio‖ (PP, p. 87) e Rodrigo Borja é escolhido como Papa ideal, ―un gran mundano, capaz de ejercer el poder con natural violencia‖ (PP, p. 87). Colombo, ―desesperado de esperar en vano, de ser desconocido, de no ser encontrado por quienes lo buscaban y no lo intuían‖ (PP, p. 98), se apresentará pela primeira vez a essa rede de poder. O episódio será marcado pela comicidade de sua representação e terminará em um grande fracasso; ainda não foi dessa vez que sua VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 339 cosmologia abriria as portas da Espanha para o mundo. Até aquele momento o império espanhol se encontrava ―contaminado‖ por judeus e muçulmanos contrários às leis professadas pela nova ordem estabelecida. Fazia-se necessário sua eliminação total para a expansão do cristianismo no mundo e Isabel intuía que no podía consolidar un Imperio, dominar al mundo y frenar la expansión del turco hacia Occidente sin una sangrenta guerra civil. Sabía que el fuego que se exporta para someter a los otros pueblos y crear un Imperio no es más que la llama del fuego de adentro, el de la guerra civil (PP, p. 104). Com esse discurso o narrador demonstra conhecer profundamente o pensamento de sua fictícia Rainha e o alcance dessas palavras, já que críticos e historiadores da atualidade são praticamente unânimes em afirmar que os métodos de conquista empreendidos na América não foram senão uma exportação dos já testados anteriormente na Península, como nos confirma Enrique Dussel: La ‗conquista‘ nos habla de una ‗re-conquista‘, aquella que los cristianos hispanos durante más de siete siglos llevaron a cabo contra los musulmanes. Desde el lejano 718, cuando comienza la reconquista en Covadonga, hasta 1550 aproximadamente, cuando termina la ocupación de los imperios azteca e inca. […] El ‗espíritu de Guerra Santa contra los musulmanes, se transformará sin mucha conciencia en la lucha contra los indígenas‘ (DUSSEL, 1992, p. 16). Em nosso texto se intensifica o terror na Espanha. Torquemada é implacável na sua caça aos judeus. Desta vez o próprio Colombo tem a sua segurança ameaçada, uma vez que o escritor argentino se apoia na tese da ascendência semítica de Colombo63 ao construir o seu personagem, aumentando o mistério e a ambiguidade em torno a sua figura. Isto 63 Marianne Mahn-Lot não vê a menor lógica na ―tese judaica‖ levantada por Salvador de Mandariaga em seu livro Christophe Colomb, tradução francesa, Paris, 1952, sobre Cristóvão Colombo, rebatendo essa hipótese com outra pergunta: ―Por que, em um país que tinha fobia judaica, como a península ibérica sob os Reis Católicos, os numerosos inimigos do Almirante das Índias, que o tratavam de estrangeiro cúpido e cruel, nunca o acusaram de pertencer à raça maldita?‖ (1992, p. 12). VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 340 permite ao autor colocá-lo no centro de interesses díspares onde Colombo se apresenta como solução para ambos: os judeus ―conversos‖ necessitam de um aventureiro que os levem à Nova Israel; em contrapartida os Reis Católicos ambicionam conquistar o mundo e propagar o cristianismo. Essas pretensões lhe parecem insignificantes e pouco representativas, porém, esse poder ao qual Colombo se associa lhe permitirá dissimular o próprio interesse e realizar a sua utopia, pois ele, ―en cambio, descendiente de Isaías como se sabía, sólo buscaba la mutación esencial, la única: el retorno al Paraíso, al lugar sin muerte‖ (PP, p. 109). Pouco a pouco os elementos vão-se alinhando e narrador e leitor os vão ―costurando‖ um a um, de modo a formar um conjunto compacto que, aparentemente, converge para um único propósito. Assim que as forças do exército espanhol conseguem derrotar os árabes e expulsar os judeus, o Império se consolida e todos compreendem que é chegada a hora de concretizar o que, em passagem anterior, fora intuído pela Rainha. Pode-se observar neste fragmento que o narrador começa a valorizar o elemento ―água‖, ou seja, ele dá início à passagem para a outra porta, ou parte: ―todos comprendieron que había nacido el ciclo del mar, aunque el fuego de las hogueras no cesaba. Terminada la guerra santa, tendría que empezar –necesariamente– la salvación internacional‖ (PP, p. 116). Para realizar essa travessia o único homem com coragem suficiente se chamava Colombo, ou o ―messias‖ como ele se intitulava. Forjou-se um encontro misterioso entre Colombo e Isabel, onde se escutava ―el rumor constante de una fuente‖ (PP, p. 117), nosso protagonista foi nomeado ―Almirante de la Mar Océana‖ (PP, p. 120). Colombo compreendeu que aquele ritual64 ―sellaba un gran acuerdo. ¡La Reina era su cómplice secreta en la secretísima aventura del Paraíso!‖ (PP, p. 120). Para finalizar esta parte acompanharemos a progressão do terceiro fio narrativo que ainda se encontra desgarrado do bloco maior que se formou no Ocidente em torno a Colombo. Na ilha do Caribe, o narrador descreve o ritual de iniciação dos adolescentes que tomam porções alucinógenas para a viagem em direção a ―lo abierto‖ (PP, p. 81), 64 Este ritual se refere à dança sedutora que a Rainha realiza para Colombo, que, muito excitado, tem um intra-orgasmo, o que leva Posse, em seu intertexto, a discordar da possível relação sexual entre a Rainha e Colombo de que fala Alejo Carpentier em seu livro El arpa y la sombra (POSSE, p. 119). VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 341 observados por el tecuhtli de Tlatelolco, uma visita no mínimo inesperada para o leitor, mas totalmente possível na ficção contemporânea latino-americana. Entram em cena os personagens: Caoanabo, Anacaona, Siboney, Belbor, Guaironex, o cacique Cubais e Bimbú, futuros anfitriões de Colombo. O leitor sente, por meio da linguagem, a tristeza que invade o coração dos jovens e se impregna da mesma tristeza. O narrador indica com precisão o tempo e o espaço de sua história ―era una tarde tibia, en la vega real de Guanahani, el 12 de octubre de 1491 (para ellos, gentes de las Lucayas poseedores de un mágico calendario, era el año 16-Estrella)‖ (PP, p. 82), começariam, portanto, a receber os primeiros presságios. Um dos índios, ao retornar do infinito em que se encontrava, revela a sua visão de que ―sobre la mar, hacia Oriente, había visto las sombras de los tzitzimines, los demonios invasores, las furias, capaces de quitar a los hombres del sagrado continuo del Origen‖65 (PP, p. 83), mas ninguém acreditou nele. De volta ao império asteca o Supremo Sacerdote, Mexicatl Teohuatzin, julga as informações trazidas pelos informantes com os códigos disponíveis da cultura indígena vigente, ou seja, ―antes de ‗inventar‘ uma imagem capaz de explicar a presença de forasteiros, por uma espécie de projeção, os índios apoiaram-se no velho mito do retorno de Quetzalcóatl. Pensaram que eram os deuses vindos do céu, os deuses que voltavam‖ (LEÓN-PORTILLA, 1987, p. 48). O texto de Enrique Dussel corrobora esse pensamento, segundo o qual os índios ―no tuvieron categorías apropiadas para interpretar a los intrusos invasores. Sólo pudieron pensar que eran dioses‖ (DUSSEL, 1992, p. 24). Vejamos a passagem em Posse. — No, no. Los hombres que vendrán del mar, barbados serán y uno de ellos barba rojiza tendrá. Están ya cerca (tenemos información). No. No son tzitzimines, esos monstruos del crepúsculo que esperan en el fondo del cielo del Oriente para devorar la última generación de humanos. No. ―los que 65 Segundo o Frei Ramón Pané que fez registros sobre a religião e os costumes dos índios tainos a pedido de Colombo, essa ―viagem‖ era provocada pelo jejum excessivo: ―por la debilidad que sienten en el cuerpo y en la cabeza, dicen que han visto algunas cosas, quizás por ellos anhelados‖ (apud ZEA, 1991, p. 56). Em seus escritos Pané disse que um cacique informa ao grupo que chegaria ao país gente vestida, que os dominariam e os matariam. Interpretaram que se tratava dos canibais e não deram muita importância ao fato. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 342 ahora se aproximan son los últimos dioses menores. Vienen del Gran Mar. Los manda Quetzalcóatl, que los predijo‖ (PP, p. 121). Na narrativa de Posse este não teria sido o único erro de interpretação por parte do Sacerdote asteca. O Mexicatl Teohuatzin julgou os europeus que se aproximavam a partir da análise da crença cristã de seu Deus e de seu maior representante – Cristo –, avaliou o todo pela parte (sinédoque) e com isso conjecturou que todos professavam o mesmo pensamento; imaginou um futuro feliz para seu povo: — ¡Oh, son seres maravillosos, los que llegan! Hijos de la mutación. ¡Generosos! Una infinita bondad los desgarra: se quitarán el pan de la boca para saciar el hambre de nuestros hijos. Sé que su dios humano les manda amar al otro como a sí mismo. Serán incapaces de traernos muerte: detestan la guerra. Respetarán nuestras mujeres, porque su dios –infinitamente benigno– les manda no desear otra mujer que no sea la propia. […] Adoran un libro escrito por sabios y poetas. El dios que adoran es un hombrecillo golpeado, torturado, hasta ser puesto a muerte por unos militares. ¡Con el débil se identifican! ¡Al débil aman! (PP, p. 122). Lamentavelmente Teohuatzin ignorava que os homens que ele supunha serem portadores de profunda bondade compartilhavam do mesmo instinto de crueldade dos que um dia torturaram até a morte o ―hombrecillo‖ e que eles passariam pelos mesmos sofrimentos, assim que estas culturas tão antagônicas se encontrassem no mesmo espaço e tempo, quando Colombo vencesse o desafio do mar – próxima parte, ou porta – representada pelo elemento ―água‖. C) O dicionário de simbologia de Jean Chevalier aponta três significações básicas para a representação da água: fonte de vida, meio de purificação, centro de regenerescência (CHEVALIER, 1998, p. 15), podendo apresentar outros matizes nas diferentes culturas. Para o cristianismo, a água é a matéria-prima onde pairava, no gênesis, ―o Sopro ou Espírito de Deus‖ (Ibid., p.15). VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 343 A familiaridade de Colombo com a água é apresentada no relato desde o princípio quando o narrador revela sua natureza anfíbia, mas, especificamente nesta parte do romance, essas relações se estreitam e a água se torna fonte de conhecimento. Em uma tina ―proyección de la Mar Océana‖ (PP, p. 142), o Almirante submerge para meditar e ―adquiere preciosas enseñanzas sobre la costumbre de Dios‖ (PP, p. 142). Podemos identificar que a água é representada como meio de purificação e regeneração; a submersão, neste caso, também tem uma representação simbólica: ―A imersão é comparável à deposição de Cristo no Santo Sepulcro: ele ressuscita, depois dessa descida nas entranhas da terra. A água é símbolo de regeneração. A água batismal conduz explicitamente a um novo nascimento […], é iniciadora‖ (CHEVALIER, 1998, p. 18). Por isso, podemos falar que a viagem de Colombo é iniciática. De acordo com as representações acima, não encontramos nenhum motivo que possa justificar o medo que o elemento água desperta no ser humano; porém, a água também apresenta dois aspectos opostos: ―é fonte de vida e de morte, criadora e destruidora‖ (CHEVALIER, 1998, p.16). Foi usada por Deus para punir os pecadores no grande dilúvio: A água pode destruir e engolir, as borrascas destroem as vinhas em flor. Assim, a água também comporta um poder maléfico. Nesse caso, ela pune os pecadores, mas não atinge os justos: estes nada têm a temer das grandes águas. As águas da morte concernem apenas os pecadores e se transformam em água da vida para os justos (CHEVALIER, 1998, p. 18). Em Posse, o medo da água se justifica para a tripulação, que teme o pior, pois se encontra exposta ao perigo, ou seja, aos monstros, que no imaginário da época, habitavam as profundezas do Mare Tenebrarum. Porém, como descendente de Isaías, Colombo estaria protegido de qualquer mal, por isso, navegaria sempre em direção ao Ocidente, ―en la ruta de los iniciados‖ (PP, p. 131), até efetuar a transposição para a próxima parte, ou porta, representada pelo elemento ―terra‖. Ali, enfim, se efetivará o ―encontro‖ com o outro fio narrativo. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 344 D) O elemento Terra, que designa a quarta parte de Los perros del Paraíso representa o coração da narrativa. Todas as energias e expectativas que agitavam o Ocidente serão ativadas deste lado do Atlântico, curiosamente denominada ―terra‖. Em Chevalier, nos chamou a atenção a interpretação dada pelo I-ching que diz: A terra é o hexagrama k’uen, a perfeição passiva, recebendo a ação do princípio ativo k’ien. Ela sustenta, enquanto o céu cobre. Todos os seres recebem dela o seu nascimento, pois é mulher e mãe, mas a terra é completamente submissa ao princípio ativo do céu (1998, p. 878). Analisando por este lado, o da submissão do elemento ―terra‖, podemos dizer que ela está vulnerável à ação externa não só de fenômenos naturais – como sugere a simbologia – mas também do homem. Não é muito difícil encontrar em Posse essa demonstração de passividade, da impossibilidade de reação frente à destruição imposta pelos invasores. A terra está exposta à vontade humana que nem sempre a valoriza pelo que ela é, e sim pelo que ela pode oferecer de lucro no mercado; o narrador denuncia esta insensatez: Las plantas, los grandes árboles, los tigres fueron quienes primero descubrieron la impostura de los falsos dioses. Las familias de monos, tan neuróticos y vivos en sus reacciones, también comprendieron que los campesinos y los herreros hacían de su hoz y de su martillo los instrumentos de un exterminio. Era absurdo, pero derribaban la arboleda con su complejísima vida tramada desde el origen de los tiempos. Arrancaban las yerbas y lianas, quemaban el follaje, hasta que aparecía una especie de desierto cuadrangular de tierra calva. Después los blanquinos labraban día y noche, sacrificando la alegría de sus mujeres e hijos y el tiempo para los dioses y el amor, con el fin de plantar. Esta vez indebles plantitas de almácigo que levantaban la indignación de la floresta antigua. Eran las ―plantas útiles‖, regimentadas en hilera, cuyos frutos se cotizaban en mercado (PP, p. 234). VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 345 A prática de cultivo da terra por parte do homem, descrita no texto acima, aparece em Chevalier simbolicamente comparada à mulher, ―a terra é a virgem penetrada pela lâmina ou pelo arado, fecundada pela chuva ou pelo sangue, o sêmen do céu‖ (1998, p. 879). Além disso, é conveniente mencionar os motivos que levavam o homem ocidental a procurar por terras novas e o principal deles era a ambição de encontrar riquezas. Quanto a isso, sabe-se que universalmente ―a terra é uma matriz que concebe as fontes, os minerais, os metais‖ (CHEVALIER, 1998, p. 879), o que desperta a cobiça humana. O projeto de expansão do Império Espanhol coincidia no interesse por ouro, por isso a decepção estampada nos olhos do Rei Fernando quando recebe a carta de Colombo: ―—¡Maldito genovés! ¡Se le manda por oro y tierras y él nos devuelve una caja con moñitos llena de plumas de ángel!‖ (PP, p. 196). Os astecas também apresentam uma simbologia para o elemento Terra. Para essa civilização ―a deusa Terra apresenta dois aspectos opostos: é a Mãe que alimenta, permitindo-nos viver da sua vegetação; mas por outro lado precisa dos mortos para alimentar a si mesma, tornando-se, desta forma, destruidora‖ (ALEC apud CHEVALIER, 1998, p. 879). Por isso os povos pré-colombianos sempre demonstraram um profundo amor e consciência da necessidade de sua preservação; afinal, a Terra era uma deusa a quem se devia dedicação e respeito. Nesta parte do romance, onde os personagens se encontram em território ameríndio, notamos a preocupação, por parte do narrador, em reproduzir o pensamento indígena quanto à simbologia do elemento que dá nome à parte. Através de suas palavras vemos surgir essa representação simbólica da Terra, que é parte da cultura desse povo e consequentemente de sua memória: La gran vera, el árbol hembra más importante de la región (las plantas tienden a cierto matriarcalismo), hizo comprender que sería una batalla perdida: los pálidos venían signados por una pulsión de exterminio, se habían olvidado de su relación primigenia con el Todo, eran traidores a la hermandad original de lo existente […]. Donde los blanquiñosos avanzaban, el orden natural quedaba quebrado. Hasta desviaban los torrentes para irrigar vides, sin saber que esas delicadísimas cintas de plata que corren por VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 346 la selva son sagradas, son cintas de vida que exigen el mayor respeto, arterias del cuerpo del mundo (PP, p. 235). Os habitantes desta terra viviam em harmonia com o mundo criado, com a natureza, com a deusa Terra que fornecia o alimento de que precisavam. Eram como um rio, uma árvore, uma ave. Não é surpresa, portanto, que Todorov ao analisar o comportamento do Almirante nesse ―encontro‖ tenha dito que ―Colombo fala dos homens que vê unicamente porque estes, afinal, também fazem parte da paisagem. Suas menções aos habitantes das ilhas aparecem sempre no meio de anotações sobre a natureza, em algum lugar entre os pássaros e as árvores‖ (TODOROV, 1998, p. 33). Assim foram vistos e assim foram tratados, como um animal a mais na natureza e sofreram as mesmas agressões. Podemos observar que a terra é vista sob dois pontos de vista: o ocidental domina a natureza, enquanto o pré-colombiano integra a natureza. Esses aspectos da obra nos fazem pensar na atualidade, quando vemos o planeta Terra ameaçado pela ação do homem, que continua a destruí-la, como fizeram no passado. A cobiça segue seu rumo, em nome do progresso tudo se justifica, inclusive a nossa aniquilação. Conclusão Foi possível observar em Los perros del paraíso que a linguagem tem um papel preponderante no romance, ela é o fio condutor do passado e do presente. Por meio de uma linguagem fantasiosa, poética e barroca, Abel Posse integra elementos contraditórios e irracionais para falar da mestiçagem resultante da conquista da América desde sua origem até o presente. A linguagem, vinda da Espanha como elemento de dominação e de colonização cultural, é protagonista nesta história, e, através dela, Posse mostra uma América fragmentada em que persistem raízes culturais contraditórias, buscando explicitar as oposições secretas do espírito latino-americano frente ao espírito europeu e a idéia de homem europeu. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 347 Referências BERMAN, Marshall. Brindis por la modernidad. In: CASULLO, N. (com.) El debate modernidad / posmodernidad. Buenos Aires: El Cielo por Asalto, 1993. CHEVALIER, Jean. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Trad. Vera da Costa e Silva [et al.]. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998. DUSSEL, Enrique. 1492: diversas posiciones ideológicas. In: DONASSO, M. [et al.]. La interminable conquista 1492 –1992. Buenos Aires: Ayllu, 1992. p. 11-29. LEÓN-PORTILLA, Miguel. A visão dos vencidos: a tragédia da conquista narrada pelos astecas. Trad. Carlos Urbim e Jacques Waimberg. 2. ed. São Paulo: L&PM, 1987. MAHN-LOT, Marianne. Retrato histórico de Cristóvão Colombo. Trad. Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992. PAZ, Otavio. Signos em rotação. São Paulo: Perspectiva, 1976. POSSE, Abel. Los perros del paraíso. Argentina: Emecé, 1987. SPILLER, Roland. Conversación con Abel Posse. Iberoamérica. Disponível em: http://www.abelposse.com. Acesso em: 13 set. 2010. TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1988. VAILANT, George C. La civilización azteca: origen, grandeza y decadencia. Trad. Samuel Vasconcelos e Margarita Montero. 2. ed. México: Fondo de Cultura Económica, 1973. ZEA, Leopoldo. Ideas y presagios del descubrimiento de América. México: Fondo de Cultura Económica, 1991. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 348 17. ROMANCE HISPANO-AMERICANO E ALEGORIA Afinidades entre Onetti, Puig e Bolaño Reno Nícolas de Araújo Torquato (Universidade Federal do Rio Grande do Norte) I Na segunda metade do século XX, a América Latina viveu um de seus momentos mais intensos. Foi a época das violentas ditaduras militares, das lutas dos grupos revolucionários armados, das crises econômicas agudas, da ascensão do neoliberalismo e, no campo literário, do surgimento do boom. Atravessando esse período e mergulhados no mar das tormentas sociais, o uruguaio Juan Carlos Onetti (1909-1994), o argentino Manuel Puig (1932-1990) e o chileno Roberto Bolaño (1953-2003) sintomatizaram em suas obras as angústias de quem se viu entre ondas de choques ideológicos, destroços de navios históricos, corpos de náufragos políticos, entre páginas e mais páginas em chamas a boiar. Assim, referirmo-nos à nacionalidade de cada escritor é fazer-lhes certa injustiça ou ironia, dado que todos foram lançados ao mar-mundo, na condição de cidadãos exilados politicamente e na condição de escritores exilados espiritualmente, não apenas das pátrias onde o destino achou por bem os parir, mas, concordando com Bolaño: ―Toda literatura lleva en sí el exílio...‖66. Isto é, na qualidade de grandes escritores que foram, viram-se desgarrados do próprio mundo, buscando na literatura uma pátria que certamente também nunca encontraram, sendo a escrita mais um caminho do que certamente um lugar em que possamos nos sentir, enfim, confortados. Por isso, transparece em seus livros a ideia de uma fuga, de uma busca, de um estar perdido, de uma insuficiência que apenas incita uma nova fuga, uma nova busca... Houve também entre os três o fato de que estiveram sempre num outro entre-lugar, além da própria literatura, o que lhes propiciou uma visão a qual, não tendo sido plena, no sentido de que não possibilitou a apreensão de uma totalidade orgânica – dado que 66 BOLAÑO, 2004, p. 49. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 349 julgaremos isso impossível aqui –, foi privilegiada ao expor claramente as fissuras entre os fragmentos que compõe essa enorme montagem-continente chamada América Latina. Como indivíduos, Onetti, Puig e Bolaño percorreram estas terras e outras terras do mundo, o que lhes propiciou uma visão de dentro-entre-fora; como alegoristas, viram, por dentro da montagem, por entre as fissuras da montagem e, enfim, por fora dessa montagem precária e labiríntica de fragmentos. Como grandes escritores que foram, suscitaram discussões que provam a multiplicidade de enfoques permitida em suas obras, a capacidade de escapar às garras do rótulo ligeiro. Onetti, por exemplo, segundo algumas definições, parece situar-se no entre-lugar entre o neobarroco de Sarduy e o não-barroco, entre e o boom de Márquez e o não-boom. Puig, por sua vez, podemos tentar compreendê-lo como o escritor pós-moderno de literatura acessível às massas, mas capaz de encantar os críticos acadêmicos mais exigentes. Bolaño, enfim, mesmo ao parecer zombar das tentativas críticas de encerrar o sentido da experiência literária, incita-nos a tentar compreendê-lo, perseguilo, sob pena de termos que assumir nossa derrota. Quanto ao contexto em que apareceram os três escritores, falemos primeiramente das ditaduras militares, como as que atingiram o Brasil, o Uruguai, a Argentina, o Chile, etc. Acreditamos terem sido momentos tão traumáticos à história e à consciência dos povos, que ainda hoje não se conseguiu realizar um trabalho de superação das perdas ocorridas, se entendermos superação como um trabalho efetivo de luto, e não de um esquecimento engendrado para que não se veja o presente assentado sobre uma pilha de escombros e cadáveres. Por isso, acreditamos, concordando com Idelber Avelar 67, que a implementação do neoliberalismo, que se seguiu aos regimes militares, foi resultado de um trabalho sistemático do capital, ou seja, as próprias ditaduras militares tinham como objetivo gerar as condições para que a nossa ―modernização‖ viesse a ocorrer. A celebrada ―democracia‖ que se seguiu à coerção militarista foi apenas a constatação, pelo sistema, de que todas as formas de resistência mais consistentes haviam sido eliminadas. As torturas e assassinatos ocorridos durante os regimes, seja de membros dos grupos revolucionários que se esconderam nas florestas do continente, seja de estudantes e operários que articulavam entre si e as massas os protestos contra o terror militar, assim como o desenvolvimento dos meios de comunicação em massa e das formas de propagar a apatia, o consumismo e um alienado patriotismo, prepararam o terreno para que a nossa burguesia populista e títere do 67 AVELAR, 2003. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 350 capital internacional viesse a exercer sua ―democracia‖, privatizando empresas estatais, arrochando salários, aumentando impostos e juros, entre tantas outras medidas que revelaram ser tão ruins quanto algumas das medidas tomadas durante os governos militares. Assim, ainda hoje convivemos num clima de alienação política, de explosão da violência nas grandes cidades, de lutas por terra... Portanto, no campo histórico e ideológico, acreditamos que houve, no período citado, um processo que foi mais de uma linearidade – não absolutamente ―reta‖ nem muito menos ―progressiva‖, como numa crescente positiva por um acúmulo de vitórias, riquezas, direitos, etc. – do que de uma suposta ruptura entre os tempos de ditadura e os chamados tempos de democracia, como se esta não fosse produto daquela. Esse processo de ―derrota histórica‖ é tratado de forma implícita, ou mesmo explícita, nas obras que analisaremos. Simbolicamente, vemos em Onetti um prólogo; em Puig, a peça encontra-se no seu momento central; em Bolaño, num tratamento em retrospecto, vemos uma espécie de epílogo analítico-remissivo. Ainda no campo literário, também concordando com Idelber Avelar 68, vemos no surgimento do boom, movimento que celebrava a modernização estética de nossas letras, o engendramento de um discurso progressista, de uma ambicionada superação, através de um verdadeiro salto, de um passado dito primitivo para um presente dito moderno. Não é à toa que o seu declínio deu-se em paralelo à ascensão e à intensificação dos regimes ditatoriais, inclusive tendo como marco simbólico a destituição forçada de Allende. Viu-se que o celebrado progresso de nossas letras e que o nosso vanguardismo literário não coincidia com uma evolução sem traumas nos campos social, político e econômico, o que gerou, certamente, bastante desconfiança e mal-estar a muitos escritores. Os questionamentos acerca do fazer literário em tempos de perseguições, torturas e exílios se impuseram aos participantes do boom e a todos os escritores. A nossa chegada à ―modernidade‖ ter-se-ia, portanto, assentado sobre uma base de ruínas e cadáveres: essa é assertiva que serve de ponto fulcral à nossa discussão, da qual também se extraem alguns tantos questionamentos, que podemos exemplificar. Que condições propiciaram a explosão do militarismo no continente? Como a literatura se encontrava no limiar do surgimento do boom e à margem dele, entre o otimismo das letras e o pessimismo social? O que se seguiu depois disso? Como se deu o processo de tentativa 68 Idem. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 351 de silenciamento das vozes contrários ao regime opressor? Como se deu a ―produção de consciências‖ prontas a aceitar o neoliberalismo como uma suposta superação do regime ditatorial? Como o presente sente-se em relação ao seu passado e seus mortos? Qual a sua atitude perante a lembrança daqueles que tiveram que morrer por ideais que hoje se veem esquecidos? Que sentimentos foram produzidos com a definitiva fragmentação da América Latina? Não é nosso objetivo responder a essas perguntas. Nosso objetivo, bem mais modesto, é discutir como essas perguntas, e tantas outras, assim como tantas e tantas respostas, são possibilitadas pela leitura de algumas obras dos escritores citados. Preocupamo-nos em desfazer o que frequentemente é apontado como um componente de nossa época: a cegueira histórica que acomete a tantas pessoas. Nisso, analisaremos, ainda que de forma sucinta e mais para levantar questões e hipóteses do que para oferecer respostas, os seguintes romances: La vida breve (publicado em 1950) e El astillero (1961), de Onetti; El beso de la mujer araña (1976), de Puig, e Los detectives salvajes (1998), de Bolaño69. Concordando com Fredric Jameson, achamos que esses romances, como narrativas alegóricas, ou ao menos com elementos alegóricos, ―constituem uma persistente dimensão dos textos literários e culturais exatamente porque refletem uma dimensão fundamental de nosso pensamento coletivo e de nossas fantasias coletivas referentes à História e à realidade‖70. Explorá-las é percorrer essa dimensão onde forças históricas, sociais, ideológicas, espirituais, etc. cruzam-se e produzem efeitos tão chocantes nas pessoas. Pois o alegórico, ainda seguindo Jameson, ―pode ser sumariamente formulado como a questão colocada ao pensamento pela consciência de distâncias incomensuráveis no interior dos objetos desse pensamento‖71, o que nos exige tentar chegar até esses objetos por vários caminhos interpretativos, embora sabendo que até mesmo essa estratégia resulta na impossibilidade de abarcar esses objetos como ―totalidades‖. Pensar o alegórico é, portanto, pensar numa escala que vai do micro ao macro, numa luta que parece vã, mas que 69 Em relação ao nosso corpus analítico, isto é, os romances estudados, citamos no texto apenas a data da primeira publicação de cada livro, tendo em vista nossa compreensão de ser necessário enfatizar o momento histórico preciso de cada primeiro lançamento. Nas outras vezes que nos referirmos a esses livros, no entanto, preferimos não citar qualquer ano, seja a data de publicação original, seja a data de publicação do material de que dispomos, por já se encontrarem devidamente citados nas referências bibliográficas e pela frequência com que nos referimos a eles sem fazer citações diretas. 70 JAMESON, 1992, p. 30-1. 71 JAMESON, 2007, p. 184. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 352 a História exige, para achar um elo perdido que, se achado, conseguiria dar coesão a todos os elementos que compõem o mundo. II Antes de passar às obras, entendamos o conceito de alegoria. Por alegoria (grego allós = outro e agourein = falar) compreendemos uma técnica metafórica que trabalha, através de uma relação de semelhança, para ―representar e personificar abstrações‖ 72. Logo, a alegoria é de ordem mimética. No entanto, como bem adverte João Adolfo Hansen, a rigor não se pode falar apenas de uma alegoria, visto que essa figura, durante toda a história, foi bastante utilizada e compreendida de diferentes maneiras. Importa-nos, por hora, acentuar os seus traços mais gerais, aqueles que permaneceram em todos os seus diferentes tipos: o seu mimetismo e sua intenção de, através de uma semelhança intuída, representar ideias abstratas. Apoiados nisso, chegaremos a um entendimento do conceito de alegoria barroca desenvolvido por Walter Benjamin. Para esse pensador, a compreensão dessa alegoria está implicada numa relação dialética com outros conceitos, como fragmento, luto, melancolia e jogo. Por fragmento, sabemos algo fraturado, do qual foi rompido qualquer elo com um todo do qual esse fragmento fazia parte. De modo bem mais abrangente, entendemos que hoje é um mundo fragmentado que se oferece aos olhos dos homens, e os próprios homens sabem-se fragmentos desse mundo. Com o capitalismo, não há possibilidade de que o mundo seja percebido objetivamente, de que os homens sintam-se totalmente integrados a ele e entre si mesmos, de que haja uma relação orgânica entre tudo aquilo que compõe esse mundo, incluindo os próprios homens. Como fragmentos, homens e coisas agonizam, sabem-se em morte, dispensáveis, substituíveis. Um fragmento, segundo Omar Calabrese, ―deixa-se assim ver pelo observador tal como é, e não como o fruto de uma ação de um sujeito. É determinado pelo caso, se assim quisermos dizer, e não por uma causa subjetiva‖73. Ou seja, um fragmento torna-se ele mesmo um todo, mesmo que precário, que deve ser lido enquanto tal, e não como parte de um todo ou como o resultado de um processo reproduzível. Um fragmento jaz como algo que foi arrancado, 72 73 HANSEN, 2006, p. 7. CALABRESE, 1987, p. 88. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 353 mas que não permite reconstituição no ser fraturado, pois esse simplesmente não é mais acessível. Um fragmento é o vestígio de um crime, um dedo amputado, mas que não possibilita ao investigador saber quem foi o criminoso e mesmo onde está o resto do corpo da vítima. Tem a ver, de certa forma, com reificação, no sentido marxista clássico, em que, por exemplo, as mercadorias são vistas como autônomas pelo operário, dada a sua posição limitada, alheia à totalidade da cadeia produtiva e do sistema capitalista em si. Para Adorno e Horkheimer74, no momento em que o homem divorciou-se da natureza, passando a vê-la como objeto, nada o impediu de ver também a outro homem como objeto, passível de ser manipulado e explorado de uma forma muito mais intensa e calculada. Logo, é por essa via que podemos estabelecer uma relação entre fragmento, na qualidade mesma de uma alegoria, e mercadoria, seja essa uma coisa ou mesmo um ser humano coisificado. Por isso, Benjamin, no seu estudo sobre Baudelaire, decretou: ―A mercadoria procura olhar-se a si mesma na face, ver a si própria no rosto. Celebra sua humanização na puta‖ 75. A figura da prostituta institui-se, pois, como um ícone da fragmentação do mundo moderno, da transformação absoluta das pessoas em mercadorias, em fragmentos, em alegorias de um mundo sem um sentido teleológico. Aquele senso de completude que, à leitura das epopeias clássicas, conjeturamos que pareciam sentir os antigos gregos, não pode ser mais sentido por nós, sendo até difícil imaginá-lo. Por isso, para Lukács, o romance é a epopeia de um mundo abandonado pelos deuses. Supondo, por exemplo, que era Deus, durante a Idade Média, que fazia a necessária relação entre todas as coisas, sendo ele o fim último de toda direção de sentido; supondo ainda que, após a Idade Média, com a secularização do mundo, Deus tenha sido deslocado do centro para o qual tudo apontava; supondo que hoje não exista um único centro e que os homens orbitam elipticamente ao redor de vários centros, resultantes de suas buscas por um substituto de Deus (daí a excentricidade e o descentramento do homem moderno); enfim, supondo que não haja uma causa última para a qual aponte nossa existência, para dar-lhe sentido, o homem volta-se para a sua subjetividade, procurando dentro de si mesmo, e não na coletividade ou no mundo, nos quais ele não se reconhece mais, algo que dê sentido à sua existência. Julgamos que a obra de arte romanesca, entre muitas outras manifestações do espírito humano, demonstra claramente, dada a sensibilidade exigida para 74 75 ADORNO; HORKHEIMER, 1985. BENJAMIN, 1989, p. 163. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 354 a realização de sua configuração, a relação entre subjetividade e perca da organicidade do mundo. Daí concordarmos com Lukács, para quem o ―processo segundo o qual foi concebida a forma interna do romance é a peregrinação do indivíduo problemático rumo a si mesmo, o caminho desde o opaco cativeiro da realidade simplesmente existente‖, realidade a qual é ―em si heterogênea e vazia de sentido para o indivíduo...‖76. Benjamin, por sua vez, fala da perca da capacidade de vivenciar experiências, e logo de narrá-las, já que para isso o autor pressupunha a necessidade de uma vida em comunidade, de uma dimensão prática dos saberes narrados, de um ritmo de vida mais lento, tudo o que o capitalismo foi, progressivamente, devastando da terra77. Por isso, para Benjamin, o ―primeiro indício do que vai culminar na evolução da morte da narrativa é o surgimento do romance no início do período moderno‖.78 O romance é, portanto, uma espécie de ―apesar de tudo‖. Continuar a escrevê-lo, sabendo que sua existência é já o sintoma de um mundo em perdição, é também a constatação da posição de extrema contradição de quem escreve. ―O romance anuncia a profunda perplexidade de quem vive‖79. O romancista é aquele indivíduo isolado que ―não recebe conselhos nem sabe dá-los‖80. Dessa discussão, chegamos, aos conceitos de luto e melancolia. Por luto, vulgarmente compreendemos o estado de quem sente a perda de um ente querido ou, de modo mais genérico, de algo que se achava vivo – um ideal de vida comunitária, um senso de integração orgânica entre sujeito e sociedade... em suma, tudo aquilo que a fragmentação do mundo fez morrer – e com o qual se estabelecia uma relação especial. Esse estado, no entanto, é necessário para que cheguemos a redimir o morto, isto é, superar a sua perda, através da reflexão acerca de tudo o que ocorreu e do que devemos fazer para seguirmos vivendo um pouco engrandecidos intelectual e sentimentalmente, quem sabe. É, portanto, um estado que não pode ser reprimido para que quem sobrevive consiga sentir-se em paz consigo, sem que fantasmas o atormentem. O enlutado vê um fim ao seu sofrimento, do qual pode sair com uma compreensão do processo pelo qual passou, encerrando uma etapa de sua vida e apreendendo, portanto, um sentido de sua experiência. Diferente é o tipo melancólico, que não consegue sair do estado de sofrimento. O melancólico, também grosseiramente, é aquele que não consegue identificar a origem e, logo, um fim para a 76 LUKÁCS, 2000, p. 82. BENJAMIN, 1994. 78 Idem, p. 201. 79 Idem, Ibidem. 80 Idem, Ibidem. 77 VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 355 apatia mórbida que o acomete. Diferente do depressivo, que sabe a origem de seu mal, o melancólico não consegue expressá-la. Embora esteja sempre a um passo de traduzi-la, vêse atado à sua condição. O fim para a sua melancolia, portanto, significaria pôr fim a sua própria vida, daí a figura do suicida como outro ícone da modernidade. Tendo aprendido isso, chegamos às recorrentes assertivas de Benjamin sobre a relação entre alegoria, melancolia, luto e jogo. O pensador afirma: ―A alegoria é o único, e muito poderoso, divertimento que se oferece ao melancólico‖81, e ainda: ―Na via-crucis do melancólico as alegorias são as estações‖ 82. Ou seja, como fragmentos, ou ainda como montagens de fragmentos, as alegorias oferecem-se ao olhar dos melancólicos como enigmas a serem decifrados, labirintos a serem percorridos. As alegorias, portanto, convidam o melancólico ao jogo. Para Afonso Ávilla, o ―jogo para o homem barroco, especialmente para o artista mais sensível ao dilaceramento humano, foi a saída instintiva que teve para deter, ainda que ilusoriamente, o lento escoar de sua situação absurda no mundo‖ 83. No entanto, seguindo ainda Ávilla, a ideia de lúdico, intrínseca ao conceito de jogo, não deve ser compreendida como uma atitude alienada do ser, porquanto que é um jogo cuja única regra é não limitar-se, dobrar-se ao infinito, expandindo potencialidades e formas de explorar o (sem)sentido das coisas. É por isso que Ávilla também afirma: ―sempre que ele se sinta acuado pelas forças da conjuntura ideológica e social, o artista estará fatalmente tentado a uma espécie de rebelião através do jogo‖84. Porém, ―a expressão criadora só atinge a ambicionada meta da comunicação quando esta e a expressão se resolvem numa forma apta a viabilizar aquele acordo, aquela indispensável empatia entre produtor e consumidor‖85. Ou seja, disso tudo podemos deduzir que: a) há um vínculo espiritual entre o homem barroco e o homem contemporâneo, o que é evidenciado pela arte alegórica, fragmentada, labiríntica, aberta, convidativa, apresentada nos dois períodos; b) essa arte fragmentada, como já vimos, resulta de um mundo em ruínas, em que os sujeitos veem-se atormentados com a perda da organicidade, da relação entre os homens entre si mesmos e entre os homens e o mundo, já que não há mais um centro em torno do qual tudo orbite e para o qual tudo aponte; c) a arte, fragmentada, revela o estado de melancolia dos homens, o seu 81 BENJAMIN, 2004, p. 201. BENJAMIN, 1989, p. 157. 83 ÁVILLA, 1994, p. 30. 84 Idem, p. 67. [grifado no original] 85 Idem, p. 65. [grifado no original] 82 VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 356 possível trabalho de luto pelas coisas mortas, fragmentadas, pela perda da organicidade do mundo; d) a arte fragmentada revela a tentativa de os homens dotarem as coisas mortas, fragmentos, de um sentido último que, sabendo eles já impossível, adotam a alegoria, que é aberta e explode em mil sentidos; e) a arte alegórica, sendo aberta, convida ao jogo, dado que o artista, ao produzi-la, tenta dotá-la de um sentido que se apresenta como enigmático; tenta montar os fragmentos num sistema que, precariamente, simula uma totalidade, cabendo ao observador encontrar esse suposto sentido; d) tanto o artista quanto o observador, tanto o escritor quanto o leitor, devem partilhar do mesmo sentimento de melancolia para compreenderem essa arte, para verem nela o sem-sentido e ainda assim insistirem em buscarem um, adentrando nos seus labirintos... Muitas outras formulações poderiam ser feitas. No entanto, para que concluamos esta seção retomando o que expressamos há pouco, sobre o caráter mimético da alegoria e sobre a sua intenção de, através de uma semelhança intuída, representar ideias abstratas, podemos afirmar que a alegoria mimetiza, portanto, o impossível, o sentido último perdido e fragmentado em mil sentidos, e que as abstrações que a alegoria tenta representar, como transcendências sempre falhas, aderem a concretudes, à materialidade dos fragmentos, sempre imanentes, mas negando essa imanência sempre, pois sabem-na seu decreto de morte. III Tendo compreendido a conjuntura latino-americana em que se inserem os escritores e as obras que analisaremos, assim como o complexo sentido de alegoria e qual o vínculo estabelecido por ele entre o barroco e a modernidade, comecemos a discutir as duas obras de Juan Carlos Onetti. Em La vida breve, Onetti nos apresenta a Brausen, homem que vive miseravelmente: sua esposa o abandona, ele perde o emprego e envolve-se na trama de assassinato de uma prostituta. Após desistir de tentar escrever o roteiro de um filme, em meio a tantos infortúnios, entrega-se à criação de universos imaginários, preparando a sua saída do plano que traduzimos como a própria realidade da trama do romance para ir habitando, paulatinamente, outros planos, inferidos como diferentes tipos de ficção dentro da própria trama principal. Nosso protagonista, já no início do enredo, ouve e imagina o que se passa VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 357 no apartamento vizinho, onde Queca, a prostituta, recebe vários homens. Desenha-se, então, uma instância que o leitor entende, a priori, como intermediária, já que, quando passa a habitá-la, em suas visitas a Queca, Brausen passa a representar Arce, misturando a sua realidade com elementos fictícios. Depois, Brausen, ao escrever, concentra-se na criação de uma cidade a qual denomina Santa María. Essa é a instância que, também a priori, o leitor entende como plenamente fictícia, a qual poderia ser totalmente independente das outras instâncias, seja a realidade de Brausen ou o seu devaneio ao denominar-se Arce. Em Santa María, Brausen projeta-se na figura do doutor Díaz Grey, personagem principal de uma história em que estranhamente, nada significativo parece ocorrer, em que as cenas que o médico divide com a mulher viciada em morfina, Elena Sala, inspirada na própria mulher de Brausen, Gertrudis, são sempre monótonas. Percebe-se, enfim, que, seja como Arce ou Díaz Grey, Brausen fracassa. Mesmo em Santa María, onde ele, encarnado no doutor, poderia desfrutar o amor de Elena já que não mais o consegue em sua realidade, com Gertrudis, há uma clima que assegura uma contínua frustração, uma insatisfação que não pode ser aplacada. Enfim, todos esses planos entendidos aprioristicamente como separados, embaralham-se, fundem-se, incitando o leitor a duvidar de que a sua própria realidade é também um dos planos dessa ficção. Cabe, quanto a isso, um último ressalto: a colocação em xeque da própria realidade do leitor dá-se pela sutil, mas genial, utilização de uma técnica de jogo de espelhos, quando o escritor Onetti insere a personagem Onetti na trama do próprio romance. Em El astillero, acompanhamos Larsen, ou Juntacadáveres, um ex-cafetão que retorna a Santa María cinco anos depois de haver sido expulso pelo governador. Larsen, então, aceita o convite de Petrus, dono de um estaleiro em Puerto Astillero, nas proximidades de Santa María, para tornar-se gerente-geral desse estabelecimento. No entanto, fica claro que o estaleiro está em ruínas e que nunca será recuperado, embora todos, incluindo dois patéticos operários que nele trabalham, insistam em assegurar que haverá sim um dia em que tudo novamente irá voltar a funcionar com sucesso. Larsen, ao menos, parece ter mais de uma razão para entrar nesse jogo, porque fica noivo de Angélica, a filha louca de Petrus. Ele almeja, portanto, a suposta herança milionária que pode lhe cair em mãos, mas, no fundo, sabe que nada de bom ocorrerá, sendo aquele que, ao lado de Petrus, mais imerge na farsa quanto mais se assegura de que tudo não passa apenas disso mesmo, uma farsa, agarrando-se a ela por saber que é tudo que lhe resta. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 358 Podemos já dizer que uma angústia avassaladora acomete aos personagens onettianos. Eles, no entanto, são incapazes de nomeá-la, impossibilitados de enganá-la, por isso entram em fuga, seja através do devaneio, do pensar em um passado fragmentado e irrecuperável, do criar histórias e universos. Sentem-se desamparados, querem anular-se, apagar os vestígios de suas vidas ―verdadeiras‖, transformarem-se em outros em quem não se reconheçam mais aqueles. Porém, eis a ironia, eles são traídos pelo desejo de viver – por suas pulsões de vida, pelo desejo, por exemplo, de fazer amor –, mesmo como outros, noutras vidas, fazendo com que o desamparo volte, ainda que sob uma nova forma – o que gera novas pulsões de morte, desejos de (auto)destruição. Viver um outro, mas não nomear a angústia onipresente, o sem sentido que acomete a tudo, deixa um buraco, o não nomeado, que fica, digamos, no céu de cada novo universo criado, fazendo com que por ele escoe tudo aquilo que era maléfico no universo abandonado. O desejo inominável – muito maior que as simples pulsões de vida – que também os oprime, ao realizar-se apenas incompletamente, pelo devaneio, pela fuga, gera sempre mais frustração, fazendo com que o novo universo torne-se sempre uma cópia piorada do mundo primeiro. O entregar-se ao devaneio, ao escrever, ao criar mundos paralelos, gera deslocamentos sempre ineficientes. O desejo inominável – mascarado em outros desejos ―menores‖, em pulsões de vida como o sexo –, sendo reprimido, sempre volta a acometê-los. A angústia persiste. Ao não poderem nomeá-la, negam-na, negam a realidade em que vivem. Mas negar é admitir que aquilo que os oprime estará sempre presente, olhando-os de soslaio. Daí o clima de desconfiança. Desconfia-se da linguagem, de si mesmo, do outro, de tudo. A desconfiança reina em El astillero, por exemplo, quando as personagens assumem a farsa como o único aceitável, temendo que alguém ameace desfazê-la, porque também entendem que, se essa farsa ruir, em que outro estado irão viver, se não se podem nomear o mal onipresente? Assim, tanto em La vida breve quanto em El astillero, as personagens sentem-se impossibilitadas de agir no plano da existência ―real‖, por isso criam outros planos, saem em rota de fuga, e assim recomeçam o processo já descrito, que novamente gera angústias. O universo diegético de El astillero, no entanto, é o universo criado por Brausen. O estaleiro em ruínas do velho Jeremías Petrus fica próximo a Santa María, cidade criada como um destino para a fuga de Brausen. Escrito alguns anos depois de La vida breve, em El astillero Onetti nos apresenta um desdobramento do universo criado por Brausen. Disso, deduzimos: um demiurgo imperfeito é incapaz de criar um universo perfeito; com VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 359 fragmentos não se constrói uma totalidade, um mundo orgânico, mas apenas uma montagem precária, com partes que se descolam e caem. O universo opressivo e sombrio de Puerto Astillero e Santa María são reproduções da opressão e angústia sentidas por Brausen. Ao discutir os dramas de destino de Calderón, Benjamin nos fala das técnicas de enquadramento e miniaturização implicadas numa reflexão que ―repete-se até ao infinito, e miniaturiza até ao imprevisível o círculo que circunscreve‖. A realidade e a ficção envolvem-se, geram ―a miniaturização lúdica do real e a introdução de uma infinitude reflexiva do pensamento na finitude fechada de um espaço profano. (...) um espaço fechado sobre si próprio‖86. De fato, é o universo fragmentado de Brausen, um todo precário voltado sobre sua própria condição de desgarrado do mundo, fecha-se sobre si mesmo, com todos os seus defeitos e carências reproduzidas até a menor escala, como um destino implacável do qual não se pode fugir, mesmo criando-se mil mundos imaginários, um dentro do outro, numa estrutura labiríntica ou espiralada, que vai se fechando até um centro inatingível. Enfim, um demiurgo imperfeito e fechado na sua (i)limitada subjetividade é incapaz de criar um universo perfeito (ao escrever isso, pensamos não apenas na personagem Brausen, mas no próprio Onetti e na condição de todo bom romancista em tempos de crise). Em La vida breve, sabemos ainda do sadismo de Brausen, ao bater em Queca, e vemos nisso uma identificação com a face de um pai opressor inominável, uma tentativa de salvaguardar-se que se relaciona ao mesmo sadismo com que ele cria seus duplos, pois, ao criá-los, o faz na qualidade de novos oprimidos e maltrata-os como a si mesmo, vendo na dor de duplicar-se como um novo fracassado um fim em si; um conflito cíclico que se retroalimenta e se autorreproduz, como um narcótico, como a morfina traficada e usada por Elena, como o próprio ato de escrever/ler. A dialética opressor/oprimido instaura-se como uma doença existencial. Brausen vê em si mesmo a causa da dor que o acomete (em uma passagem do livro, alude a uma sucessão de ―brausens‖ fracassados). A melancolia de Brausen, então, decreta uma imutabilidade de sua circunstância, dado que ela advém de tempos imemoriais, reproduzindo-se através de seus ancestrais, tendo, portanto, que reproduzir-se em seus duplos. O tom lento, descritivo, em permanente suspensão, com que Onetti escreve, fazendo o leitor perceber que muito pouco acontece, mas que muito se diz, incitando-o a buscar 86 BENJAMIN, 2004, p.79. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 360 segredos numa linguagem densa, numa atmosfera nebulosa, é um contrapeso dos elementos formais que se equilibram com o presente eterno e labiríntico que configura o universo diegético de seus livros. Também afirmamos que, mesmo em face a um mundo fragmentado, mesmo estando sempre a encarar a face das coisas mortas, o trabalho de luto parece ser negado por suas personagens. Elas insistem em fingir que há qualquer coisa que lhes dará a redenção, sem que encarem os mortos como mortos. Nisso, a melancolia parece inflar-se, estar na iminência de explodir. Ler Onetti é vivenciar essa tensão. E é na linguagem, no plano mais imediatamente imanente pelo qual se adentra no(s) universo(s) de seus livros e que interconecta a todos eles, que esse luto negado é mais evidente. Luto e jogo, a relação intrínseca ao olhar do melancólico, que ―brinca‖ com os fragmentos (coisas mortas) tentando dar-lhes sentido, é evidente no estilo onettiano, ao fazer das palavras e dos fonemas os seus fragmentos mais imanentes, odiados (pela insuficiência da linguagem) e amados (é tudo que lhe resta). O luto a que se resiste, portanto, também é o luto pela própria linguagem literária. Ainda sabemos que Brausen, como escritor, é uma espécie de narcisista, que incorpora os objetos degradados (os seus duplos, a sua escrita) em si, anulando-os e, logo, anulando a si mesmo. Anular-se, como Brausen, transformar-se em outro, portanto, é uma forma de suicídio, daí o seu narcisismo, a sua fixação num ―eu‖ negado e mesmo assim onipotente. Esse ―eu‖, esse Brausen a quem Brausen aspira perder, transformando-se em Arce, em Díaz Grey, é um ―quem‖, mas não aquele ―quê‖ essencial que se deveria nomear. Ou seja, Brausen vê em si a causa dos seus fracassos, mas ainda não consegue nomear isso que o faz ser um angustiado. Ele, então, chega sempre perto de uma verdade: há sempre um patrão velho e degradado que o despede, há sempre a falta de dinheiro, a mulher-mãe degradada – Gertrudis, sem o seio materno que é fonte de alimento e também de conforto infantil; Queca, a prostituta com quem Brausen trava um primeiro contato desajeitado, com quem ele envolve-se numa relação edipiana de atração/repulsão; Elena, a viciada em morfina que procura a Brausen/Díaz Grey apenas para que ele a forneça drogas; Angélica, a filha louca de Jeremías Petrus, com quem Larsen pretende casar-se por interesse; a própria Santa María, cidade com o nome da mãe de Jesus, dominada por um filho edipiano Brausen-Grey, deus fundador ou pai-filho edipiano, que nomeia praças, ruas e demais lugares, como os generais-estátuas feitos de ficções oficiais que habitam as praças das cidades do mundo, etc. Brausen, então, chega sempre perto da alguma verdade, do porquê VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 361 estar sempre em angústia, da impossibilidade de unidade e organicidade no mundo, o que gera sempre uma frustração, para leitor e escritor, daí o seu decreto ao sem sentido da vida, ao ―mundo louco‖ no bordão de Queca, à falta de uma verdade, de um fundamento que dê razão ao viver. Sem razão, as personagens de Onetti fingem o tempo todo, fantasiam. A falta de uma verdade fundacional, então, é o decreto de que não há sentido algum a ser buscado, só há falta de sentido, mas que exige sempre uma busca, fazendo com os sentidos precários multipliquem-se ao infinito. Em El astillero, é o próprio estaleiro, ponto de chegada e partida entre cada jornada, lugar onde os navios-navegadores buscam abrigo e reparo, após cruzarem os mares-desertos-desafios, que está em ruínas. Não há solução, portanto. Assim, ―por que escrever, por que ler, por que seguir buscando esse sentido inexistente?‖, sugerem-nos os romances, em muitas passagens. Achamos, por isso, que Onetti, Brausen e o leitor são os melancólicos do mundo moderno, sempre em luto, sempre angustiados, querendo recuperar o sentido perdido, montar os fragmentos do mundo, buscando reconstruir uma totalidade perdida, adentrando em labirintos de pura linguagem, de pura imanência que explode em sentidos que nunca transcendem a um sentido soberano. Daí a sensação reforçada pela leitura de Onetti de que a escrita e a leitura de um romance são atitudes totalmente utópicas, por insinuarem aos melancólicos que esses vislumbrarão, por um segundo, um possibilidade de totalidade, através do próprio ato solitário de ler/escrever. Sabemos já, no entanto, que, ao fazer uma montagem de fragmentos, não conseguimos nunca obter uma totalidade. Fragmentos são dispensáveis, substituíveis, não se encaixam perfeitamente, não formam nunca um todo perfeito. O leitor/escritor, como fragmento do mundo, é também dispensável, substituível. A paranoia de buscar um sentido, que acomete ao escritor e ao leitor, portanto, expressam a melancolia moderna, o luto por um sentido morto, o luto pelas coisas mortas, em ruínas, que mostram suas faces em degradação nos objetos, nos rostos das pessoas-objeto-fragmentos, das memórias sempre fragmentadas incompletas, falseadas, duvidosas. IV Em El beso de la mujer araña, Puig nos introduz na pequena alcova de uma prisão argentina em que se encontram presos Valentín e Molina. Enquanto presos, sabemo-nos desgarrados da sociedade, apartados do mundo, postos à margem. Dado o caráter leve da VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 362 prosa, já no início, somos incitados a delinear seus caracteres, mesmo através de seus diálogos entrecortados, ágeis, em discurso direto. Assim conhecemos Valentín, um revolucionário, homem reflexivo e desconfiado, preso por subversão às leis ditatoriais, e Molina, um homossexual, homem falante e sentimental, acusado de corrupção de um menor de idade. Molina, além disso, mostra-se um contador de histórias; ele narra a Valentín, de modo fragmentado, mas eficiente, os enredos de filmes B estadunidenses que assistira na juventude. As narrativas fílmicas são, portanto, uma rota de fuga para a realidade dura que acomete aos presos, e é já no desenrolar de uma dessas histórias que somos inseridos na trama, ou seja, somos introduzidos num entre-lugar, entre a realidade da alcova e a realidade da ficção narrada pela personagem. Ao seguirmos lendo, vemos como Puig estrutura o seu romance com a inserção de várias notas de rodapé em que se discute o tema da homossexualidade e a psicanálise. Há, ainda, longos monólogos interiores de Molina e, ao final, um relatório policial sobre as ocorrências que marcam o fechamento da trama, com a trágica morte das duas personagens: Valentín é morto por tortura, Molina é morto, ao sair da cadeia, pelos camaradas de Valentín, ao temerem que ele os prejudicasse de algum modo, ao relatar algo à polícia. El beso de la mujer araña é, portanto, um romance estruturado a partir de uma montagem de diferentes planos discursivos, planos fictícios e de diferentes gêneros textuais, os quais condicionam o leitor a fazer constantemente relações analíticas, inferências, relações entre o político, o social, o econômico, o histórico, a sexualidade, a religiosidade e a moral, até. Pelas narrativas fílmicas de Molina, por exemplo, pensamos no universo da cultura de massas, que moldou o caráter da personagem, inculcando-lhe valores que nada tem a ver com a sua realidade. Ora, Molina, achando-se preso numa alcova latino-americana, com um preso político (e ele também não era um preso político?), devaneia a imaginar-se como heroínas de universos distantes. Desse modo, é Valentin quem questiona a Molina, critica os enredos, pouco falando, mas suscitando a reflexão. Gera-se uma tensão entre uma imanência fria e a uma transcendência que, embora falsa, aquece os corpos e as mentes. Porém, dada a condição em que Valentín se encontra, pela necessidade de também esquecer-se preso às vezes, de concentrar-se em alguma história, para não perder a própria história, preservando-se, para aliviar os sofrimentos, tudo faz com que até mesmo ele sucumba à imaginação de Molina. Ambos compartilham sentimentos que revelam o VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 363 absurdo de sua situação, mas que fazem o leitor refletir acerca das possibilidades de transformação humana, mesmo através do relato ficcional de filmes ruins, mesmo através dos valores encaixotados da cultura de massas. Desse modo, se pensarmos na relação entre os valores ideológicos muitas vezes propagados pelo tipo de cinema americano retratado no livro – o individualismo, a martirização, o romantismo piegas... – e a alienação deflagrada pela fragmentação social imposta pelo regime capitalista, que faz os sujeitos não perceberem os laços entre, por exemplo, os regimes ditatoriais latino-americanos e a política de Washington, nisso tudo percebemos uma ironia muito profunda, a de que Valentín, o revolucionário comunista, transforme-se em alguém mais humano, menos preconceituoso, ainda mais livre das convenções sociais sobre a sexualidade, culminando no próprio ato de copular com Molina. El beso de la mujer araña, devemos confessar, aparenta-nos ser de uma decifração mais rápida (sem que isso signifique aqui algum tipo de reprovação). Uma obra plenamente alegórica, como demonstramos, é aquela que faz com que percamos o foco de outros fragmentos se nos fixarmos em apenas um. É aquela que dificulta ao máximo a nossa apreensão do todo que conforma a sua montagem. Estando isso não tão marcado em El beso de la mujer araña, ou seja, dando esse romance a impressão de que podemos nos focar em um de seus componentes sem perder de foco os outros, parece-nos tratar-se de uma obra cujos elementos aproximam-se mais ao conceito de símbolo, isto é, que faz uma ligação mais instantânea e orgânica entre o que se representa e o que é representado, sem induzir o observador a confusões, a perder-se87. Contudo, de um outro ponto de vista, se entendermos que há uma impossibilidade de se representar, ainda nesse romance, uma ideia de totalidade – embora haja a clara incitação a pensar nas relações entre o particular e o geral, o individual e o social, a realidade de uma cadeia latino-americana e de seus presos e a indústria cultural de massas dominante em praticamente todo o mundo... – sendo a própria trama uma espécie de recorte na trajetória das personagens, sendo os seus passados vistos como quadros fragmentados, perdidos, mortos; sendo o seu presente uma trajetória que parece rumar, definitivamente, para uma morte sem transcendência (eles ainda são fragmentos de uma sociedade que produz a morte não redimida, que esconde os mortos e, portanto, proíbe o trabalho do luto), podemos ver nisso um aspecto alegórico. Além de tudo, há um componente labiríntico na obra, evidenciado pelos diferentes planos 87 BENJAMIN, 2004. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 364 discursivos (a narrativa de filmes, a discussão psicanalítica nas notas de rodapé, os relatórios frios da polícia, a própria história de Valentín e Molina) que o leitor é obrigado a percorrer fazendo relações, ainda que não tão complexas, entre esses planos. Se a trama, em si, não contém características definitivamente alegóricas, a obra em si alegoriza o caráter paradoxal da sociedade latino-americana durante os anos de chumbo. V Achamos interessante iniciar a nossa análise de Los detectives salvajes a partir de uma discussão sobre o seu próprio título. Está claro que ele não deixa totalmente evidenciado do que trata o romance (comparem-no com os títulos de romances realistas, aqueles com uma pretensão de totalidade). Considerando que a arte alegórica convida à decifração de um hipotético enigma e que o alegorista insinua possuir um suposto segredo, o qual seria o sentido almejado pelo leitor melancólico, o título Los detectives salvajes é em si mesmo um elemento alegórico. No entanto, já sabendo que a alegoria, por sua natureza, não permite um fechamento de sentido, que ela é a própria multiplicidade semântica, devemos sugerir mais de uma interpretação, como uma forma de cercar, por vários lados, o nosso alvo. Dito isso, pensemos que, havendo no título a palavra ―detetives‖, estamos tratando de lei e crime; um detetive é aquele que procura pistas para desvendar os mistérios envolvidos num crime, suas causas, seus culpados. Se um crime ocorre, há uma lei que foi infringida, um sistema jurídico que rege a sociedade e que garante punição aos culpados pela infração. Se um crime ocorre, no entanto, essa sociedade não está assegurada de que todos os seus participantes estejam obedecendo ao sistema imposto; há sempre alguém à margem, que quer ou necessita desobedecer às leis, havendo ainda os crimes acidentais. Pode ser, no entanto, que o próprio sistema cometa crimes, e que o detetive atue para achar as provas que o apontem por ter infringido as próprias leis por alguma razão. De qualquer forma, ―detetives‖, por si só, convida à decifração, alude ao melancólico que encara as alegorias como um modo, sempre falho, de buscar um sentido à vida. Por sua vez, ―selvagens‖ também nos incita a pensar em lei, lei da selva, em que os animais mais fortes, ágeis ou melhor adaptados ao ambiente vão devorando os mais fracos, lerdos ou inadaptados. Todavia, não fica claro se, nesse caso, caberia usar a palavra ―crime‖ para o fato, por exemplo, de um leão devorar um antílope. ―Lei‖, sugerido por ―detetives‖, VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 365 e ―selvagens‖, do próprio título, parecem excluir ―crime‖, também sugerido por ―detetives‖. Todos os atos violentos praticados em nome de uma lei da selva, parece-nos, estariam naturalmente justificados, ou então, no caso de uma sociedade, as leis que regem o sistema estariam sendo bastante desobedecidas quiçá pela perda de controle das autoridades, instaurando o caos. De outro ponto de vista, se pensarmos em ―selvagens‖ como ―inadaptados‖ ou ―desobedientes‖, ou seja, em que não há conformidade com um sistema estabelecido, podemos entender ―detetives selvagens‖ como uma referência aqueles que, apesar de agirem em nome da lei, enquanto detetives, desobedecem-na em algum momento, ao cometer algum ato inadequado. Por fim, ―selvagens‖ incita-nos a pensar, obviamente, em selva, natureza, onde tudo obedece a um ciclo que, infalivelmente, passa pela morte, sem que haja crimes e, logo, culpados. Assim, pensemos na relação estabelecida por Benjamin entre alegoria, história e natureza: ―...a natureza, se desde sempre está sujeita à morte, é também desde sempre alegórica‖88, ou ainda: ―A palavra ‗história‘ está gravada no rosto da natureza com os caracteres da transitoriedade. A fisionomia alegórica da história natural, que o drama trágico coloca em cena, está realmente presente sob a forma de ruína‖89. Fazendo um paralelo disso com Los detectives salvajes, concluímos haver – e nisso apoiamo-nos também numa interpretação de seu enredo – uma alusão à história dos homens como algo que parece estar fora do seu controle, tal qual ocorre na natureza com os terremotos e os furacões, que produzem mortos e ruínas sem que ninguém possa apontá-los como assassinos. Os detetives selvagens seriam aqueles que buscariam, em meio à selva histórica, utilizando-se da força ―literária‖, por exemplo, e de métodos contrários às falhas leis dominantes (como os questionamentos dirigidos à história oficial, como um desafio ao poder instaurado), investigar, pela análise das ruínas, das carcaças, dos fragmentos, as causas e os culpados, se os há, pelos tantos mortos que se vão esquecendo, pelos tantos escombros sobre os quais se erigem novas construções. Detetives, portanto, seriam até mesmo os leitores, dado que a alegoria convida ao jogo, mantém a obra de arte em abertura. Os leitores, como melancólicos e em estado de permanente insuficiência, buscando também no romance e na selva histórica algum sentido, decifrando alegorias, refletindo sobre a precariedade do mundo, questionando, pela leitura, a realidade imposta, 88 89 BENJAMIN, 2004, p. 181. Idem, p. 192. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 366 pensando nos crimes cometidos, nos mortos esquecidos... os leitores, enfim, fazem sua própria investigação. Detetives, como interpretantes, são aqueles que buscam transcender, que não aceitam a pura imanência crua da matéria natural fragmentada, sempre em vias de putrefação. O romance Los detectives salvajes nos conta a história de jovens latino-americanos que, no México de meados dos anos 70, viram-se seduzidos, depois da leitura de um único e enigmático poema, por Cesárea Tinajero, uma obscura poetisa (ou, como nos advertem algumas personagens, obscura ―poeta‖) integrante de um grupo mexicano de vanguarda no início do século XX. Por essa fascinação, eles partem para o deserto de Sonora, em busca de pistas para saber do seu paradeiro. Essa busca, porém, compreende a primeira e a terceira (e última) partes do romance, que nos são narradas através de um diário escrito por um jovem chamado García Madero, quem abandona a universidade para dedicar-se à poesia e juntar-se aos real-visceralistas, grupo do qual fazem parte, entre outros, Arturo Belano e Ulises Lima. Os real-visceralistas de Belano e Lima inspiram-se, justamente, nos real-visceralistas liderados supostamente, décadas antes, por Cesárea Tinajero. É, porém, a segunda e maior parte do romance que atrai a maior atenção crítica. Nela, narra-se justamente a história de Belano e Lima após terem deixado o deserto de Sonora e partido para uma jornada que os fez passar por vários lugares do mundo, como melancólicos errantes. Tal narrativa, porém, dá-se de modo fragmentado, disperso, descentrado. A começar, fala-se da trajetória de dois homens, fazendo com que se aponte para duas direções, dois centros, já que Belano e Lima seguem caminhos diferentes. No entanto, dado que os depoentes falam também de si mesmos, os dois centros vistos em Belano e Lima, que geram uma órbita elíptica nos discursos dos depoentes, muitas vezes se dispersam, quando um dos depoentes fala em si mesmo, deslocando a trajetória da órbita narrativa elíptica para girar ao redor de um terceiro, quarto, quinto... novo eixo provisório. Utilizando uma metáfora musical, podemos dizer que, se Belano e Lima são dois baixos que trabalham em contraponto e que todas as outras vozes – entre as dos depoentes e as outras vozes ouvidas através destas, que constituem o restante da orquestração romanesca, gerando uma harmonia intrincada e dissonante, pontuada às vezes por um solista, um depoente que centra o seu discurso acentuadamente em si mesmo –, são os próprios baixos, deduzidos como essenciais à harmonização sinfônica da trama, que silenciam, VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 367 desaparecem, desafinam, fazendo as outras vozes se dispersarem, fazendo os solistas irem das regiões mais graves até as mais agudas da escala para preencher o vazio harmônico. Los detectives salvajes é, portanto, um romance labiríntico, em muitos sentidos. Sua composição estrutural é composta ressaltemos, de três partes, sendo a primeira e a última estruturalmente idênticas, escritas em forma de um diário pessoal, e a segunda uma série enorme de relatos pessoais. A primeira e a última partes, no entanto, contam-nos o início da enredo, se o dispusermos numa ordem cronológica (com a segunda parte, há uma suspensão do relato contido no diário), e a segunda parte é, portanto, o final da história. Os labirintos aparecem também nas peregrinações dos jovens poetas pelas ruas da gigantesca Cidade do México, ou D.F.; pelas suas incursões em lugares como o bar Encrucijada Veracruzana, o que por si só evidencia a alusão a um labirinto. Há labirinto também em Sonora, o estado e deserto em que adentram os poetas em sua fuga de uma cafetão violento e em sua busca por Cesárea Tinajero. Aliás, a própria ideia de um deserto como um labirinto alude a uma recorrência na literatura, isto é, o deserto como um labirinto do qual se é mais difícil escapar, por conter todas e nenhuma saída ao mesmo tempo, visto que se pode andar para qualquer direção, mas nenhuma que leve a qualquer saída. Há labirinto, ainda, na jornada empreendida por Belano e Lima pelo mundo, quando passam por vários países e continentes, em sua fuga e busca de algo inominável. Contudo, o caráter labiríntico do romance é evidenciado de modo mais evidente no já referido caráter estrutural da segunda parte da trama, em que tudo é narrado por depoentes, em textos nos quais todos falam tanto de si mesmos quanto de Belano e Lima. Apesar de obedecerem, com algumas exceções, a uma ordem cronológica, de um período que compreende cerca de vinte anos, entre 1976 e 1996, várias personagens repetem-se, e alguns depoimentos são apenas um só, fragmentado em diversas partes, podendo o leitor ler sem obedecer à ordem em que são dispostos no romance, como num labirinto que oferece várias entradas. Sendo os labirintos tão evidentes na composição do romance, podendo ser ele mesmo considerado um único grande labirinto, constituído a partir de uma montagem de labirintos menores (a técnica de miniaturização a que já nos referimos, que se reproduz da menor à maior escala), as ideias de fuga, busca e jogo são exigidas. Ora, entra-se ou sai-se de um labirinto buscando algo ou fugindo-se de algo. O caráter lúdico, de todo modo, está contido na operação. Perguntamo-nos, então: de que fogem as personagens? O que buscam ao ingressarem nesses labirintos? O que encontram neles? Isso nos leva a refletir VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 368 acerca dos seus nomes. Notemos, por exemplo, que Arturo Belano, alter ego de Roberto Bolaño, também alude ao Rei Arthur. Há, inclusive, uma passagem em que a personagem entra num duelo de espadas totalmente anacrônico e despropositado. Ulises Lima, por sua vez, alude ao Ulisses homérico e ao joyceano. É, de toda forma, alguém que também faz uma travessia, em busca de fechar um ciclo, encerrar uma experiência, dotar-se de um sentido. São, portanto, nomes que aludem à ideia tanto de provação, travessia, transformação, quanto de heróis epopeicos que, por isso, deveriam representar todo o seu povo. Nisso, eis o problema: como já vimos, Belano e Lima ligam-se precariamente a todos aqueles que fazem parte, digamos, de sua geração, sua comunidade. Os fios que os ligam rompem-se facilmente. Ao tentar descrevê-los, os depoentes esquecem fatos, confundemse, dirigem o discurso para si mesmos. Ou seja, não há uma ligação orgânica entre todos, o que nos traz novamente o conceito de fragmento e fragmentação. Como fragmentos, Belano e Lima não mantêm uma ligação orgânica com aqueles a quem, na qualidade de proto-heróis épicos, deveriam representar. A fragmentação social imposta como que naturalmente pela história, pelas forças repressivas que eles não conseguem bem identificar, estilhaçam o quadro social, faz todos se voltem para suas próprias subjetividades e insuficiências, para suas próprias memórias falhas, embora compartilhem as mesmas dores. O que motiva Belano e Lima a saírem pelo mundo é já um fato chocante, e não um chamado à provação de seus valores ou honra. Conforme sabemos no fim do romance, o único ciclo que se fecha não é aquele que resulta num engrandecimento, ao fim de sua travessia, pois a trama mesma do romance termina em suspenso, deixando-se em abertura. Um ciclo anterior, no entanto, já lhes é dado como fechado, o destino já lhes é selado quase como inescapável. No meio do deserto de Sonora, em sua investigação, os jovens descobrem em Cesárea Tinajero uma mulher degradada, que em nada lembra os ideais pelos quais eles pareciam buscar como uma prova de que haveria esperança. Cesárea é o passado que novamente os trai. Nada há nele a ser buscado que propicie redenção. O nome de Cesárea, aliás, invoca a ideia de parto, mãe, de um passado em conforto, como um possível tempo em que houve na América Latina alguém que, por sua arte, tenha plantado a semente de mudança, de algo bom a ser frutificado no presente. Estando essa mãe, esse passado, degradado, perdido, doente, morto simbolicamente, que espécie de herança esses filhos esperam receber? (A mesma ideia de falha num retorno ao passado, da imagem materna degradada, é encontrada, como vimos, em Onetti, que em El astillero, por exemplo, VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 369 mostra-nos, já no final do livro, a cena de um parto-aborto, em que uma mãe esvai-se em sangue e gritos). Ainda há o agravante de que foi por causa deles mesmos, dos poetas perseguidos por um cafetão violento, que esse passado possivelmente redentor representado por Cesárea Tinajero foi aniquilado, quando a poeta levou o tiro que causou sua morte efetiva. Os heróis, portanto, carregam em si as marcas da culpa, da cumplicidade com a morte de um passado que tentavam resgatar, do destino inescapável, da angústia inominável. Fechamos Los detectives salvajes, portanto, com um pouco da sensação que acomete ao leitor também das obras de Onetti e Puig. Bolaño, do nosso presente fracassado, pois assentado sobre cadáveres e ruínas não redimidas, volta-se ao período em que os jovens desarraigados, homossexuais, poetas, loucos, traficantes, prostitutas... vagavam por uma América Latina em crise declarada, a América Latina explicitada por Puig, a partir de uma alcova. Os heróis de Bolaño, no entanto, em plena crise, decidem também voltar-se para um passado ainda mais distante, tentando achar nele uma semente que dê ao seu presente e ao futuro uma possibilidade de esperança, talvez plantada em si mesmos, mas sozinhos não são capazes de achar nada, ainda que em si mesmos, a não ser um profundo senso de não pertencimento ao mundo em que vivem. De Onetti, passando por Puig, até Bolaño, tem-se a persistência de uma sensação de derrota, daí os escritores voltarem-se ao passado, numa tentativa de ativar o luto que parece querer ser apagado das mentes das pessoas, como se nada tivesse ocorrido. Quer-se redimir esse passado, seus mortos, pois se vê no presente uma sensação insustentável de dívida, que faz os espectros virem em busca de redenção, que faz os melancólicos no presente percorrerem labirintos filosóficos, literários... catarem fragmentos para neles encontrarem enigmas, na esperança de que, se desvendados, forneçam a chave para um fundamento transcendental. Referências ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Trad. Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. AVELAR, Idelber. Alegorias da derrota: a ficção pós-ditatorial e o trabalho do luto na América Latina. Trad. Saulo Gouveia. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. ÁVILLA, Afonso. O lúdico e as projeções do mundo barroco I. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 1994. (Debates) VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 370 BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. Trad. José Carlos Martins Barbosa e Hemerson Alves Baptista. São Paulo: Brasiliense, 1989. (Obras escolhidas; v. 3) _____. Magia e técnica, arte e política. Trad. Sergio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. (Obras escolhidas; v. 1) _____. Origem do drama trágico alemão. Trad. de João Barrento. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004 (Obras escolhidas de Walter Benjamin) BOLAÑO, Roberto. Entre parêntesis. Barcelona: Anagrama, 2004. (Compactos) _____. Los detectives salvajes. 17. ed. Barcelona: Anagrama, 2009. (Compactos) CALABRESE, Omar. A idade neobarroca. Trad. Carmen de Carvalho e Artur Mourão. Lisboa: Edições 70, 1987. HANSEN, João Adolfo. Alegoria: construção e interpretação da metáfora. São Paulo: Hedra; Campinas: Editora da Unicamp, 2006. JAMESON, Fredric. O inconsciente político: a narrativa como ato socialmente simbólico. Trad. Valter Lellis Siqueira. São Paulo: Ática, 1992. (Série Temas; v. 31) _____. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. Trad. Maria Elisa Cevasco. 2. ed. São Paulo: Ática, 2007. LUKÁCS, Georg. A teoria do romance: um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica. Trad. José Marcos M. de Macedo. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2000. (Coleção Espírito Crítico) ONETTI, Juan Carlos. El astillero. Madrid: Salvat; Alianza, 1970. ______. La vida breve. Madrid: Punto de lectura, 2007. PUIG, Manuel. El beso de la mujer araña. Barcelona: Seix Barral, 2006. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 371 18. O PRESENTE BARROCO: A MÁQUINA DO TEMPO TEÓRICO- LITERÁRIA DE AGUALUSA Lisane Mariádne Melo de Paiva (Departamento de Letras - UFRN) Julianny Katarine Aguiar de Oliveira (Departamento de Letras – UFRN)* Pode parecer óbvia a escolha para trabalhar o barroco no livro Barroco Tropical do escritor angolano José Eduardo Agualusa, contudo mostraremos no decorrer deste trabalho que a escolha não está presa a uma idéia clara de encaixe teórico, e sim, está estritamente relacionada a uma percepção crítica de que este livro não é uma obra literária, é, porém, uma obra que propõe uma estética nova, uma crítica, é um novo modo de se dizer e fazer teoria. Dividiremos nossa análise em três tópicos: Estética Barroca, que tratará do modo como Agualusa absorveu as características barrocas para construir seu enredo, para isto o dividimos em quatro sub-tópicos: O Jogo, A Dualidade, O Sagrado e o Profano e O Labirinto. O tópico em que serão focalizados os personagens intitula-se sugerindo esta leitura Os Personagens está dividido nos sub-tópicos de análise: Bartolomeu Falcato e Kianda, narradores e protagonistas de Barroco Tropical. E por fim o terceiro tópico, Tropicalismo que observará as particularidades do barroco de Agualusa, destacando nos sub-tópicos: Barroco e Modernidade e O Anjo Negro, a sua originalidade. 1. Estética Barroca Em meio às discussões de modernidade ou pós-modernidade, os escritores Agualusa (o autor) e Bartolomeu Falcato (o personagem) discutem o existir na construção amedrontadora da sociedade de Luanda, em que é natural um labirinto para se jogar os loucos e os dissidentes políticos, e um prédio que abriga as pessoas das mais altas classes sociais e os marginalizados num mesmo espaço caótico e hipócrita de convivência. Barroco Tropical absorve a estética barroca transformando-a em uma estética própria, não observamos traços típicos do barroco em seu sentido mais usual, os elementos orientam-se independentemente da sua tradição, porém mantendo sua influência. Há então, concordando com diversos pesquisadores, o neobarroco, destacando sua particularidade: o VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 372 tropicalismo, este, não sendo apenas um neobarroco de crítica ao capitalismo e à colonização cultural da contemporaneidade, é um não-europeu, uma vertente dos trópicos, dos marginalizados. Neste caso, Agualusa faz questão de miscigenar a miscigenação, reafirmando e reforçando a ponte afro-latino-americana. Apesar de o enredo passar-se em Luanda, é evidente a negação a uma fronteira, é uma sobreposição de entre - lugares, culturais e sociais. Angola, como todos os países do subterrâneo do edifício das relações políticoeconômicas, é agora, uma neocolônia, e é isto que defendemos neste trabalho, a volta da estética barroca, se definindo como neobarroco, é justificada pela explosão da nova colonização, a imposição do medo levando à degradação das relações sociais. A extravagância barroca passa a ser um detalhe cultural, tudo pode, este é o artifício da crítica de Agualusa. Numa cidade que tudo pode, até uma mulher cai do céu. O exagero não é mais barroco ou neobarroco, é uma característica da modernidade/pós-modernidade. Logo, a escolha do novo olhar sobre a tradição barroca é a escolha de um novo olhar para si mesmo. As contradições – leia-se aí uma influência dos jogos de oposição característico do (neo) barroco – descritas pelo personagem Bartolomeu em suas andanças por Luanda reforçam a crítica de Agualusa a visão atual do colonizador (mais conhecidos como os ‗desenvolvidos‘) sobre o colonizado (os ‗subdesenvolvidos‘), o autor/escritor – escrevemos deste modo, porque posteriormente discorreremos sobre a fronteira entre o autor Agualusa e o escritor Bartolomeu Falcato - defende que a cultura ‗civilizada‘ faz dos europeus e americanos ―mortos muitíssimo saudáveis‖ (AGUALUSA, 2009:108), enquanto que os que passam fome morrem todos os dias sabendo viver. 1.1 O Jogo ―O poeta é um jogador‖ (ÁVILA, 1994: 117 ) é assim que Affonso Ávila define o escritor barroco. Fazendo uma analogia com o poeta fingidor de Fernando Pessoa, ele dirá que ―jogar e fingir são verbos de afinidade semântica‖ (ÁVILA, 1994: 117), pois aquele que finge sentir algo para dá início a sua narrativa, joga com as imagens, emoções, projeções; e dá início a esse universo lúdico que banha a escrita de um escritor (fingidor). Em ‗Barroco VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 373 topical‘, Agualusa decide jogar com sua narrativa ludibriando o leitor que também estará jogando ao ler o enredo desse romance. A primeira página do livro vem com duas citações: uma retirada da Bíblia Sagrada, Sabedoria, Idolatria dos navegantes, 14, 22 e outra que fala sobre o inferno, uma citação retirada do filme ‗Platoon‘. E entre essas duas outras citações, numa espécie de entre-lugar de céu e inferno bem à moda barroca (que tem sua arte habitada na curva, na elipse): ―Não me interessa ordenar o caos: o que eu quero é fazê-lo florir!‖ (AGUALUSA, 2009: 5) esta é uma citação de Mouche Shamba, em entrevista a Malaquias da Palma Chambão, publicada o seminário O impoluto, de 10 de maio de 2008, sendo este um personagem do livro. Observamos aqui que o autor (ou autores) coloca a máscara de seu personagem, fingindo sê-lo para dá a primeira ―dica‖ ao leitor do que se passará nesse livro, que se organiza propositalmente no caos, na desordem, no insólito e no medo. O primeiro capítulo que tem como título ―uma mulher cai do céu‖ (AGUALUSA, 2009: 7), é como se fosse, na verdade a apresentação do jogo, como um daqueles manuais de ajuda onde explicam o que vai se passar no jogo – Que jogo é esse? Que história tem esse jogo? – caso o jogador decida continuar, ele então expõe as cartas... As cartas principais, ou seja, os personagens principais, as cartas de defesa e ataque, os personagens secundários... E assim começa esse jogo chamado Barroco Tropical. Passada essa fase, não tem mais para onde correr, ou o jogador/leitor segue em direção ao fim, ou morre no meio da narrativa! Durante todo o livro somos expostos a citações feitas pelo(s) autor(es) do livro(Bartolomeu Falcato ou José Eduardo Agualusa). Na verdade, não são apenas citações são dicas, sejam dos personagens, dos significados das palavras ou de esclarecimento, que servirão para o leitor continuar no jogo. ―Lua é o diminutivo carinhoso com que nós, os luandenses, nos referimos a nossa cidade. Acho um termo muito acertado. Luanda partilha com a lua a mesma árida e agreste desolação, a mesma poeira sufocante. Todavia, como a Lua, vista de noite, e de longe, parece bela. Iluminada seduz. Além disso, a sua luz tem o estranho poder de transformar homens simples em lobos ferozes.‖ (AGUALUSA, 2009: 90) VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 374 Esta é um exemplo das citações em que o autor explica o porquê da utilização de um determinado vocábulo, neste caso, da palavra Lua. Durante a narrativa o escritor também pede para voltarmos a algum ponto, algum capítulo, como se tivéssemos que voltar a uma casa em um jogo de dados, para assim poder prosseguir na narrativa. 1.2 A Dualidade A produção barroca de Agualusa não incorpora apenas características de um barroco literário, em sua leitura formamos telas, vemos a sua arquitetura e ainda, ouvimos música. Em meio a vários trompe-l’oeil de palavras, iremos analisar neste sub-tópico a estética barroca da dualidade, entendendo claro, a particularidade dela na obra do autor angolano. Uma característica que no barroco se limita ao significado etimológico da palavra que a conceitua, em Barroco Tropical a dualidade é encadeada, o dual, o‗dois‘ é muito pouco para as sobreposições lidas. Por tão diversa, a dualidade que escolhemos trabalhar por pensar ser também a mais rica, é a da relação entre os personagens Rato Mickey e Dálmata. Depois de um acidente com uma mina o Mestre António Taborda teve seu rosto totalmente desfigurado, e em um dia qualquer uma pessoa lhe deu uma máscara de rato Mickey, então ele nunca mais a tirou e desse modo ficou conhecido pelo personagem que lhe deu um novo rosto, a partir de então também uma nova identidade, a do Rato Mickey. Nessa construção do personagem, lemos uma entrelinha bastante curiosa, o antes Mestre António Taborda era um belo crítico da nova colonização que passam os países subdesenvolvidos, mas especialmente a Angola. Contudo, ao ser lhe arrancado o rosto, sua nova identidade é a de uma figura tipicamente americana, não uma figura qualquer, mas a representação do lúdico americano. Rato Mickey, assim como Angola, ao desfigurar-se absorve e carrega a identidade do bondoso colonizador. Opondo-se e ao mesmo tempo acompanhado o Rato Mickey, o taxista Dálmata, ao contrário do amigo, naturalmente aproxima-se da figura colonizadora. Dálmata tem vitiligo, e seus dedos já completamente despigmentados são escondidos por uma luva, ele justifica isto dizendo: ―Um dia ainda vou ser branco. [...] Ser branco é uma doença‖ (AGUALUSA, 2009:192). A sobreposição de dualidades a partir da relação entre esses personagens se dá mais evidentemente, quanto Bartolomeu tenta a todo o custo descobrir a verdade sobre Núbia e VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 375 o Anjo Negro. Para ter acesso à sala de Tatá Ambroise ele usa a máscara do Rato Mickey, em uma leitura paralela, pra ter acesso à verdade ele teve de se identificar como semelhante ao colonizador. A convivência e a parceria entre Dálmata e o Rato Mickey é também a do colonizador e do colonizado, daquele que se travesti e o que nega o simulacro, do patriota corrompido e o que não se vê já absorto nessa rede ditatorial. 1.3 O Sagrado e o Profano Uma das dualidades mais bem articuladas por Agualusa em Barroco tropical é o engendramento entre o sagrado e profano. Observamos isso de várias formas na narrativa, poderíamos destacar para explanação dessa dialógica construção a personagem Kianda, uma das narradoras e uma das personagens principal do livro, uma vez que em kimbundo ‗Kianda‘ é um ser mitológico que corresponderia à idéia ocidental da sereia. Kianda, incorpora as características desse ―ser‖ mitológico. Ela é cantora, dona de uma voz que encanta milhões e, igualmente a uma sereia que consegue encantar o homem e levá-lo junto consigo para o fundo do mar, Kianda consegue encantar Bartolomeu Falcato e levá-lo para o abismo que era a sua vida, pois para o escritor ela era a ―Rainha dos Abysmos‖ como está logo no índice do capítulo 24. Núbia de Matos, a mulher que caiu do céu, é uma personagem arquitetada desde o início da narrativa numa perspectiva sagrada e profana. A sua queda já faz lembrar a queda do anjo ‗Lúcifer‘ que, segundo o cristianismo, por querer ser mais que Deus foi expulso do céu. Logo depois perceberemos o desdobramento de um profano dentro do sagrado, pois Núbia no início da narrativa define a si mesma como a mulher escolhida por Deus para dar luz ao Salvador, sendo assim uma espécie de Maria e para isso ela escolhe Bartolomeu Falcato para ser o pai do seu filho. No desenrolar dos fatos percebe-se que Núbia nada tem haver com a figura de Maria, ver-se que ela é uma menina que foi abusada sexualmente na infância pelos irmãos, depois se torna prostituta, decide fazer um concurso para e miss e ganha. Mesmo Miss, continua em meio a orgias e drogas... Até que depois de uma alucinação, (que pode ter sido causada pelo uso de drogas) que ela trata como uma visão, decide mudar, tornando-se VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 376 assim, a mãe do Salvador. O que percebemos no personagem de Núbia é o desdobramento do profano no sagrado. A escolha de Núbia leva-nos a uma reflexão sobre a literatura: Porque o salvador teria de ser filho de um escritor? Qual o filho de um poeta senão sua própria palavra? A literatura salva? Seria a literatura sagrada? O próprio escritor (es), responde nossa pergunta: ―Não acredito que a literatura possua tal poder. Os meus livros amenos não possuem. Eu não conseguiria escrever se suspeitasse que fosse mudar a vida de alguém. Escrever é uma irresponsabilidade.‖ (AGUALUSA, 2009: 132) Outros tantos exemplos poderiam ser retratados nessa análise, tais como: O curandeiro Tata Ambróise, uma espécie de Pastor que utiliza feitiços; O pai de Kianda, um terrorista islâmico que decide tornar-se budista; a Santa Cecília, santa de Kianda que ela queria chicotear, que não sabe de nada, que recebe desaforos da cantora e nada faz, enfim vários são os exemplos... Mas nada tão clássico como a figura do anjo negro. A primeira pista do Anjo Negro é logo no inicio da narrativa, quando o narrador (es) nos fala sobre um homem que anda com asas negras penduradas nas costas e morre na guerra. Depois temos o mito do anjo negro, e logo mais no final da narrativa, nos depararemos com a sua morte. Este anjo, não é um anjo mal, que opera para as forças do maligno... É apenas um anjo humano! Com asas produzidas com ―penas, arames, cartolina e alcatrão‖ (AGUALUSA, 2009: 49). Vemos aqui uma reflexão trazida pelo autor sobre a liberdade em seu país, pois Angola é um lugar que habita anjos negros, que construíram suas asas com matérias do lixo e alçaram a liberdade ainda que a preço de sangue! 1.4 O Labirinto O caos barroco é retratado severamente por Agualusa em sua crítica a uma prática famosa em seu país, o acorrentamento dos ‗indesejáveis‘ – loucos ou não – a peças de ferro. No enredo ficcional além da prisão violenta, os ‗loucos‘ são jogados em um labirinto, nus, abandonados com um único abrigo, as paredes. O labirinto é a representação fiel que nos permite voltar à discussão do barroco como movimento cíclico, preso à consciência, ou a falta dela, do homem. Se o barroco VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 377 retorna à superfície crítica sempre que a razão é superada pela dúvida e pelo medo, nada melhor que o labirinto de Agualusa para definir isto. As pessoas que lá se encontram, ou melhor, se esquecem, são forçadas a participar de interrogatórios que vão de apenas perguntas a consumo de alucinógenos, que trazem à tona ‗verdades‘ e fantasias, e o mais funcional, faz com que o ‗paciente‘ à medida que conta esquece. O labirinto ultrapassa a fronteira de apenas um elemento do enredo transformandose em elemento estético de sua construção. O edifício ‗A Termiteira‘ é o mapa de leitura dos desdobramentos de ‗Barroco Tropical‘, seus andares reproduzem o caminho que o leitor deve seguir, subindo, neste caso adiantando-se as páginas, e descendo, retornando a capítulos anteriores. O enredo é o próprio labirinto, onde não só os personagens como o leitor e o autor procuram achar uma saída, e libertar-se. O edifício ‗A Termiteira‘ é um labirinto e também uma ‗Torre de Babel‘, o personagem Bartolomeu que está em dos mais altos andares físicos e sociais do prédio, volta e meia precisa descer ao caos dos andares mais baixos e do subsolo. Sua morada é um labirinto que ele percorre sem rumo, ao mesmo tempo em que é o seu lar é também o que há de mais desconhecido para ele. 2. Os Personagens As sobreposições barrocas estão nas entrelinhas da teia criada pelas relações entre os personagens, um tipo de re-leitura de ‗relações perigosas‘. Cada personagem traz consigo um caminho a mais no decorrer da história, uma tangente desvendada apenas nas idas e vindas da trama, que se centraliza mais especialmente em seus narradores Bartolomeu Falcato e Kianda. Personagens assumidamente secundários, pelo escritor e principal narrador, Bartolomeu, por fim tornam-se essenciais no desdobramento do enredo, tais como: Mãe Mocinha, Benigno Anjos Negreiros e Humberto Chiteculo. 2.1 Bartolomeu Falcato VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 378 Um escritor e documentarista que presencia, ele e sua amante a cantora Kianda, a morte de uma mulher que acabara de cair do céu. Após esse estranho acontecimento ele e Kianda dividem a narrativa da trama, em que personagens se entrelaçam em torno do medo. Entre a narrativa de Bartolomeu e Kianda há uma diferença quase que ‗hierárquica‘, pois apesar de paralelas a narrativa de Kianda parece depender do rumo dado pela a de Bartolomeu. A narrativa do escritor orienta o enredo, e ainda sugere ter duas vozes, a do escritor/personagem Bartolomeu Falcato e a do escritor/autor Agualusa. Obviamente em toda construção de uma história a voz do autor está presente mesmo que não aparente, mas no caso de Barroco Tropical a sua particularidade é a possível participação do autor no enredo. Seja através de comentários ‗suspensos‘ no enredo, ou de forma indireta ou camuflada. Por exemplo, no capítulo em que Núbia conta os motivos que levaram à sua morte ela se refere ao personagem de Bartolomeu como ‗José‘, o enredo possibilita duas leituras: Núbia dizia ser a reencarnação da Virgem Maria que daria luz ao Salvador, seu filho com ‗José‘, que ela afirmava ser Bartolomeu. Contudo, a fronteira não delimitada entre o personagem e o autor nos permite a outra leitura de que este ‗José‘ está se referindo ao autor José Eduardo Agualusa. 2.2. Kianda Famosa cantora angolana que narra o seu ponto de vista como amante de Bartolomeu, e ao contrário dele não participa efetivamente do enredo, suas contribuições são indiretas, porém essenciais ao desdobramento da trama. A cantora viciada em drogas e casada com Lulu, seu produtor, conhece Bartolomeu, um famoso escritor e documentarista, e envolve-se amorosamente com ele. Após testemunhar a morte de Núbia de Matos, ex-miss Angola, resolve terminar seu relacionamento com Bartolomeu e é abandonada por seu marido. O seu envolvimento com Bartolomeu representa a oposição ao envolvimento do escritor com a modelo. Enquanto Núbia representa o sagrado, ela o profano. Núbia queria apenas cumprir ordens divinas, já Kianda ser amante para saciar o seu ego. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 379 Em Barroco Tropical as oposições se aproximam, Kianda opondo-se à Núbia em seu envolvimento com Bartolomeu se assemelhou à modelo com a sua morte. Abandonada pelo marido e com uma doença grave recém descoberta, que a deixaria impossibilitada de cantar, suicida-se. Seu suicídio foi planejado minuciosamente por ela, a cantora planejou um último espetáculo. Contratou um grupo que simulava o Anjo Negro, a fixação de Bartolomeu, e se jogou da varanda do seu apartamento, desse modo assim como Núbia, caiu do céu fazendo de testemunha o seu ex-amante. Nesta leitura, portanto, a característica mais conhecida do barroco foi representada de modo fiel a sua tradição, o sagrado e o profano opostos e unidos. 3. Tropicalismo Ao longo deste trabalho já destacamos em vários momentos a particularidade e originalidade do enredo barroco construído por Agualusa. A partir da leitura de Sant‘Anna observamos que o autor angolano não é o único a construir novos barrocos, autores afrobrasileiros mostram certas tendências estéticas que reforçado pela teoria de mestiçagem de Gilberto Freyre, indica que: ―[...] o Barroco, por ter se espalhado por diferentes e longínquas partes do mundo num momento em que a globalização era feita por intermédio da fé e da espada – teria, forçosamente, que se tornar um produto mestiço e mesclado.‖ (SANT‘ANNA, 2000: 257). 3.1 Barroco e modernidade (Luanda) Angola é um país que escreveu sua história com tinta de sangue, com muito sangue... Sabe-se que é triste essa cena... Mas essa é a realidade! Angola foi o palco onde se encenou um dos conflitos armados mais duradouros da guerra fria... Um povo que lutou por um chão, por um pedaço de terra com muita força e determinação! Em 2002, enquanto o Brasil comemorava seu pentacampeonato mundial, e elegia o povo na figura do presidente Lula para governar o país, Angola sentia pela primeira instância o sabor azul da liberdade, pois com a morte do líder do UNITA, Jonas Savimbe, tem fim à guerra civil angolana... E Colorindo o ar com seus sorrisos amarelos e singelos, Angola decide ser... O VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 380 lugar onde a poesia decidiu habitar: essa é a única explicação que encontramos para tal encantamento! Em angola rir-se, da mesma forma que se chora, pra não dizer do mesmo motivo... É o lugar das cores, da beleza dos cabelos trançados, dos panos cor de arco-íris que cobre o ventre não alimentado, das casas hospitaleiras sem camas, das crianças que brincam uma infância inventada, país dos mutilados, sejam pela guerra ou pelo HIV... É o lugar de um povo que decide rir, quando as circunstâncias lhe impõem um choro... É sobre esse povo que construiu sua habitação com alicerce no medo e na angústia da alegria das cores, que Agualusa decide contar a sua história... História de um passado presente extremamente futurista! Diante disso, fica claro que essa história não poderia ser contada de outra forma, senão numa estética barroca. Em Barroco tropical fica claro que o barroco é atemporal, não se prende a determinados momentos da história, mas uma estética do ser! Agualusa utiliza a estética que se desenha no labirinto, no jogo e na elipse para refletir ―mal-estar, e porque não, das patologias da cultura moderna‖, como diria Irlemar Chiampi. O mal-estar causado pela desigualdade, desemprego, indiferença política, fome, sede, dor e morte a qual os países pobres são expostos todo dia; para refletir isso é necessária uma estética do feio, do exagero, do avesso, do insólito: o barroco. ―Não se pode esquecer, sobretudo, que o que está em jogo quando invocamos o potencial desconstrutivo do barroco é o papel que toca hoje, numa nova concepção de arte e da cultura nas sociedades hegemônicas do ocidente, aos povos e culturas periféricas [...]‖ (CHIAMP, 1998: 26) 3.2 O Anjo Negro O Anjo Negro não é um anjo, é um homem com asas feitas de arame e penas, é o profano que incorpora o sagrado. O limiar entre a aparência e a essência não é distinto, por fim os personagens e o próprio enredo constroem-se em torno do que acham que existe, que acreditam que vêem. Assim como a interpretação do poema ‗Labirinto Cúbico‘ por Sant‘Anna in SANT‘ANNA, 2000: 60 vê-se na estética barroca a crítica à impossibilidade de VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 381 independência do homem. O homem barroco está jogado em um labirinto fixo que não pode ser manipulado. Tanto faz o Anjo (Sangue Frio, Humberto Chiteculo), ele sempre morrerá. O jogo sempre será o mesmo, independente dos personagens o roteiro será o mesmo. O protagonista é o Medo, ele é o único insubstituível. 3.3 Aspectos barrocos da cidade de Luanda Tanto as características barrocas, quanto a presença tropical são evidenciadas na ficção de Agualusa pela escolha do quadro espacial, a cidade de Luanda: História e literatura se entrelaçam objetivando, segundo o próprio autor, denunciar e fazer cognoscitível as disparidades e belezas da cultura angolana. Casos reais são usados por Agualusa, como por exemplo, os métodos (medicinais) desumanos aceitados pela sociedade em nome de uma tradição. Tal qual o Barroco, os jogos de oposição são utilizados como método de crítica à dualidade existente nos processos de rápidas transformações sócio-econômico-culturais. A crítica de Agualusa não nega a tradição, contudo indica a necessidade de uma racionalidade, teria portanto como objetivo defender a re-leitura da tradição. O autor faz múltiplas críticas à sociedade, à tradição, à imposição sócio-cultural através do poder econômico e do poder do medo, e ainda ao próprio barroco. Entende-se que o barroco/Neobarroco precisa também de releituras, não o tratando como constituído por características fixas, mas vendo-as como móveis/adaptáveis respeitando os objetivos do autor e a estrutura da obra. Em termos livres, Barroco tropical não se classifica apenas como releitura barroquiana, mas como re-leitura literária, uma miscigenação teórica que dança entre as oposições e os labirintos barrocos até a racionalidade iluminista, imersa em uma atemporalidade da ficção e da realidade. *Pesquisadora CnP-q na área de literaturas africanas Referências bibliográficas AGUALUSA, José Eduardo. Barroco tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 382 ÁVILA, Affonso. O lúdico e as projeções do mundo barroco. 3 ed. São Paulo: Perspectiva, 1994. BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 42 ed. São Paulo: Cultrix, 2004. CÂNDIDO, Antônio. Das origens ao romantismo. 10 ed. São Paulo: DIFEL, 1980. CHIAMPI, Irlemar. Barroco e modernidade: ensaios sobre literatura latino-americana. São Paulo: Perspectiva: FAPESP, 1998. HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura. São Paulo: Martins Fontes, 1995 SANT‘ANNA, Affonso Romano de. Barroco: do quadrado à elipse. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 383 ENSAIO DE UMA SOCIOLOGIA BARROCA 19. Luciano Albino - UEPB Resumo A minha proposta de doutoramento consistiu numa investigação do processo de modernização dos engenhos produtores de cana-de-açúcar na Paraíba. Mas a motivação para tanto partiu da percepção de como a cachaça, bebida desvalorizada socialmente, iniciou um processo de resignificação simbólica a partir dos anos de 1990. Como a mesma ganhou cidadania e, a partir de então, ocupou espaço em mesas e acontecimentos impróprios para ela noutras circunstâncias. O estudo sobre a da cana-de-açúcar me permitiu uma aproximação sobre aquela cultura que, por excelência, estimulou o processo de construção de um país. Encontrei na literatura grande fonte de leitura e fonte de inspiração, uma vez que José Lins do Rego e João Cabral de Melo Neto passaram a ocupar destaque na revisão bibliográfica necessária para a tese. Num certo momento me encontrei numa encruzilhada: estava fazendo um trabalho sociológico ou literário? Descobri na leitura atenta da obra de José Lins forte ligação com a de Gilberto Freyre. Com mais cuidado notei que ambos partiram da mesma orientação sócio-antropológica para fundamentação de seus trabalhos, quer dizer, o pensamento de Franz Boas. A sociologia de um parecia literatura, enquanto a literatura do outro se mostrou bastante sociológica. Ao ler Antonio Candido tive certo esclarecimento da relação entre literatura e ordem social, no entanto, percebi o quanto minha tese se atolava no dilema (ou falso dilema) de não ser considerada científica nos moldes da sociologia clássica. Percebi, após intensa reflexão, quanto meu trabalho, do ponto de vista ideológico, estava contaminado por uma narrativa de temporalidade circular, ou melhor, de um devir permanente, como nos ensinou a professora Irlemar Chiampi, o Barroco, na sua dimensão Latino Americana, brasileira, coisa nossa, moreno. Esse encontro ideológico se estendeu ainda mais na leitura de Antonil. Quis, como ele, entender o engenho como espaço construtor de riqueza, agora, na Paraíba, redimensionado aos novos apelos de fetichização mercadológica. Enfim, do ponto de vista estético e metodológico, meu trabalho foi produzido por várias orientações, quer literárias ou sociológicas, mas, na preocupação de me limitar a uma problematização racionalmente orientada e de intenção objetiva, quero dizer, científica. Neste trabalho pretendo evidenciar dois momentos em que sinalizo aproximações e encruzilhadas entre literatura e sociologia, VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 384 quero dizer, uma irregularidade estética, mas com fins claros de recuperar na arte a dimensão social que lhe foi fator. Inicialmente com João Cabral, em seguida com José Lins do Rego e Gilberto Freyre. Se o barroco foi nossa inicial tentativa de construir uma idéia de identidade (um projeto moderno para o novo mundo), então recorro, inspiro-me em suas teias para me localizar melhor nessa configuração social da qual faço parte. Palavras-chave: Sociologia, Literatura, Barroco, Engenho Barriguda centenária no engenho Serra Preta, Alagoa Nova, PB. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 385 O esplendor da natureza, assim como na culinária e noutros cozeres dos engenhos me fizeram viver, melhor, sentir, dois momentos sobrepostos. Ora há séculos, ora aqui. Talvez nosso projeto moderno não possa perder de vista esse lance pendular, como que para sê-lo, moderno, não podemos perder de vista o tradicional. 2. O vento no canavial de João Cabral ―Não se vê no canavial nenhuma planta com nome, nenhuma planta Maria, planta com nome de homem. É anônimo o canavial, sem feições, como a campina; é como um mar sem navios, papel em branco de escrita. É como um grande lençol sem dobras e sem bainha; penugem de moça ao sol, roupa lavada estendida. Contudo há no canavial oculta fisionomia: como em pulso de relógio há possível melodia, ou como de um avião a paisagem se organiza, ou há finos desenhos nas VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 386 pedras da praça. Se venta no canavial estendido sob o sol seu tecido inanimado faz-se sensível lençol, se muda em bandeira viva, de cor verde sobre verde, com estrelas verdes que no verde nascem, se perdem. Não lembra o canavial, então, as praças vazias: não tem, como tem as pedras, disciplina de milícias. É solta sua simetria: como a das ondas na areia ou as ondas da multidão lutando na praça cheia. Então, é da praça cheia que o canavial é a imagem: vêem-se as mesmas correntes que se fazem e desfazem, voragens que se desatam, redemoinhos iguais, estrelas iguais àquelas que o povo na praça faz.‖ (MELO NETO, 2007, 61/62) VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 387 O canavial, na sua exclusividade, unifica o espaço e atropela tudo. Não deixa existir outra planta além da cana que o compõe. Sua ocupação ao largo submete a paisagem a um só horizonte verde, fixado assim em predomínio que se lança. Parece coisa sem enigmas, clara, evidente na mesmice entediante para quem nele anda, embora traga, ao mesmo tempo, no imediatismo do olhar primeiro, outras dimensões, complexidades recônditas, variações em detalhes e nuances mais diversos nas folhas que não deixam de aparecer. A força do canavial avança com desdém sobre o mais, impiedoso e faminto nas terras a desmatar. Seus tentáculos invasores esticados têm forma, contornos sutis. Nele, lutas são travadas, ondas de conflito definem a orquestra. Nele, homem e terra se misturam, empilham-se, fazem-se touceiras; como cana são cortados, moídos, lançados à brasa. Nele, como cana, extrai-se o açúcar de cada um. Quem entra no canavial cana se torna e como tal se faz e desfaz. 3. Franz Boas, Gilberto Freyre e José Lins do Rego: a busca de uma descendência antropológica90 Divergente do pensamento antropológico de sua época, século XIX e início do XX, Boas constrói uma abordagem revolucionária que passa a ser ponto de partida para as pesquisas na área a partir de então. Ao contrário dos Evolucionistas, preocupados em elucidar cientificamente as etapas pelas quais a raça humana se aperfeiçoou, pretende focalizar seu olhar sobre a diversidade da cultura. Com Boas a cultura assume um caráter plural fugidio à uniformidade teórica que a determina como desdobramento de imposições naturais. Sua observação focaliza o diverso de cada grupo, a complexidade e a dinâmica sociais peculiares, não reduzidas a determinismos geográficos, biológicos ou de qualquer ordem, porque é múltipla pela forma como se torna peculiar, especifica, portanto. A explicação da cultura passa a ser buscada no registro cuidadoso da história pontual do grupo estudado, sem a pretensão evolucionista de definir uma história geral da cultura humana. 90 Sobre a relação de amizade e cumplicidade intelectual entre José Lins e Gilberto Freyre tive a feliz oportunidade de entrevistar Edson Nery da Fonseca que conheceu profundamente os dois. Nossa conversa no seu sobrado em Olinda foi uma experiência de grande valia para minha pesquisa. A ele agradeço o tempo a mim desprendido, assim como os ensinamentos tão apurados e sofisticados de um homem ao mesmo tempo bastante culto e gentil. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 388 O conhecimento das muitas possibilidades de como os grupos humanos se desenvolveram revela meios para o entendimento da própria sociedade do pesquisador. Em outras palavras, a diversidade cultural sinaliza a problematização da cultura Ocidental, vista não mais como padrão ou referência para as outras, mas sim localizada em um plano horizontal a partir do qual seus valores não podem assumir a posição qualitativa de melhor ou pior. Há no pensamento de Boas o vigor do relativismo cultural necessário para, a partir do ―outro‖, encontrar orientações à sua própria sociedade. A antropologia não é, portanto, o relato de comportamentos exóticos de grupos distintos mas um mecanismo poderoso de alteridade. ―A concepção boasiana de cultura tem como fundamento um relativismo de fundo metodológico, baseado no reconhecimento de que cada ser humano vê o mundo sob a perspectiva da cultura que cresceu – em uma expressão que se tornou famosa, ele disse que estamos acorrentados aos ‗grilhões da tradição‘.‖ (Castro, 2004, 18). Embora o homem se organize socialmente a partir de universais como a política, a religião, a economia etc., o que de fato interessa para Boas é como individualmente cada grupo se construiu historicamente, tornando-se diverso em relação a outros. Nesta direção sugere o método histórico ou de indução empírica que consiste no mapeamento das causas segundo as quais os fenômenos culturais se desenvolveram naquele espaço específico, para então, entender sua lógica interna, sem alocá-la num plano geral ou num sistema evolutivo. A preocupação de investigar o processo histórico particular de cada grupo é cara para Boas, pois segundo ele, todos trazem consigo uma tradição. Daí seu interesse de descobrir como os costumes existem e lhe fazem sentido pelo detalhamento de seu desenvolvimento no decorrer do tempo. Recuperar a tradição historicamente significa viabilizar no presente, pela memória material e simbólica, o esclarecimento de um passado significativo que o distingue dos demais, que o peculiariza e oferece ao grupo referência para construção de identidade. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 389 ―A grande e importante função do método histórico da antropologia parece-nos residir, portanto, em sua habilidade para descobrir os processos que, em casos definidos, levam ao desenvolvimento de certos costumes.‖ (Boas, 2004, 38). A dedicação investigativa ao detalhar a complexidade de relações próprias a cada cultura sinaliza um novo fazer antropológico, especialmente em termos de método, que inspirou seus alunos, Ruth Benedict, Gilberto Freyre, e outros, a buscarem no seu gênio o impulso ao entendimento da diversidade cultural ou das múltiplas formas de organização social. ―(...) Até agora temos nos divertido demais com devaneios mais ou menos engenhosos. O trabalho sólido ainda está todo à nossa frente.‖ (Boas, 2004, 39). Sem dúvidas, este vigor intelectual de Boas, principalmente relativo ao método como os grupos humanos deveriam ser abordados no estudo de suas manifestações culturais, instigou aqueles que, posteriormente nas primeiras décadas do século XX, esforçaram-se ao esboço de um instrumental investigativo conhecido como culturalismo. O olhar sobre o particular, à busca do pontual e de sua universalidade, na medida em que as partes combinadas e interdependentes demarcam unidade significativa, induziu o surgimento de uma nova antropologia, cultural propriamente dita, diversa daquela evolucionista e raciológica. Apoiar-se em categorias naturais para compreender formações próprias da cultura é amplamente refutada por Boas na medida em que, falar em raça, só faz sentido quando é possível delimitar unidades corporais definidas e herdadas por descendentes de uma mesma ancestralidade, o que segundo ele, torna-se praticamente impossível em termos modernos, haja vista a multiplicidade de linhagens que formam os atuais grupos humanos. Em resumo, não há, racialmente falando, um grupo puro, genuíno em termos de descendência. Deste modo, as características culturais não podem ser classificadas como particulares a grupos genéticos específicos, exclusivo a certa descendência. Em uma perspectiva VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 390 puramente biológica os homens não se diferenciam tanto quanto a que se manifesta culturalmente, ainda mais quando o estranho é anunciado ao lado. ―(...) Podemos dizer que cada grupo racial consiste de muitas linhagens familiares que são distintas em formas corporais.‖ (Boas, 2004, 70). ―(...) Acredito que o estado atual de nosso conhecimento nos autoriza a dizer que, embora os indivíduos difiram, as diferenças biológicas entre as raças são pequenas. Não há razão para acreditar que uma raça seja naturalmente mais inteligente, dotada de grande força de vontade, ou emocionalmente mais estável do que outra, e que essa diferença iria influenciar significativamente sua cultura.‖ (Boas, 2004, 82). Estas afirmações boasianas influenciaram demasiadamente Gilberto Freyre no tocante ao modo como este pensou o Brasil. Não à toa sua monumental obra Casa Grande & Senzala tem o subtítulo: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal, notadamente destacando a herança híbrida, escravocrata e agrária dos portugueses, e como estes a incrementaram com os nativos e com os africanos. Essa inquietude de Gilberto Freyre sobre a miscigenação brasileira encontra em Boas o suporte teórico para a devida problematização antropológica. ―O Professor Franz Boas é a figura de mestre de que me ficou até hoje maior impressão. Conheci-o nos meus primeiros dias em Colúmbia. Creio que nenhum estudante russo, dos românticos do século XIX, preocupou-se mais intensamente pelos destinos da Rússia do que eu pelos do Brasil na face em que conheci Boas. Era como se tudo dependesse de mim e dos de minha geração; da nossa maneira de resolver questões seculares. E dos problemas brasileiros, nenhum que me inquietasse tanto como o da miscigenação.‖ (Freyre, 1984, lvii, prefácio à primeira edição). VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 391 Gilberto Freyre volta ao Brasil depois de seus estudos nos Estados Unidos, carregado dos ensinamentos antropológicos de Boas, no propósito de problematizar a formação da sociedade brasileira segundo critérios teóricos e metodológicos centrados sobre a cultura, nas suas manifestações mais sutis: culinária, sexualidade, parentesco, economia, religiosidade etc. Se Margareth Mead e Ruth Benedict representaram uma corrente antropológica conhecida como Culturalismo, no Brasil, o pensamento de Gilberto Freyre é destacado como Regionalista, devido sua preocupação com questões locais, com problemas específicos do Nordeste. Sua influência se faz presente em vários intelectuais da época, com destaque, em José Lins do Rego, cuja amizade se tornou intensa e duradoura, de acordo depoimento deste em 1941 ao mestre e amigo pernambucano: ―Conheci Gilberto Freyre em 1923. Foi numa tarde do Recife, do nosso querido Recife, que nos encontramos, e de lá pra cá a minha vida foi outra, foram outras as minhas preocupações, outros os meus planos, as minhas leituras, os meus entusiasmos; [...] para mim teve começo naquela tarde de nosso encontro a minha existência literária. [...] Começou uma vida a agir sobre outra com tamanha intensidade, com tal força de compreensão, que eu me vi sem saber dissolvido, sem personalidade, tudo pensado por ele, tudo resolvendo, tudo construindo como ele fazia. Caí na imitação, no quase pastiche. Isso não só no seu jeito de escrever como em tudo o mais: nos seus gostos, nas suas relações, nos seus modos de vida.‖ (In: Fonseca, 2007, 242). O pensamento de Boas chega ao Brasil através de Gilberto Freyre, ou pelo menos, é através deste que se torna significativamente difundida sua herança intelectual, seu método de abordagem antropológica. Uma influência que não pára no autor de Casa-Grande & Senzala, mas que se espraia, por este autor, para outros da mesma época, quando decidem contornar suas trajetórias literárias sob a versão boasiana do pernambucano de Apipucos. Pelo menos sobre José Lins do Rego essa influência é sintomática. A relação de amizade que se constrói entre os dois viabiliza também o empenho de ambos sobre VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 392 temáticas afins, sobretudo a respeito da herança tradicional comum. É através de José Lins do Rego que Gilberto Freyre conhece os engenhos paraibanos, aqueles que se tornaram palco de suas obras por ele mesmo denominadas de ciclo da cana-de-açúcar, de Menino de Engenho a Usina. É Gilberto Freyre quem apresenta a José Lins do Rego autores europeus e norte-americanos desconhecidos no Brasil daquela época, década de 1920, e o estimula a deixar o jornalismo panfletário do qual fazia parte para se dedicar à literatura, especialmente uma que destacasse sua memória nos engenhos paraibanos (Fonseca, 2007, 239). ―Em 1932, publica-se no Rio de Janeiro o primeiro romance de José Lins do Rego. Romance autobiográfico no qual é evidente a influência de Gilberto Freyre: evidência somente negada por antifreyrianos renitentes. Como diz o velho ditado: o pior cego é aquele que não quer ver. Pois foi o próprio José Lins do Rego quem proclamou, alto e bom som, que tinha vergonha de sua terra e de sua gente antes de conhecer Gilberto Freyre, com quem aprendeu a importância da formação e dissolução da família patriarcal, do esplendor e decadência da aristocracia açucareira como matéria digna de ser aproveitada em obras literárias.‖ (Fonseca, 2007, 241). A construção literária de José Lins do Rego tem no pensamento de Gilberto Freyre uma fonte irrefutável, um suporte sócio-antropológico a partir do qual não apenas elabora romances sobre sua infância, graças à pungente memória, mas principalmente, por lhe permitir explorar valores, imagens, relações e símbolos pertinentes ao seu contexto paraibano, tal qual uma análise histórica e ao mesmo tempo sociológica de um mundo que vê ruir. No caso, a falência dos engenhos produtores de açúcar provocada pelas usinas. A leitura dos romances de José Lins do Rego permite a visualização dos engenhos, suas imagens, suas histórias, cheiros, sabores e fantasias, mas também, revela, por meio da literatura, uma análise social bem localizada, aguda da dinâmica histórica por que passava a região produtora de açúcar da Paraíba no início de século XX. Mostra, nas entrelinhas do seu texto, entre um partido de cana e outro, os detalhes de um contexto que para ele, declina, desmantela-se. É possível, até certo ponto, ao ler suas obras, sentir o cheiro de VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 393 caldo de cana cozendo em tachos grandes à indústria do açúcar, da rapadura e da cachaça, ao mesmo tempo em que é possível conhecer mais sobre o patriarcalismo, a economia canavieira, a política e as falas de pé-de-parede das Casas-Grandes, com suas sinhás submissas que vendiam, às escondidas, ovos de galinha no período de crise financeira do engenho. ―Gilberto Freyre falou muito com José Lins do Rego sobre seu projeto de escrever uma história do menino brasileiro. Essa história pungente – a de meninos precocemente ‗de tudo da própria meninice‘- está como que entranhada em Casa-Grande & Senzala, obra muito mais abrangente do que a inicialmente projetada pelo autor: Menino de Engenho é um romance autobiográfico desentranhado por José Lins do Rego de CasaGrande & Senzala, obra que leu ainda em provas tipográficas, tendo escrito sobre o ensaio seu amigo, antes mesmo dele aparecer nas livrarias do Rio de Janeiro...‖ (Fonseca, 2007, 241). Gilberto Freyre e José Lins do Rego são meninos de engenho. Cada qual ao seu modo disseca em textos a dinâmica social própria daquele cotidiano que demarcou o início do processo de formação da sociedade brasileira. Ninguém melhor do que os dois para explicar o espaço que foi o centro econômico e social por séculos no Brasil, o engenho. E, em se tratando de uma pesquisa sobre cachaça de engenho na Paraíba, a menção a José Lins do Rego é algo obrigatório. 4. Conclusão O projeto das elites para o Brasil é positivista e clássica, cópia mal feita da sociedade liberal burguesa moderna. Mas o Brasil vai além das elites, não se delimita a esquemas arbitrários como os de progresso e história linear. Do mesmo modo, as iniciativas para sua compreensão devem se estender para horizontes mais autônomos sem, necessariamente, perder de vista o rigor do ponto de vista sociológico. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 394 Percebi no Barroco um encontro ideológico principalmente porque em seu estilo de confrontos, torna-se possível a convivência num plano ético de irregularidades. Nada mais brasileiro nesse Barroco, ou será o contrário? 5. Bibliografia 1. ANTONIL, André João. Cultura e Opulência do Brasil. São Paulo: Edições Melhoramentos, 1976. 2. FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 23ª Edição. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1984. 3. REGO, José Lins. Menino de Engenho. Rio de Janeiro: José Olympio, 4. REGO, José Lins. Doidinho. Rio de Janeiro: José Olympio, 5. REGO, José Lins. Bangüe. 22ª Edição. Rio de Janeiro: José Olympio, 6. REGO, José Lins. Moleque Ricardo. 7. REGO, José Lins. Usina. 18ª Edição. Rio de Janeiro: José Olympo, 2008. 8. REGO, José Lins. Fogo Morto. 59ª Ed. Rio de Janeiro: José Ollympio, 2003 9. CHIAMPI, Irlemar. Barroco e modernidade: ensaios sobre literatura latinoamericana. São Paulo: Perspectiva, 1998. 10. SILVEIRA, Francisco Maciel. Literatura Barroca: literatura portuguesa. São Paulo: Global,1986. 11. CANDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade: estudos de Teoria e História Literária. 10ª Edição. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2008. 12. SANT‘ANNA, Affonso Romano de. Barroco: a alma do Brasil. Rio de Janeiro: comunicação Máxima, 1997. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 395 Sessão de Comunicação: INTERFACES BARROCAS Coordenadores: Profª Ms. Reny Gomes Maldonado Prof. Ms. Samuel Anderson de Oliveira Lima 1. LOS JESUITAS Y SUS RESONANCIAS EN EL BARROCO BRASILEÑO Gleba Coelli Luna da Silveira Márcia dos Santos do Nascimento (Universidade Estadual da Paraíba) Resumen En Portugal, la Casa de Avis fue responsable por una nueva visión del mundo. En 1383 con la revolución popular, la burguesía desarrolló un pensamiento positivo que ha conducido Portugal a importantes descubrimientos91. En el siglo XVI, este pensamiento que conducía el país, entró en declive debido a una débil economía y no existencia de estructura administrativa. La aristocracia sentía que su poder político estaba amenazado por la clase burguesa. Estos factores eran contra la mentalidad formada en el siglo XV y estaban agregados a la Inquisición, un instrumento de la Contra Reforma, utilizado como arma por la clase aristocrática, surgiendo la persecución y condenación de los Judíos que constituían la clase burguesa. En los años que siguieron a 1580, cuando Portugal se unió a España, se consolida un estado de terror, donde los Jesuitas apoyaron la nobleza, hacían prácticas de tortura, basándose únicamente en las quejas. La religión impone sus valores de una manera brutal, en violación de la conciencia humana, y el hombre del siglo XVII tuvo que asumir una actitud de contrición con aceptación de Dios como ser absoluto que todo puede y que quita el derecho humano de libre voluntad. Estos hechos fueron trasladados al Brasil colonial y durante todo el siglo XVII, las persecuciones de la Inquisición ocurrieron porque éramos parte de Portugal. En Brasil, la situación política y social no era propicia a las artes y la literatura, y lo que se hizo en el período que hubo la presencia del estilo barroco fue la producción de textos de brasileños y de portugueses con sensibilidad para 91 Esa palabra ―descubrimiento‖ pasó a ser utilizada en lugar de la palabra colonización, porque ―colono‖ en una de sus acepciones significa también ―aquel que ocupa la tierra del otro‖ (BOSI, 2005). VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 396 literatura que poseían una formación cultural con estudios hechos en Portugal. Entre ellos están: Gregorio de Matos, Botelho de Oliveira y el sacerdote Antonio Vieira, con sus textos inspirados en la realidad del Brasil colonial. Palabras claves: Literatura Barroca. Los Jesuitas. Brasil. Portugal. Introducción Las primeras manifestaciones conocidas como barroco surgieron principalmente en el siglo XVII. El barroco es un estilo que tiene como principal característica, la existencia de una tensión entre la materia y el espíritu, el cielo y la tierra, la razón y la sensibilidad, la contención y el derramamiento, el científico y la realidad. En Europa estas características se relacionan con el conflicto de ideas que surgieron debido al progreso de la ciencia que tuvo influencia del renacimiento y de la reforma protestante, así como también de la reacción de la iglesia católica con su contra reforma. Es probable que la palabra ―barroco‖ tenga su origen en la palabra italiana ―barroco‖, usada en la edad media por filósofos que la empregaban para describir obstáculos al pensamiento lógico. Así se pasó a designar la palabra ―barroco‖ para cualquier idea oscura o pensamiento tortuoso. Hay también otra origen para la palabra ―barroco‖, pero ésta se refiere a la palabra portuguesa y se trata de un tipo de perla con formas irregulares, que se encuentra crítica de arte para describir cualquier objeto irregular, que no se encuentra dentro de las reglas establecidas. Estos conceptos existían hasta el final del siglo XIX, dónde la palabra aún poseía el significado de extraño, grotesco, exagerado y exceso de ornamentación. Por fin, fue con los estudios del historiador de arte, Heinrich Wölfflin, ―Renacimiento y Barroco‖ en el año de 1888, que el Barroco se cambió en una designación estilística con la sistematización de sus características. No son los tiempos modernos, los descubrimientos geográficos del nuevo mundo, las invenciones, ni el revivir del espíritu griego latino que marcó el final de la edad media. Portugal fue el país europeo que más ha conservado parte de la herencia socio cultural de la época medieval. Esto sucedió en el siglo XVIII, donde ha desaparecido toda esta cultura, debido únicamente a la llegada del racionalismo iluminista. Así, serán los buques de Pedro Alvares Cabral, que llegarán a la tierra de Santa Cruz en abril de 1500, con una visión del mundo Medievo y con las reglas propias de la cultura europea. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 397 El navegante portugués y también cronista oficial, Pero Vaz de Caminha tenía una visión pre renacentista del nuevo mundo, debido a su formación e ideologías, sin embargo, esos hombres aún poseían pensamientos e ideas del período medieval. Ellos fueron conducidos por una cosmovisión en la que Dios era el centro del mundo, no el hombre como afirmaba el humanismo y como Portugal también había comenzado a darse cuenta. De ese modo, la nueva tierra tuvo una configuración cultural diferente a través de la mirada portuguesa; o sea, el Brasil fue retratado, en efecto, por una ―visión del paraíso‖. La Carta de Pero Vaz de Caminha posee una coloración idílica, los paisajes literarios son descriptivos, los indígenas son presentados con sus ―vergüenzas‖ desnudas, entre otros elementos culturales que edifican esta visión portuguesa (HOLLANDA, 1963). Figura 01: Carta de Pêro Vaz de Caminha para D. Manuel I. Ali estiveram conosco, a ela, perto de cinqüenta ou sessenta deles, assentados todos de joelho assim como nós. E quando se veio ao Evangelho, que nos erguemos todos em pé, com as mãos levantadas, eles se levantaram conosco, e alçaram as mãos, estando assim VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 398 até se chegar ao fim; e então tornaram-se a assentar, como nós. E quando levantaram a Deus, que nos pusemos de joelhos, eles se puseram assim como nós estávamos, com as mãos levantadas, e em tal maneira sossegados que certifico a Vossa Alteza que nos fez muita devoção. Como podemos observar en el fragmento de la Carta de Pero Vaz de Caminha, la misión de educar los ―gentíos‖ ha tenido éxito. Estos hombres viajaban a través de océanos por muchos meses, enfrentaban muchos peligros y supersticiones, debido a sus creencias humanísticas. En sus mentes estaban sus creencias medievales y toda su religiosidad, con la busca antes del reino de Dios que el reino de los hombres; ellos hacían la propagación en el nuevo mundo de la Fe y del Imperio. Los hombres y viajes tenían como objetivo la exploración, el dominio de las nuevas tierras y de todo que allá se ha encontrado. Para eso se ha usado el nombre de Cristo, haciendo la difusión del catolicismo, que en principio era lo único ideal, pero después sirvió para justificar las actitudes por veces más deshumanas practicadas tanto por los navegadores, como por los explotadores que llegaban a la nueva tierra. Los primeros años de nuestra formación histórica son caracterizados por una literatura pragmática, sea ella de carácter Jesuítica, o sea aquella que se ha originado a partir de los viajes que tenían la finalidad de reconocer y fornecer informaciones acerca de la nueva tierra. En lo que se refiere a la literatura Jesuítica, que tenía como función la catequesis de los indios y la educación de los blancos que vinieron colonizar la tierra descubierta, eso según las reglas pedagógicas aplicadas por los seguidores de la escolástica. Al revés, cuando se refiere a los informes o registros de viajes, esta literatura nos ofrecía mejores datos sobre la tierra, que por su vez eran conducidos a los superiores en Lisboa para que ellos supieran todas las posibilidades de expansión y exploración que iban traer grandes lucros a la metrópolis. En las dos actividades literarias los escritos eran al azar, o por veces resultaban del uso de los recursos estilísticos animados por la estética. Así podemos decir que todos eses documentos servían a cuestiones portuguesas, o sea, servían al interés en expandir sus tierras y el comercio, tanto en el Brasil como en todas las partes del mundo. Los documentos producidos en el siglo XVI no presentan gran carácter literario, pero por su vez presenta gran riqueza sociográfica y historiográfica que han sido reconocidas por los VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 399 especialistas y son consideradas un importantísimo documento con grandes informaciones culturales. Los Jesuitas y la Compañía de Jesús Inicialmente podemos preguntar cuáles son las influencias y la importancia de la Compañía de Jesús en la colonización y en la historia cultural brasileña. No es algo fácil, hablar sobre la actuación de la Compañía de Jesús92 en la formación de la nación brasileña y eso es debido al facto de que ellos conquistaron muchos enemigos (MASSAUD, 1997, p.24). En los siglos coloniales la acción de los Jesuitas en el Brasil ha sido desarrollada en dos momentos distintos. El primer se refiere al expansionismo geográfico de la metrópolis, que empezó a ser puesto en práctica desde la conquista de Ceuta en el año de 1415, y éste facto jamás podrá ser negado. Después, en la nueva tierra aumentaran y fijaron las fronteras, hicieron la catequesis de los indígenas con un trabajo sistemático y que les han traído mucho dinero; también influenciaron de manera benéfica tanto los nativos como los colonos. Los Jesuitas fueron los primeros a romper las barreras naturales existentes en nuestra tierra, como lo que les obligaba la Sierra del Mar, y por veces eran los únicos blancos a entrar en las grandes extensiones de bosques vírgenes. Cuando intentamos hacer un análisis de la cuestión cultural, infelizmente se trata de algo aún menos claro. En los años de 1555, El Rey Don João III93, entrega a los Jesuitas ―O Colégio das Artes‖ y como tenían el control, ellos hacen prevalecer la cultura portuguesa. Como consecuencia y debido al uso de una pedagogía de base escolástica, los Jesuitas no han beneficiado Portugal con el estudio de la filosofía natural y humanística, así como con el experimentalismo que surge en esta época debido al renacimiento (MASSAUD, 1997, p.25). Con ese pensamiento, la cultura portuguesa aún direccionada para las características medievales, se ha visto con retraso en relación a toda Europa con una educación libresca, artificial y ciega en lo que se refiere a las realidades presentes, que 92 La Compañía de Jesús es un orden religioso que fue fundada en 1534 por un grupo de estudiantes de la Universidad de Paris, liderados por el vasco Íñigo López de Loyola, conocido como Inácio de Loyola. Los miembros de la Compañía de Jesús son conocidos como Jesuitas y por trabajo misionero y educacional. El primer grupo de seis misioneros liderados por Manuel da Nóbrega fueron traídos por el gobernador general Tomé de Sousa, aportando en Bahia (Brasil), en el año de 1549. 93 El Rey Don João III (1502-1557) fue el décimo quinto Rey de Portugal, conocido como ―El Piadoso‖ o ―El Pio‖ debido a su devoción religiosa. Inició la colonización en Brasil y fue responsable por la división en Capitanías Hereditarias. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 400 ha llevado siglos para reconocer su retroceso con relación a otros países europeos y por lo tanto salir en búsqueda de lo que se estudiaba en el viejo mundo. Este era el modelo de cultura que los Jesuitas, sacerdotes de Santo Inácio de Loyola, que han traído al Brasil. Cuando ellos aquí llegaron en 1549, con el primero gobernador general de las regiones del Brasil (Rio de Janeiro, Bahía y Pará), han fundado escuelas con la misma función del ―Colegio de Artes‖, o sea con un estudio direccionado a la filosofía, teología, y del área de humanas, con el interés en formar personas para el Orden de Loyola. Además, con el uso de los mismos valores y con todo direccionado a fe y al imperio, también se dedicaron a la enseñanza del colono y de los indígenas. Con eso, recibimos de la formación considerada humanista con origen en el siglo XVI portugués, la retórica, la gramática y la educación libresca. Los Jesuitas eran responsables por toda la cultura de la nueva tierra en el periodo colonial, y creemos que sin ellos la situación cultural del Brasil colonia hubiera sido peor. A ellos debemos las primeras escuelas que aquí han existido, mismo con una enseñanza destinada a contenidos ofrecidos solamente por la iglesia. Los sacerdotes que aquí estaban en misiones en las selvas del Brasil, no eran responsables directamente por esta obscuridad literaria. Los libros que se han puesto en la lista eran prohibidos y entre ellos estaban: la Diana de Jorge Montemor y las obras de Plauto, Terencio, Horacio, Marcial y Ovidio, con excepción de las expurgadas o adaptadas de manera determinada por el Colegio Romano94. Por su vez también era prohibido recitar sonetos y versos espirituales en eventos religiosos. Así mismo, son a los Jesuitas que debemos las primeras manifestaciones de poesías, de teatro y pinturas, pues eran las únicas actividades relacionadas a la cultura existente en la tierra recién descubierta. Los Jesuitas desarrollaban sus actividades culturales en dos ramos definidos, eran ellos: primero era la catequesis de los indígenas, cuyo objetivo era cambiarlos haciendo sociales para que fueran útil al trabajo y cambiarlos en cristianos; y el segundo era direccionado a la educación de los colonos, que se encontraban en éxtasis delante del paraíso que era la tierra nueva aún no explotada. Los libros usados por los Jesuitas en esta nueva empresa y que se direccionaba para la enseñanza eran fragmentados en epistolografías, informes y informaciones acerca de la nueva tierra, gramáticas, poesías y teatro. Estas tres últimas categorías literarias tenían 94 El Colegio Romano surgió un año después de la fundación de la Compañía de Jesús. Su principal objetivo es la educación y formación de vida del estudiante, desde los estudios elementares hasta los estudios universitarios. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 401 como objetivo solamente la catequesis y la educación, y las otras tenían como principal objetivo el conocimiento de la tierra para llevar informaciones a la metrópolis acerca de todo lo que los misioneros desarrollaban en la nueva tierra. Cuanto a la cuestión literaria solo la poesía y el teatro eran sus representantes, los demás pertenecían a la historiografía, sociografía, etnografía y etc. Pero no hay duda que en los dos casos el valor estético de las obras es menor que el valor historiográfico, sociográfico, etnográfico, lingüístico y etc. Varios Jesuitas han dejado sus observaciones escritas, principalmente en cartas, dónde cuentan sus observaciones sobre la realidad socio geográfica del Brasil y de las peregrinaciones como misioneros. Entre ellos, los principales Jesuitas son: Manuel da Nóbrega, José de Anchieta y Fernão Cardim. Otros también dejaron sus contribuciones, como: Antônio Blásques, Leonardo do Vale, João de Aspilcueta Navarro, Leonardo Nunes, Luís da Grã y Francisco Pires. El Barroco Literario En la etimología de la palabra ―barroco‖, según Afrânio Coutinho (2007, p.89), en su origen ibérica española ―barrueco‖, o portuguesa ―barroco‖, significa una perla irregular como antes mencionado. Como ejemplo, en la literatura de catequesis podemos inferir que la forma de representación de esas irregularidades, en la escritura jesuítica, es la presencia de un lenguaje más trabajado y retórico. En los siglos XVI y XVII, algunos registros textuales designaban una manera de raciocinio que no hacía distinción entre el falso y el verdadero, entre una argumentación extraña y viciosa, evasiva y fugaz, haciendo uso de la subversión a las reglas del pensamiento. Así es considerada negativa, peyorativa, bizarra, extravagante, artificial, monstruosa, que tenía como objetivo, el menosprecio por el arte del siglo XVI como forma decadente. En Brasil, en los siglos XVII y XVIII ha tenido rasgos representativos del barroco europeo, en las escrituras de Gregorio de Matos y Botelho de Oliveira, Frei de Itaparica, así como los primeros textos académicos que tenían resonancias, motivos y formas estilísticas del barroco ibérico e italiano. El trazo de singularidad del barroco en Brasil se encuentra en el llamado ―Ciclo de Oro Minero‖, principalmente en el material que se ha utilizado como sustrato en la arquitectura y en la escultura. Además podrmos habar de un barroco VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 402 brasileño y más específicamente de un baroco minero, que tiene como su mayor representante Manuel da Costa Ataíde, más conocido como ―O Aleijadinho‖ (BOSI, 2006, p.34). Conclusión En el barroco brasileño hay características específicas, como enfatizado antes en el texto. Según las interpretaciones de Afrânio Coutinho (2007, p.97) ―o barroco é, portanto o estilo artístico e literário, e mais do que isso, o estilo de vida, que encheu o período compreendido entre o final do século XVI e o século XVIII, e de que participaram todos os povos do Ocidente‖. En esas manifestaciones culturales y literarias, gracias a las cosas locales en Brasil, el barroco se configuró un fenómeno distinto, por sus representaciones históricas, geográficas y sociales en el arte y en la literatura barroca. Sin embargo, podemos identificar el fenómeno barroco como una contra reacción a las tendencias de la contra reforma de la iglesia católica, o sea una manera de reencontrar el hilo perdido de la tradición cristiana en búsqueda de expresarla a través de nuevos paradigmas intelectuales, artísticos y literarios. Para el estudioso, el barroco es resultante de la contra reacción espiritual al renacimiento humanista y racionalista también. A pesar de las contradicciones estilísticas del barroco: claro y oscuro, materia y espíritu, cielo y tierra, razón y sensibilidad, contención y derramamiento, científico y realidad, sus zonas de intersticios son demarcadas más ideológicamente que territorialmente, pues las manifestaciones literarias de los Jesuitas son más misioneras e ideológicas. Esas son las resonancias que podemos sorprender acerca de la Compañía de Jesús en el barroco brasileño, en periodos comprendidos en el nuevo mundo y en las manifestaciones literarias y artísticas del Brasil, a saber, la fundación en el Brasil de un barroco diferente, o sea, un barroco Jesuítico. Referencias BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 43ª Ed. São Paulo: Cultrix, 2006. ______. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 403 COUTINHO, Afrânio. Introdução à Literatura no Brasil. Ed. Bertrand Brasil 19ª ed. Rio de Janeiro, RJ. 2007. Disponible en: <http://www.instituto-camoes.pt/revista/descbroutro.htm>. Accedido en 24 de octubre de 2010. Disponible en: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Col%C3%A9gio_Romano>. Accedido en 24 de octubre de 2010. Disponible en: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_III_de_Portugal>. Accedido en 24 de octubre de 2010. Disponible en: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Companhia_de_Jesus>. Accedido en 24 de octubre de 2010. Disponible en: http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/carta.html>. Accedido en 24 de octubre de 2010. HOLLANDA, Sérgio B. As Raízes do Brasil. Brasília: UNB, 1963. MOISÉS, Massaud. História da Literatura Brasileira. Origens, Barroco, Arcadismo. Editora Cultrix. 4ª edição. V. 1. São Paulo, SP. 1997. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 404 2. EL AMOR EN LA POESÍA DE LOPE DE VEGA Reny Gomes Maldonado (UFRN) Paula Pires Ferreira (UFRN) Lope de Vega es considerado el fundador del teatro español; en el rasgo del teatro no fue superado por ninguno de sus contemporáneos, tanto su inmensa obra dramática como lírica, Lope es el poeta nacional por excelencia. Hablar de este poeta es hablar de la España del siglo XVII, que nació en Madrid, a los 25 días del mes de noviembre del 1562. Aprendió varios idiomas como el griego, latín, italiano y el francés, a los diez años ha traducido poemas en latín y a los trece años compuso su primera comedia El verdadero Amante, comedia pastoril a moda nueva de las tres jornadas. La obra de Lope de Vega en sus miles de versos es llena de lirismo que lo ha dejado en igualdad con poetas de gran renombre, como Fray Luis de León, Garcilaso de la Vega y Don Luis de Góngora, todos con destaque en el siglo XVII. Al leer su poesía se encuentra un mixto de lo que acontece en su diario, sus encantos y desencantos. La mujer y el amor siempre están presentes en su vida, esto le trajo amor, inspiración, felicidad, odio, desilusión, inseguridad, tal vez por no saber administrar su lado romántico, trayendo con esto grandes trastornos en su vida. Por causa de sus muchos amores tuvo una familia numerosa que también lo hizo producir muchas obras para conseguir vivir con dignidad. La lírica de Lope es uno de los destaques de la literatura española, ya que en sus versos se puede visualizar la vida del hombre, su pluralidad desenfrenada, amores, incertidumbres, odio, perfil picaresco y también arrepentimientos. Se nota trazos autobiográficos, como si el hombre descripto en sus versos fuese el propio poeta, con el alma inquieta, feliz o infeliz, confundiéndose la realidad con el imaginario, donde se traduce su estilo a través de su propia visión. Su genialidad de describir sus poesías, lo que el alma y el corazón hablaban, advenían del encantamiento que la mujer y el amor hacían nacer en su vida. Compuso versos en tal abundancia, que mereció en su tiempo los sobrenombres de Fénix de los Ingenios y Monstruo de la Naturaleza, atribuido éste último al propio Cervantes. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 405 Se presenta ahora A mis Soledades voy… y su traducción en forma de transcreación poética al portugués: A mis soledades voy... Às minhas solidões vou… A mis soledades voy, Às minhas solidões vou… de mis soledades vengo, de minhas solidões venho, porque para andar conmigo porque para andar comigo me bastan mis pensamientos. me bastam meus pensamentos. ¡No sé qué tiene la aldea Não sei o que tem a aldeia donde vivo y donde muero, onde vivo e onde morro, que con venir de mí mismo que vindo de mim mesmo no puedo venir más lejos! não posso vir mais longe! Ni estoy bien ni mal conmigo; Nem estou bem nem mal comigo; mas dice mi entendimiento mas diz meu entendimento que un hombre que todo es alma que um homem que é todo alma está cautivo en su cuerpo. está cativo em seu corpo. Entiendo lo que me basta, Entendo o que me basta, y solamente no entiendo e somente não entendo cómo se sufre a sí mismo como se sofre de si mesmo un ignorante soberbio. um ignorante soberbo. De cuantas cosas me cansan, De quantas coisas me cansam, fácilmente me defiendo; facilmente me defendo; pero no puedo guardarme mas não posso me guardar de los peligros de un necio. dos perigos de um néscio. Él dirá que yo lo soy, Ele dirá que eu o sou, pero con falso argumento, mas com falso argumento, que humildad y necedad que humildade e estupidez no caben en un sujeto. não cabem em um sujeito. La diferencia conozco, A diferença conheço, VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 406 porque en él y en mí contemplo, porque nele e em mim contemplo, su locura en su arrogancia, sua loucura em sua arrogância, mi humildad en su desprecio. minha humildade em seu desprezo. O sabe naturaleza Ou sabe a natureza más que supo en otro tiempo, mais que soube em outro tempo, o tantos que nacen sabios ou tantos que nascem sábios es porque lo dicen ellos. é porque o dizem eles. Sólo sé que no sé nada, Somente sei que nada sei, dijo un filósofo, haciendo disse um filósofo, fazendo la cuenta con su humildad, contas com sua humildade, adonde lo más es menos. aonde o mais é menos. No me precio de entendido, Não me considero entendido, de desdichado me precio, Mas, desgraçado me considero, que los que no son dichosos pois os que não são felizes ¿cómo pueden ser discretos? como podem ser discretos? No puede durar el mundo, Não pode durar o mundo, porque dicen, y lo creo, porque dizem, e eu creio, que suena a vidrio quebrado que soa a vidro quebrado y que ha de romperse presto. e que há de romper-se logo. Señales son del juicio Sinais são do juízo ver que todos le perdemos, ver que todos o perdemos, unos por carta de más uns por carta a mais otros por cartas de menos. outros por cartas a menos. Dijeron que antiguamente Disseram que antigamente se fue la verdad al cielo; a verdade se foi aos céus; tal la pusieron los hombres tal a puseram os homens que desde entonces no ha vuelto. que desde então não mais voltou. En dos edades vivimos Em duas idades vivemos VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 407 los propios y los ajenos: os próprios e os alheios: la de plata los extraños a de prata, os estranhos y la de cobre los nuestros. e a de cobre, os nossos. ¿A quién no dará cuidado, A quem importará, si es español verdadero, se é espanhol verdadeiro, ver los hombres a lo antiguo ver os homens à antiga y el valor a lo moderno? e o valor ao moderno? Dijo Dios que comería Disse Deus que comeria su pan el hombre primero seu pão o homem primeiro con el sudor de su cara com o suor de sua cara por quebrar su mandamiento, por quebrar seu mandamento, y algunos inobedientes e alguns desobedientes a la vergüenza y al miedo, à vergonha e ao medo, con las prendas de su honor com as provas de sua honra han trocado los efectos. trocaram os seus efeitos. Virtud y filosofía Virtude e filosofia peregrina como ciegos; peregrinam como cegos; el uno se lleva al otro, um leva o outro, llorando van y pidiendo. chorando vão e pedindo. Dos polos tiene la tierra, Dois polos tem a terra, universal movimiento; universal movimento: la mejor vida el favor, a melhor vida, o favor, la mejor sangre el dinero. o melhor sangue, o dinheiro. Oigo tañer las campanas, Ouço tocar as campas95, y no me espanto, aunque puedo, e não me espanto, embora possa, que en lugar de tantas cruces que em lugar de tantas cruzes haya tantos hombres muertos. haja tantos homens mortos. 95 Também, ― ouço tocar os sinos‖. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 408 Mirando estoy los sepulcros Olhando estou os sepulcros cuyos mármoles eternos cujos mármores eternos están diciendo sin lengua estão dizendo sem língua que no lo fueron sus dueños. que não foram seus donos. ¡Oh, bien haya quien los hizo, Oh, bem haja quem os fez, porque solamente en ellos porque somente neles de los poderosos grandes dos poderosos grandes se vengaron los pequeños! se vingaram os pequenos! Fea pintan a la envidia, Feia pintam a inveja, yo confieso que la tengo eu confesso que a tenho de unos hombres que no saben de uns homens que não sabem quién vive pared en medio. quem vive parede no meio. Sin libros y sin papeles, Sem livros e sem papéis, sin tratos, cuentas ni cuentos, sem tratos, contas nem contos, cuando quieren escribir quando querem escrever piden prestado el tintero. pedem emprestado o tinteiro. Sin ser pobres ni ser ricos, Sem ser pobres nem ser ricos, tienen chimenea y huerto; têm chaminé e horto; no los despiertan cuidados, não lhes despertam cuidados, ni pretensiones, ni pleitos. nem pretensões, nem pleitos. Ni murmuraron del grande, Nem murmuraram do grandes, ni ofendieron al pequeño; nem ofenderam ao pequenos; nunca, como yo, afirmaron nunca, como eu, afirmaram parabién, ni pascua dieron. parabéns, nem felicitações deram. Con esta envidia que digo Com esta inveja que digo y lo que paso en silencio, e o que passo em silêncio, a mis soledades voy, às minhas solidões vou, de mis soledades vengo. de minhas solidões venho. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 409 A MIS SOLEDADES VOY... (TRANSCREACIÓN POÉTICA) Se plantea esta poética de traducción manifestándose la búsqueda de una constancia del movimiento, sumado al interés por la multiplicación de las lenguas hispánicas a un público luso hablante y, envueltos en los misterios de la traducción agregados al mundo de imagen barroco. Lope de Vega representa como también nos autoriza una lectura hacia este universo contemporáneo del barroco, presentándonos temas conflictivos del propio hombre en su eterno porvenir. A mis soledades voy… nos ha contagiado por ser un poema que nos propone un desafío y nos provoca verlo en la lengua portuguesa, ya que Na tradução o original cresce, elevando-se a uma atmosfera por assim dizer mais elevada e mais pura da língua, onde naturalmente não poderá viver para sempre, e está longe de alcançá-la em todas as partes de sua figura, mas pelo menos alude a ela de um modo maravilhosamente penetrante, aludindo assim igualmente ao âmbito predestinado e interdito, da reconciliação e da plenitude das línguas. (BENJAMIN, apud LAGES, 2007, p.222) Se ha intentado descubrir un sendero propio de una traducción con calidad, adecuándose al estilo barroco. Con este intento de recuperar una traducción más aproximada de su original fue desarrollado y aplicado, en todas las etapas de esta práctica traductológica, un lenguaje a veces ni tan sonoros, pero de modo a aclarar el sentido de su mensaje en cada verso utilizado en el poema. Se debe considerar que la traducción debe permitir que el traductor supere las dificultades que la diferencia entre las dos lenguas (la de origen y la de llegada) implica. Es la propia lengua de llegada que impone una traducción diferente. El traductor resuelve esas VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 410 dificultades a través de que Costa llama de ―probabilidade tradutória‖ existente entre las dos lenguas. Esto quiere decir que en la traducción libre hay una traducción opcional, creativa, poética. Libre no porque no tenga parámetros o tenga los parámetros que cada traductor elige, ya que el traductor elige una opción entre opciones, pero siempre en un plano estético: Em breves palavras, o que pretendemos é (talvez um tanto apologeticamente) lembrar ao leitor que toda tradução representa uma dentre várias possíveis opções de transposição de um texto da língua onde ele se formou e informou para uma outra língua onde ele surge dependente e originário de n fatores - a começar pela indispensável consideração da identidade cultural dos prováveis consumidores desse texto de chegada. (COSTA, 1990) En toda traducción se presupone el desarrollo de un proceso mental, por parte de quien traduce, que le permite efectuar la transferencia del texto original hacia la producción del texto de llegada. Este proceso mental consiste, en esencial la comprensión del sentido del texto de partida para en seguida reformularlo con los signos de la otra lengua. En el desarrollo de este proceso mental es conveniente distinguir: los procesos básicos de la lengua que la integra, en el campo de la comprensión y (re)expresión; los mecanismos que ayudarán a resolver los problemas encontrados a través de estrategias traductoras. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 411 PROCESO MENTAL DEL TRADUCTOR TEXTO ORIGINAL TEXTO TRADUCIDO FINALIDAD COMUNICATIVA Sabemos que en toda práctica de traducción se adopta un método traductor. Ese método es el desarrollo de un proceso fundamentado en un principio para alcanzarse con éxito la lengua de llegada. La escoja de un método depende de la finalidad de la traducción, no se trata de formas opuestas de traducir, pero de contextualizar el objeto de estudio, en este caso, sobre poéticas de la traducción, se ha procurado respetar la lengua original, adaptándose al destinatario, informando y manteniendo la misma función y género textual, ya que la traducción literaria se caracteriza por los aspectos históricos, culturales, etc. Se resalta que en el ejercicio de la traducción hay una operación entre textos, y no solamente entre lenguas, y la escrita funciona de manera diferente en cada lengua y cultura. A partir de este punto de vista tenemos de llevar en consideración cómo funcionan los textos en cada lengua, considerando que el texto poético trabaja con el lenguaje en todos los niveles, semánticos, sintácticos, fonéticos, rítmicos, entre otros, además es necesario verificar qué principios son regidos, qué convenciones son seguidas, etc. En lo que se refiere a la traducción, los mecanismos de coherencia no cambian, al ser fundamentos universales de significación; lo que cambia son los mecanismos cohesión y la manera de estructurar la progresión temática. De ahí el interés de los estudios contrastivos textuales, que nos ayudan a conocer las discrepancias y semejanzas. (HURTADO ALBIR, 1999, p. 33). VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 412 Se habla de competencia o competencias del traductor, y de hecho, si hablamos de un texto técnico se presupone conocimientos que no son los mismos del texto poético. Sin embargo, la traducción literaria se diferencia de las características de la traducción general, sobretodo por la sobrecarga estética. El lenguaje literario, marcado con recursos literarios, tiene como objetos preponderantes el deleite en el uso estético de la lengua como también transmitir emociones al lector. Es justamente ese concepto de (trans)creación – en el caso de la traducción poética la pieza fundamental para comprender la tarea específica del traductor poético. Mario Laranjeira denomina de significância do texto, lo que Walter Benjamin ha llamado de significação poética: "...não se trata, então, da mera reprodução do sentido, não visa ao significado enquanto tal, mas à vinculação do significado com o modo de significar, com uma forma significante". (CAMPOS, 1996, p. 207) Como Costa afirma, en una traducción poética se debe permanecer fiel a la creación poética, al proceso creativo, al pensamiento que está atrás de la palabra. A la vez, el traductor debe conocer el proceso creativo que está atrás de una frase o de un verso; debe saber que antes de traducir un poema, tiene que traducir y comprender el sentir poético del autor. Es ese sentir poético del autor que lo llevará a escoger aquella y no una otra combinación específica de palabras. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 413 A MIS SOLEDADES VOY... A mis soledades voy… ya en su título nos sugiere un viaje interior, como si el poeta estuviese haciendo un diálogo consigo propio, reflexionando sobre su vida solitaria haciendo una toma de decisión de pura retrospección. Sus indagaciones son propias del hombro barroco, con su espíritu contradictorio, intentando buscar respuestas para curar el mal que lo aflige. El reflejo de esa soledad es la incertidumbre de la vida, del amor, sentimiento que domina el corazón del poeta. De modo que hay una melancolía que se expresa a través de la poesía, demostrando en palabras, que el amor causa en su vida y que no rellena su alma, ésta que está dividida entre esos conflictos de ideas y de amores. El sujeto lírico no habla de una soledad genérica, pero de su propia soledad. En esta formulación crea un campo de identificación entre el poeta y el lector. Como el poeta se dirige a si propio, hay aún una reflexión y esto se dirige a una reflexión sobre la soledad. Como punto de partida ya hay en el propio título un poeta que habla del amor a si propio, como si estuviese haciendo un análisis de su vida: Ni estoy bien ni mal conmigo; mas dice mi entendimiento que un hombre que todo es alma VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 414 está cautivo en su cuerpo. La intertextualidad está muy presente en el poema cuando busca en la afirmación de Sócrates una manera de refuerzo en decir que no se sabe todo, es una herramienta de juzgarse aprendiz y de concretar que la sabiduría consiste en la conciencia de saber que no se sabe todo nunca jamás, con su humildad adonde lo más es menos. Como todo hombre barroco intenta pasar una enseñanza, una moral, o sea que Lope hace una inserción a la intertextualidad buscando en el filósofo una manera propia de su discurso en función del don de la humildad. Hay un cuarteto que demuestra una cierta conciencia de brevedad del mundo terrenal, hay una fragilidad en sus palabras. Cuando habla de su brevedad en el mundo, este poeta piensa también en su brevedad de su vida, y también de la vida terrena, de su yo. Y cuando lo dice eso, Lope piensa en la fragilidad del mundo, se acuerda de los hombres que se han ido a la eternidad, donde no hay más sufrimiento, soledad y el tiempo no se cuenta más. No puede durar el mundo, porque dicen, y lo creo, que suena a vidrio quebrado y que ha de romperse presto. En las últimas cuadras tenemos la envidia como un sentimiento indigno. En ella el poeta se refleja y tal vez confiesa que siente envidia de hombres que se fueron y que ya no sufren más los dolores del alma. Es como si la envidia estuviese en su corazón ocasionada por la soledad, por la sensación de abandono y por no tener más placer en la vida que está llevando. Hay también una cierta reflexión delante la paradoja de la vida y la muerte, esta última representando la eternidad. Fea pintan a la envidia, yo confieso que la tengo de unos hombres que no saben quién vive pared en medio. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 415 […] Con esta envidia que digo y lo que paso en silencio, a mis soledades voy, de mis soledades vengo. Son pensamientos que lo atormentan y que lo hacen admitir su fragilidad delante la brevedad de la vida y también de su vida. Esto demuestra que el ser humano es esencialmente insatisfecho en busca de su esencia y por lo tanto un hombre y no un dios sujetos a mutaciones de la vida a los caprichos principalmente del amor. Por lo tanto en su obra lírica, Lope de Vega, fue más innovador en formas y contenidos y refleja con gran soltura su personalidad. Entre todos sus romances hay uno, incluido en La Dorotea, que, tal vez, sea uno de los más populares de la literatura española, y que comienza así: A mis soledades voy… REFERENCIAS ALBIR, Amparo Hurtado. Enseñar a traducir: teoría y fichas prácticas. Metodología en la formación de traductores e intérpretes. Madrid: Ed. Edelsa, 1999. ALONSO, Dámaso. Poesía española, ensayo de métodos y límites estilísticos. [S.l.: s.n.], 1966. BENJAMIN, Walter. La tarea del traductor. (Trad. Héctor A. Murena) IN: Ángelus novus. Barcelona:Edhasa, 1971. BORGES, Jorge Luis. La música de las palabras y la traducción. In: Arte Poética. Barcelona: Editorial Crítica, 2001. pp. 75-95. CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem &outras metas: ensaios de teoria e crítica literária. São Paulo: Perspectiva, 2004. _______. Paul Valéry e a poética da tradução. In: COSTA, Luiz Angélico da (org.) Limites da traduzibilidade. Salvador: EDUFBA, p. 201-16, 1996. CASTRO, A.; RENNERT, H. A. Vida de Lope de Vega: (1562-1635). [S.l.: s.n.], 1968. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 416 COSTA, Walter & Andréia Guerini. Colocação e qualidade na poesia traduzida. In: Tradução em Revista, v. 3, p. 1-15, 2006. DERRIDÁ, Jacques. Torre de Babel. Tradução de Junia Barreto. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2006. ECO, Umberto. Quase a mesma coisa: experiências de tradução. Tradução Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2007. HEIDERMANN, Werner (org.). Clássicos da Teoria da Tradução: Antologia Bilíngüe – vol. 1/alemão-português. Florianópolis: UFSC/Núcleo de Tradução, 2001. VEGA, Lope de. Obras escogidas. 3. Vol. [S.l.: s.n.], 1958. LAGES, Susana Kampff. Walter Benjamin: tradução e melancolia. São Paulo: Edusp, 2007. MOYA, Virgilio. La selva de la traducción: teorías traductológicas contemporáneas. Madrid: Cátedra, 2004. PAZ, Octavio. Traducción: Literatura y Literalidad. 3ª ed. Barcelona: Tusquets, 1990. MENÉNDEZ Y PELAYO, Marcelino. Antología de estudios y discursos literarios. Madrid: Ediciones Cátedra, 2009. PEDRAZA, Felipe. El universo poético de Lope de Vega. [S.l.: s.n.], 2004. ROZAS, J.M. Estudios sobre Lope de Vega. [S.l.: s.n.], 1990. XIRAU, Ramón. Entre la poesía y el conocimiento. Antología de ensayos críticos sobre poetas y poesía iberoamericanos. México: Fondo de Cultura Económica, 2001. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 417 3. A PÉROLA IMPERFEITA: BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A SOCIEDADE COLONIAL BAIANA COM BASE NA POESIA BARROCA DE GREGÓRIO DE MATOS GUERRA Keidy Narelly Costa Matias (Universidade Federal do Rio Grande do Norte) Na Bahia de todos os Santos, há 387 anos, nascia um poeta, surgia um cronista, satírico, erótico, escatológico, depreciativo, religioso, herético, sagrado e profano 96. Era pica-flor97. Rejeitado pela alta sociedade seiscentista, profundamente estudado no século XX, amado no século XXI – com as devidas reservas – e, personagem do futuro98. Acusado e inocentado, bandido, vítima e herói. Seus escritos o levaram ao auge, acabaramno, ressuscitaram-no e o mataram. Os papéis pregados nas paredes das igrejas, tal como acontecia em certo período da Idade Média, propagavam sua obra. Ninguém sabia de quem se tratava, suas idéias se espalhavam, seus conflitos o libertavam e a sociedade ficava imensamente agitada. Quanta intimidade para falar dos mestiços e dos fidalgos, quanta coragem para falar do clero, quanta coragem para falar de Deus, quanta dualidade para falar de todos. É uma pérola imperfeita. Mesmo que diante de sua obra fiquemos com a audição imutável e os olhos fechados – algo perfeitamente comum aos dogmáticos e até mesmo aos laicos –, é fundamental que o conheçamos. Suas atitudes diante dos vícios daqueles que pregam e não obedecem a seus próprios preceitos é louvável. Ele é profundo na forma de se apresentar aos seus leitores, mesmo com quase quatro séculos. É seiscentista e intensamente contemporâneo. Não sei se a perenidade era sua intenção, provavelmente não. Ele estava infinitamente mais preocupado em delatar os outros e a si próprio e, a denunciar os falsos devaneios de uma sociedade que no fim explorava e vivia sob a égide do luxo e da 96 Nomes pelas quais, no âmbito da minha pesquisa, vi que se referiram a Gregório de Matos. Alcunha que poeta recebeu de uma religiosa. 98 Expressão utilizada pelo historiador e poeta Fernando Peres. 97 VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 418 ociosidade. Ele reprovava e, ao mesmo tempo, era reprovado. Era valeroso ou temerário? Valente ou espadachim? Atrevido ou esforçado?99 Estudiosos, certamente, levados pela controvertida figura de Gregório, como Haroldo de Campos e João Adolfo Hansen, tem pontos divergentes em algumas de suas interpretações. É base de minha bibliografia, também, Fernando Rocha Peres, que trabalha com fatos documentados e lendas a respeito de Matos. Os poemas presentes neste trabalho foram retirados da obra de Segismundo Spina, intitulada ―A poesia de Gregório de Matos‖. Esses estudiosos parecem ter sido influenciados não só pela obra, mas também pela personalidade de Gregório. Esse trabalho se justifica pela importância da obra de Gregório e pelo cunho profundo em que está inserida. Grandes poetas do barroco agitavam a Europa e nós temos um representante tão legítimo quanto. Uma poesia polêmica por natureza foi unida a uma sociedade dúbia e contraditória, de forma que esses elementos oferecem subsídios para tratar desse importante período de nossa história: a Colonial. Inicialmente, tratarei dos versos do poeta barroco direcionados a Igreja católica baiana. O temerário Gregório implicou, delatou, horrorizou e, foi perseguido pela Santa Inquisição. Ora! A instituição poderosa fora suplantada pelas faíscas jogadas pela pérola imperfeita. Por um instante de 73 anos ela pareceu menos poderosa aos olhos de um poeta. Os padres e as freiras eram ridicularizados. Coitadas das beatas que podiam se unir as carpideiras e chorar, alcunhar e, perceber que as retrucas à Gregório eram a consolidação de uma milagrosa inspiração. Então, sua poesia implicou com um dos grupos responsáveis pela sua beleza. Aliás, os ataques de Gregório parecem voltar facilmente e positivamente para a polidez de sua obra. Falo dos mestiços, dos quais o vocabulário muito serviu a pena e a tinta de uma inspiração que, ao mesmo tempo, era pitoresca e grotesca. Nessa segunda parte do trabalho, minha intenção é a de mostrar como o barroco se fundiu ao tupi e que, apesar disso ser um diferencial na obra gregoriana, o poeta abastado não estava muito inclinado a simpatia. Ao contrário, refere-se aos mestiços com palavras de afronta. Na terceira e derradeira parte deste trabalho, falarei brevemente da deportação de Gregório à Angola, fato esse que fora culminado pela extrema rispidez e um tanto de loucura – como a de Rotterdam – de seu poema ―Aos Caramurus da Bahia‖. 99 Referência a um poema gregoriano chamado ―Reprovações‖. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 419 Assim, um estudo sobre dois grupos da sociedade colonial baiana culmina em uma breve admiração biográfica. Seus escritos influíam na sociedade na mesma proporção em que alteravam sua vida. Para ele, consistia numa infelicidade e desgosto o fato de ter nascido numa família abastada. Talvez por isso, critique tão veemente o luxo e o esplendor dessa terra. Trata-se de um trabalho que oferece minha pouca experiência no assunto. Mas aqui, a questão central é justamente essa: tentar enxergar o tumulto que causa a obra gregoriana através do ponto de vista de uma pessoa comum. Para isso me fiz cobaia de mim mesma e certamente não permaneci a mesma depois de entrar em contato. Pois, como já disse uma famosa escritora do século XX: ―suponho que entender é questão de entrar em contato, ou toca ou não toca100‖. Gregório de Matos Guerra, alcunhado de Boca de Inferno, nasceu em 1623 na cidade da Bahia de Todos os Santos101, então capital da América Portuguesa, filho de Gregório de Matos e de Maria da Guerra. O poeta do Recôncavo era de família abastada, estudou no Colégio dos Jesuítas e aos 19 anos foi enviado à Coimbra por seu pai para estudar leis. Por causa de suas sátiras foi perseguido e deportado para a Angola. Para sua felicidade e alívio do governador do reino, abortou uma conspiração contra dom Henrique Jaques e como prêmio pôde voltar à terra tupiniquim, dessa vez ao território recifense, pois estava proibido de retornar a sua terra natal. Em 1696, o poeta falece e é sepultado no Hospício de Nossa Senhora da Penha dos Capuchinhos, em Pernambuco. Não há melhor testemunho do que a obra de Gregório de Matos para analisar a sociedade do Brasil Colonial, sobretudo, a nobreza e os mestiços da Bahia. Para ele, consistia numa infelicidade e desgosto o fato de ter nascido numa família abastada. Talvez por isso, critique tão veementemente o luxo e o esplendor dessa terra. Abarcada pela ―pérola imperfeita‖, como ficou conhecido o Barroco, a poesia gregoriana contempla a sátira, a lírica e a caricatura. É regida por um cunho profano e religioso. As aspirações entre o sagrado e o profano caminham dualisticamente e a contradição entre pontos divergentes provoca um sentido uno e gigantesco. 100 Refiro-me a Clarice Lispector (ligeiramente adaptado para fins de coerência com o texto, o sentido permanece o mesmo). 101 A data de nascimento é motivo de controvérsia entre autores. Segismundo Spina acredita que o poeta nasceu em 1623, adotei essa data em minha pesquisa. No entanto, Fernando Peres acredita que Gregório nasceu em 1636. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 420 Críticos o depreciam, acusando-o de plagiar Góngora e Quevedo. A história provou sua originalidade. Gregório é impiedoso com a luxúria e a escatologia presentes na fidalguia Baiana. É munido por um realismo pornográfico, por jogos verbais e semânticos, por violência e depreciação, ao mesmo tempo em que, possuía concessões ao gosto de seu tempo. A farsa regurgitada pelos costumes maculados e libidinosos da nobreza e da Igreja Católica resultou no primeiro prelo que circulou na Colônia e, em fontes imprescindíveis a compreensão da História do Brasil. No soneto ―Jesus Cristo Crucificado, estando o poeta para morrer‖, Gregório exerce um jogo de imagens e conceitos típicos do barroco. Promete viver e morrer sob a lei de Cristo, diz que é um pecador súdito do cordeiro e pede perdão pelos seus pecados. O poeta mostra uma aflição diante do episódio da crucificação de Cristo capaz de afrontar a Igreja e os beatos, as carpideiras e os fidalgos. Esse comportamento não se dá como um desrespeito à Igreja, que muitos podem encontrar nesses versos, e ao sentimento dos que sofrem, mas pela extrema ousadia de escrever algo desse teor, e que aos olhos de hoje é ainda ameaçador, em uma sociedade regida pelo catolicismo. A culpa refletida e a certeza de que o amor de Cristo é maior do que os seus pecados expressam a cosmovisão barroca, o homem como ser infinitamente inferior a Deus. Veja o poema: Meu Deus, que estais pendente de um madeiro, Em cuja lei protesto de viver, Em cuja santa lei hei de morrer, Animoso, constante, firme e inteiro: Neste lance, por ser o derradeiro, Pois vejo a minha vida anoitecer, É, meu Jesus, a hora de se ver A brandura de um Pai, manso Cordeiro. Mui grande é o vosso amor e o meu delito; Porém pode ter fim todo o pecar, E não o vosso amor, que é infinito. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 421 Esta razão me obriga a confiar, Que, por mais que pequei, neste conflito Espero em vosso amor de me salvar. Nesse trecho, Gregório segue falando de seus pecados, confessa-se e se mostra arrependido, pois sabe da infinita misericórdia do Senhor. Ofendi-vos, Meu Deus, bem é verdade, É verdade, Senhor, que hei delinqüido, Delinqüido vos tenho, e ofendido, Ofendido vos tem minha maldade102. O poema possui uma série de pontos que mostram o arrependimento por seus atos e a vontade de salvar sua alma. A salvação da alma era o motivo mais latente no discurso da Igreja no âmbito da Colônia. Era preciso evangelizar e Matos não deixou que isso se passasse inocentemente. Ele satirizou. Em ―Buscando a Cristo‖, uma de suas obras primas, o poeta segue nessa mesma lógica, constrói um soneto com metonímias e repetições para que sua mensagem ganhe mais força: À vós correndo vou, braços sagrados, Nessa cruz sacrossanta descobertos Que, para receber-me, estais abertos, E, por não castigar-me, estais cravados. A vós, divinos olhos, eclipsados De tanto sangue e lágrimas abertos, Pois, para perdoar-me, estais despertos, E, por não condenar-me, estais fechados. 102 Soneto intitulado de ―Ao mesmo assunto‖. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 422 A vós, pregados pés, por não deixar-me, A vós, sangue vertido, para ungir-me, A vós, cabeça baixa, p‘ra chamar-me A vós, lado patente, quero unir-me, A vós, cravos preciosos, quero atar-me, Para ficar unido, atado e firme. Ao mesmo tempo em que busca a salvação e a remissão dos pecados, mostra-se arredio ao clero. Seus poemas dualísticos e repletos de figuras de linguagem afrontavam a alta sociedade. Em ―Soneto (A cada canto um grande conselheiro)‖ ele profana e acusa a alta sociedade baiana. Trata-se de uma crítica ferrenha aos governantes da "cidade da Bahia". Os grandes conselheiros são os indivíduos que não sabem governar sua cozinha, mas podem governar o mundo inteiro. Ou seja, os hipócritas que apontam os defeitos dos outros sem olhar os seus. A cada canto um grande conselheiro, Que nos quer governar a cabana, e vinha, Não sabem governar sua cozinha, E podem governar o mundo inteiro. Em cada porta um freqüentado olheiro, Que a vida do vizinho, e da vizinha Pesquisa, escuta, espreita, e esquadrinha, Para a levar à Praça, e ao Terreiro. Muitos Mulatos desavergonhados, Trazidos pelos pés os homens nobres, Posta nas palmas toda a picardia. Estupendas usuras nos mercados, VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 423 Todos, os que não furtam, muito pobres, E eis aqui a cidade da Bahia. Esse poema remete imediatamente a um outro, intitulado ―Reprovações‖: Se sois homem valeroso, Dizem que sois temerário, Se valente, espadachim, E atrevido, se esforçado. Se resoluto, – arrogante, Se pacífico, sois fraco, Se precatado, – medroso, E se o não sois, – confiado. Se usais justiça, um Herodes, Se favorável, sois brando, Se condenais, sois injusto, Se absolveis, estais peitado. Se vos dão, sois um covarde, E se dais, sois desumano, Se vos rendeis, sois traidor, Se rendeis, – afortunado. [...] Se não sofreis, imprudente, Se sofreis, sois um coitado, Se perdoais, sois bom homem, E se não sois, - um tirano. [...] VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 424 Se não compondes, sois néscio, Se escreveis, sois censurado, Se fazeis versos, sois louco, Se o não fazeis, sois parvo. [...] Se falais muito, palreiro, Se falais pouco, sois tardo, Se em pé, não tendes assento, Preguiçoso, se assentado. E assim não pode viver Neste Brasil infestado, Segundo o que vos refiro Quem não seja reprovado. Para entrar com mais afinco na análise do conteúdo que a obra gregoriana nos oferece sobre a sociedade do período colonial do Brasil, vejamos os poemas seguintes que tratam da Bahia. No epigrama ―Juízo anatômico dos achaques que padeciao corpo da república em todos os membros, e inteira definição do que em todos os tempos é a Bahia‖, Gregório é portador de um discurso profundamente polêmico e ameaçador. Arrisco-me a proferir que o poema contribuiu para o que posteriormente acontecera: sua deportação para a Angola. Que falta nesta cidade?... Verdade. Que mais por sua desonra?... Honra. Falta mais que se lhe ponha... Vergonha. O demo a viver se exponha, Por mais que a fama a exalta, Numa cidade onde falta Verdade, Honra, Vergonha. Quem a pôs neste rocrócio?... Negócio. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 425 Quem causa tal perdição?... Ambição. E no meio desta loucura?... Usura. Notável desventura De um povo néscio e sandeu, Que não sabe que o perdeu Negócio, Ambição, Usura. Quais são seus doces objetos?... Pretos. Tem outros bens mais maciços?... Mestiços. Quais destes lhe são mais gratos?... Mulatos. Dou ao Demo os insensatos, dou ao Demo o povo asnal, Que estima por cabedal, Pretos, Mestiços, Mulatos. [...] E que justiça a resguarda?... Bastarda. É grátis distribuída?...Vendida. Que te, que a todos assusta?... Injusta. Valha-nos Deus, o que custa, O que El-Rei nos dá de graça, Que anda a justiça na praça Bastarda, Vendida, Injusta. [...] Sazonada caramunha, Enfim, que na Santa Sé O que mais se pratica é, Simonia, Inveja e Unha. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 426 E nos frades há manqueiras?... Freiras. Em que ocupam os serões?... Sermões. Não se ocupam em disputas?... Putas. Com palavras dissolutas Me concluo na verdade, Que as lidas todas de um Frade São freiras, sermões, e putas. [...] À Bahia aconteceu O que a um doente acontece: Cai na cama, e o mal lhe cresce, Baixou, Subiu e Morreu. A Câmara não acode?... Não pode. Pois não tem todo o poder?... Não quer. É que o governo a convence?... Não vence. Que haverá que tal pense, Que uma Câmara tão nobre, Por ver-se mísera, e pobre, Não pode, não quer, não vence. As críticas a sociedade e ao clero estão por toda a obra de Gregório, um exemplo disso é o trecho abaixo: A nossa Sé da Bahia, Com ser um mapa de festas, É um presepe de bestas, VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 427 Se não for estrebaria: Várias bestas cada dia103. Ainda nesse contexto, temos um episódio curioso sobre Gregório. Uma Freira resolveu satirizá-lo publicamente, chamando-o de ―pica-flor‖ (beija-flor), ela se referiu assim por conta da fisionomia do nariz saliente de Gregório, que imediatamente respondeu-a: Se Pica-Flor me chamais, Pica-Flor aceito ser, Mas resta saber agora, Se no nome que ma dais, Meteis a flor, que guardais! [...] Se me dais este favor, Sendo eu só o Pica, E o mais vosso, claro fica, Que fico então Pica-Flor. Em mais uma sátira ao clero Matos protesta contra uma freira que não quis que outra freira o mandasse um peixe: Pois destes tão mal conselho, Rogo ao demo que vos tome, Por deixar morrer à fome Um pobre faminto velho: Rogo ao Demo que o seu relho Vos prenda com força tanta, Que nunca arredeis a planta, E que a espinha muito ou pouca, 103 Trecho do poema ―À Sé da Bahia‖. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 428 Que me tirastes da boca, Se vos crave na garganta. Assim como é verdade, Que pelo vosso conselho Perdi eu o meu vermelho104, Percais vós a virgindade: Que vo-la arrebate um frade; Mas isto, que praga é? Praza ao Demo, que um cobé Vos plante tal mangará, Que parais um Paiaiá, Mais negro do que um Guiné105. Boca de Brasa não se resguardava ao falar da nobreza e do clero na sociedade baiana. Aliados aos exemplos citados existem uma infinidade em sua obra. A cidade padecia em fome enquanto os clérigos, o Estado e os fidalgos viviam sob o luxo e a vaidade. Os incomodados com tamanha audácia o alcunhavam e o depreciavam, mas isso não foi obstáculo para que ele se calasse, ao contrário, ele se lisonjeava. Tratarei agora de seus versos aos mestiços da Bahia. Como podemos entender o papel que desempenhavam na sociedade tomando como fonte a obra do poeta barroco? Ele fala dos principais aspectos sociais da época se colocando em diversas classes da sociedade. E seu objetivo, como bem esclarece a obra de Fernando Peres, não era o de guardar esses escritos, aliás, talvez ele próprio fabricasse os folhetos para que moleques o espalhassem, já que não poderia ser identificado. Antes de analisar esses poemas, é necessário esclarecer que a própria poesia de Gregório é mestiça. No poema ―Milagres do Brasil são ao padre Lourenço Ribeiro, homem pardo que foi vigário da Freguesia do Passé‖, Gregório diz que o cargo que Lourenço Ribeiro ocupa é por conta de um milagre do Brasil. Chama-o de ousado e de canaz106, e culpa a Santa Sé 104 Vermelho é o nome do peixe que Gregório deixou de comer. Sátira intitulada ―A uma freira‖. 106 Cão grande. 105 VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 429 pelo fato de um cão revestido em padre107 ladrar contra um branco. Nesse ponto de sua obra, notamos certa aversão aos mestiços, mas Gregório também tinha aversão aos prelados. Lourenço Ribeiro é um membro da Igreja e, nesse ponto, o poema é dúbio: Gregório o trata com aversão por ser mestiço ou por ser prelado, ou ainda, as por causa das duas características? Para tentar elucidar essa questão, recorro a Fernando Peres: Sua poesia tem muita mestiçagem, até mesmo agressiva, na medida em que ele assume um papel preconceituoso contra o negro, o mulato. De modo algum ele pode ser considerado etnicamente um mestiço, um mulato. Era descendente de galegos que vieram da cidade de Guimarães e se instalaram na Bahia no início do século XVI. Naquela época, havia uma triagem através de um processo chamado habilitação de gênere. O sujeito que fosse mestiço — tivesse sangue de mouro, de judeu, de africano, ou como eles chamavam, ―sangue de infecta nação‖ — ou que descendesse de oficial mecânico não poderia freqüentar a Universidade de Coimbra nem ser nomeado pelo rei para exercer uma função de juiz. Na sua poesia, Gregório em todo momento está se auto-referenciando como branco e honrado. Sua linguagem é mestiça e esse é seu grande mérito108. Analisemos esse trecho do poema citado: Se este tal podengo asneiro O pai o esvanece já, A mãe lhe lembro, que está Roendo em um tamoeiro: Que importa um branco cueiro, Se o... é tão denegrido! Mas se no misto sentido Se lhe esconde a negridão: Milagres do Brasil são. 107 108 Esse trecho faz parte do poema. Em entrevista concedida ao jornal ―A Tarde‖ em 1996. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 430 Lourenço Ribeiro desdenhou publicamente, aliás, como quase todos os representantes da Igreja, dos versos de Gregório. Mais uma vez atento para o fato de que o tratamento dado ao padre pode não ser desencadeado pela sua etnia, visto que quando uma freira – que já citei antes –, o chamou de pica-flor ele não deixou por menos e, sabendo que iria ofendê-la profundamente, tendo em vista os desígnios de uma consagrada a Deus – respondeu-a com muita ousadia e coragem. O mesmo se dá e, dessa vez ele roga ao Demo, quando uma freira lhe nega um peixe. A diferença é que nesse poema ele a deseja que seja tomada por um mestiço. É fato que Gregório se mostra indignado com o fato de o padre ser mestiço, e em todo o tempo se refere a ele como cão. Duvida de sua capacidade em aplicar os sermões e, nas dez estrofes que tem esse poema, critica-o por ser mestiço e culpa a Ordem, finaliza dizendo que o dito padre tem sangue de carrapato. É necessário perceber, também, que todos os poemas, sejam eles destinados a Igreja, aos mestiços ou aos fidalgos, são repletos de críticas. Gregório não tinha intenção de elogiar ninguém. Por menor que fosse a ofensa ele a fazia. Essa poesia extremamente forte é típica do barroco e por ser tão agressiva desperta a todos. No soneto ―À procissão de cinza em Pernambuco‖ fica claro que não somente a sociedade estava miscigenada, mas também a poesia. A procissão recebe negros, brancos, crianças, estrangeiros, cegos e mamalucos109. O soneto: Um negro magro de sufulié justo, Dois azorragues de um joá pendentes, Barbado o Peres, mais dois penitentes, Seis crianças com asas sem mais custo. De vermelho o mulato mais robusto, Três meninos, fradinhos inocentes, Dois ou doze brichotes muito agentes, Vinte ou trinta canelas de ombro onusto. 109 O mesmo que ―mameluco‖. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 431 Sem débita reverência seis andores, Um pendão de algodão tinto em tijuco, Em fileira dez pares de menores. Atrás um cego, um negro, um mamaluco, Três lotes de rapazes gritadores: É a procissão de cinza em Pernambuco. No soneto ―Aos mesmos Caramurus110‖ Gregório abusa de termos tupis. Há coisa como ver um Paiaiá, Mui prezado de ser Caramuru, Descendente de sangue de tatu, Cujo torpe idioma é Cobepá? A linha feminina é Carimá Muqueca, pititinga, caruru Mingau de puba, vinho de caju Pisado num pilão de Pirajá. A masculina é um Aricobé Cuja filha Cobé, c‘um branco Paí Dormiu no promontório de Passé. O branco era um marau que veio aqui: Ela era uma índia de Maré; Cobépá, Aricobé, Cobé, Paí. Aos olhos contemporâneos, esse soneto soa estranho. Mas a intenção de Gregório era a de chocar com o que escrevia e de ridicularizar a todos. Ele não poupava nem a si mesmo. As palavras tupis dão uma força ao soneto que certamente era percebida na época. 110 Esse poema é escrito depois do soneto ―Aos Caramurus da Bahia‖, mas preferi analisá-lo antes em meu trabalho por motivo de organização. O outro soneto será trabalhado quando for me referir a deportação de Gregório para a Angola. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 432 O poeta sabia atingir, tinha o dom de chocar. Respondia aos menores questionamentos com um jogo de palavras espetacular. O Paiaiá prezado de ser caramuru é o pajé. O idioma Cobepá, o dialeto da tribo Cobé. As mulheres se dedicavam aos afazeres da casa, elas cozinhavam carimá – bolo de mandioca posta no molho –, mingau de puba (mandioca) e vinho de caju. A miscigenação entre índios e brancos é relatada por Gregório na terceira estrofe: uma índia da tribo Cobé dormiu com um branco, que era marau (em tupi, quer dizer, maracujá). No fim do soneto o poeta relata diversos termos tupis e termina com uma gíria. Segundo Haroldo de Campos, Matos se utilizou de aspectos do barroco e da mistura de idiomas. Esse poema não é o único em que ele faz isso, é comum em sua obra encontrar esses elementos que sem dúvida, dão-lhe mais originalidade. Na terceira parte deste trabalho, irei falar brevemente do estopim para a deportação do poeta à Angola. Nessa época, tem-se início o período final da vida de Gregório, visto que sair de sua cidade e de seu país foi um golpe emocional muito forte, arrisco-me a dizer que tenho dúvidas se o que entristeceu o poeta foi o fato de ser deportado ou, de ser privado de atacar a sociedade tão de perto. Proponho que primeiramente leiamos o poema ―Aos Caramurus da Bahia‖ e depois analisarei porque o mesmo causou tamanha confusão. Um calção de pindoba111, a meia zorra, Camisa de urucu112, mantéu de arara113, Em lugar de cotó, arco e taquara, Penacho de guarás, em vez de gorra. Furado o beiço, sem temor que morra O pai, que lho envasou c‘uma titara, Porém a mãe a pedra lhe aplicara Por reprimir o sangue que não corra. Alarve sem razão, bruto sem fé, 111 Palmeira. Fruto que de cuja polpa se extrai uma cor avermelhada. 113 Saiote feito com penas de arara. 112 VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 433 Sem mais leis que as do gosto, quando erra, De Paiaiá tornou-se em Abaité114. Não sei onde acabou, ou em que guerra: Só sei que deste Adão de Massapé115 Procedem os fidalgos desta terra. A miscigenação entre indígenas e europeus estava consolidada e o soneto deixa essa questão bem explicitada. As palavras em tupi do texto reforçam esse argumento. Essas palavras não possuem a inocência que aparentam, dizem muito e satirizam como nunca. Lembro que Gregório era de família abastada e que apesar de criticar a fidalguia, de certa forma, fazia parte dela. Certamente estava profundamente incomodado com a ascensão dos muitos indígenas que, permitidos por certa contravenção social, permitiam-se fidalgos. Em 1685 foi delatado à Santa Inquisição sob a acusação de difamar Cristo – denúncia que para sua sorte não teve prosseguimento. Mas Gregório nem por isso calou-se e como já estava acostumado a satirizar o clero e os fidalgos, empreitou-se a provocar a ira de parentes próximos (provavelmente os filhos) do governador Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho. Os parentes acharam, possivelmente com razão, que os versos desse soneto fossem uma crítica ao governador. Quando o poeta fala que deste Adão de Massapé procedem os fidalgos desta terra quer dizer que dos domínios das terras de Mém de Sá (Adão de Massapé) procedem esses fidalgos. Segismundo Spina fala que o solo massapé é comum na Bahia, principalmente, no município de Santo Amaro. Essa afronta deixou o poeta sob o risco latente de ser assassinado. Temendo isso, sua deportação foi forçada. Assim, não mais pisou em sua terra natal e quando voltou ao Brasil, em território pernambucano, imensamente amargurado, pouco viveu. A obra gregoriana nos revela um homem extremamente incomodado e dela dependente, que quando não criticava o meio em que vivia estava imerso em solidão. De 114 115 Horrível. Solo argiloso, escuro e fértil. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 434 certa forma, pode-se concluir que Gregório era dependente do que escrevia. Ele não conseguia calar diante da tamanha vergonha que seus olhos testemunhavam. REFERÊNCIAS SPINA, Segismundo. A poesia de Gregório de Matos. Tradução: Haroldo de Campos. São Paulo: Edusp, 1995. CAMPOS, Haroldo de. Original e revolucionário. Disponível em: <http://www.revista.agulha.nom.br/har01.html>. Acesso em: 24 abr. 2010. EBLE, Laeticia Jensen. A Sátira a Serviço de Gregório: Aspectos relevantes da sátira e sua conveniência para Gregório de Mattos e Guerra. Disponível em: <http://www.revista.agulha.nom.br/laeticiajensen4.html>. Acesso em: 24 abr. 2010. HANSEN, João Adolfo. Floretes agudos e porretes grossos. Disponível em: <http://www.revista.agulha.nom.br/jah01.html>. Acesso em: 24 abr. 2010. PERES, Fernando. Gregório de Mattos, 360 Anos: Fatos Documentados e Lendas Relativas a Gregório de Mattos e Guerra. Disponível em: <http://www.revista.agulha.nom.br/peres01.html>. Acesso em: 24 abr. 2010. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 435 4. O LUGAR DE GREGÓRIO DE MATOS NA LITERATURA BRASILEIRA Samuel Anderson de Oliveira Lima (Prof. Assistente da UFRN) Ser poeta, não. Poder sê-lo. Paul Valéry I A figura exponencial de Gregório de Matos tem causado ao longo dos séculos grande agitação entre os estudiosos da Literatura Brasileira, quiçá da Literatura Universal. Críticos têm levantado teorias acerca da autenticidade das poesias atribuídas ao poeta seiscentista. Dessa forma, são formados dois grupos: os que defendem a poesia de GM 1 como marco inicial da Literatura Brasileira e os que acreditam que sua poesia, além de não ser autêntica, não pode ser considerada tipicamente brasileira, já que, ao que se parece, não houve preocupação do poeta em escrever configurado em estilos literários. Dos dois grupos, podemos citar duas importantes figuras para a crítica literária contemporânea: Antonio Candido e Haroldo de Campos. Este aprova Gregório como precursor da poesia brasileira; aquele o retira de sua Formação da Literatura Brasileira, que de acordo com sua ideologia – uma perspectiva histórica – GM não se insere nos parâmetros de construção de nossa literatura, uma vez que o poeta baiano mais se encaixaria nas ―manifestações literárias‖ do que na ―literatura enquanto sistema‖. Dessa forma, argumenta Candido (2000, p. 24): Período importante e do maior interesse, onde se prendem as raízes da nossa vida literária e surgem, sem falar dos cronistas, homens do porte de Antônio Vieira e Gregório de Matos, - que poderá, aliás, servir de exemplo do que pretendo dizer. Com efeito, embora tenha permanecido na tradição local da Bahia, ele não existiu literariamente (em perspectiva histórica) até o Romantismo, quando foi descoberto, sobretudo graças a Varnhagen; e só depois de 1882 e da edição Vale Cabral pôde ser devidamente avaliado. Antes disso, não influiu, não contribuiu para VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 436 formar o nosso sistema literário, e tão obscuro permaneceu sob os seus manuscritos. É interessante notar que o crítico até cita os nomes de Antônio Vieira e Gregório de Matos, como autores de ―porte‖, nomes importantes para o enraizamento do sistema literário no Brasil, porém ao se referir especificamente a GM, ele o destaca como um traço não influenciador da construção desse sistema literário. Para Candido, os alicerces de nossa literatura são firmados após autores em cuja vida ―histórica‖ se percebeu a preocupação em criar uma literatura brasileira: é com os chamados árcades mineiros, as últimas academias e certos intelectuais ilustrados, que surgem homens de letras formando conjuntos orgânicos e manifestando em graus variáveis a vontade de fazer literatura brasileira (p. 24-25). Sendo assim, o fato de GM não ter se preocupado em realizar um trabalho de criação de um sistema literário no Brasil, fez com que o crítico diminuísse o valor do poeta baiano, pondo em xeque até sua formação intelectual, pois deixa implícito que só com os árcades surgiram homens de letras. Mas é sabido que Gregório, Anchieta, Vieira – só para citar alguns – foram homens estudados, cultos, que beberam da cultura ibérica e aqui mesclaram seus conhecimentos com a rica cultura americana. É fato também que eles não se preocuparam em escrever ditados pela norma de um regime literário vigente na Europa, o que não exclui a possibilidade de terem sofrido influência da literatura portuguesa. Sua preocupação estava além disso, eles pensaram em fazer poesia enquanto arte e através dessa arte atingir seu público. Talvez, Gregório quisesse mesmo fugir do historicismo de que tanto fala Candido. O Poeta, como pesquisador, não pode estar atrelado aos conceitos datados sob uma perspectiva histórica, mas se distanciar disso, buscando trabalhar sua poesia de forma realmente artística. Paul Valéry (1998, p. 15), ao falar sobre o método de Leonardo da Vinci, critica o historicismo e apresenta alguns parâmetros para a produção da arte: Tento dar uma visão do detalhe de uma vida intelectual, uma sugestão de métodos que toda descoberta implica, uma, escolhida entre a multidão das coisas imagináveis, modelo que sabemos ser grosseiro, mas de qualquer modo preferível às sucessões de anedotas duvidosas, aos comentários dos catálogos de coleções, às datas. Valéry nos afirma que é preciso escolher um dentre os vários métodos existentes, porém esse um deve, preferencialmente, estar distante dos comentários de catálogos de coleções, VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 437 das datas. Ou seja, fazer literatura – enquanto arte – não pode estar ligado aos ditames dos códigos, dos manuais. É claro que aqui não estamos excluindo as escolas literárias, os sistemas, até porque a poesia de GM se enquadra num desses estilos – o Barroco -, mas acima disso, a poesia gregoriana ultrapassa os conceitos historicistas, como o fez Góngora, Quevedo etc. O que Paul Valéry nos apresenta é justamente a noção de que, embora não se deva estar ligado ao historicismo, é preponderante a pesquisa, pois, para se produzir arte, é preciso estudo e o resultado desse estudo – a poesia (arte literária) – se dá com a influência dos cânones universais da literatura. Toda produção literária que se tenha no Brasil e no mundo não é fruto do acaso, mas, sim, influência de muita pesquisa, de muito trabalho. O que Homero fez em suas epopéias é fruto, sem dúvida, do estudo de outras fontes. Nesse sentido, a poesia de GM, como de outros, também sofreu influência de outros poetas, formando, portanto, uma constelação de intelectuais. Sob essa perspectiva, o crítico e poeta Octavio Paz (1982, p. 20) diz que um poeta não deve fazer poesia moldado por um sistema, pois sendo assim, ele perde as prerrogativas para ser um poeta: Quando um poeta adquire um estilo, uma maneira, deixa de ser um poeta e se converte em construtor de artefatos literários. Chamar Góngora de poeta barroco pode ser verdadeiro sob o ponto de vista da história literária, mas não o é se queremos penetrar em sua poesia, que é alguma coisa mais. Góngora é mais que Barroco, ele é Universal, assim como Gregório, que veio depois e, portanto, sofreu influência. Bosi (2001, p. 39) anota a esse respeito: Resta ver a força artesanal, que é patente em um versejador hábil como Gregório. Alguns de seus sonetos sacros e amorosos transpõem com brilho esquemas de Góngora e de Quevedo, e valem como exemplo do gosto seiscentista de compor símiles e contrastes para enfunar imagens e destrinçar conceitos. Então, de acordo com Antonio Candido, só existe literatura, ou se faz literatura, se houver preocupação em construir um sistema ou se enquadrar em um. O que dizer dos clássicos universais, estavam eles preocupados com a questão de regras, de sistemas? Será que Gil Vicente, um dos mais importantes dramaturgos da literatura portuguesa, preocupou-se em fazer peças voltadas para as normas do Humanismo? Ou será que o texto VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 438 por si só já não nos leva a tal ou qual movimento? O que falar, então, de João Cabral de Melo Neto, sua poesia poder ser tachada como modernista? Não podemos deixar de lembrar que a literatura desse ou daquele autor é influenciada por muitas coisas, dentre elas, os fatores históricos, culturais. E parece que é justamente isso que o rotula dentre de uma ou outra escola literária. No entanto, o fato de o artista seiscentista não ter pautado sua arte dentro das normas, não é razão para excluí-lo dos manuais. Não estamos, com esse discurso, desmerecendo o estudo sobre nossa literatura feito pelo crítico Antonio Candido, e sim, querendo mostrar que o poeta GM foi a mola principal da poesia no Brasil e um dos marcos da formação da Literatura Brasileira. II É preciso dar à arte um tratamento peculiar, ou seja, a literatura requer dos críticos um estudo minucioso, para não incorrer em erros. Nota-se sob essa perspectiva que nem todos terão a mesma opinião sobre determinado assunto – e isso vale para qualquer ramo da vida humana -, porém há coisas que precisam de um olhar mais atento. Candido (2000, p. 9) no prefácio da 1ª edição, inicia seu texto com cada literatura requer tratamento peculiar, em virtude dos seus problemas específicos ou da relação que mantém com outras. Ou seja, ele aprova que a literatura não é um manual artificial cheio de conceitos para analisar a obra de arte, mas requer do analista determinadas peculiaridades. E se existem essas peculiaridades, Candido nos parece contraditório porque afirma que o ponto de vista histórico é um dos meios mais legítimos de estudar literatura (p. 29). Dessa forma, outro ponto de vista que não seja o histórico, para ele, não é legítimo no estudo da literatura brasileira (apesar de não especificar que tipo de literatura, mas fica subentendido que se refere à literatura brasileira). Com isso, fica sem sustentação a idéia de se tomar cuidado com as peculiaridades no estudo de literatura, já que legítimo mesmo seria o ponto de vista histórico. Uma outra frase de Candido que é interessante ser notificada é a seguinte: localizaram na fase arcádica o início de nossa verdadeira literatura (p. 25). Atente-se para o vocábulo verdadeira. Significa que a literatura anterior ao Arcadismo é falsa, sem sentido para o Brasil. Então, que valor teriam os sermões de Vieira? E a poesia plurilíngüe de Anchieta? Sem falar, é claro, na língua ferina do Boca-do-inferno. De nada valeriam, então, os textos desses poetas para a literatura brasileira? Ao que nos parece, é justamente isso que diz o crítico. Ele tacha a literatura pré-arcádica – a literatura dos cronistas, a literatura barroca -, VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 439 do século XVI e XVII, no Brasil, como sem importância, sem conteúdo, sem matéria suficiente para demarcar espaço, fazer-se notória. Dizer assim é uma forma de demonstrar preconceito, de negar a força poética dos poetas. Parece mais uma questão ideológica do que mesmo a apreciação de um conteúdo literário de influência marcante no século XVII e no atual. A Formação se propõe mesmo a ver a literatura no Brasil como expressão da realidade local e, ao mesmo tempo, elemento positivo na construção nacional. (p. 25) Esquece o crítico que a literatura do século XVI ao XVII está pautada num processo de transculturação. Por exemplo, Gregório trabalha, em sua poesia, com o elemento estrangeiro – o colonizador -, mesclando-o ao elemento nacional. É o caso da língua: Gregório escreve poesias em língua espanhola, algo feito antes por Anchieta. Isso é importante porque a língua é um meio de se ensinar uma cultura e/ou sua porta de entrada. O poeta não usou somente de elementos da Europa, mas fez uma mistura com o americano. Esse fato nos leva a crer que a poesia gregoriana é brasileira e universal e, portanto, digna de ser a precursora de uma literatura no Brasil. Seja para qual fim se destina, a poesia do século XVI aponta para um horizonte de grande poder artístico-cultural. Raquel Chang-Rodríguez (1993, p. 301) analisa o processo de construção da poesia na América no período colonial e diz: Durante los siglos XVI, XVII y XVIII, Hispanoamérica experimentó un intenso proceso de transculturación del cual surgió una sociedad cuyo ideario e instituciones llevan las senas tanto de lo europeo como de lo americano. Tanto o Brasil como toda a América estavam passando pelo processo de colonização. Era muito forte a presença do estrangeiro, que ao chegar aqui, tentou transferir sua cultura para nosso povo. No entanto, em vez de ter havido somente a absorção da cultura portuguesa (no caso do Brasil), houve – como já foi dito – uma mistura com os elementos culturais brasileiros. Pode-se constatar essa afirmação estudando a poesia de Anchieta e de Gregório de Matos. Sendo assim, Massaud Moisés (1983, p. 104) nos considera a importância da obra gregoriana para o Brasil: E acionada por autonomia de espírito e coragem moral, que desde logo o aproximam de Antônio Vieira, seu contemporâneo. Ambos representam o melhor da cultura portuguesa e brasileira durante a quadra barroca: na ação, desempenadamente anti-obscurantista, eram VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 440 faces da mesma moeda, e na visão do mundo, com exigências de rigor intelectual e ético, individualidades de idêntico calibre e porte. Dessa comunicação entre as duas culturas nasceu, na modernidade, a noção de neobarroco, que significa o ponto de diálogo entre o Ocidente e o Oriente.1 O Brasil Colônia passou por esse processo de transculturação de que fala Raquel, no tocante à língua, aos costumes, ao modo de escrever etc. O mesmo aconteceu com a cidade do Natal, que durante a Segunda Guerra Mundial, foi palco da presença e atuação do povo norte-americano, absorvendo assim muitos elementos daquela cultura. Por isso, tão importante é estudarmos a literatura do período colonial, para entendermos como se deu esse processo, como a literatura enquanto arte marcou a sociedade colonial brasileira. A poesia dessa época foi um veículo culto de expressão; foi a forma como o homem conseguiu expressar a realidade, já que a literatura – no dizer de muitos – é a expressão da realidade. Talvez não uma realidade do dia-a-dia, do cotidiano, de fatos ou cenas corriqueiras, mas uma realidade que ultrapasse o plano do real e nos insira no vácuo dos contrastes, que nos absorva para dentro de nós mesmos, como a imagem alegórica valeryriana da serpente que morde a própria cauda, o conhecimento circundante sobre o espírito literário, bem apresentada na frase eu mordo o que posso (CAMPOS, [199-?], p. 59). Isto é Literatura: é encontrar a ordem na desordem, é saber que o caos é harmônico. Sobre a poesia do período colonial e o que ela significou para a época, ChangRodríguez (op cit, p. 305) declara: Como consecuencia de este interés en la literatura propiciado por el ocio de las clases altas – debido en parte a la abundancia de mano de obra barata – y por el prestigio de la poesía como vehículo culto de expresión, el menos sujeto a revisiones oficiales o inquisitoriales, el género tuvo gran auge em Hispanoamérica, especialmente en los dos primeros siglos coloniales e así lo muestran los frecuentes certámenes poéticos. Tudo isso nos confirma que a poesia do período colonial e, em conseqüência, a de Gregório é primordial para a estruturação de uma literatura no Brasil e fica evidente que sua formação depende também do poeta baiano. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 441 III Haroldo de Campos entra em conflito com as afirmações de Antonio Candido e redige um texto sob o título O seqüestro do barroco na formação da literatura brasileira: o caso Gregório de Matos (1989). Nesse texto, Haroldo integra o poeta seiscentista dentro da Literatura Brasileira como fator determinante de sua formação e contra-argumenta com o discurso de Candido. Para tanto, fala: Ainda que Gregório de Matos tenha ficado provisoriamente confinado na memória local e na ―tradução manuscrita‖ (que, todavia, teve forças para prolongar-se através dos séculos XVII e XVIII); ainda que só tenha sido resgatado em letra impressa cerca de 150 anos depois de sua morte; ainda que tenha pesado renitentemente sobre sua reputação a ―morte civil‖ da acusação de ―plágio‖, a ausência do poeta, num sentido mais fundamental, foi meramente virtual ou larvada (mascarada). Presente, como inscrição em linha d‘água, Gregório sempre esteve no miolo do próprio código barroquista de que ele foi operador excepcional entre nós (p. 67-68). A fala de Haroldo conclama o que vimos discutindo aqui. Gregório é um expoente da poesia brasileira, sobretudo, da Literatura enquanto ―sistema‖. Os argumentos de Haroldo são pertinentes, pois atestam aquilo que outros críticos dizem do poeta. Por exemplo, dentre os modernistas, Oswald de Andrade (apud HAROLDO, op cit, p.9) diz: Gregório de Matos foi sem dúvida umas das maiores figuras de nossa literatura. Técnica, riqueza verbal, imaginação e independência, curiosidade e força em todos os gêneros, eis o que marca a sua obra e indica desde então os rumos da literatura nacional. É importante termos a voz de um modernista em defesa do poeta baiano, porque, em vez de negar um autor do século XVII, uma literatura dita – por alguns – não-nacional, Oswald enaltece a obra de GM e o marca como essencial para a literatura nacional. Isso demonstra que o grau de conhecimento do modernista atingiu o ambiente idealizado por Valéry: o espírito da literatura circundou seus pensamentos: E isso torna indescritível o espírito, que é o lugar delas. As palavras perdem aí a sua virtude. Lá, elas se formam, jorram diante de seus olhos: é ele (o espírito) que os descreve as palavras (1998, p. 23) (grifo nosso). Noutro momento, à pagina VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 442 27, ele diz: com ele tem início a análise de todas as fases intelectuais, de tudo o que ele vai poder chamar louco ídolo, descoberta. Isto que dizer que o artista para ser artista precisa ter a ―bênção‖ desse espírito, o espírito da Literatura. Por isso, a idéia de constelação, cada poeta (artista) é influenciado pelo espírito e consegue fazer realmente Arte. Tal espírito é universal, uma vez que desde os clássicos vem ―iluminando‖ o intelecto dos artistas até hoje, saindo, talvez, de Homero, passando por Góngora, Gregório, João Cabral, entre outros. Dito dessa forma, a Literatura é muito mais que um quadro historicista de datas, autores e obras; é uma complexa teia de intelectuais, de ―cientistas‖, imersos no universo do conhecimento, amparados pelo espírito da Literatura. Pode parecer caótico, mas é harmônico. Tudo se combina, o contraste se organiza de forma perfeita, os cacos se juntam formando um todo, único e universal. Assim: A nuvem de combinações, de contrastes, de percepções que se agrupa em torno de uma pesquisa ou que se esgueira indeterminada, conforme o prazer, desenvolve-se com uma regularidade perceptível, uma continuidade evidente de máquina (VALÉRY, 1998, p. 29). Quando Antonio Candido fala em literatura como ―expressão da realidade local‖, esquece que a poesia de Gregório se enquadra nessa categoria, pois reflete perfeitamente a sociedade baiana da época. Sua poesia é também uma espécie de desmascaramento de uma Bahia mal administrada, de um poder público hipócrita, entre outras coisas. Dizer que sua poesia não mexeu com a população colonial é falso, é insustentável porque, como se sabe através de suas biografias, GM foi deportado para Angola justamente pelo fato de que suas poesias estavam ferindo a imagem do poder político baiano. Manuel Rabelo, biógrafo, nos diz o seguinte a esse respeito: mas dom João o desenganou, intimidando-lhe que por sua conhecida culpa, e necessário remédio, havia de embarcar-se para Angola em uma nau, que prontamente carregava a tropa de cavalo d’el-rei para Benguela (1992, p. 1263). Sabe-se também que Gregório recitava seus textos em praça pública, aos pobres. Não eram só os ricos que tomavam conhecimento da sátira gregoriana, mas toda a população colonial. De alguma forma sua poesia mexeu com a sociedade, seja para aguçar o senso crítico dos marginalizados, seja para incitar a ira dos poderosos. Com este negócio, pois, e com valentia, se fez Gregório de Matos aborrecido de uns, e temido de outros (RABELO, op cit, p. 1251). Tanto mexeu que os ouvintes das poesias gregorianas as reproduziram mais tarde. Dessa forma, não se perdeu. Ficou na memória deles; foi marcante. Se não tivesse tido importância, esses textos teriam VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 443 desaparecido. Num processo natural, sua poesia atingiu a nós, atingiu e mexeu com a modernidade. Com isso, Gregório promoveu mudanças na vida social baiana: todos tiveram que tomar cuidado com o que faziam. A vida do poeta também sofreu mudanças. Desde que empreendeu seus textos nas ruas da Bahia, sua figura se tornou ainda mais conhecida. Mudou ainda mais com seu exílio na África, e mesmo de volta ao Brasil, não pôde ficar na terra amada, terminando seus dias em Pernambuco. Mas mesmo lá, o poeta não renega sua capacidade de apontar os problemas de uma sociedade; seus poemas continuaram maculando o poderio administrativo colonial, pois percebeu que em qualquer lugar, Bahia ou Pernambuco, havia imprudência na política, na igreja, no povo. IV Um outro ponto em que a poesia gregoriana é atingida pela crítica diz respeito a plágio. Afirma-se que GM nada tem de original, mas é na verdade, um imitador da poesia de Góngora e Quevedo – poetas barrocos espanhóis. Esse é um dos pontos principais de que se utiliza a crítica para duvidar da autenticidade das poesias de GM. Porém, se houve imitação, isso não é motivo para não ser um grande poeta, pois a imitação faz parte da produção de qualquer tipo de arte. É preciso conhecer para fazer diferente. E quando se conhece, é inevitável a influência. Assim fizeram os modernistas: estudaram o passado para trabalhar o futuro. Há críticos, como Flávio Kothe (1997), que por perceberem essa imitação em GM, afirmam que ele não pode ser considerado um poeta brasileiro, popular, já que estaria ainda dentro de uma perspectiva portuguesa. Isso é óbvio, porque mesmo não tendo se preocupado em fazer literatura, nem muito menos portuguesa, o poeta foi influenciado por esta. Assim declara Kothe: Ele não pode ser considerado um revolucionário, populista, antilusitano, anticolonial. [...] Fazer dele um protótipo de brasilianidade antilusitana é um engano e um engodo (p. 343). É descabido ver nele a conjunção de brasilidade com qualidade artística, o início da literatura brasileira. Se for um início, então é o início de uma literatura que não vai além do país e que, portanto, nem para o Brasil serve propriamente (p. 344). VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 444 Por outro lado, dizer que foram os românticos ou a partir deles que se fez uma literatura verdadeiramente brasileira, sem influência do europeu, é perigoso, pois eles beberam das fontes portuguesas. Ora, o Brasil do século XIX vivia um momento de ascensão econômica e muitas famílias puderam enviar seus filhos à Europa para estudar, dentre eles, Gonçalves de Magalhães, precursor do Romantismo no Brasil. Sendo assim, o Romantismo Brasileiro foi influenciado pelos ideais do Português, tanto é que a criação de um herói nacional não foi idéia genuinamente brasileira. Na Europa se pensou em criar um herói à imagem do cavaleiro medieval. No Brasil, o cavaleiro foi substituído pelo índio. Ou seja, foi uma imitação da ideologia portuguesa. Em Portugal os escritores românticos procuravam retomar o passado histórico medieval. Já os autores brasileiros retomaram a época colonial realizando a idealização do índio, que passou a ser o nosso herói. Entretanto, o índio brasileiro possuía a mesma perfeição física e moral do cavaleiro medieval europeu. [...] O Brasil dirige seu olhar à Europa e ao Ocidente (MARTINS, 2001, p. 194). Houve apenas a substituição do elemento a ser cultuado, mas as idéias eram as mesmas. Nesse sentido, não foi autêntico, não foi original, portanto, mesclado com a ideologia portuguesa. A única diferença entre GM e os românticos é que estes se preocuparam em fazer uma literatura brasileira, enquanto o outro fez literatura sem essa preocupação. Sua poesia estava acima disso, mas ao mesmo tempo ligada aos ideais do Barroco, através do espírito da literatura. Nessa perspectiva, o crítico Massaud Moisés defende o poeta, colocando-o par a par com clássicos da literatura universal. Ele diz: Assim procedeu Camões com referência a Petrarca e Virgílio, apenas para lembrar dois de seus mestres, e ninguém cuidará de tachá-lo de poeta menor, ou de que a apropriação lhe empana a grandeza (1983, p. 95). Massaud Moisés põe em pé de igualdade Gregório e Camões, afirmando que o poeta português também fez imitações dos seus mestres e nem por isso, é tachado de ―poeta menor‖. Por que, então, Gregório o seria? Será que seria o fato de ele ser brasileiro, fruto da colônia, sem sangue europeu? A comparação elaborada pelo crítico aponta para algo de que já falamos: há uma constelação de poetas que são agraciados pelo espírito da literatura, fazendo com que eles trabalhem a arte (poesia), mesmo que em épocas distintas, em conexão uns com os outros. Ou seja, a VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 445 qualidade da produção artística é igual. Por isso, Moisés (op cit, p. 109) afirma: Contraditório? Paradoxal? Tão-somente barroco, e uma singular organização lírica, análoga à de poetas como François Villon, Baudelaire, Camões. Sigismundo Spina (apud GOMES, 1985, p. 88) também confirma que a apropriação do original e do precioso alheios não constitui desmerecimento de quem o faz, antes virtude e conformidade com os cânones que regem a verdadeira formação de estilo. Citações como essas nos mostram que Gregório de Matos não foi um plagiador, mas ele apenas fez algo comum na literatura; fez comunicação entre obras, entre estilos. Paul Valéry (1998, p. 15), trabalhando o conceito de método nos estudos artísticos, declara imitará para tocá-la, e acabará tendo dificuldades de conceber um objeto que ela não contenha. Silviano Santiago no livro Uma literatura nos trópicos (1978) faz uma citação que pode ajudar na defesa de Gregório em relação ao plágio, mesmo que não a dirija especificamente ao poeta nem a seu tempo: Tanto em Portugal, quanto no Brasil, no século XIX, a riqueza e o interesse da literatura não vem tanto de uma originalidade do modelo, do arcabouço abstrato ou dramático do romance ou do poema, mas da transgressão que se cria a partir de um novo uso do modelo pedido de empréstimo à cultura dominante. Assim, a obra de arte se organiza a partir de uma meditação silenciosa e traiçoeira por parte do artista que surpreende o original nas suas limitações, desarticula-o e rearticula-o consoante a sua visão segunda e meditada da temática apresentada em primeira mão da metrópole (p. 58). Para Santiago, a obra de arte, quer seja o romance ou o poema, quebra com a idéia de originalidade (no sentido de único) e promove uma reorganização dos ideais do velho e do novo; é isso, portanto, o que fez Gregório e outros artistas. Para Poe (1981, p. 917) durante séculos, nenhum homem, em verso, jamais fez ou jamais pareceu pensar em fazer uma coisa original. Há aqueles que tentam de todas as formas atrair o poeta seiscentista ao lugar do mentiroso, do falsário, do ladrão, mas por outro lado, há os que o defendem de tais acusações – parece que estes são em maior número – e dão, para isso, um compêndio de argumentos que elevam ainda mais o ―poder‖ do poeta. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 446 V A obra de arte permite que o artista transcorra por lugares sempre ou nunca habitados; faz com que o outro, a quem essa obra chegue, perceba as conexões do Universo em constante equilíbrio, mesmo que parta dos estilhaços de um cristal quebrado; envolve as suas duas forças criadoras, o ontem e o hoje, criando um ambiente de eternidade, onde nada pode ser destruído. A poesia reúne os cacos do lixo cultural desde o Princípio e transforma-os em um todo organizado e perfeito, sem nuances; a poesia é a nascente do rio caudaloso que nos leva ao outro lado, aquele de onde partimos e para onde não queremos ir. Se queremos, é devido ao espírito que encanta e desencanta, amarga e adocica, machuca e alivia, mata e ressuscita. É preciso nos desvencilharmos dos rótulos e nos envolvermos com a Arte, pois é ela que interessa, é ela que constrói o que foi destruído. Poe (op cit, p. 911) diz só tendo o epílogo constantemente em vista poderemos dar a um enredo seu aspecto indispensável de conseqüência, ou causalidade, fazendo com que os incidentes e, especialmente, o tom da obra tendam para o desenvolvimento de sua intenção. Para ele, o fim é o começo. Só existe fim se houver o começo e vice-versa. Assim diz Gregório: O todo sem a parte não é todo, A parte sem o todo não é parte, Mas se a parte o faz todo, sendo parte, Não se diga, que é parte, sendo todo. As considerações que aqui foram feitas dão uma idéia sobre a importância da obra gregoriana para a Literatura Brasileira e Universal, bem como mostram o rebuliço que o poeta Gregório de Matos vem causando desde o século XVII. Sabemos que muito pode ser discutido a esse respeito e que esse texto deu sua contribuição para toda essa discussão. Para finalizar nosso discurso, damos a voz a um estudioso de GM, citado anteriormente, que na sua fala confirma o objetivo do nosso texto, que propôs mostrar a mudança que o poeta causou e causa à Literatura, à Sociedade, à Crítica, entre outras instâncias. Antônio Dimas (1993, p. 356) considera: Como homem de seu tempo, Gregório de Matos não podia ser indiferente à noção de mutabilidade, elemento tão do agrado da estética barroca e fartamente encontrável numa sociedade que mal se punha em VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 447 pé. Surpreendê-la nas mais diversas modalidades foi-lhe tarefa obstinada. Portanto, nada mais coerente do que recorrer a um só objeto, como a Igreja, por exemplo, e rodeá-lo ressabiado, ora sisudo, ora trêfego, ora devastador. À multiplicidade incômoda das variantes de seus versos, junte-se, então, a das perspectivas. Com ambas compõe-se uma polivalência longe de se esgotar. Referências AMADO, James. Notas à margem da editoração do texto – II. In: ______. MATOS, Gregório de. Obra poética. Edição James Amado, preparação e notas de Emanuel de Araújo. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 1992. p. 1279-1282. v. 2. BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. (Trad., apresentação e notas de Sérgio Paulo Rouanet) São Paulo: Brasiliense, 1984. BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 39. ed. São Paulo: Cultrix, 2001. CAMPOS, Augusto de. Paul Valéry: a serpente e o pensar. São Paulo: Brasiliense, [199-?]. CAMPOS, Haroldo de. O seqüestro do barroco na formação da literatura brasileira: o caso Gregório de Matos. Salvador: FCJA, 1989. CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira: (momentos decisivos). 9. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 2000. v. 1-2. CHANG-RODRÍGUEZ, Raquel. Poesía lírica. Modalidades poéticas. In:______. PIZARRO, Ana (org.). América latina: palavra, literatura e cultura. São Paulo: Memorial; Campinas: UNICAMP, 1993. v. 1. CHIAMPI, Irlemar. Barroco e Modernidade: ensaios sobre literatura latino-americana. São Paulo: Perspectiva: FAPESP, 1998. (Estudos: 158). COUTINHO, Afrânio (org.). A literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Sul-Americana, 1956, v. 1 , t. 1. DIMAS, Antonio. Gregório de Matos: poesia e controvérsia. In: ______. PIZARRO, Ana (org.). América latina: palavra, literatura e cultura. São Paulo: Memorial; Campinas: UNICAMP, 1993. (v.1). GOMES, João Carlos T. Gregório de Matos, O boca de brasa (um estudo de Plágio e Criação Intertextual). Petrópolis: Vozes, 1985. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 448 KOTHE, Flávio R. O cânone colonial. Brasília: Editora UNB, 1997. MARTINS, Patrícia; LEDO, Teresinha de Oliveira. Manual de Literatura: literatura portuguesa, literatura brasileira. São Paulo: DCL, 2001. MOISÉS, Massaud. História da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix: Edusp, 1983. v. 1. PAZ, Octavio. Poesia e poema. In: ______. O arco e a lira. Trad. De Olga Savary. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. PINHO, Wanderley. A família de Gregório de Matos. In: ______. MATOS, Gregório de. Obra poética. Edição James Amado, preparação e notas de Emanuel de Araújo. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 1992. p. 1271-1272. v. 2. PIZARRO, Ana (org.). América latina: palavra, literatura e cultura. São Paulo: Memorial; Campinas: UNICAMP, 1993. v. 1. POE, Edgar Alan. Ficção completa, Poesia e prosa. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguillar, 1981. RABELO, Manuel Pereira. Vida do excelente poeta lírico, o doutor Gregório de Matos Guerra. In: ______. MATOS, Gregório de. Obra poética. Edição James Amado, preparação e notas de Emanuel de Araújo. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 1992. p. 12511270. v. 2. SARDUY, Severo. Barroco. Lisboa: Vega Universidade, [198-?]. VALÉRY, Paul. Introdução ao método de Leonardo da Vinci. Trad. Geraldo Gérson de Souza. ed. Bilíngüe francês/português. São Paulo: Editora 34, 1998. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 449 5. NOS FIOS DO TEMPO: REFLEXÕES ACERCA DA NOÇÃO DE “SISTEMA LITERÁRIO” DE ANTONIO CANDIDO NA FORMAÇÃO DA LITERATURA BRASILEIRA Moisés Ferreira do Nascimento - UFES Para Marcos A. Ramos ―Há literaturas de que um homem não precisa sair para receber cultura e enriquecer a sensibilidade; outras, que só podem ocupar uma parte da sua vida de leitor, sob pena de lhe restringirem irremediavelmente o horizonte. Assim, podemos imaginar um francês, um italiano, um inglês, um alemão, mesmo um russo e um espanhol, que só conheçam os autores da sua terra e, não obstante, encontrem neles o suficiente para elaborar a visão das coisas, experimentando as mais altas emoções literárias. ―A nossa literatura é galho secundário da portuguesa, por sua vez arbusto de segunda ordem no jardim das Musas...‖ O trecho acima faz parte do prefácio do livro Formação da literatura brasileira – momentos decisivos, de Antonio Candido116 e servirá de base para o desenvolvimento do nosso trabalho. O autor levanta alguns questionamentos no mínimo intrigantes ao afirmar que a literatura feita no Brasil, de um modo geral, é ―galho secundário da portuguesa‖. Para além da polêmica que esta proposição articula (e que logo mais a frente será discutida aqui), chamamos atenção para um dado interessante: Candido realiza, a observar o recorte acima, não só o que os estudos literários chamam de ―literatura comparada‖ 117, mas, sobretudo, um estudo cultural. Ao pensar daquela forma, o autor estabelece uma comparação entre a produção literária brasileira e as produções literárias européias; consequentemente, há a comparação da cultura brasileira com a cultura européia. Se lá no século XIX, quando surgiu enquanto estudo e disciplina acadêmica, a literatura comparada era compreendida apenas como ―o estudo comparativo de duas ou 116 Candido, Antonio. ―Prefácio da 1ª edição‖. In: Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2009. As demais citações da obra se darão pela sigla FDB seguida do número da página no corpo do texto. 117 Em artigo posterior, Candido vai afirmar que ―estudar literatura brasileira é fazer literatura comparada (Candido, 1993, p.211) VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 450 mais obras literárias‖; no século XX, principalmente com o pensamento pós-estruturalista, ela passou a caracterizar-se como um ―movimento para fora dos estreitos limites disciplinares, em vista da ampliação de seu campo de estudo‖, expandindo-se também para ―a comparação entre obras literárias e obras pertencentes a outras linguagens artísticas‖. 118 Essa ponte com as demais ―linguagens artísticas‖ é que vai desembocar, na atualidade, nos estudos comparativos que se estabelecem entra a literatura e outras áreas do conhecimento (antropologia, história, sociologia, semiótica, psicanálise, por exemplo), inclusive com os ―estudos culturais‖. Portanto, se o leque se estendeu de forma bastante significativa, propiciando estudos diversos a partir do texto literário, deve-se isso aos primeiros estudos comparatistas que compreenderam a literatura como autônoma, mas, sobretudo, livre para se valer das demais áreas do conhecimento. E Antonio Candido foi um desses primeiros estudiosos a sugerir essas comparações: ―uma crítica que se queira integral deixará de ser unilateralmente sociológica, psicológica ou lingüística, para utilizar livremente os elementos capazes de conduzirem a uma interpretação coerente‖.119 Ao afirmar a liberdade da crítica pela coerência, Candido não só expande o conceito de análise literária, na sua época muito voltado para a estilística, como também abre portas para as demais áreas do conhecimento, desde que a crítica não seja ―unilateral‖. Embora não possamos afirmar que Antonio Candido participe da corrente denominada ―estudos culturais‖, não há dúvida de que a sua obra tenha aberto caminhos para que no Brasil, no que tange a literatura, esses estudos fossem feitos. Uma prova disso é o método sociológico que o autor emprega na sua Formação. Nesta, no capítulo ―literatura como sistema‖ da introdução, o autor faz uma distinção entre ―manifestações literárias‖ e ―literatura propriamente dita‖, articulada por ele como um conjunto de ―denominadores comuns, que permitem reconhecer as notas dominantes duma fase‖. Estes denominadores são, além das características internas (línguas, temas, imagens), certos elementos de natureza social e psíquica, embora literariamente organizados, que se manifestam historicamente e fazem da literatura aspecto orgânico da civilização. Entre eles se distinguem: a existência de um conjunto de 118 Marques, Reinaldo. ―Literatura comparada e estudos culturais: diálogos interdisciplinares. In: Culturas, Contextos e Discursos: Limiares Críticos no Comparatismo. Porto Alegre: Editora da Universidade, 1999. p.60 119 Candido, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo: Nacional, 1965. p.7 VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 451 produtores literários, mais ou menos conscientes do seu papel; um conjunto de receptores, formando os diferentes tipos de público, sem os quais a obra não vive; um mecanismo transmissor, (de modo geral, uma linguagem, traduzida em estilos), que liga uns a outros. O conjunto dos três elementos dá lugar a um tipo de comunicação inter-humana, a literatura, que aparece sob este ângulo como sistema simbólico, por meio do qual as veleidades mais profundas do indivíduo se transformam em elementos de contato entre os homens, e de interpretação das diferentes esferas da realidade. 120 ―A formação da continuidade literária‖, conforme as palavras de Candido, só se torna possível a partir do momento em que autor e obra estiverem integrados neste ―sistema literário‖, isto é, somente com a tríade básica (produtores literários – leitores – linguagem) que se tem a ―tradição‖. E para o autor, tal sistema inicia-se na segunda metade do século XVIII, no Arcadismo mineiro, e se estende até o Romantismo da primeira metade do século XIX. Para que não se tenha dúvida: toda a literatura produzida no Brasil do século XVI a primeira metade do século XVIII é denominada por Candido de ―manifestações literárias‖. As demais produções, a partir de 1750, são consideradas partes integrantes da ―literatura propriamente dita‖, organizadas dentro de um ―sistema literário‖. Esta noção, totalmente estrutural, foi elaborada pelo autor com base na sociologia. Em entrevista à Heloísa Pontes, Candido afirma que na época do seu doutorado estudou os autores Redfield, Melville Herskovits, Irving Hallowell, Raymond Firth, Malinowski, Evans Pritchard, Radcliffe-Brown, e que essas leituras (principalmente dos dois últimos autores) foram fundamentais para o seu pensamento nos estudos literários: ―fiquei marcado pelo funcionalismo, me apeguei ao conceito de estrutura, que depois transpus da antropologia para a crítica literária‖.121 Portanto, é na Antropologia social inglesa, principalmente nas leituras de Evans Pritchard e Radcliffe-Brown, que Candido retira os elementos necessários para a noção de ―sistema‖. Essa transposição do método antropológico para os estudos literários já marca no autor a transdisciplinaridade, a comparação do texto literário com outros campos do 120 121 Candido, Antonio. op. cit. p. 25 Pontes, Heloísa. Entrevista com Antonio Candido. RBCS. v.16 nº 47. Outubro/2001 VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 452 saber e, por que não dizer, com a ―virada culturalista‖, 122 que marca a primeira metade do século XX. Antonio Candido, ainda que não se possa chamá-lo de multiculturalista, realiza estudos multiculturais, se levarmos em conta as afirmações acima. No entanto, algumas perguntas necessitam ser feitas. O que Candido aufere da Antropologia inglesa que de fato avaliza suas inferências sobre a literatura brasileira? Quais são as bases dessas afirmações? Pode-se pensar a literatura brasileira a partir dessas bases? O autor não deixa claro no livro o lugar onde fundamenta o seu ―sistema‖. No entanto, de forma minuciosa, assinala às fontes que direcionam seu pensamento: (...) Os escritores brasileiros que, em Portugal ou aqui, escrevem entre, digamos 1750 (início da atividade literária de Cláudio) e 1836 (iniciativa consciente de modificação literária, com a Niterói), tais escritores lançaram as bases de uma literatura orgânica, como sistema coerente e não manifestações isoladas.123 O uso das palavras ―orgânicas‖ e ―coerente‖, embora possam passar ilesas numa leitura desatenta, não esclarece a ―armadura teórica‖ de Candido. É no livro Literatura e Sociedade, publicado um pouco depois da Formação, que o autor traz alguns poucos esclarecimentos para os seus apontamentos: A acepção aqui utilizada foi desenvolvida com certa influência da Antropologia Social Inglesa (tão atacada neste aspecto por Lévi-Strauss) e se aproximaria antes da noção de ―forma orgânica‖, relativa a cada obra e constituída pela inter-relação dinâmica dos seus elementos, exprimindo-se pela ―coerência‖.124 Quem chama a atenção para este dado é o escritor Luiz Costa Lima, no texto ―Concepção de História Literária na Formação‖. Com um olhar bastante atento, o escritor direciona o olhar para a palavra ―coerência‖: ―o privilégio pois do conceito de coerência também se prende à influência do funcionalismo antropológico inglês‖. 125 Indo à fonte, Costa Lima cita um trecho do ensaio Estrutura e função na sociedade primitiva, de RadcliffeBrown: 122 Seligmann-Silva, Márcio. ―Teoria literária? Esqueça!‖. In: a crítica literária: percursos, métodos, exercícios. Vitória: Edufes, 2009. p. 87 123 Candido, Antonio. op. cit. p. 71 124 Candido, Antonio. Literatura e Sociedade. 125 Lima, Luiz Costa. Concepção de História Literária na Formação. Rio de Janeiro: Rocco, 1991. p. 160 VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 453 ―Função‖ é a contribuição que determinada atividade proporciona à atividade total da qual é parte. A função de determinado costume social é a contribuição que este oferece à vida social total como o funcionamento do sistema social total. Tal modo de ver implica que certo sistema social (...) tem certo tipo de unidade a que podemos chamar de unidade funcional. Podemos defini-lo como condição pela qual todas as partes do sistema social atuam juntas com suficiente grau de harmonia ou consistência interna, isto é, sem ocasionar conflitos persistentes que nem podem ser solucionados nem controlados.126 O que Costa Lima nos mostra, e sem dúvida é um mérito do seu trabalho, são as raízes do pensamento de Candido. Conforme já assinalado, o Funcionalismo teve um ―impacto‖ significativo sobre o pensamento do crítico, e quando ele fala de ―bases orgânicas‖, de ―sistema coerente‖, não faz mais do que justificar sua vinculação à Antropologia inglesa. Uma forma de esclarecermos isso é nos atentarmos para a primeira frase da citação acima. Radcliffe-Brown afirma ser a ―função‖ um aporte para a ―atividade total da qual é parte‖; ou seja, uma perfeita relação de contribuição para o todo, para a ―coerência‖ e organicidade do sistema social. O pensamento funcionalista, portanto, articula-se em torno de uma homogeneidade, fruto sem dúvida de uma analogia com a Biologia, privilegiando a ―‘harmonia ou consistência‘ do sistema‖. 127 A comparação com a Biologia poderá esclarecer um pouco mais o pensamento de Candido. Qualquer pessoa, no mais absoluto senso comum, sabe que todas as partes do corpo humano confluem para um funcionamento coerente e perfeito. Se uma das partes está fora do ―sistema‖, com certeza todo o corpo padecerá. Portanto, o corpo humano – sendo aqui compreendido como um conjunto de funções que se organizam sistematicamente – necessita que as ligações entre seus membros sejam restritas, interdependentes, coerentes, e que suas tarefas sejam desempenhadas em conjunto; dessa forma, temos um ―corpo‖ perfeito. É dessa forma que o Funcionalismo inglês pensava o ―sistema social‖. Segundo Costa Lima, ―às relações sociais então se conectam sua concepção de tempo, seus sistemas políticos e de linhagem‖. 128 126 Radcliffe Brown, A. R. Apud: Lima, Luiz Costa. op. cit. p. 161 Lima, Luiz Costa. op. cit. p. 161 128 Idem. Ibidem. 127 VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 454 É pelas concepções de tempo, política, história e de linhagem, que Antonio Candido faz o seu recorte a partir do Arcadismo. O autor está em busca de uma ―coerência‖ e ―coesão‖ histórica, homogênea, conforme já dito acima. No entanto, se podemos concordar com Costa Lima na afirmação de que ―o sistema é da mais absoluta coerência e a coesão não pouco invejável‖, queremos ir um pouco além e observar a sistematização de Candido através de outros olhares. Colocar o Arcadismo como pedra fundamental da nossa formação literária custou caro para o autor, tanto para os que consideram literatura brasileira toda a produção literária desde o período quinhentista, quanto os que não concordaram com a exclusão do Barroco. Duas obras são fundamentais nestes aspectos: Conceito de literatura brasileira, de Afrânio Coutinho, e O sequestro do barroco na formação da literatura brasileira: o caso gregório de matos, de Haroldo de Campos. O livro de Afrânio Coutinho foi escrito em 1960, um ano após a publicação da Formação. Numa clara demonstração de resposta a obra de Candido, Coutinho busca desconstruir o pensamento crítico que estabelece uma distinção entre literatura colonial e literatura nacional. Para ele, tal distinção favorece a historiografia portuguesa, que costuma colocar toda a produção literária brasileira do período colonial como que pertencente a literatura daquele país: ―tal perspectiva acostumou uns e outros a encarar o passado literário português como comum a Brasil e Portugal. Eram os chamados ‗clássicos‘ luso-brasileiros, patrimônio de uma cultura comum, vazada numa mesma língua‖. 129 Afrânio Coutinho afirma que ―escapou‖ à visão do português o processo de ―revolução‖ que se estabeleceu na colônia desde o momento que os primeiros homens que para aqui se transferiram ou nasceram: Revolução tão importante que, desde o primeiro momento havia transformado a mentalidade dos habitantes, através de mudança da sensibilidade, das motivações, interesses, reações, maneiras de ser e agir novas, tudo provocado pela nova situação histórica e geográfica. (...) Os colonos à medida que se afastavam da costa e pequenos povoados, regrediam à condição primitiva, esquecendo o estado de civilizados, a fim de adaptar-se ao meio e de habilitar-se à luta com os silvícolas. (...) 129129 Coutinho, Afrânio. Conceito de literatura brasileira. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica, 1960. p. 10 VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 455 Um homem novo criou-se desde o primeiro instante em que pôs o pé no novo mundo.130 Coutinho chama atenção para o caráter político da palavra ―colonial‖. Para o autor, o emprego de tal termo nos estudos literários apresenta uma visão da literatura como ―epifenômeno da vida política e social‖, relacionada ao fato político do Brasil, no período denominado ―literatura colonial‖, ser uma colônia de Portugal. Daí que só se tem autonomia literária a partir da independência política (consequentemente, depois de 1822). Neste aspecto, a palavra ―colonial‖ soa inadequado por pressupor que a produção literária passasse pelo mesmo ―processo pelo qual o povo colonizador exerce a colonização do povo colonizado‖.131 E a observar a crítica literária, seus pressupostos e características, não há outro critério para a inclusão do termo senão pelos vezos sócio-político e econômicos do Brasil daquele tempo. O leitor que conhece o texto da Formação perceberá que Afrânio Coutinho ataca principalmente as proposições de Candido, em função de este ter sido um dos que se valem do termo ―luso-brasileiro‖ (ou ―literatura comum‖) como forma de caracterizar não somente algumas das ―manifestações literárias‖ brasileiras, mas também algumas produções dos ―momentos decisivos‖ da formação literária a partir de 1750. Para Coutinho, deslocar-se do local de origem para uma terra estrangeira, habitar em outro território que não seja sua pátria, já pressupõe um novo homem que se instaura, um grau zero da vida. Daí desconsiderar a ―noção de sistema literário‖ de Candido, por acreditar que essa privilegia o conceito de literatura colonial, colocando as produções do período colonial como aspecto da portuguesa. Afrânio Coutinho afirma que Candido confunde ―autonomia‖ com ―formação‖. Esta, para ele, começa desde as primeiras manifestações literárias do país, tendo Antonio Viera e Gregório de Matos como seus principais nomes. Já a ―autonomia‖ literária começa exatamente no espaço em que Candido enxerga o início da nossa ―formação‖: a partir de 1750, com as academias e os árcades mineiros.132 A obra de Coutinho e a de Haroldo de Campos possuem uma preocupação comum: a não inclusão do barroco na ―formação‖ de Candido. Em O Sequestro do Barroco, 130 Idem. Ibidem. Coutinho, Afrânio. op. cit. p. 17 132 Coutinho, Afrânio. op. cit. p. 62 131 VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 456 Campos chama a atenção para um problema que verifica na Formação, ancorando-se nas ―funções da linguagem‖ arquitetadas por Roman Jakobson: O modelo semiológico, articulado por Antonio Candido para descrever a formação da literatura brasileira, privilegia as funções EMOTIVA e REFERENCIAL, acopladas na função COMUNICATIVO-EXPRESSIVA de exteriorização das ―veleidades mais profundas do indivíduo‖ e de ―interpretação das diferentes esferas da realidade‖. 133 A ―literatura que privilegia a função EMOTIVA‖, segundo o autor, em conformidade com a teoria de Jakobson, ―é a literatura romântica‖. Com base nisso, o autor define o pensamento de Candido da seguinte maneira: Quando ao privilégio dessa função EMOTIVA se alia uma vocação igualmente enfática para a função REFERENCIAL (para a literatura da 3ª pessoa pronominal, objetiva, descritiva, tal como caracterizada pela épica), é possível dizer que estamos diante de um modelo literário do tipo romântico imbuído de aspirações classicizantes (aspirações a converter-se, num momento de apogeu, em ―classicismo nacional‖).134 Embora Haroldo de Campos valha-se do linguista russo para fazer sua definição, bem claro já estava na Formação esta ligação com o pensamento romântico: o leitor perceberá que me coloquei deliberadamente no ângulo dos nossos primeiros românticos e dos críticos estrangeiros que, antes deles, localizaram na fase arcádica o início da nossa verdadeira literatura, graças à manifestação de temas, notadamente o Indianismo, que dominarão a produção oitocentista. 135 A crítica de Campos, portanto, gira em torno da recuperação do cânone do século XVII – Gregório de Matos – por entender que não é clara a sentença de Candido que afirma que Gregório não existiu numa ―perspectiva histórica‖, que não contribuiu para o 133 Campos, Haroldo. O sequestro do barroco na formação da literatura brasileira: o caso gregório de matos. 2ª Ed. Salvador: FOJA, 1989. p. 27 134 Idem. p. 28 135 Candido, Antonio. op. cit. p. 27 VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 457 ―sistema literário‖,136 já que ele é ―a fonte dessa mesma história‖.137 Para Campos, não tem outra explicação para a ―exclusão‖ senão pelo vezo da valoração, do olhar crítico de Candido que sempre tende para a ―relutância, as hesitações judicativas, na abordagem do Barroco brasileiro‖. A própria noção de público leitor que Candido emprega não visualiza de fato suas proposições, já que não se tem a dimensão desse volume de leitores das produções neoclássicas. E se o autor leva em conta a realidade regional, o público baiano e pernambucano do século XVII, que conheceu e divulgou a poesia de Gregório, garantiriam o lugar do poeta no ―sistema literário‖; somente através de uma visão linear e ―finalista da história literária‖, na busca pelos ―momentos decisivos‖, que se consegue excluir as produções do século XVI e XVII, segundo Campos.138 Tais palavras são atestadas por Costa Lima, quando afirma que a ―coesão‖ e a ―coerência‖ do sistema literário de Candido são articuladas na concatenação das relações sociais com a sua ―concepção de tempo, seus sistemas político e de linhagem‖. 139 E o que Haroldo de Campos e, de certa forma, Afrânio Coutinho criticam é o fato do autor da Formação pensar a literatura brasileira de forma ―orgânica‖, ―homogênea‖. Se para o segundo, a literatura brasileira já estava formada, ainda que sem as bases orgânicas, inclusive sugerindo Autonomia da literatura brasileira como o nome correto para o livro de Candido; o primeiro afirma que nossa literatura não teve infância, não teve um nascimento ―simples‖, mas ―já nasceu adulta‖, tendo uma origem de ―transformação‖, ―vertiginosa‖, num diálogo claro com Walter Benjamin.140 No entanto, embora façam um trabalho digno de leitura e crítica da Formação, ambos os escritores – Afrânio e Haroldo – partem de visões com as quais não concordamos. Afrânio Coutinho, embora faça uma crítica no mínimo interessante à tese de Antonio Candido, enfatiza a ideia de formação literária quando coloca o Barroco como o início desta, discordando do Arcadismo pensado por Candido, colocando inclusive as figuras de Antonio Vieira e Gregório de Matos como os principais fundadores; Além disso, constrói seu pensamento por um vezo nacionalista, que por vezes cai num discurso ―localista‖. Com relação a Haroldo de Campos, acreditamos ser um anacronismo atribuir a 136 Candido, Antonio. op. cit. p. 26 Campos, Haroldo. op. cit. p. 43 138 Idem. p. 51-52 139 Lima, Luiz Costa. op. cit. p. 161 140 Campos, Haroldo. op. cit. p. 64 137 VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 458 Gregório de Matos a verdadeira autoria dos poemas que contêm seu nome, principalmente depois da obra A Sátira e o engenho, de João Adolfo Hansen, que afirma: ―Gregório de Matos‖ é uma etiqueta, unidade imaginária e cambiante nos discursos que o compõem contraditoriamente numa hierarquia estética, determinada pela ―cadeia de recepções‖, na expressão de Jauss. Não-substancial, é efeito da leitura dos poemas atribuídos, não sua causa.141 Além disso, não acreditamos que tenha ocorrido de fato um ―seqüestro‖, já que Candido sequer leva em conta os períodos anteriores a 1750. No entanto, concordamos com Campos quando pensa a literatura como ―trans-formação‖, isto é, não homogêneo, não-linear. Um olhar atual à historiografia literária não nos permite pensar uma literatura nacional a partir de nenhuma dos pontos de vista elucidados acima (no caso, Antonio Candido, Afrânio Coutinho e Haroldo de Campos). Se perguntássemos ao escritor Jacint Verdaguer, ou até mesmo ao contemporâneo Jaume Cabré, qual a sua nacionalidade, não só diriam ―catalão‖, como também chamariam de ―catalã‖ as suas literaturas. E se sabemos que a Catalunha não constitui um estado-nação de acordo com a tradição advinda do século XIX, pois politicamente faz parte do território espanhol, temos aqui um bom exemplo da fragilidade que se instala quando pensamos o sistema literário de acordo com Candido. Se levarmos em conta as noções de língua, povo e nação, de acordo com o pensamento contemporâneo, veremos que as proposições lançadas na Formação se tornam complexas se ainda forem aplicadas à literatura brasileira, haja vista a fluidez que tais conceitos possuem na pós-modernidade. Peguemos a noção de língua, por exemplo: se nos séculos XIX e XX ela era imprescindível para se caracterizar uma literatura nacional, na atualidade tal conceito se perde a partir do momento que surgem escritores como a turca Elif Shafak, que escreve suas obras tanto em turco quanto em inglês. Voltemos agora ao início do nosso texto, no ponto em que propomos discutir a afirmação de que a literatura brasileira é ―galho secundário da portuguesa, por sua vez arbusto de segunda ordem no jardim das Musas...‖. Foi neste ponto que vimos Candido fazer literatura comparada, já que compara a produção literária brasileira com as produções 141 Hansen, J.A. A Sátira e o engenho. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 14-15 VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 459 européias. Com o intuito de clarear a mente do leitor, tais palavras foram escritas no primeiro prefácio à Formação, em 1959; portanto, o autor tinha visto passar diante dos seus olhos toda a movimentação da literatura brasileira, desde a década de 30 à geração de 45. Uma pergunta se faz necessária: se galho é parte de um todo, o que de fato é a literatura brasileira? Se a brasileira é o galho, onde se localiza a árvore? Não há explicação para a afirmação de Candido senão pelo pressuposto de haver aí a um juízo de valor, que se sustenta em face da ocultação no texto das bases que sustentam tal definição. O que garante ao crítico que Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, é uma literatura menor que Crime e Castigo, de Dostoievsky? Se a abordagem do autor faz referências às produções literárias dos séculos anteriores (XVI, XVII, XVIII e XIX), de imediato temos a falha de informação no texto da Formação, que não marca no tempo e no espaço a afirmação do autor. Todavia, se tais palavras alfinetam as temáticas, a não pureza ideológica e o caráter híbrido de nossos autores, chamamos atenção para o ensaio ―O entre-lugar do discurso latino-americano‖, de Silviano Santiago, que afirma que ―a maior contribuição da América Latina para a cultura ocidental vem da destruição sistemática dos conceitos de unidade e de pureza‖. Para este, a América Latina se posiciona no ocidente exatamente no ―movimento de desvio da norma, ativo e destruidor, que transfigura os elementos feitos e imutáveis que os europeus exportavam para o Novo Mundo‖.142 O discurso de Candido serve a uma época que para a América Latina não existe. Não somos intelectualmente do tempo de Quixote, não nascemos no mesmo continente que Homero, Horácio. Palavras como essa, segundo Santiago, ―reduz a criação dos artistas latino-americanos à condição de obra parasita, uma obra que se nutre de uma outra sem nunca a lhe acrescentar algo de próprio; uma obra cuja vida é limitada e precária, aprisionada que se encontra pelo brilho e pelo prestígio da fonte, do chefe-de-escola‖.143 A literatura brasileira, assim como a latino-americana, nasce exatamente como segunda. E nisso consiste o seu sabor. Na assimilação de que somos um povo colonizado, que recebemos uma cultura imposta, arbitrária e reacionária, mas que, a partir disso, construímos nossa trapaça no poder, citando Roland Barthes, nossa literatura parte como um segundo texto, mas totalmente desviado do discurso dominante. 142 Santiago, Silviano. ―O entre-lugar do discurso latino-americano‖. In: Uma literatura nos trópicos. São Paulo: Perspectiva, 1978. p. 18 143 Idem. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 460 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Campos, Haroldo de. O Sequestro do barroco na formação da literatura brasileira: o caso Gregório de Matos. 2ª Ed. Salvador: FOJA, 1989. Candido, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 12ª Ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2009. ______________. Literatura e Sociedade. São Paulo: Nacional, 1965. Carvalhal, Tania Franco. Culturas, Contextos e Discursos: Limiares Críticos no Comparatismo. Porto Alegre: Editora da Universidade, 1999. Lima, Luiz Costa. Pensando nos trópicos: dispersa demanda II. Rio de Janeiro: Rocco, 1991. Pontes, Heloísa. Entrevista com Antonio Candido. RBCS. V. 16. Nº 47. Outubro/2001 Santiago. Uma literatura nos trópicos. São Paulo: Perspectiva, 1978. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 461 6. BÍBLIA E A LITERATURA BRASILEIRA: PRESENÇA DO DIABO NA POESIA DE GREGÓRIO DE MATOS Ciro Soares dos Santos (UFRN) Apresentação do problema: uma busca de paz intelectual Alguém pode considerar como verossímil uma alegação de o poema lido a seguir não ser da autoria de Gregório de Matos e Guerra (1636-1695?). Ocorre de alguém considerar acertada a hipótese de o poeta não haver existido de fato como pessoa, assim como acontece de alguém negar a relevância literária do legado elaborado pelo bacharel literato para as letras brasileiras. Essas teses podem ser úteis para relativizar ou refutar no todo ou em parte a leitura tecida nas próximas páginas para uma pequena mostra da obra do poeta baiano. Discussões centradas em polêmicas relativas à referência autoral, à existência biográfica e à importância literária de Gregório de Matos (GM) serão consideradas exploradas o suficiente para se poder construir uma reflexão sobre a obra desse homem de Estado poeta-tradutor-recriador com paz intelectual minimamente suficiente, propiciada pelas considerações consolidadas pelo debate acadêmico em torno do maior dentre os primeiros dos poetas brasileiros, o fundador da literatura brasileira. Haroldo de Campos valida a abordagem de João Carlos Teixeira Gomes (1985) quanto a sua concepção de plágio-tradução-cópia como trabalhos criativos, entendimento capaz de motivar a retirada do poeta do banco dos reus, e refuta a relativização da certeza da existência humano-histórica da vida espantosa de o poeta Devorador, contada por Pedro Calmon (1983) e por Fernando da Rocha Peres (2004), empreendida por João Adolfo Hansen (2004), ao abordar a obra de Gregório de Matos e a Bahia do século XVII. Defensor incansável de O boca de brasa, como prefere chamá-lo Gomes a, ―o boca do inferno‖, Haroldo de Campos dedica-se a desconstruir a verdade historiográfica construída com fundamento em convenções metodológicas de sistematização construídas por Antônio Cândido (1981) responsáveis por levá-lo a cometer o seu sequestro do barroco na formação da literatura brasileira (CAMPOS, 1988), tal como o lança no banco dor reus o inquérito do seu ex-aluno poeta-tradutor paulista ao investigar o caso Gregório de Matos. As breves considerações seguintes terão por livre de quaisquer VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 462 cativeiros o estadista-poeta Gregório de Matos e Guerra como pressuposto à leitura do poema seguinte, com a convicção de que os poemas copilados por James Amado seguramente resultam do trabalho da figura humana do filho de portugueses nascido e criado nas terras brasileiras, embora com idas e vindas para Portugal e para África. Assim, os parágrafos seguintes se dedicarão a um poema em especial, não para investigação histórico-autoral, como a empreendida por Maria Aparecida Ribeiro sobre a imagem de Angola no espelho barroco projeção das canções de Exílio de Gregório de Matos, como fez Maria Aparecida Ribeiro (2008) para um colóquio barroco, mas para explorar-lhe um motivo literário da poesia de Gregório: a presença do diabo como elemento-personagem literário tomado de empréstimo da tradição histórico-literária para elaboração poética. As linhas seguintes passam de largo, o máximo possível, por polêmicas, compondo um texto baseado em mapa de leitura construído sob as indicações de Haroldo de Campos, sem marcas de angústia gerada por desejo de desviar-se para os descaminhos das questões acima mencionadas. O diabo como construção histórico-literária: a pena luciferina de Gregório de matos O estudo da presença da Bíblia na poesia de Gregório de Matos (GM) tem sua motivação fundada em mais do que mera identificação pessoal do estudante em relação ao objeto estudado, fruída com a liberdade das relações de transferência-contratransferência na recepção-leitura do texto poético e de projeções do estudante em relação ao seu objeto de observação, embora uma investigação crítica da apropriação gregoriana da enciclopédia de lugares, episódios e personagens bíblicos seja uma oportunidade para resignificar histórias e doutrinas ouvidas e internalizadas desde sua tenra infância. A impossibilidade de dar conta da amplidão de referências às escrituras operada pelo poeta exige o recorte para, por escolha livre, a presença do diabo, do satanás, do demônio na poesia de GM: será a personificação do mal construída pelo cristianismo o cerne da reflexão sobre a presença da Bíblia na literatura brasileira por via da poesia de Gregório de Matos. Harold Bloom, Piter Stanford e Haroldo de Campos serão autores chamados para socorro útil à difícil tarefa de construir uma compreensão da personagem-personificação do mal consoante ela se manifesta em sua aparição em um poema de Gregório sob o cotejamento com a sua aparição nas escrituras bíblicas. Leituras de narrativas e discussões de exegese bíblicas VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 463 empreendidas por leigos e por pastores, testemunhadas nos templos dos adventistas ao longo de uma infância e a apresentação do barroco Gregório de Matos das aulas de literatura brasileira elaboradas pelo Professor Francisco Ivan da Silva nas salas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte são fatores motivadores à reflexão a seguir, como o são a experiência de leitura literária de Harold Bloom, associada ao seu judaísmo de família e ao seu gnosticismo de formação estética, baseado na sua leitura do mormismo e do cristianismo, para construção de sua crítica literária à Bíblia, assim como o interesse de Haroldo de Campos pela literatura bíblica, pelo barroco e por Gregório de Matos. Os principais motores para a elaboração deste ensaio são seus objetivos acadêmicos abaixo apresentados, além de idiossincrasias afetivas e gosto literário apresentadas acima. Duas metas correlacionadas se apresentam frente ao caminho para a composição deste ensaio-tentativa de registrar uma leitura pertinente para poema de Gregório de Matos: divulgar a importância do poeta e difundir o tratamento crítico da bíblia como literatura. Os dois objetivos se coadunam em uma fusão propiciada pelo recorte temático e pelo corpus: desmistificar o diabo como personificação material do mal ao tratá-lo como personagem literário historicamente forjado em multifaces. A negligência da academia quanto ao legado bíblico, vivo na poesia brasileira, abandona os leitores perdidos entre o preconceito desdenhoso e a leitura normativo-dogmática da composição estético-literária fundamental de maior difusão do Ocidente. O estudo da biografia do diabo como construção histórico-literária revela a pena de Gregório de matos como uma luciferina ferramenta, mas não no sentido vulgar, no sentido depreciativo que importa aos desmerecedores de seu trabalho. Os poemas de Gregório de Matos reunidos no Códice organizado por de James Amado apresentam mais de cem referências a lugares, episódios e personagens bíblicos. Deus e o diabo são mencionados dezenas de ocorrências, às vezes no mesmo texto, às vezes com papel idêntico entre textos diferentes, às vezes com papeis diferentes, mas nunca como antagonistas similares aos da construção histórica empreendida pelo cristianismo desde Paulo até os papas, desde a origem até os dias atuais (STANFORD, 2003). As páginas seguintes sobre especificamente o diabo na poesia de Gregório possibilitam a divulgação ao público em geral de estudos capazes de retirar as nuvens dogmáticas, normativas e catequéticas responsáveis por encobrir interesses escusos da religião alcançados pela manipulação de uma personagem multifacetada, como VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 464 demonstrado por Stanford (2003) ao construir uma biografia histórico-religiosa para o diabo; figura tão importante quanto Deus, seja o Javé da Bíblia hebraica, seja o Deus Pai da Bíblia cristã, para a cultura ocidental. A pena luciferina de Gregório de Matos fere a quem atinge, mas não faz dele um ―boca do inferno‖, como o demonizou o poderio estatalreligioso de sua época, única e simplesmente por ele não se fazer mudo ante os de seu século, conforme conta Peres, Calmon . O poeta não poupava quem quer que fosse, como o defende da acusação de somente versejar contra os mais vulneráveis da sociedade, como o defende Atônio Loureiro de Souza (SOUZA,1959). A poesia de Gregório escapou às amarras históricas da cena de sua época por não ser expressão panfletária de protesto em tomada de partido contra ou a favor seja lá do que fosse. Embora o poeta não se fizesse cego aos aspectos sociais configuradores de seu século, como o demonstra sua obra, a atualidade e a permanência de seu trabalho devem-se não a esse aspecto, mas ao labor artístico empregado para constituir uma elaboração estética capaz de inseri-lo no legado literário universal. A apropriação do legado bíblico-literário é um aspecto da poética de gregoriana comprobatório dessa inserção. Se Gregório foi detentor de uma ―boca do inferno‖, foi somente numa acepção bem diferente da construída pelo poder cristão hegemônico há séculos durante a história do cristianismo católico (STANFORD, 2003), o qual lançou condenação contra toda voz dissidente de seus ditames político-dogmáticos. Gregório de Matos foi o artífice de uma pena luciferina, um boca do inferno, no sentido de ser um instrumento de Deus capaz de e responsável por lançar contra quem merecera juízo capaz de atingir a terceira e quarta geração dos abonáveis poderosos, alcançando até os dias de hoje: a punição da ridicularização. Gregório gerou o saboroso riso paródico delineado diante das convenções sociais, das imposições normativas, como um Lúcifer, um anjo de luz, um rebelde em busca de mais saber e de mais poder para desvelar as trapaças dos homens. Inescapavelmente, o legado literário reunido na Bíblia pela sua riqueza estética, por sua vastidão de alcance ao público, por sua repercussão na cultura oral, por sua deturpação nos meios eclesiásticos ao longo da história, seria matéria-prima para a poesia de Gregório, caso ele se aventurasse, como o fez para a felicidade geral da nação, em ser poeta desde jovem. O diabo não escaparia a esse processo de apropriação poética do legado bíblico-literário, personagem tomado por Gregório do mesmo modo como o tomou o discurso religioso: para fazer o que bem entenda (STANFORD, 2003). A apropriação literária da VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 465 personificação do mal, com cada poema atribuindo-lhe um aspecto novo, adequado ao interesse poético subversivo ou não em relação à Bíblia, verificável na obra poética de Gregório, demonstra respeitou somente aos ditames da criatividade. A criação-apropriação dogmática da face do mal verificável na biografia do diabo (STANFORD, 2003), com cada momento histórico sendo atribuído um traço peculiar ao maior sedutor de mundo adequado aos interesses circunstancias do poder religioso hegemônico, demonstra respeito somente a intenções escusas de obtenção de mais poder pela agremiação de uma coletividade ignorante e amedrontada, mas pelas consequências de desafiar o poder instituído do que de se deparar com o sobrenatural, deve bem ser essa a verdade. Gregório de Matos e seus perseguidores foram ―bocas do inferno‖ (o poeta, por lançar-lhes no inferno do fogo da ridicularização pelo riso paródico; seus detratores, por semearem sobre o solo da vida do artista a mentirosa alcunha difamatória e demonizadora), criadores como foram de mais uma fase da materialização personificada em uma face com personalidade da concepção dualista quanto à existência do mal, nascida nas remotas culturas da antiguidade da história do homem. Uma brevíssima incursão teórica: Gregório de Matos e o barroco – paródicos Em sua obra Deus e o diabo no Fausto de Goethe (CAMPOS, 2005), Haroldo de Campos pouco fala sobre Deus, apesar do título, mas apresenta o diabo com elemento literário universal, advindo das ânsias humanas por transcendência, como o declara em entrevista publicada em O arco-íris branco (CAMPOS, 1997), quando responde Questões fáusticas a J. Jota de Moraes, sobre a presença do diabo no universo das narrativas populares, ao que o entrevistado remete a esse seu livro sobre a obra máxima de Johann Wolfgang Von Goethe. Uma indicação teórica registrada em nota sobre o escrito sobre um corpo de Severo Sarduy revela, segundo Haroldo de Campos (2005, p.133), a pertinência dos estudos do ensaísta para a linguagem barroca quanto ao seu artifício paródico de composição. Em Por uma ética do desperdício, estudo estimado por Campos, Sarduy estabelece a paródia como elemento do seu ―esquema operatório preciso‖, criado pelo criativo ensaísta cubano para ―restringir o conceito de barroco‖, a fim de codificar ―a permanência de sua aplicação‖ (SARDUY, 1979, p.59). Uma breve incursão teórica se faz necessária para esclarecer o fato de a análise seguinte ter por fundamentação o conceito de ―paródia que não deve ser necessariamente entendida no sentido de imitação VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 466 burlesca‖, como estabelece Haroldo de Campos ao entendê-la ―enquanto ‗canto textual‘‖, da maneira como ele a encara, ―etimologicamente, [...] enquanto ‗canto paralelo‘‖, acercando-a ―tanto da idéia batikhtiniana de dialogismo (Gr, dia, entre, através, logos, discurso) como da noção de inter (entre) textualidade kristeviana‖ (CAMPOS, 2005, p.7374). Combinando-se Sarduy com Campos ―na medida em que‖ a obra de Gregório de Matos permitir ―uma leitura em filigrana, em que esconde, subjacente ao texto [...]- outro texto – outra obra – que este revela, descobre, deixa decifrar‖, o trabalho de elaboração da poética gregoriano se harmoniza com ―o barroco latino-americano‖ que ―participa do conceito de paródia, tal qual o definia em 1929 o formalista russo Bahktin‖ (SARDUY, 1979,p.68). Demonstrada essa relação, sob as provas de se tratar de legítima a paródica operação textual de Gregório ―na medida em que orienta seu desenvolvimento e proliferação‖, com sua ―estrutura inteira constituída, gerada pelo princípio da paródia‖ (SARDUY, 1979, p.70) de textos bíblicos, será, então, entregue ao mundo acadêmico mais uma parcela do resgate do barroco e de Gregório de Matos e Guerra para pagamento do seqüestro há muito sofrido. Considerações sobre a presença do diabo na poesia de Gregório: uma a voz paródico- tentadora As menções ao diabo realizadas por Gregório de Matos apresentam oscilações em relação à Bíblia cristã, como prefere chamar o Novo Testamento Harold Bloom: aproxima-se e afasta-se das representações da personagem construída pelos autores bíblicos responsáveis produção dos escritos fundamentais à expansão do cristianismo e a sua consolidação institucional. O Pai Criador do universo divide espaço com o inimigo humano universal (criações cristãs) no poema seguinte, situado dentre os tecidos para Os homens bons, homenageados às avessas na Crônica do viver baiano seiscentista de Gregório de Matos, mais especificamente como as Pessoas muito principais da cidade da Bahia. Ocorre nele de ser dada voz ao Demônio para construção de diálogo cujo resultado esperado é o de uma peleja para seduzir uma alma ―cristã resistindo às tentações diabólicas‖, enquanto clama por Deus: Alma Se o descuido do futuro, e a lembrança do presente VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 467 é em mim tão continente, como do mundo murmuro? Será, porque não procuro temer do princípio o fim? Será, porque sigo assim cegamente o meu pecado? mas se me vir condenado, Meu Deus, que será de mim? (OC, I, 73) Segismundo Spina (1995), em seu livro A poesia de Gregório de Matos, organiza antologia da obra do poeta pluriguista, publicação estimulada, prefaciada por e oferecida a Haroldo de Campos, destaca a ocorrência de tupinismos, africanismos, termos chulos, gírias e arcaísmos na obra poética do artista considerado por Campos como ―maior poeta barroco‖ do Brasil e ―um dos maiores‖ da literatura nacional (1988, p.35) e a quem talvez ninguém tenha superado na sátira em ―toda a América Latina‖ (1995, p.12). Spina, porém, silencia quanto à ocorrência do léxico de origem bíblica na poesia do poeta um dia degredado para Angola por sua língua luciferina, declamadora dos textos sagrados, como se reflete em seu vocabulário do que é mostra a palavra ―alma‖. Haroldo de Campos e Harold Bloom constroem explicações para o uso bíblico da palavra, esclarecedoras ao emprego dela no poema de Gregório. Para comentar sua escolha pela palavra alma para sua tradução transcriadora do mais barroco dos textos, o Eclesiastes, Haroldo de Campos afirma que sublinha para a palavra néfesh (’eth-nafshi), traduzida para alma, a ―conotação [...] ligada à séde das ‗emoções‘, dos ‗apetite‘‖, assim como pode significar ―si mesmo‖ (CAMPOS, 2004, p. 135 e p. 122), o homem como um todo. Campos, para comentar tradução publicada em seu livro Bere’shith, nome dado pela tradição hebraica ao livro de Gênesis, primeira palavra dessa obra atribuída a Moisés, registra o ensino de que ―alma‖ (néfesh) pode ter o sentido de ―ser que respira‖ (CAMPOS, 2000, p. 30). Harold Bloom, em comentário sobre a palavra alma, empregada na tradução do episódio do Gênesis (o mesmo traduzido por Campos), transposta para o português, a partir da versão em inglês elaborado de David Rosenberg, por Monique Balbuena, em que é narrada a criação do homem a partir da terra moldada por Javé, esclarece que: VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 468 J é o mais monístico dos autores acidentais, assim como São Paulo é o mais dualístico. Para J não há qualquer divisão entre corpo e alma, natureza e mente. Até onde posso ver, tal monismo foi criação de J (BLOOM, 1992, p.192). Seja qual for a acepção mais adequada para alma no texto de Gregório, o certe é que se vê um ser vivente pensando consigo mesmo em simultânea busca com concomitante influência do Demônio sobre seus pensamento a respeito de sua experiência com os prazeres do mundo. Campos aprova comentário crítico sobre o fato de que, na expressão do Qohélet, ―os prazeres físicos da vida eram divinos na origem‖, e de que, embora o prazer não fosse ―um objetivo adequado à vida‖, constitui-se como ―único programa prático para a existência humana‖ (CAMPOS, 2004, p.122.): Eu saudei eu § o prazer § § pois benesse alguma para o homem § fora E isto sob o sol § comer e beber § e se aprazer § §§ §§§ o há de seguir em seu afã de fazer § Pelos dias de vida § que lhe deu Elohim § sob o sol (QO, 2004, p.80) Nesse sentido, o anseio da alma e o incentivo do demônio estão em harmonia com a pregação bíblica do Qohélet (capítulo oito, verso quinze), mas apresenta-se na dual condição de entrega deliberada ao seguir ―cegamente pecando‖ associada ao sentir temor causado por crer em possíveis consequências de seu proceder. A expressão de tom bíblico ―do princípio o fim‖ da composição da estrofe expressa um prognóstico de futura danação, antecedente às seguintes palavras de sedutora persuasão do demônio: Demônio Se não segues meus enganos, e meus deleites não segues, temo, que nunca sossegues no florido dos teus anos: vê, como vivem ufanos os descuidados de si; VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 469 canta, baila, folga, e ri, pois os que não se alegraram. dois infernos militaram. Bangüê, que será de ti? (OC, I, 73-74) Segundo a tradição cristã, o Demônio é anjo caído e tem voz em alguns dos relatos bíblicos desde o Gênesis, quando teria se encontrado com o ser humano; aos evangelhos, quando teria se deparado com Jesus. Como fizera com usufruto de a astúcia da serpente, assim Haroldo de Campos chama o episódio de Gênesis, para alcança êxito em sua persuasão na busca por mobilizar Eva no Éden, o sedutor, semelhante ao do poema de Gregório, tenta Cristo no deserto. Nos dois episódios (ou nos três, para incluir o do poema em comento, a despeito da peculiaridade de os relatos bíblicos dizerem respeito ao Satanás em pessoa e não a um enviado, um demônio, como pode ser o personagem do poema de Gregório), o sedutor age sob promessas de mais viver. Haroldo de Campos elabora uma dublagem transcriadora em português para a voz do diabo cujo tom é dado pela tradição javista comentada por Harold Bloom como objeto de manipulação pelos escritores neotestamentários: E a serpente § era o mais astuto § § dentre todos § os animais do campo § § que fizera § O-nome-Deus § § § E ela disse § à mulher § § acaso § terá dito Deus § § não comerás § § de toda árvore do jardim? E disse a mulher § à serpente § § § Do fruto das árvores do jardim § Poderemos comer E do fruto da árvore § que está no meio do jardim § § disse Deus § não comereis § dele § § não tocareis nele § § § VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 470 Senão morrereis E disse a serpente § à mulher § § § Morrer § não morrereis Pois § sabe Deus § § que § no dia em que dele comerdes § § se abrirão § vossos olhos § § § E sereis § como deuses § § sabedores § do bem e do mal E viu a mulher § § que era boa a árvore para comer § e uma delícia para os olhos § e aprazível a árvore que dá conhecimento § § e tomou de seu fruto § e o comeu § § § E deu também ao homem § junto a ela § e ele comeu (CAMPOS, 2004, p.54-55) Harold Bloom elabora extensa análise aos relatos considerados de origem javista, em tese, separados em O livro de J por David Rosenberg, das contribuições sacerdotais, redatoriais e eloístas para a composição do que hoje é o Pentateuco, a Torá hebraica, os cinco primeiros livros bíblicos. Embora o comentarista da elaboração literária javista, ao escrever sobre o Gênio autoral presente na Bíblia, desaprove a trabalho tradutório de Rosenberg (BLOOM, 2003, p.142), reitera o estudo em que da seguinte forma explicita uma reflexão advinda de pesquisa sobre a questão da gênese literáriocultural da ideia de o diabo haver se metamorfoseado em serpente, como o estabeleceu a Bíblia Cristã em sua reescritura da Bíblia hebraica: O homem e a mulher não conheciam a malícia; a serpente não conhece nada além dela. Nosso problema, enquanto leitores de J, está em desembaraçar sua estória da serpente no Éden da escandalosa proeminência que alcançou na teologia cristã e na literatura de ficção do ocidente. É um desafio enorme resgatar J neste ponto em particular. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 471 Como será que a encantadora serpente de J se transformou em Satã? A resposta parece remontar a pelo menos o primeiro século antes da era comum, a certos escritores judaicos apocalípticos e eréticos, incluindo o testamento de Adão, a vida de Adão e Eva e aquele outro, curiosa e incorretamente intitulado Apocalipse de Moisés. Por trás deles está uma vida perdida, ou o apocalipse de Adão, onde supostamente o Diabo e a serpente de J aparecem pela primeira vez, onde a história da desobediência escrita por J foi transmutada em uma história de luxúria, e onde a árvore do conhecimento do bem e do mal se transformou em absolutamente qualquer outra árvore que pudesse ser associada à serpente Satã. (BLOOM, 1992, p.197-198) O fato de a serpente do livro de Gênesis ser identifica em fusão com o Satanás dos livros do novo testamente é exemplo de como o cristianismo é marcado por ensinos construídos com base em narrativas mitológicas antigas, anteriores a sua constituição como movimento religioso. Haroldo de Campos, em comentário a passagem sobre a sagacidade da serpente, um dos capítulos do seu Éden: um tríptico bíblico, confirma a leitura de Harold Bloom relativa à personagem criada pela suposta autora da narrativa, a J, mulher intelectual da corte salomônica como a imagina de Bloom. Esclarece Haroldo de Campos: Diferente do que é sugerido nas representações cristãs, a serpente, (nahash), termo que significa ―brilhante‖ e que pode ser associado ao bronze (nehósheth), não é, por definição, no texto hebraico, um ―ente diabólico‖. Ao contrário, mais do que qualquer outro animal, foi dotada ―astúcia‖, de ―ardilosidade‖ [...]. No episódio do Éden, a serpente aparenta um conhecimento da ―árvore do bem e do mal‖ que vai além da ―inocência‖ paradisíaca do casal humano (fato que, para Bloom,constitui a maior ironia do texto ―javista‖). O verbo que descreve o ato de persuasão praticado pela serpente em relação à mulher é nasá’ ou nashá, com o sentido de ―elevar para um plano mais alto‖ [...], ―seduzir‖, ―iludir/decepcionar‖. (CAMPOS, 2004, p.45-46) O ensaio anjos caídos, escrito por Haroldo Bloom, apresenta uma síntese da esclarecedora correlação do diabo como serpente com Eva e com Lilith, personagem VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 472 mitológica não mencionada por Haroldo de Campos em suas considerações interpretativas de cunho linguístico e tradutório sobre a serpente do Éden. Ao ensino de Bloom sobre o fato de que ―a estrela‖ dos demônios (categoria de ser universal e pertencente a todos o povos) habitantes enfestadores da Mesopotâmia era Lilith, ―primeira esposa de Adão‖, ―afastada pela criação de Eva‖ (BLOOM, 2008, p.41), associe-se a explicação explicitada por Jorge Luis Borges e Margarita Guerrero em seu O livro dos seres imaginários e se percebe o fato de que não é uma peculiaridade criada pelo cristianismo a existência de uma personagem para personificar concretamente o mal, tal como a que surge no texto de Gregório para dialogar com a alma: ―Porque antes de Eva foi Lilith‖ lê-se em um texto hebraico. Sua lenda inspirou o poeta inglês Dante Gabriel Rossetti (1828-1882) a composição de Eden Bower. Lilith era uma serpente; foi esposa de Adão e lhe deu glittering sons and radiant daughters (filhos resplandecentes e filhas radiantes). Depois, Deus criou Eva; Lilith, para vingar-se da mulher humana de Adão, instou-a a provar o fruto proibido e a conceber Caim, irmão a assassino de Abel. Tal é a forma primitiva do mito, seguida por Rossetti. Ao longo da Idade Média, a influência da palavra layil, que em hebraico quer dizer noite, foi transformando esse mito. Lilith deixou de ser uma serpente para ser um espírito noturno. Às vezes é um anjo que rege a procriação dos homens; outras, um demônio que assalta aqueles que dormem sós ou aqueles que andam pelas estradas. Na imaginação popular costuma assumir a forma de uma mulher alta e silenciosa, de negros cabelos soltos. (BORGES e GUERRERO, 2000, p.113) De Lilith como serpente perseguidora do homem depois de lhe tornar-se defeso prosseguir como sua companheira, à serpente como diabo perseguidor do homem depois de ser um angélico irmão em Deus Pai, a origem do demônio cristão apresentado como verdade única e última na Bíblia cristã e na interpretação normativa dos textos escriturais advém de transformações de mitos de fontes várias em escrituras de valor sagrado. Nesse sentido, pode também Gregório de Matos, ao seu bel prazer, modificar como entenda essa tradição em nome da criatividade poética, retomando a voz seguida pela pena distante de ―J‖, assim como as narrativas dos evangelhos. O poema, em sua segunda VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 473 estrofe, registra aos argumentos da tentação: deleite dos que vivem sem temor futuro ―descuidados de si‖ pela garantia de livrar-se de ao menos uma danação, a do presente mal vivido. A tentação de cristo, para quem, segundo a narração de Lucas144 foi oferecido todo prazer secular acessível ao homem (fato não contado por Marcos) na condição de se prostrar ao diabo, assédio sofrido em dado momento dos quarenta dias de fome sofrida no deserto; ao contrário da versão de Marcos145, segundo a qual os anjos lhe serviam, é referência recuperável a partir dos versos de GM.. Haroldo Bloom, em suas reflexões sobre os evangelhos, publicadas em Jesus e Javé: os nomes divinos, detém-se consideravelmente à explicitação de relações verificáveis por meio do exercício de comparação dos evangelhos sinóticos entre si. Para o crítico, ―tanto Mateus quanto Lucas procedem de Marcos‖, ―provavelmente, o Evangelho mais antigo, [que] costuma ser datado da época da rebelião judaica contra a Roma, ocorrida entre 66 e 70 da Era Comum‖ (BLOOM, 2006, p. 83e p. 77). O fato de certo de que ―nenhum dos Evangelhos, em si, representa um relato confiável dos ensinamentos do Messias ao qual eles se referem, seja em palavras ou em atos‖ (p.78.) em nada diminui a beleza resultante da exegese das escrituras (midrash), operada por Marcos e por Lucas, como defende Karem Armstrong em sua biografia da Bíblia (ARMSTRONG, 2008) haver ocorrido para consolidação da justaposição de elementos históricos dispersos sobre Jesus, concretizada para a composição dos evangelhos - pois a riqueza literária estaria nas diferenças. Empobrecedora é a leitura dos textos para busca de uma versão unitária ao negar as discrepâncias para afirmar a não contradição impossível de ser percebida, criada para sustentar a defesa de palavra revelada e não de literatura elaborada como mais pertinente para as narrativas. Em GM, não é o prazer secular de possuir os bens materiais, a pompa dos poderosos apresentadas a Cristo no deserto e sob a montanha da tentação, mas o prazer mundano de se entregar ao riso, ao 144 No evangelho segundo Lucas, a Bíblia de Jerusalém assim conta o episódio da tentação de Cristo, após o relato de sua genealogia: Jesus, pleno do Espírito Santo, voltou do Jordão; era conduzido pelo espírito através do deserto durante quarenta dias, e tentado pelo diabo. Nada comeu nesses dias e, passado esse tempo, teve fome‖. Em seguida, o texto apresenta um duelo de conhecimento do Antigo Testamento, travado entre Jesus e o diabo, parte do qual é a seguinte passagem: ―o diabo levou-o para mais alto, mostrou-lhe num instante todos os reinos da terra e disse-lhe: ‗eu te darei todo este poder com a glória destes reinos, porque ela me foi entregue e eu a dou a quem eu quiser. Por isso, se te prostrares diante de mim, toda ela será tua‘. Replicou-lhe Jesus: ‗Está escrito: Adorarás ao senhor teu Deus, e só a ele prestarás culto”, destaque do original, (BJ, p.1794). No evangelho segundo Marcos, tradução da Bíblia de Jerusalém, lê-se, imediatamente após o relato da submissão de Jesus ao ritual do batismo: ―e logo o espírito o impeliu para o deserto. E ele esteve no deserto quarenta dias, sendo tentado por Satanás, e vivia entre as feras e os anjos o serviam (BJ, p.1759). o evangelista nada fala sobre as ofertas do diabo 145 Os Evangelhos segundo João e segundo Mateus nada contam sobre a chamada tentação de Jesus. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 474 deleite da alegria festiva, em substituição ao comedimento introspectivo da vida religiosa, as vivências postas em evidência pelo tentador Demônio do poema de Gregório. Nesse sentido, a solene abstinência do carnaval em vida (concretizada por um não entregar-se sem medida ao cantar, bailar, folgar e rir), equivale a não ter vida em abundância, é infernal escolha. Assim como a absoluta impaciência dolorosa do duvidoso Jó diante da injustiça de lhe haver sido subtraído todo deleite de vida sem qualquer razão admissível, posto que sua desgraça, como não o sabia o miserável homem, fora fruto de uma disputa entre Iahweh e satanás, para quem a fidelidade de um homem a seus princípios devia-se somente às recompensas de gozo material por ele aferidas, também a alma sofre em vida eterna insolucionável dúvida quanto a entregar-se ou não ao prazer, embora Deus em nada se manifeste. Enquanto na dramatização, o diabo se faz presente em voz, Deus aparece somente na expressão irônico-cômica da alma entregue deliberadamente ao pecado em seu clamor: é uma imagem do inferno cristão às avessa, pois o diabo oferece não dor, mas prazer à alma pseudo-sofredora ou sofredora senão apenas do medo de um possível futuro de castigo: Como em Gregório tudo é fingido, até o diabo finge enganar, pois convida à elevação da alma ao enganoso estado de plenitude para futura descida ao inferno, à moda da serpente, como explica Haroldo de Campo, com a paradoxal advertência de que se trata de enganos os seus convites: isso não é engano; é enganar de enganar. A primeira das passagens bíblica construídas com o registro da voz do diabo encontra-se em O livro de Jó, segundo Harold Bloom (fonte de onde ele, como judeo crítico literário estudioso leitor da literatura bíblica, pode encontrar a sabedoria), o Satanás, no episódio abertura do livro e ao longo da Bíblia hebraica, Antigo Testamento, é um servo de Iahweh; ―um advogado de acusação, um funcionário de excelente reputação‖ (2008, p.53), enquanto na Bíblia cristã, Novo Testamento, é um inimigo voraz da humanidade, conforme as epístolas de Paulo e as narrativas dos evangelhos. O diabo do poema em análise se aproxima da concepção literária de Bloom, explicitada em suas reflexões sobre os Presságios do milênio e sobre os anjos caídos, em nada divergentes da leitura biográfico-histórica de Stanfor: para os dois, o diabo é um personagem literário crucial para a história do cristianismo, mas cujo nascimento remonta a época muito mais remota do que dois mil. Jorge Luis Borges bem sintetiza a origem biográfica do diabo como o considera os estudos de Bloom e Stanford ao categorizar a personagem com um VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 475 ser fruto da imaginação em O livro dos seres imaginários, erudito catálogo de personagens fantásticas, elaborado em co-autoria com Margarita Guerrero. Os dois escrevem sobre os demônios do judaísmo: Entre o mundo da carne e o do espírito, a superstição judaica pressupunha um universo habitado por anjos ou demônios. O censo de sua população excedia as possibilidades da aritmética. Egito, Babilônia e Pérsia contribuíram, ao longo do tempo, para a formação desse universo fantástico. Talvez por influência cristã [...] a demonologia, ou ciência dos demônios, teve menos influência do que a angiologia, ou ciência dos anjos. (BORGES e GUERRERO, 2000, p.184) Bloom, na sua negação da existência de Anjos caídos na bíblia hebraica, justificada exatamente pelos fatos apresentados acima, desenvolve a percepção explicita por Borges, acrescentado a cultura da ―Índia antiga, que via o demônio por toda parte‖ (2008, p.41) ao rol borgeano, e destacando a importância helenista para uma reconstrução das origens literárias não bíblicas formadoras da concepção de demônio de que toma posse Gregório de Matos. Sobre o interesse por anjos como um dos presságios do milênio, ensina o professor da universidade de Yale quanto à origem do demônio: Embora os anjos, os do nosso tipo, se tenham originado na Pérsia e na Babilônia, qualquer história dos anjos caídos provavelmente deve começar com o autor helenista do séculos 2 da E.C. Apuleio, mais conhecido por seu esplêndido romance O asno de ouro, porém no fim mais influente como autor de um ensaio, ―Do Deus de Sócrates‖. O ―deus‖ de Sócrates era o seu daimon, um espírito nem humano nem angélico, que mediava entre os deuses e o filósofo. Apuleio identificava os daimons como habitantes do ar, como corpos tão transparentes que não podemos vê-los, só ouvi-los, como ouvia Sócrates o seu. Apesar disso, os daimons são materiais, como são os deuses; foi inovação de Tomaz Aquino encarar os anjos, equivalentes dos deuses, como puros espíritos. Segundo Apuleio, cada um de nós tem um guardião e gênio individual. No fim da Idade Média, esses daimons foram também identificados com os anjos caídos, ou ―demônios‖, como certamente o eram por Aquino. C. S. Lewi aventurou que São Paulo, em última VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 476 análise, estava por trás disso, pois em Efésios 2:2 escreveu sobre ―o príncipe do poder do ar, que agora atua nos filhos da desobediência‖, o que foi entendido como uma referência aos daimons como seres satânicos. (BLOOM, 2006, p.52-53) A poética constituída por Gregório de Matos com as marcadas da apropriação paródica do legado bíblico-religioso, relido pelo poeta sob a inescapável influência (ainda que para transformá-la ao menos em parte) da herança teológico-doutrinal-catequética, deixadas por Paulo e por Aquino na transformação dos daimons de Apuleio em anjos caído ou demônios, didaticamente explicitada por Harold Bloom, manifesta-se no texto comentado pela construção de um diálogo de uma alma vivente com um seu daimon (ela não consegue vê-lo, mas pode ouvi-lo, sem conseguir distinguir, talvez, se se trata de sua voz ou da dele), transnomeado em demônio, conforme a tradição católico-cristã o realizou. A alma dirige-se a Deus, mas quem a ouve é o demônio: Alma Se para o céu me criastes, Meu Deus, à imagem vossa, como é possível, que possa fugir-vos, pois me buscastes: e se para mim tratastes o melhor remédio, e fim, eu como ingrato Caim deste bem tão esquecido tenho-vos tão ofendido: Meu Deus, que será de mim? (OC, I, p.74) A exaltação a Deus como criador se dá não para esboçar sequer uma sombra de real submissão piedosa por desejo de mudança de postura diante da vida, mas para igualar-se em postura ao primeiro dos homicidas na tradição do cristianismo, conforme a leitura normativa de Gregório para o episódio em que o primeiro filho de Eva é vítima das diabruras de Javé, registrada no relato de Gênesis. Gregório, ao referir-se a Caim como VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 477 ingrato, adequa-se à leitura cristã da Bíblia hebraica, ignorante do fato levantado por Harold Bloom de que o fratricídio cometido pelo ―rebelde trágico‖, construído por J, não como um homicida, comete um ―assassinato provocado pela arbitrariedade de Yahweh‖ (BLOOM, 1992, p.206), em acréscimo à defesa do ponto de vista de que ―Caim é a primeira realização humana após a expulsão do Éden, e sua principal qualidade não é o mal, mas um implícito ressentimento de Yahweh‖ (BLOOM, 1992, p.205). Nas palavras da alma, Deus é apresentado como responsável por predestinar a sorte humana para a redenção sobre o pecado, mas não para exaltar o criador, senão em contraponto à confissão de se destinar para longe de se salvar pelos méritos Dele. A alma percebe-se destinada ao ceu (seria o terceiro, para onde foi levado em espírito o apóstolo Paulo?), no sentido destinar-se a um lugar preparado por Deus para habitação das almas não tragadas pelo demônio, porém ver-se em permanente marcha contrária a alcançá-lo. Ao demônio resta tão somente reiterar a alegria de um viver entregue ao cantar como bem o deseje a alma vivente em uma sério-cômica apologia à construção de um viver alheio às possibilidades de perder ou ganhar um lugar no ceu: Demônio Todo o cantar alivia, e todo o folgar alegra toda a branca, parda e negra tem sua hora de folia: só tu na melancolia tens alívio? canta aqui, e torna a cantar ali, que desse modo o praticam, os que alegres pronosticam, Bangüê, que será de ti? (OC, I, p. 74) O Demônio assume, então, o mero papel de validar o modo como a alma conduz sua vida, apresentando as vantagens de permanecer sob a força da alegria oferecida na recitação da estrofe anterior, um ato de bufonaria realizado quando deveria não ser um VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 478 gesto de provocação de riso burlesco transluciferino; mas uma defesa diabólica da servidão ao mal contraposta à resistência da alma cristã em se entregar ao fáustico deleito dos bens mundanos. Como uma instância jurídica em ação para defesa da liberdade, fruída no levar vida regalada em detrimento do temor nascido da previsão de possíveis conseqüências, o diabo, pelo elogio à recompensa imediata de fruir como bem deseje os prazeres da vida livre, apresenta contra-razões para rechaçar os motivos de inquietação apresentados nas confissões de angústia. A alma apela para o símbolo maior de punição advinda da permissividade humana de saciar seu desejo de saber, de poder, de ser: temerosa de fruir para depois sofrer punição simula impossibilidade de algo fazer para não se lançar à entrega dos deleites apresentados pelo demônio e apela para a crucificação 146. Bloom questiona a factualidade da morte de Jesus no Calvário como consequência de sua não aceitação da concepção de Jesus ser Deus, e, mais ainda, de sua inaceitabilidade relativa à existência de um Deus suicida, conforme declara: ―nada no cristianismo teológico é para mim tão difícil de aprender quanto à noção de Jesus Cristo enquanto um Deus que morre e revive‖ (BLOOM, 2006, p.19). A remissão gregoriana à crucificação, realizada para representar um ideal de modo de estar no mundo não atingido pela alma – de fato, sequer perseguido –, é alheia à discussão teológico-historiográfica tecida por Bloom, pois se limita a se referir ao episódio do Gólgota para expressão de uma futura culpa gerada pelo não alcance de um ideal de ser humano à altura do abnegado homem do sacrifício evangélico, fracasso a terminar por ocorrido mediante a inequívoca incapacidade de a alma se ajustar aos padrões de quem se submete à perene lembrança de um ideal de redentor alinhado a altíssimo padrão de auto-negação humana. Javé fora o Deus ideal para as almas viventes israelitas, nos tempos bélico-imperialistas; Jesus representa o Ideal para a alma, nos seus momentos de angustiante culpa. Alma Eu para vós ofensor, vós para mim ofendido? 146 Segundo Harold Bloom, ―gnósticos e mulçumanos insistem que Simão, o Cireneu, que carregou a Cruz, foi crucificado em lugar de Jesus‖, além do que. ―há outras tradições, ainda mais esotéricas, segundo as quais os soldados romanos foram subornados, e Jesus retirado da Cruz ainda vivo‖ (2006, p.162.). VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 479 eu já de vós esquecido, e vós de mim redentor? ai como sinto, Senhor, de tão mau princípio o fim: se não me valeis assim, como àquele, que na cruz feristes com vossa luz, Meu Deus, que será de mim? (OC, I, p.74-75) A alma quer mesmo deixar-se levar pela entrega desmedida aos deleites ao alcance de seu uso, enquanto ao demônio cabe prosseguir com as promessas de mais prazer e de mais ainda ser válida a fruição quando da força da juventude em sua sede demasiadamente humana de mais viver. A sugestão do usufruto dos bens do presente durante a juventude, ressaltado por Qohélet, está nos lábios das demoníacas alegações destinadas à alma, por si só já entregue, embora com temor, à fuga das tristezas de uma vida regrada desde a juventude. Demônio Como assim na flor dos anos colhes o fruto amargoso? não vês, que todo o penoso é causa de muitos danos? deixa, deixa desenganos, segue os deleites, que aqui te ofereço: porque ali os mais, que cantando vão, dizem na triste canção, Bangüê que será de ti? (OC, I, p.75) Produção poética cujo ―foco principal é a mortalidade‖, com o ―destino e o acaso‖, considerados tal qual não o ocorre em outros livros bíblicos, fonte onde Harold Bloom encontra a sabedoria (BLOOM, p.36, 2009), o discurso poético-sapiencial VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 480 Eclesiastes, dublado em português pelo tradutor-transcriador Haroldo de Campos em Qohélet: O-que-sabe=Eclesiastes, é recuperado pelo demônio de Gregório de Matos para persuadir a alma a se entregar ao deleite dos anos joviais. Campos reelabora da seguinte forma as palavras sapienciais atribuídas a Salomão: Jovem: júbilo em tua juventude § e bonança em teu coração § na infância dos teus dias §§ e vai § pelas vias do teu coração §§ e pelas miragem dos teus olhos §§§ E sabe §§ Por tudo isso § Elohim te fará vir a § a julgamento E afasta o sofrimento § do teu coração §§ e aparta o mal § do teu corpo §§§ Que a juventude e cabelos negros § névoa-nada (CAMPOS, 2004, p.102) Terminasse nesse ponto o discurso de sabedoria qohélitica, a alegação de tentação de diabo Gregoriano teria nele inquestionável fundamento bíblico para o elogio ao deleito proferido aos ouvidos da alma, pois a desobediência à ordem de aproveitar o vigor da juventude para extrair dela prazer será levada a julgamento por Elohim segundo o teria dito Salomão. O texto, embora prossiga sob influência das marcas normativas nascidas da necessidade de adequação para inclusão no cânone bíblico, apresenta um capítulo final, deste que é o livro bíblico mais apreciado por Harold Bloom, capaz de fazer o crítico calar profundamente, conforme admite (BLOOM, 2009, p.41e p.42): E recorda § o teu criador §§ nos dias § de tua juventude §§§ Antes que venham § os dias ruins §§ e se avizinhem os anos §§§ dos quais dirás §§ neles para mim § nenhum prazer Antes § que se escureça o sol § e a luz §§ e a lua § e as estrelas §§§ VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 481 E venham de volta as nuvens turvas § depois da chuva (CAMPOS, 2004, p.103) Bloom cita mais versos do trecho, o capítulo doze, do poema a ser, segundo ele, lido até a memorização, percepção plausível, pois a influência normativa verificada pela crítica não atenuou a beleza e a profundidade da expressão poética milenar. Se analisado sob a mira de olhar capaz de se focar em cada verso com simultânea visão voltada ao antecessor (a ordem para fruir a vida) e ao sucessor, a ciência do juízo de Elohim e a lembrança do criador devem servir ao jovem para levá-lo a fruir uma vida de deleites, em conformidade com a incentivada pelo demônio do poema de Gregório. Na ―flor dos anos‖, nos dias do júbilo da juventude, não haveria, na concepção demoníaco-gregoriana, espaço para a amargura de uma vida temerosa de fenecer em um futuro de danação, como também vai mostrado na expressão divino-sapiencial. Espanta-se o demônio diante da angústia confessada pela alma advinda de um senso de autopunição pelo apreciar os prazeres. Como antigo anjo de luz no coração de quem nasceu a sanha por mais poder e por mais saber, agente de disseminação na humanidade desses quereres, conforme sua construção cristã, baseada na leitura normativa não literária do relato javista do Gênesis, o demônio é o único referente – exógeno ao texto, diga-se -, para o qual um dedo ao percorrer os versos poderia apontar. Antes de pensar a próxima estrofe nesses termos já apresentada, importa um aparte sobre o pensamento de Harold Bloom, tomado como norte para a leitura que se vai construindo. Se a Bíblia hebraica é obra artística antes de ser escritura sagrada, então os autores cristãos em nada erram ao dela se apropriarem para criar a Bíblia cristã. Do ponto de vista composicional é uma arquitetura por demais complexa tornar um Deus humano guerreiro em um Deus Pai bondoso, feliz por ter seu filho unigênito crucificado, um humano Deus suicida pelo propósito de cumprir os planos do seu Pai em um conjunto de obras com quatro narrativas da vida do filho, primeiras consequências de sua morte, cartas sobre ensinamentos sobre a religião nascida de seus ensinamentos e um grande poema escatológica com seu ressurgimento divino-fantástico. Nesse sentido, vale ser relativizado o amargor de Bloom em relação à apropriação dos escritores neotestamentários da Bíblia hebraica a despeito do uso tendencioso realizado da VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 482 literatura por eles tomada posse para fins de torná-la um Antigo Testamento, cuja força poética Harold Bloom não deixa de reconhecer em seus comentários, por exemplo, às narrativas da vida de Cristo, registrado em seu Jesus e Javé: os nomes divinos (BLOOM, 2006). Voltando ao poema, a alma menciona o primeiro ofensor de Deus, pela construção cristã, o anjo caído chefe dos demônios, ou o demônio em si: Alma Quem vos ofendeu, Senhor? Uma criatura vossa? como é possível, que eu possa ofender meu Criador? triste de mim pecador, se a glória, que dais sem fim perdida num serafim se perder em mim também! Se eu perder tamanho bem, Meu Deus, que será de mim? (OC, I, 75) A alma construída por GM para o poema não tem reverente precisão dogmática em relação às informações bíblicas, mas faz uma livre apropriação da literatura sacralizada. A Bíblia, no discurso de Ezequiel, em poema interpretado como referência à queda de Lúcifer, segundo a Nota da Escola Bíblica de Jerusalém (BJ p.1520), retrata o anjo rebelde como um ―querubim cintilante‖ antes de contra Deus voltar-se, segundo lê o texto a tradição cristã, desde quando passa a pôr em prática a construção de Lúcifer como anjo caído personificador do mal, conforme ensinam Bloom (2006) e Stanford (2003), baseados em suas pesquisas. Em uma passagem de Presságios do milênio, Harold Bloom ressalta a participação de São Paulo no processo de demonização do Satanás de O livro de Jó e apresenta um enfrentamento à impossibilidade aritmética de calcular o número de demônios, ressaltada por Borges e Guerrrero: João Evangelista, no capítulo 12 de seu Apocalipse, diz que caiu um anjo em cada três, enquanto Gustav Davidson, em seu delicioso A Dictionary of Angels [Dicionário de anjos], cita um bispo VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 483 do século 15 que estabelece o número dos caídos na substancial soma de 133.306.608. Essa cifra teria apavorado os primeiros rabinos, pois eles seguiam a Bíblia hebraica ao não atribuir nenhum impulso mau aos anjos, para os quais nenhuma lei divina teria sido demasiado severo, sem dúvida outro motivo por que São Paulo tanto detestava os anjos. [...] Na medida em que o cristianismo é essencialmente paulino, pouco uso tem para anjos virtuosos. O que Paulo e o cristianismo precisavam era de anjos caídos, em particular do chefe deles, Satanás. Não devemos esquecer nunca que, na Bíblia hebraica, ―Satanás‖ não é um nome próprio. No Livro de Jó, o leitor encontra ha-Satan, ―O Satanás‖, que é um título da corte equivalente ao nosso ―promotor público‖. Como um dos b’ne Elohim, ―filhos de Deus‖, o Satanás é um ser divino ou anjo, malak Javé, ou representante diplomático de Deus. Seu título significa alguma coisa como ―agente barrador‖: é um adversário autorizado dos seres humanos. Em grego, o agente barrador é um diabolos, e assim Satanás se tornou diabólico. (BLOOM, 2006, p. 55-56) Harold Bloom apóia-se nas pesquisas de Norman Cohn para afirma que, para alcançar o cristianismo ―os nomes dos anjos vieram da Babilônia, e a natureza má dos anjos caídos, da Pérsia‖, e passaram antes pela traição judaica apócrifa, de modo que ―ironicamente, Zoroastro, e não o javista ou Isaías, é o autêntico ancestral de são Paulo e de Santo Agostinho‖ (BLOOM, 2006, p.54-55). Querubins foram seres guardiões postos à porta do jardim do Éden para protegê-lo do alcance do homem, conforme registrado no capítulo três do livro de Gênesis. A alma expressa medo de se igualar ao ―serafim‖ em sua ofensa de tudo poder pela total falta de compromisso com regras estabelecidas pelo Criador. Os serafins são seres celestes descritos por Isaías como detentores de seis asas, empregadas, segundo o relato fantástico do capítulo seis do livro do profeta, para voar e para reverenciar Deus. São cantores-poetas tais anjos: Isaías testemunha com ouvidos e olhos seu contar poético: VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 484 Santo, santo, santo é Iahweh dos exércitos, a sua glória enche toda a terra. Gregório de Matos de modo algum passa incólume a essa construção social demonizadora de satanás, realizada pelo cristianismo, como se percebe em outro poema, elaborado como indicado no códice de James Amado, com propósito de homenagear uma autoridade em estado de enfermidade. Um poeta se apresenta para compor versos com remissão a Apolo e a Tália para expressar modéstia relativa ao seu cantar encomiástico. O texto encerra a seção dedicada aos homens de bem da Crônica do viver baiano seiscentista: 1 Oitavas canto agora por preceito, Sem que na oitava possa diligente Louvar as excelências de um sujeito, Que pode ser em tudo o melhor Lente: Mas como em mim não pode ser perfeito O canto, ficará menos cadente A música de Apolo, e de Talia, Que não há cantar bem sem melodia. [...] 6 Deixem-se os Gregos já do seu Eliano, Condenam a silêncio um Xenofonte, Não louve Alexandria Herodiano, Que na Bahia tem Timocreonte: O qual pode ensinar Quintiliano, Camões, Terêncio, Ênio, Anacreonte, Platões, Anaximandros, e Musés, Acusilaus, Priscianos, e a Timéus. (OC, I, p.189-190 e 191) VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 485 Após o desfilar de filósofos e personagens gregos, junta-se à convivência comum o ―decrépito invejo‖ Lúcifer, segundo a tradição cristã, anjo ambicioso responsável pela origem do grande conflito bíblico. O texto bíblico interior ao fragmento de poema a seguir tem sua leitura polemizada por Harold Bloom: 7 Nos anos climatéricos glorioso Vosso nome será tão dilatado, Que suba, onde o decrépito invejoso O veja nas estrelas colocado: Sereis novo Planeta luminoso, E Sol em nova esfera sublimado, Que, a quem o mundo singular aclama, Só descansa no céu com ele a fama. (OC, I, p.191) O texto bíblico recuperável pela leitura dos versos, discutido por Bloom segundo a tradução de Rei James, encontra-se no capítulo quatorze, versos de doze a quinze, do livro do profeta Isaías: Como caíste do céu, ó estrela d‘alva, filho da aurora! Como fostes atirado à terra, vencedor das nações! E, no entanto, dizias no teu coração: ‗subirei até o céu, acima das estelas de Deus colocarei meu trono, estabelecer-me-ei na montanha da Assembléia, nos confins do norte. Subirei acima das nuvens, tornar-me-ei semelhante ao altíssimo‘ E, contudo, foste precipitado ao Xeol, nas profundezas do abismo‖. VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 486 (BJ, p.1276) O fragmento acima está configurado segundo a tradução da Bíblia de Jerusalém e seus editores elaboram nota para esclarecer o sentido dessa ―sátira ao rei da Babilônia‖. À Vulgata o leitor é levado a voltar sua mente para aderir a uma interpretação, a mais aceita pela tradição católica, para as palavras do Deus poeta, já que foi Iahweh o autor dos versos. Segundo a referida nota, os versos em que se divide o trecho acima: parecem inspirar-se em modelo fenício. Em todo caso, apresentam vários pontos de contato com poemas de Râs-Shamra: a estrela d‘alva e a aurora são duas figuras divinas; a montanha da Assembléia é aquela em que os deuses se reuniam, como no Olimpo dos gregos. Os padres interpretam a queda da estrela d‘alva (Vulg. ―Lúcifer‖) como a do príncipe dos demônios (BJ p.1276). A abordagem dos textos bíblicos da Escola Bíblica Francesa responsável pela tradução da Bíblia de Jerusalém (BJ), autora das notas traduzidas para o português para a edição brasileira da BJ, é a de literatura elaborada com raízes em diversas tradições. A poesia de Gregório de Matos deu o calor do novo mundo ao legado literário milenar elaborado e reelaborado ao longo das eras. A vulgata assim traduz o trecho a que se refere a nota dos estudiosos franceses: Quomodo cecidisti de caelo, Lucifer, qui mane ariebaris? Corruisti in terram, Qui vulnerabas gentes? Qui dicebas in corde tuo: In caelum conscendam, Super astra Dei Exaltabo solium meum; VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 487 Sedebo in monte testamenti, In lateribus aquilonis; Ascendam super altitudinem nubium, Similis ero Altissimo? Verumtamen ad infernum detraheris, In profundum laci. (VULGATA, p.690) Harold Bloom, em seus Presságios do milênio, ao discutir angiologia, tece esclarecedor comentário sobre a construção do diabo na Bíblia cristã quanto à passagem ensejadora da presença dele fragmento presente na poesia de Gregório: Embora seja sempre surpreendente compreender que na Bíblia hebraica não há anjos caídos, eles na verdade não são uma idéia judaica durante o longo período de composiçã