ANAIS DO
ORGANIZAÇÃO
Lenise dos Santos Santiago | Samuel Anderson de Oliveira Lima
O VI COLÓQUIO DE ESTUDOS BARROCOS E O I SEMINÁRIO
INTERNACIONAL DE ARTE E LITERATURA BARROCA realizado na UFRN,
pelo Grupo de Pesquisa Ponte Literária Hispano-Brasileira, oportunizou o encontro de
vários e múltiplos discursos estabelecendo pontes de mútuo acesso que vão além de uma
expressão estética, com o objetivo de criar espaços de reflexão multidisciplinar entre
pesquisadores, professores e alunos de Artes, de Literatura e áreas afins.
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SUMÁRIO
Sessão − A EXPRESSÃO HISPANICA DO BARROCO
Coordenadores: Prof. Dr. Francisco Ivan da Silva
Profa. Paula Pires Ferreira
1. SÓROR TERESA JULIANA DE SANTO DOMINGO, OU MELHOR,
TSHIKABA: PRESENÇA AFRICANA NO BARROCO HISPÂNICO
(Amarino Oliveira de Queiroz)
5
2. O CARANGUEJO BARRO (OCO) (Orlando Brandão)
16
3. A MÚSICA DAS PEDRAS OU O DEVANEIO DAS OSTRAS: EM
FRANCIS PONGE, JOÃO CABRAL E MARCELO D2(Tânia-Lima)
26
4. CERVANTES NA CULTURA BRASILEIRA (João da Mata Costa)
43
Sessão − AS ARTES VISUAIS BARROCAS (pintura, arquitetura, escultura e
demais expressões de artes)
Coordenadores: Prof. Dr. Everardo Araújo Ramos
Prof. Dr. Francisco Zaragoza Zaldívar
1. O POEMA COMO ESPAÇO CRÍTICO DA ARTE O BARROCO
PRODUZIDO POR“JOSEPHA AYALA FIGUEIRA”NA POESIA DE
“FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO” (José Antônio Rodrigues Júnior)
63
2. ASPECTOS DA CULTURA ARTÍSTICA DO BARROCO NA PARAÍBA
COLONIAL (Michael Douglas dos Santos Nóbrega / Orientadora: Dra. Carla
Mary S. Oliveira)
82
3. QUESTÕES SOCIAIS E ESTÉTICAS NA ESCULTURA DE
ALEIJADINHO (André Pinheiro)
94
4. DISTORSIONES ESPACIALES Y TEMPORALES EN EL ARTE DEL
CARIBE INSULAR (Helga Montalván Dias)
106
Sessão − BARROCO E MODERNIDADE
Coordenadores: Prof. Dr. Antonio Fernandes de Medeiros Júnior
Profa. Dra. Regina Simon da Silva
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1. DIÁLOGOS ENTRE O BOTELHO BARROCO E O MODERNO
CABRAL (Éverton Barbosa Correia)
116
2. PAISAGENS DO CAPIBARIBE: ESPESSURA DA VIDA NA POÉTICA
DE JCMN (Lenise dos Santos Santiago)
135
3. O TEATRO DA MORTE E DA VIDA: A ESCRITA BARROCA DE
JOÃO CABRAL DE MELO NETO (Francisco Israel de Carvalho)
146
4. APONTAMENTOS SOBRE A POESIA DE MURILO MENDES: OBRA
ABERTA E NEOBARROCO (Ana Carolina Moura Mendonça /Andrey Pereira
de Oliveira)
169
5. A ASA ESQUERDA DO ANJO PELO VIÉS DO DISCURSO
MELANCÓLICO (Adriana Sena)
181
6. CANTO PARALELO - O JOGO PARÓDICO NA OBRA TUTAMÉIA
DE JOÃO GUIMARÃES ROSA (Arlene Isabel Venâncio de Souza)
193
7. LUTO E ALEGORIA EM “A HORA E A VEZ DE AUGUSTO
MATRAGA” (Paulo Henrique da Silva Gregório)
201
8. ENTRE AS FRATURAS DO SUJEITO BAR/ROSIANO EM
TUTAMÉIA E NO LIVRO SOBRE NADA (Robeilza de Oliveira Lima)
215
9. A VOLTA DO MARIDO PRÓDIGO: ENTRE O CAMPO E A CIDADE
(ARAÚJO, Roberta. D. de. / PAIVA, Kalina. A. R. de.)
230
10. MINHA VIDA DE MENINA: DIÁRIO DE HELENA MORLEY
(BOEIRA, Eloísa Elena Prates /ARAÚJO, Roberta Duarte de)
245
11. AS RUÍNAS BARROCAS D’O ATENEU, OU DA ESTÉTICA DO
ROMANCE (Francisco Magno de Araújo)
253
12. A CARNAVALIZAÇÃO LITERÁRIA EM SARAMAGO: ENTRE O
RISO E AS RUÍNAS (PAIVA, K. A. R. de /ARAÚJO, R. D. de.)
278
13. DOM QUIXOTE - ENTRE O BARROCO E A MODERNIDADE (Jóis
Alberto da Silva)
295
14. O NEOBARROCO EM “CONTO BARROCO OU UNIDADE
TRIPARTITA”, DE OSMAN LINS (Maria Luíza Assunção Chacon /Andrey
Pereira de Oliveira)
306
15. UMA LEITURA ALEGÓRICA DO CONTO “ELES”, DA OBRA O
OVO APUNHALADO, DE CAIO FERNANDO ABREU (Antonio Peterson
Nogueira do Vale)
316
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16. O BARROQUISMO NA SIMBOLOGIA DOS ELEMENTOS DA
NATUREZA: AR, FOGO, ÁGUA E TERRA, EM LOS PERROS DEL
PARAÍSO, DE ABEL POSSE (Regina Simon da Silva)
327
17. ROMANCE HISPANO-AMERICANO E ALEGORIA: Afinidades entre
Onetti, Puig e Bolaño (Reno Nícolas de Araújo Torquato)
349
18. O PRESENTE BARROCO: A MÁQUINA DO TEMPO TEÓRICOLITERÁRIA DE AGUALUSA (LisaneMariádne Melo de Paiva / Julianny
Katarine Aguiar de Oliveira)
372
19. ENSAIO DE UMA SOCIOLOGIA BARROCA (Luciano Albino)
384
Sessão − INTERFACES BARROCAS
Coordenadores: Profª Ms. Reny Gomes Maldonado
Prof. Ms. Samuel Anderson de Oliveira Lima
1. LOS JESUITAS Y SUS RESONANCIAS EN EL BARROCO
BRASILEÑO (Gleba Coelli Luna da Silveira / Márcia dos Santos do Nascimento)
396
2. EL AMOR EN LA POESÍA DE LOPE DE VEGA (Reny Gomes
Maldonado / Paula Pires Ferreira)
405
3. A PÉROLA IMPERFEITA: BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A
SOCIEDADE COLONIAL BAIANA COM BASE NA POESIA BARROCA
DE GREGÓRIO DE MATOS GUERRA (Keidy Narelly Costa Matias)
418
4. O LUGAR DE GREGÓRIO DE MATOS NA LITERATURA
BRASILEIRA (Samuel Anderson de Oliveira Lima)
436
5. NOS FIOS DO TEMPO: REFLEXÕES ACERCA DA NOÇÃO DE
“SISTEMA LITERÁRIO” DE ANTONIO CANDIDO NA FORMAÇÃO
DA LITERATURA BRASILEIRA (Moisés Ferreira do Nascimento)
450
6. BÍBLIA E A LITERATURA BRASILEIRA: PRESENÇA DO DIABO NA
POESIA DE GREGÓRIO DE MATOS (Ciro Soares dos Santos)
462
7. METAFÍSICOS OU BARROCOS? (Sandra S.F. Erickson)
496
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Sessão de Comunicação: A EXPRESSÃO HISPANICA DO BARROCO
Coordenadores: Prof. Dr. Francisco Ivan da Silva
Profa. Paula Pires Ferreira
1.
SÓROR TERESA JULIANA DE SANTO DOMINGO, OU MELHOR,
TSHIKABA: PRESENÇA AFRICANA NO BARROCO HISPÂNICO
Amarino Oliveira de Queiroz
(Universidade Federal do Rio Grande do Norte)
O período correspondente ao Barroco literário castelhano apresenta singular
expressão na mexicana Juana Inés de Asbaje y Ramírez de Santillana, ou Juana de Asbaje,
mais conhecida pelo nome de Juana Inés de la Cruz, monja católica a quem autores como
Octavio Paz e Carlos Fuentes dedicaram prestigiados estudos. Praticamente desconhecido
e ignorado em nosso meio acadêmico, entretanto, outro exemplo da escrita de autoria
feminina surgido durante o Barroco hispânico encontra lugar na figura de Tskikaba,
Chicaba, ou, ainda, sóror Teresa Juliana de Santo Domingo, de quem se diz ter sido uma
princesa africana raptada por marinheiros espanhóis na costa da Guiné e tornada escrava
aos nove anos de idade. Trasladada inicialmente para o arquipélago de São Tomé e
Príncipe, depois para Sevilha e, a seguir, para Salamanca, na Espanha, mais tarde seria
ordenada freira dominicana, dando início a uma trajetória marcada por penitências, visões
místicas, virtudes e curas milagrosas, mas também pela criação poética em língua
espanhola. Antecipando em alguns séculos a inauguração da escrita literária africana em
línguas européias, este último episódio conferiria à trajetória de Tshikaba uma particular
aura de pioneirismo, ancorada, como veremos, num discurso afirmativo e rompedor.
Sabe-se que, dentre os idiomas europeus que se apresentam ao mesmo tempo como
línguas oficiais e de literatura no contexto africano atual, o castelhano é seguramente o mais
invisibilizado de todos. Seja no que diz respeito à sua efetiva oficialidade lingüística, ou
mesmo através do trabalho desenvolvido pelos organismos internacionais que atuam no
continente, seja no que tange à sua circulação como língua de comunicação, de ensino e de
literatura nos vários países que adotaram as antigas línguas implantadas na experiência
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colonial e as destituíram, na prática oral e escrita, de sua vertical condição de ―língua do
colonizador‖. Reiterando, pois, a precariedade da situação em que se encontra a presença
lingüística do castellhano na África, o poeta guinéu-equatoriano Ciriaco Bokesa nos lembra
que
el carácter vinculante del idioma y cultura está más que estudiado desde el
ángulo del inglés, del francés, y, en menos grado, del portugués. Pero, lo
español, en tierras africanas y de plumas estrictamente africanas, queda en la
memoria de una cita apenas esbozada. (BOKESA,1996, p.104).
pelo que resulta oportuna uma abordagem acerca de expressões literárias africanas
desenvolvidas nos países de colonização ibérica e, mais especificamente ainda, como se
tentará produzir neste nosso recorte, por aquelas manifestadas em língua castelhana. Vimos
que a circulação da língua espanhola na África está envolvida em diferenciados contextos
culturais, onde por sua vez se alinham registros literários igualmente diversos. Nesse
aspecto em particular encontramos, a título de exemplo, o território constituído pelos
enclaves espanhóis de Ceuta e Melilla e pelo arquipélago das Canárias, passando pelas áreas
historicamente vinculadas ao universo arábico e berbere, como o Marrocos e o Saara
Ocidental até chegar à expressão escrita de autores francófonos em castelhano, não
esquecendo, contudo, a isolada e bastante peculiar experiência da Guiné Equatorial, com
sua denominada literatura hispano-africana, ou hispano-negro-africana.
Foi nessa região localizada ao redor do golfo da Guiné, na África Ocidental, que
nasceu Tshikaba, referida como a primeira mulher africana a fazer uso literário de uma
língua européia moderna, situação que se assemelha à da afro-brasileira Rosa Egipcíaca,
contemporânea de Tshikaba e considerada por sua vez a primeira escritora negra em língua
portuguesa. O feito paralelo nos parece bastante significativo, sobretudo se considerarmos
historicamente a rara aparição de mulheres no desenvolvimento das letras equato-guineanas
e, mais particularmente ainda, a presença de escritoras negras na literatura brasileira. No
que tange à Guiné Equatorial, embora encontre destaque nas obras inaugurais de Raquel
Ilonbé e María Nsue em diferentes gêneros como o romance, o conto e a poesia a partir da
segunda metade do século XX, em termos genéricos o protagonismo autoral feminino se
configura como tardio na história literária do país, não obstante o relativamente recente
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aparecimento de nomes como Mercedes Jora, María Caridad Riloha, Trinidad Morgades
Besari, Ana Lourdes Sohora, Remei Sipi, Guillermina Mekuy ou Paloma Loribo.
Raquel Ilonbé foi o pseudônimo utilizado por Raquel del Pozo Epita, nascida na
cidade de Corisco, em 1939, e falecida em Madri no ano de 1992. Poeta, prosadora, cantora
e pintora, Ilonbé manteve durante toda a sua trajetória uma grande atividade cultural onde
se destacaram os recitais de música e de poesia, além de exposições de sua obra pictórica.
Filha de pai espanhol e mãe guinéu-equatoriana, Raquel Ilonbé foi levada para a Espanha
com apenas um ano de idade, tendo desenvolvido ali toda a sua formação escolar. Mesmo
não sofrendo diretamente as agruras do exílio, condição determinante para muitos de seus
pares, a escritora pôde desenvolver uma obra permeada pelos elementos dessa origem
híbrida, estabelecendo a partir de sucessivas visitas ao país natal uma temática caracterizada
por influências culturais ibéricas e bantas. O silêncio internacional em torno de sua obra
reflete a reprodução, em termos locais, da situação de marginalidade a que estão relegados
determinados setores da sociedade, nos quais as mulheres em geral, e as escritoras africanas
em particular ocupam, desde Tshikaba, e também frente ao mercado editorial, uma posição
ainda menos confortável do que aquela alcançada pelos colegas do sexo masculino.
Tal como aconteceu com Raquel Ilonbé, inaugurando individualmente não apenas a
primeira edição feminina de poesia guinéu-equatoriana escrita em língua espanhola (Ceiba,
de 1978) como também o primeiro livro de ficção curta dedicado ao público infanto-juvenil
africano hispano (Leyendas Guineanas, de 1981), aparece, ainda na segunda metade do século
XX, María Nsue, a primeira mulher a publicar um romance em seu país, (Ekomo, de 1985).
De forma assemelhada ao que sucedera séculos antes com Tshikaba, deixando para trás,
involuntariamente, a costa da Guiné, outra coincidência aproxima a vida e a obra de Raquel
Ilonbé e María Nsue: nascida em 1945 no seio de uma família pertencente à etnia fang,
ainda na adolescência Nsue emigrou para a Espanha com seus familiares, ali completando
sua formação escolar, embora tenha realizado na Somália os seus estudos superiores. Poeta,
contadora de histórias, contista, romancista, cantora e compositora, María Nsue vivenciaria
desta forma uma experiência pessoal marcada pela divisão entre dois diferentes mundos, o
banto e o hispânico, duas distintas realidades culturais que se foram tornando igualmente
suas, fazendo com que a opressão à mulher e o contexto pós-colonial africano se
tornassem temas recorrentes em sua obra, o que de certa forma a relaciona, em termos
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político-ideológicos, guardadas as devidas especificidades e proporções, com a realidade
que enfrentou Tshikaba em seu tempo.
Ostentando uma biografia controvertida e uma trajetória de vida marcada por
episódios inusitados e fenômenos paranormais, tramita atualmente na Espanha um
processo formal com vistas à beatificação e canonização de Tshikaba. Diversos estudos
publicados se debruçam sobre este tema, alguns deles assinados por madres católicas que
tratam de realçar, na perspectiva hierárquica dos valores cristãos, o perfil espiritual da
escritora africana. Alguns desses estudos, investindo abertamente num discurso que
dicotomiza categorias como branco e negro, alvo e moreno, descrevem passagens de uma
hipotética infância na África, já às vésperas da captura e escravização, quando a Tshikaba é
revelada a profissão de fé que, frente à visão da Virgem Maria, lhe teria sido predestinada:
Tshikaba gostava de caminhar pelo campo entregando-se às suas
meditações. Em um dos seus passeios, sentou-se para descansar um pouco,
perto da nascente de um rio. Ao contemplá-la, perguntava-se: "Quem será
esse Ser desconhecido que colocou aqui esta fonte?". De repente, a menina
levantou os olhos e viu, extasiada, ao lado do manancial, uma Senhora de
pele alva como a neve, carregando nos braços um belíssimo Menino que,
sorrindo, acariciava a cabeça da princesa moreninha. Ali, por fim, o
Divino Infante - o verdadeiro Deus tão almejado - lhe revelou Seus segredos
e Sua Mãe Santíssima lhe falou a respeito de Sua vida. Ali, por fim, o Divino
Infante - o verdadeiro Deus tão almejado - lhe revelou Seus segredos e Sua
Mãe Santíssima lhe falou a respeito de Sua vida. Que terão dito? Tshikaba
preferiu manter silêncio, mas a partir desse encontro sua vida mudou
completamente. Mais tarde, seu irmão Juachipiter lhe disse terem decidido
seus pais que seria ela quem os sucederia no governo, ao que a pequena
respondeu: "Saiba que não irei me casar com ninguém deste mundo. Eu só
quero saber de um Menino branco que conheci! Tshikaba tinha apenas
nove anos de idade. (CEBOLLA, 2008, p. 30) 1
1
Grifos nossos.
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Estereótipos como estes se reproduzem ao longo de toda a narrativa desenvolvida
por Lucía Ordóñez Cebolla, culminando com a descrição da morte de uma Tshikaba
virginal e virtuosa, ainda que vitimada por moléstia incurável, em 6 de dezembro de 1748:
Contam testemunhas de sua morte que, no momento de partir para a
eternidade, sua pele ficou por alguns momentos alva como a neve. Ao
mesmo tempo, seu corpo exalava um excepcional perfume. Assim, a
princesa africana - conhecida por todos com o carinhoso nome de La
Negrita -, após ter escalado na terra os altos cumes da virtude, era elevada
aos píncaros da perfeita união com Deus. (CEBOLLA, 2008, p. 32) 2
Implicações de ordem moral, político-ideológica e étnica são reavaliadas, porém, em
trabalhos publicados por outras investigadoras religiosas. Em estudo biográfico intitulado
Sor Teresa Chikaba: princesa, esclava y monja, de 2004, ao comentar o relato do biógrafo Juan
Carlos Manuel de Paniagua sobre o mesmo episódio envolvendo o falecimento da escritora
africana, María Eugenia Maeso desenvolve comentários que pretendem pautar-se por uma
isenção maior de juízos valorativos e falácias de raciocínio, muito embora revele também, à
força de sua crença e opção religiosa, um resultado que permanece ideologicamente
comprometido:
Dice el biógrafo que al tiempo de fallecer Teresa y después de fallecida,
se observaron algunos prodígios, o hechos misteriosos. Y lo primero que
narra es que, en el momento de expirar y aún después de muerta, su
rostro se puso blanco y permaneció así durante bastante tiempo. Esta
novedad la advirtieron algunas religiosas y el cirujano que había asistido a
la enferma, El cual lo refirió muy asombrado. Pero es tan comedido
Paniagua que, según dice, no ignora lo que ―algunos entendidos‖ han
escrito sobre la mutación de colores en los cadáveres. La observación
le muestra, como siempre, muy prudente, pues no se pueden achacar, sin
más, a causas sobrenaturales los fenómenos que puedan tener uma
explicación natural. Pero el hecho fue percibido como una señal que el
cielo daba de la pureza y santidad de aquella que durante su vida
fue despreciada por el color de su piel. Para Dios no existen blancos
2
Idem.
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ni negros porque Él ve el corazón. Y este mensaje es muy importante,
por eso sin duda lo recoge el biógrafo. (MAESO, 2004, p. 135) 3
No que concerne aos primeiros registros conhecidos da Tshikaba escritora, sabe-se
que tiveram lugar em 1752 na cidade de Salamanca, com a publicação de uma biografia
baseada em manuscritos originais da própria monja: Compendio de la vida ejemplar de la
Venerable Madre Sor Teresa Juliana de Santo Domingo, de autoria do sacerdote Carlos Manuel de
Paniagua. Segundo o professor Baltasar Fra Molinero (1999), este livro era uma hagiografia
a respeito da freira a quem atribuíam milagres e visões místicas, que levitava, curava os
doentes, que conseguira deter as bombas dos inimigos portugueses na Guerra de Sucessão
de príncipios daquele século e a quem a população local apelidara de La Negrita de la
Penitencia, numa referência explícita, em primeiro lugar, à coloração de sua pele, e, em
segundo, ao convento dominicano onde viveu e morreu. Tshikaba, prossegue Fra
Molinero, foi apresentada ao rei Carlos II como um exotismo a mais
porque venía diciendo que era hija de reyes, y traía joyas y otros ornamentos
que la distinguían de los demás. El Rey se la regaló al Marqués de Mancera,
antiguo virrey de México y protector de Sor Juana Inés de la Cruz. A los
veinticuatro años, y tras rechazar planes de matrimonio absolutamente
novelescos, anunció su voluntad de ser monja, lo que logró finalmente en
1704, no sin grandes dificultades debidas al color de su piel. Esta mujer fue
poeta dentro de la tradición literaria conventual. También fue profeta,
mística, obradora de milagrosas curas, luchadora por su libertad e
independencia como mujer, lo que en su caso significó que se las tuvo que
ingeniar para ganar espacios de libertad relativa dentro de una sociedad que
se los negaba todos. Para Chicaba, o Sor Teresa, la vida conventual en un
monasterio de la Orden Tercera de las Dominicas fue la mejor manera de
labrarse una identidad y una ciudadanía. Se aprovechó de dos pilares
ideológicos de la España de finales del siglo XVII: la admiración por la vida
conventual mística, y la veneración cuasi religiosa de las personas de sangre
real. Porque desde que fue arrancada a sus padres y esclavizada, Chicaba
siempre mantuvo ser de sangre real, hija de un rey de la región entonces
llamada "La Mina Baja del Oro" (FRA MOLINERO, 1999, pp. 97-125).
3
Idem.
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Ainda de acordo com as observações de Baltasar Fra Molinero no referido estudo, o
testemunho mais intenso da relação entre Tshikaba e seu Deus se manifesta num poema
que Paniagua incluiu no Compendio sem maiores referências de data e edição. Reproduzido
integralmente no supracitado artigo desse autor, trataremos de transcrevê-lo parcialmente
aqui, em versão castelhana moderna:
Ay, Jesús, dónde te has ido,
que un instante no puedo
verme sin tigo.
Ay Jesús de mi alma,
dónde te has ido,
que parece que no vienes
y te has perdido.
Ay Jesús, qué diré yo,
si os vais con otras,
qué haré yo:
Clamaré, lloraré
hasta ver a Dios,
y si no, y si no,
morir de amor.
Y ya lo digo,
pues estoy tán sola,
que no has venido.
Y si estás con otra,
ya yo lo he visto;
a Marta y María
las has querido.
Ay, Jesús, donde te hallaré yo,
pues tán tonta me tiene
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cuando te tengo:
A Dios, a Dios amor,
A Dios Señor,
A Dios corazón,
no más, no más,
no más.4
Além de seu caráter inaugural, uma vez que, convém recordar, o texto em questão é
dado como o primeiro a ser escrito numa língua européia por uma autora africana em
pleno século XVII, outro dado marcaria especialmente esta composição: através de seus
versos é possível testemunhar não apenas o tom queixoso e enciumado de uma esposa
mística em relação ao marido eleito:
Ay, Jesús,
dónde te has ido,
que un instante no puedo
verme sin tigo (…)
Y si estás con otra,
ya yo lo he visto;
a Marta y María
las has querido. (…)
como também o uso alternado das formas de tratamento que mesclam a informalidade, ou
a intimidade, da segunda pessoal do singular tú:
donde te has ido
que no puedo verme sin tigo (...)
com a formalidade, ou o distanciamento, da segunda pessoa do plural vosotros:
si os vais con otras,
4
Ai, Jesus, para onde foste? que um só instante não posso/ ver-me sem tigo?// Ah Jesus de minha alma, /
para onde foste, / que parece que não vens/ e te perdeste?// Ai, Jesus, que direi eu/ se fordes com outras/ o
que farei eu?// Clamarei, chorarei, até avistar Deus/ e se não, e se não/ morrer de amor.//
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qué haré yo (…),
culminando com o belo jogo final das palavras A Dios / Adiós:
A Dios, a Dios amor
onde o tom de prece que marca o discurso de despedida é realçado por um tom híbrido de
lamentação e êxtase:
A Dios Señor
A Dios corazón,
no más, no más,
no más.
A expressão lírica sob a perspectiva do feminino em Tshikaba nos remete,
inevitavelmente, à poesia de sóror Juana Inés de la Cruz (1648-1695). Conforme assinala a
pesquisadora Beatriz Farrús Antón (2009), durante os séculos XVI e XVII o espaço do
convento passaria a constituir para a mulher algo como um recinto intelectual de tal forma
que, na altura, tanto na Espanha como na América latina, escritura conventual e escritura
feminina se converteriam em sinônimos:
La escritura conventual fue una escritura poderosamente física, pues las
monjas que escribían sus vidas lo hacían como mujeres ―depositarias del
cuerpo‖, como hijas de Eva, imitadoras de Cristo y de María y obligadas
vírgenes. No obstante, ese cuerpo que atraviesa las vidas de monjas se
interroga sobre, sexo, género, deseo…, pero jamás se preocupa por el
vínculo entre etnia y mujer, cuando la jerarquía basada en la piel atravesaba
las relaciones de ―todas‖ las mujeres que habitan el claustro. [...]
Sin embargo, sólo las mujeres blancas podían profesar y obtener los
privilegios de educación y saber de los que gozaban las monjas, pues aunque
en el mundo conventual vivieron indias y negras su función fue la de
esclavas y sirvientas. (ANTÓN, 1009, p. 46).
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Neste sentindo, de acordo com o raciocínio formulado por Beatriz Farrús Antón, a
inventiva de Sóror Teresa Juliana de Santo Domingo, ou La Negrita de la Penitencia, não
sinalizaria tão somente para a condição feminina naquele tempo e espaço, mas avançaria no
sentido de problematizar ainda, enquanto sujeito social, especificidades dessa condição
feminina, sendo ela própria mulher e negra, formulando assim uma mais ampla qualificação
identitária. Ou seja:
a diferencia de sus otras hermanas de convento su escritura no aborda sólo
el problema de ser mujer, sino de ser mujer y además negra, anticipando el
vínculo entre feminismo y postcolonialismo. Además, Chicaba, raptada en
África a los nueve años, no sólo analiza las marcas de subordinación que
supone ser mujer y negra, sino también extranjera, obligada a despojarse de
sus recuerdos y su cultura. (ANTÓN, 2009, p. 46)
Tal como sucedeu com sóror Juana Inés de la Cruz, Tshikaba teve uma trajetória
pessoal, religiosa e literária marcada por muitas dificuldades e rompimentos. Ainda que
ignorada e invisibilizada dentro do universo da criação literária ao longo de tantos anos, sua
escrita de tradição conventual, desenvolvida precisamente durante o período Barroco
espanhol, reproduz o fervor de uma liberdade sublimada no recolhimento. Ao optar pela
clausura religiosa, teria ela encontrado na servidão ao seu Deus e no exercício da escritura o
refúgio contra a própria condição de cativa que lhe fora impingida, transcendendo, desta
forma, os estigmas que lhe acompanhariam por toda a existência na condição de mulher,
negra, africana, estrangeira e escravizada.
REFERÊNCIAS
ANTÓN, Beatriz Ferrús. ―Sor Teresa Juliana de Santo Domingo: piel negra y escritura
conventual‖. Resumo. In: El cuerpo: objeto y sujeto de las ciencias humanas y sociales.
Disponível em: http://www.imf.csic.es/web/fckfiles/file/Resums-ResumenesAbstracts.pdf p. 46. Acesso en: 17 ago 2009.
CEBOLLA, Lucía Ordoñez. ―Irmã Teresa Juliana de São Domingos: A princesa africana‖.
In: Revista Arautos do Evangelho. São Paulo, ano VII, n. 83, nov. 2008, pp. 30-32.
FRA MOLINERO, Baltasar. La primera escritora afrohispánica: Sor Teresa Juliana de Santo
Domingo (Chicaba). Sevilla, España: Palabras de la Ceiba n. 3, 1999, pp. 97-125.
VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 14
ILONBÉ, Raquel. Leyendas Guineanas. Madrid: Doncel, 1981
ILONBÉ, Raquel. Ceiba. Madrid: Editorial Madrid, 1978.
MAESO, Sor María Eugenia. Sor Teresa Chikaba: princesa, esclava y monja. Salamanca, España:
Editorial San Esteban, 2004.
NSUE, María. Ekomo. Madrid: UNED, 1985.
PANIAGUA, Juan Carlos Manuel. Compendio de la vida ejemplar de la venerable Madre sor
Teresa Juliana de Santo Domingo, Tercera Profesa en el Convento de Santa María Magdalena, vulgo de la
Penitencia. Salamanca, España, 1752.
QUEIROZ, Amarino Oliveira de. As Inscrituras do Verbo: Dizibilidades Performáticas da
Palabra Poética Africana. Recife: PGLetras, 2007. Tese de doutorado.
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O CARANGUEJO BARRO (OCO)
2.
Orlando Brandão
(UFRN)
...Silêncio...
Como reproduzir em palavras o gosto?
O gosto é uno e as palavras são muitas.
Quanto à música, depois de tocada para
onde ela vai? Música só tem de
concreto o instrumento. Bem atrás do
pensamento tenho um fundo musical.
Mas ainda mais atrás há o coração
batendo. Assim o mais profundo
pensamento é um coração batendo.
(LISPECTOR, Clarice. 1986)
Play:
Faixa 1: Quadro sonoro
―Modernizar o passado é uma evolução musical/ Cadê as notas que estavam aqui?/ Não preciso
delas, basta deixar tudo soando bem aos ouvidos‖. Abrem-se as cortinas da cena Mangue beat, na
década de 90 em Recife, tendo como mentor Chico Science, acompanhado do grupo
Nação Zumbi. Aqui o clássico e o popular conectam-se. Rios e mares de estilos musicais
num entre-lugar, no estuário Mangue beat, cujo significado é batida, é mangue. Seguindo a
primeira linha melódica retirada da primeira faixa do CD Da lama ao caos, apresentamos um
prelúdio da estética scienciana que constitui, de modo geral, as intenções que balizam a
ideia da cena ou movimento Mangue beat. Nesse estuário sonoro, as vibrações do mangue
constituem terreno fértil de libertação, de contestação e de afirmação da cena musical
marginalizada, não só recifense, como também norte rio-grandense e brasileira.
Faixa 2: “Tamo aí mandando brasa!”
Da lama de Recife ao caos brasileiro. Nascido da lama tal qual o próprio Recife, o
Manguebeat toma dimensões nacionais. A sua estética, caracterizada pela miscigenação de
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sons, afirma-se em todo Brasil e influencia trabalhos como o do paulista Marcelo D2, que
tenta miscigenar alguns estilos musicais, principalmente o rap e o samba; no mesmo
caldeirão sonoro da cena pós-mangue, tem-se também o exemplo da banda pernambucana
Mombojó; no âmbito norte rio-grandense, a representação fica a cargo do grupo potiguar
Rosa de Pedra, que traz o sincretismo sonoro com batidas do côco de roda, com samba
incorporando o pop ao rock. Em sintonia com essa batida, há ainda bandas que também
bebem na estética ―Mangue‖, tais como Cordel do Fogo Encantado e O Rappa.
Faixa 3: “Modernizar o passado”
Neste trabalho pretendemos utilizar duas perspectivas de música: a barroca e a
scienciana. Para que a digestão de nossas palavras e intenções seja bem sucedida,
buscaremos uma visão mais orgânica dessas artes, visto que esse trabalho tenta dialogar não
apenas com apanhado teórico entre as partes, mas vivenciar a musicalidade, a
―performance‖, o palco, os tambores, as batidas de alfaias, o maracatu, o rock, o popular e
a oralidade em comunhão com o legado do rítmico africano.
Em meio a essa miscelânea cultural, o movimento mangue traz em seu bojo
diálogos primordiais com a estética ―neobarroca‖ 5, pois tem como característica
fundamental a tensão geralmente provocada pelo jogo de oposição – mudança de tons no
compasso da música nordestina e brasileira que são, dentre muitos aspectos, o contraponto
sonoro, a libertação espacial, o resgate da polifonia de estilos.
Em relação à estética scienciana, o quadro sonoro reflete um estilo musical
afrociberdélico, que nasce na lama e vinga em mangue. Nessa perspectiva, a música
scienciana não constitui algo delimitado, regular; pelo contrário: ela é formada por uma
rede de elementos sincréticos culturais que estabelece uma unidade plural e orgânica. Dizia
Marcelo D2 que Chico Science é um arquiteto da música brasileira. Um exemplo disso
5
Entendemos que Neobarroco é uma transfiguração daquilo que se recolhe da estética musical Barroca.
Sabemos que, no início do século XVII, o estilo barroco foi consequência de mudanças filosóficas e
políticas que conduziram o pensamento renascentista, de base antropocêntrica, e o medievalista, de base
teocêntrica. O barroco vem como uma espécie de mistura entre essas duas bases teocêntrica e
antropocêntrica, provocada pela reforma da Igreja Católica. É na arquitetura que o Barroco toma mais
força, buscando maior liberdade espacial proveniente do excesso de ornamentos. Tendo também bastante
destaque, mas não tanto quanto a arquitetura, a pintura barroca explora a iluminação, o movimento, a
geometria das formas. No Brasil, esse estilo acaba por ser explorado, por volta do século XVII e XVIII,
na literatura por Gregório de Matos e Padre Antônio Vieira; na escultura, pelo Aleijadinho. Além de
demorar a surgir as marcas do barroco no Brasil, nesse período essa estética não ganha muita força, por
questões políticas e econômicas.
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pode ser observado na música Rios, Pontes e Overdrives, do CD Da lama ao caos, em que
observamos batidas de alfaias afro-brasileiras em tom de música sampleada, mistura de
batidas de tambor e pandeiros numa levada da música pop seguindo o ritmo do rap.
Enfim, uma ―impressionante escultura de lama‖ formada pela (de)composição de
uma série de elementos que valorizam a miscigenação de cores sonoras, trazendo uma
carga de ondas multiculturais. Dessa forma, para que essa cena seja constituída, Chico
Science anuncia seu trabalho ao som de um batuque híbrido, levando uma mensagem que
se projeta pela sugestão de uma ―brincadeira levada a sério‖. Há também na mensagem
sonora do Science uma espécie de ecocrítica, que contesta por meio da preservação da
diversidade ambiental. A música do mangue é quase um grito ecológico, em que pode
somar as culturas mais tradicionais com a contemporaneidade globalizada.
Faixa 4: A teor(g)ia musical
Basicamente, a música pode ser segmentada em três partes: melodia, harmonia e ritmo.
Na melodia, realizam-se notas em sequências isoladas, ou seja, nota por nota –
assim como é a fala, palavra por palavra. Uma pessoa não emite duas palavras ao mesmo
tempo. As notas, assim como as palavras, são lidas seguindo uma sequência específica, da
esquerda para a direita, e uma ordem pré-estabelecida, uma por uma. Ou seja, uma linha
melódico-textual é formada com a linguagem verbal, seja ela oral ou escrita.
Assim como se decifram as palavras em uma sequência da esquerda para direita, a
leitura das notas musicais em uma partitura também segue a mesma composição, como se
pode observar no exemplo abaixo citado. Como instrumentos melódicos, têm-se o
berimbau, a flauta. A voz humana pode servir também de exemplo.
No caso da harmonia, as notas são executadas simultaneamente, ou seja, em
acordes. Exemplos de instrumentos harmônicos são: korá, piano, violão, acordeom, etc. Na
partitura, as notas tocadas ao mesmo tempo são representadas da seguinte forma:
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Compondo a última parte, o ritmo, de maneira geral, é o tempo que cada figura
possui. Em cada uma delas há uma espécie de duração do tempo da nota e da pausa.
Temos como exemplo de instrumentos que não executam notas a percussão, que por sua
vez se destacam mais pela variedade de timbres.
O ritmo pode ser também marcado por meio de palavras, como em poemas,
emboladas, rap‘s, etc. A partitura, de modo geral, pode ser expressa como nos exemplos
acima, já que ela tende a se moldar um pouco nas peculiaridades de cada instrumento.
Assim, vão se acrescentando a essas formas iniciais eventuais caracteres que a composição
possa necessitar.
Na linha da composição, língua e música fazem parte da linguagem. Há, porém,
uma distinção entre elas na medida em que a música não produz um significado
―concreto‖. Esse foi um dos grandes motivos que fez compositores românticos, como
Beethoven, explorarem a tênue ‗fronteira‘ entre música e poesia – ainda que se considere
não haver fronteiras entre as artes e, sim, perspectivas da ‗realidade‘.
Faixa 5: Palavras, Sons, Silêncio e Bachelard
A relação entre a palavra e o som é secreta. Guarda um quarto do homem nela; o
resto é compartilhado pelas não-palavras. Talvez por isso seja um prazer, para quem tenta
desvendá-la, encontrar no quarto, seja o que for o objeto encontrado: uma cama ou a
própria fração de si. A palavra é também silêncio, o que torna difícil, às vezes, escutá-la.
Imagine-se diante de uma orquestra em que cada palavra é um instrumento e cada
instrumento tem sua acústica interna, bem como toda palavra tem sua acústica de
semântica. Logo, um texto é toda uma orquestra semântica, cuja linha melódica são as
frases lidas. Ler um parágrafo é tocá-lo. Contudo, às vezes, o que há de mais importante
são as pausas da melodia; são as entre-linhas; são as coisas que não são ditas/tocadas.
Assim é também a voz humana: quando se canta, o corpo se comporta tal qual uma caixa
acústica. Dar palavra a voz é corporificar a nós.
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Faixa 6: Música Barroca
Para contextualizar melhor o período da música barroca, apresentaremos nessa
faixa-capítulo uma breve retrospectiva desse período musical. Nessa faixa, evitaremos o
excesso de informação sobre esse período da música, apresentando somente alguns pontos,
que servirão para ilustrar, como já dito, ou que serão retomados e mesclados nesse artigo.
A música barroca foi legitimada durante o século XVII e permaneceu até metade
do século XVIII, tendo como marco de seu fim a morte de J. S. Bach. É nesse período da
música que surge a formação orquestral se contraponto à do Renascimento, a qual era
constituída por músicos dispostos quase que aleatoriamente, às vezes indo de acordo com
os instrumentos disponíveis. O violino ganha mais espaço e são mais aperfeiçoados. São
consolidadas as formas de composição: Ópera, suítes, aberturas, fugas, concerto grosso,
concerto solo etc.
A forma barroca de composição se caracteriza pelos contrapontos, utilizados
excessivamente. O contraponto diz respeito à entradas na melodia em tempos distintos;
após a primeira, a segunda entra no tempo mais fraco, ou seja, com atraso,
proporcionando, assim, uma espécie de eco de vozes. As composições barrocas são
bastante salteadas. Os saltos são consequências da alternância de intervalos6 distantes.
O sentimento musical encobre o sentido das palavras ao chegar a determinados
momentos da música vocal de forma incompreensiva. Um exemplo dessa incompreensão
está na Bachiana brasileira nº 5, que o compositor Villa-Lobos fez para homenagear o
compositor barroco J.S. Bach, com letra póstuma de Manuel Bandeira.
A relação entre música vocal e instrumental é igualada no que diz respeito a
preocupação do compositor, já que no Renascimento a música instrumental foi tratada
mais como um elemento secundário da música vocal. Isso pode ser observado com a maior
ornamentação tanto na música instrumental como vocal, exigindo mais técnica do músico
executante.
Faixa 7: Hibridismo musical
A estética scienciana é (de)composta a partir da miscigenação de estilos musicais e
culturais, constituindo um quadro sonoro multicolorido, em que predomina essa libertação
6
Intervalo é a distância entre uma nota e outra, tendo como base a escala de dó maior (dó, re, mi, fá, sol,
lá, si, dó). Exemplo: A distância da nota dó até a nota sol é caracterizada por um intervalo de quinta justa
(5ªJ).
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de perspectivas, prezando pelo hibridismo musical e cultural. Nessa estética não há espaço
para unidade; o que se observa é uma rede rizomática conecta. O objeto artístico, nessa
perspectiva estética, adota um caráter ambíguo pela oposição simples/complexo. A palavra,
na cena do Mangue beat, é movência, é lama, é caranguejo. E o grafite sobre essa lama,
sobre esse caranguejo tem um pouco de parede. Poesia do mangue é música que liberta o
oprimido da opressão.
Arquitetos da música brasileira, Chico Science & Nação Zumbi, constroem a
―impressionante escultura de lama‖. Mangue beat, mangue bit, batida elétrica, tambor
eletrônico, hip hop da lama. Poema do devir, da miscigenação de cores e de sons. Estética
dos trovões, estética híbrida do devir. Um exemplo desse devir está no CD Afrociberdelia,
onde temos três versões diferentes para a música Maracatu Atômico: a Atomic version, a Ragga
mix e a Trip hop.
Sem negar ou supervaloriza o passado, o presente ou o futuro, o hibridismo sonoro
da estética mangue deriva da incorporação de várias culturas afro-descendente, atingido o
legado da antropofagia que vai além do nível sonoro. Esse hibridismo chega a níveis
culturais, sociais, políticos, antropológicos, econômicos, onde as relações rizomática
estabelecidas ganham o cunho da canção movida a partir do olhar das minorias. A estética
scienciana combina com uma perspectiva de mundo mais holística voltada, por sua vez,
para uma teia ampla de relações homem/ sociedade/ meio ambiente.
A relação rizomática pertencente a essa estética engloba outros valores, pois pode
ser comparada ao hiperlink das páginas da internet, cuja função é a conexão de uma palavra
com outro site, geralmente conectado com o significado do hiperlink que direcionou outra
palavra conectada a outro texto e assim por diante. Seguindo numa relação interminável em
cadeia, sem se prender a um assunto específico. Dessa forma, a relação de um hiperlink
estabelece uma rede de conexões em que não se sabe onde começa e terminam essas
relações. O rizoma, nesse sentido, é a forma como os constituintes dessa estética se
relacionam; espécie de miscigenação entre culturas distintas, sem enaltecimentos ou
desprezar outros valores. Pensando assim, a base da estética scienciana tem como uma das
características principais a diversidade, multiculturalismo, o hibridismo.
Faixa 8: Algumas canções (“Você samba de que lado/ de que lado você samba”)
A música caminha de lado aos nossos ouvidos e segue o samba do homemcaranguejo Chico Science: Você samba de que lado? Clássico ou popular? Rio ou mar?
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Caranguejo ou camarão? Aqui no terreno do Mangue beat os opostos se (de)compõem
para formar um todo híbrido. Nossas palavras são caranguejinhos andando de lado ao
movimento do olhar do leitor. Relembramos as palavras de Josué de Castro:
A lama misturada com urina, escremento e outros resíduos que a maré traz,
quando ainda não é caranguejo vai ser. O caranguejo nasce nela, vive dela,
cresce comendo lama, engordando com as porcarias dela, fabricando com a
lama a carninha branca de suas patas e a geléia esverdeada de suas vísceras
pegajosas. Por outro lado, o povo daí vive de pegar caranguejo, chupar-lhe
as patas, comer e lamber os seus cascos até que fiquem limpos como um
copo e com sua carne feita de filhos. São duzentos mil indivíduos, duzentos
mil cidadãos feitos de carne de caranguejos. O que o organismo rejeita volta
como detrito para a lama do mangue para virar caranguejo outra vez.
(CASTRO, Josué de. 1967; p. 28-29)
Caranguejos são palafitas enfiadas na lama; seus habitantes, os homens-caranguejos,
moram dentro desse oco, fundido entre lama-homem-caranguejo. Podemos nos referir,
dessa forma, a uma espécie de antropofagia scienciana incorporando ritmos de culturas
diversas a estética mangue.
Seguindo essa linha melódico-textual do samba do lado, assimilamos em nossa
perspectiva do Mangue beat algumas características em um víeis ideológico. A seguir
apresentaremos de modo didático algumas das canções do CSNZ numa perspectiva
neobarroca.
Levando-se em conta o pensar de Reginaldo Braga, O ―samba de que lado‖ ganha
uma leitura voltada para ―as diferentes matrizes culturais africanas‖ encontradas no Brasil,
ou seja, leituras amparadas na mitologia dos cultos afro-brasileiros. Como exemplo de que
―lados‖ você samba, temos o Jêje, do atual Benin, o Oió, dos povos Iorubá e a Cabinda e o
Moçambique, do Bantos, esses são alguns dos exemplos de ―lados‖ presentes no Brasil
(BRAGA, 1998, p. 40).
Retomando a música referida no início desse artigo, Monólogo ao pé do ouvido,
observa-se que a linha melódica e rítmica dessa música é quase inexistente, lembrando os
recitativos dos griots em que tínhamos uma rítmica que quase chega ao nível da fala. No
caso da música scienciana, podemos perceber que os dois tipos de recitativos são
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incorporados, de maneira que se pode reparar em alguns casos específicos, como no final
da música Corpo de lama, onde percebemos apenas a música eletrônica acompanhando
enquanto a letra a seguir vai sendo recitada:
Deixar que os fatos sejam fatos naturalmente, sem que sejam forjados para
acontecer/ deixar que os olhos vejam pequenos detalhes lentamente/ deixar
que as coisas que lhe circundam estejam sempre inertes/ como móveis
inofensivos/ para lhe servir quando for preciso/ e nunca lhe causar danos
morais, físicos ou psicológicos.
Na música Rios, pontes e overdrives: Porque no rio tem pato comendo lama? [3x]/ Rios, pontos
e overdrives – impressionantes esculturas de lama/ mangue [5x] [...] a entrada ―orquestral‖ se dá
numa espécie de eco de contraponto, que começa após uma entrada de música sampleada,
em seguida entra um som que lembra um pato e/ou uma sirene. Esse efeito de eco
provocado pelo contraponto pode ser observado na música Coco Dub, do CD Da lama ao
caos, em que foi utilizado um pedal que muda o som da guitarra, o daley, causando também
um efeito de lentidão sonora e de eco.
Não esqueçamos de que essas pequenas comparações foram apresentadas a título
de ilustração. Não queremos aqui fazer uma comparação forçada, visto que o mangue beat,
como movimento e como estética, se contrapõe a uma visão (neo)barroca. Essas
abordagens, a barroca contemporânea ou neobarroca e a scienciana, distingue-se uma da
outro no que diz respeito ao foco. A estética mangue difere da neobarroca, pelo fato
daquela estar voltada para o olhar do menor homem do mundo, nas relações entre o
discurso dos poderes estabelecidos sobre as minorias, prezando pela diversidade cultural.
Faixa última 9: Caranguejo samba de que lado?
O Mangue beat constitui um terreno de ―caos criativo‖ (LIRA, Paula de
Vasconcelos; 2000, p.14), onde a rede de ligações entre os aparentes opostos rio/ mar;
clássico/ popular; cidade/ mangue/ homem, são (de)compostas como rizoma. Observar
uma parte sem antes ter compreensão do todo é a mesma coisa que buscar saber de que
lado samba o caranguejo, quando ele não sabe sambar. Logo, buscar determinar um ―lado‖
para a última faixa sonora do Mangue beat resta perguntar ao público que aqui está: de que
lado você samba, você samba de que lado?
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Como podemos dilatar a consciência para compreensão mais politizada do mundo
é assim que funciona o mundo pensando o social, o cultural, o econômico, o eco-lógico.
Uma parte do sistema não funciona isoladamente, sem que seja criado outro sistema
autônomo e crítico. Observar e analisar um objeto sem antes a compreensão previa do
todo, constitui-se numa análise infértil. Uma planta não pode ser estudada observando-a
longe de seu meio e das suas relações com ele.
Dessa forma, a escolha dessa linha-melódico-textual entre estética barroca e
Mangue beat, tem como intenção trazer aos possíveis leitores/ouvintes uma relação
politizada de mundo, aliada a uma visão sócio-ambiental de pensar as artes e,
consequentemente, as relações com a diversidade social e não com uma unidade cada vez
mais específica. ―Somos todos juntos uma miscigenação, não podemos fugir de nossa
etnia‖.
REFERÊNCIAS
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôes – Capitalismo e Esquizofrenia. SP: 34,
2003.
VARGAS, Herom. Hibridismos Musicais de Chico Science & Nação Zumbi. SP: Ateliê, 2007.
CASTRO, Josué de. Homens e Caranguejos. SP: Editora Brasiliense, 1967.
LIRA, Paula de Vasconcelos. Uma antena parabólica enfiada na lama: Ensaio de diálogo complexo
com o imaginário do Manguebit. Recife (PE), 2000 Dissertação (Mestrado em Antropologia),
Universidade Federal de Pernambuco.
ZUMTHOR, Paul. Escritura e Nomadismo; tradução Jerusa Pires Ferreira, Sonia Queiroz. SP:
Ateliê Editorial, 2005.
MOISÉS, Neto. Chico Science: a rapsódia afrociberdélica. Recife: Comunicarte, 2000.
BENNETT, Roy. Uma breve história da música. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.
CHEDIAK, Almir. Harmonia & Improvisação I. Rio de Janeiro: Lumiar, 1986.
SCHAFER, R. Murray. O ouvido pensante. Tradução: Marisa Trenc de O. Fonterrada, Magda
R. Gomes da Silva, Maria Lúcia Pascoal. SP: Fundação Editora da UNESP, 1991.
CHICO SCIENCE & NAÇÃO ZUMBI. Da lama ao caos. Rio de Janeiro: Chaos, 1994.
Compact Disc. Digital Áudio, 1 CD. Resmaterizado em Digital.
______. Afrociberdelia. Rio de Janeiro: Chaos, 1996. Compact Disc. Digital Áudio, 1
CD. Resmaterizado em Digital.
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BARROS, Manoel de. Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010
LIMA, Tânia. A linguagem dos caranguejos. Disponível em:
http://encontrosdevista.com.br/Artigos/A_LINGUAGEM_DOS_CARANGUEJOS.pdf
Acessado: 10/10/2010, às 9:50.
FARACO, Carlos Emílio; MOURA, Francisco Marto. Literatura Brasileira. SP: Ática, 2000.
BRAGA, Reginaldo Gil. Batuque jêje-ijexá em Porto Alegre – A Música no Culto aos Orixás.
Porto Alegre: Fumproarte, 1998.
ADORNO, Theodor W. Fetichismo na música e a regressão da audição. In:______. Textos
escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1975.
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3.
A MÚSICA DAS PEDRAS OU O DEVANEIO DAS OSTRAS: EM
FRANCIS PONGE, JOÃO CABRAL E MARCELO D2
Tânia-Lima
(Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN)1
RESUMO
A Travessia da palavra em Francis Ponge, João Cabral e Marcelo D 2 exige vinte palavras,
quase nenhum ranhura, alguns silêncios desprovidos de nomes. Todo verso é ―rizoma‖ de
outros verbos. Cada sílaba vem no ritmo das conchas. Se há poema tem voz. Toda música
é um experimento de linguagem / instrumento. Um poema de Francis Ponge decanta a
menor das frases para falar da musicalidade de um simples moluscos. Se olharmos bem: o
mínimo ganha a amplitude da exatidão geométrica em João Cabral. Em Marcelo D 2, a
música é semicolcheia, fenda de uma elipse em movimento onde a clave de sol toca em
tom eclipse. A primeira impressão que fica ao se atravessar esses 3 poetas é encontrar
―arranjos para assobios‖ frente a uma orquestra chamada invenção. Falar de João Cabral é
compor a ―fala‖ pela movência de um idioma lama que escuta as vozes do rio para dedilhar
o repente. Transfigurador de novas intenções para o poema, Francis Ponge requisita o
ordinário e o inútil como material imprescindível de uma poesia que se movimenta pelo
dom das coisas mínimas e neobarrocas. Em Marcelo D2, a partitura do rap alcança formas
rítmicas híbridas das performances experimentais. Entre o ludo e o lodo, esses poetas
jogam com o verbo até encontrar nos desvios semânticos os erros maduros de uma estética
absurda. O que interessa para os artistas inventores não é tanto a saúde da frase, mas a
doença dela. O erro ―agramático‖ é pérola no mundo da arte barroca. E se o artista é o
que nomeia sentido para a existência de um verso, a música dodecafônica de um poema
viaja no ―entre-espaço‖ do lúdico e do lúcido. Para se ―entranhar‖ melhor esses achados
poéticos, degustaremos a obra teórica de Maurice Blanchot e Albert Camus, E. Glissant,
Gaston Bachelard.
Palavras-chave: música, conchas, barroco, imaginário, Marcelo D2.
1
Gosta de ―con-versar com prosa‖.
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Aquele rio
era como um cão sem plumas.
Não sabia da chuva azul,
da fonte cor-de-rosa,
da água do copo de água,
da água de cântaro,
dos peixes de água
da brisa na água
Sabia dos caranguejos
de lodo e ferrugem.
Sabia da lama
como de uma mucosa.
Devia saber dos polvos.
Sabia seguramente
da mulher febril que habita as ostras.
Aquele rio
jamais se abre aos peixes,
ao brilho,
à inquietação de faca
que há nos peixes.
Jamais se abre em peixes.
[MELO NETO, 1994:105-106].
A imagem cabralina é contra tudo o que se instaura como grandiosamente
espetacular. Em sua figuração, existe uma superação da própria sensibilidade ―na torta
visão de uma alma/ no pleno estertor de criar‖ [MELO NETO, 1994, p. 411]. A
comunicação defendida por esse poeta não retira da palavra o poder de sacudir o leitor
adormecido. Vejamos que João Cabral diz muito com um mínimo de palavra possível. A
economia de léxico, sem abusar da tapeação, faz o leitor reconhecer: ―não a forma
encontrada/ como uma concha, perdida/ nos frouxos areais/ como cabelos‖ [MELO
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NETO, 1994, p. 95], mas também os recortes de um molusco a acenar para o poema em
seu cotidiano irreparável.
Símbolo de silêncio e retiro, o molusco é um ser - quase uma - qualidade, pegando aqui
o bivalve de Francis de Ponge [2000, p. 83]: ―dotado de uma energia possante para se
fechar‖. É chave para fechar portas, mas também é morada do imaginário do mangue.
Verdadeiro santuário do mangue, o molusco habita a tranqüilidade da lama. Para quem
aprecia o refúgio, a prisão, a solidão, o ensimesmar-se na sabedoria, eis a representação fiel
de um monastério: torna-se concha. A ostra sozinha vive encurralando-se: ―Dia de sol/
sem sobra de dúvida/ só o caracol‖, como destaca um verso de Alice Ruiz [2001, p. 88].
Ao viver embrulhado em linha espiralada, o caracol vem pintado de sal. Parece
independente do restante do mundo. Camuflado em pedras, lembra pequeninas estátuas
marinhas. Mas vendo-a atentamente, a fragilidade toma conta de um mundo em grau de
abandono aparente. Cada forma de concha carrega uma geometria específica. O tempo
eterniza-se na sólida lentidão como um leve fragmento espiralado. ―Caramujos sempre
chegam depois. / Representa que estão chegando / da eternidade‖ [BARROS, 2001, p.53].
Os moluscos, de forma fenomenal, constroem suas conchas seguindo as lições de
uma vida transcendente. ―Aliás, para uma concha viva, quantas conchas mortas! Para uma
concha habitada, quantas conchas vazias‖ [BACHELARD, 1974, p.425]. A humanidade
inteira dorme ao descanso de uma concha iluminada pelo sono profundo. Uma só concha
simboliza introspecção e mutação: ―O padre jesuíta Kircher afirma que, nas costas da
Sicília, as conchas de peixe, que se reduziram a pó, renascem e se reproduzem se regarmos
com água salgada esse pó‖ [BACHELARD, 1974, p.430]. O pó conhece a ressurreição a
partir do mar íntimo, a concha se deixa reduzir ao calcário de sal. No úmido salitre das
encostas do mangue, a lesma retorna à forma espiralada de viver num caracol. As conchas
resguardam-se como uma caixinha de segredos. ―Tudo é dialética no ser que sai de uma
concha‖ [BACHELARD 1974, p.426]. Na arqueologia do imaginário, o caracol causa certa
surpresa, pois nunca sabemos se irão sair ou não lá de dentro. Na maioria das vezes,
quando saem do casulo, não aparecem por inteiro, contradizem o que fica guardado na
crosta de calcário. As ostras são peixes que guardam as pedras. As conchas são pedras que
andam. ―Enxuta, a concha guarda o mar/ No seu estojo‖ [HOLANDA, 2000]. O que vem
é metade corpo, metade pedra, o rosto híbrido fica preservado no manguezal. ―De fato, o
ser que sai de suas conchas nos sugere devaneios do ser misto. Não é somente o ser ‗meio
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carne, meio peixe‘. É o ser meio morto, meio vivo e, nos grandes excessos, meio pedra,
meio homem‖ [ibidem].
Vejamos então este poema de Ponge [2000, p.83]:
‗O Molusco‘
O molusco é um ser – quase uma – qualidade. Ele não necessita de vigamento,
mas de um anteparo apenas; algo como a cor no tubo.
Aqui a natureza renuncia à apresentação do plasma em toda a sua forma.
Mostra apenas que lhe está apegada, abrigando-o cuidadosamente num
escrínio cuja face interior é a mais bela.
Não é, pois, um simples escarro, mas uma realidade das mais preciosas.
O molusco é dotado de uma energia possante para se fechar. A bem dizer,
não é mais que um músculo, um gonzo, uma mola e sua porta.
A mola tendo secretado a porta. Duas portas ligeiramente côncavas
constituem toda a sua morada.
Primeira e última morada. Reside ali até depois de sua morte.
Nada se pode fazer para retirá-lo dali vivo.
A menor célula do corpo do homem se apega assim, e com essa força, à
palavra, - e reciprocamente.
Mas, às vezes, um outro ser vem violar essa tumba, quando está bem-feita, e
nela se fixar no lugar do construtor defunto.
É o caso do paguro.
O que encontramos dessas imagens rústicas é um jogo de analogias estranhas,
obscuras de sentidos. Imagens avessas, desconhecidas, desfiguradas, mas muito próxima da
humanidade: ―A menor célula do corpo do homem se apega assim, e com essa força, à
palavra, - e reciprocamente‖. Poderíamos dizer que, interiormente, o ser humano é um ser
acumulável de conchas. Clarice Lispector [1998, p. 29; grifo nosso], no livro ‗Água viva‘, ao
descrever o instante-já, indaga: ―Como é que a ostra nua respira?‖.
João Cabral [1994:77] indaga algo parecido: ―Como um ser vivo/ pode brotar de um
chão mineral?‖ A ostra respira por pequenos filamentos que recebem a água e o oxigênio.
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Em Água viva, a ostra respira pela metamorfose da frase. Uma simples frase respira várias
histórias sobre ostras.7 Numa série de causos populares ora referenciando, ora sugerindo,
os moluscos retiram o véu de pedra e mostram seus corpos misteriosos. Na moral da
história, a natureza se diverte em desdizer a façanha da fábula. A história sobre moluscos se
recria a partir da exceção, dos devaneios, dos desvios, do imaginário. E se acrescentarmos
novos olhares sobre alguns costumes antigos vê-se que o lado noturno do mangue
confunde-se à substância líquida e endurecida das ostras. ―Um biólogo escreve: o caracol se
retrai dissimuladamente em seu quiosque como uma menina contrariada vai chorar no seu
quarto‖ [BACHELARD, 1974, p.434]. Quanto mais se observa o bivalve mais se percebe
que ―foi rolando sobre si mesmo que o caracol fabricou sua própria escada?‖ [ibidem].
Quantas marisqueiras distraem-se fazendo cócegas em um caramujo a fim de levá-lo a
deixar o esconderijo.
Se a ―natureza renuncia à apresentação do plasma em toda sua forma‖, como diz
Francis Ponge, sabemos que, como fósseis, as ostras são testemunhas da natureza, pois
oferecem diferentes formas para simbolizar as partes do corpo da mulher. A garça que
pousa para o mangue simboliza o quanto a lama é delicada. ―Que sendo vista por quem/
conhece o mangue, o confunda/ com as garças que o mangue tem‖ [ACCIOLY, 1983,
p.5]. A nudez da garça é consentida pela alvura. Contudo a cor branca das garças dentro da
lama de pele negra é de uma brancura ostensiva. O branco da garça é calcário; o ‗branco‘
das ostras é um labirinto com esconderijo indiscreto. A nudez das garças remete às
pequenas bacias recheadas de conchas. O mangue é sensual. No poema ‗O mercado a que
os rios‘, descreve a morna cama ou ―até a outra, a empantanada, / do mangue, sensual e
mestiça, / que corrompe o rio na morna/ cama de mulheres-da-vida‖ [MELO NETO,
1994, p.453; grifo nosso].
As formas das conchas se fazem geometricamente inacabadas para forjar o restante
das imagens anfíbias. ―Robinet faz uma descrição da concha Bivalve de Vênus que
representa a vulva de uma mulher‖ [BACHELARD, 1974, p.430]. Na história da
7
Leonardo Da Vinci, na fábula ‗A Ostra e o Caranguejo‘, descreve: ―Uma ostra estava apaixonada pela
Lua. Sempre que a Lua cheia brilhava no céu, ela passava horas olhando-a boquiaberta. Um caranguejo
viu, de seu posto de observação, que durante a Lua-cheia a ostra ficava completamente aberta, e decidiu
comê-la. Na noite seguinte, quando a ostra se abriu, o caranguejo colocou um Pedregulho dentro da
concha. A ostra, imediatamente, tentou fechar-se, porém o pedregulho impediu-a. Isso acontece a
qualquer pessoa que abra a boca para contar seus segredos. Há sempre um que se põe à mercê do ouvinte
indiscreto‖ [http: //www. Institutohypnos.org.br/artigos/ostra.html].
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humanidade, as ostras simbolizam espaços de sensualidade, eroticidades. ―A própria ostra é
identificada
como
um
dos
mais
poderosos
estimulantes
do
desejo
sexual‖
[CAVALCANTE, 2004, p.97]. Mas como copula uma cocha se mora tão sozinha? A pedra
é a parceira do molusco. Na teia voluta, a fêmea devora o macho depois que copula.
Devora a si mesmo. As ostras são as protagonistas de todos os jantares eróticos registrados
na literatura ou no cinema, pegando aqui uma imagem de Isabela Allende.
O ostracismo de um molusco engravida a si mesmo? As conchas têm a forma de
um coração. Como gerar o anonimato de um mundo dentro do muro de pedra, se ―brejos
amanhecem/ amarrados/ de conchas‖ [BARROS, 2001, p.52]. Na pintura renascentista,
com linhas ondulantes, Botticelli [1444-1510] retrata uma concha no quadro ‗Nascimento
de Vênus‘. Talvez a própria ―Afrodite saia de uma concha redonda‖ [BACHELARD, 1974,
p.426]. É possível que os homens dos mangues tenham construído suas moradas imitando
o interior dos moluscos. A geometria das conchas enclausura o corpo para purificar a
morada pétrea. ―Dentro dos caramujos/ há silêncios/ remontados‖, pegando aqui
novamente a fala de Manoel de Barros [2001, p.57].
As formas dos moluscos são tão numerosas que a partir do exame do universo das
conchas, a imaginação é vencida pela imensidão ou pela realidade. As conchas são curvas e
elípticas como as silhuetas espiraladas das mulheres dos mangues. Retêm as conchas uma
infinidade de volutas, dobras, cores e sabores. A concha cauri, também conhecida como
cauril ou caurim, predominante no oceano Índico e Pacífico foi no passado bastante utilizada
como moeda na África e na Ásia.
No ferrolho das conchas, os moluscos estão sempre em casa de mangue seja qual for
os lugares para onde o mar carregue. A casa da concha é extensão da morada do corpo.
―Em outras palavras, a concha do caracol, a casa que cresce na mesma medida de seu
hóspede, é maravilha do universo‖ [BACHELARD, 1974, p. 432]. A casa dos homens é
abrigo para a morada do universo. Ambas as casas fazem parte do corpo do mundo. A
solidão da concha é metáfora da solidão do homem.
Geralmente, os moluscos lançam os corpos babosos para frente, levando o endereço
postal sobre si mesmos. Mas nos rendemos ao lado eremita de Francis Ponge: ―Ele não
necessita de vigamento, mas de um anteparo apenas; algo como a cor no tubo‖. É certo
que alguns moluscos relembram um cone de pedregulhos. Na linha de um poema
pongeano: ―Nada se pode fazer para retirá-lo dali vivo‖. Na pintura que o mar faz do
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mangue há ―um conjunto de oito conchas que parecem um ramo de tulipa‖
[BACHELARD, p. 433].
Das raízes, sobram dos mangues as ostras que constroem seus monturos de pedra
nas sobras de limbo e sal: ―a concha que é resto / de dia de seu dia: / exato, passará pelo
relógio/ como de uma faca a fio‖ [MELO NETO, 1994, p. 89]. O tamanho dos moluscos
é medido pelo relógio do dia. O resto do ser vivo habita a lâmina de pedra que é a caixa das
conchas. A imagem da beleza de uma concha remodela a fôrma geométrica e se imiscui à
da forma elíptica ―de uma faca a fio‖.
No dia aberto, o branco das conchas guarda o sol e os fios de sal que se soltam do
mar. A concha guarda o tempo da eternidade. O trigo vira corpo de pedra. A flor vira petra.
Como bem observa João Cabral [1994, p.95] a concha é: ―a forma atingida/ como a ponta
do novelo/ que a atenção, lenta, / desenrola‖ [MELO NETO, 1994, p.95]. A união do
corpo mole com a crosta dura faz da casa de ostras um cofre, uma janela aberta ou como
diz Ponge: ―A bem dizer, não é mais que um músculo, um gonzo, uma mola e sua porta. A
mola tendo secretado a porta. Duas portas ligeiramente côncavas constituem toda a sua
morada‖.
Mas em Cabral [1994, p.88] a concha não se desembrulha: ―Ali é uma terra branca/ e
ávida/ como a cal‖. A concha, no mangue, é a casa do sal. ―Sua mudez está assegurada/ se
a flauta seca/ será de mudo cimento/ não será búzio‖ [MELO NETO, 1994,p.89]. ‗A
pedra do sono‘ de porta entreaberta lembra ―uma panela de bruxa‖, como destaca
Bachelard. Muitas conchas são usadas de forma mística. Na ampliação da imagem: uma
concha sugere as grandes pias de batismo; misticamente, resgata o devaneio espiritual nos
jogos de búzios, tarôs e cartomantes. Uma concha emborcada ou convexa é um elemento
carregado de mistério. Há toda uma simbologia para quem joga o poder dos búzios em
sintonia com os astros. Somente na solidão de uma concha atingimos o ensimesmamento.
A palavra ensimesmar, segundo Ortega y Gasset, representa, a princípio, o grau de
sabedoria através da clausura. Um ser ensimesmado leva, na geografia dos povos antigos, a
sabedoria do autoconhecer. A forma de sair de dentro é um desafio de mínimos cuidados
para um sábio molusco. Sair exige o enfrentar o perigo. O mesmo tartarus que envolve o
casco da tartaruga é o que protege as conchas dos raios furiosos. A penumbra da concha é
uma forma de acampar a solidão de um ser em condição de exílio. Até a sombra de uma
concha ou de uma árvore é símbolo de habitação. O lado penumbra das ostras traz ao
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mangue um estado de ostracismo e comunhão. O movimento é sempre em direção ao que
sai de sua carapaça em direção de outros mundos. O ser que habita uma concha muda seu
mundo para acolher o que está dentro. O que está do lado de fora não é mundo, mas
abismo.
A concha curva, geométrica, é casa arquitetada, caverna assombrada. Um mundo
complexo de imagens que retrata o universo estranho dos manguezais. Sem abusar das
metáforas científicas, Ponge não se intimida, estende-se e renova estranhamentos ―Não é
pois um simples escarro, mas uma realidade das mais preciosas‖. Quando o molusco
fenece, o paguro [caranguejo do mar] costuma se fixar na concha moribunda. Francis
Ponge descreve: ―às vezes, um outro ser vem violar essa tumba, quando está bem-feita, e
nela se fixar no lugar do construtor defunto‖. A concha morta torna-se casa vazia habitada
pelo abandono. ―Primeira e última morada. Reside ali depois de sua morte‖. A imagem de
uma concha desocupada religa-se ao ―bernardo-eremita que deixa entrever sua pinça
monstruosa na embocadura do búzio soberbo que o alberga‖ [PONGE, 2000, p.127] no
livro ‗Le parti pris des choses‘.8 Em ‗Notes pour un coquillage’
9
[anotações para uma
concha], Ponge [2000, p.125] pincela com nitidez: ―Uma concha é uma coisa pequena; mas
posso desmesurá-la, recolocando-a onde a encontro, pousada na vastidão da areia‖.
O bernado-eremita de que fala Ponge é um molusco que não faz sua concha; habita
as conchas abandonadas. Costuma trocar de concha quando sente vontade. O eremitabernardo é um divertido amante da brincadeira de esconde-esconde. Nômade pula de
concha em concha até viajar pelo mangue inteiro. O escritor Manoel de Barros, que é
contemporâneo de Francis Ponge e João Cabral, faz do eremita um sábio. No poema ‗O
Livro de Bernardo‘, do livro ‗Tratado geral das grandezas do ínfimo‘, o poeta encontra o
inexplicável: ―Dentro de mim/ eu me eremito/ como os padres do ermo// Meus
caminhos/ a garça / redime‖ [BARROS, 2001, p.51].
Bachelard [1974, p.437] compara bernado-eremita com as aves de arribação, as
espécies de ‗pássaro cuco‘ que, por não saber construir ninhos, põe seus ovos no ninho dos
outros. ―O cuco, dizem, quebra um ovinho no ninho aonde vai pôr o seu, depois de ver
fugir o passarinho que estava chocando. Se põem dois, quebram dois‖. O cuco não
8
―Quand le seigneur sort de sa demeure il fait certes moins d‘impression que lorsque le bernard-l‘hermite
laisse apercevoir sa monstrueuse pince à l‘embouchure du superbe cornet qui l‘héberge‖.
9
―Un coquillage est une petite chose, mais je peux la démesurer en la replaçant où je la trouve, posée sur
l‘étendue du sable.‖
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conhece a arte de fazer ninho.
Tudo isso nos traz uma reflexão do próprio Bachelard [1974, p.434]: ―Todas essas
imagens e reflexões correspondem a uma admiração pueril, superficial e dispersa; mas que
uma psicologia da imaginação deve anotar tudo. Os menores interesses preparam os
grandes‖. Com uma simples imagem, marisqueiras recriam suas ostras presas nas marés dos
mangues. Ao redor de uma simples paisagem, o poeta recria e abre caminhos. Marisqueiras
e poetas têm maneiras simples de nos surpreender: carregam suas conchas, vêem a natureza
como uma imensa rede de sonhos.
Bacherlard [1974, p. 424], em ‗A poética do espaço‘, analisa que as conchas são símbolos
tão precisos que os poetas que não sabem desenhar ficam, no ato de escrever, desprovidos
de imagens. Inquieto para registrar a sensualidade da mulher ―febril que habita as ostras‖,
João Cabral, ao falar sobre as ostras, aparece como se estivesse, em sua solidão de
indivíduo, reivindicando o corpo sensual da concha feminina. Na variedade das formas que
todo corpo em ostracismo retém, a natureza anuncia a mulher febril que habita as ostras
em uma gota de erotismo. O poeta mostra a concha pelo que ela tem febril na sensualidade
de uma espiral barroca.
Sabia dos caranguejos
de lodo e ferrugem.
Sabia da lama
como de uma mucosa.
Devia saber dos polvos.
Sabia seguramente
da mulher febril que habita as ostras.
O imaginário neobarroco cabralino está sempre em processo de movência com
outras culturas. Um bom exemplo é a precisão do traço neobarroco. ―A arte do contador
de histórias crioulo é feita de derivas e ao mesmo tempo de acumulações, com a presença
desse lado barroco da frase e do período, essas distorções do discurso onde o que é
inserido funciona como uma respiração natural, essa circularidade da narrativa e essa
incansável repetição do tema‖ [GLISSANT, 1994, p.53].
Quer dançar? quer dançar? então prepara
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A maldição bateu sambou nunca mais pára
E tá na cara a raiz tá cravada no chão
Do
tronco
ao
fruto
com
a
nave
mãe
fazendo
a
conexão
(MARCELO D 2)
Em ―Maldição do Samba‖, Marcelo D 2, dá vez à ruptura, quebra da estrutura pelo
que se absurda, pelo que amplia a ponte entre o oral e o escrito. Manifesta-se no discurso
os pequenos sobressaltos, em verdadeiro assalto estético. Troca-se o mangue pelo sangue.
Um tecido musical neobarroco desmedido não pelo sentir, mas pelo pensar que medita e
calcula o ritmo do poema canção. Essa desmedida da lírica vem na contramão da ambição
clássica que segundo Glissant [2005, p.111], é uma desmedida da medida metrificada. O
barroco é a arte do traço sincrético: ―Quando o barroco atravessou os oceanos e chegou à
América Latina, os anjos e as virgens tornaram-se negros, Jesus Cristo tornou-se um índio e
tudo isso rompeu o processo de legitimidade‖ [GLISSANT, 2005, p. 62]. Se a intenção
clássica é o legado da harmonia do corpo em sintonia com o recado trágico sobre a
complexa profundidade da natureza do ser humano, as artes barrocas são formas da
―extensão, da proliferação, da redundância e da repetição‖ [GLISSANT, 2005, p.112].
O grave racha o muro e o agudo quebra a vidraça
Na vida tudo passa não a nada que se faça
Mas rima após rima não é de graça
Show time agora sabe como é que é samba no pé
Samba samba no pé
A percussão é eletrônica a favela na internet
O coco é enlatado e a banana é com chiclete
A maldição do samba
( MARCELO D2)
Em D2, a luta não é pela ―contra-reforma‖; a crítica é pela reforma. Na transgressão
musical, o eixo da razão é o sujeito. No poema, o eixo da ação se dá sobre o objeto. A arte
do rap evoca a metamorfose do sujeito em sujeito e não em objeto. O poeta quer descobrir
as relações secretas entre os homens e as coisas. Se a intenção é o desequilíbrio da linha
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reta, a metáfora se volta para as linhas tortuosas, rechonchudas. Com uma estética irregular
e transgressora de normas, o poema vive das encruzilhadas, está na condição de entre das
vozes sincréticas.
Sobre o poder da criação força nenhuma no mundo interfere
E fabricado em série é o coringa do baralho
Resitência cultural casa do caralho
E passo a passo foi tomando conta de mim
É coisa fina dj com tamborim
(MARCELO D2).
A maldição da palavra é símbolo mais representativo da luta social. Seu baralho vem
de um mundo barroco, um contexto misto cujas denúncias ganham a coringa de um
baralho grotesco em movimento. No livro Boca do inferno, a escritora Miranda [2006, p.
33] descreve: ―Ser poeta é uma maldição de nossa língua‖.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Reconhecido por muitos como um texto difícil e hermético, o poeta neobarroco
requer uma disposição aberta do leitor para superar o estranho e entender ao texto. Não
buscar a escrita fácil serviu de refúgio para poetas como Góngora a Quevedo. Em nossos
dias, o neobarroco traz labirintos derrapantes nas dobras da contemporaneidade de
Lezama, Osman Lins, Vallejo, Cortázar, Astúrias. No livro ‗O século das luzes‘ [1985]
Carpentier aponta na forma espiral de seus textos personagens um tanto neobarrocos. O
cubano Estevão, a exemplo, observa meticulosamente a forma espiralada de um caracol:
―Contemplando um caracol – um só - Estevão pensava na presença da Espiral durante
milênios e milênios [...] Olha um caracol. Um só. Te deum‖.
No mosaico de linhas tortas, o céu neobarro expõe-se ao mundo através da aparência
das coisas em cores mestiças com figuras inesperadamente reais e fictícias como
observamos no búzio desigual, retorcido, de ―encrespadas Conchas mil se arreia‖ nas
Prosopopéias de Teixeira [1984, p. 84]. Também na tela-mundo feita de trapos imundos e de
santidades sujas em Caravaggio que, preferindo os personagens marginais, afirmava que as
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ruelas e os becos de gente desprezível são as fontes verdadeiras da arte.
Nas quadras João Cabral, o rio é um personagem pintado com cores das artes
plásticas. O menor detalhe faz diferença para tela crítica. Perder um verso é perder a tela
inteira. Não está à toa a presença de outros pintores na obra de João Cabral, como:
Joaquim Rego Monteiro, Ademir Menezes, Picasso. Algumas imagens são tão inconciliáveis
que a impressão que temos é que a poesia precisa mais de tintas que propriamente de
palavras: ―E que porém de um Mondrians/ num ponto se diferencia: / em que nela essa
vibração, / que era de longe impercebida, / pode abrir mão da cor acessa/ sem que um
Mondrians não vibra, / e vibrar com a textura em branco/ da pele ou da tela, sadia‖
[MELO NETO, 1994, p.295]. O poeta nos lembra um pintor neobarroco a fundir os ideais
medievos com os valores renascentistas. Um poeta que acredita acima tudo na visualidade
do poema. Nesse autor, os olhos não podem faltar para verdadeiramente enxergar; por
outro lado, necessita dos desenganos do ouvido para receber a tintura mestiça do mundo.
Se ―a elipse é barrocamente uma concha‖, como bem observa Affonso Romano de
Sant‘Anna [2000, p, 22-23], a concha, com sua arquitetura irregular, defeituosa, grotesca,
curvilínea, está na origem da palavra Barroca.10 Um tanto conceitual, Francis Ponge traz a
marca neobarroca, ao tratar dos objetos pela dobra, pela fenda, pela falta. Ponge utiliza
processos singularmente racionalizados. É uma arte que necessita das criações técnicas
geometricamente calculadas para alcançar a realidade humana e social sobre o qual enuncia
e denuncia. O poema pongeano sugere-nos uma elipse, carrega no traço uma ausência, uma
falta nos olhos. A elipse é solar e lembra-nos também a astronomia barroca de Kepler que
defendia o sistema solar em uma forma elíptica. Já em João Cabral, uma curva elíptica
acompanha a lama, o mangue, o rio sem plumas. No traço curvilíneo, há curvas elípticas
nas paginas do livro Paisagens com figuras [1955]: ―Podeis decifrar as vilas/ constelação
matemática, / que o sol vai acendendo/ por sobre o verde de mapa‖ [MELO NETO,
1994, p.154].
Curiosamente, a modernidade de Marcelo D2 é um exemplar de uma canção híbrida,
escrita pelo tom da miscelânea neobarroca. ―O Barroco retira o máximo partido,
10
Na época das grandes navegações, portugueses em comércio pela região da Índia
encontram uma cidade próxima aos manguezais chamada de BROAKTI onde se cultivava
um tipo de pérola deformada, feia, irregular. Os portugueses passaram a chamar a cidade
Baroquia. Com o passar do tempo, a cidade virou Barroca, reconhecida pelas suas pérolas
defeituosas. O barroco vem, portanto, dos mangues tortos.
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misturando o mitológico ao descritivo, o alegórico ao realista, o narrativo ao psicológico, o
guerreiro ao pastoral, o solene ao burlesco, o patético ao satírico, o ao idílico ao dramático,
sem falar da mestiçagem da linguagem‖ [COUTINHO, 1976, p. 80]. O tear D2 é montado
pelas quadras de uma fala oral-mestiça, popular-erudita. Como diz Zumthor [2005, p. 80]:
―a poesia oral é trazida pela voz, a voz exerce no meio humano uma função forte, mas não
idêntica em diferentes grupos sociais‖.
A voz do poema é sugestão concreta em uma série de quadras que seguem o
alinhamento das estrofes. Filosofando sobre a representação de um quadrado, os
platônicos pensavam sobre a ―materialização da idéia‖. Nessa forma de pensar: ―as figuras
geométricas são o que a filosofia chama de autênticas metáforas epistemológicas‖
[SANT‘ANNA, 2000, p. 25].
O quadrado representa os elementos concretos e materiais enquanto o círculo
representa mais a essência, o espírito. O quadrado é renascentista enquanto o círculo é
barroco. A figura em círculo é quieta, harmônica, mas o desenho ‗oval‘ é inquieto, tortuoso.
A natureza do poema cabralino nesse sentido é geometria, parece plana, mas é curva e
elíptica, prolixas como as xilogravuras do universo barroco.
O barroco prolixo
com todo os seus tiques,
e o reto, tão correto,
direto ao que insiste,
/são linguagens que rara
mente coexistem
Só as vi na Capela
Dourada do Recife.
[MELO NETO, 1994:394; grifo nosso]
Entre a quadra e a curva, o poema de forma lacunar segue também em círculo, com
repetições diferentes, num fluxo contínuo de imagens esféricas, como se observa no livro
‗Paisagens com figuras‘: ―Aqui o mar é uma montanha/ regular redonda e azul, / mais alta
que os arrecifes/ e os mangues rasos ao sul‖ [MELO NETO, 1994, p.147; grifo nosso].
Essa artimanha, de forma simples, serve mais para sugerir ou enfatizar a vida e suas aspirais
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em situação de queda, mas também em situação de revolta. Na antilírica moderna: ―A
geometria é subvertida e a curva sobressai ostensivamente, serpenteando, engolindo a
linha‖ [SANT‘ANNA, 2000, p.48]. A linguagem é exteriorizada pelo que falta ao redor da
vida re-tirana e o poeta busca incansavelmente subornar as curvas dos manguezais à
disciplina da quadra, das estrofes de quatro versos regulares.
Dentro da quadra da contradição, o poeta repensa valores arraigados. Para Édouard
Glissant [2005, p.62] toda vez que se fala em valores particulares como valores universais
ao mundo é porque se acredita ter alcançado uma profundidade. No barroco, não há
valores universais, porque ―todo e qualquer valor é um valor particular que será colocado
em relação com um outro valor particular e que, conseqüentemente, não existe a
possibilidade de que qualquer valor particular possa legitimamente se considerar ou se
apresentar e se impor como universal‖. Na escrita neobarroca, há uma espécie de extensão,
que renuncia à condição alienante do mundo. O resíduo neobarroco no poema cabralino
resgata a relação com a totalidade-mundo, traz uma crítica profunda às relações de
opressão e desertificação no mangue-urbano; uma extensão que se volta para o humano e o
que há nele de efêmero e aparente.
Registra-se no poema cabralino uma crítica profunda ao lirismo chorão, em seu
individualismo vazio sem saída. Nele, os olhos secaram, as lágrimas emudeceram os olhos
mudos dos poemas. Em sua engenharia barroca, lágrimas não há, saudosismo muito
menos. Hölderlin, ao iniciar sua revolta contra a expressão subjetiva da lírica tradicional,
prevê a ruptura com o eu-lírico do poema. Na modernidade de Cabral, a lírica entra em
crise de existência, faltam caminhos. O poeta precisa abrir como um cego o sentido dos
descaminhos. Em João Cabral, a antilírica entra em questão, a palavra torna-se imprevisível.
E dessa vez quem está em crise é a linguagem. O mundo se torna híbrido. A palavra perde
as certezas. Desconfiamos delas, então: ―Barroco alegre, de cal e ocre/ sem jogos fúnebres
de morte. / Plena luz de um sol-de-cima, / nem diz da morte, que é sua sina/ É como um
altar ao ar livre/ barroco, sem seus jogos tristes‖ [MELO NETO, 1994, p. 665; grifo
nosso].
A poesia sem recado, enfeitada de cor local, com formas gordas, alegóricas, grotescas
em expressão, não interessa muito ao discurso lírico do poema cabralino. Sem esquecermos
que a marca do gênero lírico é a subjetividade, longe do verso de teor transcendental,
Cabral abre as portas de sua antilira para dialogar de forma mista, imparcial, objetiva. Meio
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a tantas vozes, carrega a elipse barroca e suas dobras à maneira dos traços retos de Bernini
e elípticos de Borromini são extensões de rizoma: ―A arquitetura como construir portas,
/de abrir; ou como construir o aberto; / construir, não como ilhar e prender, / nem
construir como fechar secretos; / construir portas abertas, em portas‖ [MELO NETO,
1994, p.345]. Com uma versificação cortada e dicção quebrada como uma onda: ―antes de
ir ao mar/ onde minha fala se perde‖ [MELO NETO, 1994, p.140].
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4.
CERVANTES NA CULTURA BRASILEIRA
Prof. Dr. João da Mata Costa
[email protected]
Em 2005, o mundo inteiro comemorou os 400 anos da 1ª ed. do Dom Quixote de la
Mancha, escrito pelo escritor espanhol Miguel de Cervantes. Livro fundador do romance
moderno, e um rico manancial de cultura popular e das novelas de cavalaria da idade
média. A literatura de cordel está, inicialmente, ligada a Romances e Novelas Cavalaria. Das
novelas citadas por Cervantes, o Bernardo del Carpio fez muito sucesso no Brasil e vinha
como capítulo final do livro Carlos Magno e os 12 pares de França (Cascudo). Devido à
grande influencia que Cervantes tem na cultura popular brasileira, é importante que o Dom
Quixote seja amplamente lido e divulgado em todos os níveis de escolaridade. O Objetivo
desse trabalho é mostrar esse rico manancial de cultura popular e divulgar um dos livros
mais importantes da literatura mundial. Livro que também é um verdadeiro tratado de
provérbios, adágios, anexins, etc.
Palavras- Chaves: Dom Quixote, Cultura Popular, Literatura.
A Espanha do Século de Ouro
No séc. XVI a Espanha vivia o seu apogeu literário, político e cultural. A Espanha
era um país rico e poderoso. Para lá iam todo o ouro e a prata retirada das civilizações
indígenas americanas recém dominadas, e sob o comando de Felipe II (1527-1598) o
império estendia-se pelo Caribe, pelas Américas, e outras partes do continente. Em 1580,
quando Portugal é anexado à Espanha, esse império ainda vive seu apogeu. O primeiro
livro de Cervantes - ―La Galatea‖-, é uma novela pastoril e foi publicado em 1585. Antes,
em 1571, Cervantes participa da memorável batalha de Lepanto contra os Turcos, vencida
pelos Espanhóis em 7 de outubro. Nessa batalha, Cervantes perde o uso da mão esquerda
para ―a glória de la diestra‖. A invencível armada é derrotada pelos ingleses em 1588, e a
Espanha começa o seu ocaso. Cervantes foi preso, junto com o seu irmão Rodrigo, por
piratas berberescos, que os levaram para uma prisão em Argel, onde ficou cativo entre
1575-77. Miguel de Cervantes Saavedra (1547- 1616) tentou fugir várias vezes, e,
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provavelmente, começou a escrever o Quixote durante esse período. A 1ª ed. da primeira
parte do "Dom Quixote" foi publicada em 1605, com o título de ―El Ingenioso Hidalgo
Don Quijote de la Mancha‖, e a segunda parte saiu em 1615, com o título ―El Ingenioso
Caballero Don Quijote de la Mancha‖. Desde então o livro não parou de ser editado e foi
traduzido em todas as línguas do planeta. No ano do IV centenário do famoso livro já
foram publicadas dezenas de edições de luxo, populares, recontadas, em quadrinhos, cordel
e com novas ilustrações. O objetivo deste trabalho é dar uma visão geral da importância do
Quixote para a história da literatura mundial, e da cultura popular em particular.
Consultamos e estudamos em torno de quinhentos livros de /e sobre Quixote e
comentamos alguns aspectos no que diz respeito às ilustrações, edições e recepção do
Quixote no Brasil messes quatro séculos de andanças e encantamentos. Inicialmente
fazemos uma rápida explanação da Espanha do Século de Ouro, onde havia outros grandes
escritores além de Miguel de Cervantes. Grandes cientistas e universidades. Depois
fazemos um levantamento de algumas das principais edições ilustradas do Quixote no
mundo. Comentamos a grande influencia do escritor Miguel de Cervantes em vários
escritores brasileiros e o grande manancial de cultura popular que é o Quixote. Um
caleidoscópio de gêneros literários, paremiologia, contos, fábulas, histórias sem fim, títeres,
contos de ―exemplum‖, etc. Tudo isso, contado com muito humor, estilo e graça sem fim.
Comentamos, também, o Livro Legenda Dourada do século XIII com um belo
―exemplum‖, aproveitado por Cervantes no Dom Quixote.
As Personagens
Numa pequena aldeia da Mancha, província Espanhola, vivia um fidalgo. Homem
de costumes rigorosos e decadente fortuna. Don Quijada, Quesada ou Quejano, nisto
discordam alguns autores que escreveram sobre o caso. Só mais ao final da novela ficamos
sabendo que trata -se de Alonso Quijano. Vivia da exploração de suas propriedades, que
mal lhe rendiam para manter uma simples aparência de abastança. Morava com uma
sobrinha com menos de 20 anos, uma criada quarentona e um criado que cuidava do seu
cavalo e fazia os serviços do campo. Aos 50 anos, magro, alto, de gestos imponentes e uma
certa altivez estudada, era mais conhecido por sua enorme biblioteca, onde empenhava
toda a moeda conseguida nas colheitas ou pela venda sucessiva de suas terras. De tanto ler
foi se distanciando da vida cotidiana e entrando naquele mundo fantástico de
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encantamentos, batalhas com gigantes e amparo a donzelas. Eram seus amigos o padre da
aldeia, o barbeiro e Sansão Carrasco. Para nossa sorte, Quixote sai três vezes de casa. A
primeira, sozinho, e duas outras, acompanhado do bom Sancho Pança. Todo cavaleiro
precisa ter um fiel escudeiro, e os dois:- Dom Quixote e Sancho Pança-, formam um dos
pares mais famosos de toda a literatura. À força de tanto ler-imaginar, foi-se distanciando
da realidade a ponto de já não poder distinguir em que dimensão vivia. Varando noites e
noites à luz de candeeiro, lia e relia e reconstruía, á sua maneira, o desenrolar dos famosos
livros de cavalaria.
Dom Quixote - Um incorrigível apaixonado
O Dom Quixote é um personagem de ficção que se transforma num mito. Um
personagem que encarna alguns dos bens mais preciosos de ser humano: a luta por justiça,
a generosidade e a ética. Apesar de todo o sofrimento e loucura do herói, a saga do
personagem é mostrada por Cervantes com muito humor.Sigmund Freud aprendeu o
espanhol para ler o livro e diz que o leu com muito gozo, explica: Dom Quixote é uma
figura que não possui humor por si mesma, mas produz com toda obstinação um prazer
que podemos qualificar de humorístico, muito embora seu engenho (grifo nosso) esteja
longe do humor. (Freud, obras completas tomo I). Tudo é artifício e traça, diz D. Quixote.
O que é verdade?- Pergunta D. Q. a Sancho Pança, na célebre discussão sobre o
Elmo de Mambrino e ele mesmo responde;
– A mim parece assim, ou assado, e a outro de outra maneira. Uma bacia de
barbeiro vale tanto um Elmo de Mambrino se cumpre a função, se permite a mesma ilusão.
O poeta Heine, num famoso prefácio a uma edição alemã de 1837, ilustrada por
Tony Johannot, lembra os doces momentos da infância passados na companhia do grande
livro e diz que chorou quando leu a obra. ―Na minha sinceridade de criança, levava tudo
muito a sério; quanto mais grotescamente o destino tratasse o pobre herói, mas eu achava
que era preciso ser assim, que o destino de ser ridicularizado fazia parte do heroísmo‖
Alguns estudiosos e leitores do livro identificaram-se mais com um ou outro personagem.
Miguel de Unamuno escreve a ―Vida de Don Quijote y Sancho‖. Franz Kafka, na Muralha
da China, diz que Sancho Pança ler um grande número de livros de Cavalaria e aventuras,
visando afastar o seu demônio, que chamará posteriormente de D. Quixote. Borges, em
diálogos com Osvaldo Ferrari, fala da sua identificação com Alonso Quijano, e escreve um
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belo poema em sua homenagem (Sonha Alonso Quijano in A rosa profunda 1975) J. L.
Borges comenta: ―Alonso Quijano tomou a decisão de ser D. Q., e saiu da sua biblioteca.
Em compensação, eu sou um tímido Alonso Quijano que não saiu da sua biblioteca - ―ou
livraria‖-, como se dizia então‖. E Voltaire, outro apaixonado pelo personagem, dizia: ― Eu,
como o Quixote, invento paixões para exercitar-me‖.
A Livraria do Quixote
O Quixote também é prática da crítica literária. No escrutínio na biblioteca do
protagonista feito pelo cura e o barbeiro (Parte I, 6), Cervantes comenta a bibliografia de
sua obra: as literaturas de Cavalaria, pastoril e épica, em que se formou como leitor e
escritor. Através de seus personagens segue exercendo crítica aos livros de cavalaria (I, 32,
47). O Quixote é uma antologia dos gêneros literários do renascimento e da idade média.
No Quixote estão presentes a novela pastoril (a Diana Enamorada, a Galatéia), a novela
psicológica Italiana, os contos folclóricos, e autobiografia de um soldado (Capitão Cativo,
muito autobiográfico) e a novela picaresca. Alguns livros são salvos da fogueira: Tirant lo
Blanc (―em verdade vos digo em questão de estilo não existe livro melhor‖), Diana
Enamorada (―o melhor entre os semelhantes, que não merecem serem queimados porque
são livros de entendimento sem prejuízo de terceiros‖), Amadis de Gaula (um dos mais
famosos heróis de cavalaria a quem Dom Quixote sempre faz referencia e procura imitar),
El Cid (1140, relato fabuloso da vida de um guerreiro cristão), e outros que acabaram por
―deixar mole os miolos do engenhoso fidalgo‖.
O Engenhoso Fidalgo nas artes e na literatura
A figura do grande cavaleiro inspirou muitos romances, peças de teatro, balés,
óperas, filmes, canções e musicais. O Homem de la Mancha foi eleito o melhor musical dos
Estados Unidos em 1966. A versão brasileira desse musical teve Bibi Ferreira como
Dulcinéia e Paulo Autran como o Quixote. Massenet (1910), compôs a ópera D. Quixote
baseado em um libreto inspirado livremente no grande personagem. Desde o séc. XVII,
com o Purcell, até os dias atuais, muitas composições musicais foram inspiradas no
―Cavaleiro da Triste Figura‖. Manuel de Falla, inspirado no cap. XXVI, 2a parte, compôs o
―El Retablo de Maese Pedro‖. Nas artes plásticas, o Dom Quixote e seus personagens
foram registrados, a seu estilo, em todos os movimentos artísticos. A primeira edição de
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luxo ilustrada do D. Quixote apareceu em Londres, em 1738, com 67 gravuras de
Vanderbank e uma biografia de Cervantes pelo valenciano Gregório Mayans y Siscar. As
370 ilustrações românticas de Gustave Doré (1833- 1883), foram publicadas inicialmente
numa bela edição francesa da L. Hachette (1863). Esses desenhos são copiados na maioria
das edições modernas, muitas vezes em péssimas impressões e reproduções, Ainda no
Romantismo, foi publicada uma ed. em Madrid com 48 litografias coloridas do litógrafo
francês Celestino Nanteuil (1813- 1873). O pintor e aquarelista Honoré Daumier (18081879), dedicou parte da sua obra a ilustrar de forma sublime cenas do Quixote. O pintor,
músico, poeta e jardineiro catalão Apeles Mestres, ilustrou a edição monumental
Barcelonesa de 1879. Em seguida, sairam as belas ilustrações de José Moreno Carbonero
(1898), Daniel Urrabieta Vierge (1901-02), Gus Bofa (1926-27), Salvador Dali (1946),
Picasso (1955), Portinari (21 desenhos a lápis-de-cor - 1956), Vasco Prado (RS), Newton
Navarro, Dorian Gray, Marcelus Bob, Serrâo e muitos outros no Rio Grande do Norte e
no mundo que também concorreram para eternizar o Engenhoso Fidalgo e seu par
inesquecível.
Mesmo quem não conhece a história tem idéia da personagem que povoa a
imaginação coletiva da humanidade. Em um livro recente - ―Don Quijote en Arte y
Pensamiento de occidente‖ dos autores Allen, J. J. e Finch P. Madrid, Cátedra 2004-,
aparece uma ilustração do Quixote, como de autor não identificado. É simplesmente uma
ilustração do Candido Portinari que faz parte da série de 21 desenhos que o pintor realizou
e foi publicado com glosas de Drummond (RJ 1972/73). É incrível que o nosso maior
pintor esteja como autor não identificado num livro de circulação mundial, onde constam
grandes pintores, ilustradores e outros nem tanto. Até quando o Brasil vai ser
desconhecido, e os nossos grandes pintores não vão constar dos catálogos de ilustradores
do célebre personagem?
Dom Quixote Imitado, parodiado e criticado
Desde a sua publicação, há quatro séculos, nunca faltaram imitadores, estudiosos,
analistas e podadores do belo texto castelhano. O romance é mesmo um caleidoscópio que
dá margem a muitas interpretações e leituras. O livro foi adaptado e traduzido nos mais
diferentes idiomas: existe o Quixote para crianças, da família, historia de antigamente e da
carochinha. Não existe um mesmo leitor para cada leitura do livro. Há quem veja no
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Quixote a figura do Cristo, piedoso e bom, ou um El Cid, generoso e nobre, sempre a
socorrer quem precisa e libertar os oprimidos, nunca esquecendo as regras da cavalaria
andante. Para outros, observa Agrippino Grieco em D. Quixote: Madraço e parasita: Na
sátira aos cavaleiros andantes, o autor mostrar-se-ia, antes de Flaubert, atacado pelo mal do
bovarysmo, combatendo aquilo que mais amava interiormente, praticando aquele grande
erro do ―eu‖ sobre si mesmo, que é a essência da filosofia de Jules Gautier. Para Erich
Auerbach, ele não tinha rival na representação da realidade comum como uma festa
contínua. Cervantes continua sendo até hoje o grande mágico do riso e das lágrimas e, o D.
Q., não é louco nem idiota, mas alguém que joga de cavaleiro andante, e jogar é uma
atividade voluntária, ao contrário da loucura e da idiotice, diz Huizinga em Homo Ludens
(1944). Outro grande leitor de Cervantes é Miguel de Unamuno, um dos leitores mais
referidos e comentados. O cavaleiro da triste figura de Unamuno é um homem que busca a
sobrevivência, e cuja loucura é uma cruzada contra a morte. ―Grandiosa era a loucura de D.
Q. , e grandiosa porque grandiosa era a raiz de onde brotava o inextinguível anseio de
sobreviver, fonte das mais extravagantes loucuras, e também dos mais heróicos atos‖. ―La
libertad Sancho, es uno de los más preciosos dones que a los hombres dieram los
cielos‖(Dom Quixote II, 58). Não há em toda literatura personagem mais livre.
Concordamos com Dostoievski em diário de um escritor, não existe nada mais profundo e
poderoso que este livro.
Cervantes na Cultura Popular
Do Romanceiro ibérico, a literatura de Cordel do NE recebeu forte influência. A
literatura de cordel esta, inicialmente, ligada a Romances ou novelas de Cavalaria, histórias
de amor, narrativas de guerras, etc. Posteriormente foram incorporados fatos recentes e
acontecimentos Sociais. Na Espanha a literatura de Cordel era chamada de ―Pliegos
Sueltos‖ (Folhas volantes). Na França, literatura de Colportage. Das novelas citadas por
Cervantes, o Bernardo del Carpio fez muito sucesso no Brasil e vinha como capítulo final
do Carlos Magno e os 12 pares de França (Flaviense RJ s/d ). Tenho uma edição em tres
pliegos do séc. XIX, da História Verdadera Del Valiente Bernardo Del Carpio (Madrid
1879). Ainda no séc. XIX eram editados em Pliegos Sueltos, o Orlando Furioso, Los siete
Dabios de Roma, Bastardo de Castilla, Historia de Oliveros de Castilla, El Cid
Campeados,etc). O que mostra a vitalidade e perenidade do gênero de cavalaria na
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Espanha. No séc. XX foram impressos no Brasil muitos folhetos de cordel com as historias
de cavalaria, principalmente O Carlos Magno cuja história alimentava o imaginário das
crianças e estimularia futuros escritores, como aconteceu com José Lins do Rego que com
Carlos Magno aprendeu a temer mais a Deus do que com o catecismo. Que grande coisa
era ser cristão, filho legítimo de Deus, e brigar com os mouros, turcos, os infiéis.(Rego em
Doidinho, 1976). Dom Quixote cita a princesa Megalona na história de Pierres y la Linda
Megalona. No entremez Pedro Urdemallas, esse personagem corresponde ao nosso Pedro
Malazarte. O Retábulo das Maravilhas é inspirada num conto folclórico antigo. Um
enganador profissional que exibia para diversas pessoas uma pintura capaz de identificar os
que fossem bastardos. A propriedade desta pintura era ser invisível apenas para os
bastardos. Os personagens simulam o tempo todo dizendo ver o que não vêem. No ano do
quarto centenário do Quixote (2005), saíram dezenas de edições novas, inclusive em cordel.
O renomado escritor e ilustrador J. Borges (1935) escreveu uma versão do Quixote, com
ilustrações do também pernambucano Jô Oliveira. Começa assim o Quixote de Borges:
Existia uma grande aldeia /igual a outras que havia / e lá tinha um fidalgo / magro,
mas sempre comia /carnes, fritos e lentilhas / ovos e tudo que existia.
...
Lia tanto que ficava / delirando a vida inteira / e via em sua frente /bruxos,
dragão, feiticeira / combates e desafios / que terminavam em asneira.
Dom Quixote luta com os cangaceiros do nordeste e Dulcinéia (sua amada
imaginada) vira Maria Bonita
Lutou com os cangaceiros / perdeu na luta maldita / pensou ser a Dulcinéia /que
seu coração palpita / mas quando levantou / era Maria bonita.
Dom Quixote pede para que lhe passasse p ungüento de Ferrabrás, pois tava todo
ferido da luta com os cangaceiros. Depois D. Quixote luta com o cavaleiro da Branca Lua,
em campina Grande. Nesse episodio, um dos mais comoventes do Quixote, D. Quixote
perde a batalha. O cavaleiro da Branca Lua era o seu amigo Sansão Carrasco, que lutou
para que o Quixote vencido voltasse para casa, como havia sido o trato que é cumprido
rigorosamente pela cavalaria andante. D. Quixote volta para casa e passa ser novamente
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Alonso Quijano. Logo morre, pois sua vida era o pelejar e lutar contra as injustiças do
mundo.
Outra versão cordelizada adaptada do Quixote foi feita pelo Cearense Antônio
Klévisson Viana, poeta popular, cartunista e tesoureiro da Academia Brasileira de Cordel.
As aventuras de D. Quixote em versos de cordel,
Espanha belo pais / foi lá que viveu Miguel / De Cervantes, que escreveu / Com nanquim, pena e
papel / A história de Dom Quixote / Que eu refiz em cordel.
O Autor pergunta quem foi D. Quixote, para concluir que:- Quem ler o livro / tira algumas
boas lições.
Quem foi esse Dom Quixote? / Foi um louco, um sonhador? / visionário ou lunático /em
um mundo enganador? / ou foi alguém que buscava /Pra vida um real valor?
História sem FIM.
Era uma vez um Cabreiro,
Dizia meu pai quem conta um conto sempre lhe acrescenta um ponto. Sancho (I,
20) conta uma História sem fim ao D. Q. Trezentas cabras precisam atravessar um rio.
Chamava-se o cabreiro Lopo Ruiz, que se deixou embeiçar por uma pastora Torralva, Só
encontrou uma canoa que cabia uma única cabra. O pescador veio e passou uma cabra,
volveu dali a pouco e passou a Segunda, tornou a vir, tornou a passar. Vossa mercê vá
contando com todo cuidado as cabras que o cabreiro passa, porque se erra não há forma de
reatar a história e acabou-se a história....
- Homem parte do princípio que já passou todas, interrompeu D. Q. com
impaciência.
- Quantas é que passaram até agora?
- Com o diabo querias tu que as contasse?
[...]
Não contou, assim eu não posso passar adiante. Bendito e louvado, estar meu
conto acabado.
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Cascudo (1972), registra uma variante dessa história em Deixe os patos passar.
Chove muito e se formou um rio muito largo. A 1a fila entrou na água, mas havia
correnteza e os bichos custavam e custavam e custavam a vencer, andando.
Em Portugal, Teófilo Braga em Contos Tradicionais de Portugal, registrou uma
versão parecida. Era uma vez um pastor, e andava no mato com duzentos carneiros, veio
uma trovoada, e ele quis recolher o rebanho para o curral, chamou o carneiro e pôs - se a
caminho. Chegou ao pé de um rio muito fundo, onde havia uma ponte, e de cada vez só
podia passar um carneiro.
Dom Quixote no Brasil
No Brasil, a 1a referência explicita ao livro de Cervantes, se encontra em Gregório de
Matos, quando ele descreve num poema ―as festas a cavalo que se fizeram no terreyro em
louvor das onze mil virgens.
[...]
Uma aguilhada por lança
trabalhava a meio trote,
qual o moço de Dom Quixote,
a quem chamam Sancho Pança:
[...]
Num outro poema, Gregório fala: ―nas manhas que ele tem de D. Q.‖.
Em 1705, Antonio José da Silva, o Judeu, escreveu a peça ―A vida do Grande D. Q.
de la Mancha e do gordo Sancho Pança‖. Peça de teatro, ou ópera jocosa que estreou em
1733 no teatro do Bairro alto, em Lisboa, pela companhia do cômico Espanhol Antonio
Rodriguez. [...] Antonio José ver a novela de Cervantes como uma peça cômica, sem
maiores significações filosóficas. Em 1794, sai a 1a tradução do D. Q. para o Português.
Tradução anônima em 6v. Em 1876- 1878 é publicada a vulgata das edições do Quixote em
língua portuguesa: A edição monumental com tradução dos Viscondes de Castilho e de
Azevedo, e prefácio de Pinheiros Chagas que também colaborou na tradução da 2a parte..
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Muitos escritores brasileiros referiram, fizeram citações e poemas em homenagem
ao D. Q. e seus personagens. Machado de Assis faz referencia inúmeras vezes ao livro
D.Q. em Memórias Póstumas de Brás Cubas. Em sua biblioteca particular tinha uma
edição do Quixote em Francês. Num poema da juventude, Machado de Assis, escreve:
[...]
―Cognac! - inspirador de ledos sonhos,
Excitante licor de amor ardente,
Uma tua garrafa e o Dom Quixote,
É passatempo amável!‖
Dom Quixote comparece ao sítio do pica pau amarelo, no D. Q. das crianças de Monteiro
Lobato. O próprio Cervantes aparece nas Minas de Prata de José de Alencar, e o Capitão
Vitorino - um dos personagens de Fogo Morto-, de José Lins do Rego, anda nos campos
com seu cavalo debilitado (tipo o Rocinante do Quixote), sempre a defender seus
princípios, mesmo que com isso tenha que se haver com encrencas. Encontramos a dupla
Quixote-Sancho nas artes e literatura, bem como na vida. Um complementa o outro. No
romance ―O Missionário‖ (1891), de Inglês de Sousa, a dupla formada por Antonio Morais
- Macário (padre e sacristão) tem correspondência nos protagonistas da imortal novela
Cervantina. Quanto ao ensaio Brasileiro, pode-se destacar os trabalhos de Brito Broca,
Josué Montello, Tiago Dantas, Agrippino Grieco, Viana Moog, João Alexandre Barbosa,
Edgar Barbosa, João da Mata e Maria Augusta da Costa Vieira, todos referidos na
bibliografia..
Usos e Costumes
- Pouco Sal na moleira - pouco juízo
- Hojas de Romero (folhas de alecrim). Mastigadas e com um pouco de sal, posto na orelha
sangrenta. Esse ungüento semelhava ao de Ferrabraz que a tudo curava.
- Estava apaixonado até os fígados. O fígado era para o povo a víscera essencial. (Horácio
– Odes)
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- Alho: Não comer alho para que não tomem por odor a vilania.
Na Espanha de Cervantes, o alho era um alimento de pessoas humildes e do campo. No
livro ―O Folklore nos Autos Camoneanos‖ (1950), Cascudo encontra nos Autos de
Camões, a expressão: ―No Alho a Mis Male Culpa‖, comenta: ―O Alho possui uma
literatura universal e vasta. Seu olor afastava os feitiços e também as amorosas o
detestavam‖ Por seu odor forte os namorados evitam.Continua Cascudo, evitava
tempestades e seres sobrenaturais.
Dom Quixote toma a decisão de se fazer pastor. Depois de desencantado com a
vida de cavaleiro errante e ter perdido a batalha com o cavaleiro da Branca Lua, Dom
Quixote resolve ser pastor.
A minha filha Sanchica nos levará comida no aprisco. Mas, esperem lá, a pequena
não é nenhuma peste e há pastores que são mais manhosos do que parecem, e não queria
que fosse buscar lã e voltasse tosquiada, porque tanto no campo como nas cidades andam
amores de companhia com os maus desejos; e nas choças dos pegureiros (guardador de
gados) acontece o mesmo que no palácio dos reis; e, tirada a causa tira- se o efeito, e olhos
que não vêem coração que não suspira, e mais vale salteador que sai a estrada, que
namorado que ajoelha.
- Basta de rifões, Sancho - acudiu D. Q.; um só dos que disseste é suficiente pra nos fazer o
teu pensamento; e muitas vezes te tenho aconselhado que não sejas tão pródigo de
provérbios; mas parece-me que é pregar no deserto. Minha mãe a castigar-me e eu com o
pião às voltas.
- Parece-me, respondeu Sancho, que vossa mercê é como o outro que diz:
Disse a sertã à caldeira, tira-te pra lá que me enfarruscas (Sancho II, 67)
- Está-me a repreender e a aconselhar que não diga rifões e enfia-nos aos pares.
- nota, Sancho - disse D. Quixote.
- que eu trago os rifões a propósito e ajeitam-se ao que digo, como os anéis aos dedos; mas
tu, tanto os puxa pelos cabelos que os arrastas, em vez de os guiar; e, se bem me lembro, já
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de outra vez te disse que os rifões são sentenças breves, tiradas da experiência e das
especulações dos nossos sábios, e os rifões que não vem de molde é mais disparate que
sentença.
Paramiologia
O Dom Quixote é um tratado de paramiologia, onde abundam os rifões, provérbios, frases
proverbiais, anexins e outros tipos de parêmias.
1-As sentenças ou máximas contém uma sabedoria popular
Mas vale bom nome que muita riqueza (Sancho II, 33) Eclesiastes VII, 2
2-Provérbio
Sempre ouvi dizer: Quem canta seus males espanta (I, 22)
Virgílio - Geórgica I, 293 (Cascudo 1952)
3- Adágio
[...] cumprindo-se o adágio de que às vezes paga o justo pelo pecador (I, 7.)
Una golondrina sola não hace verano (I, 13),
Uma andorinha só não faz verão
Uma andorinha só não faz primavera
Parece-me, Sancho, que não há rifão que não seja verdadeiro, porque todos eles contêm
sentenças consagradas pela experiência, mãe de todo o saber, teoriza, diz Dom Quixote. . A
valorização da experiência é uma prática comum no renascimento.
Conselhos de Dom Quixote a Sancho Pança, antes que seu escudeiro fosse governar a ilha
baratária.
-Nunca interpretes arbitrariamente a lei, como costumam fazer os ignorantes que têm
presunção de ter grandeza.
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-Anda devagar, fala pausadamente, mas não de forma que pareça que te escutas a ti mesmo,
porque toda afetação é má.
A Legenda Áurea, Dom Quixote e o Exemplum
Lenda (de ―legenda‖, do verbo latino ―légere‖= ler)era o nome dado antigamente a
uma narrativa sobre a vida dos santos e mártires. Da Legenda áurea derivam o nome de
todas as outras lendas.
Após um período de mais de 700 anos é lançado no Brasil pela Companhia das
Letras, um dos livros mais importantes do medievo: ―Legenda Áurea‖. Legenda áurea,
legenda dourada, legendæ sanctorum, é obra fundamental da cultura ocidental e seus 178
capítulos constituem a suma hagiográfica latina da idade média. O Brasil caricia de uma
tradução desta obra magna da cultura cristã. A bela edição brasileira foi traduzida do Latim
e comentada por Hilário Franco Júnior, e lançada pela Companhia das Letras. O livro,
escrito no século XIII pelo frei Dominicano Jacopo de Varazze, latinizado para ―Jacobus
de Voragine‖, conta a vida e história dos santos mais conhecidos: São Jorge, São Nicolau,
Santo Antônio, São Francisco, São João Batista e São Sebastião. A edição brasileira traz um
rico material iconográfico e reproduções de belas iluminuras, seguindo outras milhares de
edições. Esse livro, escrito numa linguagem acessível ao grande público, fez muito sucesso
e influenciou definitivamente a arte cristã. É impossível imaginar um quadro de Fra
Angélico, Andrea de Castagno, Pierro della Francesca ou um afresco de Giotto sem a forte
influência desse livro de inspiração divina. Até mesmo as grandes catedrais e seus belos
vitrais têm inspiração no ―Legenda Áurea‖. A morte dos santos pode ser trágica, mas o
demônio, em geral, sai vencido como nas lendas populares do demônio logrado.
Na
apresentação à edição Brasileira foi escolhido um belo ―exemplum‖ que está na vida de São
Nicolau: ―De Sancto Nicholao‖ - Nicholaus dicitur a nichos, inde Nicholaus quasi uictoria
populi-, Nicolau vem de nikos, que significa ―vitória‖ e de laos, ‖povo‖, i.e., vitória do
povo.
Um Homem havia tomado de um judeu certa soma de dinheiro, em falta de outra
garantia jurara sobre o altar de São Nicolau que a devolveria assim que pudesse. Muito
tempo depois o judeu reclamou o dinheiro, mas o devedor alegou que já havia pagado
dívida. O Judeu levou-o a juízo e exigiu que afirmasse sob juramento que havia devolvido o
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dinheiro. Como precisasse de apoio para andar, o homem ali compareceu com uma
bengala, que era oca e que ele havia enchido de moedas de ouro. Quando foi prestar
juramento, pediu que o judeu a segurasse e jurou ter restituído mais do que havia recebido.
Após o juramento, reclamou a bengala de volta e o judeu, que não suspeitava da artimanha,
devolveu-a. No caminho de volta para casa, o culpado sentiu um sono repentino,
adormeceu num cruzamento e uma carroça que vinha com velocidade matou-o, quebrou a
bengala, e o ouro que a enchia espalhou-se pelo chão. Avisado, o judeu acorreu ao local e
entendeu a artimanha de que havia sido vítima. Tendo alguém sugerido que pegasse seu
ouro, recusou taxativamente, a não ser que o morto voltasse à vida pelos méritos do bem
aventurado. Nicolau, acrescentando que se tal acontecesse ele receberia o batismo e se
tornaria cristão. incontinenti, o morto ressuscitou e o judeu foi batizado em nome de cristo.
[cap. III]
O ―exemplum‖ medieval é uma historieta edificante, na maioria das vezes para uso
dos pregadores, que gostam de introduzir exempla nos seus discursos para que os ouvintes
assimilem melhor uma lição salutar (Jacques le Goff). O século XIII foi o grande século
dos ―exemplum‖, mas a fórmula continuaria sendo empregada nas narrativas romanescas e
historietas populares. Mais de três séculos após o lançamento do livro Legenda Áurea,
Miguel de Cervantes Saavedra lança, em 1605 - 1615, o ―Dom Quixote de la Mancha. No
Dom Quixote, o ―exemplum‖ de São Nicolau é recontado por Cervantes:
Perante o governador da ilha Baratária, Sancho Pança, apresentam - se dois anciões,
um dos quais trazia uma cana por báculo, e o sem bordão disse:
lhe prazer e fazer boa obra, com a condição de os devolvesse quando lhos pedisse.
Passaram-se muitos dias sem que eu reclamasse, pra o não colocar em maior necessidade,
por mos devolver, mais do que a que ele tinha quando eu lhos emprestei. Pareceu-me,
porém, que se descuidava na paga e reclamei- os uma e muitas vezes. Nega-se, contudo, a
pagar-me e diz que nunca lhe emprestei tais dez escudos e, se os emprestei, já os devolveu.
Não tenho testemunhas, nem do pagamento, porque não me pagou. Quereria que vosmecê
o fizesse prestar juramento; se jurar que me pagou, perdôo- lho a divida, perante os
homens e perante Deus.
− Que dizeis a isso, bom velho do báculo? − perguntou Sancho. A isso respondeu o velho:
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− Eu, senhor, confesso que ele mos emprestou. Baixe vosmecê essa vara, pois, como ele
confia em meu juramento, jurarei como os devolvi e paguei, real e verdadeiramente.
Baixou o governador a vara e, entretanto, o velho do báculo entregou a cana a outro velho,
para que a segurasse enquanto jurava, pois o embaraçava muito. Em seguida pôs a mão
sobre a cruz da vara, dizendo ser verdade haverem-lhe emprestado aqueles dez escudos que
lhe reclamavam; ele os havia devolvido, de mão para mão, e era por não se lembrar disso
que de vez em quando voltava o credor a pedi-los. Vendo isso, o grande governador
perguntou ao credor que respondia ao afirmado por seu oponente. Disse ele que, sem
dúvida alguma, seu devedor estava dizendo a verdade, pois o considerava homem de bem e
bom cristão; ele, por certo se esquecera de como e quando os havia recebido. Tornou o
devedor a tomar seu báculo e, baixando a cabeça, saiu. [...].
Sancho esteve pensativo por algum momento. Em seguida, mandou chamarem o
velho do bordão, que já se fora.
− Daí- me, bom homem, esse báculo, pois preciso dele.
− De muita boa - vontade − respondeu o velho. − Eí-lo aqui, senhor..
E colocou a cana na mão. Apanhou-a Sancho e, dando-a ao outro velho, falou:
Ide com Deus que já estás pago.
− Eu, senhor? − redargüiu o velho − Pois esta cana vale dez escudos de ouro?
− Sim − disse o governador. − E se não valer sou o maior asno do mundo. E agora
se verá se tenho ou não miolos para governar todo um reino.
E mandou que, ali, diante de todos se quebrasse e abrisse a cana. Assim se fez, e
dentro dela foram achados dez escudos de ouro. Ficaram todos admirados e tiveram seu
governador por um novo Salomão. (II, XLV).
Os contos e histórias de ―exemplum‖ são milenares. Na idade média, os religiosos e
professores faziam grande uso de contos morais e/ou de exemplos, quando desejavam
transmitir uma mensagem edificante, de astúcia ou agudeza de caráter. Multiplicavam-se as
coleções dos Las Vitæ Patrum, el Valério Máximo, La Gesta Romanorum e Las Disciplinas
Clericales, do judeu convertido Pedro Afonso (séc. XIII). Na divisão e seleção de contos
perpetuada por Cascudo, os contos de exemplos aparecem na sua divisão, onde estão
incluídos os célebres Joãozinho e Maria, o Pequeno Polegar e as Aventuras de Pedro
Malazarte. Todos os povos possuem os seus contos de exemplos, e é interessante observar
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como esses contos são transplantados de região para região, de país para país, mantendo as
suas matrizes originais que remontam à origem homem imaginando e sonhando. São
variações sem fim de um mesmo tema, sempre com o mesmo objetivo: o EXEMPLUM.
Conclusões
Nos seus quatros séculos de existência, o livro Dom Quixote de la Mancha do
escrito espanhol Miguel de Cervantes continua atualíssimo e sendo editado nos quatro
cantos do mundo. No ano do seu 4º centenário foram editadas dezenas de edições nas mais
diferentes formas. Edições de Luxo, populares e em cordel. O Dom Quixote está muito
presente na cultura brasileira e é uma fonte inesgotável de gêneros literários, ditos
populares, romances de cavalaria, novelas e contos populares que remontam à idade média,
e estão muito presentes na cultura popular o oral do nordeste brasileiro. Câmara Cascudo
fez a ponte entre o medievo e a cultura popular brasileira, através do Quixote. A
vulgarização desse livro-fundador é o que pretende esse trabalho que vem sendo feito
acompanhado de palestras, exposições, comemorações do dia mundial do livro em
homenagem a Cervantes e o seu livro eterno. A leitura desse livro delicioso é fundamental
para criar o gosto pela leitura, aguçar a imaginação e despertar na juventude a busca por
justiça, solidariedade e um mundo mais ético e amigo. É isso que mostra o Quixote e era
isso que pretendíamos nesse trabalho que é para toda vida, Continuamos estudando o
Quixote, uma fonte inesgotável de prazer, exemplos e encantamentos.
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Sessão de Comunicação: AS ARTES VISUAIS BARROCAS (pintura, arquitetura,
escultura e demais expressões de artes)
Coordenadores: Prof. Dr. Everardo Araújo Ramos
Prof. Dr. Francisco Zaragoza Zaldívar
1.
O POEMA COMO ESPAÇO CRÍTICO DA ARTE O BARROCO
PRODUZIDO POR“JOSEPHA AYALA FIGUEIRA”NA POESIA DE “FIAMA
HASSE PAIS BRANDÃO”11
José Antônio Rodrigues Júnior
(Universidade Federal do Rio Grande do Norte)
RESUMO
A metalinguagem se apresenta como um dos principais aspectos característicos da arte
contemporânea. A poesia, na qualidade de objeto artístico não poderia ausentar-se de
pensar-se enquantoArte. Arte que tematizando Arte reflete acerca de si, passando a
engendrar novas possibilidades estéticas, abrindo margens para a crítica de arte no espaço
literário propriamente dito. Nosso trabalho se pauta em apresentar uma leitura da pintura
de Josepha de Óbidos (Sevilha, Fevereiro de 1630 — Óbidos, 22 de Julho de 1684), a partir
do poema ―Óbidos (Josepha)‖ (1971) de FiamaHasse Pais Brandão (Lisboa, 1938 -2007).
PALAVRAS-CHAVE
Metalinguagem. Poesia. Artes. Fiama. Josepha.
1.
Metalinguagem, Arte e Literatura
―A excelência de um crítico se medenão por sua argumentação, mas
pela qualidade de sua escolha‖
(Ezra Pound)
11
Trabalho produzido sob orientação do prof. Márcio de Lima Dantas. Área de estudos em literatura
portuguesa (UFRN).
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―um poema não é mera expressão de emoções e experiências
individuais. Pelo contrário, estas só se tornam artísticas quando,
exatamente em virtude da especificação de seu tomar-forma estético,
adquirem participação no universal‖
(T. Adorno)
Sempre é uma tarefa difícil discorrer acerca da arte. Desde Platão há uma busca do
Ocidente que visa encontrar uma natureza ou essência da Arte. Há séculos existe uma
obsessão por parte dos que se debruçam sobre as artes visando definir as semelhançasdos
objetos artísticos entre si, autentificando uma natureza da obra de arte.
Nesse sentido, para os Antigos ―o belo‖, o bom e o verdadeiro formavam uma
unidade com a obra de arte, caracterizando sua ―virtuosis‖ artistica. A essência do belo
seria alcançada identificando-a com o bom, tendo em conta os valores morais. Na Idade
Média surgiu a intenção de estudar a estética independente de outros ramos filosóficos.
Mas é em Hegel, após Kant, que temos a grande mudança nas concepções da
―morte da arte‖ enquanto Arte que se relaciona com a natureza ou que respeitava algum
equilíbrio entre razão e religiosidade.
O que acontece é que, para o filósofo, essa concepção da arte do belo iniciada por
Platão perde seu valor para o homem moderno. Consequentemente, a arte que nasce é uma
arte reflexiva em si, passando a, nela e por-si, engendrar ideias sobre ―si‖ com mais
recorrência, no retorno do espírito em sua autoconsciência.
Sendo assim, a filosofia de Hegel se apresenta como um sistema que se constitui na
―história‖. O espírito percorre a trajetória onde ele se revela nas suas diferentesformas,
desde as mais elementares e ordinárias até as mais complexase sofisticadas. A razão se lança
no mundo e se reconhece nas coisas quelhe pertencem; depois, retorna a si e se põe diante
da sua necessidade e liberdade.
O espírito é algo que é inexoravelmente diferente e oposto aosfenômenos sensíveis,
e só por astúcia é que vai até eles. Nesse sentido, aarte é um momento de alteridade da
―Idéia‖, quando ela tem de ser reconhecidanas obras estéticas.
No trabalho de regresso do espírito a si mesmo é que se coloca a arte: ela é o
primeiro momento do retorno e por issotambém se situa numa posição ―inferior‖ à religião
e à filosofia.
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Note-se que, na estética de Hegel,o ―EspíritoAbsoluto‖ deve necessariamente
percorrer todo o caminho até a suaautoconsciência, então, a arte deve ainda ser superada. É
nesta acepção quepodemos dizer que a arte morre, embora o espírito devesse passar
irremediavelmentepor ela.
A arte é superada em Hegel, porque há no seu sistema uma ―teleologia‖ histórica
que aponta para a reconciliação dos contrários na Idéia. O Espíritoretorna a si e no
seuvoltar-se a arte, aparece como um momento histórico necessário. A arte ainda é a
expressão do corte, da cisão espírito-natureza,liberdade-necessidade, conteúdo-forma,
sujeito-predicado, consciênciarealidade.
A reconciliação é a unidade do espírito consigo mesmo, na suaeternidade, infinitude
e universalidade, independente de qualquer elementosensível e, na medida em que a arte se
encontra constitutivamente presa àsensibilidade, ela não pode realizar a conciliação.
Em outras palavras: as obras de arte, enquanto algo finito e transitório não podem
encerrar oinfinito e o eterno; enquanto algo natural e mundano, não podem deixar
transparecer na sua plenitudeo plano do divino e do sagrado. A arte constitui aindaum
momento negativo do espírito, aquilo que precisa ser superado.
Evidentemente, as diversas maneiras de se conceber as obras de arte, passaram, ao
longo do tempo, a possuir características tão contrárias entre si que, ao final das contas, a
posição platônica de definir a arte associada a beleza tornou-se obsoleta. Temos exemplos
disso, desde a modernidade, com o Barroco arte de Goya (1746-1828), as descidas aos
infernos de Blake (1757-1827), colimando nos traços deBacom(1909-1992) e todas as
vanguardas de ―ismos‖ no início do século XX.
Portanto, surgiram, juntamente com o caminhar do Chronosmomentos outros em
que a relação de reprodução do real em consonância à beleza do mundonão poderiam mais
ter o mesmo valor estético que na antiguidade. Descobriu-se a natureza medonha, ou
grotesca, do humano. Machado de Assis exemplifica bem quando diz que ―era grotesca tal
máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma
vez o cruel‖ (ASSIS: 1998, pg 102)
Bem como o retorno do espirito artístico na arte quando esta fala de si.
A epígrafe no início do texto foi a melhor maneira que encontrei para iniciar esse
texto que foi modestamente construído como objetivo de tratar de uma das temáticas que
acompanharam a história do homem ocidental há bastante tempo: a arte que tematiza arte.
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Vestígios históricos.
Como sabemos a literatura não poderia ter ficado de fora dessas transformações do
modus operandi da apresentação artística através da escrita. Com efeito, no percurso do
tempo de vida da literatura Ocidental, cujos registros primordiais de que se tem noticia são
encontrados nas obras homéricas.
Hoje em dia, nem de perto, os escritores produzem textos literários à maneira
homérica; mas cabe ressaltar que sua relevância para o estado da arte atual é inconteste.
O texto metalinguístico passa a revelar o processo de produção daobra. Nessa
medida, o expediente metalinguístico irá propiciar um perfil mais ativo de leitor,
contrapondo-se ao atocontemplativo da obra de arte, em que o público, passivo, dela não
―participava‖. Portanto, a arte quando metalinguística se volta para seu objeto concebendoo na qualidade de uma realdade designos, constiuindo-se em ―linguagem objeto‖.
Vejamos o que diz Fiama em seu prefácio do livro que retiramos para a apreciação
de livro a poeta sugere:
―[...] uma obra tão opaca que rejeite leituras.
11. ou seja que sendo a crítica um privilégio que coloque a crítica ao seu serviço,
12. sendo a crítica um privilégio e não uma missão pública, sequer universitária [...]
levando a crítica a desistir de proclamar a abertura da obra [...]
49. nada deve, pois, impedir que se conheça a implícitra coesão hermética que nelas existe
pela síntese pessoal do pensamento e das práticas do autor.‖ (BRANDÂO: 1976,
pg.11).
De fato ―Homenagemàliteratura‖ (1976), por se tratar de um livro explicitamente
metalinguístico, a poeta sugere para a poética do hermetismo não a abertura, mas um
fechamento, a crítica pela crítica, ela deixa claro seu objetivo. Eis o ato incitador e
instigador para a romper definitivamente com o posicionamento do leitor passivo. Mas,
isso não é nehuma novidade. Ao longo da história da literatura Ocidental temos as
propostas poéticas de poetas para uma poética ideal da arte da escritura.
A lírica de Sapho (612 a. C.) não poderia dizer de forma mais antiga (nunca
antiquada) e atual esse desejo que a arte tem em se mostrar refletindo-se no seguinte
fragmento da ―Ode à Afrodite:―[...] é maleável a mente.Eros faz nosso pensamento revirarse‖o que conduz a Peter Green com relação a ―filha imortal de Afrodite‖ afirmar:
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―El sacramento de lapoesía, ladulceago- hainia de lacreación. Palabras aladas,
lashabíallamado Homero, y hasta ahorala frase no había significado nada para
mi‖(GREEN: 1971, pg. 107).
Horácio completaem sua ―Ode à Baco‖
―Crede-me, ó pósteros: eu vi Baco, que, sôbre, uma rocha
distante, ensinava canções; e as Ninfas e os Sátiros, com os
seus pés de cabra, de ouvidos atentos, aprendiam‖ (HORÁCIO: 1962, pg. 16).
Ora são relações da poesia ainda incitada pelos deuses, musas etc. Note-se que
mesmo no renascimento, momento histórico posterior que, no entanto, procura ver
renascida essa cultura, temoso seguinte nas palavras de Camões (1524-1580):
―E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da Morte libertando,
Cantando espalharei por toda parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.‖ (CAMÕES: 1986, pg 7)
Reine Maria Rilke (1875-1926) com o ―Torso arcaico de Apolo‖ discute as
possibilidades do entendimento artístico por meio dos vestígios residuais do que nos legara
a cultura helênica. Segue o soneto traduzido por Manuel Bandeira:
―Não sabemos como era a cabeça, que falta,
de pupilas amadurecidas. Porém
o torso arde ainda como um candelabro e tem,
só que meio apagada, a luz do olhar, que salta e brilha. Se não fosse assim, a
curva rara
do peito não deslumbraria, nem achar
caminho poderia um sorriso e baixar
da anca suave ao centro onde o sexo se alteara. Não fosse assim, seria essa estátua
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uma mera
pedra, um desfigurado mármore, e nem já
resplandecera mais como pele de fera. Seus limites não transporia desmedida como
uma estrela; pois ali ponto não há
que não te mire. Força é mudares de vida.‖12
―Críticamente‖ inundado de ―meta-poiesis‖, temos em Fernando Pessoa uma das mais
―belas‖ definições do fazer poético em ―Autopsicografia‖:
―O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.‖(PESSOA: 1986, pg. 211)
Já Carlos Drummond de Andrade no trecho de―Segredo‖ (2002) nos comunica que
―A poesia é incomunicável/ Fique torto no seu canto..‖, mais ainda, quando encontra-se à ―Procura
da Poesia‖ (2002):
―Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica‖ (ANDRADE:
2002, pg. 341).
Com isso intentamos, mais precisamente, chamar atenção para o fato de que houve,
sobretudo, a partir do século XX. Ou seja, o esvaziamento das temáticas tradicionais que
procuravam discorrer acerca dos sentimentos, ações e vivências meterias do humano.
12
―Archaischer Torso Apollos‖ (Rainer Maria Rilke) .Tradução de Manuel Bandeira: 1979.
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Assim sendo, a metalinguagem foi um dos fenômenos de produção artística que se tornou
mais recorrente na esfera artística, pois, de outra parte,uma outra linha de força da poesia
moderna é silenciar-se. Emily Dickinson (1830-1886) em um poema conhecido por ―1681‖
revela que
―A palavra é um sintoma do afeto
E o silêncio é
A comunicação mais perfeita
Que ninguém pode ouvir.‖(2006, pg. 19)
Esta poeta, já no século retrasado,vislumbrava o valor do silêncio como palavra
poética perfeita e inalcançável.
Mas o nosso escopo é voltar-se para a metalinguagem.
Nesse momento, a metalinguagem na arte, aponta para o que Walter Benjamin
(1892-1940) denominou de ―a perda da aura!‖ do artista, uma vezque põe em cheque o
mito da criação, o chamado dom especial que o artista teria recebido de uma
entidadesobrenatural para conceber o objeto estético, igualmente Fiama como vimos
anteriormente.
De maneira geral, apoeta portuguesa Fiama Hasse Pais Brandão (1938 – 2007)
porta na totalidade de sua obra uma ritualística tributária para/com a arte, fazendo da
tradição literária seu pretexto e pre-texto para a autenticidade artística, tornando o ―Poema
como espaço crítico da arte‖ característica essencial em toda sua poética.
O poema que apreciaremos (―Óbidos (Josepha)‖)está contido no livro
―HOMENAGEMÀLITERATURA‖ (1976), títulos que por si só exemplificam, para um
bom observador tudo o que foi dito anteriormente.
2.
Fiama, o poema “Óbidos (Josepha)” e Josepha Ayala
Fiama Hasse Pais Brandão nasceu e morreu em Lisboa (15.08.1938 –
19.01.2007)(en)talhou sua escritura através da literatura, dramaturgia, ensaios e traduções.
Estudou Filologia germânica na faculdade de Letras da Universiade de Lisboa.
Estreou com o livro ―Em cada pedra um vôo imóvel‖ (1957). Sua consciência
literária era tão clara que, esse seu livro de estréia foi retirado de sua antologia poética
―Obra Breve‖ (1991). A poeta escolhe despertar na litertura igualmente como os serves
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vivos, com a predominâcia do elemento água. ―Morfísmo‖ (1961) é o primeiro livro da
antologia ―Obra Breve‖ (1991). Sintamos então o teor de sua poesia então nascida em
germe aquático ―Grafia 1‖:
―Água significa ave
se
a sílaba é uma pedra álgida
sobre o equilibrio dos olhos
se
as palavras são densas de sangue
e despem objetos
se
o tamanho deste vento é um triângulo na água
o tamanho da ave é um rio demorado
onde
as mãos derrubam arestas
a palavra principia‖ (BRANDÃO: 1991, pg. 9)
Com a plaquete ―Morfismo‖ (1961), sequencia de poemas que tratam
ostensivamente de uma evolção da ―palavra d‘agua‖, ou mesmo se mostra como autilização
da metáfora da água em confluência com a profundidade e plurissignificação que a
linguagem verbal pode conter em seus aspectos mais propícios ao nascimento da palavra.
A poesia de Fiama Hasse se carateriza porse mostrar com uma crítica poética para
poetas, visto que ao considerarmos o hermetismo de seus escritos que dificilmente não
causaria em uma leitura à primeira vista algum estranhamento no leitor.
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Este precisa ter no seu repertório de leituras grandes vínculos com a tradição
literária para uma compreesão mais susbstancial de sua poesia.A poesia de Fiama se
caracteriza pela forte presença de um labutar apolíneo, assim sendo, se aproxima mais de
uma ideia de ―arquitextura‖literária.
Com a arquitetura constroe-se a materialização de uma ideia. À luz, ou clareza na
escolha dos conteúdos, bem como, das formas, a poeta se afasta da ingênuidade da
criação―ao sol seco‖ sob a luz de Apolo, (como em Óbidos).
Vejamos com suas próprias palavras extraídas de um poema sem título
do―HOMENAGEMÀLITERATURA‖ (1976)
―[...]O texto não é mais eterno
do que o contexto.
Uma álea de cimento, uma figura nova
entre as áleas de terra.
(BRANDÃO: 1976, pg. 14)
Religa.
Em sua homenagem a literatura a poeta, autora de ―Barcas Novas‖ (1967), fixa-se
na tradição (enquanto conteúdo) para fugir desta na forma. Encimentandono nível
narrativo-discursivo o alicerce reflexivo de sua poética. Atentaremos para o poema
―Obidos (Josepha)‖ que se inicia com um ―eu-lirico‖ que descreve uma postura em relação
so ver/sentir-se frente a um quadro de Josefa de Óbidos:
―Estou sobre o saibro como uma múlher mínima na curva do capitel. A meu lado vejo o
fundo negro das figuras da Adoração suspendidas sobre si. O que conheço da liturgia e
dos temas naturais com que identifiquei a pintura, os grandes tufos de lírios, dálias sem a
luz da variação, apenas com o vinco e o contorno negro da morte como arte condigna para
os seres vivos.‖ (BRANDÂO: 1976, pg. 55)
A autora começa com a descrição do cenário exterior e interior; torre e sino;
abismo a frente, e atrás: ―árvores tridentes da ramagem simples‖ em que é iluminada ―ao
sol seco‖; abaixo argila com mistura de areia e pebras como ―mulher mínima na curva do
capitel‖. Ao lado ―fundo negro das figuras da Adoração suspendidas sobre si‖Note-se que
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não exitou ao som do sino porque exitaria perante o ―Abismo‖. Esse ―Abismo‖ é a
distancia entre a obra literária e o processo de assimilação do leitor como veremos dizer
com seus versos próprios.
Neste quarto dístico (o poema é quase todo composto em dísticos) ―da variação,
apenas com o vinco e o contorno negro / da morte como arte condigna para os seres vivos.‖ são os versos
de ligação, o limiar entre a descrição e a reflexão da obra de arte de Obidos-Josefa com
relação a ao grande paradoxo-motivo de diversas obras barrocas: morte vs vida. vejamos o
que se segue:
―[...] Assim é magnifico todo aquele que seguir a descrição do retrato fictício das suas
faces. O abismo é todo o espaço que mediar entre que não vacila e o modelo de imagens
constantemente
perdidas no passado‖ (op. cit. pg. 56).
Após essa elucidação do ―ver-sentir‖ a obra de arte a autora segue um desfecho reflexivo:
―[...]Pensar que o penasmento de josepha e a severidade para com a beleza
dos frutos, das flores e das figuras humanas é o domínio da vida sobre a ideia da morte. O
sulco do pincel escurona mão de rosa diante da paisagem clara com as faixas de fumo que
coincide com a minha descrição da vida matinal.‖(Idem)
O poema o tempo todo está se relacionando com os paradoxos barrocos,
sobretudo nas semanticidades das palavras ―morte‖ e ―vida‖ que se apresentam contrárias
entre si, ―O sulco do pincel escuro sobre a mão da rosa. Ora, a poeta contrasta sua obra de
acordo com a pitura de Josepha a medida em que no apresentando-a. (para visualização dos
quadros de Josepha consultar Anexo 2, o poema na integra se encontra no anexo 1).
Cabegrafar aqui também que a cidade de Óbidos ainda é uma das mais medievais,
pois preservou muito dessa arquitetura, porém, os interiores das casas assumem o que há
de mais sofisticado. Isto é, Óbidos é uma cidade em que se conserva muito da tradição do
medievo no que cerca arquitetura e arte, mas que não deixa de apresetar facetas da
modernidade principalmente na decoração de interiores.
Essa cidade é uma vilaportuguesa no distrito de Leiria, região Centro e sub-região
do Oeste fazendo parte da Região de Turismo do Oeste, com cerca de 3 100 habitantes.
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É sede de um município que subdividido em 9 freguesias. O município é limitado a
nordeste e leste pelo município das Caldas da Rainha, a sul pelo Bombarral, a sudoeste pela
Lourinhã, a oeste por Peniche e a noroeste tem costa no oceano Atlântico.
Ao contrário do que se possa pensar, o nome Óbidos não deriva da parónimaóbitos, mas
sim do termo latino oppidum, significando «cidadela», «cidade fortificada». É famosa pelaimensa
muralha.
A cidade de Óbidos foi tomada dos Mouros em 1148, e recebido a primeira carta
de foral em 1195, sob o reinado de D. Sancho I. Óbidos fez parte do dote de inúmeras
rainhas de Portugal, designadamente Urraca de Castela (esposa de D. Afonso II), Rainha
Santa Isabel (esposa de D. Dinis), Filipa de Lencastre (esposa de D. João I), Leonor de
Aragão (esposa de D. Duarte), Leonor de Portugal (esposa de D. João II), entre outras. Em
1527, viviam 161 habitantes na vila, o que corresponderia a cerca de 1/10 da população do
município.
A área amuralhada era já nessa época idêntica à actual, ou seja, 14,5 ha. Foi de
Óbidos que nasceu o concelho das Caldas da Rainha, anteriormente chamado de Caldasde
Óbidos (a mudança do determinativo ficou a dever-se às temporadas que aí passou a rainha
D. Leonor). A 16 de Fevereiro de 2007, o castelo da cidade recebeu o diploma de candidata
como uma das sete maravilhas de Portugal
Josefa de Ayala Figueira (Sevilha, Fevereiro de 1630 — Óbidos, 22 de Julho de
1684), foi uma pintora nascida na Espanha que viveu e produziu em Portugal. Seu ái era,
também pintor Baltazar Gomes Figueira (????), natural de Óbidos, com obra em Évora,
que fora trabalhar em Sevilha, onde veio a ter por esposa a andaluziciensse D. Catarina de
Ayala Camacho Cabrera Romero.
Quando tinha apenas quatro anos de idade (ano de1634,), os pais de Josefa
regressam a Portugal, onde vieram a se estabelecer na ―Quinta da Chapeleira‖, em Óbidos.
A Josefa menina se erradica, manifestando desde cedo, vocação para a pintura e para a
gravura em metal, lâminas de cobre e prata, em uma técnica denoinadapontinho.Foi
especialista na pintura de flores, frutas e objectos inanimados.
A influência exercida pelo barrocotornou-na uma artista com interesses
diversificados, tendo se dedicado, além da pintura, à estampa, à gravura, à modelagem do
barro, ao desenho de figurinos de tecidos, de acessórios vários e a arranjos florais.Por volta
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de1653, gravou a edição dos Estatutos de Coimbra. Trabalhou em seguida como pintora da
Igreja católica.
Na Capela do Noviciado do Convento de Varatojo havia uma ―Nossa Senhora das
Dores‖ e, no coro, um ―Menino Jesus‖, quadros que lhe são atribuídos. Outrossim, havia
quadros seus no Mosteiro de Alcobaça, no Mosteiro da Batalha, em Vale Bem-Feito no
Mosteiro de São Jerónimo, em Évora, onde existe um Cordeiro engrinaldado de flores, que
passa por ser um dos seus melhores trabalhos (ver anexo 2).
Como retratista da Família Real Portuguesa, destacam-se os seus retratos da rainha
D. Maria Francisca Isabel de Sabóia, esposa de D. Pedro II, e de sua filha, a princesa D.
Isabel, que foi noiva de Vítor Amadeu, duque de Sabóia, a quem esse retrato foi enviado.
A Academia de Belas Artes também possui um quadro de Josefa de Óbidos.Tendo
vivido quase sempre na Quinta da Capeleira, a sua reputação que granjeou de tal ordem que
muitos dos que iam tomar banhos às ―Caldas da Rainha‖, se desviavam de seu caminho,
para irem a Óbidos cumprimentá-la. Josefa de Obdos, assim ficou conhecida a distinta
pintora que viveu no século XVII, e se chamava Josefa Ayala Figueira, visto que Josefa de
Óbidos é um nome refúgio, nem toda a sua pintura é de Ayala... É do ritual diário do
claustro conventual que nasce a arte de Josefa.
As gravuras em metal que fazia, segundo constava, e que diziam ser excelentes,
estavam em casa de José Gomes de Avelar, parente ainda de Josefa de Óbidos. A ilustre
artista viveu quase sempre na quinta da Capeleira, mas havia alcançado tanta reputação que
muitas das pessoas que iam tornar banhos às Caldas da Rainha, se afastavam do seu
caminho, para irem a Óbidos cumprimentá-la. Josefa de Óbidos faleceu a 22 de Julho de
1684.
3.
Considerações finais
É notável a incursão feminina no mundo das artes antes do século XX. Através de
FiamaHassea pintora de Óbidos volta a tomar cor. Acredito que não por acaso. Existe uma
―coincidência‖ que é praticamente impossível de passar despercebida.
Como foi dito a poucas linhas, a pintora classificada no Barroco português, bem
como nossa poeta da segunda metade do século XX, escolheram passar o resto da vida em
uma quinta. Fiama em Carcavelos e Josefa em Capeleira. Ambas são possuidoras de uma
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dicção particular, nota-se claramente em suas obras o labor limer e uma a liturgia da
expressão artística, ou seja, a vida ritualizada e vivenciada na linguagem.
A pintura de Josefa é essencialmente uma arte devocional e para a entendermos é
necessário conhecer desde Zurbarán até á gravura Holandesa (um católico, a outra, até
protestante) e claro, a pintura de seu pai, Baltazar Gomes Figueira, esse excelente mas
ignoto pintor português.
Não é simples, nem muito ortodoxa, porém contém sentido profundo e extenso.
As imagens da Natureza, o seu melhor, são vistas através de pontos simbólicos do ritmo
natural e sensual das estações do ano, são janelas sobre o seu significado transcendente é ―é
o domínio da vida sobre a ideia da morte. O sulco dopincel escuro/na mão de rosa‖.Suas pinturas são
revelações do divino na natureza e no labor do homem, são sacrifícios litúrgicos, oblações,
em sentido lato e no sentido restrito, Bíblico. Josefa não distingue, entre a pintura religiosa
e a natureza morta, esta é, sempre, pintura religiosa.
Os elementos da sua pintura fazem parte dessa cadeia áurea que se eleva do simples
barro, a matéria, passando pelas plantas e flores, aos animais, ao homem, aos anjos, até ao
puro espírito. Assim, os objetos pintados, profanos ou naturais, são de facto místicos ―morte como arte condigna para os seres vivos.
FiamaHasse utiliza-se do espaço em branco para através da mancha tipográfica
fazer metalinguagem usando o ―Poema como espaço crítico da arte‖, e incurtindonovoas
discursos po(éticos) de utilização desse espaço do poema-crítica-objeto-artisticos.A poeta
atinge um nível de consciência literária que o concede o espaço de ser uma das mais fortes
vozes da literatura portuguesa contemporânea.
4.
Referências
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ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa: volume único: Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2002.
ARISTOTELES; HORÁCIO; LONGINO. Poética Clássica. Trad. Jaime Bruna. São
Paulo: Cultrix, 1992.
BRANDÃO, FiamaHasse Pais. HOMENÁGEMÀLITERATURA. Porto:Limiar,1976.
_________. Obra Breve. Editorial teorema: Lisboa, 1991.
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CAMÕES, Luis de. Os Lusiadas. 2 ed. Porto: Porto Ed, 1986.
GREEN, P. Sapho de Lesbos. Guadalajara: Fondo de cultura econômica, 1971.
HEGEL, G. W. F. Estética. A Idéia e o Ideal. São Paulo: Abril Cultural, Coleção Os
Pensadores, 1974.
LIRA, José. Emily Dickinson: e a poética da estrangeirização. Recife: Programa de
Pós-Graduação em Letras da UFPE, 2006.
MOISES, Massaud. A literatura portuguesa. 36 ed. São Paulo: Cultrix, 2009.
PESSOA, F. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986.
RILKE, Rainer Maria. Torso arcaico de Apolo in: BANDEIRA, Manuel. Poema só para
Jaime Ovalle. Edição de Pedro Moacir Maia. [Salvador]; Santiago [Chile]: Dinamene, 1979.
SILVA, Vitor Manuel de Aguiar e. Teoria da literatura. Coimbra: Liv Almedina, 1997.
Catálogo da Exposição Josefa de Óbidos e o tempo do Barroco. Lisboa: Instituto
Português do Património Cultural, 1991
SOBRAL (2004), Luís de Moura, Catálogo da Exposição A Pintura Portuguesa no
século XVII. Lisboa: Instituto Português de Museus, Museu Nacional de Arte Antiga,
2004.
Catálogo da Exposição A Natureza Morta nas colecções Alentejanas. Évora:
Instituto Português de Museus, Museu de Évora, 1999.
catalogue coordinators: Maria de LurdesSimõesCarvalho, Jordana Pomeroy; texts,
VitorSerrão et al.MC/National Museum of Women in The Arts, Washington,1997
Crowning Glory: Images of the Virgin in the Arts of Portugal.
Mesa redonda: Josefad'Óbidos of Portugal: Love, Mysticism and the Art of Memory", by
Prof. Barbara von Barghahn of George Washington University, Washington DC 1999.
5.
ANEXO 1: POEMA
Óbidos (Josepha)
Se não hesitei quando pela torre ecoou o sino
porque vou hesitar perante o abismo
entre espaldares de árvores tridentes da ramagem simples
ao sol seco.
Estou sobre o saibro como uma múlher mínima na curva do capitel.
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A meu lado
vejo o fundo negro das figuras da Adoração suspendidas
sobre si. O que conheço da liturgia
e dos temas naturais com que identifiquei a pintura,
os grandes tufos de lírios, dálias sem a luz
da variação, apenascom o vinco e o contorno negro
da morte como arte condigna para os seres vivos.
Assim é magnifico todo aquele que seguir a descrição do retrato fictício
das suas faces. O abismo é todo o espaço que mediar
entre que não vacila e o modelo de imagens constantemente
perdidas no passado. Pensar que o penasmento de josepha e a severidade
para com a beleza dos frutos, das flores e das figuras humanas
é o domínio da vida sobre a ideia da morte. O sulco do pincel escuro
na mão de rosa
diante da paisagem clara com as faixas de fumo
que coincide com a minha descrição da vida matinal.
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6. ANEXO 2: IMAGENS
FIGURA 1
(Santa Maria Madalena, 1650, óleo sobre cobre, 22,8x18,4, Museu Nacional Machado de Castro, Coimbra)
FIGURA 2
(Transverberação de Santa Teresa, c.1672, óleo sobre tela, 180x140 cm, Igreja Matriz de Cascais)
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FIGURA 3
(Visão de S. João da Cruz, 1673, óleo sobre tela, 16,5x131,5, Santa Casa da Misericórdia de Figueiró dos
Vinhos)
FIGURA 4
(Cordeiro Pascal, c.1660-1670, óleo sobre tela, 88x116 cm, Museu Regional de Évora)
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FIGURA 5
(O Mês de Março, 1668)
FIGURA 6
(Natureza morta com doces e barros, 1676, óleo sobre tela, 80x60, Biblioteca Municipal Braancamp Freire,
Santarém)
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FIGURA 7
(Anunciação, 1676, óleo sobre tela, 107x88, Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa)
FIGURA 8
(Calvário, 1679, óleo sobre madeira, 160x174, Santa Casa da Misericórdia de Peniche)
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2.
ASPECTOS DA CULTURA ARTÍSTICA DO BARROCO NA PARAÍBA
COLONIAL
Michael Douglas dos Santos Nóbrega13
Orientadora: Dra. Carla Mary S. Oliveira14
RESUMO: O Barroco é caracterizado por suas diversas peculiaridades. Ele foi um estilo
que marcou a cultura européia entre fins do século XVI e começos do século XVIII. Sua
formação esteve ligada diretamente às mudanças ocorridas na conjuntura da Europa da
Contra Reforma e ao imaginário daí decorrente, que influenciou inclusive as mentalidades
de artesãos, artífices e artistas. É possível afirmar que, numa interpretação mais ampliada, o
Barroco foi um dos elementos fulcrais no que se refere à produção e caracterização da
cultura brasileira a partir do século XVII, devendo ele ser compreendido não apenas como
um estilo artístico e literário, mas sim como uma cultura da época. Nosso trabalho tem por
objetivo perceber, através da leitura dos principais teóricos que se aprofundaram sobre o
estilo, tanto na Europa como no Brasil, e no levantamento e análise de algumas imagens de
igrejas presentes na Paraíba, como se deu a construção do estilo nestes espaços da América
portuguesa, ressaltando as características e especificidades próprias desse processo,
comparando-os brevemente com o de outras regiões do Brasil.
PALAVRAS CHAVE: Barroco, História da Arte, Brasil Colônia, Paraíba.
A arte colonial brasileira é marcada pela relevante influência da arte européia. E essa
arte é caracterizada pelo seu poder político, religioso e social. O Barroco é o estilo
predominante nesse período e seu estudo é bastante importante, pois através de sua análise,
poderemos compreender os ramos da colonização luso no Brasil, além de entender a
sociedade colonial brasileira.
O Barroco é um estilo que surge na Europa, mais precisamente na Itália, em um
13
14
Graduando em História pela UFPB, pesquisador UFPB/PIBIC/CNPq
Professora do DH/UFPB.
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período de constantes mudanças. Diversos fatores que ocorreram paulatinamente nos
séculos XVI e XVII modificaram a sociedade européia com o surgimento de novos
modelos políticos, econômicos, sociais e religiosos. A sociedade que estava em processo
transitório e com a formação do regime capitalista passou a possuir novas características e
novos padrões sociais. As ciências e as artes acompanharam essa transição e sua
experimentação mostra claramente essa ligação. É nesse contexto de mudança e transição
que surge o Barroco.
O termo ―Barroco‖, em si, é uma categoria equívoca. Sua compreensão de forma
positiva foi iniciada por Heinrich Wölfflin somente em 1888. Wölfflin foi um importante
historiador da arte e seus estudos foram importantíssimos para a valorização do estilo
barroco. Ele age com uma concepção inovadora do barroco, delimitando categorias e
analisando especificidades do estilo. Os estudos de Wölfflin são até hoje referência básica
para se entender o barroco. Ele trouxe uma comparação do barroco se opondo ao
Renascimento. Para a história da arte nada há de mais natural do que traçar paralelos entre
movimentos culturais e períodos estilísticos. O Barroco, opondo-se ao Renascimento, vem
oferecer o agitado, o mutável (WÖLFFLIN, 1989): assim, a relação do indivíduo com o
mundo modificou-se.
Segundo Wölfflin, o ponto de vista que deve explicar o novo sentimento de forma
barroco é o psicológico, que considera o estilo arquitetônico como expressão da época. O
que constitui a época é tido como base (essência) para a imaginação formal do artista. A
arquitetura participa nessa animação de modo inconsciente da matéria porque ela é a
expressão de uma época. Um estilo só pode nascer onde existe uma intensa necessidade de
determinada forma de existência corporal. A técnica jamais cria um estilo. As formas
produzidas não podem ser opostas ao sentido formal, só podendo sobrepor quando se
submetem ao gosto formal preexistente. Deve se observar a expressão viva do sentimento
popular nas artes decorativas. Nas imagens decorativas o sentimento da forma se satisfaz
imediatamente e sem empecilhos, é ao nível da decoração que sempre aparecem os novos
estilos.
Os escritos de Heinrich Wölfflin são vistos como um apanhado de ideais
norteadores da história do barroco. Ele mostra todas as leis arquitetônicas e sociais para
expressar como se deu o surgimento do barroco, suas características principais, suas
definições e particularidades. Vinte e sete anos após o lançamento de Renascença e Barroco,
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Wölfflin lança Conceitos Fundamentais de História da Arte (1915), onde desenvolve de forma
mais profunda as ideias presentes na primeira obra.
Através de cinco pares de conceitos, ele traz uma análise das características barrocas: linear
X pictórico; plano X profundidade; forma fechada X forma aberta; pluralidade X unidade e clareza X
obscuridade (WÖLFFLIN, 2006, p. 15-16). As definições de Wölfflin ajudam a compreender,
em geral, apenas as manifestações externas das obras artísticas, o que se constitui numa
lacuna da sua obra.
Outra característica essencial do barroco é sua maleabilidade. Ele é um estilo que se
fundi a sociedade local produzindo uma identidade. Essa construção de identidade se da
através do processo formador de uma consciência estética, esse processo se dá lentamente
a partir de criações e mudanças no imaginário de determinada população. As primeiras
mudanças ocorrem em manifestações orais ou visuais. (THEODORO, 1997). Por isso
muitas vezes o patrimônio da nossa identidade está embutido numa serie de manifestações
visuais e orais. O conceito de barroco envolve toda essa capacidade de dissimulação, de
dissolução dos limites entre real e imaginário e também de trânsito entre a idéia de sujeito e
coletividade.
O Barroco europeu chega ao Brasil com suas características essências e se funde
com elementos locais formando o barroco no Brasil. No período colonial do século XVII,
vão começar a surgir novas percepções que irão constituir a nossa gênese. O processo
formador de uma consciência estética surge paulatinamente a parir de criações e inovações
no imaginário de determinada população. O Barroco possibilita uma análise do processo de
formação estilística. As primeiras mudanças ocorrem em manifestações orais ou visuais. Os
autores desse processo devem ser analisados com um olhar próprio da época. Visto que,
eles estavam preocupados com o presente e não passavam por crises de identidade, pois
estavam próximos de um ideal de percepção coletivista. (THEODORO, 1997).
O esforço que o barroco caracteriza é sempre o de construção. O barroco é um
fenômeno histórico determinado tanto no tempo, como no espaço. Ele tinha por objetivo
fundar a sua identidade, daí as suas diferenças locais, visto que, em várias localidades esse
processo de construção de identidade foi diferenciado, pois o homem barroco construía as
suas raízes com o material disponível, apropriando-se do que fosse necessário para sua
constituição.
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O barroco representa um esforço no sentido de criar. O surgimento do novo é
impulsionado pelo que restou dos significados ancestrais. No barroco há uma alteração dos
princípios formais e institui-se uma nova ordem de significações importantes para todos os
envolvidos. Daí então no período colonial do século XVII vai começar a surgir percepções
novas que irão se constituir na nossa gênese. O barroco possibilita uma observação do
processo de formação estilística. O homem barroco construía as suas raízes com o material
disponível, apropriando-se do que fosse necessário para sua constituição.
As manifestações do barroco, no Brasil, tiveram objetivos distintos em sua maioria,
conforme se pode observar no discurso de Oliveira (1999):
Desse modo, entendemos que as igrejas barrocas do Centro-Sul do país,
mesmo aquelas de menor fausto, são monumentos não para a catequese,
mas sim para a glorificação da Fé, para a celebração dos ritos católicos por
uma população já católica, fosse ela abastada ou miserável. No Nordeste,
ao contrário, ao apelo visual do Barroco deveria se agregar o elemento
catequizador, com o objetivo primordial de evangelizar os silvícolas infiéis
pelo olhar, pelos símbolos visuais do cristianismo e, em última instância,
pela agregação de elementos locais como estratégia de aproximação e
assimilação simbólica. (Oliveira, 1999, p. 121-122).
No Nordeste o barroco se ligou à consolidação da ocupação territorial. O Barroco
existente na Paraíba é um referencial para se entender como se deu o processo de conquista
e colonização do litoral nordestino. O Barroco além de ser uma categoria estética também
representa as características específicas de uma identidade local. O aparecimento das
formas barrocas dá-se em épocas diferentes em cada país (LINDINGER, 1978, p. 3).
O Barroco na Paraíba possui especificidades que poderemos tratar como
particulares. Vale ressaltar que os estudos sobre o barroco paraibano só são possíveis
graças ao trabalho de Carla Mary Oliveira que toma o barroco paraibano como objeto de
estudo e contribui grandemente para sua análise. O Barroco paraibano nos leva a busca das
sutilezas, que nos proporcionam a conhecer aspectos do imaginário colonial presente no
estado. As fontes e o poderio
Barroco na Paraíba podem ser vistos como uma forte demonstração política da
época. Um fato interessante é que a maioria dos artífices paraibanos é anônima. Não havia
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uma preocupação com a identificação do artífice. Essa total ausência dos registros das
construções nos instiga.
O fato é que, caso saibamos os nomes dos artesãos, artífices e artistas que
então aqui atuaram, pouco vai modificar a situação de suas obras dentro
do universo Barroco, visto que, ao contrário de seus congêneres europeus,
tais homens não tinham uma posição social influente ou próxima às cortes.
Pode-se dizer que seu status era semelhante ao desfrutado pelos artesãos da
Idade Média: o que importava era o objetivo da obra e não aquele que a
fazia, e por isso mesmo, o registro de seu nome não era considerado
importante. (Oliveira, 1999, p. 71)
Desde os primórdios a Igreja Católica tinha nas obras de arte, através de símbolos e
alegorias, um modo de doutrinação dos fiéis, visto que muitos eram leigos. A obra de arte
pode expressar diversas situações do imaginário social de determinada localidade. A
interpretação da obra de arte é usada como método para a compreensão desse imaginário.
Nesses diferentes processos do uso do barroco as mais diversas características identitárias
foram construídas e expressadas. Conforme podemos observar nos estudos de Erwin
Panofsky (1955):
Nem sempre a obra de arte é criada com o propósito exclusivo de ser
apreciada, ou, para usar uma expressão mais acadêmica, de ser
experimentada esteticamente. (PANOFSKY, 2009, p. 30).
É nesse sentido que fundamentamos nossa análise acerca da cultura artística do
Barroco na Paraíba. Sendo essa a tarefa de um historiador da arte. O Barroco só se tornou
possível graças ao caráter migratório e globalizador, que se constitui de elementos fundidos.
Essa caracterização do barroco, além de sua grande cultura artística, constitui na época um
elemento alegórico, que tem por objetivo expressar algo além daquilo que se pode ver.
Com isso, podemos deduzir que as obras do barroco possuem signos e caracteres que
expressam, de certo modo, situações que são frutos da realidade social na qual o artífice e o
comprador da obra estão inseridos.
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Os signos e estruturas do homem são registros porque, ou antes na
medida em que, expressam idéias separadas dos, no entanto, realizadas
pelos, processos de assinalamento e construção. Estes registros têm
portanto a qualidade de emergir da corrente do tempo, e é precisamente
neste
sentido
que
são
estudados
pelo
humanista.
Este
é,
fundamentalmente, um historiador. (PANOFSKY, 2009, p. 24).
Diversos símbolos alegóricos são encontrados presentes na arquitetura religiosa da
Paraíba. Inicialmente temos símbolos que revelam o poder lusitano (figura 1) que se fazia
presente nas terras paraibanas (OLIVEIRA, 1999).
Fig. 115 - Cruz de Malta no portal central da
galilé, Igreja de São Francisco
(João Pessoa - PB)
A imagem acima, da cruz de malta, pode deixar claro a presença política ligada à
religião através da arte era uma realidade. Desse modo, podemos reafirmar a questão acerca
da produção intencional da obra de arte, que é feita para causar do que se pode ver. É
preciso atenção para um identificação acerca da idéia central da obra de arte, e um dos
mecanismos que facilita essa identificação é o método de Erwin Panofsky, que constitui
numa análise iconográfica e iconológica da obra. Segundo Omar Calabrese (1987) ―a
iconologia vai desde á identificação do tema a uma leitura da obra, que liga à complexidade
da cultura e das atitudes mentais da época‖.
15
Todas as figuras apresentadas nesse artigo foram retiradas da Dissertação O barroco na Paraíba: arte,
religião e conquista, de Carla Mary S. Oliveira.
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A história da arte passa a ser vista como a história dos fatos estilísticos, concebidos
como símbolos que exprimem os mais diversos processos de abstração da mente humana.
Um historiador de arte, portanto, é um humanista cujo ―material primário‖
consiste nos registros que nos chegaram sob a forma de obras de arte.
(PANOFSKY, 2009, p. 30).
A iconologia é bastante importante para a compreensão das obras de arte e para sua
inteira assimilação. Ate porque a história da arte faz um discurso imagético. Desse modo, a
obra de arte em si não se limita a sua exibição, e sim à uma análise dos seus símbolos em
justaposição de sua análise interpretativa. Sendo assim podemos compreender a
complexidade da obra e sua importância, visto que, nela estarão inseridas diversas emoções
e singularidades (até mesmo generalizadas) dos artífices e de sua época contemporânea.
Entende-se por essa singularidade questões sociais, econômicas, políticas, afetivas e etc.
O Santuário de Nossa Senhora da Guia (figura 2) na cidade de Lucena/PB é um
referencial para exemplificar o poder simbólico do Barroco litorâneo.
Fig. 2 - Igreja de Nossa Senhora da Guia (Lucena - PB).
Primeiramente podemos observar a localização do Santuário (figura 3), que é visto
num ponto estratégico.
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Fig. 3 - Vista aérea da barra do rio Paraíba.
LEGENDA:
1 - Fortaleza de Cabedelo.
2 - Igreja de N. Sra. da Guia.
3 - Ilha da Restinga.
4 - Ponta de Lucena.
A localização do templo nos mostra uma característica essencial da conquista, que é
a preocupação militar. A segurança da Capitania estava assegurada através de pontos
estratégicos. Além disso, pode-se observar que a Igreja de Nossa Senhora da Guia
localizava-se próximo a um aldeamento indígena. O que atesta a idéia de uma obra voltada
para a catequese e evangelização dos silvícolas.
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Fig. 4 - Ornamentação central da fachada. Igreja de Nossa Senhora da Guia (Lucena - PB).
A fachada (figura 4) do templo da irmandade carmelita é bastante exuberante e é
tipicamente uma obra de forma aberta, que possibilita a verdadeira intenção, que é a de
interação da obra com o espectador. Segundo Oliveira (1999) sua fachada é uma obra
claramente incompleta, mas que pode denotar claramente sua suntuosidade e sua idéia
central. No seu contexto é claro a presença de elementos da fauna e da flora locais, como
por exemplo, frutas típicas do litoral paraibano. O que nos instiga a cerca da influência que
essa obra causava na mentalidade do índio, ao se defrontar com esse tipo de arte.
No que diz respeito às características arquitetônicas do templo, salta aos
olhos a exuberância de sua fachada, mesmo sem ela ter sido concluída. O
tradicional brasão da ordem carmelita se ergue sobre os portais que dão
acesso à galilé, sustentado por dois anjos de vestes fartas e drapeadas.
Sobre esse conjunto abre-se um nicho que devia abrigar, anteriormente,
uma imagem de Nossa Senhora. O pitoresco, nesse baixo-relevo, é o fato
de ele estar emoldurado por folhagens, cajus, abacaxis, bananas, frutos de
cacau, pinhas, guirlandas de flores e volutas. São representações em que se
destaca a tentativa de alcançar um refinamento que, no entanto, escapa aos
artífices. Mais ainda, podemos interpretá-lo como uma tentativa de
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aproximação com o universo indígena, facilitando, assim, a pregação dos
carmelitas. (OLIVEIRA, 1999, p. 90-91).
A predominância do Grand style presente na arquitetura paraibana é bastante ampla
e mostra claramente o poderio da Igreja Católica, ligada à Coroa portuguesa na colônia.
Sendo a arquitetura barroca um meio para a transmissão desse pensamento de poder da
Coroa dominante em relação à Colônia.
Fig. 5 - Fachada da Igreja de São Bento.
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Fig. 6 - Fachada da Igreja de São Francisco (João Pessoa - PB).
Dessa forma, continuando nossa análise sobre o Barroco paraibano, iremos nos
voltar para traçar paralelos entre as mais diversas fontes sobre o tema. A análise de
documentos presentes no Arquivo Eclesiástico da Paraíba e no Acervo do Arquivo
Histórico Ultramarino de Lisboa e justaposição com a análise iconológica dos monumentos
paraibanos, a fim de construir uma possível teoria do Barroco paraibano.
Referências Bibliográficas
CALABRESE, Omar. A linguagem da arte. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1987.
OLIVEIRA, Carla Mary S. O barroco na Paraíba: arte, religião e conquista. João Pessoa: Ed.
Universitária/ UFPB; IESP, 2003.
PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. São Paulo: Editora Perspectiva, 2009.
VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 92
TAPIÉ, Victor‐ Lucien. O barroco. Trad. de Armando Ribeira Pinto. São Paulo: Cultrix,
Edusp, 1983 [1961].
THEODORO, Janice. O barroco como conceito. Revista do IFAC, Ouro Preto, Instituto
de Filosofia Artes e Cultura da Universidade Federal de Ouro Preto, n. 4, dez. 1997, p. 2129.
WÖLFFLIN, Heinrich. Renascença e barroco. Trad. de Mary Amazonas Leite de Barros e
Antonio Steffen. São Paulo: Perspectiva, 1989 [1888].
_________. Conceitos fundamentais da história da arte. 4. ed. Trad. de João Azenha Jr. São
Paulo: Martins Fontes, 2006 [1915].
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3.
QUESTÕES
SOCIAIS
E
ESTÉTICAS
NA
ESCULTURA
DE
ALEIJADINHO
André Pinheiro
(Universidade Federal do Rio Grande do Norte)
Hoje em dia, deve-se reconhecer que o Aleijadinho não era apenas o artista mais
representativo da era colonial, mas também um dos grandes responsáveis pelo processo
formativo da arte brasileira. Para que se ateste a importância de sua presença na história
artística do país, basta mencionar que muitas obras do movimento Modernista foram
criadas a partir de fundamentos que caracterizavam o trabalho do escultor mineiro – como
a explosão das cores, a composição conflitante das cenas, o movimento sedutor dos
personagens e a apreciação de temas locais. Evidentemente, se os modernistas voltaram
cerca de 200 anos atrás para resgatar a obra de um brasileiro, então é preciso admitir que
ela cumpre importante papel para o projeto de afirmação da arte nacional; com efeito, a
partir do reconhecimento da soberania estética de Aleijadinho, o modelo da arte européia
cai em desuso e, conseqüentemente, já não figura como principal parâmetro para a criação
de novas obras no Brasil. Dessa forma, o escultor acabou se transformando na base
fundadora que resultaria na construção de um sistema artístico brasileiro devidamente
solidificado.
Não há dúvida de que os modernistas foram atraídos pela modulação tropical que
assinala boa parte dos trabalhos de Aleijadinho; uma investigação mais detalhada revela
que, de fato, alguns sedimentos da realidade local estavam densamente representados na
estrutura de sua obra. Claro, o modo como o artista integrou a sociedade da época muito
contribui para que suas esculturas adquirissem essa tonalidade regional. Primeiro, sabe-se
que o Aleijadinho era filho de uma escrava negra com um colono português, de modo que
essa ambigüidade cultural o marcou em demasia; não seria exagero, portanto, afirmar que o
artista trazia na própria pela a natureza miscigenada daquela sociedade. Por outro lado, não
se pode esquecer que a formação cultural e humana do Aleijadinho teve como pano de
fundo a conflitante situação colonial. Dessa forma, os aspectos biográficos e a realidade
histórica contribuíram mutuamente para que o escultor extraísse da terra pátria as suas
matérias de maior expressão.
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Como o Aleijadinho era parte constituinte de uma sociedade e a sua obra escultórica,
como toda linguagem, só adquire significado inteligível na medida em que se relaciona com
certas práticas sociais, então parece lícito fazer uma análise que proponha examinar as
relações entre a arte e a sociedade. Evidentemente, não se pretende recorrer ao contexto
social para justificar as escolhas temático-formais do artista; bem pelo contrário, a realidade
externa não aparece no exame crítico como um dado determinista, mas sim como um
elemento relacional. Por isso mesmo, o conceito de redução estrutural ou formalização,
proposto por Antonio Candido para analisar as relações entre arte e sociedade, parece ser o
mais adequado, haja vista a sua natureza extremamente dialógica. Na introdução de um de
seus livros, Antonio Candido define as bases dessa teoria:
Os ensaios da primeira parte deste livro tentam analisar alguns casos do que
chamei redução estrutural, isto é, o processo por cujo intermédio a realidade do
mundo e do ser se torna, na narrativa ficcional, componente de uma
estrutura literária, permitindo que esta seja estudada em si mesma, como
algo autônomo (CANDIDO, 2004: 28).
Embora Candido tenha formulado essa linha de estudo para o exame do texto
literário, não resta dúvida de que o processo de formalização endossa a composição de
qualquer modalidade de arte. Mais do que um método de análise, a redução estrutural é um
procedimento inerente à própria obra, tornando-se um de seus elementos efetivos. Através
desse processo, o artista transfere dados da realidade exterior para o arranjo estrutural dos
seus trabalhos, como se a matéria social ganhasse uma forma. Se o caminho for trilhado em
sentido inverso, o analista logo conclui que a forma de uma obra de arte denuncia
importantes aspectos da sociedade na qual ela fora gerada.
Um dos aspectos que, de certo modo, diferencia a escultura de Aleijadinho daquelas
produzidas pelo barroco europeu é a prática de esculpir obras que atendam a uma espécie
de montagem cênica; com efeito, grande parte de seus trabalhos retrata episódios coletivos
ocorridos em um cenário bem definido. Tomando o conjunto A última ceia (Fig. 1) como
exemplo, percebe-se que Aleijadinho compôs uma série de objetos, como mesa e janelas,
para delinear com precisão o ambiente no qual os personagens estavam inseridos; do ponto
de vista estético, esse recurso alarga o campo de observação do espectador e o integra ao
próprio espaço representado, tornando mais intensa e vibrante a sua experiência com a
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obra de arte. O gosto pela representação de cenas com muitos personagens era bastante
comum na pintura da época; a atividade escultórica, no entanto, ainda estava centrada na
concepção de uma única figura ou de um pequeno grupo, geralmente encomendado para
túmulos ou para praças públicas. O acervo de Bernini, por exemplo, tem um número
considerável de obras que evita reproduzir o perfil solitário das esculturas renascentistas,
mas nenhuma delas atinge um nível de agrupamento tão intenso, como aquele que
caracteriza a série ―Passos da via-sacra‖, composta por Aleijadinho entre os anos de 1795 e
1799.
Figura 1 - A última ceia
Evidentemente, a preferência por uma espécie de modelo aglomerado traz
conseqüências imediatas para a apreciação da obra, já que o sentido de uma escultura
também se define pelos vazios do espaço que a torneiam. Em seu estudo sobre a percepção
visual na obra de arte, Rudolf Arnheim destaca exatamente esse aspecto dialógico
estabelecido entre a forma da matéria e a forma da não-matéria:
(...) a escultura supera os limites de seu corpo material. O espaço
circundante, ao invés de permitir passivamente ser deslocado pela estátua,
assume um papel ativo. Invade o corpo e se apodera das superfícies do
contorno das unidades côncavas. Esta descrição indica que, exatamente
como observamos nas relações figura-fundo bidimensionais, espaço e
escultura interagem aqui de uma maneira eminentemente dinâmica
(ARNHEIM, 2006: 232).
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Ao compor um conjunto com um número acentuado de personagens, o Aleijadinho
estava preenchendo com uma escultura o espaço vazio de outra escultura; por isso mesmo,
o artista acabou imprimindo um efeito de unidade muito forte em sua obra, tanto que se
torna difícil discernir os limites de cada peça. Mas o que importa mesmo nesse processo de
criação é o fato de que o Aleijadinho teve a sabedoria para reconhecer que, em escultura, o
espaço funciona como um elemento operacional.
Se, por um lado, a organização cênica operada pelo escultor mineiro corresponde a
uma tendência estética em voga na época (uma vez que a arte barroca tinha certa inclinação
para o descomedimento), por outro, pode-se dizer que essa prática também está
diretamente ligada a um dado de ordem social. Durante o período colonial brasileiro,
grande parte da população era analfabeta e a igreja precisava, a todo custo, conquistar e
preservar a fé dos cristãos, que era facilmente abalada pela própria condição assistemática
da vida na colônia. Encomendadas pela igreja católica, as esculturas eram usadas com o
intuito de narrar as histórias bíblicas para as pessoas que não sabiam ler – um modo prático
e eficaz de prender a atenção dos fiéis. Daí porque era importante compor um conjunto
que desse ao espectador a sensação de estar inserido na cena narrada e, por conseguinte,
fizesse-o crer que estava na companhia do próprio deus. Apesar do efeito catequizador, a
obra de Aleijadinho traz marcas sociais que a desvincula da mera matéria religiosa; de fato,
o tema retratado pode até ter um caráter místico, mas a composição inquietante da forma é
o reflexo da caótica ordem social vigorante no país. Evidentemente, essa relação com a
sociedade adquire importância na medida em que se apresenta como uma alternativa capaz
de superar a ideologia cristã e de deixar florescer a soberania do gênio criador.
O uso de acessórios na concepção das obras (como cordas, alguns metais e objetos
esculpidos para ornamento) parece ser outro aspecto que aproxima os trabalhos de
Aleijadinho do seu condicionamento social. A princípio, pode-se pensar que o escultor
mineiro é responsável pelo estabelecimento de uma nova concepção de arte, que já se
mostrava descomprometida com as regras impostas pelo modelo clássico; com efeito,
aquela unidade indestrutível do bloco de mármore fora substituída por um arranjo
vertiginoso dos objetos e das matérias-prima. É preciso reconhecer, entretanto, que esses
trabalhos não oferecem um plano de superação estética, até porque não havia no Brasil um
modelo sistemático para ser superado. Dessa forma, a prática inusitada de utilizar diferentes
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materiais na criação das estátuas está ligada, antes de qualquer coisa, a um dado de ordem
objetiva; ou seja, o artista esculpia as peças de acordo com os objetos que tinha a sua
disposição. Acontece que, ao proceder dessa forma, Aleijadinho estava inserindo elementos
de caráter social na própria estrutura de sua obra, uma vez que a madeira, a pedra, o ferro e
a corda tinham um sentido muito bem definido para a sociedade da época; ligados a idéia
de opressão e de atraso, esses artefatos constituem uma espécie de materialização da
situação na colônia.
Para início de conversa, a presença abundante de esculturas em madeira já pode ser
encarada como uma fonte de documentação sobre a situação econômica do Brasil na
época. A madeira foi a primeira grande forma de riqueza da colônia e nada mais natural que
ela fosse utilizada para os mais variados fins, inclusive para a criação de obras de arte. É
certo que a ausência do mármore em terras tropicais foi um dos fatores contribuintes para
que Aleijadinho não o tivesse utilizado em suas criações (a idéia de importar da Europa
esse material parecia descabida); no entanto, ao esculpir com um elemento importante para
a economia colonial, o artista estava firmando uma relação entre a sua arte e a realidade
local. Mas se a escultura de Aleijadinho era feita com uma das melhores matérias-prima que
a região podia oferecer, também é preciso admitir que essa matéria não comportava altos
padrões de nobreza. Dessa forma, a própria madeira estava marcada por uma relação
dicotômica estabelecida entre a representação de uma riqueza (já que refletia o poderio
econômico da colônia) e a imagem da pobreza (já que essa economia se mostrava
insuficiente, se comparada com o alto requinte da metrópole). Os demais materiais
utilizados por Aleijadinho também trazem um sentido simbólico muito ligado à realidade
colonial. A pedra e o ferro, por exemplo, são culturalmente marcados pela idéia de impasse,
sofrimento e dificuldade. Ora, são exatamente esses termos que assinalam a natureza do
trabalho escravo praticado no Brasil; também não se pode esquecer que o ferro foi o
elemento mais empregado para aprisionar e para castigar os escravos. Depois, muitas obras
civis de grande porte (como barragens e fortalezas) foram construídas em pedra, de modo
que esse elemento acabou se transformando em uma espécie de símbolo do trabalho árduo
e do suplício. Já as cordas comportam um sentido simbólico ligado à idéia de
aprisionamento, uma vez que elas eram comumente utilizadas para atar partes de uma
construção, animais bravios e até mesmo escravos; não é de se estranhar, portanto, que no
conjunto A flagelação (Fig. 2) o Aleijadinho tenha usado uma corda para representar o Cristo
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aprisionado, esculpido em pose muito semelhante a de um escravo arredio. Desse modo,
pode-se dizer que, mais do que compor um ato de sofrimento, o artista estava criando uma
obra com o próprio sofrimento materializado. Cabe observar, por fim, que o emprego de
técnicas e materiais diferentes (ocorrido por conta desse diálogo com a realidade social) vai
criar um efeito estético diverso daquele encontrado na Europa –o que permite considerar
os trabalhos de Aleijadinho como a primeira manifestação escultórica de caráter tropical.
Figura 2 – A flagelação
Há uma explicação de cunho social até mesmo para o excesso de objetos
ornamentais; com efeito, eles foram elaborados com o intuito de facilitar a leitura das cenas
e, conseqüentemente, auxiliar no processo de educação religiosa dos colonos leigos. O
modelo escultórico europeu se limitava a representar o elemento essencial de um episódio,
cabendo ao espectador compor um enquadramento condizente com o que estava sendo
delineado. O Davi de Bernini, por exemplo, mostra o exato momento em que o heróico rei
iria atacar o gigante Golias; foi absolutamente desnecessário representar o rival e o espaço
onde ocorrera o evento, já que a grande expressividade dessa obra está antes na tensão que
dominava o personagem e no denso movimento do seu corpo do que no duelo
propriamente dito. Acontece que essa unidade não é tão simples de ser alcançada quando
uma obra precisa cumprir uma tarefa didática. Com efeito, o caráter missionário da
escultura de Aleijadinho é, em parte, responsável pelo estabelecimento de um modelo
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rigoroso e preciso de representação; parece que o escultor fora guiado pela idéia de que o
objeto artístico não poderia gerar qualquer dubiedade quanto ao conteúdo apresentado,
pois as lacunas certamente prejudicariam o entendimento dos episódios bíblicos. É por esse
motivo que o Aleijadinho persistiu em manter a técnica de esculpir detalhes tão
minuciosos, como o pão sobre a mesa em A última ceia (Fig. 1), as pedras sobre as quais se
deitam os apóstolos João e Pedro em Cristo no Jardim das Oliveiras e a presença de uma
criança em O salvador carregando o madeiro. Evidentemente, é um tanto falaciosa essa
pretensão de dar às esculturas uma definição exclusiva, pois a obra de arte (sobretudo a
barroca) tem uma forma naturalmente aberta, no sentido de que o seu significado não se
restringe apenas àquilo que está sendo representado; independente dos detalhes utilizados
na concepção de um conjunto escultórico, haverá sempre uma explicação cultural e
simbólica que extrapola os limites formais do objeto. Diferenças a parte, há de se convir
que, se Bernini seduz pela força expressiva de seus personagens, Aleijadinho encanta
exatamente pela densa organização de seus episódios.
Apesar de não ter sido realizada na época de Aleijadinho, a pintura das esculturas
também auxilia na tarefa de capturar a atenção dos fiéis, já que as cores exercem um
fascínio muito grande sobre os espectadores. Além de transmitir a idéia de um quadro vivo,
a pintura deixa as esculturas parecidas com aquelas estátuas fabricadas em série – tão
comuns em altares da igreja católica e em retábulos de casas particulares; dessa forma,
decorridos anos da morte do artista, o clero manteve vivo o caráter missionário de sua
obra, estreitando ainda mais a sua relação com o gosto popular. O crítico de arte Rudolf
Wittkower, em seu livro Escultura, destaca exatamente esse estreito diálogo estabelecido
entre as esculturas policromadas e o gosto popular; de acordo com Wittkower, ao longo da
história da arte, as obras executadas em mármore branco eram comumente destinadas ao
público culto ao passo que a madeira pintada se voltava para o espectador leigo:
As obras de alto nível, criadas para um público conhecedor, para os grandes
e cultos, imitavam os mármores romanos, destituídos de cores, enquanto a
policromia era reservada às obras populares, realizadas com materiais
inferiores e de menor preço (WITTKOWER, 2001: 192).
Mas é preciso admitir que a pintura também corresponde ao jeito alegre e festivo da
vida na colônia, cuja condição urbana lembrava, em alguns aspectos, o caráter folclórico e
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popular da era medieval; naturalmente, uma escultura monocromática parece contradizer a
índole de um lugar colorido, quente, de natureza exuberante e marcado por uma etnia
diversificada. Todas essas inovações no suporte, portanto, só vêem a ratificar a posição
vanguardista dos trabalhos de Aleijadinho, que pareciam ter negado com mais intensidade
o equilíbrio renascentista do que fizeram os próprios escultores europeus.
No entanto, o aspecto mais rigorosamente localista da arte de Aleijadinho talvez seja
a mistura de técnicas e arquétipos populares com os procedimentos característicos de uma
formação erudita; de fato, uma rápida sondagem nos trabalhos do escultor já é suficiente
para que neles se reconheçam vestígios de uma escola de mestres entalhadores e resquícios
de um aprendizado proveniente da vivência com o povo. É por esse motivo que, mesmo se
ocupando em retratar temas universais, a modelagem das peças apresenta um perfil
condizente com a realidade social da região. Dessa forma, pode-se dizer que a própria
estrutura da arte de Aleijadinho já se configura como um delineamento da tensão instituída
em torno da realidade européia (que aparece como tema) e da realidade brasileira (que
aparece como forma) – um conflito que atingiu seu ponto mais crítico depois que a colônia
manifestara o desejo de se desligar da metrópole. No conjunto A flagelação (Fig. 2) esse
movimento dialético em torno dos componentes locais e universais está bem explícito,
pois, embora o Cristo tenha os traços que a arte européia lhe atribuiu, a maneira como a
cena foi concebida logo remete ao sofrimento dos escravos espancados no pelourinho.
Depois, apesar da alinhada vestimenta, o rosto de alguns soldados romanos foge
completamente ao fenótipo europeu, lembrando antes aqueles bonecos de ventríloquos
esculpidos em madeira bruta. Há de notar também que, diferentemente do que se espera de
um membro da milícia romana, o soldado posicionado à direita do Cristo tem uma linha
dorsal circunflexa e desajeitada, aspecto que lhe furta todo o clima de autoridade e
imponência.
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Figura 3 - A prisão de Cristo
Em um ensaio de fundamentação socialista, o historiador de arte Alberto Manguel
também destaca a presença de elementos regionais na composição dos trabalhos
escultóricos, arquitetônicos e decorativos de Aleijadinho. Manguel detectou traços da
cultura africana em uma parte significativa da obra do escultor mineiro, sobretudo nos
artefatos ornamentais da Igreja de São Francisco:
Ali as imagens religiosas, embora cristãs, também se prestavam a uma leitura
segundo a tradição africana, a ser feita pela população negra que afluía como
rebanho à igreja. (...) Em São Francisco, as imagens podem ser européias,
mas a articulação, as correntes ocultas de significado pertencem
definitivamente às tradições negras da África, o inverso do branqueamento.
(MANGUEL, 2006: 239)
De acordo com Manguel, ao compor imagens religiosas que combinavam
características da liturgia cristã com elementos das religiões africanas, Aleijadinho estava
lutando para que o efeito missionário de sua arte atingisse toda a etnia colonial. Cumpre
observar, entretanto, que a matiz africana é a base estruturadora da obra – aspecto que
pode ser entendido, segundo o crítico, como um ato de resistência contra a tese do
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branqueamento16. De qualquer forma, está claro que a arte do Aleijadinho é um desenho
preciso da variedade étnica da população colonial, pois nela encontram-se facilmente traços
do povo europeu, dos colonos e dos negros escravizados. Nesse sentido, não é exagero
afirmar que a própria matéria sacra apresenta ressonâncias sociais; além das semelhanças do
Cristo com um escravo em A flagelação (Fig. 2), conforme já fora anunciado, os soldados
romanos também comportam traços do povo português. Depois, o trabalho executado por
alguns integrantes da milícia antes lembra a ação dos impávidos desbravadores do sertão
brasileiro do que um ato de tortura propriamente dito; a atitude eufórica dos soldados que
integram o conjunto A prisão de Cristo (Fig. 3), por exemplo, parece ser demasiado áspera
para quem pretende prender um líder pacificador que não oferecera qualquer tipo de
resistência física.
Por fim, voltando-se mais restritamente para o aspecto formal, é preciso destacar que
a composição dos corpos parece ser uma espécie de correlato objetivo para a situação do
Brasil na época, uma vez que a idéia de indefinição e imperfeição é facilmente reconhecida
nas esculturas do artista. Primeiramente, cabe observar que o Aleijadinho utilizou diversas
medidas para a concepção de um
cânon, de modo que nem todas as
partes do corpo humano têm uma
relação justa entre si; mesmo assim,
é flagrante o desejo de combinar
variações de um modelo natural
(proveniente da observação imediata
do ser humano) com variações de
um modelo ideal artístico (resultante
Figura 4 – A coroação de espinhos
de
um
estudo
estético).
A
distribuição dos módulos operada em A prisão de Cristo (Fig. 3), por exemplo, revela que o
protagonista tem uma estatura muito mais elevada do que aquela utilizada para retratá-lo
nos demais conjuntos; evidentemente, tais escolhas formais têm um significado estético
ligado à idéia de conflito e inquietação, mas nem por isso elas deixam de ser reflexo de um
sistema social igualmente tenso e inquieto. Ainda nesse conjunto, as mãos do Cristo
16
Acreditava-se na época que o escravo passava por um processo natural de branqueamento espiritual
depois que ele se tornava independente e ascendia socialmente; rejeitando a idéia preconceituosa que
endossa esse ponto de vista, o escultor prezou por expor as piores facetas de sua brancura.
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chamam a atenção pela sua curvatura exorbitante, como se estivessem deslocadas do eixo
natural do corpo. Levando-se em consideração que a imagem da mão está associada tanto à
ardileza do trabalho quanto à afabilidade do companheirismo, então ela acaba por
representar uma dupla deficiência na vida da colônia; desse modo, a organização estrutural
da obra de Aleijadinho denuncia a presença de um lugar marcado pela distribuição irregular
do trabalho e pelo individualismo resultante da ambição de se tornar rico. Alguns
personagens desse conjunto também têm um movimento duro e esquematizado, como se
eles tivessem dificuldade de se locomover pelo ambiente no qual estão inseridos; a rigidez
da forma acaba por destacar os indivíduos do cenário montado, transmitindo a idéia de que
os problemas sociais foram responsáveis por essa cisão.
Mas o modo como o Aleijadinho compôs mãos e braços é, de fato, um aspecto de
grande relevância para se averiguar o substrato social presente na obra do escultor; em A
coroação de espinhos (Fig. 4), a figura do Cristo apresenta um braço forte, de onde saltam veias
grossas e ardentes – aspecto que, de certa forma, contradiz aquela imagem serena e frágil
divulgada pela tradição religiosa. Com efeito, os membros superiores desse Cristo são
típicos dos homens que trabalham na lavoura ou em qualquer outra atividade braçal –
seguramente, a fonte de renda mais freqüente da colônia na época; trata-se, portanto, de
um personagem cuja atividade tem caráter mais físico do que intelectual. Por isso mesmo, é
inevitável que se associe as mãos atadas e os seus gestos duros com a prática escravocrata
exercida no Brasil. Se, por um efeito de teste, fosse possível deslocar os membros do
restante do corpo, o expectador perceberia que eles não têm muita consonância com o
tema religioso, sobretudo com a imagem de Jesus. É por meio dessas agregações de
elementos díspares, portanto, que o Aleijadinho projeta a substância social na estrutura de
sua obra, resultando na criação de um quadro onde a realidade colonial invade o mito
religioso. Mas é preciso ter um olhar vigilante e investigativo para entender o modo como
se estabelece esse processo, pois é através de pequenos detalhes formais e estruturais que o
artista promove o incurso da sociedade no tema de suas esculturas.
Referências
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ARNHEIM, Rudolf. Arte & percepção visual. São Paulo: Pioneira / Thomson Learning,
2006.
BAZIN, Germain. O Aleijadinho. Rio de Janeiro / São Paulo: Record, 1971.
CANDIDO, Antonio. O discurso e a cidade. 3ª ed. São Paulo: Ouro sobre Azul, 2004.
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
JORGE, Fernando. O Aleijadinho: sua vida, sua obra, sua época, seu gênio. 7ª ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2006.
MANGUEL, Alberto. ―Aleijadinho: a imagem como subversão‖. In.: Lendo imagens. São
Paulo: Companhia das Letras, 2006.
WITTKOWER, Rudolf. Escultura. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
WÖLFFLIN, Heinrich. Conceitos fundamentais da história da arte. 4ª ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2006.
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4.
DISTORSIONES ESPACIALES Y TEMPORALES EN EL ARTE DEL
CARIBE INSULAR
Helga Montalván Dias – Consejo Provincial de Artes Plásticas – Cuba
El Caribe abarca una extensa área que enlaza a las porciones sur, centro y norte de
América Latina. Sus aguas configuran el litoral de varios países del continente y envuelven
un abanico de islas que asciende desde Trinidad y Tobago hasta el archipiélago cubano. Se
considera como Caribe Insular el Arco de las Antillas Menores y Mayores, donde aparecen
los siguientes países: Antigua y Barbuda, Barbados, Cuba, Dominica, Granada, Haití,
Jamaica, Santa Lucía, Saint Kitts y Nevis, San Vicente y las Granadinas y Trinidad y
Tobago, incluyendo los territorios dependientes: Aruba y Antillas Holandesas; Guyana
Francesa, Guadalupe y Martinica, departamentos franceses de ultramar; Anguila,
Montserrat, Islas Vírgenes Británicas, Islas Caimán e Islas Turcas y Caicos, pertenecientes
al Reino Unido; y Puerto Rico y las Islas Vírgenes Estadounidenses.
Estos serán
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estudiados a partir de la concreción de tres grupos en función del habla: los hispanos, los
anglófonos y los francófonos, y en menor medida los de habla holandesa.
Con este trabajo, propongo enunciar posibles redefiniciones para el barroco en el
Caribe, a partir de las producciones artísticas recientes de la región, ejemplificando en los
tres grupos definidos, con las expuestas en la 10 Bienal de La Habana, realizada del 27 de
marzo al 30 de abril del 2009.
Primero, habría que definir una contraparte basada en las estructuras racionales,
lineales, coherentes con una visión apolínea de la historia y legitimada en la cultura
Occidental. A partir de esta, estaríamos configurando una diferencia como contrario, que
en definiciones actuales vendría a estar aparejado a la idea del fragmento y de los sistemas
no lineales.
En esta idea, el área geográfica y cultural que analizaremos estaría enraizada en
función de un sistema radial de múltiples fluctuaciones y arraigada a la definición dada por
Yolanda Wood17 respecto a las temporalidades simultáneas de la región, que más
sintéticamente fue definido por Alejo Carpentier como lo real maravilloso en las décadas del
30 y el 40 del pasado siglo; y que según José Luis Méndez: ―ha podido mostrar más
crudamente su rostro barroco‖18
Según Omar Calabrese en La Era Neobarroca19, por Barroco entenderemos las
categorizaciones que ―excitan‖ fuertemente el orden del sistema y lo desestabilizan por
alguna parte, lo someten a turbulencias y fluctuación, y lo suspenden en cuanto a la
capacidad de decisión de valores, procediendo para esto a través de la comparación con el
evento históricamente definido.
Por cuanto, nos es necesario referir algunos elementos ya presentes en la crítica y la
investigación de las artes plásticas en la región del Caribe, concebidas forzosamente como
procesos secuenciales y continuos a partir de determinados eventos que señalan el origen
de la conciencia del ser caribeño. Esto, en la primera valoración de sus producciones
artísticas explicitadas por Adelaida de Juan 20.
17
Yolanda Wood: ―Proceso histórico-artístico en el Caribe‖, Compilación de textos .Bienal de La Habana
para leer. Ediciones Universidad de Valencia, 2009, p73.
Ediciones Arte Cubano y Centro de Arte Contemporáneo Wifredo Lam.
18
José Luis Méndez: ―Problemas de la Cultura Caribeña‖, Casa de Las Américas, Ciudad de la Habana,
no. 114, mayo-junio de 1979, p.40.
19
Omar Calabrese: ―La era Neobarroca‖, Ediciones Cátedra. Signo e imagen, Madrid, 1989.
20
Adelaida de Juan: ―En la Galería Latinoamericana‖, Ediciones Casa de las Américas. Serie Galería,
Ciudad de la Habana, 1979, p.115.
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Según los estudios, el Caribe se distingue por lo afroamericano, elemento que tiene
en su base los primeros eventos reconocibles por la cultura occidental en las décadas del
30‘ y el 40‘ del siglo anterior:
-
La obra pictórica de Wifredo Lam en Cuba, surgida en medio de los primeros
estudios afrocubanos y la obra de Fernando Ortiz, Lidia Cabrera, entre otros
intelectuales, y que fue legitimada por André Bretón dentro del movimiento
Surrealista (de origen europeo).
-
La Escuela de Hyppolite de pintores naif en Haití.
-
Los pintores móviles doctrinarios de la religión Rasta en Jamaica, de grandes
repercusiones sociales y culturales.
Todos ellos como parte de una toma de conciencia de lo nacional y lo caribeño,
valorizando elementos que afianzan los altos porcentajes de africanidad en la región.
Tomando el elemento de la negritud, entendemos este signo como denominador o
eje central de las significaciones de las producciones caribeñas en el proceso histórico. Esto
asociado a la estética del cimarronaje y la resistencia cultural, devenida como una doble
apariencia y una doble significación que los pueblos del Caribe confieren a los iconos
impuestos por la cultura colonial.
La evolución histórica del Caribe ha sido análoga en procesos religiosos y sociales, y
ha convivido con una temporalidad simultánea comprendida como una dinámica de la
memoria (el pasado, el origen), la intuición (la realidad diaria) y la incertidumbre (o el
tiempo de la espera entendido como futuro), pues si en un primer momento histórico, la
región del Caribe fue zona de encuentros y paso, de conexión de viajes y a veces destino,
aún hoy los insulares sostienen una sensibilidad de tránsito. Su estatus como países colonias
y el mar como constante han sido también elementos constitutivos que no podemos
desdeñar, a pesar que no solo estos caracteres medulares han conformado su cultura. Los
comportamientos han sido distintivos según la colonia, conformando sus procesos
artísticos de formas diferentes.
En el caso de los países hispanohablantes (Cuba, Puerto Rico, República
Dominicana) poseen una cultura moldeada según el estilo occidental, con Academias según
los estilos europeos, Museos, Galerías, y una clase alta, dominante, que respalda un sistema
de distribución y consumo de la obra de arte en los propios circuitos que ella misma
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genera, creando no solo el espacio, sino el mercado y las condiciones del consumo de sus
producciones artísticas y el análisis de sus procesos.
Los países de habla anglófona (Trinidad Tobago, Barbados, Jamaica), francófona
(Haití, Martinica, Guadalupe) y holandesa (Aruba, Curazao) comprenden otras condiciones,
pues no son respaldados por una estructura sólida. Sus producciones están más enraizadas
a procesos populares, por motivos religiosos e ideológicos, los cuales responden entonces
en mayor medida a los ritos afrocaribeños. De ahí que en Haití la escuela de Hyppolite va a
contener un fuerte elemento del vudú, y Jamaica por su parte, va a emprender un camino
donde el arte va a estar destinado a la formación de una conciencia nacional, religiosa y
política, a partir de la fuerte resistencia del movimiento rastafari.
Las producciones artísticas del Caribe Insular, a pesar de tener un denominador
común en el elemento de la negritud y en la condición de lo insular, las condiciones de su
surgimiento y desarrollo varían tanto en métodos como en fines. No obstante, ha sido
sometido a una lectura secuencial de sus eventos:
-
Década del 40‘.Conformación de un sentido de identidad visto por los occidentales
como fantástica.
-
Década del 60‘. Relevancia de las artes gráficas y la abstracción que viene de la
década anterior. (Cuba y Puerto Rico)
-
Década del 70‘. Desvalorización del objeto artístico por la significación que
alcanzan en este momento los movimientos sociales y de minorías, y la propia
actitud ante la producción artística.
Este último elemento, es desarrollado por Juan Acha21 en la impronta de los
movimientos sociales y el destino de estas obras a una minoría élite, que va a ser más
consolidada en países de mayores niveles demográficos.
En este sentido, ya tenemos configurada una plataforma base de punto de partida
para la trayectoria de las artes visuales de la región, señalada por una particular sensibilidad
resultado de distintivas psicologías sociales, que cala en la sensorialidad y la experiencia del
ser caribeño.
21
Juan Acha: ―Reafirmación Caribeña y sus requerimientos estéticos y artísticos‖, Compilación de textos
.Bienal de La Habana para leer. Ediciones Universidad de Valencia, 2009, p.61.
Ediciones Arte Cubano y Centro de Arte Contemporáneo Wifredo Lam.
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Valorizada por porcentajes diferenciados de la connotación del elemento de lo
negro, resulta en la sumatoria una afrolatinidad imperante en Jamaica y Haití, y en una
iberolatinidad predominante en países como Cuba, Puerto Rico y República Dominicana.
Podemos entonces esbozar la dinámica del sistema cultural del Caribe insular a
partir de la reformulación del concepto de la negritud desde la obra de arte e intentar
definir los principios por los cuales se pueden considerar variables los elementos no
pertenecientes al sistema mismo, a través de los posibles rompimientos y estrategias
valorados en el choque intercultural implícito en las relaciones artísticas actuales, basadas en
un sistema de producción, distribución y consumo en las direcciones que impone la cultura
global de hoy y la posición hegemónica y dominante de la mainstrem occidental.
Para profundizar en este análisis, hemos seleccionado la 10 Bienal de la Habana
como momento de confrontación de las propuestas artísticas y el público en general, a
partir de una valoración de la participación de artistas del Caribe insular en las principales
Bienales del mundo. (Véase Anexos. Tablas 1.1-1.5)
El Caribe insular señala su presencia en un 20% en la 10 Bienal de la Habana y
mantiene una presencia activa en todas las ediciones de la muestra, siendo la participación
de los países de habla anglófona la más mayoritaria después de la hispanohablante. En esta
dirección, damos por sentado la presencia de discursos artísticos afines al elemento de lo
negro en la cultura del Caribe, la temporalidad sensorial y la condición de la insularidad
como ejes susceptibles de variación o mutabilidad.
Ahora bien, volviendo al aspecto espacial del sistema de la cultura de Calabrese, nos
parece oportuno enunciar la idea de confin.
Según el autor, el confin22 de un sistema es un conjunto de puntos que pertenecen de
manera simultánea, al espacio interno de una configuración, y al externo. Determinamos
entonces que no forma parte del sistema pero lo delimita desde lo interno, siendo parte de
lo externo.
Esta definición se asocia a la genealogías de la diferencias de Bhabha23, donde
argumenta que las culturas a menudo se reconstituyen y rearticulan en los bordes, en el
hogar de las poblaciones migratorias. En base a esto, podemos analogar el confín como
puntos de choque intercultural, momento de tensión en el que la cultura dominante se
22
23
Omar Calabrese: ―La era Neobarroca‖, Ediciones Cátedra. Signo e imagen, Madrid, 1989, p. 64.
Homi K. Bhabha: ― El lugar de la cultura‖, 1a ed. Manantial, Buenos Aires., 2002, p.320
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impone, provocando una resistencia que confirma las matrices propias de significación de
la cultura dominada, como oposición activa, creando fuerzas centrífugas que negocian su
sobrevivencia y se adaptan a nuevas condiciones, apropiando en este choque, desde lo
popular, las imágenes occidentales, con lo que estas culturas subalternas se dinamizan en
continua solución de conflictos simbólicos.24
Teniendo en cuenta la propia producción de la obra de arte como momento de
plasmación del choque intercultural, el confin queda configurado en la zona de creación,
generando un sistema descentrado, pues su núcleo no radica reiteradamente en el centro,
sino que se desplaza indistintamente a las márgenes que estructura este confin, cambiante,
mutable, no estático. (Véase Anexos. Esquema 1.1)
Basándonos en la multiculturalidad caribeña insular, tenemos tres ejes
fundamentales que dialogan históricamente ya sea pasivo o conflictivo, con sus ejes
dominantes.
Los artistas de los países de habla hispana (Cuba, Dominicana, Puerto Rico) por lo
general mantienen su producción en los países nativos, aunque sobre todo en el caso de
Puerto Rico, los artistas desarrollan su trabajo fuera de la zona geográfica, resultado de un
proceso histórico y cultural que resulta en un dialogo no con el centro que supone la
colonia, sino con los nuevos dominadores del paradigma estético y artístico.
En tanto, podríamos presuponer un diálogo en el que se posee más de un centro o núcleo
de choque. (Véase Anexos. Mapa 1.3)
Los artistas de países anglófonos, específicamente Jamaica, Barbados, Trinidad
Tobago, realizan sus producciones dentro y fuera de la zona geopolítica caribeña,
configurando también núcleos móviles.
En el caso de los artistas francófonos (Haití, Martinica) suceden los mismos
eventos.
Siguiendo estas determinantes, podemos configurar un mapa de más de un centro
de choque intercultural, puntos de confin que emplazan el área de acción de la producción
caribeña, y esto, en una dinámica inestable y mutable.
Podemos concluir que el confin y el sistema que configura, conllevan a otras
tensiones causadas por la propulsión de fuerzas expansivas de los núcleos-centros de
choque intercultural, y por tanto, según el aspecto espacial para la cultura, en modelos
24
Ticio Escobar: ―Identidades en tránsito‖, http://www.pacc.ufrj.br/artelatina/ticio.html
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espaciales el área de producción artística del Caribe insular tiene un espacio de sistemas
descentrados y fluctuantes. (Véase Anexos. Mapa 1.3. Espacio de estructurado por el confin)
De esto se deslinda también la presencia de una perspectiva quebrada o
inusualmente infinita, no asociada al concepto de profundidad canónico pues no sigue un
ordenamiento lineal o lógico, pero en este ámbito, nos referiremos más hondamente al
elemento de lo temporal.
La obra de Annalie Davis, de Barbados, es una obra que suscita este tipo de
referencias. Trans/plant" (2009), una video instalación de casi dos horas es un proyecto
entre dos muros que refuerza la definición del espacio histórico como movimiento en los
bordes en una incertidumbre agónica.
El sujeto del video sale al mar a ir de viaje, a la inmigración, y vuelve a encontrarse
en la mínima porción de arena que le lleva de nuevo al mar. La idea de los seres en eterno
transito, en eterna incertidumbre, toma lugar mediante una poética cruda y aplastante, que
valoriza la sensorialidad caribeña y socaba en alguna medida el ideal del turismo caribeño.
Es un tiempo de espera y de reiteración, una exacerbación dolida y cínica de la significación
histórica del viaje y el fin para el ser caribeño.
Varios autores han hecho hincapié en el sentido sensorial de la experiencia caribeña,
y esto ha tenido sus porqués en el sentido ritual de los objetos de evocativos de la tradición,
y en este sentido, esta se emparenta con los modos de percibir la experiencia e incluso, de
concebir la perspectiva.
Tirzo Martha, de Curazao, perteneciente al grupo de habla holandesa, confirma una
manera distintiva de concebir las relaciones enriquecedoras y dinámicas de los elementos
distintivos de lo caribeño. En su instalación El espíritu del Caribe, a la que le ha realizado
varias versiones desde el 2006, se invalida la manera ortodoxa de entender la lógica lineal, la
profundidad, esbozando un espacio caribeño, significándolo, que retoma la configuración
del altar afro para dotar de este tempo a los objetos de uso diario del sujeto social y
familiar. Son altares-casas, en vertical, donde se van estructurando unos sobre otros los
objetos según la categoría y la importancia que avala su propia experiencia. Resulta de esto
una suerte de suspensión, un rompimiento de la lógica lineal, y de la percepción del tiempo
y el espacio vivencial, a la vez que configura una mirada a lo social y los problemas más
urgentes de la cotidianidad y comprende a su vez una mirada hacia la memoria histórica y el
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problema de lo racial. (Véase Anexos. Imagen 1 Tirzo Martha, Curazao. Instalación. Bienal
de la Habana, 2006.)
Otra obra que rompe con los preceptos de la perspectiva y se conforma como un
juego de tensiones fragmentadas es la obra de Inti Hernández, cubano, perteneciente al
grupo de los hispanohablantes. (Véase Anexos. Imagen 2. Inti Hernández, Cuba. Punto de
Encuentro. Instalación, Bienal de la Habana, 2009)
Punto de encuentro, instalación presentada en la 10 Bienal de la Habana, es una obra
que retoma el juego de los espejos para crear distorsiones ópticas que aquí, fragmentan y
emplazan al sujeto en una colectividad ficticia y en la búsqueda de un deseo previamente
socavado. La idea del deseo, de la seducción, de la falsedad y las apariencias toman espacio
también como momento de interrelación vacía, donde la incertidumbre y el deseo también
fluctúan.
Por su parte, el dominicano Polibio Díaz presenta su video instalación La Isla del
tesoro, también a la 10 Bienal, maqueta de ampliación del malecón de Santo Domingo, como
emplazamiento también suspendido en el mar, como la propia isla, a la vez que constituye
una propuesta para la cotidianidad y el desarrollo social. Tanto aquí como en sus fotos, a
Polibio le interesa los espacios vivenciales, la dinámica visual y estética del entorno
cotidiano. (Véase Anexos. Imagen 3. Polibio Díaz. República Dominicana. Fotografía,
2006)
Hace presente también una distorsión de órdenes y sentidos más evidente en la
fotografía, a partir del deseo, de la incertidumbre de lo aparentemente inalcanzable.
Alex Burke, artista Martiniqueño presenta su instalación La biblioteca, de profundas
significaciones afrolatinas, donde el saber y la memoria asumen su presencia a partir del
fragmento y el ordenamiento aparentemente lógico, pero que tensiona significaciones
también religiosas. (Véase Anexos. Imagen 4. Alex Burke. Martinica. La Biblioteca.
Instalación. Bienal de la Habana, 2009)
Otro artista que hace presencia es Roberto Stephenson, con una fotografía llena de
diálogos y fragmentos de una cotidianidad caótica, que casi grita desde si soporte. La
superposición de escenas-realidades, el movimiento de la sociedad actual plena de anuncios
trasnacionales en una arquitectura vernácula, es una contraposición que tampoco escapa de
sentido. El fragmento, la turbulencia dinámica de este y su puesta en escena a través del
diálogo caótico con lo cotidiano, son elementos que también hablan de un Caribe disperso,
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activo y mutante. (Véase Anexos. Imagen 5. Roberto Stephenson. Fotografía. Sin título.
Bienal de la Habana, 2009)
Por demás, en estas obras hay un exceso de representación y de contenido (las
figuras negras de Burke, el reflejo de las múltiples personas en los espejos de Inti), que
suscita la convivencia de múltiples fragmentos y significaciones, los cuales apuntan hacia la
desmesura y excedencia que también refiere Calabrese.
Las obras analizadas exponen una temporalidad más sensorial que histórica, pues el
presente, lo intuitivo, sigue constituyendo constante en el arte caribeño actual.
La turbulencia de sentidos fluctuantes y activos, sea esta expresa en la acumulación
de elementos o el juego óptico, nacen de una afirmación de la incertidumbre de quien se
siente en constante paso, sin una perspectiva profunda que no llegue más que a la línea del
horizonte incierto que deja el mar, volviendo al Caribe como paso y expectativa, en una
temporalidad suspendida que convulsa los puntos de contacto del confin, descentrando la
mirada apolínea del occidental.
Crea paradojas perceptivas en la zona delimitada por sus acciones de inclusión y
diálogo conflictivo, ejerciendo en su espacio una relativa autonomía marcadamente
atemporal y elástica, emparentada a ciertas nociones de virtualidad que hacen a los disímiles
y distintivos centros –disímiles islas- interactuar con la certidumbre desde una posición que
actualiza la historia en un presente expandido.
Volviendo a la idea de confín para establecer físicamente una zona temporalmente
autónoma para el Caribe insular, definimos como:
-
los espacios de creación del artista caribeño en el espacio-marco de pertenencia
señalado como constante.
-
El espacio de la cultura occidental (dominante) en el interior del espacio- marco
pero sin pertenecer a él por lo que no lo determina.
Dentro del marco de acción que define el confín como zona de creación del Caribe,
este Caribe es autónomo, pues es una zona mutable y cerrada en si misma.
Es el sujeto creador quien domina esta autonomía temporal, pues los
desplazamientos de la línea del confín son variables en extensión y tiempo. Domina desde
sus posesionamientos causales y sus posturas en el marco cultural, los que hacen la
diversidad de centros de tensión-excitación que emplazan el confín.
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El Neobarroco habita en el Caribe porque no está sometido a reglas ni patrones de
comportamiento. La racionalidad queda descentrada en la conversión de casa en altar y de
altar a biblioteca de saberes vivos; en el juego de percepciones. En la aparente algarabía que
esconde el silencio del que intenta llegar a lo sólido sabiendo que siempre estará de paso
porque después de llegar hay más mar… En los colores y la estética dulcemente agresiva de
la vida de pequeños espacios copados de familia, del fragmento puesto una y otra vez
llamando al palimpsesto, a las significaciones múltiples.
La negritud aflora una y otra vez pero como un saber, no con una vocación de
imitación o representación de los afro. Vive como concepto de espacio, como orden no
racional.
El tiempo se expande y contrae en el espacio del Caribe que fluctúa en los puntos
de encuentro, aún lejos de la isla nativa, en la llamada diáspora donde se reconstruye con
fragmentos individuales la vida en la ciudad desarrollada, en el circuito más élite del arte
mismo, que queda igual desvalido de métodos y entendimiento para llegar a entender el
ritmo constante de la fluctuación sensorial del sujeto caribeño.
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Sessão de Comunicação: BARROCO E MODERNIDADE
Coordenadores: Prof. Dr. Antonio Fernandes de Medeiro Júnior
Profa. Dra. Regina Simon da Silva
1.
DIÁLOGOS ENTRE O BOTELHO BARROCO E O MODERNO
CABRAL
Éverton Barbosa Correia
(Universidade Federal do Mato Grosso do Sul/ Três Lagoas)
Assim como há uma sucessão de eventos que lastreia a historiografia desencadeada a
partir de Pernambuco e que remonta à colonização brasileira – quer nos refiramos à
expulsão dos holandeses ou à guerra dos mascates -, de igual modo há uma tradição
literária correspondente que se arrasta desde a Prosopopéia de Bento Teixeira, passando pelo
Valeroso Lucideno de frei Manuel Calado ou até mesmo um livro como Cultura e opulência do
Brasil de André João Antonil, que é animada pela mesma matéria histórica, para citar alguns
exemplos. Por incrível que pareça, todos esses livros atingem em maior ou menor grau a
parentela de João Cabral de Melo Neto em sua dimensão encomiástica, uma vez que o
poeta se reputava descendente de Jerônimo de Albuquerque (cunhado de Duarte Coelho),
que guiou durante muito tempo um projeto não realizado pelo autor de escrever a história
do Brasil através da memória deste seu antepassado, reconhecido por muitos como o
―Adão pernambucano‖. O livro se chamaria Memórias prévias de Jerônimo de Albuquerque e
narraria a história do Brasil a partir das visões daquele sujeito como lampejos históricos a
serem gravados em poesia.
Ainda que o projeto não tenha sido efetivado, oferece em perspectiva a compreensão
de João Cabral sobre os artefatos históricos, que nunca se restringe à articulação, por si só,
de alguns elementos a ladrilhar uma diacronia. Mais do que isso, a historiografia destacada
dispõe de eventos marcantes que atravessam a afetividade do poeta, devido ao fato de que
sua genealogia esteja implicada em toda a sucessão de eventos que caracterizam a história
brasileira. Historiografia brasileira – entendamos bem – que se desencadeia a partir de
Pernambuco, donde advém sua resistência em narrar episódios ocorridos no Rio de
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Janeiro, dado que sua ancestralidade tenha sido um dos focos de resistência da instalação
da dinastia bragantina no Brasil. Não estranha, a partir disso, que o poeta nunca tenha
devotado um poema sequer ao Rio de Janeiro, embora o tivesse feito com Tegucigalpa e
Quito, onde residiu em virtude do ofício de diplomata, durante um tempo bem menor do
que sua estadia no Rio de Janeiro, onde morou de 1943 a 1948 e depois de sua
aposentadoria (1990) até seu falecimento (1999), totalizando algo em torno de quinze anos.
Parte do silêncio devotado ao Rio de Janeiro se deve à hipótese de que falando da história
fluminense, não deixaria de afirmar a expansão do Império português na América, que teve
a cidade maravilhosa como sua sede, depois de Salvador. Sob tal perspectiva, ao falar da
história fluminense ou baiana, afirmar-se-ia a colonização portuguesa sem o rescaldo do
nativismo pernambucano. Por outro lado, realçar a particularidade pernambucana viria a
ser, pois, um modo de ressoar outras vias de sociabilidade, sufocadas em nosso devir
histórico.
Com isso, destaca-se a visão do autor sobre poesia, cujo desempenho ultrapassa em
muito o acesso a suas reminiscências e vinca-se na utilização de suporte material, para
objetivar sua produção literária. O raciocínio tanto se aplica à redação de O rio – feito na
Espanha, junto ao mapa de Pernambuco – com sua pletora de referências geográficas
muito particulares, como também ao Auto do frade, produzido a partir do artigo de Mário
Melo ―Suplício de Frei Caneca‖ (MELO, 1924: 335-342), publicado na Revista do Instituto
Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano. Seja pelo recorte geográfico ou
histórico, o comentário serve de índice para demonstrar qual a compreensão de poesia
anima o autor. Compreensão presente desde seus primeiros livros e que se verticaliza na
sua produção de maturidade, notadamente o que escreve depois de A educação pela pedra
(1966), quando se processa uma significativa transformação naquela expressão poética que
passa a ser pautada vigorosamente pela sua memória, entremeada de lembranças e de
arquivos, simbolizando toda uma época sob a dicção vigorosa do escritor.
Aliás, essa preocupação com a historiografia faz com que ela seja repensada e, em
última instância, refeita através da utilização de referentes marginais ou provincianos, sob o
tratamento literário, que repõe obrigatoriamente o sentido do registro e do valor históricos,
sem escamotear o interesse que tem para o poeta. E embora todo discurso seja movido por
interesses – inclusive subjetivos – cada qual ganha maior legitimidade quanto mais se fizer
ou simular-se objetivo. No caso de João Cabral, a objetividade do seu discurso está
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assegurada de antemão pelo seu desempenho estilístico que se afasta de qualquer
impregnação romântica, só que a inscrição social daquele sujeito e sua transfiguração em
objeto de poesia conferem ao seu texto uma tonalidade que não reproduz o discurso e nem
o procedimento histórico em voga, antes redimensiona ambos. Por isso, é como
constituinte expressivo que devemos entender seus temas, porque se pautam pela
exploração do referente tratado, cujo valor e sentido se desdobram quando impostados na
dicção de João Cabral de Melo Neto. Daí podemos depreender que tanto a historiografia
quanto a literatura colonial que permeiam o universo do poeta ganham uma tonalidade
particular, para a qual a história e a geografia se entrecruzam para dar corpo à sua
expressão.
Havendo, pois, uma substância que enlaça a literatura à história, podemos então
considerar que aquela matéria a que se convencionou chamar de Barroco interessou a João
Cabral quer fosse considerada como tema ou como forma, já que a possibilidade de separar
os domínios não contribui para o entendimento da poesia em geral – que já é por si mesma
matéria histórica – e menos ainda a obra cabralina em particular, regida que é pelo
entrelaçamento estreito e rigoroso de ambos os domínios. Embora não tenha incorporado
a terminologia correspondente ao Barroco à sua escritura, as referências àquela época
abundam na sua obra em sua dimensão histórica e também literária. Tampouco João Cabral
se investiu do propósito de revisitar ou recuperar o Barroco, muito embora tenha sido
costumeiro leitor de Luiz de Góngora e Francisco de Quevedo, a quem devotou um
poema, o que é bastante se considerarmos a economia do autor em fazer citações.
Quando o fez com Quevedo, estava decerto movido menos pelo interesse de uma
produção atrelada ao Barroco transferível de qualquer tempo para qualquer espaço, do que
pelo resíduo histórico que se depreende da obra de autores recuados no tempo, o que
também é extensivo a suas conquistas formais. Daí haver a possibilidade de aproximação
entre autores como João Cabral e Botelho de Oliveira, quando considerados não só pelo
acabamento formal que as respectivas obras suportam, mas também pela matéria que as
anima e que pode ser considerada em função de sua dimensão histórica ou propriamente
literária. De um modo ou de outro, não podemos ignorar o chão que serviu de base para
ambas as elaborações e que guardam diferenças entre si. Num caso, o recôncavo baiano e,
no outro, o litoral pernambucano, que, distanciados no tempo, só reforçam as respectivas
particularidades, embora pareça o contrário, dado que a caracterização do Nordeste como
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região autônoma é uma construção do século XX. Então, quando Botelho de Oliveira
escrevia, não apenas o Brasil tinha outra conformação geográfica – separada do Estado do
Maranhão e do Grão-Pará -, como o que chamamos hoje de Nordeste simplesmente não
havia. Naquela época, baiano era uma coisa e pernambucano, outra. Aliás, quase um século
depois de Botelho de Oliveira houve o episódio reconhecido como Inconfidência Mineira,
e não brasileira. Se depois do acontecido, aquele mesmo movimento em sua dimensão
política e literária veio a ser tomado como índice de emancipação, é mais por um desejo de
constituição de nacionalidade do que uma preocupação presente nos autores da ocasião, o
que só é reforçado quanto mais nos distanciarmos no tempo. Isso também pode ser
observado através da leitura de Botelho de Oliveira, como se segue:
a crítica leu o famoso poemeto ―À Ilha de Maré‖ como exceção
nativista ou prenúncio do nativismo brasileiro, desconsiderando que o
elogio da parte se impunha como artifício para produzir a apologia do
todo do Império Português. Ao compor, nesse poema, uma paisagem
ideal para produzir o efeito de cópia das formas de sua terra, o poeta
imita antes modelos europeus, entre os quais se conta a ilha
paradisíaca de Camões. De fato não há antecipação nativista em
Botelho de Oliveira (TEIXEIRA, 2005, p. 17)
Diante disso, a vinculação da obra cabralina com o chão pernambucano toma outra
significação se considerarmos que ali sua família está enraizada desde a posse de Duarte
Coelho e foi ali que sua experiência visual foi forjada, às margens do Capibaribe. Por isso,
antes de batizar o rio segundo preceitos extemporâneos, convém assinalar que no ―dialeto‖
da família era chamado de ―A maré‖, conforme o enunciado do poema que leremos
adiante. Sendo filho das famílias tradicionais pernambucanas, que outra – não aquela – seria
a Maré? Também por isso, a ―Maré do Capibaribe‖ se aproxima pelo vocativo de ―À Ilha
de Maré‖ de Ilhéus - cantada por Botelho -, porquanto se trata de um nome que designa a
matéria nativa e, por outro lado, se distancia porque a matéria nativa do Recife difere da de
Ilhéus, ainda mais se considerarmos a rivalidade existente entre Pernambuco e Bahia que
disputavam as benesses e graças da Metrópole. Sendo assim, é muito plausível que
houvesse uma antipatia congênita entre baianos e pernambucanos ligados às famílias
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tradicionais, o que João Cabral não deixa escapar na sua adjetivação ―abaianada‖ ou na
consideração retórica pelo estado vizinho, tal como está explícito no poema ―Um piolho de
Rui Barbosa‖.
A partir disso, não estranha que haja alguma razão no universo familiar oriundo de
Pernambuco para incorporar conflituosamente as referências deitadas no solo baiano. E
será sempre como releitura crítica que se dará a retomada de algum referente colonial, tal
como o que se desencadeia no célebre poema de Botelho de Oliveira ―À Ilha de Maré‖,
que é revertido pelo pouco conhecido ―Prosas da Maré da Jaqueira‖ de João Cabral. Notese que já no título o poeta pernambucano faz questão de situar a maré de que fala através
da locução adjetiva ―da Jaqueira‖, onde estava a casa de seu avô materno, local de seu
nascimento, referido no poema ―Autobiografia de um só dia‖. Para distinguir sua maré da
anterior, circunstancia um lugar que ganha sentido pelo eco da referência a Botelho.
Cavalgando no sentido de Maré, cria uma desestabilização para a locução adjetiva pelo
termo antecedente: ―prosas‖. Ora, para um poema cujo título traz a prosa como anúncio,
dá para se desconfiar de seu conteúdo. Ocorre que o desempenho poético do autor se dá a
contento, remetendo o termo contíguo à maré de seu título para a maré remota de seu
antecessor mais facilmente associado ao termo, que, em vez de poesia – segundo princípios
cabralinos – se ajusta à prosa no seu sentido mais pejorativo: de conversa fiada. Seja porque
não se estrutura devidamente ou porque é de Ilhéus e não do Recife, do Capibaribe, da
Jaqueira.
Em sua similitude na obra dos dois poetas, o termo ―Maré‖ designa uma confluência
de códigos e de interesses que simula a configuração de uma tradição existente, quando, na
verdade, a coincidência aponta para uma ruptura, já que não há retomada ou paródia do
termo anterior, e sim uma sobreposição que não a considera como referência legítima.
Sendo histórica a ruptura, fratura todo o entendimento do que venha a ser ―Maré‖, que
num caso remete à matéria nativa, arcaica e agrária e, no outro, à ambiência familiar, urbana
e moderna. Em vez de cavar uma identidade, a operação de João Cabral desmonta-a. Não
só como superação de uma época passada, o que interessa ao poeta moderno; não só pela
consistência conceitual presente na poesia cabralina e que adquire critério de validação
poética, mas porque João Cabral rejeita a construção do outro, a despeito de ser histórica e
formalizada segundo os critérios da época.
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Como se vê ―Maré‖ constitui, segundo a visão esboçada, o termo de associação
primeira entre os poetas, porquanto se oferece como figura do Barroco na medida em que
pretende observar nas respectivas obras o laço existente entre o referente e a linguagem,
entre uma imagem e a correspondente elaboração poética, entre a literatura e a história.
Aproximando os poemas distanciados no tempo, algumas semelhanças aparecem:
composições longas de forte caráter narrativo – o que já está expresso no título de João
Cabral de Melo Neto – e que descrevem a paisagem que adquire significado conforme as
circunstâncias, dado que as respectivas ―Marés‖ são distintas. A composição de Botelho de
Oliveira é três vezes maior do que a de João Cabral e mesmo este poeta, regido por
princípios de exigüidade e contenção, compõe o seu ―Prosas da Maré da Jaqueira‖ com 96
(noventa e seis) versos.
―À Ilha de Maré‖ descreve de modo alegórico a paisagem baiana na qual seu autor
identifica dádivas da natureza brasileira, que, invariavelmente, se apresenta mais florida,
mais viçosa e mais doce, através de seu Ar, de seu Ananás, de seu Açúcar – e todos os
demais AA. Trata-se, por conseguinte, de uma distinção que se faz em oposição à
Metrópole, à qual se dirigia num misto de divulgação da colônia, promoção do interesse
pessoal e representação literária do mundo que se lhe apresentava. Ora, sendo filho da
açucarocracia pernambucana pelos quatro costados, João Cabral não poderia se sentir à
vontade diante da divulgação e promoção de outra Maré senão a do Capibaribe, ainda mais
partindo da Bahia, que algumas vezes se promoveu às custas do sangue pernambucano –
tal como o fez vice-rei Conde dos Arcos por ocasião da retaliação à revolução de 1817 -,
cuja pretensão emancipatória esbarrou reiteradas vezes no jugo metropolitano,
circunstancialmente radicado na Bahia. Se quisermos aplicar o raciocínio à obra de Botelho
de Oliveira, dispomos da seguinte observação crítica.
A inserção plena de Manuel Botelho de Oliveira na vida econômica,
política e administrativa da Cidade de Salvador e do recôncavo baiano
– capital da América portuguesa e encruzilhada entre o Oriente,
África e Europa – esclarece o caráter panegírico de mais uma dezena
de composições de Música do Parnasso, pertencente aos coros dos
vários assuntos não amorosos, em todas as quatro línguas do livro.
(MUHANA, 2005, p. XXX)
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Também é verdade que a composição de João Cabral se guia pela experiência
subjetiva do autor que encontra no Capibaribe um veio que articula o espaço familiar
espalhado pela cidade que simboliza com a resistência do povo vincado naquele chão.
Assim sendo, ao descrever a Maré do Capibaribe, não é somente o espaço familiar que está
sendo celebrado – embora também o seja -, mas é o espaço familiar na medida em que
entretece a experiência subjetiva do autor e também um legado histórico que se incrusta ali
e passa, por isso, a ter um valor afetivo para o poeta. Daí a insistência de João Cabral na
revelação da história, porque se trata de uma matriz discursiva que tem valor sentimental
para sua família e, conseqüentemente, também para ele, na medida em que não esconde o
lugar social de onde fala nem se exime das possíveis implicações dali oriundas, como se vê.
Prosas da maré na Jaqueira25
1
Maré do Capibaribe
em frente de quem nasci,
a cem metros do combate
da foz do parnamirim26.
Na história, lia de um rio
onde muito em Pernambuco,
sem saber que o rio em frente
era o próprio-quase-tudo.
Como o mar chega à Jaqueira,
chega mais longe, até,
no dialeto da família
te chamava ―a maré‖.
25
Sítio pertencente a Virgínio Marques Carneiro-Leão, avô materno de João Cabral. Então, estava
localizado onde hoje há um bairro, já que o sítio não existe mais.
26
Remissão a uma das primeiras batalhas vencidas contra os holandeses.
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2
Maré do Capibaribe,
já tens de maré o estilo;
já não saltas, cabra agreste,
andas plano e comedido.
Não mais o fiapo de rio
que a seca corta e evapora:
na Jaqueira és maré,
cadeiruda e a qualquer hora.
Teu rio, quase barbante,
a areia não o bebe mais:
é a maré que o bebe agora
(não é muito o que lhe dás)
3
Maré do Capibaribe,
minha leitura e cinema:
não fica vazio muito
teu filme, sem nada, apenas.
Muita coisa discorria(s),
coisas de nada ou pobreza,
pelo celulóide opaco
que em sessão contínua levas.
Mais que a dos filmes de então,
Carrego tuas imagens:
mais que as nos rios, depois,
mais que todas as viagens.
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4
Maré do Capibaribe,
afinal o que ensinaste
ao aluno em cujo bolso
tu pesas como uma chave?
Não sei se foi para sim
Ou para não teu colégio:
o discurso de tua água
sem estrelas, rio cego.
de tua água sem azuis,
água de lama e indigente,
o pisar de elefantíase
que ao vir ao Recife aprendes.
5
Maré do Capibaribe,
mestre monótono e mudo,
que ensinaste ao antipoeta
(além de à música ser surdo)?
Nada de métrica larga,
gilbertiana27, de teu ritmo;
nem lhe ensinaste a dicção
do verso Cardozo28 e liso,
as teias de Carlos Pena29,
o viés de Matheos de Lima30.
27
Referência à prosa de Gilberto Freyre.
O poeta Joaquim Cardozo é o maior interlocutor de João Cabral, cujas menções aparecem pontual e
regularmente ao longo da obra cabralina.
29
Poeta pernambucano, a quem João Cabral devotou um poema, além da menção supracitada.
28
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(para poeta do Recife
Achaste faltar-lhe a língua).
6
Maré do Capibaribe
entre a Jaqueira e Santana31:
do cais, como tempo e espaço,
vão de um a outro, se apanha.
O tempo se vai freando
(lago que a brisa arrepie)
o rolo de água maciça
que enche e esvazia o Recife,
até frear, todo espaço
(lago sem brisa no rosto),
Frear de todo, água morta,
Paralítica, de poço.
7
Maré do Capibaribe,
estaria a lição nisso:
em se mostrar como em circo
nos quadros em equilíbrio?
Em se mostrar como espaço
ou mostrar que o espaço tem
o tempo dentro de si,
que eles são dois e ninguém?
30
31
Poeta muito estimado por João Cabral e irmão de Jorge de Lima.
Sítio contíguo ao da Jaqueira.
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Ou com tua aula de tísica
querias mostrar que o tempo
não é um fio inteiriço
mas se desfia em fragmentos?
8
Maré do Capibaribe
na Jaqueira, onde menino,
cresci vendo-te arrastar
o passo doente bovino.
Rio com quem convivi
sem saber que tal convívio,
quase uma droga, me dava
o mais ambíguo dos vícios:
dos quandos no cais em ruína
seguia teu passar denso,
veio-me o vício de ouvir
e sentir passar-me o tempo.
Antes de proceder a comparação através da transcrição dos poemas, conviria lembrar
que Botelho de Oliveira era um homem ligado à administração colonial – como, de resto,
Vieira, Antonil e (até certa altura) Gregório, - bem como produzia versos em paralelo a seu
ofício e assumia, portanto, sua literatura a meio caminho da distração. Distração não
destituída de elaboração rigorosa e sem descurar da divulgação e celebração do seu meio
circundante, como já foi observado.
Como Gregório, Botelho nasce em Salvador, de família abastada, e é
encaminhado para os estudos jurídicos em Coimbra. Seu retorno,
todavia, não é a fuga da Europa do seu inquieto conterrâneo, mas a
repatriação prevista e esperada do compassado ‗fidalgo do rei‘,
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daquele que, embora dedicando-se à agiotagem, sempre se acobertará
sob a capa da respeitabilidade advocatícia. (STEGAGNO-PICCHIO,
2004, p.103)
Por seu turno, João Cabral a exemplo de boa parte dos escritores de sua época era
funcionário público, com o adendo de servir ao Itamaraty, tendo chegado ao fim da
carreira na condição de Embaixador. O comentário interessa na medida em que radica
ambas as produções no plano da representação, mediado pelas funções sociais que os
autores exerceram a seu tempo, correspondendo a cada poeta um desempenho em função
de seu lugar social: ao primeiro, na condição de representante da expansão portuguesa na
América; ao segundo, na condição de rebento tardio e deslocado da açucarocracia
pernambucana, onde a afetividade com o torrão natal figura o vínculo com o seu chão.
Claro está, que o propósito aqui não é o de diminuir o valor das respectivas produções, mas
tão só atribuir-lhes o significado decorrente do local de pronunciamento do autor e seu
respectivo público, inscrevendo-as em momentos específicos e não destituídos de valor
simbólico, apesar da distância temporal. Senão, vejamos uma breve ilustração com alguns
dos trechos mais conhecidos da obra de Botelho de Oliveira.
As laranjas da terra
Poucas azedas são, antes se encerra
Tal doce nestes pomos,
Que o tem clarificado nos seus gomos;
Mas as de Portugal entre alamedas
São primas dos limões, todas azedas. [...]
As uvas moscatéis são tão gostosas,
Tão raras, tão mimosas,
Que se Lisboa as vira, imaginara
Que alguém dos seus pomares as furtara;
Delas a produção por copiosa
Parece milagrosa,
Porque dando em um ano duas vezes,
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Geram dois partos, sempre, em doze meses. [...]
As melancias com igual bondade
São de tal qualidade
Que quando docemente nos recreia,
É cada melancia uma colméia,
E as de Portugal lhe dão de rosto
Por insulsas abóboras no gosto. [...]
As romãs rubincudas quando abertas
À vista agrados são, à língua ofertas,
São tesouros das fruitas entre afagos,
Pois são rubis suaves os seus bagos.
As fruitas quase todas nomeadas
São ao Brasil de Europa trasladadas,
Porque tenha o Brasil por mais façanhas
Além das próprias fruitas, as entranhas. [...]
Vereis os Ananases,
Que para o rei das fruitas são capazes;
Vestem-se de escarlata
Com majestade grata,
Que para ter do Império a gravidade
Logram da c‘roa verde a majestade;
Mas quando têm a c‘roa levantada
De picantes espinhos adornada,
Nos mostram que entre Reis, entre Rainhas
Não há c‘roa no Mundo sem espinhas.
Este pomo celebra toda a gente,
É muito mais que o pêssego excelente,
Pois lhe leva avantagem gracioso
Por maior, por mais doce, e mais cheiroso. [...]
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A obsessão pela flora brasileira sugere, de imediato, o confronto com o poema
―Jogos frutais‖ do poeta pernambucano, que esmiúça tão criteriosamente quanto este as
propriedades das frutas nativas do Brasil, embora todo o seu discurso esteja voltado
conceitualmente para a materialidade do fruto e não para sua repercussão ou aceitação em
terras lusitanas, ao contrário do que acontece com Botelho de Oliveira que a todo o tempo
nomeia o reino português na composição, seja referindo-se à coroa, a Portugal ou a Lisboa
– variações da mesma reverência. Como a sucessão de estrofes evidencia que o público de
Botelho de Oliveira – como, aliás, todo autor colonial – estava radicado em Portugal,
cumpre designar os possíveis sentidos a serem depreendidos do seu discurso que se
radicaliza numa forma cifrada, como vemos no entrecho seguinte.
Tenho explicado as fruitas, e legumes
Que dão a Portugal muitos ciúmes;
Tenho recopilado
O que o Brasil contém para invejado,
E para preferir a toda a terra,
Em si perfeitos quatro AA encerra.
Tem o primeiro A, nos arvoredos
Sempre verdes aos olhos, sempre ledos;
Tem o segundo A, nos ares puros
Na tempérie agradáveis, e seguros;
Tem o terceiro A, nas águas frias,
Que refrescam o peito, e são sadias;
O quarto A, no açúcar deleitoso,
Que é do Mundo o regalo mais mimoso.
São pois os quatro AA por singulares
Arvoredos, Açúcar, Águas, Ares.
Neste Ilha está mui ledo, e mui vistoso
Um Engenho famoso,
Que quando quis o fado antiguamente
Era Rei dos engenhos preminente,
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E quando Holanda pérfida, e nociva
O queimou, renasceu qual Fênix viva. [...]
Esta Ilha de Maré, ou de alegria
Que é termo da Bahia,
Tem quase tudo quanto o Brasil todo,
Que de todo o Brasil é breve apodo;
E se algum tempo Citeréia a achara,
Por esta sua Chipre desprezara,
Porém tem com Maria verdadeira
Outra Vênus melhor por padroeira.
A seleção desses trechos decorre da inconveniência de transcrever o poema em toda
sua extensão, o que foi remediado pela eleição dos trechos que melhor ilustram a relação
com a metrópole, junto a um desempenho estilístico descomunal. Aliás, a este respeito
Adma Muhana já havia chamado a atenção para o fato de que a escolha do ananás para
representar o Brasil seria uma maneira de buscar um meio de associação entre a flora
brasileira e a majestade lusitana, ilustrada pela coroa do fruto que funcionaria como símile
da monarquia portuguesa, a que devia servir e melhor servir quanto maior fosse o grau de
proximidade com os colonos ou com a coroa propriamente.
Subjaz ao encômio a exaltação da natureza brasileira como artifício retórico para
convencer a realeza portuguesa das conveniências de trasladar o reino para a colônia.
Projeto que só veio a cabo no século XIX, já existia desde o Seiscentos luso, fosse sob o
epíteto de ―Quinto Império‖ ou devido a complicadas sucessões dinásticas que
comprometeriam a soberania de Portugal. Por uma razão ou por outra, haverá sempre uma
parcela da corte e da diplomacia lusitanas a reivindicar o traslado do governo português
para o Brasil, como a crítica já anotara.
Entendendo-se Portugal como um corpo vasto com membros
separados, porém coordenados a partir da metrópole, tendo como
partes principais Brasil, Angola e Ìndia, desde a segunda metade do
século XVII, com as constantes ameaças de espanhóis, holandeses e
ingleses, a parte constituída pelo território do Brasil surge como a
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mais apta a sediar a cabeça do gigante colonial. [...] finalmente posta
em prática em 1808, com a vinda da família real para o Rio de Janeiro.
(MUHANA, 2005, p. XXVII)
Por isso, salta aos olhos no poema de Botelho de Oliveira a sedução provocada não
só pela doçura de suas frutas, a abundância de suas águas e a pureza de seu ar, mas também
pelo açúcar que era o principal símbolo de vantagem financeira. Dos quatro AA, era o
quarto A que interessava efetivamente a coroa portuguesa, mais do que árvores, água ou ar.
Sendo João Cabral obsessivo pelo número quatro - que veio inclusive dar título a um de
seus poemas, ―O número quatro‖ - decerto não lhe passou despercebido o enquadramento
retórico de Botelho de Oliveira. Tanto que, como o açúcar podia ser administrado na
metrópole, os outros objetos de consumo não se converteram em argumentos válidos para
a transposição governamental. Interessa, todavia, que o poema apresente a Bahia como
centro produtor de açúcar e do Brasil. Ora, se havia por parte das demais províncias a
resistência à Bahia pela maior proximidade com a metrópole, muito mais intensa vai ficar a
reação se a Bahia se apresentar como o legítimo produtor de açúcar e como o rincão mais
brasileiro, tal como está expresso no poema. Não vem ao caso se era de fato, e sim como
isso atravessa a afetividade dos poetas, em especial, a do pernambucano.
Ou seja, enquanto Botelho de Oliveira lançava mão da Maré de Ilhéus para
sedimentar uma imagem que viesse convencer o reino da viabilidade de investir no Brasil, o
poema de João Cabral utiliza a Maré da Jaqueira, para expressar toda a sua vida. Se
entendermos como vitais aquilo que João Cabral herda dos antepassados, o que orienta sua
experiência sensível e o que ele elege como modelo de representação. Em qualquer um
desses casos, veremos no rio Capibaribe uma instância de representação, assim como a
cana-de-açucar, porque laureiam no plano simbólico algo que passa a ser constitutivo do
universo eleito pelo poeta moderno. Daí a reincidência daquele rio na sua escritura, bem
como de palavras cujo radical ou núcleo semântico se desdobra da ―cana‖. Há, portanto,
uma diferença significativa na utilização que um e outro autor faz da Maré. No primeiro
caso, a Maré é transformada em condição instrumental do lugar que vem a representar. No
segundo, a Maré é a representação mesma de toda uma conjunção de fatores que
atravessam a afetividade do poeta, que ele vê objetivada. Isso acontece, por exemplo,
quando indica, descreve e nomeia a Maré como sendo própria da sua família, haja vista a
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predicação ―da Jaqueira‖, onde estava encravada a experiência ancestral, mas também o
evento de seu nascimento, circunstanciado no poema já mencionado ―Autobiografia de um
só dia‖. Por conta de tudo isso, os quatro AA de Botelho nunca poderiam ser cifrados do
mesmo modo por João Cabral. Neste sentido, também a experiência histórica reforça o
argumento, uma vez que o registro dos fonemas vem a ser símile da realidade, o que
também já foi assinalado a propósito da obra de Botelho de Oliveira.
A representação das letras como signos de realidades essenciais é um
lugar comum e cabalístico, que recupera em outro lugar noções já
vistas da potência sonora como semelhança conceitual. Isso ocorre
inclusive nos primeiros cronistas do Brasil que repetem com
insistência a máxima de que as diversas línguas dos índios do Brasil
não têm, nenhuma delas, nem F, nem L, nem R – por nenhum deles
terem Fé, Lei ou Rei. Aqui o poeta usa o mesmo procedimento de
tomar a letra A como signo dos conceitos elegidos, porém não para
vituperar, e sim para fazer uma súmula do elogio à ilha, que em si
perfeitos quatro AA encerra. (MUHANA, 2005, p. LXXXVII)
Quanto ao valor representativo inerente ao fruto da terra brasileira, um dado a
considerar é que o primo de João Cabral, Gilberto Freyre, esboçou uma narrativa
consoante a qual o desenvolvimento do Brasil estaria condicionado à produção do açúcar e
seria Pernambuco o seu centro produtor, chegando mesmo a escrever um livro de receitas
que ilustra o modo como o objeto de consumo representa nossa sociedade, sob o título de
Açúcar. João Cabral quando escreveu o poema ―Prosas da Maré da Jaqueira‖, que veio a ser
publicado em 1980, já tinha se desfeito de todos os seus preconceitos ideológicos e
houvera se transformado em leitor voraz daquele seu primo (MELO NETO, 1981: 102)
como relatou em várias entrevistas e registrou em vários poemas, inclusive no que ora é
objeto de análise.
Além disso, João Cabral havia experimentado a sociabilidade canavieira por ter
vivido nos engenhos de cana-de-açucar herdado ou arrendados por seu pai, o que também
registrou no poema ―Menino de três engenhos‖. Como se não bastasse, toda a sua
parentela era composta de proprietários de terra e de engenhos, que circundavam o
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Capibaribe. De modo que falar do rio – ou de sua Maré -, para o pernambucano funciona
ao mesmo tempo como uma maneira de acionar uma matriz historiográfica enraizada no
seu seio familiar e também como evocação de um tipo de sociabilidade inscrita naquele
espaço, contíguo ao rio, cuja propriedade passou à sua família de geração a geração durante
séculos. Com isso, o poeta promove a rememoração de sua experiência infantil e juvenil,
que se constituía junto ao rio que descreve no poema como ―o próprio-quase-tudo‖, fosse
em decorrência de sua vivência ali, do que ouvira de seus antepassados ou do que elegera
como objeto de representação literária.
Daí se depreende uma compreensão de literatura que é vincada num espaço social,
que é mediado pela experiência familiar, com a qual se confunde. Nesta medida, a
representação social da obra cabralina sofre forte interferência do olhar de sua família, que
inscreve num lugar determinado sua própria história e a transfere como modalidade
expressiva da representação do Brasil. Por outra via, aí podemos identificar algo parecido
com o que ocorria com Botelho de Oliveira, ainda que sob o véu de outros interesses e
determinações. Por uma ou por outra razão, no confronto entre os poetas, fica-nos como
saldo um balanço bastante modesto, porque só realça os conflitos sociais envoltos nos
conflitos lingüísticos que atravessaram o Atlântico de Portugal ao Brasil, onde já havia uma
disputa acirrada desde o século XVII também no plano lingüístico. Ao menos, em sua
porção literária que é onde talvez a representação social seja mais eficazmente identificável.
Referências bibliográficas
FREYRE, Gilberto. Açúcar. São Paulo: Companhia das Letras, 1997
MELO, Mário. ―Suplicio de Frei Caneca‖ in: Revista do Insituto arqueológico, histórico e geográfico
pernambucano. Recife: oficinas gráficas da repartição da república oficial,1924. V. XXVI pp.
335-342.
MELO NETO, João Cabral. ―João Cabral de Melo Neto‖ in: STEEN, Edla Van. Viver e
escrever. Porto Alegre: L&PM,1981. p. 99-109
___________________. Obra completa. Organização Marly de Oliveira. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar, 1994.
_____________________. Poesia completa e prosa. Organização Antonio Carlos Secchin. 2ª
ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008.
VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 133
MUHANA, Adma Fadul. ―Introdução‖ in: OLIVEIRA, Manuel Botelho de. Poesia completa.
São Paulo: Martins Fontes, 2005.
STEGAGNO-PICCHIO, Luciana. História da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 2004.
TEIXEIRA, Ivan. ―A poesia aguda do engenhoso fidalgo Manuel Botelho de Oliveira‖ in:
OLIVEIRA, Manuel Botelho de. Música do Parnaso. Cotia: Ateliê, 2005.
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2.
PAISAGENS DO CAPIBARIBE: ESPESSURA DA VIDA NA POÉTICA
DE JCMN
Lenise dos Santos Santiago
(UFRN)
A poesia de João Cabral de Melo Neto se apresenta como um laboratório de
linguagem e no trabalho de construção e reconstrução o poeta constrói um rigoroso jogo
de imagens cinematográficas, como se fosse uma provocação ao leitor para que este possa
deglutir a palavra, a linguagem e, daí, surgindo o efeito sinestésico. Dessa forma, o
trabalho consciente de ordenação das palavras faz surgir uma exaltação do silêncio
configurado através dos elementos: deserto, secura, rio e pedra. O poeta anuncia o deserto
como o espaço geográfico escolhido para instaurar a metáfora do silêncio que também se
apresenta como metáfora da infertilidade e da negatividade, tais elementos articulam-se em
busca do significado e significação do fazer poético e nada mais próprio que a aridez do
deserto para provocar a exploração dos sentidos e, é, no silêncio do deserto, que a visão,
um dos sentidos da notória predileção de João Cabral, é aguçada.
A obsessão pela visualidade também se explica pelo desejo de negar a herança oral
da poesia brasileira, ou seja, a aversão ao verso retórico (heptassílabo ou decassílabo), como
também, à insistência ao uso da rima com cesura interna. Sua restrição ao senso comum da
musicalidade na poesia, que julgava de efeito sonífero, explica sua forte aproximação com
as artes plásticas. Tomando de empréstimo aspectos visuais da pintura – embora sem
competir com ela, pois os usa em um sentido estritamente verbal -, Cabral enriquece o
fazer poético e a própria linguagem, que, na dinâmica de produção de imagens,
tradicionalmente, não pode prescindir da intermediação da imaginação. A visualidade é
mais uma idéia no repertório cabralino como a insistência de uma luz solar incidindo
ortogonalmente sobre o solo de sua poesia. Assim sendo, podendo-se dizer que é um
exemplo de poesia sensitiva, em que a linguagem, pelo processo de desdobramento, se
revela num veículo de construção da imagem.
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Conforme postula Octavio Paz (1982, p. 46) vem nos lembrar que na poesia ―Os
estados passivos não são nada mais que experiências do silêncio, e o vazio nada mais é que
momentos positivos e plenos: do núcleo do ser jorra uma profusão de imagens‖. Este
conceito parece estar bem crivado na poesia de João Cabral, pois os elementos o silêncio e
o vazio não representam um estado de alienação, mas uma metáfora que relaciona a
consciência da participação da poesia na mediação entre a sociedade e o produto dela, sem,
porém, criar ideologias, porque, através da poesia o poeta e o leitor, ou melhor,
especificando, o homem se depara com os fundamentos do seu ser, ou seja, com uma real
identidade, refletida pela palavra.
Tomando como referência Sarduy (1989, p. 54), em seu estudo sobre o barroco,
encontramos reflexos de retórica na obra cabralina, ao referirmos sobre o vazio que os
personagens rio/homem configuram.
A prática do barroco é uma retórica: a linguagem, funcionamento de um
código autônomo e tautológico, não admite na sua rede densa, carregada,
a possibilidade de um eu gerador, de um emissor individual, central, que
se exprima - o barroco funciona no vazio -, que oriente ou contenha o
transbordar dos signos.
A luta entre a voz e o silêncio, ou melhor, a confrontação do poeta com o limite de
sua voz é notória em Psicologia da Composição (1947), obra em que se evidencia a
epígrafe Riguroso horizonte
32
de Jorge Guillén. Como também em Morte e vida severina
(1956), através da peregrinação silenciosa do personagem Severino, o poeta retoma o
processo de ―desemplumação‖ da linguagem. Marcada pelo prosaico, a linguagem se
configura como uma tentativa de superação do vazio, tentativa que se revela impotente
para o estabelecimento do contato e descoberta do novo mundo. Severino, em todos os
contatos mantidos durante sua trajetória, só consegue fazer uma descoberta: é Severino
igual a todos os outros. Essa homogeneidade parece caracterizar a imagem do homem
barroco/moderno que traz consigo o pessimismo do drama do barroco e resistindo
penosamente ao mundo é subserviente à moral estóica. O personagem Severino como
personificação de tantos outros severinos, empreende todos os questionamentos e
32
Primeiro verso do poema El horizonte, de Jorge Guillén.
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angústias vivenciais, dentre eles, o limite da linguagem em face à existência precária que o
persegue, se questiona e se confronta com o limite das respostas e do silêncio:
[...]
- Severino, retirante,
pois não sei o que lhe conte;
sempre que cruzo este rio
costumo tomar a ponte;
quanto ao vazio do estômago,
se cruza quando se come.
- Seu José, mestre carpina,
e quando ponte não há?
quando os vazios da fome
não se tem com que cruzar?
quando esses rios sem água
são grandes braços de mar?
[...]
Seu José, mestre carpina,
e quando é fundo o perau?
quando a força que morreu
nem tem onde se enterrar,
por que ao puxão das águas
não é melhor se entregar?
- Severino, retirante,
o mar de nossa conversa
precisa ser combatido,
sempre, de qualquer maneira,
porque senão ele alaga
e devasta a terra inteira.
(MELO NETO, 1994, p. 193, 194) (grifo nosso)
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A linguagem como um signo imanente ao homem e às suas relações, reflete a
condição de existência social. Compreende, ainda, à relação comum que ele mantém com o
signo e seus significantes, por isso, Seu José, mestre carpina, percebendo a angústia de
Severino, atenta para o perigo que o mar da linguagem não bem arquitetada pode lhe
causar. O mar de uma entrega, que deve ser freado pelo mar do silêncio, precisa ser
enfrentado para acabar com o risco de não ser domado. Do mesmo modo o rio na cheia,
com seu discurso descontrolado, precisa ser evitado. Por estar passivo às suas limitações, o
confronto do homem com suas experiências e angústias leva-o ao vazio e ao drama da não
resposta. Experiência esta que poderia ser apontada como um fato negativo, no entanto,
poderíamos ver como veículo que o conduz a um estado de retorno a si e, ainda, como
uma tentativa de compreensão da própria linguagem. Dessa forma, a experiência do
silêncio deve ser vista como um vetor de reconciliação do homem consigo e com o mundo.
Através do exercício da poesia, a experiência do silêncio rompe com as barreiras de tempo
e espaço unindo o poeta às suas fontes de compreensão.
Como o rio Capibaribe, Severino se define por sua natureza desvalida – ambos
estão sujeitos a um destino de penúria, motivados pela seca. É a marca da carência que os
aproxima e os une numa poética de travessia. Sempre se mirando, um sendo o eco do
outro, rio e homem mal podem ser distinguidos. Sente-se que o rio identifica-se com o
viver nordestino, ou mesmo que o rio e a vida compartilham da mesma sina ―severina‖. A
relação isomórfica entre rio e homem torna-se, na poética de João Cabral, metáfora de
realidades amplas e, ao mesmo tempo, projeção simbólica de procedimentos de uma
cultura regional que se projeta diante da precariedade da sobrevivência. Com isso, percebese a semelhança de enredo social entre os poemas narrativos O rio e Morte e vida
severina, ambos nascem da mesma razão sociológica como também do uso do prosaico,
do polirrítmico, aderente às flutuações da linguagem coloquial. A absorção da oralidade é
muito bem expressa no poema O rio. O Capibaribe é uma espécie de narrador etnográfico
subjetivo que, conforme Benedito Nunes (1974, p. 79), ―de tudo que vê, dá correta notícia
oral ao poeta, mencionado no texto como senhor da freguesia de Tapacura‖. Assim, o
poema como forma de documentário é o registro poético de um percurso de viagem que,
por diversos níveis: o geográfico, o humano e o social, anunciam e denunciam a penúria do
meio regional.
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Através da linguagem catalisadora de metamorfoses, transmutam rio em homem e
homem em rio, tornando esses elementos temáticos em seu relacionamento recíproco,
imagens poéticas confluentes. Nisso, a travessia d`O rio do Capibaribe pela cidade do
Recife confunde-se com a travessia de Severino do Agreste pela Zona da Mata
pernambucana ao Recife, levando consigo os tantos rios que tantos severinos buscam. Nos
poemas O rio e Morte e vida severina, apresentam-se duas histórias – Severino, retirante
e o Capibaribe, rio cujo leito leva ao Recife, ambos buscam o mesmo espaço, conscientes
do mesmo destino.
As realidades do rio e do homem não estão isoladas. As contradições e as oposições
estão caracterizadas através do ―discurso‖ do rio, traduzindo-se a realidade porque passam
e daí entram num processo de transmutação: N´O rio realiza-se a transmutação
rio/homem.
Os rios que eu encontro
vão seguindo comigo.
Rios são de água pouca,
em que a água sempre está por um fio.
(MELO NETO, 2000, p. 14)
Em Morte e vida severina acontece a transmutação homem/rio, em que, através
de determinado processo, o conceito da realidade severina favorece à construção de um
outro eu:
Ao entrar no Recife,
não pensem que entro só.
Entra comigo a gente
que comigo baixou
por essa velha estrada
que vem do interior;
entram comigo rios
a quem o mar chamou;
entram comigo gente
que com o mar sonhou,
(Ibid., p. 30)
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Entre os elementos metafóricos, o rio e o homem, originam um sistema de
equivalência em que o rio humanizado e o homem fluvializado confundem suas naturezas,
em face de um estado de precariedade por ambos compartilhados. O rio que se transmuta
em homem carrega consigo todas as mazelas dos migrantes severinos que abandonam o
sertão rumo ao litoral, encontrando em sua longa viagem apenas a morte. É o que segue
em O Rio:
Tudo o que encontrei
na minha longa descida,
montanhas, povoados,
caieiras, viveiros, olarias,
mesmos esses pés de cana
que tão iguais me pareciam,
tudo levava um nome
com que poder ser conhecido.
A não ser esta gente
que pelos mangues habita:
eles são gente apenas
sem nenhum nome que os distinga;
que os distinga na morte
que aqui é anônima e seguida.
São como ondas de mar,
uma só onda, e sucessiva.
(Ibid., 38, 39 e 46) (grifo nosso)
[...]
Somos muitos severinos
Iguais em tudo na vida:
Na mesma cabeça grande
Que a custo se equilibra,
No mesmo ventre crescido
Sobre as mesmas pernas finas,
E iguais também porque o sangue
Que usamos tem pouca tinta.
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E se somos severinos
Iguais em tudo na vida,
Morremos de morte igual,
Mesma morte severina:
[...]
(Ibid., 38, 39 e 46 - grifo nosso)
Compondo uma escritura fortemente voltada para a captação da realidade social e
humana, os poemas recriam paisagens dessublimadas, dão a ver um espaço depurado de
imagens idealizadas, resultando o texto poético numa mescla de esferas que abarca o
regional e o universal. E, essa universalidade vem configurar no texto cabralino, nuances do
barroco.
As inquietações, esperanças e desesperanças dos severinos-rios ressoam os
questionamentos próprios do ser humano, em qualquer parte e em todos os tempos.
Podemos perceber, então, que o que alimenta e embasa os textos em estudo não é
somente a ligação temática da escritura com o povo, com o cotidiano, com a experiência,
com a natureza, mas, também, a opção estilística direcionada para o reaproveitamento de
expedientes com que a gente do nordeste constrói suas narrativas, imprimindo sentido ao
seu existir. Daí um trabalho com a linguagem que, adotando mecanismos intertextuais,
remete às tradições folclóricas, ao estilo dos cantadores e ao romanceiro popular, fonte de
que provém grande parte do material poético. Isso é bem observado por Alfredo Bosi
(1994, p. 471) quando aponta: ―O convívio com a meseta castelhana dos homens de pão
escasso e com a poesia ibérica medieval, há um tempo severa e picaresca, acentuou em
Cabral a tendência de apertar em versos breves e numa sintaxe incisiva o horizonte da
vivência nordestina‖. Observação esta percebível em toda a obra cabralina, sobretudo em
Morte e vida severina.
Na trajetória retirante, tanto de Severino quanto do poema, aparece uma articulação
de construção da peça às avessas. Pois, nada mais é que uma antítese, a presença da morte
que paradoxalmente busca a vida é, por excelência, o eixo da narrativa. Assim, contrariando
a lei natural da vida, temos, portanto, uma despoetização da existência. Dado este
percebido pelo próprio retirante ao declarar:
– Desde que estou retirando
só a morte vejo ativa,
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só a morte deparei
e às vezes até festiva;
só a morte tem encontrado
quem pensava encontrar vida,
e o pouco que não foi morte
foi de vida severina
(aquela que é menos
vivida que defendida,
e é ainda mais severina
para o homem que retira).
(MELO NETO, 1994, p. 177 - 178)
Luiz Costa Lima, em Lira e antilira (1995, p. 270), observa que todo o poema é
construído a partir de um desdobramento ―mais que a história de Severino retirante, o
poema é um desdobramento por dentro do que signifique a imagem da morte e vida
severina‖. Considerando que acontece um desdobramento do personagem naquilo que
vem retratar o caminho que Severino e o rio se propõem a fazer, se observa que o nome do
herói dramático ―Severino‖ passa de substantivo próprio a, também, substantivo comum,
pois na sua caminhada encontra diversos ―severinos‖, é qualquer um, ou seja, todos. É,
também, substantivo abstrato pela própria condição que nomeia sua vida severina e é
concreto porque os dois termos que articulam o poema ―morte e vida‖ são tão concretos
quanto o próprio personagem – Severino. Essa característica do desdobramento é
detectada não somente em Morte e vida severina, mas, também, nas co-relações temáticas
do conjunto literário cabralino. As obras O cão sem plumas, O rio e Morte e vida
severina apresentam uma maior evidência por acomodar uma tensão temática coletiva,
pois os elementos poéticos cão, rio, homem são construídos a partir de um molde
descritivo através do poema narrativo, os quais mantêm uma relação de traspassamento,
em que todos eles sincronicamente compõem uma extensão de suas imagens, descritas
como opacas, espessas, estagnadas. É o que apresenta os versos a seguir de O cão sem
plumas:
§
Como o rio
aqueles homens
são como cães sem plumas
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(um cão sem plumas
é mais
que um cão saqueado;
é mais
que um cão assassinado.
§
Um cão sem plumas
é quando uma árvore sem voz.
[...]
§
O rio sabia
daqueles homens sem plumas.
[...]
(MELO NETO, 1994, p. 105 – 108)
Em, O rio:
[...]
Eu não sei o que os rios
têm de homem do mar;
sei que sente o mesmo
e exigente chamar.
[...]
Vou andando lado a lado
de gente que vai retirando;
vou levando comigo
os rios que vou encontrando.
[...]
Vou na mesma paisagem
reduzida à sua pedra.
A vida veste ainda
sua mais dura pele.
Só que aqui há mais homens
para vencer tanta pedra,
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[...]
Há aqui homens mais homens
que em sua luta contra a pedra
sabem como se armar
com as qualidades da pedra.
(Ibid., p. 119, 121 e 124)
Em Morte e vida severina, revela-se a voz do rio. O discurso do Capibaribe é
personificado através do personagem Severino, fazendo, então, acontecer o desdobramento
do discurso que se amplia passando por diversos níveis descritíveis – o geográfico, o
humano e o social, os quais se integram entre si, dentro de uma mesma realidade. Severino
insiste, tentando fazer-se ouvir:
[...]
Como então dizer quem fala
ora a Vossas Senhorias?
Vejamos: é o Severino
da Maria do Zacarias,
lá da serra da Costela,
limites da Paraíba.
Mas isso ainda diz pouco:
se ao menos mais cinco havia
com nome de Severino
filhos de tantas Marias
(Ibid., p. 171 ) (grifo nosso)
O herói nordestino, de forma cerimoniosa, usando o pronome de tratamento na
segunda pessoa do plural (vossas senhorias), dirige-se ao público que não se empolga com
sua apresentação, tendo em vista que ele ―Severino‖ é simplesmente mais um dentre tantos
outros. Configurando, mais uma vez, o desdobramento do perfil do personagem, afirma:
―Mas isso ainda diz pouco: [...] se ao menos mais cinco havia [...] com nome de Severino
[...] filhos de tantas Marias‖. Demonstrando a responsabilidade com o objeto poético em
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relação à composição e à tessitura, o poeta constrói um desdobramento interno da imagem
que se transpõe para o nome do personagem, seu prosaísmo voluntário da linguagem
configura o romanceiro popular do nordeste expresso através da uniformidade dos versos
em redondilha. A responsabilidade do poeta não somente quanto artista, mas, sobretudo
ética, leva o leitor à construção de uma leitura também ética, visto que o texto não é
simplesmente o lamento do personagem que se mostra pobre e impotente e sim uma
chamada à consciência, de forma elegante e intelectualizada, ao comprometimento
humano, social, cultural e artístico.
REFERÊNCIAS
LIMA, Luiz Costa. Lira e antilira. 2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995.
MELO NETO, João Cabral de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
__________. Cadernos de Literatura Brasileira. São Paulo, n. 1. Março, 1996.
NUNES, Benedito. João Cabral de Melo Neto: Poetas modernos do Brasil. 2.ed.
Petrópolis: Vozes, 1974.
PAZ, Octávio. O arco e a lira. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
SARDUY, Severo. Barroco. Trad. Maria de Lurdes Júdice e José Manuel de Vasconcelos.
Lisboa: Vega, 1989.
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3.
O TEATRO DA MORTE E DA VIDA: A ESCRITA BARROCA DE JOÃO
CABRAL DE MELO NETO
Francisco Israel de Carvalho (UFRN)
A obra objeto deste trabalho é o poema/peça Morte e vida severina – O Auto de Natal
pernambucano, quando procuramos identificar marcas, rastros, confluências do Barroco
como expressão da modernidade, na obra cabralina. O Barroco em que todos os poetas de
vanguarda se inspiraram, por ser um estilo de elaboração da linguagem como expressão
poética, tradição que chega aos poetas contemporâneos como Severo Sarduy, Eugênio
D´Ors, Haroldo de Campos, Lezama Lima, críticos e teóricos do século XX.
Assim, em Morte e vida severina, João Cabral trata temas clássicos do Barroco, como
morte e vida, no mesmo plano da importância, construindo o seu poema entre esses dois
paradoxos da existência humana, fazendo uma releitura desse Barroco que rompe as
fronteiras do Século XVII. Em Morte e vida severina, o personagem vive toda a via crucis da
vida do sertanejo, sempre às voltas com as constantes estiagens e o êxodo rural
permanente. Vê a morte de perto, carrega todas as dores da alma nordestina na busca pela
sobrevivência: morte e vida, dor e alegria, seca e abundância, desilusão e esperança.
A escrita de João Cabral de Melo Neto transporta para o século XX essa
contemporaneidade do Barroco, em um rigoroso trabalho de construção da linguagem,
onde a métrica e as palavras são minuciosamente trabalhadas. Nesses termos, encontramos
uma relação Barroco versus Modernidade em Morte e vida severina, no que afirma Irlemar
Chiampi:
A relação Barroco x Modernidade quer situar-se, pois, após o debate
acadêmico gerado com a oposição entre um conceito do Barroco como
estrutura histórica (um estilo, uma prática discursiva do Século XVII),
fortemente ligado à Contra-Reforma, às monarquias e à classe aristocrática –
logo, reacionário e antimoderno – e o conceito de barroco eterno, atemporal,
uma
forma
que
ressurge,
não
importa
quando
nem
onde.
(CHIAMPI, 2000, p. XVII)
Além do Barroco que permeia toda a obra Morte e vida severina é de importância destacar
também os aspectos formais e estruturais da composição, além de toda temática voltada para as
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questões de ordem social que afligem o Nordeste e os nordestinos, tais quais: a constante
estiagem e o domínio do latifúndio que exclui do setor produtivo grande parte da população
nordestina. Neste contexto, a poesia cabralina surge como uma voz que denuncia as situações,
mas não anima as controvérsias, revela os desequilíbrios como estratégia, mas não aponta
soluções, porque não é esse o papel da poesia. Apenas mostra, expõe a ferida.
No discurso de Severino há um nivelamento dos muitos outros sertanejos severinos.
Justificando essa constante diáspora do homem sertanejo na morte e na vida cabralina, Antonio
Carlos Secchin assim escreve:
Em Cabral, o Sertão nasce para anunciar a morte: sertão, serthânatos.
Natureza desfalcada, palco de atores-bichos, homens, rios – em perpétua
retirada, ele também não deixa de ser, por contraste, o emulador de uma
afirmação vital: viver nele, apesar dele. É nesse jogo entre devastação e
resistência que a poesia da morte e vida cabralina vai tentar traduzir o
Sertão. Traduzi-lo num viés etimológico: atravessá-lo, levá-lo além, de um
ponto a outro: do verso do poeta ao reverso do deserto (ou desertão) onde a
vida severina pede passagem. Traduzir o deserto solar do Sertão no deserto
polar da página branca, pois ―o sol de palavra/é natureza fria‖ (MELO
NETO, 1994: p.414).
(SECCHIN, apud CAMPOS [org], 1995: p.12-15)
Nesse sentido é que lançamos um outro olhar sobre Morte e vida severina, obra que levou
João Cabral a tratar de um tema clássico do Barroco: a morte. Focalizaremos essa tendência
barroca de trabalhar os opostos no mesmo plano de valor: morte e vida, vida e morte, alegria e
dor, seca e abundância, fome e fartura, herói e anti-herói, o um e o múltiplo, o jogo da parte
pelo todo, o bem e o mal. Essa peleja entre a morte severina e a vida severina é tratado por João
Cabral em todo o percurso de seu personagem principal, que tem uma existência esgueirando-se
entre a morte e a vida, morte física e social, individual e coletiva.
Vemos no personagem central do poema, o Severino retirante, características do
homem barroco vivendo situações diferentes, em mundos diferentes, entretanto, trazendo no
corpo e na alma, a mesma angústia, o medo, a incerteza, a perplexidade diante do novo. A
incerteza da existência, o subdesenvolvimento das regiões pobres esmagadas pelas sociedades
mais ricas e industrializadas, aproximam esses homens tão longe e tão perto, a um só tempo.
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Vejamos as palavras de Ávila (2000: p. 26) sobre essa ligação entre o homem de hoje e o
homem barroco:
O homem barroco e o do Século XX são um único e mesmo homem
agônico, perplexo, dilemático, dilacerado, entre a consciência de um mundo
novo – ontem revelado pelas grandes navegações e as ideias do humanismo,
hoje pela conquista do espaço e os avanços da técnica – e as penas de uma
estrutura anacrônica que o aliena das novas evidências da realidade – ontem a
contra-reforma, a inquisição, o absolutismo, hoje o risco da guerra nuclear, o
subdesenvolvimento das nações pobres, o sistema cruel das sociedades
altamente industrializadas.
Nesta afirmação, Ávila tanto coloca o personagem Severino no mesmo patamar de crise
do homem barroco, como o próprio artista moderno, que assume, absorve, na sua arte, o
mesmo ―status–quo‖ dos seus personagens, criando versos/formas agônicas, perplexas,
dilemáticas, retratando o mundo atual. fazendo da viagem do retirante, uma empreitada da
própria existência, procurando respostas, caminhos, alternativas, saídas...para entender a
realidade de um mundo tão cruel. Como afirma Ávila (2000: p. 35):
Um João Cabral de Melo Neto, ao trabalhar num remordimento formal
barroco seus poemas que têm como pretexto o Nordeste açucareiro, faz
incidir a sua visão crítica e criadora sobre a mesma realidade, a mesma
estrutura econômica monocultura, a mesma sociedade de raízes patriarcais,
feudais, que suscitaram no Século XVII a veemência satírica de Gregório de
Matos.
A presença de um Barroco, ou de um Neobarroco – como nomeia Omar Calabrese – ,
que não tem registro de nascimento, não é vinculado à Igreja como uma arma mortal da
Contra-Reforma. Um passado que é recuperado por João Cabral com gosto de presente, de
atualidade, buscando no Barroco, algo que podemos chamar de modernidade, extraindo o
poético do histórico, o eterno do transitório. Conforme Ávila (idem: p.34)
Há sem dúvida uma insinuação de formas barroquizantes em toda aquela
vertente literária que entre nós se caracteriza pela propensão inventiva, pela
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criatividade da linguagem, pela ascendência da informação estética sobre a
semântica.
E é o que faz João Cabral. Com uma escrita inventiva e bem elaborada, ele tanto lança
mão das técnicas da poesia popular do Nordeste, quanto do cancioneiro popular/erudito da
tradição ibérica, quando utiliza o heptassílabo e a assonância. Há ―um método‖, um modo na
escrita cabralina, assim como existia no Barroco, no qual
aparentemente se instalava a
desordem, o desperdício, o inacabado, a instabilidade, a insegurança, o imprevisível, a nãoordem, havia uma harmonia interna fazendo a ligação do pormenor ao todo e relações nas quais
os elementos contraditórios se explicavam.
Na escrita cabralina, o Barroco tem um gosto do nosso tempo, aparentemente confuso,
fragmentado, em ruínas e indecifrável, assim como no Seiscentos. Fugindo da etiqueta de uma
escola de arte específica, não representa também um ―retorno‖ ao Barroco, mas um Barroco
que começa a ter um significado de ―constante‖. Para Calabrese (2000: p.10):
O ―Neobarroco‖ é simplesmente um ―ar do tempo‖ que alastra a muitos
fenômenos culturais de hoje, em todos os campos do saber, tornando-os
parentes uns dos outros, e que, ao mesmo tempo, os faz diferir de todos os
outros fenômenos de cultura de um passado mais ou menos recente.
João Cabral instaura, em Morte e vida severina, todo esse estado de coisas que o aproxima
do Neobarroco quando denuncia, por meio do seu personagem central – o Severino retirante e
o outros personagens flutuantes da história –, uma situação de miséria e abandono do homem
do Nordeste a qual se arrasta há séculos. Essa mesma situação que ele próprio testemunhou,
quando criança, e que o acompanhou durante a vida em outros países. O enredo de Morte e vida
severina, engendrado por Cabral, confirma o ―ser barroco‖ nos tempos modernos, como define
Sarduy (1989: p.96):
Arrisco-me a defender o contrário. Ser barroco hoje significa ameaçar, julgar
e parodiar a economia burguesa, baseada numa administração avarenta dos
bens: ameaçá-la, julgá-la e parodiá-la no seu próprio centro e fundamento. O
Barroco moderno, o Neobarroco, reflete estruturalmente uma discordância: a
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ruptura da homogeneidade, a ausência de um logos absoluto, a carência em
vez do fundamento como episteme.
Tomando como suporte as palavras de Severo Sarduy e Omar Calabrese, identificamos
na escrita de Morte e vida severina rastros desse Barroco regional, caracterizado por uma escrita
inventiva, estruturada minuciosamente e elaborada sem a ―inspiração‖ comum aos poetas.
Entretanto, essa escrita é trabalhada mentalmente, através de um rigoroso trabalho de
linguagem e construção – a dura poesia cabralina feita de ―pedra bruta‖ e lapidada como a
―pérola irregular‖ do Barroco.
Em Morte e vida severina, o personagem principal, a começar pelo próprio nome, já nos
leva a uma discussão dos significados possíveis nele contidos – Severino, que de nome próprio,
um ser individual, passa a representar o coletivo: todos os que sofrem, mesmo que em
situações diferentes. É ele que articula os dois sintagmas: morte e vida, vida e morte presentes
em todo o percurso do retirante. João Cabral, para contar a história do Severino, utiliza a forma
dramática do teatro, como a dizer: Morte e vida severina é um poema não apenas para ser lido em
voz baixa, mas, para ser visto, representando, teatralizado, como recomenda a estética barroca.
Nesse sentido, Morte e vida severina se inscreve como uma obra do teatro barroco, o
teatro da morte e da vida, não sendo possível distinguir o que é palco e o que é realidade.
Nessa perspectiva, conforme Sant‘Anna (2000: p. 165):
No Barroco, portanto, o espetáculo transcende as paredes do teatro, exorbita
nos rituais religiosos, faz seu jogo de cena nos palácios e estende-se pelas
ruas e campos de batalha. A própria vida não passa de um ato dentro de um
drama que dirigindo-se para a morte espira ambiguamente do trágico e ao
sublime.
A viagem de Severino nada mais é que a representação da vida severina dos homens do
sertão, mas também uma representação que diz da própria realidade. O personagem central, os
cenários, os personagens secundários são obra de ficção e são reais. O simulacro do que é real e
do que é fantástico, mítico. Eles existem na imaginação do poeta e na vida real e são facilmente
identificados. O que em Morte e Vida é palco e o que é realidade? O palco funciona como um
espelho da realidade, sendo o espaço cênico reinventado com a história ―verdadeira‖ do
personagem, que tem como característica a inconstância de um ser que é uno, individual e
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coletivo ao mesmo tempo. É um e muitos. E esse é um dos traços principais do Barroco. Assim
é em Leibniz o conceito das mônadas: a mônada é um ser uno, assim como a mente, mas só é
distante da outra pela sua atividade interna. Contudo, cada mônada espelha o universo inteiro,
mesmo sendo essa unidade. Para Leibniz, ―só o indivíduo existe, e ao mesmo tempo, existe em
virtude da potência do conceito: mônada ou alma‖ (DELEUZE, 1991, p.101).
Podemos fazer relações desse conceito das mônadas com as primeiras cenas de abertura
de Morte e vida severina quando nos trinta primeiros versos, Severino tenta apresentar-se ao
público/leitor, mas depara-se com uma dificuldade: a falta de individualidade, pois mesmo
sendo um único indivíduo, representa cada retirante despersonalizado, sem passado ou futuro,
sem esperanças e ao mesmo tempo, há uma identidade coletiva contida em si mesmo e,
representada por ele próprio: ―E se somos muitos Severinos /iguais em tudo na vida,
/morremos de morte igual, /mesma morte severina: (MELO NETO, 1994: p. 172)
Esse Severino representa outros Severinos ―iguais em tudo na vida‖, iguais até na mesma
morte ―severina‖, desdobra-se em outros, aumenta, cresce, multiplica-se em outros. A desdobra
não seria o contrário da dobra, mas segue a dobra até outra dobra. (DELEUZE, 1991, p.18).
Seria uma transformação ou a extensão do outro. Nesse sentido, há em Severino essa
característica barroca de ser multifacetado, que traz consigo a mesma dor, a mesma sina, a
mesma igualdade, a mesma morte, os mesmos desejos de outros iguais a ele.
Como diz Nunes (1974: p. 82-83), contraditoriamente, Severino dá nome ao que é
anônimo, ao que é vinculado pela igualdade do anonimato, tanto na vida como na morte –
morte e vida formando um todo em que a primeira envolve e determina a segunda. Ele, como
figura, é o avesso do belo. É o oposto, o grotesco. João Cabral rompe a ideia de só se retratar o
belo e o sublime na poesia. Ele assimila, assim, na construção do seu personagem, o feio que foi
representado sistematicamente pelo Barroco. O feio e o belo se misturam. Por ser grotesco, o
Severino está mais próximo do belo, ou seja, sua beleza está em ser grotesco.
O Severino é lançado numa caminhada que representa ―um labirinto‖, pois os
descaminhos levam somente à morte. Um labirinto como um enigma, um mistério representado
naqueles personagens que cruzam a todo instante, nas mortes de outros ―severinos‖, como ele,
que não conseguiram encontrar a saída do labirinto da fome, da miséria, do latifúndio, da morte,
mesmo que no final encontre a vida, é uma ―vida severina‖, uma vida que é morte e uma morte
que é vida. Tudo no mesmo patamar de igualdade.
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O percurso que faz o Severino podia ser representado pelo ―labirinto cúbico‖ tão
comum no Barroco, quando a reta e a curva se encontram. O poema representando a imagem
da serpente que morde o próprio rabo. O círculo que se fecha: o Severino que nasceu na Serra
da Costela e migrou nessa caminhada incerta, caótica, labiríntica, retornando ao ponto de
partida, ao advento de outra ―vida severina‖. Sobre esse labirinto tão presente no Barroco,
assim descreve Sant‘Anna (2000: p. 61-66):
O labirinto tem consonância com a vontade frustrada de se chegar a alguma
parte...No entanto, para se entender mais estruturalmente o sentido, da
imagem do labirinto no Barroco, é indispensável vinculá-la à temática do
―peregrino‖, tão reincidente nessa época.
Essa afirmativa nomeia o Severino como um personagem barroco, mergulhado num
labirinto representado por um itinerário pontilhado de obstáculos, de mortes, de vidas. O
labirinto que existe porque há outro personagem que o percorre, representado por esse
peregrino Severino, um ser que parece perdido, sem rumo ou direção, personagem presente
também na poética de Cláudio Manoel da Costa, Gôngora e Padre Alexandre de Gusmão.
Como podemos perceber, as viagens já eram comuns na literatura, mas foi no Barroco
que tomou essa conotação de uma empreitada angustiosa e mítica de peregrinar nos labirintos
do mundo. No Barroco, a imagem do peregrino está imbricada a outras imagens barrocas que
remetem a peripécia, movimento, trânsito, instabilidade. Transportando essa imagem para o
hoje, onde o sentido mítico e mágico dá lugar ao sentido social, o peregrino perde-se no
labirinto social, onde não tem lugar definido. É um deslocado, um excluído, conforme a retórica
social dos tempos atuais.
Um ―faz tudo‖ em todos os ofícios, mas não tem uma profissão definida, uma peça que
não se encaixa na engrenagem social e econômica dos nossos dias, Severino ―peregrino‖ não
consegue um ofício na sua caminhada ‖pois sempre foi lavrador, lavrador de terra má‖ (MELO
NETO, 1994: p.179). Segue como um excluído até chegar à parada final e João Cabral não dá
conta se ele continua lá ou volta para sua terra, pois tudo é interrompido pelo presépio que é
representando, quando ele pretendia ―saltar fora da ponte e da vida‖. Permanece um indivíduo
perplexo diante da incerteza da vida, esgueirando-se no caos cotidiano. O Barroco é uma
representação de tal perplexidade e os sinais dessa incerteza e desse caos é uma configuração
barroca.
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O personagem de João Cabral é um herói atípico: magro, esquálido, pernas finas, cabeça
grande, mas que não se dá por vencido. Um herói às avessas que, diferentemente do herói
clássico, não tem que enfrentar o Minotauro; um herói moderno que enfrenta a fome, a seca, a
morte, o latifúndio, a industrialização, mesmo que desamparado no labirinto do mundo. Se os
heróis clássicos tinham deuses e senhas que os conduziam pelos labirintos e tempestades, os
heróis modernos sentem-se perdidos em seus labirintos pessoais e nos labirintos do mundo,
não encontrando saídas dignas para seus passos. Seria o ―herói problemático‖ como afirma
Sant´Anna (2000: p. 69):
... O herói moderno, menos divino que seus arquétipos, sente-se mais
desamparado diante dos labirintos. Mas em seu sentido original, o labirinto
tem uma conotação iniciática. Conduz a um centro e quem o percorre realiza
uma ―viagem‖ ou ―prova‖ que o leva (como no caso de Teseu ao enfrentar o
Minotauro) a um certo poder. Mas, na modernidade a questão do poder do
herói também foi arguida desde que a partir do Romantismo, foi se tornando
frequente a presença do ―herói problemático‖, oposto ao herói divino e
monolítico do mundo clássico.
E Severino realiza essa ―viagem‖ que é uma ―prova‖ da própria existência. Uma imagem
que tem o Rio como guia, mas, por conta da aridez, o rio seca e a viagem torna-se um labirinto
a ser decifrado, vencido. Vencido este, João Cabral faz o seu personagem chegar ao fim da
caminhada e deparar-se com o labirinto da cidade. No passado não havia futuro, no presente
também não há expectativas de melhorias.
Um presente que é lido através do passado, apontando diferenças e semelhanças. O
drama barroco é pessimista. Os homens resistem penosamente ao mundo. Em João Cabral, o
Severino revive esse drama. Como no Seiscentos, o herói moderno enfrenta uma época de
instabilidade social, as pessoas migrando do campo para a cidade, guerras eclodindo por todos
os lados. Assim como no Barroco, há uma sensação de desamparo pessoal e coletivo. O
Severino sobrevive a esse caos social e pessoal. Chega ao fim da jornada testemunhando ―o
espetáculo da vida‖(MELO NETO, 1994: p. 202).
Essa similaridade entre o herói clássico e o herói barroco, também impregnada no
personagem de João Cabral, é confirmada também nas palavras de Sant´Anna (2000: p. 222):
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Se o herói clássico era aquele que se igualava aos deuses exercendo
fisicamente todas as suas potencialidades humanas e sobre-humanas, no
Barroco será o mártir, execrando seu cadavérico corpo, num conluio com os
vermes, interessando-se pela epopéia celestial da alma peregrinando, extático,
em busca da ressurreição.
O percurso da jornada do Severino é, na verdade, um percurso-jogo, no qual em cada
parada ele se depara com numerosos obstáculos – a morte, o principal deles – e trampolins a
vencer.
Severino é esse herói que chegará ao fim desse labirinto, não só encontrando saídas
justas, – a maior delas a desistência da morte antecipada –, mas superando situações difíceis,
individualizando seus próprios passos com uma velocidade sempre crescente até o destino final.
Calabrese (1987: p. 149-150) define esse percurso numa comparação clara com a ―dobra
barroca‖ que vai até ao infinito, confirmando assim marcas barrocas na escrita cabralina:
―Aparentemente, o percurso move-se até ao infinito. Na realidade, os diversos quadros estão
ligados entre si, e haverá sempre um final que se relega ao primeiro‖.
Morte e vida severina também trata de outros temas recorrentes no Barroco, como a
passagem do tempo e da existência. O tempo é um dos temas mais constantes no universo
barroco, isso reforçado pelo estado de crise presente no homem barroco, eternamente
dilacerado e angustiado diante da alteração dos valores, com o advento do protestantismo e da
brigada da Contra-Reforma, empreendida pela Igreja.
Senna (1980: p. 69) faz um estudo sobre o tempo na poética cabralina e em Morte e vida
severina, quando afirma que há uma aceleração do tempo provocada ―pela própria condição
Severina da vida no Agreste‖, que faz o Severino migrar, para defender, estender o tempo da
vida que é tão curta no sertão: ―O que me fez retirar / não foi grande cobiça; / o que apenas
busquei / foi defender minha vida / da tal velhice que chega / antes de se inteirar trinta;‖
(MELO NETO, 1994: p.186)
No nosso dia-a-dia é comum passarmos de um território para outro. É uma
desterritorialização (DELEUZE e GUATTARI, 1995: p.17) cotidiana, nela se abandona, mas
não se destrói o território abandonado. Podemos tomar a história de Severino como um caso
concreto de desterritorialização e reterritorialização. O sertanejo enfrenta esses dois processos.
Severino migra rumo à cidade grande, por ser época de seca. Como outros ―Severinos‖, termina
por habitar as periferias urbanas, sendo envolvido num imenso conjunto de enunciação
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totalmente diferente dos agenciamentos que teria enquanto trabalhador da lavoura. Os
territórios são outros, mas essa dinâmica de transitar por vários territórios é semelhante. Existe
o seu território de morador com seus códigos territoriais e as relações de poder da comunidade.
Existe o território do trabalho, que é mais difícil de delimitar, pois ele passa por vários ofícios.
Depois, acontece o movimento inverso. É comum na época da colheita, esse Severino se
desterritorializar, abre os agenciamentos e vai se reterritorializar novamente no trabalho do
campo de onde veio ou, em outro lugar. João Cabral não dá conta disso, dessa
reterritorialização do Severino na sua volta para a Serra da Costela, mas na sua peregrinação ele
passa por vários novos territórios e pensa em ficar. Mas, Severino termina no mangue, na beira
do Rio Capibaribe, onde encontra uma comunidade e onde é testemunha do nascimento de um
menino, metaforicamente uma alusão ao nascimento de Cristo, que representa a esperança de
uma vida nova, mesmo que essa vida seja ―a explosão de uma vida severina‖.
A história termina assim e não se sabe se haverá um processo de reterritorialização do
Severino naquele lugar ou se ele retorna às suas origens, protagonizando um processo que se
repete a cada estiagem. Na canção popular se prega que quando o verde se espalha pela
plantação é hora de voltar (Asa Branca – Luiz Gonzaga-Humberto Teixeira). O que Marta Senna
destaca, em relação ao tratamento do tempo, é ditado pelas ciganas, o que reputa como de mais
original em toda obra cabralina:
Mas, o que Morte e vida severina traz de original quanto ao tratamento do
tempo no conjunto da obra de João Cabral de Melo Neto é a tentativa,
traduzida pelas ciganas, de conquistar o futuro, de subjugar o tempo.
(SENNA, 1980: p.70)
Para essa autora, dos três poemas que formam a trilogia do rio (O cão sem plumas, O Rio e
Morte e vida severina), ―este é o que quase ignora o problema do tempo, já que as condições de
vida são tão adversas‖ (SENNA, 1980: p.20). Há uma passagem rápida do tempo, Severino quer
chegar logo ao seu destino final, esperando uma vida melhor do que a vivida até então. É um
tempo rotineiro, o tempo da ladainha e do rosário. Sempre o mesmo; igual e repetitivo, não
fosse a diferença das mortes e das vilas, onde a vida é transformada a cada instante: ―Sim, o
melhor é apressar / o fim dessa ladainha, / fim do rosário e nomes / que a linha do rio enfia; /
é chegar logo ao Recife, / derradeira ave-maria (MELO NETO, 1994: p.187).
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Na verdade, a viagem não finda. É o recomeço da mesma ―vida severina‖. João Cabral
coloca o seu personagem no mundo real e exterior. O tempo também é real. O tempo da
pressa, porque Severino não pode esperar mais. Quer outra forma de vida, ―longe das pás e
enxadas, foices de corte e capina‖. Mas, o passado caminhou com ele até o presente. É o tempo
da memória do poeta, que, mesmo sem perceber, integra sua vida, a sua obra, somando
sensações, tanto do presente, quanto do passado, do menino dos engenhos de cana e do adulto
peregrino, como o alicerce da sua poética.
João Cabral utiliza, na construção da sua obra, não uma história distante ou alheia à
realidade social, que ele presenciou desde a infância. Na sua poesia, o passado é sempre
presente, porque é igual. O tempo é o fio condutor pelo qual o poeta conversa com a tradição e
define trajetórias para o seu personagem, num movimento que é cíclico: o da migração. Através
da seca e por conta dela, o poeta reproduz essa memória histórica, sendo ela o que determina
todo o enredo, todo a trama e o desenrolar da história.
Enfim, através da escrita, que assume o lugar da voz, ele recupera um tempo passado
que começa rapidamente a se perder, desintegra-se frente às novas facetas da vida moderna, que
rejeita a tradição e defende o novo como a grande novidade, mesmo sabendo que ele é
impregnado do passado.
As cenas do presépio são uma mistura do texto bíblico com os textos extraídos do
folclore pernambucano, inspirados nos pastoris e nas tradições ibéricas, tudo utilizado
textualmente em Morte e vida severina. João Cabral faz uma alegoria do nascimento de Cristo
criando personagens profanas para o texto, tudo remetendo ao significado do sagrado trazendo
para sua obra essas alegorias, assim como fazia o artista barroco. A inclusão de outros textos no
presépio dá-se por conta das duas ciganas que prevêem o futuro da criança. No texto bíblico
não faz alusão a esses personagens e suas previsões, mas estão em Pereira da Costa (COSTA,
1974: p.484). Na escrita cabralina tudo leva ao visual, o texto como uma tela de pintura. E como
afirma Walter Benjamin, ―na alegoria a palavra escrita tende a expressão visual‖ (1994: p.197198).
Em Morte e vida severina, todo o texto configura-se como uma alegoria político-étnicocultural de uma alteridade funcionalmente barroca, como uma representação também do
movimento da contra-conquista que gerou tantos Severinos, sem rumo, sem trabalho, sem terra,
sem esperança. Semelhante à alegoria de Walter Benjamin (1984: 38-39) também estruturada
por meio da ruína, da dor e da morte. A alegoria barroca cabralina também se fundamenta na
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dor, na morte, na ruína que se justifica por meio da pobreza, da fome, da miséria, da escassez,
do latifúndio, das balas perdidas, das emboscadas, da industrialização, dando conta de um
estado de coisas cujo devir vai remoer nossa realidade político-econômica e histórico-cultural,
para digeri-la como angústia de crises, de tensões nitidamente barrocas.
João Cabral promove essa dessacralização dos elementos sagrados, quando tira deles o
caráter divino e os submete aos festejos e tradições populares. Ao mesmo tempo em que
dessacraliza o ritual sagrado do nascimento do menino-Deus, ele promove uma sacralização às
avessas da ordem social, como afirma Benedito Nunes:33
Neste caso, o pastoril, como ato de comemoração religiosa, é também um
gesto de consagração da sociedade; festejando o advento da redenção
sobrenatural do gênero humano, na apoteose dramática de seu estilo álacre, o
pastoril transfigura a situação social dos indivíduos. O auto sacramental
produziria assim um efeito obliquo, sacralizando a ordem social existente e a
posição que os indivíduos ocupam dentro dela.
Aqui temos a grande questão relacionada ao Barroco moderno ou à modernidade
barroca de João Cabral: trabalho e ornamento de linguagem, abrigando-se ao lado do teor
social, o que era quase que impraticável no Barroco histórico (pelo tom da Contra-Reforma).
Então, João Cabral infiltra, mescla outros textos, como o ―auto dentro do auto‖ para
conseguir a dramaticidade da trama. Utilizando a ambiência local, com todos os problemas
sociais de pobreza e penúria, Morte e vida severina se contrapõe ao discurso da beleza do lugar,
mostrando todas as mazelas que a corrói e evoca a teatralização da vida. A vida como o palco
real onde se repete, de outra forma, o nascimento do filho de Deus, opondo-se a toda
diversidade que o lugar propicia. O trajeto de Severino é dividido entre morte e vida. O sagrado
que é profano. O profano que é sagrado. Dessacralização e sacralização social. E para Severo
Sarduy isto é o Neobarroco, quando afirma: ―Neobarroco: reflexo necessariamente pulverizado
de um saber que sabe que já está ―docemente‖ fechado sobre si mesmo. Arte da dessacralização
e da discussão‖. (SARDUY: 1979, p.78).
Também identificamos um certo erotismo nas entrelinhas do poema, quando a morte
pode até assumir contornos suaves, eróticos, resgatados nos versos do enterro imaginado por
Severino, nas águas do Rio Capibaribe.
33
. NUNES, Benedito. op. cit. p.86-87.
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João Cabral coloca em destaque essa morte que é exuberante, sensual, líquida e
estabelece aí, um paradoxo perturbador com a vida áspera e dura do sertanejo, fazendo com
que Severino faça a absurda constatação de que, nos muitos enterros que presenciou, na sua
caminhada até o Recife, nada mais era do que seu próprio funeral, que por ironia, ele teria se
antecipado.
Além de líquida, macia, sensual, a morte que Severino evoca, quando pede que apresse,
também aparece como uma mulher carinhosa, opulenta, que acolhe com generosidade o
trabalhador do eito em sua morte: ―– Se abre o chão e te fecha / dando-te agora cama e
coberta./ – Se abre o chão e te envolve, / como mulher com quem se dorme.‖ (MELO
NETO: 1974: p. 186).
Neste verso, quando o trabalhador é depositado na terra, podemos divisar nessa
entrega à morte a simulação do ato sexual, o entrelaçar-se dos corpos dos amantes no ato
amoroso. João Cabral, um poeta avesso as facilidades da linguagem, a poesia derramada,
constrói, vê na reação defunto/chão uma relação amorosa, a terra envolvendo o corpo que
chega, não com aspereza, mas o acolhendo com sensualidade, com delicadeza, ―como uma
mulher com quem se dorme‖. O erotismo presente na escrita cabralina é um erotismo onde há
evidência do ato sexual, quando o chão se abre para envolver o trabalhador do eito, o que
também é uma alegoria da relação amorosa humana.
Podemos dizer que nesta cena há traços marcantes do Barroco, pois toda a produção
artística do período barroco estava impregnada de forte erotismo, apesar de que, entre os
instrumentos utilizados pela Igreja para recuperar as ovelhas desviadas que sucumbiram aos
apelos da Reforma Protestante, estava o Barroco, que foi eficaz, pois mesmo evocando a
sublimidade das coisas celestiais, adotava também e seguia uma espécie de santíssima trindade
reunindo: corpo – alma – espírito. O Barroco como uma arte simultaneamente popular e
aristocrática, sensual e mística, festiva e melancólica. Para alguns autores contemporâneos, ―o
Barroco funda a sua razão estética na ampla vertente luto/melancolia e luxo/prazer‖
(CHIAMPI, 1998: p.6). O artista barroco queria agradar a Deus, mas era tentado pelo desejo da
vida cotidiana, mundana. Uma dualidade que inquietava o espírito do homem barroco e a Igreja,
recém sacudida pela Reforma Protestante.
A arte barroca cristalizava o fluxo do eterno devir, fluxo esse que se infiltrava nas coisas
do mundo, através da alegoria, que nada mais era que a dissimulação da diferença –
característica fundamental da sociedade européia na Idade Moderna – através de representações
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tendentes à semelhança, O Barroco como uma experiência de contrastes – um dizer antitético
da experiência humana e artística: o simulacro.
E se é verdade que o desejo no indivíduo é sempre coletivo, ou seja, não nasce nele, mas
no campo social, os indivíduos em grupo, enquanto grupos-sujeito e não grupos sujeitados,
podem escapar através de linhas de fuga e fazer a afirmação do desejo, das máquinas desejantes.
Para Deleuze e Guattari, há sempre um agenciamento coletivo de enunciação, já que não existe
esse sujeito sozinho, sendo máquinas de guerra nômades que enfrentam o Estado, sendo corpos
sem órgãos.
Nesse sentido, esse ―desejo‖ também é o desejo do próprio artista: desejo de representar
o devir, de transcender, desejo de salvação. Detecta-se um conflito constante entre a carne e o
espírito, já que a satisfação de um representa, por extensão, a negação do outro. Esse duelo
alma/espírito x carne/corpo, paradoxalmente é que possibilita a transcendência. Gilles Deleuze,
ao resgatar a obra de Leibniz, explica essa aparente contradição:
No Barroco, a alma tem com o corpo uma relação complexa: sempre
inseparável do corpo, ela encontra nele uma animalidade que a atordoa, que a
trava nas redobras da matéria, mas nele encontra também uma humanidade
orgânica ou cerebral (o grau de desenvolvimento) que lhe permite elevar-se e
que
fará
ascender
a
dobras
totalmente
distintas.
(DELEUZE, 1991: p. 26).
Mais ainda, segundo Deleuze, cada intervalo na obra barroca é um espaço aberto ao
surgimento de uma nova dobra, uma redobra. O dobrar e o redobrar, dois movimentos de
contenção, não se opõem diretamente ao desdobrar, que por essência é uma expansão de algo
anteriormente escondido na dobra. Podemos dizer que esses movimentos são complementares
e representam o afastar-se e o aproximar-se da essência divina através de uma continua
―tangência‖ que coloca a obra em constante estado de ―suspensão‖ no espaço, visto que não
consegue superar o conflito divindade x vida profana.
E o que move essa vida profana, senão o desejo? É o desejo que vai moldar a criação
das dobras e redobras, como forma de dissimular sua própria essência frente ao número de
dogmas e exemplos catequizantes que vieram a povoar as artes no período barroco. João
Cabral consegue em meio ao caos que se transforma a viagem de Severino, fazer com que esse
erotismo aflore, mesmo quando a realidade é de morte, vislumbrando nas águas do Capibaribe,
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uma mortalha líquida de lama que envolve o corpo cansado da jornada e o chão que acolhe
como ―uma mulher com quem se dorme‖.
A carnavalização também é presente no poema/peça Morte e vida severina, quando João
Cabral reinventa o nascimento do menino, como um tênue símbolo de esperança, no final da
grande jornada do Severino. Há uma mistura do sagrado e do profano na alegoria do
nascimento de Cristo e do menino do mangue. A carnavalização se dá nas cenas do nascimento
do menino ―guenzo‖, um outro Severino, aproximando o auto dos modelos pastoris às peças
medievais. O sagrado e o profano se confundem. O presépio cabralino é metaforicamente uma
paródia do nascimento de Jesus, em meio a pobreza do mangue. O subtítulo do poema se
explica agora: Auto de Natal pernambucano. Se todo percurso do Severino tem uma relação
estreita com a morte, as cenas do Auto, que são leves e alegres, retratam a vida. Vejamos o que
diz Nunes:
Aqui o Auto dentro do Auto retoma os tradicionais quadros e personagens
do pastoril ou pastoral. Podemos, até mesmo, estabelecer, quase que de cena
a cena, os traços analógicos desse parentesco formal, que as mudanças de
figuras e situações apenas conseguem disfarçar: uma mulher do povo
substitui o anjo da Anunciação; os vizinhos, com os seus elogios, tomam o
lugar dos anjos que guardam e adoram o Menino, com os seus presentes, o
dos Reis Magos; o mocambo é o presépio do Menino-Deus, e seu José, são
José. 34
A alusão ao nascimento de Jesus, onde os personagens históricos são substituídos por
pessoas comuns, representa a negação da morte, quando um outro Severino salta ―para dentro
da vida‖, modificando a forma tradicional, o que para Severo Sarduy já representa a
carnavalização, quando promove essa mistura dos gêneros sagrado e profano.
A carnavalização implica a paródia na medida em que equivale a confusão e
afrontamento, a interação de diferentes estratos, de diferentes texturas
lingüísticas, a intertextualidade. Textos que na obra estabelecem um diálogo,
um espetáculo teatral cujos portadores de textos (...) são outros textos. 35
34
35
. NUNES, Benedito. op. cit., p.86
. SARDUY. Severo. op. cit., p.69
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E isso acontece em Morte e vida severina, quando João Cabral reúne todos esses elementos,
propositalmente ou não, quando mistura esses estratos, revelando a presença do (Neo)Barroco
na sua obra, quando insere os vizinhos que chegam com suas oferendas, alegoricamente, um
alusão aos três Reis Magos ofertando ouro, incenso e mirra, e esses personagens são
multiplicados, vêm em grande número e presenteiam com aquilo que podem. Nesta cena, João
Cabral incorpora, recria em sua obra, o banquete barroco/literário de que fala Lezama Lima em
seu livro A Expressão Americana, na qual enfatiza a característica de despertar os sentidos
humanos com a finalidade de encaminhamento místico ao aludir metaforicamente ao ―banquete
literário‖ quando faz uma referência aos seus estudos da literatura de origem barroca: Nessa
festa vários poetas barrocos contribuem com seus versos para a montagem de um grande
banquete, entre eles Lope de Vega, Dominguez Camargo, Don Luis de Gôngora, Sor Juana
Inês de la Cruz, Afonso Reyes... entre outros. Transcrevemos parte do texto referente ao
banquete como no livro A Expressão Americana e em Morte e vida severina para que possamos fazer
comparações pela intertextualidade:
...E para que as ramagens da naturalidade se encostem nas grutas do artifício,
a alegre saúde de Lope de Vega trará a couve e a berinjela, Um pouco de
alegre vegetação em meio às viandas que o fogo doura e transmuta:
Matize essas hortas logo
a berinjela amorada
a verde couve amigada
como pergaminho ao fogo. 36
...O cordobês Don Luis trará outra sutileza, a azeitona, que acrescenta à
natureza irrompendo nos mantéis, uma invenção, meio artifício e meio
naturalidade:
e ao verde, jovem, florescente plano
brancas ovelhas suas tornem, cano,
em breves horas caducar a erva;
ouro lhe extraem líquido a Minerva,
36
Nota da tradutora: Em vão rebusquei esses versos nos três volumes das Obras selectas, da Ed.Aguilar,
além de diversas antologias (líricas e dramáticas) de Lope de Vega .
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e – os olmos casando com as vides –
quando coroam pâmpanos a Alcides. 37
(...)
faróis sacros de perene chama
que extingue, se não infama,
em licor claro a matéria crassa
consumindo, que a árvore de Minerva
de seu fruto, de prensas agravado,
compungido suou e rendeu forçado.38
...vem frei Plácido de Aguillar oferece-nos um primeiro prato, uma toronja
bem refrigerada:
a amarela toronja em quem Pomona
da velhice retrata os pesares
em pálidas verrugas ou lunares. 39
...volta agora Lope de Vega, com os caranguejos vestidos, resistentes à doma
do fogo da sua alva ternura e perfeição:
Não os mariscos ao penhasco cosidos
cujos salgados côncavos deságua,
retrógrados caranguejos parecidos
ao signo que do sol por signo é frágua. 40
(...)
Já é hora de introduzir o vinho, que vem demonstrar a onda longa da
assimilação do Barroco, com um robusto e delicado vinho francês, trazido
37
Luis de Gôngora. ―Soledad primeira‖.
. Sor Juana Inês de la Cruz. El sueño (Primero sueño).
39
.Frei Plácido de Aguillar. Fábula de Siringa y Pan.
40
Idem, nota 8.
38
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por Alfonso Reyes, elixir de muitos corpúsculos sutis, numa de suas variadas
excursões pelas quais guardamos tão perene reconhecimento:
Fui general de penacho e jarreteira
Tição de amores e trovão de alarmes
Lancei, estentôreo pela carreiteira
Ante Chateau Lafite:
Apresentam ...Armas.41
(...)
(LIMA, 1988: p. 90 a 94)
E complementando esse banquete barroco, o café à turca, não mais regado a poesia,
―mas com a forma adquirida pelos mistérios numa cantata de João Sebastião Bach, em seus
nobres e graciosos compassos para acompanhar o café, num lento recontar...‖ (LIMA, 1988: p.
94).
Em Cabral, o banquete barroco se faz nas oferendas da gente simples do mangue, que
ele transforma também em versos: as coisas da terra, dadas de coração, dentro das
possibilidades de cada um, considerando ainda a pobreza reinante entre os habitantes dos
mocambos:
– Trago abacaxi de Goiana
e de todo o Estado rolete de cana.
– Eis ostras chegadas agora,
apanhadas no cais da Aurora.
– Eis tamarindos da Jaqueira
e jaca da Tamarineira.
– Mangabas do Cajueiro
e cajus da Mangabeira.
– Peixe pescado no Passarinho,
carne de boi dos Peixinhos.
– Siris apanhados do lamaçal
que há no avesso da rua Imperial.
41
Alfonso Reyes. Poema ―Vino tinto‖.
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– Mangas compradas nos quintais ricos
do Espinheiro e dos Aflitos.
– Goiamuns dados pela gente pobre
da Avenida Sul e da Avenida Norte.
(MELO NETO, 1994: p.198)
Mesmo presentes pobres, sem nenhum valor material, mas que trazem a cor do lugar
com oferendas que formam um grande banquete, com os alimentos, frutas e objetos
característicos da região: a arte popular, o artesanato, a água da bica da chuva escassa, frutas
variadas dos lugares pobres e lugares ricos do Recife, oferecendo esse contraste, esse jogo, essa
variedade, esse colorido e fartura que impressiona aos olhos, recursos tão bem utilizados no
Barroco.
Neste sentido, comparando os textos de Lezama Lima e o de Cabral encontramos
singularidades e similaridades do banquete literário barroco com o banquete cabralino. Há em
Cabral a mesma intenção da apoteose barroca, do artifício, da festa. O banquete oferecido pelos
vizinhos ao recém-nascido é a celebração ao espetáculo que essa ―nova vida explodida‖
proporciona, fazendo funcionar ―a fábrica que ela mesma teimosamente se fabrica‖ ( op.cit. p.
202). Quando tudo é negação, a vida dá uma resposta. Tudo se recicla, se dobra, desdobra, o
recomeço, a máquina humana dando as respostas que mesmo em situações tão adversas
continua a funcionar, a gerar novas vidas. O palco e a realidade se confundem. O palco é o
mocambo, as vielas cheias de lama, mas de onde ecoam as vozes das mulheres cantando a boa
nova. O teatro da vida e da morte. Vida que se anuncia depois da morte, no final. A
representação e a realidade que se confundem.
Deleuze em A Dobra também trata da incompossibilidade ou a divergência de séries, dos
mundos possíveis e incompossíveis. Em Leibniz ―o mundo é uma infinidade de séries
convergentes, prolongáveis uma nas outras.‖ (DELEUZE, 1919, p.94). Podemos dizer que na
perspectiva de Leibniz, Severino é supostamente incompossível com os novos mundos que ele
percorre em busca de dias melhores. Os novos mundos são mundos possíveis, mas não para o
nosso caminhante. Haverá de ter todo um processo para que esses novos mundos se tornem
compossíveis para o personagem Severino
João Cabral trabalha exatamente o jogo do mundo barroco, tal qual o descreve Deleuze.
Esse jogo que emite singularidades; estende séries infinitas que vão de uma singularidade a
outra; dita regras de convergências e divergências de acordo com as quais essas séries de
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possíveis organizam-se em conjuntos infinitos. O Barroco é isso. Nessa nossa época marcada
pela perspectiva de enormes avanços científicos, tecnológicos, culturais e sociais, volta à tona a
discussão sobre a estética barroca, mas sob novo enfoque. A multiplicidade de nosso mundo,
com tudo se partindo em inúmeros fragmentos, plenos de significados, mas, apesar disso,
carregados de uma instabilidade e de uma mutabilidade que lhe é inerente, tem levado muitos
teóricos a reconhecer em nossos dias algumas características do Barroco sob nova roupagem e,
por isso mesmo, transmutadas no conceito do Neobarroco.
Parece inquietante, mas nos remete a um encadeamento de questões interessantes: o
fato de estarmos todos os momentos nos dividindo em um extenso rol de fragmentos, dentro
dos quais quase sempre utilizamos diferentes máscaras, aumentando cada vez mais a
multiplicidade que essa fragmentação acarreta não seria uma característica intrínseca ao
Barroco? Mais ainda: essa busca constante pelo devir que todos vivenciam diuturnamente,
carregada de tensões entre carne e espírito, desejo e quietude, não é também um aspecto que
estava presente no Barroco? As mônadas de Leibniz, sempre se dobrando e redobrando sobre
si mesmas, junto à constatação científica de que a estrutura micro-física e até mesmo atômica
dos elementos, como os fractais42, não nos remetem à estética barroca? Por fim, a falta de
certezas absolutas, característica maior de nossa época, não seria o principal elemento a nos
aproximar do mundo barroco?
Em João Cabral e Deleuze esse Barroco é detectado como um momento de crise,
caótico, produzindo um desmoronamento do mundo, que vem a ser reconstruído sobre as
ruínas deste mesmo mundo, mas sobre uma cena nova e relacionada a novos princípios, para
deles extrair a potência e a glória.
Na escrita cabralina, o Barroco representa uma tentativa de salvar a razão teológica e o
homem. Ele atesta a crise do mundo moderno, com uma escritura reflexiva e crítica, trazendo o
Barroco fora do seu suporte histórico para ser uma resposta ao tempo de hoje, num mundo
caótico, da máquina e da técnica, porém com problemas sociais como a fome, a guerra, a
mortalidade infantil e as epidemias que continuam a infligir a dor, sendo essa uma reação
inevitável, questionando a ideia do progresso em sua essência ideológica e em suas
representações.
42
Fractal – entende-se qualquer coisa cuja forma seja extremamente irregular, extremamente
interrompida ou descontínua, seja qual for a escala em que examinamos. A presença dos fractais na nossa
época contemporânea permite-nos definir com ―neobarroca‖ também esse tipo de produção
substancialmente cultural. (CALABRESE, Omar. op. cit., p. 135-139).
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O que nos propusemos abordar neste trabalho, através das diversas leituras que
empreendemos, foi estabelecer uma relação entre a obra Morte e vida severina - Auto de Natal
Pernambucano e o Barroco ou Neobarroco, como nomeia Haroldo de Campos, em seu artigo ―A
obra de arte aberta‖(1955) e Severo Sarduy (1972), buscando confluências que nos levaram a
identificar e afirmar que há marcas, pegadas, imagens da poesia de tradição barroca na poética
cabralina. No decorrer da nossa pesquisa, percebemos a frágil fronteira criada pelos
historicistas, que separam as diversas escolas literárias e delimitam o período da sua sobrevida,
em relação aos séculos futuros.
O Barroco rompe essas fronteiras chegando aos Séculos XX e XXI com fôlego de
novidade, deixando de ser a estética de uma determinada época, para ser uma forma transitória
que ressurge em momentos caóticos, de crise, de confusão, de desordem... como uma arte
atemporal, que se atualiza numa época que é um terreno fértil para essa arte do caos, da crise, da
conturbação.
Em Morte e vida severina detectamos o Barroco – que surge no século XVII, época da
Contra-Reforma, do Absolutismo, do sujeito em constante crise diante das coisas do espírito e
dos desejos da carne, atualizados no personagem título ―Severino retirante‖ , que vive esse
homem barroco moderno, que é nômade, em constante conflito entre a morte e a busca de
sobrevivência.
Assim como o homem barroco, o sujeito moderno está fragmentado, fluido, num
redemoinho de várias identidades contraditórias e mal-resolvidas. Essa angústia marcada por
uma sensação de sobrevivência e de tentar viver entre a identidade e a diferença, o passado e o
presente, o interior e o exterior, alternando-se rumo à pluralidade dos sentidos que existe nos
excessos.
No olhar que lançamos sobre o nosso foco de estudo procuramos enumerar o maior
número de confluências barrocas que identificamos em Morte e vida severina. Assim, o duelo entre
morte e vida, o corpo e a alma, a relação tempo e espaço, o herói, o labirinto, o sagrado e o
profano, o trágico e o cômico, o erotismo, a carnavalização, o banquete barroco, a
territorialização e desterritorialização segundo Deleuze, o perecível das coisas, todas essas
marcas tão recorrentes na arte barroca, alinhavam o texto deste poema/peça escrito na sombra
dos autos da tradição ibérica e do cancioneiro popular nordestino.
Morte e vida severina traduz de forma concreta a poesia cabralina, que é imagem, que é
mítica, poética, sempre flertando com a realidade, como um palco à espera do drama humano.
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O poema não se fecha no indivíduo, não se passa no seu interior, mas numa grande arena
pública onde o homem, ―os severinos‖ enfrentam com engenho e coragem o seu maior inimigo
e desafio: a morte.
Sem concessões, João Cabral quebra a tradição brasileira de uma poesia discursiva,
romântica, parnasiana e rompe com os paradigmas formais poéticos em voga, lugar ideal para
confessionismos, sentimentalismos e testemunhos vãos. Sua poesia é um exercício de formas,
significados, um trabalho de ―engenharia‖, de uma matéria em construção. Explica a sua
afinidade com a arquitetura e as artes plásticas. Justifica-se sua afinidade com os pintores
surrealistas e cubistas, a Espanha que em muitos aspectos, o fazia rever/reviver seu Nordeste,
reacender sua pernambucanidade.
João Cabral traz uma proposta agreste que se torna mais ácida pela questão da terra, do
latifúndio, da exploração humana, que ela no seu estilo indireto e contido, mas certeiro,
denuncia. Também paradoxalmente surrealista e barroca a um só tempo. Surrealista pela
ousadia de suas metáforas desconcertantes e barroca pelo seu discurso circular, labiríntico e
retorcido. O Barroco é mesmo esta conjunção de estilos e influências, mistura de estratos,
como, de resto, toda a cultura ibero-americana.
Dessa maneira, o nosso estudo destacou esses aspectos barrocos na obra cabralina e
acreditamos ter contribuído para reforçar os estudos já apresentados sobre o tema,
enriquecendo e ampliando a sua fortuna crítica, para uma melhor compreensão de Morte e Vida
severina, inserida no universo do Barroco ao abordarmos várias cenas do poema pintadas com as
tintas do Barroco, quando João Cabral retrata essas imagens sublimes de um Nordeste mítico e
real, que é cenário de seca, fome, violência e desolação, num registro solene de um realismo
que transita do regional ao universal, do local ao global privilegiado por uma força poética
vigorosa ao mostrar uma realidade histórico-social que permanece miserável, devastada pelas
intempéries da natureza e pela ineficácia dos homens.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ÁVILA, Affonso. O lúdico e as projeções do mundo barroco I. 3ª ed. atualizada e ampliada. – São
Paulo: Perspectiva, 1994.b
BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Trad., apresentação e notas: Sergio Paulo
Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984.
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FRANCISCO ISRAEL DE CARVALHO é bacharel em Letras – Língua Francesa pela UFRN;
mestre em Literatura Comparada pela UFRN; pesquisador vinculado ao Grupo de Pesquisa Ponte
Literária Hispano-Brasileira da UFRN com trabalhos publicados sobre as confluências barrocas na obra
de João Cabral de Melo Neto.
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4.
APONTAMENTOS SOBRE A POESIA DE MURILO MENDES: OBRA
ABERTA E NEOBARROCO
Ana Carolina Moura Mendonça (Universidade Federal do Rio Grande do Norte) 43
Andrey Pereira de Oliveira (Universidade Federal do Rio Grande do Norte) 44
1.
Introdução
Vários críticos de arte, principalmente a partir da metade do século XX,
desenvolveram
importantes
estudos
aproximando
as
manifestações
das
artes
contemporâneas, ditas pós-modernas, à arte do período barroco. Surge nesse contexto de
reflexão teórico-crítica o conceito de ―neobarroco‖. Muitos destes pensadores consideram
o Barroco como um prenúncio à modernidade e aproximam o homem barroco ao homem
moderno, como faz Affonso Ávila, Walter Benjamin, Arnold Hauser, Omar Calabrese,
entre outros. O objetivo deste trabalho é tratar dos conceitos de ―neobarroco‖, proposto
por Omar Calabrese, e de ―obra aberta‖, proposto por Umberto Eco, tomando-os como
ponto de partida para o estudo dos textos ―Poema barroco‖ e ―A forma e a fôrma‖, do
poeta brasileiro Murilo Mendes. Em particular, este trabalho procura destacar alguns
aspectos estéticos presentes nestes poemas contemporâneos que, são, segundo os teóricos
acima citados, provenientes da estética barroca do século XVII, a saber, a fragmentação, o
excesso, o limite, a desordem e outros.
Estes poemas apresentam-se como obras esteticamente inovadoras, proporcionando
fundamentalmente uma ambigüidade estrutural típica das obras contemporâneas, o que nos
induz a crer que são obras abertas. Neste sentido é preciso considerar que o que é aqui
denominado por obras neobarrocas são, antes de tudo, produções da contemporaneidade
e, assim, obras que apresentam um propósito de abertura típico das poéticas modernas. É
claro que, como afirma Umberto Eco (2008, p.45), ―seria leviano ver na poética barroca
uma teorização consciente da obra ‗aberta‘‖, mas, como dito, o objeto de interesse dessa
investigação são, a rigor, as obras modernas que apresentam traços em comum com as
43
Graduanda do Curso de Licenciatura em Letras. Bolsista de Iniciação Científica REUNI/UFRN,
vinculada ao Projeto ―Umberto Eco: percursos teóricos‖, sob a orientação do Prof. Dr. Andrey Pereira de
Oliveira.
44
Professor do Departamento de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem
(PPGeL).
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poéticas barrocas ou simplesmente, ou, dito de modo mais simples, as poéticas
neobarrocas.
Murilo Mendes (1901-1975) utiliza-se de características barrocas, a exemplo da
fragmentação e do caos, dois importantes traços que serão bem observados na análise
posterior. Outro importante elemento próprio ao estilo de suas poesias diz respeito ao
hermetismo. Seus poemas apresentam-se aos leitores como objetos de difícil interpretação,
devido tanto a sua organização estrófica, quanto a suas metáforas imprevisíveis, a sua
ousadia sintática e a sua associação muitas vezes esdrúxula de termos lexicais, que
contribuem para o que Antonio Candido denomina de ―estéticas do exagero, que rompem
as associações normais e criam nexos inesperados‖ (2004, p. 83). Por sua ousadia formal e
semântica, Murilo Mendes é considerado por muitos como um poeta surrealista.
As análises abaixo desenvolvidas não pretendem estabelecer leituras exaustivas dos
poemas, revelando o que há por trás de cada metáfora, mas mostrar como esses poemas
podem ser denominados obras ―abertas‖ e obras ―neobarrocas‖, a partir de seus traços
dominantes e do estranhamento causado no leitor, em suas diversas leituras possíveis.
2.
Conceitos teóricos
Entre os numerosos teóricos da arte que ao longo do século XX refletiram acerca das
manifestações artísticas contemporâneas como obras que dialogam com procedimentos
barrocos, elegemos as reflexões de Umberto Eco e Omar Calabrese como as bases teóricas
deste trabalho. O conceito de ―obra aberta‖ proposto por Eco mostra-se relevante pela sua
tentativa de apreender as manifestações artísticas das poéticas contemporâneas como obras
propensas a uma multiplicidade de interpretações, traço primariamente presente nas obras
do século XVII, o que possibilita a aproximação de algumas propostas estéticas
contemporâneas a certo conjunto de obras setecentistas. Já por meio do conceito de
―neobarroco‖, Omar Calabrese defende que os principais traços estéticos das obras
artísticas contemporâneas são recorrências e derivações de procedimentos próprios do
período barroco, e, por essa razão, caracteriza a arte contemporânea, também chamada de
pós-moderna, como neobarrocas.
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2.1. Obra aberta
No famoso volume de ensaios Obra aberta: forma e indeterminação nas poéticas
contemporâneas, publicado em 1962, Umberto Eco descreve a obra de arte como um objeto
que se oferece ao receptor como um algo aberto a vários efeitos e possibilidades
interpretativas. Eco trata da relação fruição/obra de arte, conceituando obra aberta como
uma obra inacabada, que permite ao fruidor seguir caminhos interpretativos diversos a cada
leitura, re-elaborando continuamente sua compreensão da obra.
Inicialmente, Eco chega a este conceito ao se debruçar sobre as obras de vanguarda,
porém, ao observar com maior atenção as obras anteriores a esse período moderno, ele
percebe que obras como as barrocas também apresentam uma abertura para a fruição.
Entretanto, como ele bem observa, essa abertura barroca é diferente da abertura das
poéticas contemporâneas pelo fato de aquela não se estruturar como um campo de
possibilidades realmente proposital, assim, ―seria leviano ver na poética barroca uma
teorização consciente da obra ‗aberta‘‖ (ECO, 2008, p. 45). De todo modo, a obra barroca
deu-nos novas visões acerca da arte, pois trouxe, comparada com o acerco artístico que lhe
antecede, percebemos mudanças na concepção e nas realizações as manifestações artísticas
bastante significativas.
Quando comparado ao período clássico renascentista, o Barroco histórico – aqui
entendido como o conjunto das manifestações artísticas do século XVII – apresenta como
novidade uma concepção de ―abertura‖ no momento em que a obra afasta-se de um ponto
interpretativo estável baseado numa mensagem aparentemente unívoca e passa a valorizar a
polissemia de interpretações. Nesse sentido, a arte barroca reflete o momento histórico em
que o homem se subtrai ao hábito do canônico e se depara com um mundo em
movimento, o que, de certa maneira, pode ser visto como prenúncios do que ocorrerá de
forma bem mais enfática ao longo do século XX.
Nas poéticas do século XVII, a mensagem estética ganha um aspecto dinâmico e
excessivo que não existia anteriormente. No Renascimento, por exemplo, há uma tentativa
de imitação do real, isto é, as obras tinham o objetivo de se aproximarem cada vez mais do
mundo real e para isso se serviam de técnicas matemáticas, linhas simétricas e uma precisão
delimitada. A estética barroca, na época e ainda hoje, foi e é extremamente inovadora, já
que quebrou com essa maneira de ver a arte. Eco afirma que o Barroco trouxe uma
―indeterminação de efeito e sugere uma progressiva dilatação do espaço‖ (ECO, 2008, p.
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44). Isso mostra a forma não-determinada e não-definida, resultando em uma espécie de
mutação da obra, que a arte barroca aplica e que ainda hoje, nas manifestações
contemporâneas, mostra-se cada vez mais fortalecida.
Os efeitos de multiplicidade simbólica das obras barrocas foram retomados pelas
obras contemporâneas de modo ainda mais acentuado, revelando, assim, um campo ainda
maior de possibilidades, em um processo indefinido de interpretações. A distinção entre a
abertura das obras barrocas e as obras contemporâneas resulta da consciência bem mais
nítida que os artistas recentes têm da abertura inerente a qualquer manifestação artística.
Partindo do princípio que a obra de arte é um objeto sempre dependente da
circunstancialidade da recepção, o artista moderno busca estruturar sua produção como
uma obra que se caracteriza justamente, e mais que tudo, como um objeto inesgotável,
sempre propenso a possibilitar mais uma trilha interpretativa, elevando ao máximo as
possibilidades cedidas à recepção pelas já abertas obras barrocas. Nesse sentido, as obras de
vanguarda comportam-se como obras que apresentam uma abertura de segundo grau.
As obras modernas apresentam o traço da inovação da poética barroca. Isto que
dizer que, se as produções do século XVII caminham para um exagero ou um excesso, as
obras das vanguardas contemporâneas buscam excedem o exagero, isto é, apresentam
características barrocas de modo moderno, com um exagero intencional, um novo barroco.
O próprio homem barroco tem essa característica do novo, é um homem que a partir de
sua relação com a espiritualidade, pela primeira vez ―se defronta, na arte como na ciência,
com um mundo em movimento que exige dele atos de invenção‖. (ECO, 2008, p. 44-45).
E nessa mudança de atitude, o homem passa a ser tão excessivo, duvidoso e inovador
quanto suas artes:
As poéticas do pasmo, do gênio, da metáfora, visam, no fundo, além
de suas aparências bizantinas, a estabelecer essa tarefa inventiva do
homem novo, que vê na obra de arte, não um objeto baseado em
relações evidentes, a ser desfrutado como belo, mas um mistério a
investigar, uma missão a cumprir, um estímulo à vivacidade da
imaginação. (ECO, 2008, p. 45)
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Desse modo, o Barroco transcende a idéia de arte como contemplação passiva, ligada
restritamente à religiosidade. Essas poéticas – barroca e contemporâneas – levam-nos a
pensar em uma contemplação relacionada com o ―modo de fazer‖ da arte, isto é, o
receptor não mais ficará preso a uma contemplação do belo que há na manifestação
artística, mas pensará muito mais em seus elementos construtivos, seu efeito inovador, suas
metáforas e simbologias.
A contemplação das obras barrocas permanece, então, no estranhamento que é
causado no fruidor, em que tal inquietação se desenvolve no ―campo de possibilidades‖
que essa obra revela. E quando se estuda a obra aberta contemporânea, essa visão de
contemplação é ainda mais modificada, isto porque o campo de possibilidades
interpretativas cresce exponencialmente, apresentando, a priori, uma desordem estrutural,
induzindo, conseqüentemente, o aumento da inquietação no receptor.
Portanto, o conceito de obra ―aberta‖, tanto nas produções do século XVII quanto
nas produções de vanguarda, em que alguns traços daquela são utilizados também nesta,
sugere um novo Barroco, em que tais características tornam-se notavelmente mais
acentuadas e conscientes.
2.2 Neobarroco
Numa perspectiva que se aproxima à de Umberto Eco, Omar Calabrese, no livro A
idade neobarroca, de 1987, também aproxima a arte do século XX do Barroco. Todavia, ele
propõe uma aproximação muito mais efetiva, a ponto de cunhar o termo neobarroco para
referir-se à arte pós-moderna. Segundo o crítico, o neobarroco caracteriza-se como ―um ar
do tempo que alastra a muitos fenômenos culturais de hoje‖ (CALABRESE, 1987, p. 10).
Afirma ainda que se pode perceber nas poéticas contemporâneas uma série de aspectos,
principalmente o excesso, típico de um passado barroco, e, desse modo, o neobarroco
define-se como um conjunto de realizações estéticas da arte moderna que apresentam
traços estéticos do Barroco, em uma transformação poética.
A tese proposta por Calabrese defende que ―muitos importantes fenômenos
culturais do nosso tempo são marcas de uma ‗forma‘ interna específica do que pode trazer
à mente o barroco‖ (1987, p. 27). Neste sentido, o Barroco seria muito mais que um
período da cultura, na verdade seria uma ―atitude e uma qualidade formal dos objetos que o
exprimem‖ (CALABRESE, 1987, p. 27). Se for assim, Gillo Dorfles corroboraria esta tese.
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De fato, segundo Calabrese (1987, p. 28) Dorfles ―identifica o abandono (ou queda) de
todas as características de ordem e simetria, e vislumbra o advento do desarmônico e do
assimétrico‖, uma idéia semelhante à noção acerca das artes contemporâneas e seu excesso
excedido.
O Barroco estabelece um pensamento contraditório ao clássico no que diz respeito
ao ―fazer artístico‖. As oposições nos estilos trouxeram um sentimento do inesperado,
deixando para trás a idéia de arte relacionada ao belo e sublime, a arte meramente da
contemplação. No século XVII o sentimento de estranhamento e do original da obra
sobressaiu-se e até hoje predomina. Luciano Anceschi, a exemplo de outros pensadores,
―propunha que se considerasse o barroco como sistema cultural‖ (CALABRESE, 1987, p.
33) e, portanto, um sistema contínuo, não exclusivo de uma determinada época.
Algumas dualidades principais que advém do Barroco histórico são fundamentais
para a definição e a concepção do neobarroca, entre as quais destacamos: o limite e o
excesso; o pormenor e o fragmento; a desordem e o caos; a complexidade e a dissipação.
Para refletirmos sobre o princípio de limite e excesso é preciso considerar a
existência de obras que apresentam sistemas fechados e abertos. Dentre as obras que
seguem um sistema fechado, em que a manifestação artística segue uma simetria e obedece
a um centro, temos o Renascimento como já foi anteriormente citado. As obras barrocas,
ao contrário, seguem uma assimetria, não obedecendo, assim, essa noção de centralidade.
Por isso, tais obras são consideradas sistemas abertos.
Para fugir dessa centralidade, a dualidade limite e excesso são imprescindíveis, já
que, de ante-mão ultrapassa um significado. Segundo Calabrese (1987, p. 63), ―o excesso
manifesta a ultrapassagem de um limite visto como caminho de saída de um sistema
fechado‖. Dessa forma, o que era um sistema fechado transforma-se em um sistema
aberto, porque dificulta uma leitura unívoca. Em uma oposição temos a definição de limite
como um ―trabalho de levar às extremas conseqüências a elasticidade do contorno, mas
sem destruir‖ (CALABRESE, 1987, p. 65). O Barroco, e de modo mais intenso o
Neobarroco, procuram não o limite, mas o excesso da obra, o excesso do pensamento, a
hipérbole desse excesso.
Calabrese fala de certo prazer das obras neobarrocas ao quebrar esse sistema
fechado com a utilização desse tipo de dualidade e apresenta três formas de excesso: ―o
excesso representado como conteúdo, há um excesso enquanto estrutura de representação,
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e há um excesso enquanto fruição de uma representação‖ (1987, p. 73). Esses excessos
ocorrem tanto nas manifestações artísticas como também advêm do próprio leitor.
As obras contemporâneas também utilizam fortemente da dualidade pormenor e
fragmento. Essa dualidade insere a dialética entre a parte e o todo. Esse pormenor é
sinônimo de detalhe. As obras neobarrocas valem-se de um excesso de detalhamentos que
tornam a obra mais complexa, mais complicada e até mesmo fragmentada, o que a faz
resultar numa manifestação inacabada. O leitor ao ler uma obra fragmentada cria situações
diversas para completá-la, solucioná-la. No uso extremo de pormenores, o receptor recebe
variados detalhes excedidos que podem confundi-lo na elaboração de imagens artísticas
acerca daquela obra. Desse modo, é importante ressaltar a intenção da abertura e do
estranhamento da obra sobre o receptor. Neste sentido, Calabrese afirma o exagero dessa
dualidade nas obras modernas, seguindo uma determinada lei de integridade entre o inteiro
e a parte, o global e o local:
Teremos uma dialética sistema/elemento se tornamos pertinentes o
nosso par segundo a idéia da con-sistência, isto é, de funcionamento
simultâneo do todo e das suas partes. Ou então teremos a do
inteiro/fracção se, pelo contrário, tornamos pertinente o mesmo par
segundo a idéia de integridade, isto é, de comportamento do todo e
da parte em conseqüência de uma operação de exagero sobre o
inteiro. (CALABRESE, 1987, p. 84)
Outro aspecto pertinente na elaboração das obras de arte barroca e neobarrocas é a
dialética entre desordem e caos. Essas obras apresentam uma irregularidade, imperfeição e
insuficiência nas informações da forma artística, como veremos ao analisarmos os dois
poemas de Murilo Mendes. A manifestação de arte promove uma ordem não-habitual,
diferente daquela regra inicial que as obras clássicas seguiam. Isso é o que Calabrese
denomina como uma ―teoria unificada da desordem‖ (1987, p. 132). Nesse caminho,
chegamos a uma complexidade ou hermetismo da obra. Assim, as obras barrocas e
conseqüentemente, as neobarrocas trazem o ideal do inefável ou do indizível, em que a
explicação e a significação da obra levam-nos ao ―campo de possibilidades‖ que definimos
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na obra ―aberta‖, ou seja, a um excesso de fruições. O jogo de possibilidades que revela
uma matemática infinita é típico da modernidade da abertura proposital extremista.
A função caótica da arte tem a intenção de dificultar a recepção ou de exceder as
fruições de modo que se cria no leitor a inquietação do ―não-saber‖. Nessa perspectiva, o
Neobarroco força o receptor perceber na obra uma contínua formação de imagens
caóticas, fora dos esquadros de organização. Foi essa genialidade, sem intenção, que fez das
obras produzidas no século XVII muito mais que um período qualquer, mas uma linha de
pensamento que revela ainda a continuidade dual da noção barroca histórica.
Por fim, resta-nos comentar acerca da dualidade complexidade/dissipação que
envolve o conceito de entropia. A entropia envolve um equilíbrio e uma evolução. As obras
contemporâneas estabelecem um equilíbrio de desordem que leva à certa complexidade
máxima. As metáforas que permeiam a arte de vanguarda são carregadas semanticamente e
expressivamente, atingindo uma alta entropia ou uma evolução excessiva da expressão. As
metáforas atingem o ápice da inovação, gerando uma inquietação e um estranhamento
contínuos, além da complexidade da compreensão, levando-nos a criar um sentimento não
de leituras diversas, mas de re-criações.
Dessa forma, o fenômeno estético que as manifestações artísticas dessa época atual
estabelecem parte desse princípio de dualidades barrocas, o que nos permite considerar a
obra contemporânea um Barroco moderno, um novo Barroco, ou, como quer Calabrese,
um Neobarroco.
3. Análises dos poemas de Murilo Mendes
De um modo geral, o ato de leitura de um texto significa a procura de um significado
que nos faça compreendê-lo. Diante das obras de Murilo Mendes, em virtude de sua alta
complexidade de ordem semântico-estética, perceberemos que essa busca por uma
mensagem unívoca e uma interpretação estática é sempre fadada ao fracasso. São obras que
em vez de possibilitar ao leitor uma contemplação passiva, cobra dele um percurso
interpretativo bastante ativo, bastante questionador e criativo.
Tanto ―Poema Barroco‖, publicado em Mundo enigma (1942), quanto ―A forma e a
fôrma‖, encontrado em Poesia Liberdade (1943-1945), são textos que trazem um campo de
possibilidades de fruições diversas que complicam a busca por um significado único.
Ambos são estruturados com a finalidade de causar uma inquietação no receptor, que,
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impossibilitado de esgotar o universo de significação do poema em uma única leitura, acaba
enredando-se, a cada nova fruição, na abertura das obras, ou seja, em suas inesgotáveis e
inesperadas possibilidades semânticas.
Vejamos o primeiro poema:
POEMA BARROCO
Os cavalos da aurora derrubando pianos
avançam furiosamente pelas portas da noite.
dormem na penumbra antigos santos com os pés feridos,
dormem relógios e cristais de outro tempo, esqueletos de atrizes.
O poeta calça nuvens ornadas de cabeças gregas
e ajoelha-se ante a imagem de Nossa Senhora das Vitórias
enquanto os primeiros ruídos de carrocinhas de leiteiros
atravessam o céu de açucenas e bronze.
Preciso conhecer o meu sistema de artérias
e saber até que ponto me sinto limitado
pelos sonhos a galope, pelas últimas notícias de massacres,
pelo caminhar das constelações, pela coreografia dos pássaros,
pelo labirinto da esperança, pela respiração das plantas,
e pelos vagidos da criança recém-parida na maternidade.
Preciso conhecer os porões da minha miséria,
tocar fogo nas ervas que crescem pelo corpo acima,
ameaçando tapar meus olhos, meus ouvidos,
e amordaçar a indefesa e nua castidade.
É então que viro a bela imagem azul-vermelha:
apresentando-me o outro lado coberto de punhais,
Nossa Senhora das Derrotas, coroada de goivos,
aponta seu coração e também pede auxílio.
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O título do poema remete-nos diretamente à estética barroca. Percebemos a
simplicidade do título que, a priori, não apresenta uma ambigüidade. Mas, em outras
leituras, observamos que esta simplicidade abre margem para diversas expectativas na
construção de um pensamento sobre o poema. Podemos pensar que o texto traz os
exageros da arte barroca, ou a transformação do homem, a dualidade e assim por diante.
Esperaríamos o poema trazer todas as características barrocas para ele poder ser chamado
―Poema Barroco‖.
Retomando o início e o fim do poema, observamos um jogo de oposição ao
estabelecer uma nomenclatura própria de ―Nossa senhora‖. No começo o Eu-lírico fala de
uma ―Nossa Senhora das Vitórias‖ em contraponto com a ―Nossa senhora das derrotas‖
no fim do texto. Esse jogo de oposição e a religiosidade são características principais da
arte barroca e é importante ressaltar a menção dessas unidades vocabulares no texto.
No corpo do poema, fica nítida a presença da linguagem poética rica no uso
exacerbado de metáforas, em um aspecto surreal. Isso caracteriza a complexidade máxima
dessas metáforas que apresentam um excesso de expressão e carga semântica,
caracterizando uma ambigüidade fundamental da obra. São essas imagens caóticas que
levam à inquietação e estranhamento do receptor e que faz da obra uma fonte inesgotável
de interpretações, a exemplo do quinto verso da ultima estrofe ―É então que viro a bela
imagem azul-vermelha‖.
O aspecto de desordem no texto não advém apenas do jogo de metáforas, mas
também da fragmentação entre as estrofes e em alguns versos. São essas partes que
dificulta uma leitura do todo. Não há uma correspondência aparente entre estrofes, uma
continuidade. O texto, assim, torna-se caótico como a compreensão do fruidor.
Não há como desenvolver uma fruição contínua que relacione as estrofes. Não há
como pensar em um texto completo quando as estrofes são completamente abertas e livres
para interpretações à parte, isto é, cada estrofe parece um poema a mais, um poema aberto.
E mais aberto ainda esse poema se torna, quando junta-se as partes sem uma relação entre
elas. No quarto verso da primeira estrofe percebemos bem essa fragmentação caótica
quando o eu-lírico diz ―dormem relógios e cristais de outro tempo, esqueletos de
atrizes‖, em que não há uma relação, a priori, entre os relógios, cristais e esqueletos.
Além do mais, os excessos e exageros poéticos criam aparentemente uma desordem
estrutural, mas com um pouco de atenção percebemos uma ordem não habitual seguida
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pelo Eu-lírico. Dessa forma, essa desordem seria apenas a fuga da regra ou de uma ordem
imposta na poética da contemplação do belo e sublime.
Os excessos de fragmentação, caoticidade e metáfora não permeiam apenas este
poema de modo particular, mas vamos perceber também em outros poemas de Murilo Mendes
como ―A forma e a fôrma‖ publicado no livro Poesia liberdade (1943-1945):
A FORMA E A FÔRMA
Minha ala tem a forma do meu corpo:
Mas como é afinal meu corpo?
Eu nunca exato o vi.
Às vezes será uma esfera,
Outras vezes pirâmide.
Quantas coisas aparentes vi...
Vi famílias dependuradas dum cabide
Que dialogavam fuzis.
Vi uma dançarina erguendo na ponta dos pés
Um teatro com mil colunas,
Vi o sol negro.
Vi, vejo, tantas coisas vi...
Vi se movendo meu corpo,
Mas não, até hoje, sua forma.
Neste poema percebemos também a fragmentação dos versos e das estrofes, em
consonância com a complexidade das metáforas e antíteses, o que dar ao poema um caráter
de abertura poética, como acontece também no poema anterior. Ainda observamos certa
inquietude do ser e sua dualidade corpo/forma. Essa inquietação do Eu-lírico é passada
para o receptor nas características citadas anteriormente como a fragmentação, as
metáforas excessivas e sua caoticidade. São os detalhes e as metáforas imprevisíveis que
fazem do poema algo caótico e desordenado.
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Talvez seja impossível ver no poema uma mimese perfeita da realidade ou uma
busca por essa imitação. Pelo contrário, a terceira estrofe cria imagens aparentemente semnexo e que apenas com algumas outras leituras fica claro um dos aparentes significados da
parte no todo. É importante ressaltar a criação dessas imagens poéticas em uma relação
com a repetição do verbo ―ver‖ e seu vínculo na arte Barroca. No Barroco prevaleceu um
jogo de imagens excessivas, que tinham a pretensão de chamar a atenção para elas mesmas,
de forma muitas vezes independente umas das outras. Daí o excesso de detalhes e
metáforas para se criar uma obra que alimente a visão e que compense o não ver a própria
forma.
Nessa perspectiva, ambos os poemas apresentam traços que remetem a um período
Barroco como a fragmentação, a desordem, a dualidade, a complexidade, o caos e outros.
Tendo em vista a noção de neobarroco como obras modernas que apresentam algumas
particularidades do pensamento barroco, poderíamos afirmar que estes poemas são
considerados neobarrocos. Além do mais, apresentam uma ambigüidade estrutural, na qual
esses traços Barrocos se sobrepõem de modo acentuado, causando no receptor, como bem
foi esclarecido, uma inquietude sobre o modo de fazer da arte e chamando a atenção para a
criação de um jogo de possibilidades de fruição, característica típica uma abertura das obras
modernas.
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5.
A
ASA
ESQUERDA
DO
ANJO
PELO
VIÉS
DO
DISCURSO
MELANCÓLICO
Profª. Ms. Adriana Sena (UFRN)
O presente trabalho origina-se, na verdade, do título da dissertação, à nível de
mestrado, A melancolia em A Asa Esquerda do Anjo.
A Asa Esquerda do Anjo, de autoria de Lya Luft, é uma obra que, desde os
tempos da graduação, foi refletida e estudada. Já, na pós, acreditou-se ser relevante
trabalhar com ela sob um novo viés – o viés da melancolia. E, assim, achou-se, por ocasião,
estender as reflexões subsequentes à defesa em congressos, encontros para uma melhor
contribuição nas discussões e análises da obra em questão.
Melancolia, sema escorregadio, de formação histórica irregular e assustador,
apresenta, no entanto, o lado reflexivo, o lado mágico da linguagem, remetendo também ao
seu lado sígnico, semiótico:
Nos fenômenos, sejam eles quais forem – uma nesga de luz ou um
teorema matemático, um lamento de dor ou uma idéia abstrata da ciência , a Semiótica busca divisar e deslindar seu ser de linguagem, isto é, sua
ação de signo. Tão-só e apenas. E isso já é muito (SANTAELLA, 1983,
p. 14).
Perpassada pelo viés do discurso melancólico, a narrativa de Asa Esquerda do
Anjo nos conduz ao labirinto da linguagem melancólica (peculiaridade barroca e moderna)
na voz da protagonista – Gisela.
Gisela constrói sua fala por intermédio de lembranças vividas na infância:
Tenho sete, oito anos. Ao menos três vezes por semana passo nesta rua
para visitar minha avó e estudar piano na sua sala de música. Um ritual a
ser cumprido, como tantos numa família organizada: tudo é bem
organizado na família Wolf, ao compasso da voz seca da matriarca, minha
avó. Só eu me sinto fora de ritmo, com o corpo miúdo, as orelhas grandes
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teimando em aparecer por entre o cabelo que me obrigam a usar bem
curto, ―assim fica mais forte‖ (LUFT, p.11).
Menina canhota, de lado esquerdo, de família tradicional alemã, porém nascida no
Brasil, de pai sulista e mãe nordestina, busca se autoafirmar diante de seu núcleo familiar.
Sua linguagem deriva em fragmentos, tecida de frangalhos vocabulares:
Eu queria que Anemarie me visse, me amasse. Ao menos ela, que a música
transportava para fora dessa família composta de gente que, eu
adivinhava, não conhecia nenhum amor. As pessoas deviam se amar, mas
aquela gente, a minha gente, realmente se queria bem? Às vezes eu corria
para minha avó e indagava:
- Vovó, você gosta da minha mãe?
Sem hesitar mas sem dar muita importância, ela respondia:
- Claro, Guísela. Ela não é a mulher de meu filho?
Depois eu fazia a pergunta inversa a minha mãe, dessa vez em português,
e ela retrucava:
- Mas claro, Gisela, ela não é a mãe de meu marido?
Uma vez, descobrindo minha manobra, as duas riram de mim: Não é que
eu tinha idéias engraçadas?
Guísela para uma, Gisela para outra. À noite, fantasmas, de dia, dúvidas.
E eu? (p. 41-42).
Representante de uma dualidade inscrita em seu próprio nome, Gisela fica indecisa
com relação ao seu vocativo: a qual deles atender? E nesta ambivalência clara, aberta,
emerge uma linguagem transitória, fragmentária, compondo um quadro, feito por emaranhado de
linhas de dispersão e pontos de concentração (LOPES, 1999, p. 12). Pode-se, assim, dizer que na
voz de Gisela há uma representativa barroca moderna. Barroca, pois Gisela fica indecisa
entre o nome alemão e o nome brasileiro. Há também a presença da melancolia, que, na
nossa modernidade, tem-se por depressão. Moderna, pois sua linguagem é fragmentária,
inconsistente, ela não se sente enquadrada em um modelo. Questionando este, Gisela
apresenta características modernas em seu modo de vida. Mostra, pois, o quanto é instável
e melancólica.
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A protagonista vive uma crise subjetiva desde criança. À medida que a narrativa se
descortina, este momento crítico interior ganha amplitude, revelando o impacto de seu
discurso melancólico:
À noite, insone por causa da solidão e de tantas recordações escutando
os rumores da casa, eu meditava sobre a minha vida.
Vida sem graça: já estava envelhecendo. Tormentos e exílios na infância.
Orelhas grandes. Alemão ou português? Qual a mão certa? Onde o meu
lugar? Minha avó me ama ou me despreza? E eu, o que sinto por ela? (p.
96).
A melancolia não é apenas um discurso que abre porta para uma leitura perceptiva
de uma profunda tristeza, mas também, como coloca Lopes (1999, p. 18), a escritura
fragmentária se torna, portanto, um instrumento capaz de encenar uma história de dispersões que incorpora
os acidentes, os desvios, na análise, no texto, na vida.
A fala melancólica e a plurissignificação de seus signos nos remetem a idéia de
palimpsesto, em que um texto é lido através de outro texto, uma imagem lida através de
outra imagem, numa memória intertextual e visual. Seu sentido não apenas está prenhe de
auto-repreensão; auto-punição, mas também de um empobrecimento de seu ego em grande
escala, como bem nos coloca Freud (1980) em seu texto Luto e Melancolia:
Os traços mentais distintivos da melancolia são um desânimo
profundamente penoso, a cessação de interesse pelo mundo externo, a
perda da capacidade de amar, a inibição de toda e qualquer atividade, e
uma diminuição dos sentimentos de auto-estima a ponto de encontrar
expressão em auto-recriminação e auto-envilecimento, culminando numa
expectativa delirante de punição.
Freud, estudioso das análises clínicas, faz um contraponto entre o afeto normal do
luto e a melancolia para melhor entender o efeito simultâneo de sedução e ojeriza que a
melancolia exerce sobre o individuo. Enquadra, assim, o discurso melancólico, ou a própria
melancolia, no quadro das neuroses de angústia. Lança este olhar na tentativa de apreender
o significado do tecido constitutivo do ego humano.
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Por motivos de ordem moral, a insatisfação do sujeito melancólico com o ego
constitui a característica mais marcante de sua personalidade cambiante, móvel. E nesta
mobilidade, o sujeito, junto com o seu discurso, fragmenta-se. Esfacela-se. Ou seja, perde
consistência e estabilidade (peculiaridades de uma modernidade líquida). Ao adquirir tal
movimento, descobre-se que não é o todo, nem o caminho para o todo, nem se define
positiva ou negativamente face ao todo:
Nenhum deles exceto talvez minha mãe suspeitava da extensão da minha
dor, e do meu medo de jamais vir a pertencer a nada ou a ninguém.
Nem nome certo eu tinha. E as coisas, as que pensava e sentia, em que
palavras expressá-las: em alemão ou português?
Recordar é uma particularidade intrínseca ao sujeito melancólico. Através do
rememorar, ele busca localizar, no espaço, o tempo como fonte de recordações. Este
relembrar-localizar o remete não ao todo, ou a leituras lineares, horizontais, ou, ainda, a
uma reconstrução de um passado tal qual ele supostamente foi, porém, acima de tudo,
remete a um reencontro, no conflito de tempos e com outras imagens, de si com o próprio
Eu, revelando, assim, que a fala melancólica indica uma possibilidade de apreender a dor
como uma outra face do pensar, de um pensar.
Neste caminhar reflexivo, pelo viés do discurso melancólico, a construção histórica
de mundo, de lugares se dá de forma diferenciada, e não nos leva a espaços seguros ou
definitivos. É um risco de material misterioso. Como diz Walter Benjamin:
A melancolia é a disposição do espírito na qual o sentimento dá uma vida
nova, como uma máscara, ao mundo esvaziado, a fim de usufruir a sua
maneira de um prazer misterioso.
Já de início em sua fala, a protagonista revela sua perturbação subjetiva. Ela tem
consciência de algo errado em sua vida, porém, pela dificuldade de identificar, de encontrar
um signo correlato, não consegue emitir a nomeação. Se não há um significante expressivo,
então, também não existi possibilidade de desvelar significações, de tornar em substância
esse algo. Isto é a própria modernidade circunscrita no corpo mirrado de Gisela.
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Para Freud, a melancolia é sinônimo de uma perda desconhecida. Isto é, de um
produto não dado ao conhecimento. O paciente sabe quem ele perdeu, seu conteúdo, no
entanto, não pode, por alguma razão que o próprio Freud desconhece, ser visualizado:
Isso, realmente, talvez ocorra dessa forma, mesmo que o paciente esteja
cônscio da perda que deu origem à sua melancolia, mas apenas no sentido
de que ele sabe quem ele perdeu, mas não o que perdeu nesse alguém. Isso
sugeriria que a melancolia está de alguma forma relacionada a uma perda
objetal retirada da consciência, em contraposição ao luto, no qual nada
existe de inconsciente a respeito da perda (FREUD, 1980, p.251).
As imagens não se encontram no sim ou no não. Não obstante, num limiar. Não
entre o sono e a vigília, entre o mito e o despertar, mas imagens crepusculares,
evanescentes no momento anterior à morte do sol, à noite escura. Sua significação está no
entre-mundos, no intervalo.
E é mediante este intervalo, esse espaço trans, de caráter intervalar e polissêmico da
imagem de si mesma e de seu fio existencial, que Gisela reconstrói seu falar.
Ao buscar um lugar, Gisela percebe que não é uma tarefa simples. Ela rompe com a
idéia de que tudo está perfeito, de praias lisas e calmas. Percebe que não é fácil reconstruir
o fio da meada e que este, devido à corrente temporal, vai se transformando e se perdendo
na constituição de sua incompletude permanente, mergulhando, cada vez mais, no limiar
inominável de si mesma:
Chegava junto de minha mãe, que estava ocupada atendendo a todos.
Logo alguém me pegava pelo braço, sempre aqueles apertos decididos,
pondo-me no meu lugar – mas onde era mesmo o meu lugar? Jogar bola
com as primas, pular corda, brincar? (p. 26)
Sensível ao toque da vida e sua constante mobilidade, Gisela refaz seu contexto
pelo viés do discurso melancólico. Revela-nos, pois, sua fragilidade em meio à dor da morte
de entes queridos:
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Anemarie toca violoncelo num circulo de luz. Amei Anemarie, um amor
inocente, mas ela morreu. O câncer começara no útero dissera a
enfermeira. A morte roendo a raiz da vida (p. 97).
Pela lente da sensibilidade, Gisela rever as mortes no/do seu passado. Pondera-nos
seus medos, angústias, principalmente, com relação à infância, da qual se sente prisioneira,
arraigada. Sua fala permeia-se pelo viés singular da melancolia. Deste solo imagético,
emergem diferentes momentos históricos vividos pela personagem em foco: barroco e
modernidade. Mas isto não significa que ela busca criar um conceito, uma noção unívoca,
como a base das teorias behavioristas, E→R (estímulo → resposta):
A sensibilidade é uma categoria trans, para um mundo de identidades
frágeis, fugazes, multiplamente simultâneas, mesmo aparentemente
incongruentes, ou de fato contraditórias, desprezadas como ecletismo ou
pura heterogeneização decorrente do consumo (LOPES, 1999, p. 40).
As interfaces da fala melancólica se conjugam e, na soma de suas partes, encontrase o sujeito. O sujeito é o eixo em torno do qual giram a esfera da alegria e da dor,
oscilando entre a exaltação e a depressão, sem nunca estar totalmente em nenhuma das
duas. Ou seja, só se pode discutir melancolia pelo viés do sujeito. Quando assim
explicitamos, queremos dizer que a melancolia talvez seja sobretudo um olhar, um olhar de
lado, que não se fixa precisamente sobre nada, porém que vê o que existe entre os mundos,
na vibração das esferas. Um olhar barroco, um olhar instável, inconsistente e, por isso,
também moderno.
Desde a tenra infância, Gisela abriga, dentro de seu ventre, um ser inominável,
ausente de toda e qualquer significação, alguém que ela não consegue emitir, nem
simbolicamente, os atributos necessários à nomeação:
Preciso concentrar-me neste ritual: ficarei aliviada e limpa depois do
horrendo parto. Deitar-me nesta cama branca e deixar que meu corpo
expulse seu violador. Por muito tempo esteve esquecido. Hibernava?
Pensei que morrera, ou não passava de um daqueles medos que me
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atormentavam antigamente, eu era a criança mais esquisita da família Wolf
(p. 09).
Gisela, durante todo o desenvolvimento da narrativa, está em busca de um saber,
do qual já participa. Porém, ela ainda não detém o poder da verdade total. Sua mão é
falhada, é canhota, sua fala prima pelo saber irredutível. Em seu consciente, não está apta a
adentrar no núcleo dos Wolf. Considera-se um ser marginalizado e como tal se comporta.
Engolida na falha da identificação, a protagonista erra à margem de seus familiares ou ao
tentar agarrar-se a sinais de reconhecimento que elegeu como referente para si:
Estou feliz, Gisela, escreveu ela, tão feliz. Você não pode imaginar, mas
um dia vai me entender, tenho certeza. Só tenho pena de minha mãe,
cuide bem dela por mim.
Não me disse se tinha um filho. Então a tocadora de violoncelo, meu anjo
de lábios macios, dormia com um homem e era feliz. Quem sabe eu
também conseguiria.
Gisela é portadora de muitos medos. Um deles é se casar. Mais: viver naturalmente
uma vida a dois. Esse é um dos seus maiores temores. Sua fase infantil é permeada por
medos. Medo de perder a mãe (a figura que mais admira), de não agradar a exigente Frau
Wolf (sua avó), de não alcançar a beleza e o encanto naturais de Anemarie (sua prima),
medo da morte, etc. Assim, sua linha vital vai sendo construída. Culpa, sempre culpa. E
esta permeia a história da protagonista de forma bem esclarecida. Isto é, não resta dúvida
quanto ao discurso melancólico de Gisela:
Talvez meu irmãozinho fosse um aluno exemplar, eu pensava, se não
tivesse morrido bebê. Anemarie era exemplar. Eu, um desastre. Eu saía da
sala sabendo que em casa o sermão se repetiria, pois meu pai era avisado
por telefone. Sentia-me vagamente injustiçada mas aceitava a culpa pela
falta de atenção, de interesse, de habilidade. Eu sempre aceitava as culpas
(LUFT, 2005, p. 18).
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Constantes medos e culpas tornarão a existência de Gisela mais pesada, pois o
futuro virá. E, com ele, as incertezas do passado se somarão às do presente. Sob o signo do
recalcamento, ocorrido devido às interdições infantis e reforçada pelo temor de perder o
amor dos seres mais indispensáveis à sua sobrevivência (sua mãe, Anemarie, Leo, sua avó),
Gisela precipita-se para o jogo do insolúvel, no qual o ideal de perfeição se transformou
num juiz cada vez mais exigente. Esta demanda exigente demais anulará a sua existência
enquanto sujeito.
Mais do que um modo subjetivo de apreensão e conceitualização, a melancolia se
sobrepõe como discurso de linhas diversas. Para entendê-la como forma de debate
contemporâneo, é preciso, antes de tudo, partir do e para o sujeito. Na confluência de sua
temporalidade, quando se falar em nosso passado, nosso presente, pode-se entender quem
é o sujeito da fala, de que passado e presente se trata, pois não só presente é plural, mas os
passados transitam e emergem quando e onde menos se espera. O presente só pode se
fazer tal qual, ou seja, na exata medida, quando se revelar o seu passado.
Gisela, narradora-personagem, menina inconstante, moderna, que, ao final da
narrativa, ganha uns fios anelados, descobre, na conjugação reflexiva-temporal de sua vida,
que a criatura, o quase-saber, o ser inominável, existe realmente de fato:
Crio coragem. Acho que agora nada mais me põe medo. Corpo dolorido
do esforço que acabo de fazer, soergo-me na cama, apoiada nos cotovelos,
viro-me um pouco, para pela primeira vez contemplar o que saiu de mim.
Ali está. Sorve com esse ruído o resto de leite no cinzeiro. A pele esticada
reluz à claridade amarela do abajur. É enorme. Enrodilhado, tem duas
pontas iguais, a que deve ser a cabeça está metida no liquido que serviu de
chamariz.
Bebe calmamente o leite.
Não posso acreditar que esteja ali. Até o fim achei que era pesadelo,
alucinação, exagero de minha fantasia. Agora, está ali (LUFT, 2005, p.
108-109).
De atitudes e fala errante, A Asa Esquerda do Anjo se projeta para o meio
literário como uma obra moderna, de respaldo, enviesada pelo viés do discurso
melancólico, por um olhar barroco. Gisela, indivíduo de olhar subjetivo e melancólico,
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descobre-se grávida de um inquilino sem identidade, sem feições, sem olhos, sem nariz
como a própria Gisela. Único lugar participante dela mesma é a soleira da porta, o limbo, o
quase-saber, o quase-conhecer. Além da revelação da dor, a melancolia se presta à narrativa
como parte integrante da constituição discursiva de Gisela. Assim, dá uma vida nova –
como uma máscara – ao mundo caótico interior da personagem em questão, contribuindo
para entendermos que o melancólico não dita o discurso da verdade e muito menos se
enquadra em dicotomias generalizantes e consensuais. Mas, acima de tudo, o discurso
melancólico refaz o estado de contínua e total rebelião contra o real e toda a idéia absoluta
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http://www.bmsr.com.br/autores/lya%20luft/texto.htm/
http://imprimis.arteblog.com.br/4502/MELANCOLIA-I-de-DURER/
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6.
CANTO PARALELO - O JOGO PARÓDICO NA OBRA TUTAMÉIA DE
JOÃO GUIMARÃES ROSA
Arlene Isabel Venâncio de Souza (Universidade Federal do Rio Grande do Norte)
Ânsia voraz de me fazer em muitos,
Fome angustiosa da fusão de tudo.
Guimarães Rosa
Ao escolhermos como objeto de estudo a obra Tutaméia de Guimarães Rosa
percebemos a necessidade da ―tradução‖ da obra que mesmo escrita em Português é
recheada de palavras novas e antigas e de palavras amalgamadas fazendo com que se
consolide a sua advertência inicial no índice de leitura da obra em forma de epígrafe, tratase de uma citação de Schopenhauer ―Daí, pois, como já se disse, exigir da primeira leitura
paciência, fundada na certeza de que, na segunda, muita coisa, ou tudo, se entenderá sob
luz, inicialmente outra‖(Rosa, 1985, p.5) e segundo Jeane Spera
Quanto à sua constituição formal, os vocábulos neológicos apontam para a
familiaridade de João Guimarães Rosa com o esquema de possibilidades de
estruturação vocabular previsíveis na língua portuguesa. De fato, as ousadias
no plano da criação vocabular, detectadas em Tutaméia, se fazem sempre
dentro das coordenadas abertas pelo sistema da nossa língua. Nesse sentido,
o leitor do texto, ao deparar-se com os desvios léxicos, necessariamente
ativará todo seu conhecimento sobre as diferentes formas de constituição
vocabular, a fim de decodificar o vocábulo criado. Essa cumplicidade do
leitor está, de resto, implícita e requerida na epígrafe da obra. (Spera, 1995,
p.19)
Guimarães é esse alquimista da palavra que a faz, refaz, desfaz trazendo sempre o
novo de novo. A formação do livro é bem peculiar sendo composta de dois índices – um
de leitura e outro de releitura – o primeiro em ordem alfabética invertendo apenas dois
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contos para formar as suas iniciais J.G.R. (João Guimarães Rosa) e o segundo índice
chamado de índice de releitura que o autor separa os quarenta contos dos quatro prefácios
e mais uma vez coloca como epígrafe outra citação de Schopenhauer ― Já a construção,
orgânica e não emendada, do conjunto, terá feito necessário por vezes ler-se duas vezes a
mesma passagem‖. Nessas duas citações o autor dá pistas para a compreensão da obra
assim como ao longo de seus prefácios e narrativas aparecem frases sínteses do
pensamento do autor e é em busca dessas frases que na maioria das vezes são inversões de
frases já conhecidas que delineamos nosso trabalho.
Inicialmente citaremos o tão estudado e discutido crítico russo Mikail Bakhtin que
no quarto capítulo de seu livro Problemas da Poética de Dostoievski, traduzido para o
português pelo professor Paulo Bezerra, que nos fornece um conceito de paródia utilizado
como ponto de partida para a nossa análise: ―parodiar é a criação do duplo destronante, do
mesmo ―mundo às avessas‖. Por isso a paródia é ambivalente‖ (Bakhtin, 1997, p.127).
Partindo dessa afirmativa do ―mundo às avessas‖ e da ambivalência da paródia que
observamos a criação e desconstrução de frases ao longo do livro Tutaméia, seja nos
contos ou nos prefácios. Guimarães Rosa usou e abusou desse recurso desde inversões de
provérbios populares ―o pior cego é o que quer ver...‖ (Rosa, 1985, p. 20) até um parecer
crítico a uma obra consagrada do Romantismo brasileiro como é o caso de Cassimiro de
Abreu que em seu famoso poema ―Meus Oito Anos‖ inicia com o clichê romântico ―Oh!
que saudade que eu tenho da aurora da minha vida ...‖ e Rosa nega-o com a seguinte frase
―Ah, que saudades que eu não tenha!‖ (Rosa, 1985, p. 197). No poema Saudade que está no
livro Magma, Rosa diz o seguinte ―Saudade triste do passado,/ Saudade gloriosa do
futuro,/ saudade de todos os presentes vividos fora de mim!...‖ (Rosa, 1997, p. 132). Nesse
poema o autor mostra sua saudade do futuro e não do passado como é o tema do poema
Romântico.
Ao longo de sua obra observamos que a utilização desse recurso de modificação de
clichês, de provérbios consagrados é uma forma de o autor enriquecer sua linguagem, de
recriar novas formas de retraduzir o seu código, a utilização de estrangeirismos, de palavras
amalgamadas, de frases novas utilizando o mesmo sentido é um recurso fundamental na
escritura rosiana. Ela está repleta de reinterpretações da realidade mostrando a paródia
como um duplo destronante que sempre acrescenta, uma forma de crítica do que já foi dito
e o apresenta com uma roupagem nova. Como diz o crítico Francisco Ivan ―Fazendo um
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percurso textual sobre o texto de Guimarães Rosa, descobrindo um traço/rastro barroco,
Barroco moderno, cor constante na Literatura Brasileira‖(Silva, 1994, p. 74).
Quando Rosa diz ―todo mundo tem onde cair morto‖ (Rosa, 1985, p. 128) ele nos
leva para a frase de origem que é inversa e causa o efeito jocoso e ao mesmo tempo
reflexivo assim como quando diz ―aquele caminho não ia dar a Roma nenhuma‖ (Rosa,
1985, p. 168) ou ainda ―Haja a barriga sem o rei‖ (Rosa, 1985, p. 16) ou ―A bonança nada
tem a ver com a tempestade‖ (Rosa, 1985, p. 48), nesses exemplos ele está novamente
contrariando os provérbios. Existem também frases que retomam a mesma temática do
provérbio, mas utiliza outra forma como ―foram infelizes e felizes, misturadamente‖ (Rosa,
1985, p. 29); ―Vá-se a camisa, que não o dela dentro‖ (Rosa, 1985, p. 48); ―o roto só pode
mesmo rir é do esfarrapado‖ (Rosa, 1985, p. 19) e como ápice desse processo de
carnavalização do já dito e estabelecido temos o trecho do último prefácio intitulado ―sobre
a escova e a dúvida‖ que diz o seguinte:
Senhor, já fiz tudo – as batatas estando plantadas, os macacos penteados, já
fui saindo, vi que o senhor não está na esquina, banhei-me caixa de fósforos,
o boi se amolou, o outro também, os porcos idem, foi lambido o sabão; e a
Lherda e a Nherda fui, cá estou, Senhor ?....(Rosa, 1985, p.172).
Nesse exemplo, temos de forma inteligente ―respondido‖ todos os clichês
utilizados para mandar alguém embora e a forma como o autor os colocou unidos é a
prova de sua engenhosidade artística.
Em toda a obra podemos observar essa paródia constante, esse canto paralelo que
permeia todas as citações e que nos chama atenção para o processo criador que aparece
como uma cilada, uma armadilha para seduzir e encantar a todos. Rosa não repete apenas
os clichês, ele os recria, pois se fizesse simplesmente repeti-los não nos intrigaria tanto, ao
criar essa linguagem criptográfica deseja que só tenha acesso os que não se contentam com
a primeira leitura.
A revista Tempo Brasileiro especial sobre paródia (n. 62) de Julho/setembro de
1980, analisa essa questão através de dez especialistas que refletem a paródia sob vários
aspectos tendo sempre como ponto de partida o conceito já demonstrado de BAKHTIN, a
referida revista foi organizada pela professora Selma Calazans Rodrigues com supervisão
do professor Emir Rodrigues Monegal, eles definem a paródia como: Canto Paralelo,
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diálogo intertextual, escritura especular ou simples retomada de um texto pré-existente
afirmando ao negar-se, a paródia está de novo no centro das investigações literárias
contemporâneas. Nessa definição é feita uma retomada dos textos dispostos e esses
serviram de fundamentação para o nosso trabalho.
Outro texto que trabalha a paródia entendendo essa como uma intertextualidade é
o artigo do cubano Severo Sarduy sobre ―O Barroco e o Neobarroco‖ que foi publicado
no livro A América em sua literatura, 1979 (Sarduy, 1997, p. 161). Neste texto o autor ver a
paródia como mais um elemento barroco da linguagem, mas sua fundamentação também
passa pelo conceito de BAKHTIN.
Refletindo agora sobre esse conceito podemos dizer que vendo a paródia como um
duplo destronante que desconstrói o anterior e traz sempre o elemento novo, tentamos
analisar como isso se dá na obra de Rosa Tutaméia que ao longo dos seus quarenta contos e
quatro prefácios nos brinda com textos de outros fazendo inversão / invenção. Como
primeiros exemplos têm na epígrafe do conto ―A Vela ao Diabo‖ a seguinte frase: ―E se as
unhas roessem os meninos?‖ (Rosa, 185, p.26) vemos aí uma inversão do estabelecido um
―mundo às avessas‖ que ele desconstrói, reconstruindo. Para subsidiarmos essa discussão
utilizamos novamente o ensaio do professor Francisco Ivan ―A Expressão Barroca na
Literatura Brasileira‖ em que nos diz que ―O Barroco é um discurso sobre a arte/escritura,
e que, aqui chamaremos de metalinguagem ou paródia‖ (Silva, 1994, p.74).
Percebemos nessa abordagem que a questão da paródia está diretamente relacionada
ao fazer poético, ao criar observando suas estruturas e vendo ainda que é na análise dos
elementos internos e externos do discurso que teremos a radiografia do texto. No caso da
análise paródica que está dentro do conceito de polifonia como mais uma voz que aparece
relacionada a outras que estão no texto formando assim a polifonia – termo esse vindo da
música e trabalhado pelo teórico russo. Percebemos que o seu estudo é essencial para
observarmos o que ocorre nas construções e desconstruções feitas nos textos de Tutaméia.
O processo criador de Rosa é o grande personagem de sua obra e é através dele que
se tenta decifrar o seu código, código de poesia que está sempre com saudades do futuro
como Oswald de Andrade e tantos outros. Nesse livro, existem duas frases que sintetizam
o seu processo de criação, a primeira está no final do seu primeiro prefácio ―Aletria e
Hermenêutica‖ que é ―O livro pode valer pelo muito que nele não deveu caber‖ (Rosa,
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1985, p.17) e a outra no seu último prefácio ―Sobre a escova e a dúvida‖ que diz: ―Às
vezes, quase sempre, um livro é maior que a gente‖. (Rosa,1985, p.178).
O uso da paródia ao longo da literatura tem esse sentido de revitalização do mesmo
destronamento e criando novos paradigmas. E ela se dá no momento em que o artista se
distancia do objeto para poder vê-lo melhor percebe-se aí novas possibilidades de
realização. Em vez de criar uma obra dentro dos cânones estabelecidos pela tradição, o
parodista burla, ou seja, carnavaliza a própria linguagem, satirizando procedimentos
correntes para atingir novos objetivos. A paródia é um signo vivo, vivificando o que estava
morto e esquecido. É a contaminação dos gêneros que ocorre por isso ela é ambígua,
denunciando o fracasso do poder constituído. Quando ROSA critica os românticos ele está
desconstruindo um discurso vigente em que diz que eles eram o modelo. JOYCE no seu
Ulysses faz isso com a Odisséia a carnavalizando e criando um novo paradigma para aquele
épico, e um estudo sério hoje sobre ela não pode ser feito sem o olhar para o de JOYCE, e
é assim que a língua cresce. Por que esse poder constituído é estranho numa sociedade
cheia de contrastes. Vimos que a questão do destronamento e da ambivalência da paródia é
sempre retomada e quando no primeiro prefácio de Tutaméia ―Aletria e Hermenêutica‖
ROSA aproxima CERVANTES de CHAPLIN ele está mostrando esse destronamento da
linearidade. No texto ele diz o seguinte:
E que, na prática de arte, comicidade e humanismo atuem como
catalizadores ou sensibilizantes ao alegórico espiritual e não-prosaico, é
verdade que se confere de modo grande. Risada e meia? Acerte-se nisso em
Chaplin e em Cervantes. Não é chiste rasa coisa ordinária; tanto seja porque
escancha os planos da lógica, propondo-nos realidades superiores e
dimensões para mágicos novos sistemas de pensamentos. (Rosa, 1985, p. 7).
Com isso, ele nos mostra a paródia fazendo com que a contaminação dos gêneros
ocorra não podendo mais haver diferenças. Um conto ou prefácio de ROSA não é mais um
conto instituído como tal, ele tem elementos críticos, poéticos, filosóficos tendo que
determinar a sua contaminação. O humor como sendo um recurso paródico é um humor
desconfiado por que não se mostra completamente, ele não se desvincula do sério, como
no ―mundo às avessas‖. A paródia pode ser considerada, de alguma maneira, um tipo de
visão especular que a imagem original se apresenta invertida, reduzida e ampliada e de
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acordo com a lente utilizada. Essa lente é o repertório, ou melhor, é a técnica para ver o
que está sendo parodiado, é o jogo do espelho ou a câmara de ecos que Severo Sarduy nos
apresenta no seu estudo sobre o Barroco. Outra coisa que ainda pode-se observar no texto
paródico é a sua autonomia, já que ele coloca em movimento o novo modelo passa a viver
a sua própria vida independente do que foi parodiado. Ao falar do velho para falar do novo
de novo, recua-se no tempo para esse avançar.
Para sintetizar e como mais um exemplo de conceituação da paródia, sendo esse o
último, mostraremos o que o professor Flávio R. Kothe no seu texto ―Paródia & Cia‖ na
referida revista diz sobre a paródia: ―Paródia, segundo o étimo significa ―Canto Paralelo‖: é
um texto que contém outro texto em si do qual ela é uma negação, uma rejeição e uma
alternativa. Ela geralmente diz o que o outro texto deixou de dizer e ela insiste no fato de
não ter sido dito. A paródia é um texto duplo, pois contém o texto parodiado e, ao mesmo
tempo, a negação dele. Ela é, portanto, a síntese de uma contradição, dando prioridade para
a antítese, em detrimento de tese proposta pelo texto anterior parodiado.
A paródia procura rebaixar um texto, um estilo, uma escola; a estilização, que,
como a paródia, também tem alguma outra obra ou tendência anterior como referência
diferencia-se por que procura criar uma obra que seja de nível mais elevado e que não viva
mais apenas para negar algo anterior e apenas como negação de algo anterior.
A paródia ―vive‖ num estado de tensão, pois indica o ―seu‖ ódio e o ―seu‖ desprezo
para com o texto parodiado (de fato, porém, ela indica o ódio e o desprezo de seu autor e
da tendência artística e ideologia a que ele pertence) e, ao mesmo tempo, ela denota o seu
parentesco para com o texto parodiado. Quanto mais a paródia apresenta ser semelhante
ao texto parodiado, tanto mais ela procura mostrar através da aparência de identidade a
diferença radical de enfoque: isso ocorre, porém numa fase em que aquilo que o texto
parodiado representa ainda tem muita força sobre quem o parodia.
―A paródia é um gesto de fechamento para o passado e de abertura para o futuro
ou, mais exatamente, fechamento para certo tipo de produção do passado e de abertura
para algum novo tipo de produção futura.‖ (Kothe, 1980, p. 97).
Finalizando o ensaio e nunca querendo esgotar o assunto pretendo dizer que nosso
objetivo foi tentar esboçar uma reflexão sobre a paródia através desses textos e chegar a
pelo menos uma conclusão que a paródia se constrói e se relaciona com todo tipo de
discurso literário e que faz da sua própria produção o objeto da indagação da realidade
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estabelecida. E que essa questão da paródia ou metalinguagem por um lado aponta para a
citação, reminiscência – intertextualidade e por outro para a intratextualidade que é a
relação do texto com ele mesmo, com sua estrutura interna seja ela fonética, morfológica
ou sintática. Para exemplicarmos como isso se dá observemos esses dois exemplos de
ROSA no conto ―Lá, nas Campinas‖ – ORFANDANTE junção de orfão + andante e
UTOPIEDADE junção de utopia + piedade mexendo na estrutura da língua a
resignificando-a.
A utilização da paródia hoje apesar de acenar sempre para o conceito de
BAKHTIN, aponta também para a questão estrutural da língua mostrando sua significação,
resignificação e principalmente reconstrução do código até chegar ao seu saturamento e é
isso que estamos chamando de procedimento barroco. E é isso que Guimarães Rosa faz
com a língua, a processa através de um ritual antropofágico de devoração da palavra,
absorvendo-a e a devolvendo metamorfizada, ou melhor, relapidada com as facetas
retrabalhados sob ângulos diferentes daqueles anteriormente apresentados. ROSA fez o
que os grandes ícones da linguagem, como Dante, Rabelais, Shakeapeare e Joyce, fizeram
com as suas línguas a modificaram para enriquecê-las.
Rosa é esse autor-crítico-poeta consciente do seu papel e que nos apresenta sempre
o novo de novo. A sua literatura é vida e está em toda parte. Guimarães Rosa vivia em
estado de literatura e sua obra-testamento Tutaméia representa uma síntese do seu
pensamento e de suas leituras, ela mostra sua busca pela tradição que vai de Cervantes a
Chaplin, de Homero a Joyce. Como ele mesmo diz sobre a obra em questão através do seu
amigo Paulo Rónai no artigo que está no como apêndice:
Ele me segredou que dava a maior importância a este livro, surgido em seu
espírito como um todo perfeito não obstante o que os contos
necessariamente tivessem de fragmentário. Entre estes havia inter-relações
as mais substanciais, as palavras todas eram medidas e pesadas, postas no
seu exato lugar, não se podendo suprimir ou alterar mais de duas ou três em
todo o livro sem desequilibrar o conjunto.‖ (Rosa, 1985, p. 216).
BIBLIOGRAFIA
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BAKHTIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra.
2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Unversitária, 1997.
KOTHE, Flávio R. ―Paródia & Cia‖ in: Revista Tempo Brasileiro – sobre paródia. Julho –
Setembro de 1980 (62).
ROSA, João Guimarães. Ficção Completa, em dois volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,
1994.
__________ . Magma. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.
__________ . Tutaméia: terceiras estórias. 6ª.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
SARDUY, Severo. ―O Barroco e o Neobarroco‖ in: América em sua literatura. Org. César
Fernández Moreno. São Paulo: Perspectiva, 1979. (Col. Estudos. Literatura Unesco 52).
SILVA, Francisco Ivan da. “A Expressão Barroca na Literatura Brasileira” In: Revista
FACE – Revista de Comunicação e Semiótica PUC-SP – número especial do Barroco. Org.
Samira Chalhub. São Paulo, 1994.
SPERA, Jeane Mari Sant‘Ana. As ousadias verbais em Tutaméia. São Paulo: Editora
Arte & Cultura – UNIP, 1995. (Coleção Universidade Aberta, v.10).
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7.
LUTO E ALEGORIA EM “A HORA E A VEZ DE AUGUSTO
MATRAGA”
Paulo Henrique da Silva Gregório
(Universidade Federal do Rio Grande do Norte)
Em suas obras, Guimarães Rosa se utiliza do elemento regional, o sertão, para tratar
de temas de caráter universal, nos quais o homem aparece como centro, e nesse sentido, as
questões inerentes à existência humana adquirem relevância em meio à produção ficcional
do autor. Não se pode deixar de ressaltar, no entanto, o trabalho que ele empreende com a
linguagem, apresentando ao leitor um linguajar tipicamente sertanejo, carregado de
regionalismos, marcas da oralidade e neologismos. É por meio desse linguajar que ele
elabora os conflitos, as dúvidas, vivenciados por Riobaldo, em Grande Sertão: veredas; o
confronto entre Primo Argemiro e Primo Ribeiro por causa do amor a uma mulher, em
―Sarapalha‖; a relação entre loucura e abandono em ―A terceira margem do rio‖, dentre
inúmeros outros exemplos que se poderiam mencionar.
A produção ficcional rosiana compreende romances e coletâneas de contos, dentre
as quais pode ser destacada Sagarana, na qual estão incluídas os dois últimos contos
supracitados. Além destes, o volume é formado por outros sete, podendo-se considerar
como mais importante ―A hora e a vez de Augusto Matraga‖, em que se centrará a
abordagem do presente artigo. Para Candido (1991, p. 247), essa é a ―obra-prima do livro‖,
tendo em vista que Rosa, ―deixando de certo modo a objetividade da arte-pela-arte, entra
em região quase épica de humanidade e cria um dos grandes tipos de nossa literatura‖.
Nessa obra, o autor traz à tona a história de Nhô Augusto Esteves, um homem
que, pela posse de bens e por seu comportamento imperativo e violento, passou a ser
respeitado e até mesmo temido pelos habitantes do povoado do Murici. Era casado com
Dinória e possuía uma filha, Mimita, mas não tinha o menor respeito e a mínima
consideração pelas duas, uma vez que lhes dava pouca atenção e vivia se envolvendo com
outras mulheres. Certa vez, foi surpreendido com a notícia de que elas o tinham
abandonado, fugindo com um outro homem, Ovídio, que nutria um forte sentimento por
Dinória. Decidido a matar os dois, convocou os seus capangas, mas eles não viriam:
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estavam trabalhando para o Major Consilva, seu rival. Furioso, dirigiu-se à chácara do
Major para fazer o acerto de contas, acabando por ser espancado e quase morto pelos excapangas, marcado com ferro em brasa, atirando-se, por fim, em um barranco.
Foi encontrado por um preto, que, juntamente com sua esposa, cuidou dele até a
recuperação parcial, depois da qual, orientado por um padre, decidiu mudar de vida e partir
em busca da sua ―hora e sua vez‖. Mudou-se para o povoado do Tombador, onde passou a
viver como um bom cristão, fazendo orações e ajudando aos outros, mas depois de
passado algum tempo resolveu partir, alegando que precisava buscar pela sua ―vez‖ em
outros lugares. Assim, guiado por um jumento, acabou chegando em um povoado próximo
ao do Murici, onde morre, depois de um confronto com Joãozinho Bem-Bem, que também
acaba morrendo. O povo passa a considerá-lo um santo, e ele é aclamado pela coragem de
ter enfrentado Bem-Bem, temido em toda aquela região.
A trajetória da personagem pode ser dividida em três fases: na primeira, é posto em
relevo o seu comportamento libertino e desenfreado; na segunda, observa-se a mudança de
postura e o desejo de buscar a salvação para a alma; por fim, no estágio em que parte em
busca de sua ―hora‖ e ―vez‖, a personagem é impulsionada a agir em função de dois
impulsos, relacionados às outras duas fases, os quais passam a se manifestar de modo
equilibrado. É a partir dessa divisão que se pretende analisar o referido conto, de modo a
inseri-lo na problemática referente ao Barroco, buscando-se perceber o modo como o luto
se instala na narrativa, bem como a relação entre este e as questões relacionadas ao
alegórico e à melancolia. A análise está ancorada, principalmente, nos estudos de Walter
Benjamin acerca do drama barroco alemão, nos quais ele traz à tona concepções acerca de
alegoria, luto e melancolia, que fornecerão subsídios para que se compreenda como esses
elementos se apresentam na obra rosiana em questão. Pretende-se, também, observar
certos aspectos por meio dos quais se pode afirmar que existem pontos de contato entre tal
obra e o drama barroco.
Augusto Esteves e o plano da matéria
O que aqui se denomina primeira fase da personagem vai do início da narrativa até
o ponto em que é espancada e marcada com ferro em brasa pelos capangas do Major
Consilva, atirando-se, logo em seguida, em um penhasco. Já em sua primeira aparição no
conto, Augusto Esteves é apresentado pelo narrador como um homem de índole
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imperativa, que impunha a sua superioridade aos habitantes do povoado do Murici. O
respeito e até certo temor que estes lhe destinavam eram devidos não só à posição de
destaque da qual gozava em decorrência da posse de muitos bens, como fazendas e terras,
mas também ao modo violento com que costumava agir quando eram impostos
empecilhos aos seus objetivos. Vejamos o fragmento abaixo, em que ele aparece
determinado a arrematar uma prostituta exposta em um leilão.
E, aí, de repente, houve um deslocamento de gentes, e Nhô Augusto,
alteado, peito largo, vestido de luto, pisando pé dos outros e com braço em
tenso, angulando os cotovelos, varou a frente da massa, se encarou com a
Sariema, e pôs-lhe o dedo no queixo. Depois, com voz de meio-dia, berrou
para o leiloeiro Tião:
– Cinqüenta mil-réis!... (ROSA, 2001, p. 364).
Ele se desloca em meio ao povo tal qual um animal disposto a agarrar sua presa. O
modo como age diante da Sariema, que parece indicar a supremacia do predador diante da
fragilidade da presa, bem como o berro que solta para o leiloeiro revelam instintos
primitivos, animalescos, da individualidade da personagem. Suas atitudes, nessa primeira
fase, não entram em consonância com regras morais, leis, tampouco preceitos religiosos,
pois o que importa para Nhô Augusto Esteves é a manutenção do seu desejo de potência,
de superioridade, no contexto em que estava inserido. Como um típico homem profano,
encontrava o verdadeiro prazer na vida de libertinagem junto aos capangas e às prostitutas,
ou quando ia ―em busca de qualquer luz em porta aberta, aonde houvesse assombro de
homens, para entrar no meio ou desapartar‖ (ROSA, 2001, p. 368), esbanjando sua
valentia. Tal conduta pode ser compreendida como um ―berro‖ contra qualquer tipo de
repressão ao seu desejo de experimentar sensações. No fragmento que segue, o narrador
aponta os principais traços característicos da individualidade da personagem:
E ela [Dinória] conhecia e temia os repentes de Nhô Augusto. Duro, doido
e sem detença, como um bicho grande do mato. E, em casa, sempre
fechado em si. Nem com a menina se importava. Dela, Dinória, gostava, às
vezes; da sua boca, das suas carnes. Só. No mais, sempre com os capangas,
com mulheres perdidas, com o que houvesse de pior. Na fazenda – no
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Saco-da-Embira, nas Pindaíbas, ou no retiro do Morro Azul – ele tinha
outros prazeres, outras mulheres, o jogo do truque e as caçadas. (ROSA,
2001, p. 368-369).
Outro traço marcante que revela o modo de ser mundano e desregrado da
personagem é o seu impulso para matar. ―Para isso, sim, ele prestava muito‖ (ROSA, 2001,
p. 369), conforme assinala o narrador. Geralmente agindo por vingança, Nhô Augusto não
hesita levar à morte alguém que, por exemplo, tenha ameaçado a sua honra, ou então
contrariado seus desígnios, como foi o caso do abandono por parte da mulher e dos
capangas, deixando-o furioso e decidido a fazer o acerto de conta com todos eles, assim
como fica evidenciado no trecho abaixo:
Nele, mal-e-mal, por debaixo da raiva, uma idéia resolveu por si: antes de ir
à Mombuca, para matar o Ovídio e a Dinória, precisava de cair com o Major
Consilva e os capangas. Se não, se deixasse o resto por acertar, perdia a
força. E foi. (ROSA, 2001, p. 373).
É sempre a obsessão de manter a força, de não se sentir em desvantagem, que o leva
a agir de forma vil, principalmente quando se trata de eliminar seus adversários, aqueles que
haviam se apropriado daquilo que lhe pertencia. O Quim Recadeiro, diante da resolução
tomada pelo seu senhor, faz questão de alertá-lo acerca dos perigos aos quais estava
exposto, tendo em vista os comentários que andavam sendo feitos a respeito dele: ―[...]
estão dizendo que o senhor nunca respeitou filha dos outros nem mulher casada, e mais
que é que nem cobra má, que quem vê tem de matar por obrigação...‖ (ROSA, 2001, p.
373). Assim, percebe-se a maldade como aspecto também marcante nessa primeira fase da
personagem, maldade essa que, somada à vontade de vingança, faz com que não hesite
avançar sobre seus inimigos, mesmo na iminência de ser aniquilado pelo ―Major Consilva
mais outros grandes‖ (ROSA, 2001, p. 372), tal qual assinala o narrador neste fragmento:
[...] quase qualquer um capiau outro, sem ser Augusto Estêves, naqueles dois
contratempos teria percebido a chegada do azar, da unhaca, e passaria umas
rodadas sem jogar, fazendo umas férias na vida: viagem, mudança, ou
qualquer coisa ensossa, para esperar o cumprimento do ditado: ―Cada um
tem seus seis meses...‖
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Mas Nhô Augusto era couro ainda por curtir, e para quem não sai, em
tempo, de cima da linha, até apito de trem é mau agouro. (ROSA, 2001, p.
373).
Nem mesmo no momento em que está sendo brutalmente espancado pelos seus excapangas ele demonstra passividade, visto que ―urrava e berrava, e estrebuchava tanto, que
a roupa se estraçalhava, e o corpo parecia querer partir-se em dois, pela metade da barriga.‖
(ROSA, 2001, p. 374-375). Esse processo de fragmentação por que passa o corpo de Nhô
Augusto são os primeiros indícios de uma nova fase que se inicia para ele, na qual,
destituído de sua força, depois de ser ferido mortalmente e marcado com ferro em brasa,
precisa assumir uma nova postura diante da vida. O próprio ato de se atirar do alto de um
penhasco parece representar não só a queda física, mas também a moral, e, nesse sentido, o
fundo do penhasco seria como um mundo desconhecido no qual ele estava imergindo.
Nhô Augusto: confronto entre alma e matéria
Depois de ser encontrado por um preto, Nhô Augusto passa a ficar sob os cuidados
dele e de sua esposa, os quais moravam na boca do brejo. Depois que toma consciência do
estado em que seu corpo se encontra, e vendo-se impossibilitado de nutrir qualquer desejo
de vingança, torna-se triste, melancólico, chegando, inclusive, a recorrer a Deus, o que não
era acostumado a fazer até então. Sentindo-se pecador, revela o desejo de receber a
absolvição dos pecados, o qual é atendido por meio do intermédio dos pretos, que
providenciam um encontro entre ele e um padre. Este recomendou-lhe que esquecesse a
mulher, renunciasse à vingança, fizesse penitência, trabalhasse em prol dos outros, e
acrescentou: ―[...] Modere esse mau gênio: faça de conta que ele é um poldro bravo, e que
você é mais mandante do que ele...‖ (ROSA, 2001, p. 380). Por fim, o reverendo proferiu
as últimas palavras, as quais ficaram incrustadas na mente de Nhô Augusto:
– Reze e trabalhe, fazendo de conta que esta vida é um dia de capina com
sol quente, que às vezes custa muito a passar, mas sempre passa. E você
ainda pode ter muito pedaço bom de alegria... Cada um tem a sua hora e a
sua vez: você há de ter a sua.‖ (ROSA, 2001, p. 380).
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Assim, em busca de sua ―hora‖ e ―vez‖, a personagem adota uma nova forma de
vida, mudando-se para um lugar isolado, o povoado do Tombador, ―onde, às vezes, pouco
às vezes e somente quando transviados de boa rota, passavam uns bruaqueiros tangendo
tropa, ou uns baianos corajosos migrando rumo sul‖. (ROSA 2001, p. 382). Esse
isolamento da personagem se configura como um declínio sofrido por ela, pois não
dispunha mais do status de que gozava outrora. O seu corpo estava destruído e, portanto,
não tinha força para se insurgir contra aqueles que foram responsáveis pela sua ruína. Tal
situação parece entrar em consonância com a questão da alegoria segundo Benjamin (1984,
p. 188), para o qual o cerne da visão alegórica consiste na ―exposição barroca, mundana, da
história como história mundial do sofrimento, significativa apenas nos episódios do
declínio.‖ Nesse sentido, a destruição física do corpo de Nhô Augusto pode ser
interpretada como uma alegoria do próprio fragmento a que ele foi reduzido depois da sua
queda, precisando renunciar a toda aquela posição de supremacia para se apegar apenas a
um ideal de libertação. Assim, ele
não fumava mais, não bebia, não olhava para o bom-parecer das mulheres,
não falava junto em discussão. Só o que ele não podia era se lembrar de sua
vergonha; mas, ali, naquela biboca perdida, fim-de-mundo, cada dia que
descia ajudava a esquecer. (ROSA, 2001, p. 383).
Era inútil trazer de volta à memória a ―vergonha‖ oriunda do declínio sofrido,
principalmente porque isso só faria com que a personagem pensasse em vingança, o que
poderia desviá-la do desejo de buscar pela ―hora‖. Assim, lembrar-se de certos eventos
dificultaria ainda mais o processo de mudança ao qual estava se submetendo, processo esse
cujo principal fator era justamente domar o ―mau gênio‖, tal qual aconselhara o padre. Mas
esse mal parecia estar na iminência de, a qualquer momento, apoderar-se completamente de
Nhô Augusto e, por esse motivo, ele o combatia, sendo esse o único meio de garantir a
própria existência, tendo em vista que, para ele, ―a vida já se acabara, e só esperava era a
salvação da sua alma e a misericórdia de Deus Nosso Senhor. Nunca mais seria gente!‖
(ROSA 2001, p. 380). Essa situação da personagem entra em consonância com a
concepção de dobra barroca, principalmente no que diz respeito ao confronto entre alma e
matéria. De acordo com Deleuze (1991, p. 23) ―dobrar é diminuir, reduzir, ‗entrar no
afundamento de um mundo‘.‖ O autor assinala ainda que o traço do barroco ―é a dobra
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que vai ao infinito. Primeiramente, ele diferencia as dobras segundo duas direções, segundo
dois infinitos, como se o infinito tivesse dois andares: as redobras da matéria e as dobras na
alma.‖ (DELEUZE, 1991, p. 13). Nesse sentido, pode-se afirmar que a individualidade da
personagem estava fragmentada em dois planos principais: o do passado, relacionado à
matéria; e o do presente, relacionado à alma, ao desejo de buscar pela ―hora‖ e ―vez‖.
Mas para que o plano da matéria não triunfasse, era preciso dobrá-lo, diminuí-lo,
reduzi-lo, já que parecia impossível a sua extinção por completo, visto ser algo impregnado
na essência do ser de Nhô Augusto. Essa matéria representava para ele a queda, o declínio
e, portanto, corresponder aos desejos dela seria permanecer na mesma situação. Conforme
assinala Deleuze (1991, p. 57), o mundo barroco ―organiza-se de acordo com dois vetores,
o afundamento em baixo e o impulso para o alto.‖ Em consonância com essas ideias,
Benjamin (1984, p. 47) afirma que a ―alegoria se instala mais duravelmente onde o efêmero
e o eterno coexistem mais intimamente‖, ou seja, a fonte da inspiração alegoria reside no
―choque entre o desejo de eternidade e a consciência aguda da precariedade do mundo‖
(GAGNEBIN, 2004, p. 37).
A questão do fragmento se torna mais evidente quando Nhô Augusto passa a
transitar entre os planos do bem e do mal, referentes ao efêmero e ao eterno,
respectivamente. O marco inicial desse transe é a ocorrência de alguns eventos ocorridos
depois que ele já está aparentemente acostumado com a vida de servilismo e isolamento,
como a visita de Tião e a chegada do bando de Joãozinho Bem-Bem no povoado do
Tombador. O primeiro trouxe notícias sobre Dinória, Mimita, o Major Consilva e até o
Quim, as quais não agradaram em nada o outro. Dinória ainda estava vivendo com Ovídio,
pensando até em casar; a filha havia se tornado prostituta; o Major se apropriara de
algumas de suas terras; e o Quim morrera baleado por tentar vingar a ―morte‖ do patrão.
Este, abalado depois dessas notícias, parecia tomado por uma força que o levaria a
abandonar toda aquela espera pela hora da libertação, tanto que precisou se apegar à
jaculatória do coração manso e humilde, bem como se ajoelhar e rejurar: ―– P‘ra o céu eu
vou, nem que seja a porrete!...‖ (ROSA, 2001, p. 385). Mas, mesmo assim,
daí em seguida, ele não guardou mais poder para espantar a tristeza. E, com
a tristeza, uma vontade doente de fazer coisas mal-feitas, uma vontade sem
calor no corpo, só pensada: como que, se bebesse e cigarrasse, e ficasse sem
trabalhar nem rezar, haveria de recuperar sua força de homem e seu acerto
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de outro tempo, junto com a pressa das coisas, como os outros sabiam
viver. (ROSA 2001, p. 385).
Parecia difícil para Nhô Augusto se desprender completamente de seu passado para
ter de viver ―escondido, encostado, que nem como se tivesse virado mulher‖...‖ (ROSA,
2001, p. 386). Só num outro plano, que não o terreno, é que teria de volta a sua ―força de
homem‖, e, segundo os preceitos cristãos pregados pelo padre, apenas por meio da
renúncia às práticas do passado é que esse outro plano poderia ser atingido. Em uma
conversa com a preta Quitéria, ele diz: ―– Tem horas que eu fico pensando que, ao menos
por honrar o Quim, que morreu por minha causa, eu tinha ordem de fazer alguma
vantagem...Mas eu tenho medo... Já sei como é que o inferno é, mãe Quitéria...‖ (ROSA,
2001, p. 387). O inferno, nesse caso, pode ser interpretado como aquela condição à qual
estava submetido, fazendo com que se sentisse um desgraçado. Esse sentimento pareceu
tomar uma proporção ainda maior depois da chegada do bando de Joãozinho Bem-Bem,
pois Nhô Augusto enxergava nesses homens, principalmente no chefe, um retrato de si
próprio, de sua valentia de outrora, e, comparando-se com eles, chegou à conclusão de que
Aqueles, sim, que estavam no bom, porque não tinham de pensar em coisa
nenhuma de salvação de alma, e podiam andar no mundo, de cabeça em
pé... Só ele, Nhô Augusto, era quem estava todo desonrado, porque, mesmo
lá, na sua terra, se alguém se lembrava ainda do seu nome, havia de ser para
arrastá-lo pela rua da amargura... (ROSA, 2001, p. 397).
Como se vê, Nhô Augusto se considera um desgraçado sempre a partir de uma
comparação com o passado, no qual ele era honrado, respeitado, e até mesmo temido. Essa
relação entre presente e passado nos direciona para uma análise acerca da ideia da perda,
tão presente nessa fase em que a personagem esteve no povoado do Tombador, e também
na sua terceira e última fase, quando, finalmente, atinge a sua ―hora‖ e ―vez‖.
Luto e alegoria na redenção de Augusto Matraga
O luto, segundo a concepção benjaminiana, ―é o estado de espírito em que o
sentimento reanima o mundo vazio sob a forma de uma máscara, para obter da visão desse
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mundo uma satisfação enigmática‖. (BENJAMIN, 1984, p. 162). Nessa mesma perspectiva,
Gagnebin (2004, p. 39) afirma que a
linguagem alegórica extrai sua profusão de duas fontes que se juntam num
mesmo rio de imagens: da tristeza, do luto provocado pela ausência de um
referente último; da liberdade lúdica, do jogo que tal ausência acarreta para
quem ousa inventar novas leis transitórias e novos sentidos efêmeros.
No caso de Nhô Augusto, a perda da sua força de homem, da família, dos capangas,
das terras, e da própria honra fez com que ele se apegasse ao ideal de libertação. Mas a
ausência desses elementos o tornaram triste, e, tendo em vista a relação desse sentimento
com a questão da perda, pode-se afirmar que a personagem entra em estado de luto. Este
passa a se manifestar de modo mais acentuado após o recebimento das notícias
transmitidas por Tião, quando Nhô Augusto passa a se mostrar triste, como podemos
perceber neste fragmento, no qual ele expressa o seu sentimento a mãe Quitéria: ―Já fiz
penitência esses anos todos, e não posso ter prejuízo deles! Se eu quisesse esperdiçar essa
penitência feita, ficava sem uma coisa nem outra... Sou um desgraçado, mãe Quitéria, mas o
meu dia há-de-chegar!...‖ (ROSA, 2001, p. 387).
Conforme assinala Pereira (2007, p. 47), o sentimento de luto aponta para a
―nostalgia de uma ordem histórico-temporal, simbólica, quantitativamente distinta da que
se apresenta ao homem lingüístico, profano, como única possível – todavia não satisfatória
– do mundo das coisas.‖ Nesse sentido, envolto no luto oriundo das perdas que sofreu,
Nhô Augusto passa a esperar pela sua ―hora‖ e ―vez‖, que pode ser associada a um resgate
de certos elementos com a honra, cuja ausência era motivo de lamentação para ele. Essa
falta se configura como um sinal de luto, ao qual está atrelada a melancolia, oriunda da
tristeza da personagem quando se deparava com elementos daquela primeira fase. Assim,
tendo em vista o confronto que passou a vivenciar entre alma e matéria, era primordial o
triunfo da primeira, pois sendo a outra sinal da queda, do declínio, só pelo viés do plano
espiritual poderia ser alcançada uma nova ascensão.
Ascender pelo viés do espírito representava, para Nhô Augusto, a incorporação dos
preceitos cristãos recomendados pelo padre. Mas ele, enquanto matéria, era impulsionado a
renegar esses preceitos e corresponder aos desejos da carne, dentre os quais a vontade de
vingança era o principal. Percebemos, aí, um paradoxo: a personagem é a única responsável
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pela sua transcendência, mas, enquanto simples criatura, era destituída dessa
transcendência. Assim, a sua consciência dessa fragilidade pode ser compreendida como
mais um fator para a manifestação do estado de luto e melancolia.
Benjamin (1984, p. 165), a partir da ideia de que o ―príncipe é o paradigma do
melancólico‖, considera Hamlet uma obra que, por excelência, incorpora os traços próprios
do drama barroco. Nesse sentido, tendo em vista as considerações que estão sendo tecidas
acerca de luto e melancolia no conto rosiano, parece pertinente traçarmos um paralelo
entre Nhô Augusto e o personagem homônimo da supracitada obra shakespeariana. De
acordo com Benjamin (1984, p. 180), no ―drama barroco, somente Hamlet é espectador
das graças de Deus; mas o que elas representam para ele não lhe basta, pois apenas seu
próprio destino lhe interessa.‖ Do mesmo modo, podemos afirmar que Nhô Augusto, ao
dobrar seus instintos maléficos e assumir uma vida de servilismo, tem como principal
interesse menos ajudar ao próximo do que buscar a própria libertação. Quanto a Hamlet,
passa a transitar entre o ser e o não ser, depois que é designado pelo fantasma do próprio
pai para vingar a morte dele: ―Se você algum dia amou seu pai... [...] Vinga esse
desnaturado, infame assassinato‖. (SHAKESPEARE, 2006, p. 31). O príncipe, por sua vez,
aceita esse desígnio, cujo cumprimento corresponde ao destino da personagem, como
podemos perceber neste fragmento:
[...] vou apagar da lousa da minha memória
Todas as anotações frívolas ou pretensiosas,
Todas as idéias dos livros, todas as imagens,
Todas as impressões passadas,
Copiadas pela minha juventude e observação.
No livro e no capítulo do meu cérebro
Viverá apenas o teu mandamento,
Sem mistura com qualquer matéria vil. (SHAKESPEARE, 2006, p.
33).
Para Hamlet, conforme assinala Nemer (2002), matar ―ou morrer não faz a menor
diferença. O que está em jogo é a honra. Vingar-se, essa é a questão.‖ O luto de que essa
personagem se reveste está associado à perda do pai, e, nesse caso, a vingança surgiria
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como uma compensação para essa perda, como se por meio da morte do assassino do Rei
Hamlet fosse ocorrer um resgate dos tempos em que este último governava. Mas,
contrariamente, a realização do plano de vingança representa a aniquilação do próprio
Hamlet. ―Sua vida, objeto do seu luto, aponta, antes de extinguir-se, para a Providência
cristã, em cujo regaço suas tristes imagens passam a viver uma existência bem-aventurada‖,
conforme assinala Benjamin (1984, p. 180).
Do mesmo modo, a morte, para a personagem rosiana, representa, ao mesmo tempo,
aniquilamento e redenção. Quando combate com Joãozinho Bem-Bem em defesa de um
homem do qual este queria se vingar, Nhô Augusto corresponde a impulsos referentes à
alma e à matéria: ao matar Bem-Bem com um golpe de faca revela a sua essência de
homem violento, valente; ao fazê-lo em nome de alguém que lhe havia pedido socorro em
nome de Jesus Cristo e da Virgem Maria, traz à tona traços como a misericórdia e a
compaixão, próprios do espírito que busca a salvação eterna, segundo os preceitos cristãos.
Esse jogo entre alma e matéria, sagrado e profano, fica evidente neste fragmento, em que a
personagem anuncia o início do confronto com o chefe dos jagunços: ―– Epa!
Nomopadrofilhospritossantamêin! Avança, cambada de filhos-da-mãe, que chegou a minha
vez!...‖ (ROSA, 2001, p. 410).
Após o confronto, quando ambos os homens estão mortalmente feridos, perdoam-se
mutuamente, atitude que reforça a ideia do jogo entre alma e matéria vivenciado pela
personagem. Nos últimos instantes de vida, fez questão de proclamar, com o rosto
radiante: ―– Perguntem quem é aí que algum dia já ouviu falar no nome de Nhô Augusto
Esteves, das Pindaíbas!‖ (ROSA, 2001, p. 412). Parecia que a grande recompensa seria a
aclamação por parte das pessoas, o reconhecimento do seu ato, como se por meio disso
sentisse a restituição completa de sua ―homência‖ (ROSA, 2001, p. 385), tal qual um
retorno àquela posição primordial. O próprio lugar onde ocorre o desfecho da narrativa, no
povoado próximo ao Murici, onde ela havia se iniciado, pode remeter a essa ideia do
retorno. Foi no Murici que Nhô Augusto perdeu sua potência, e foi lá que ele recuperou-a,
daí a questão da circularidade na trajetória dessa personagem. Conforme assinala Pereira
(2007, p. 5),
o uso recorrente da palavra redenção, assim como outros termos correlatos
de mesmo teor semântico, tais como restauração, recuperação, reabilitação e
a própria rememoração, indicam, cada um à sua maneira e de antemão, uma
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perda fundadora que condiciona o objeto e sua representação. Isso remete
para o sentimento que funda um pensamento que se dirige insistentemente
para o resgate dessa ordem primeira que se perdeu.
Quanto à morte, configura-se como ―a grande fantasmagoria barroca, seu tema
principal, ela representa a danação de todas as coisas, a depreciação gradativa do corpóreo
em relação ao incorpóreo.‖ (PEREIRA, 2007, p. 6). Essa depreciação era, para Nhô
Augusto, motivo de gozo, principalmente porque, ainda em vida, pôde ver a sua figura
associada à de um santo, pelo homem em nome do qual ele entrara em confronto com
Joãozinho Bem-Bem: ―– Traz meus filhos, para agradecerem a ele, para beijarem os pés
dele!... Não deixem esse santo morrer assim...‖ (ROSA, 2007, p. 412). A personagem tornase, assim, Augusto Matraga, que é o sinal da degradação do corpóreo, o qual se reduz ao
nada, conforme aponta o narrador no início do conto: ―Matraga não é Matraga, não é nada.
Matraga é Esteves. Augusto Estêves, filho do Coronel Afonsão Esteves, das Pindaíbas e do
Saco-da-Embira. Ou Nhô Augusto – o homem‖ (ROSA, 2001, p. 363).
Essa primeira apresentação da personagem entra em consonância com a concepção
do alegórico, principalmente no que diz respeito ao par ser e não ser, dizer uma coisa para
significar outra, aspectos esses próprios da alegoria. A ―hora‖ e ―vez‖ representam o
momento em que ela alcançaria uma nova ascensão, mas pelo viés do espírito, visto o
estado de degradação de seu corpo. Assim, renegando a sua essência profana, Nhô
Augusto parte em busca do que seria a salvação de acordo com a visão cristã, mas, na
verdade, a força para permanecer nessa busca não provém dos céus, mas do desejo de
restabelecer – ao menos no plano da honra, da moral – um passado perdido, daí a ideia do
luto. Isso fica evidente em um sonho tido por ele, ―no qual havia um Deus valentão, o mais
solerte de todos os valentões, assim parecido com seu Joãozinho Bem-Bem, e que o
mandava ir brigar, só para lhe experimentar a força‖ (ROSA, 2001, p. 398). Esse Deus
assume uma feição completamente distinta da que é veiculada pelo cristianismo, podendo
ser essa imagem considerada, portanto, mais um retrato do conflito entre alma e matéria
vivenciado pela personagem.
É a partir da observação de aspectos como o luto e a alegoria que se pode afirmar
que ―A hora e a vez de Augusto Matraga‖ apresenta pontos de contato com o drama
barroco alemão, tal qual o apresenta Walter Benjamin. No prefácio de A origem do drama
barroco alemão, Rouanet (1984, p. 18) aponta que esse gênero ―designa a tristeza de um
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homem privado da transcendência (pois com ela a vida não seria absurda), numa natureza
desprovida da Graça‖, e esses traços se fazem presentes na trajetória da personagem
rosiana, conforme pudemos perceber ao longo da análise. Além disso, a relação que
estabelecemos entre o conto e o Hamlet shakespeariano – obra exponencial do drama
barroco, segundo Benjamin – parece corroborar a pertinência de se buscar estabelecer
relações entre a obra rosiana em questão e aquele gênero.
Nesse conto, Guimarães Rosa, ao trazer à tona esse jogo entre alma e matéria, acaba
por representar algo inerente ao ser humano, o eterno conflito de forças com que
normalmente se depara, precisando escolher entre certo ou errado, bem ou mal, orientado
por forças que se opõem. Muitas vezes, dada a impossibilidade de escolha, vê-se obrigado a
se apegar à única opção restante, embora precise dobrar a sua essência e se fragmentar sob
o véu da aparência. Assim, muito mais do que contar uma história, Rosa, nesse conto,
representa algo inerente ao homem, fazendo com que a experiência de leitura possa
funcionar como um verdadeiro convite ao leitor a refletir sobre a própria existência.
REFERÊNCIAS
CANDIDO, Antonio. Sagarana. In: COUTINHO, F. Eduardo (Org.). Guimarães Rosa.
2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991. p. 243-247.
BENJAMIN, Walter. A origem do drama barroco alemão. Tradução de Sergio Paulo
Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984.
DELEUZE, Gilles. A dobra: Leibniz e o barroco. Tradução de Luiz B. L. Orlandi.
Campinas: Papirus, 1991.
GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Alegoria, Morte, Modernidade. In: ______. História e
narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 2004. p. 31-53.
NEMER, Sylvia R. B. Hamlet e a melancolia: uma tentativa de interpretação a partir da
teoria de Walter Benjamin. Semiosfera, ano 2, n. 1, 2002. Disponível em: <
http://www.semiosfera.eco.ufrj.br/anteriores/semiosfera02/perfil/mat5/frmat5.htm>.
Acesso em: 15 out. 2010.
PEREIRA, Marcelo de Andrade. Barroco, Símbolo e Alegoria em Walter Benjamin.
Revista Analecta, Guarapuava, v. 8, n. 2, p. 47-54, 2007.
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ROSA, João Guimarães. A hora e a vez de Augusto Matraga. In: ______. Sagarana. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
ROUANET, Sergio Paulo. Prefácio. In: BENJAMIN, Walter. A origem do drama
barroco alemão. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984.
SHAKESPEARE, William. Hamlet. Tradução de Millôr Fernandes. Porto Alegre: L&PM,
2006.
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8. ENTRE AS FRATURAS DO SUJEITO BAR/ROSIANO EM TUTAMÉIA E
NO LIVRO SOBRE NADA
Robeilza de Oliveira Lima
(Universidade Federal do Rio Grande do Norte/Instituto Federal de Ciência e Tecnologia
do Rio Grande do Norte)
Guimarães Rosa, num curto intervalo de cerca de dez anos, publicou várias obras,
entre as quais está Tutaméia, que é conhecida por seu caráter fragmentário, embora seja
capaz de formar um todo concatenado e repleto de significado. Essa obra rosiana, por sua
natureza fragmentária, nos remete à escritura de Manoel de Barros, a qual chega a ser, por
vezes, aforística. Uma das obras em que isso se manifesta de forma mais evidente é o Livro
sobre nada.
O estilhaçamento presente nas duas obras referidas acima afeta também a
construção das personagens. Em contos como ―Desenredo‖ e ―Reminisção‖, os quais
integram Tutaméia, observamos que circulam personagens amantes e amadas, vivendo de
forma intensa a magia do amor ―e seu milhão de significados‖ (ROSA, 2001, p. 169). Essas
personagens são ambíguas, múltiplas como o sentimento que as envolve. Em ―Desenredo‖,
exemplifica isso o caso da personagem Livíria que, além desse nome, recebe três outros
nomes diferentes (Rivília, Irlívia e Vilíria), conforme observamos no fragmento abaixo:
Chamando-se Livíria, Rivília ou Irlívia, a que, nesta observação, a Jó
Joaquim apareceu. [...] Apanhara o marido a mulher: com outro, um
terceiro [...] Imaginara-a jamais a ter o pé em três estribos [...] Jó
Joaquim e Vilíria retomaram-se, e conviveram, convolados, o
verdadeiro e melhor de sua útil vida (ROSA, 2001, p. 72-75).
Essa ―plurinomeação‖ tem uma estreita relação com o caráter multifacetado da
personagem. Os três primeiros nomes remetem à situação nada estável e transparente, em
que ela possui um marido e dois amantes. Assim, Livíria é Rivília não deixando de ser
também Irlívia. Mesmo sendo denominada de Vilíria apenas num momento posterior (após
a volta para Jó Joaquim, ex-amante e atual marido), pela simples troca na posição das letras,
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a personagem pode assumir a última identidade facilmente. Em suma, ela é todas de uma
só vez, reversivelmente.
Uma outra forma de compreender essa variação de nomes é através da simbologia de
cada um deles. Em um estudo sobre o conto ―Desenredo‖, Vera Novis (1989) explicita
muito bem a ambivalência da personagem Livíria, a partir de uma relação com a
personagem Anna Livia Plurabelle de James Joyce, da obra Finnegans Wake. Novis
(1989) justifica a relação, afirmando que a variação de nomes em Rosa se assemelha àquela
que se faz presente em Joyce no que tange à simbologia. Segundo Novis (1989, p. 131-132):
Livíria remete a Lívia e retoma a imagem de lírio, símbolo da pureza
do feminino. Rivília traz à lembrança a imagem de rio,
simultaneamente curso d‘água e curso do tempo, e também de ilha.
Irlívia remete a Irlanda, evidentemente não como espaço geográfico
real, mas como referência ao espaço mito-poético no qual Joyce fez
circular sua mulher-rio [...] o processo utilizado por Rosa na
nomeação de sua personagem é bastante semelhante ao de Joyce:
fazer variar a posição das letras ou das sílabas de uma palavra, criando
novos conjuntos sonoros (outras palavras) que permitam novas
associações semânticas sem anular as anteriores. A Lívia de Joyce é
simultaneamente lírio (Lily, lilybit), rio (liffey, liffy, Missisliffi) e
também Irlanda ou Dublin (Irish, doublin).
A partir das palavras de Novis (1989), podemos dizer que a Livíria de Rosa encarna
todos os símbolos abstraídos da Lívia joyciana e apresenta o mesmo princípio de
construção. A mulher-lírio é também mulher-rio e ainda aquela que está ambientada num
espaço mito-poético, onde a imaginação atua como força motriz.
Mas, não é somente em ―Desenredo‖ que encontramos, de maneira prodigiosa, esse
traço de multiplicidade, ele também se sobressai em ―Reminisção‖ com: ―Nhemaria, mais
propriamente a Drá, dita também a Pintaxa‖ (ROSA, 2001, p. 126). Nesse conto, os nomes
apontam para metamorfoses expressas na mudança de comportamento e de aspecto físico
por que vai passando a personagem:
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Divulgue-se a Drá: cor de folha seca escura, estafermiça, abexigada,
feia feito fritura queimada, ximbé-ximbeva; [...] Medonha e má; não
enganava pela cara [...] Não o deixava ela, enxerente, trabalhar nem
lazer; ralhava a brados surdos [...] Todo o tempo o atanazava, demais
de cenhosa, caveirosa, dele, aquela, mulher mandibular. [...] De por aí,
embora, seresma ela se aquietou, em desleixo e relaxo [...] Vivia e
gemia – paralelamente. Chamou-a então Pintaxa o bufo do povo. [...]
Da Drá, num estalar de claridade, nela se assumia toda a
luminosidade, alva, belíssima, futuramente... o rosto de Nhemaria
(ROSA, 2001, p. 126-129).
Drá se metamorfoseia em Pintaxa e num momento posterior em Nhemaria. Drá é
descrita como alguém ―feia feito fritura queimada‖, ―medonha e má‖, ―cenhosa, caveirosa‖,
uma ―mulher mandibular‖, conforme vimos acima. Pensando na feiúra e maldade dessa
personagem, podemos entender o nome Drá como uma redução da palavra dragão, a qual
pode remeter a um monstro fabuloso muito conhecido no horizonte ficcional, como
também a uma pessoa de má índole. Na Bíblia, por exemplo, esse é um dos nomes usados
para fazer referência ao próprio Satanás, o qual é apresentado como inimigo de Deus e de
todo o bem.
Entretanto, Drá, num instante, não mais que num instante de lampejo, torna-se uma
manifestação de luminosidade e beleza, a ponto de receber posteriormente o nome de
Nhemaria, o qual se subtraído do prefixo Nhe nos faz ter uma visão da virgem Maria, cujos
atributos conferidos pela tradição cristã, especificamente o catolicismo, a eleva a uma
condição de pureza e santidade que a torna uma mediadora entre Deus e os homens. O
próprio nome Maria, por significar nobre, senhora, já aponta para uma elevação. Assim,
Nhemaria representa a ascensão do mundo profano de Drá. Tal ascensão já era
prenunciada pelo próprio espaço em que a Drá vivia: ―Cunhãberá, destinado lugar, onde o
mal universal cochila e dá o céu um azul do qual emergir a Virgem‖ (ROSA, 2001, p. 126).
Drá, no entanto, antes que viesse a assumir a aparência de Nhemaria,
metamorfoseou-se em Pintaxa. O narrador diz que Romão (marido dela) a chamou de
Pintaxa, quer dizer, ―o bufo do povo‖. Um dos significados do vocábulo bufo é coruja,
que, por ser uma ave noturna, pode ser associada ao saber, à meditação. A palavra bufo
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também pode ser entendida como sinônimo de misantropia. Dessa forma, Pintaxa pode ser
considerado um estágio intermediário, de recolhimento para dentro de si, estágio de
meditação. É interessante notar que o ser Pintaxa não faz Drá perder sua aparência feia e
repugnante. A palavra seresma, usada pelo narrador para se referir à fase Pintaxa, indica
muito bem isso. Mas algo parece se processar no interior da Drá, pois ela que antes
atanazava a toda hora o Romão, agora se aquieta e chega a gemer, provavelmente
remoendo suas culpas.
Mas a ascensão da personagem Drá pode ser enganosa. Na visão de Paulo Rónai
(2001, p. 25), Romão, ―ao morrer, transmite por um instante aos demais a enganosa
imagem que dela formara‖. As metamorfoses descritas acima não passariam então de uma
criação de Romão, ―amante obstinado de uma megera‖ (RÓNAI, 2001, p. 25). A
imaginação e o amor dessa personagem seriam assim o fator decisivo para que as
transfigurações ocorressem. Essa possibilidade de interpretação só vem a reforçar o caráter
ambíguo da Drá, cuja imagem luminosa pode se quebrar facilmente com a morte do
amante inveterado.
Tal interpretação também opera uma transfiguração de Romão diante dos olhos do
leitor, pois ele deixa de ser o mero ―Romão, meão, condicionado, normalote‖ (ROSA,
2001, p. 127) para se desvelar como sujeito de grande densidade que tem ―em si uma certa
matemática [...] [e cogita] súbitos, encobertos acontecimentos‖ (ROSA, 2001, p. 127) em
seu íntimo. Ele, que vivia ―a tragar borras‖ com a enxerente Drá, a qual ―não o deixava[...]
trabalhar nem lazer; ralhava a brados surdos[...] todo o tempo o atanazava‖ (ROSA, 2001,
p. 127), ―com pelejos de poeta, [...] troca pesares por prazeres‖ (ROSA, 2001, p. 128) e
transfigura a Drá em outra que é o inverso: Nhemaria.
À semelhança do que ocorre com Drá, Livíria, quer dizer Rivília, ou melhor Irlívia,
em fim, Vilíria também experimenta uma dúbia ascensão, na qual tem grande importância a
personagem Jó Joaquim. Para compreendermos isso, lembremos do personagem bíblico Jó,
apresentado como um ―homem íntegro e reto, temente a Deus e que se desviava do mal‖
(Bíblia Sagrada, 1993, p. 537). Segundo a Bíblia, ele orou e três de seus amigos foram
inocentados, tendo seus pecados perdoados por Deus45.
45
[...] o Senhor disse também a Elifaz, o temanita: a minha ira se acendeu contra ti e contra os teus dois
amigos; porque não dissestes de mim o que era reto, como o meu servo Jó. Tomai, pois, sete novilhos e
sete carneiros, e ide ao meu servo Jó, e oferecei holocaustos por vós. O meu servo Jó orará por vós;
porque dele aceitarei a intercessão, para que eu não vos trate segundo a vossa loucura; porque vós não
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De acordo ainda com o relato bíblico, Elifaz, Bildade e Zofar, os três amigos do
patriarca Jó, durante o período em que ele foi acometido de lepra, falaram de Deus de uma
forma errônea. Isso está explícito no intrigante diálogo de Jó com seus três amigos que
perpassa quase todo o livro atribuído pela tradição cristã a Moisés. Num diálogo do próprio
Deus com um dos três amigos, Elifaz, fica evidente o desagrado do Senhor pelos amigos
do patriarca e a recomendação do próprio Deus de que ofereçam sacrifícios por si e ainda
peçam a Jó para que interceda por eles, através da oração. No final da conversa, é dito que
o ―Senhor aceitou a oração de Jó‖. A razão para a aceitação também é apresentada: Jó é
―íntegro e reto, temente a Deus‖, ou seja, é justo e obediente.
A descrição de Jó Joaquim remete ao personagem bíblico Jó: ―[...] era quieto,
respeitado, bom como o cheiro de cerveja.‖ (ROSA, 2001, p. 72). O que ele fez em prol de
Livíria também. É Jó Joaquim quem vai levar a cabo a tarefa de inocentá-la perante o
vilarejo em que morava: ―Cumpria-lhe descaluniá-la, obrigava-se por tudo. [...] Sem malícia,
com paciência, sem insistência, principalmente‖ (ROSA, 2001, p. 74). A razão que motiva o
Jó rosiano é o amor que devota à sua amada: ―Celebrava-a, ufanático, tendo-a por justa e
averiguada, com convicção manifesta. Haja o absoluto amar – e qualquer causa se irrefuta‖
(ROSA, 2001, p. 75). E assim, ele consegue ―inocentá-la‖: ―Soube-se nua e pura. Veio sem
culpa‖ (ROSA, 2001, p. 75). Ele faz tal proeza por sua devoção em dizer para todos,
inclusive para si mesmo: ―Nunca tivera ela amantes! Não um. Não dois. Disse-se e dizia
isso Jó Joaquim‖ (ROSA, 2001, p. 74).
Impulsionado por suas ―defeituosas emoções‖, as quais emergiram quando ele ficou
―derrubadamente surpreso‖ de saber que a mulher amada estava com ―o pé em três
estribos‖ (a saber, tinha, além do marido, dois amantes, dos quais ele era um), Jó Joaquim
resolve se afastar fisicamente de Irlívia. Esse distanciamento o faz imaginá-la ―sempre ou
ao máximo mais formosa‖ (ROSA, 2001, p. 73). Morto o marido, Jó se casa com Livíria,
mas a alegria dele não dura muito, pois logo ele a flagra com outro. Esse ―abominoso‖
momento o faz expulsá-la, ―apostrofando-se como inédito poeta e homem‖ (ROSA, 2001,
p. 74). Desde então, diz o narrador, o nosso Jó, ―que desejava a felicidade - idéia inata‖
(ROSA, 2001, p. 74), de tanto ―sofrer e amar‖, dedicou-se a ―redimir a mulher‖. Mas nesse
dissestes de mim o que era reto, como o meu servo Jó. Então, foram Elifaz, o temanita, e Bildade, o suíta,
e Zofar, o naamatita, e fizeram como o Senhor lhes ordenara; e o Senhor aceitou a oração de Jó. (Bíblia
Sagrada, 1993, p. 566).
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gesto, Jó Joaquim usa não só a devoção, mas também a imaginação, ―o inebriado engano‖,
o engenho do poeta:
Nunca tivera ela amantes! [...] Demonstrando-o, amatemático, contrário
ao público pensamento e à lógica, desde que Aristóteles a fundou. [...] O
ponto está em que o soube, de tal arte: por antipesquisas, acronologia
miúda, conversinhas escudadas, remendados testemhnhos. Jó Joaquim,
genial, operava o passado – plástico e contraditório rascunho. Criava,
transformada realidade, mais alta. Mais certa? (ROSA, 2001, p. 74)
Pensando na associação feita por Vera Novis (1989) de Irlívia com a Irlanda poética
de Joyce, podemos dizer que Jó Joaquim se distancia de Livíria, de Rivília, mas se aproxima
de Irlívia via poesia, o que culmina com a transfiguração da amada. Assim, o Jó rosiano
remete ao Jó bíblico, todavia, ao mesmo tempo se distancia, pois não maneja mais a fé
deste, mas a imaginação. Ele é outro Jó, é o que se banha nas águas da poesia e consegue
dar o vôo da liberdade criativa que é cara ao próprio autor.
As ascensões experimentadas por Livíria e Drá podem ser associadas à doutrina
alegórica da redenção do objeto no campo da significação, pelo que tanto uma quanto a
outra, ao passarem por essa ascese aceitam a salvação que o alegorista Rosa lhes oferece, a
qual só ocorre em termos semânticos. Elas precisam também ser apreendidas em termos
ambíguos, pois o nome Vilíria, como bem disse Novis (1989), remete à vileza e à pureza a
um só tempo. Nhemaria pode ser não mais do que fruto da imaginação de Romão,
conforme nos alerta Rónai (2001).
Nesse movimento, em que ―o mundo profano é ao mesmo tempo exaltado e
desvalorizado‖ (Benjamin, 1984, p. 197), existe uma dialética que é elementar na expressão
alegórica, a qual implica em dizer que ―cada pessoa, cada coisa, cada relação pode significar
qualquer outra.‖ (Benjamin, 1984, p. 197). Tal dialética, segundo Walter Benjamin (1984, p.
199), se manifesta porque ―a ambiguidade, a multiplicidade de sentidos é o traço
fundamental da alegoria. A alegoria, o Barroco, se orgulham da riqueza das significações.
Mas essa ambiguidade é a riqueza do desperdício‖ (BENJAMIN, 1984, p. 199).
Tudo isso nos motiva a dizer que Livíria, Drá, bem como Jó Joaquim e Romão são
personagens alegóricas, barrocas por excelência. Sua ambiguidade denuncia que elas são
seres fraturados, cujas variações e metamorfoses revelam sua natureza descontínua.
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Somente seres fraturados podem adquirir a ambivalência que essas personagens adquirem,
pois, conforme afirma Jean Baudrillard (2003, p. 48), ―passa-se algo na falha das coisas, na
brecha e, portanto, em sua aparição‖. De acordo com esse autor, a brecha, isto é, a fratura,
tem uma relação estreita com o fragmento e esse, por sua vez, tem um lado enigmático, que
consiste no desafio à interpretação ou nas múltiplas e inesgotáveis interpretações. É entre
as fraturas dessas personagens que emerge a profunda ambiguidade alegórica que as
integra. Não é fortuito que, segundo Benjamin (1984), diferentemente do símbolo, a
alegoria se constitui a partir do ―fragmento amorfo‖ e irrompe das entranhas, onde moram
os segredos do ser.
Tomando como ponto de partida que Livíria, Drá, bem como Jó Joaquim e Romão
são personagens barrocas, podemos entender essas fraturas como resultado de uma tensão
existencial presente também na modernidade. Lembrando as palavras de Afonso Ávila
(1978, p. 17): ―o homem barroco e o do século XX são um único e mesmo homem
agônico, perplexo, dilemático, dilacerado‖. Mas, conforme Ávila (1978, p. 19), o homem
barroco (e, por extensão, o moderno), especialmente o artista, encontrou no jogo:
[...] a saída instintiva que teve para deter, ainda que ilusoriamente, o lento
escoar de sua situação absurda no mundo [...] jogou tanto ao elaborar a
sua arte, [...] personalizando melhor que o homem de qualquer outro
período a imagem do homo ludens de Huizinga. Aqui novamente o seu
parentesco com o homem moderno, notadamente o da crise de apósguerra, o existencialista do primeiro momento sartriano na sua atitude de
auto-alienação, de demissão, de descompromisso de viver-a-vida.
Para que entendamos a noção de homo ludens, é importante frisar que Johan Huizinga
(2008, p. 6-7) esclarece, em seu estudo, que seu interesse maior é abordar o jogo ―como
forma específica de atividade, como ‗forma significante‘, como função social‖, isto é, como
elemento cultural da vida. Huizinga (2008, p. 7) explica também que o jogo é apreendido
―em sua significação primária [baseada] [...] na manipulação de certas imagens, numa certa
‗imaginação‘ da realidade (ou seja, a transformação desta em imagens)‖.
Assim, o jogo lúdico a que se refere Ávila (1978) pode ser entendido como sinônimo
do jogo alegórico a que procede Guimarães Rosa ao construir suas personagens. Esse jogo
é empreendido pelos próprios personagens Jó Joaquim e Romão. O primeiro, quando
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deixa que o ―firme fascínio‖ de Vilíria o levante de seu ―decúbito dorsal‖ e o faça
ultrapassar seu dolorido franciscanato. O segundo, quando usa sua imaginação para
converter ―pesares em prazeres‖. Nesse gesto, segundo o próprio Rosa (2003, p. 38),
personagens e autor se unem ―querendo subir à poesia e à metafísica, juntas, ou com uma e
outra como asas, ascender a incapturáveis planos místicos‖. Eles constroem uma realidade
mais alta, nova, como diria o narrador de ―Desenredo‖, mas talvez não mais certa.
Como acontece em Tutaméia, as personagens do Livro sobre nada também são
fraturadas e ambíguas. Para averiguarmos como isso se concretiza no universo ficcional de
Manoel de Barros, tomemos como referência as personagens Mano Preto, Catre-Velho e
Bernardo.
À semelhança de muitos outros personagens que aparecem no universo barreano,
Mano Preto é um indivíduo no limiar do não humano. Seu estatuto humano é posto em
questão. Sobre ele é dito: ―Mano Preto não tinha entidade pessoal, só coisal‖ (BARROS,
2004, p. 15). As perguntas feitas por ele são repletas de ilogismo, o que aponta para sua
dimensão fraturada, mas ao mesmo tempo poética, tendo em vista que elas aludem à
brincadeira, ao jogo, o qual, para Huizinga (2008), é irracional e é o solo onde a poesia tem
fincadas suas raízes de maneira profunda.
Mano Preto é capaz de ter um olhar outro – o da poesia - sobre o cotidiano e, em
especial, sobre as coisas da natureza. Percebemos então que, ironicamente, é dito que ele só
tinha ―entidade[...] coisal‖, já que o vemos fazendo perguntas que revelam uma fina
sensibilidade para perceber as coisas aparentemente sem importância, que passam
despercebidas ao ―homem empalhado‖, ―coisificado‖ pela linguagem e pelos costumes
sociais cristalizados. Seres mínimos, que normalmente não são notados, são enxergados por
ele, através de um olhar outro, renovado e renovador. O pequeno passarinho e o
minúsculo inseto ganham destaque e importância: são matéria de poesia, como transparece
nos trechos abaixo:
Mano Preto perguntava: Será que fizeram o beija-flor diminuído só para
ele voar parado? (BARROS, 2004, p. 11)
Mano Preto aproveitou: Grilo é um ser imprestável para o silêncio.
(BARROS, 2004, p. 15)
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É por meio do olhar transfigurador da poesia que ―os sabiás divinam‖, ou seja, as
coisas ínfimas são enxergadas em sua grandeza. É assim também que as coisas
aparentemente simples ganham complexidade. O próprio Mano Preto adquire o estatuto da
grande poesia, a qual, de acordo com Octavio Paz (1982, p. 15), é uma ―operação capaz de
transformar o mundo‖, revelando-o e criando outro. Mano Preto, que é uma criança (no
poema ―Diário de Bugrinha (excertos)‖, a mãe dessa aparece batendo no Mano Preto, o
que indica tratar-se de uma criança) habitante do brejo pantaneiro, cria uma linguagem
nova (o que alguns críticos chamam de infância da linguagem) e, com isso, engendra um
nova realidade, na qual moram os encantos da poesia. Na linguagem barreana, ocorre o que
Octavio Paz (1982, p. 25-26) afirma a respeito do poema:
a linguagem recupera sua originalidade primitiva, mutilada pela redução
que lhe impõem a prosa e a fala cotidiana. A reconquista de sua natureza
[...] afeta os valores sonoros e plásticos tanto como os valores
significativos. A palavra, finalmente, em liberdade, mostra todas as suas
entranhas, todos os seus sentidos e alusões.
Daí, como diz ainda Octavio Paz (1982), o entusiasmo do poeta é o da criança diante
das descobertas da linguagem. Confirma isso o contexto em que Mano Preto disse que
―Grilo é um ser imprestável para o silêncio‖: enquanto estava à mesa com a família e com
um doutor que vem de fora. Como sabemos, muitas crianças costumam falar daquilo que
as deixa admiradas quando estão diante de pessoas que não fazem parte de seu convívio.
Elas parecem querer, com isso, extravasarem toda a sua alegria diante das novas
descobertas. O poeta se assemelha um pouco à criança, ao dividir suas invenções de
linguagem com o leitor.
Diferentemente de Mano Preto, a personagem Catre-Velho traz à tona a noção de
velhice. Ele é um cantador e violeiro, cujo nome já carrega a noção de algo imprestável. A
personagem Bugrinha diz que ele é ―confortável para moscas‖. Mais adiante, num poema a
ele dedicado, é dito que ele ―é um traste pessoal à-toa‖, ―não vale um cabelo‖ e ―não serve
nem pra remendo‖, como fica evidente na transcrição abaixo:
2.I.I926
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Catre-Velho é um ser confortável para moscas. Ele nem espanta
algumas. (BARROS, 2004, p. 32)
Catre-Velho é um traste pessoal à-toa.
Nossa mãe falava:
Não vale um cabelo.
Não serve nem pra remendo.
Só presta pra cantar e tocar violão. (BARROS, 2004, p. 25)
A personagem Catre-Velho traz para a escrita barreana a dimensão das coisas que se
tornaram desprovidas de função, por estarem velhas, isto é, em deterioração, em ruínas.
Catre-Velho é o rejeitado, o abandonado, o que não tem serventia, pelo menos, dentro da
visão utilitarista que predomina em nossa sociedade capitalista. Afinal, ele ―presta pra
cantar e tocar violão‖ (BARROS, 2004, p. 25). Ele tem ―uma voz de harpas destroçadas‖.
(BARROS, 2004, p. 25). A palavra destroçada remete a três palavras importantes para
compreendermos essa personagem: despedaçada, rasgada e dilacerada. Catre-Velho é um
ser em pedaços, dilacerado por conflitos internos.
Conforme nos diz o próprio poeta Manoel de Barros, ―só a alma atormentada pode
trazer para a voz um formato de pássaro‖ (BARROS, 2004, p. 75) e Catre-Velho tem a
alma assim, pois até ensina como ter grandezas na voz. A construção dessa personagem é
eminentemente barroca, pois: ―o que jaz em ruínas, o fragmento significativo, o estilhaço:
essa é a matéria mais nobre da criação barroca‖ (BENJAMIN, 1984, p. 200). Pelas imagens
que o revestem e pelo caráter inédito dessas imagens, Catre é, como Antônio Ninguém,
uma espécie de ―ruína concupiscente‖ (BARROS, 2004, p. 79), ou seja, um resto, um
fragmento carnal, lascivo, sensual. Além disso, por ele ensinar que ―a voz de um cantador
tem que chegar a traste para ter grandezas...‖ (BARROS, 2004, p. 25), isto é, que a
condição para a voz de um cantador ser nobre é alcançar o imprestável, ele tem a antinomia
na voz. Sendo esse ser barroco, ele é também uma expressão do fragmentado homem
moderno, o qual, segundo o próprio Manoel de Barros (2009), em entrevista concedida a
André Barros: ―não tem mais as grandes unidades, como Deus‖.
Catre-Velho é também aquele que reúne em si tudo aquilo que é rechaçado pela
sociedade moderna, cuja lógica predominante é a do capitalismo, a qual consiste em
valorizar somente o que pode se converter em moeda de troca. Por isso mesmo, ele é uma
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expressão de destaque dentro da lírica moderna, a qual, como nos lembra Theodor Adorno
(2003), é uma expressão do antagonismo social, mas, ao mesmo tempo, tem em sua base
uma corrente subterrânea coletiva. Dessa forma, ao incorporar as coisas que a sociedade
―pisa‖ e ―joga fora‖ (BARROS, 2001, p. 13), Catre-Velho expressa o desejo latente de cada
indivíduo que compõe a sociedade de fazer oposição aos valores utilitaristas que se
impõem no convívio social como regras de conduta.
Outro personagem que nos chama a atenção por seu caráter ambíguo, embora exiba
uma aparente simplicidade, é Bernardo. Ele é assemelhado, inicialmente, a um joãoninguém, ―passarinho que vive no cisco‖ e logo adiante é mencionado como aquele que
ensinou à personagem Bugrinha a ―infantilizar formigas‖. Ele também é apresentado como
um ser capaz de falar com pedra, nada e árvore. Isso é o que fica patente nos versos a
seguir:
22.I
O nome de um passarinho que vive no cisco é joão-ninguém. Ele parece
com Bernardo. [...]
2.3
Bernardo me ensinou: Para infantilizar formigas é só pingar um
pouquinho de água no coração delas. [...]
I.I0
Bernardo fala com pedra, fala com nada, fala com árvore. As plantas
querem o corpo dele para crescer por sobre. Passarinho já faz poleiro na
sua cabeça (BARROS, 2004, p. 29-30).
Entre os significados da palavra cisco, está o de lixo. Daí, podemos deduzir que
Bernardo, como o joão-ninguém, é um ser que vive no lixo ou, pelo menos, nos restos, nos
rejeitos, e procura retirar deles algo para seu proveito. É dessa vivência que ele aprende a
―infantilizar formigas‖. Mas Bernardo adentra num estágio mais profundo, ele começa a
falar a linguagem das pedras e das árvores. Falando essa linguagem, ele fica à mercê das
plantas, se confundindo com elas, afinal, ―passarinho já faz poleiro na sua cabeça‖. Com
isso, ele acaba se colocando no limiar do não-humano, do irracional. Mais que isso, o ser
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parece estar no limite do não ser, já que fala até com nada. As palavras da mãe de Bugrinha,
segundo as quais ele ―é bocó. Uma pessoa sem pensa‖ (BARROS, 2004, p. 31), confirmam
muito bem essa idéia. Pelo menos, é certo o seguinte: esse ser não pode existir com base no
princípio ―penso, logo, existo‖. Ao mesmo tempo, Bernardo é um ser dotado de sabedoria
vegetal, a qual, nas palavras de Barros (2004, p. 51), ―é receber com naturalidade uma rã no
talo‖.
Quando lemos a obra barreana O guardador de águas, observamos alguns detalhes
interessantes que nos ajudam a compreender ainda melhor a personagem Bernardo.
Primeiro, ele é chamado de ―Bernardo da Mata‖. Segundo, ele é apresentado como um ser
capaz de fazer muitas peraltices, como ―encolher o horizonte/ No olho de um inseto‖
(BARROS, 2006, p. 10). Terceiro, ―como a foz de um rio ­ Bernardo se inventa‖
(BARROS, 2006, p. 10). Quarto, ele ―escreve escorreito‖ ―o Dialeto-Rã‖ (BARROS, 2006,
p. 20). Quinto, ele tem, no quintal, uma ―Oficina de Transfazer Natureza‖ (BARROS,
2006, p. 20).
Com essas características, Bernardo é capaz de se transfigurar no próprio Manoel de
Barros. Ele pode ser enxergado como um duplo do autor. Pensando no grande motivo do
livro em pauta: a água, podemos entender essa mata como sinônimo de pantanal. As
peraltices são de linguagem, são as do poeta que diz: ―posso dar alegria ao esgoto (palavra
aceita tudo)‖ (BARROS, 2004, p. 49). A invenção a que Bernardo se submete é a
especialidade do próprio autor mato-grossense, o qual, como Bernardo, ―é homem
percorrido de existências‖ (BARROS, 2006, p. 10). A escrita em ―Dialeto-Rã‖ é a do poeta
em O guardador de águas, a qual, no Livro sobre nada se converte no ―idioleto
manoelês archaico‖, o qual ―é o dialeto que os idiotas usam para falar com as paredes e
com as moscas‖ (BARROS, 2004, p. 43). Por fim, a oficina de Bernardo é uma viva
demonstração da oficina poética barreana, a qual, em seu pendor barroco, é capaz de
―perceber na physis [...] o que ela [contém] de heterônimo, incompleto e despedaçado‖
(BENJAMIN, 1984, p. 198) e de jogar com isso habilmente, seguindo o princípio:
Deus deu a forma. Os artistas desformam.
É preciso desformar o mundo:
Tirar da natureza as naturalidades.
Fazer cavalo verde, por exemplo.
Fazer noiva camponesa voar – como em Chagall.
(BARROS, 2004, p. 75)
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Bernardo, como Barros, é um ser que se transfigura e transvê o mundo ao seu redor
pelo poder da imaginação. Na verdade, não só Bernardo, mas também Mano Preto e CatreVelho. Eles são, respectivamente, uma viva recorrência de três motivos muito presentes na
poesia de Manoel de Barros: ele mesmo, a busca pela infância da linguagem e a valorização
dos restos e das coisas ―desimportantes‖. O próprio autor ratifica isso quando diz: ―o tema
da minha poesia sou eu mesmo‖ (BARROS, 2009) e ―tenho um lastro da infância [...], no
meu Livro sobre nada, tem muitos versos que vieram da infância‖ (BARROS, 2009). Ele
também confirma quando começa seu Matéria de poesia, em tom confessional, dizendo:
―todas as coisas cujos valores podem ser disputados no cuspe à distância servem para
poesia‖ (BARROS, 2001, p. 11). É assim que esses personagens se tornam matéria-prima
da poesia de Manoel de Barros, cuja
originalidade [...] consiste em que, recusando grandes temas (o Sublime),
elabora liricamente, com as coisas menores, verdadeiras relíquias de
linguagem. Bem ao modo irônico de Rimbaud, ou Duchamps, transforma a
matéria mais desimportante em poesia. (JÚNIOR, 2001)
Diante do exposto até aqui, podemos dizer que as personagens estudadas são seres
alegóricos, pois, a partir dos motivos mencionados acima, criam uma outra realidade, a
qual, permeada pelo grande ilogismo que dá vez e voz à poesia barreana, aponta para
inéditas possibilidades de sentido, através da rica camada de surpreendentes e vibrantes
imagens. Elas são seres ambivalentes, que perderam sua unidade, humanos no limiar do
inumano, civilizados no limiar do primitivo, seres ―ardentes de resto‖, mas perfazendo-se
novos. Já as personagens rosianas, como vimos antes, são alegóricas em virtude de serem
indivíduos móveis (sujeitos sempre a novas mudanças). As plurinomeadas Drá e Irlívia são
seres metamórficos e multifacetados. Por sua vez, Jó Joaquim e Romão, impulsionados por
suas ―defeituosas emoções‖ e por seu alto poder de imaginação, são contraditórios em sua
trajetória, capazes de reinventar a realidade à sua volta.
É assim que tanto Manoel de Barros quanto Guimarães Rosa trazem para o centro
de seus projetos poéticos seres fragmentados, a saber, barroco/modernos, procurando
descobrir, entre as fraturas desses, os ―sentidos poéticos profundos que os colocam além
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das fronteiras da razão convencional, às margens do inefável, onde a vida, a poesia e a
linguagem se enlaçam, fluindo à procura de infinito‖ (SECCO, 2000, p. 121).
REFERÊNCIAS
ADORNO, Theodor. Palestra sobre lírica e sociedade. In:______. Notas de literatura I.
Trad. Jorge M. B. de Almeida. 34 ed. São Paulo: Duas Cidades, 2003. p. 65-89.
ÁVILA, Afonso. O barroco e uma linha de tradição criativa. In:______. O poeta e a
consciência crítica: uma linha de tradição, uma atitude de vanguarda. São Paulo: Summus,
1978. p. 15-23.
BARROS, Manoel de. Livro sobre nada. 11. ed. Rio de Janeiro: Record, 2004.
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9. A VOLTA DO MARIDO PRÓDIGO: ENTRE O CAMPO E A CIDADE
ARAÚJO, Roberta. D. de. (IFRN) – autora46
PAIVA, Kalina. A. R. de. (IFRN) – coautora47
A vida é ingrata no macio de si; mas transtraz a
esperança mesmo do meio do fel do desespero.
(Guimarães Rosa, Grande Sertão: veredas).
E o que era que eu queria? Ah, acho que não
queria mesmo nada, de tanto que eu queria era –
ficar sendo! (Guimarães Rosa, Grande
Sertão: veredas)
Viajante sem rumo pelas veredas labirínticas deste sertão, um flâneur enredado pelas
tortuosidades deste enigma, a vida.
João Guimarães Rosa é, sem dúvida, um nome de grande importância na história
literária e cultural de nosso país e sua escritura é, na verdade, um labirinto escritural,
matéria-prima de grande valor para a Literatura, pois sabemos que esta sempre se ocupou,
lidou com o estranhamento e as inquietações do homem diante dos mistérios do ser e da
existência.
A Literatura é, pois, a arte da palavra, não da palavra solitária e conciliadora, mas da
palavra inquietante e desagregadora e é essa inquietação que nos interessa neste momento.
Inquietação vivida e vivenciada por Lalino Salãthiel, personagem principal de A volta do
Marido Pródigo, segundo conto de Sagarana, livro de estreia de Guimarães Rosa, publicado
pela primeira vez em 1946.
Traços biográficos de Lalino Salãthiel ou A volta do marido pródigo, segundo Rosa, ―a
46
Roberta Duarte de Araújo é Professora do IFRN, graduada em Letras e mestra em Estudos da
Linguagem pela UFRN. E-mail: [email protected]
47
Kalina Alessandra Rodrigues de Paiva é Professora do IFRN, graduada em Letras, especialista em
Educação e Mestra em Estudos da Linguagem pela UFRN. E-mail: [email protected]
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menos pensada das novelas de Sagarana, a única que foi pensada velozmente, na ponta do
lápis‖. (ROSA, 2001, p. 26).
Escrito em tom mais leve, um tanto quanto irônico, esse conto nos apresenta
Eulálio de Souza Salãthiel, mais conhecido como Lalino Salãthiel. Homem de muito riso e
pouco trabalho.
— Mulatinho descarado! Vai em festa, dorme que-horas, e, quando
chega, ainda é todo enfeitado e salamistrão!… (Vmp, p. 101).48
[…]
Lalino se afasta com o andar pachola, esboçando uns meios passos de
corta-faca, e seu Waldemar o acompanha de olhar complacente.
— Mulatinho levado! Entendo um assim, por ser divertido. E não é
de adulador, mais sei que não é covarde. Agrada a gente, porque é
alegre e quer ver todo-o-mundo alegre, perto de si. Isso, que remoça.
Isso é reger o viver. (Vmp, p. 110).
Lalino Salãthiel é homem falador, tem o dom da palavra, e sempre tira proveito
disso, diante dos outros, sobressaindo aos seus companheiros de trabalho. Os gestos e
atitudes do marido pródigo, entranham-se em sua personalidade de malandro que, por si
só, já o definem como tal. (NOBRE, 2000, p. 30).
Mas o que Lalino queria mesmo era partir em busca da sua satisfação pessoal, ou
seja, ir para o Rio de Janeiro em busca de mulheres bonitas à vontade, iguais às que vira nas
revistas.
Começa então a juntar dinheiro e acaba pedindo uma parte emprestada ao espanhol
Ramiro, alegando necessidade e dizendo-lhe que a mulher ficaria.
Seu Ramiro quis, mas não pôde esquivar-se. Espigado e bigodudo,
arranja um riso fora-de-horas, e faz, apressado, um rapapé:
— Como lhe vão as saúdes, senhor Eulálio? Estava cá aguardando a
sua vinda, a perguntar-lhe se há que haver mesmo uma festinha hoje,
48
Para este trabalho, adotaremos a abreviação Vmp para nos referirmos ao conto Traços biográficos de
Lalino Salãthiel ou A volta do marido pródigo.
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donde os Moreiras… É dizer, a festa, sei que vai ser, mas queria
saber… queria saber se o senhor também…
(Nada importa. Foi o diabo quem mandou o espanhol aqui… Ele tem
muito dinheiro junto, é o que o povo diz.)
— Seu Ramiro, se chegue. Escuta: tenho um particular, muito
importante com o senhor…
— Mas, senhor Eulálio, eu lhe garanto… À ordem, senhor Eulálio…
Que há? O senhor sabe, que, a mim, eu gosto de estimar e respeitar
os meus amigos, e, grande principalmente, as suas famílias
excelentíssimas…
(É preciso um sorriso, um só, senão o espanhol fica com medo. Mas,
depois, fecha-se a cara, para a boa decência…)
— Eu sei, eu sei. Olhe aqui, seu Ramiro: eu quero é que o senhor me
empreste um dinheiro. Uns dois contos de réis… Feito?
— Mas, senhor Eulálio… O senhor sabe… As posses não dão… As
coisas…
Olhe, seu Ramiro… a estória é séria… Eu vou-m‘embora daqui. A
mulher fica… vou me separar… Ela não sabe de nada, porque eu vou
meio assim, de fugido… O senhor em empresta o dinheiro, que é o
que falta. Senão, eu não posso ir… É só emprestado. Daqui a uns seis
meses, lhe pago. Mando. Tenho um emprego bom, arranjei — vou
ser tocador de bonde, no Rio de Janeiro… Se não, eu não posso ir…
(Agora é a hora de uma série de ares.) Sem dinheiro não vou. Não
vou ir… Como é que posso?!… (Vmp, p. 113-114).
Lalino vai embora para o Rio de Janeiro e deixa a mulher, Maria Rita, entregue ou
―vendida‖ ao espanhol. Mas Lalino logo se cansa da vida na cidade grande e das mulheres
de lá.
[…]. As huris eram interesseiras, diversas em tudo, indiferentes,
apressadas, um desastre; não prezavam discursos, não queriam saber
de românticas histórias. A vida… na Ritinha, nem não devia pensar.
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Mas, aquelas mulheres, de gozo e bordel, as bonitas, as lindas mesmo,
mas que navegavam em desafino com a gente, assim em apartado, no
real. Ah, era um outro sistema. Aquilo cansava, os ares. Havia mal o
sossego, demais. Ah, ali não valia a pena. (Vmp, p. 118).
Lalino desejava ir para a cidade grande e assim o fez. A princípio um flâneur,
encantado com a modernidade, com a cidade, o novo. Muitas pessoas, muitas mulheres,
tudo aquilo que vira nas revistas, mas Lalino desperta bruscamente para uma dura
realidade: a correria da cidade grande torna as pessoas apressadas e ―indiferentes‖. ―As
huris eram interesseiras, diversas em tudo [...] um desastre; não prezavam discursos, não
queriam saber de românticas histórias. Realmente, as mulheres da cidade grande não
eram iguais a Ritinha, o tempo delas era diferente, era o tempo da modernidade. Ritinha
representa, portanto, a tradição, não somente pelo fato de estar no campo, mas por trazer
consigo o ideal de família, de porto seguro, de uma mulher cuja função social seria cuidar
da casa, do marido e dos possíveis filhos.
As aventuras de Lalino Salãthiel na capital do país foram bonitas, mas
só podem ser pensadas e não contadas, porque meio houve demasia
de imoralidade. Todavia convenientemente expurgadas, talvez mais
tarde apareçam, juntamente com a história daquela rã catacega, que,
trepando na laje e vendo o areal rebrilhante à soalheira, gritou – ―Eh,
aguão!...‖ – e pulou com gosto, e, queimando as patinhas, deu outro
pulo depressa para trás. (Vmp, p. 118).
Lalino se desilude com a cidade grande, com a falta de sossego e, segundo
Benjamin (1984), essa desilusão é uma alegoria barroca, uma vez que a anulação do sujeito
e a desintegração dos valores e objetos fazem parte do mundo moderno. A riqueza de
imagens existentes na cidade grande chamou a atenção de Lalino Salãthiel que passou a
desejá-las, partindo ao encontro delas, mesmo que para isso tenha precisado ―vender‖ a
própria mulher. Porém, o ―mulatinho levado‖ depara-se com a descontinuidade dessas
imagens e sua fragmentação, as ruínas, a perda dos valores de uma tradição que representa
a própria morte do sujeito, Lalino Salãthiel.
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A alegoria da morte do sujeito, Eulálio, tem início quando este, ao despertar que a
realidade da cidade grande não mais o satisfaz, tenta retornar à situação antiga, procurando
ajeitar-se à sua maneira. Amadurece a custa de decepções; reflete sobre a vida por meio de
uma filosofia desencadeada em virtude das suas ações e conclui que, será melhor voltar
para a mulher, para o campo, a tradição.
Resolve então voltar. — E se eu voltasse p’ra lá? É, volto! P’ra ver a cara que aquela gente
vai fazer quando me ver… Mas sua mulher, Maria Rita, já estava vivendo com o espanhol.
Lalino não vê a possibilidade de ter a sua mulher de volta, mas, com o passar do
tempo, almeja ganhar de volta a consideração do povo do arraial e de sua Maria Rita, pois
assim como Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, Lalino Salãthiel é dotado de uma
esperteza que sempre o leva aonde deseja. Em virtude de seu poder persuasivo, consegue
chegar até o Senhor Major Anacleto, homem de grande prestígio social naquela região, e
lhe aparece a oportunidade de entrar para a política, trabalhando como cabo eleitoral do
Major Anacleto, devido à sua esperteza e inteligência.
Com o passar do tempo, portando-se como excelente cabo eleitoral, ele garante a
vitória ao Major.
Tempos depois, Maria Rita fugiu do espanhol porque estava sendo judiada por
causa do ciúme e vai até a casa do Major, pedindo proteção.
Quando acordou, horas depois, foi a sustos com uma matinada
montante: o mulherio no meio da casa; os capangas, lá fora,
empunhando os cacetes, farejando barulho grosso; e muita gente
rodeando uma rapariga bonita, em pranto, com grandes olhos pretos
que pareciam os de uma veadinha acuada em campo aberto.
Com a presença enérgica do patriarca, amainou-se o rebuliço, e a
moça veio cair-lhe aos pés, exclamando:
— Tem pena de mim, seu Coronel, seu Major!… Não deix‘eles me
levarem! Pelo amor de suas filhas, pelo amor de sua mulher dona
Vitalina… Não me desampare seu Major…
[…]
— Sou a Mulher do Laio, seu Major… Me perdoe, seu Major… Eu
sei que o senhor tem bom coração… Sou uma infeliz, seu Major… É
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o Ramiro, o espanhol, que me desgraçou… Desde que o Laio voltou,
que ele anda com ciúme, só falando… Eu não gosto dele, seu Major,
gosto é do Laio… Bom ou ruim, não tem juízo nenhum, ms eu tenho
amor a ele, seu Major… Agora o espanhol deu para judiar comigo, só
por conta do ciúme… […] Quis me bater, o cachorro! Disse que me
mata, mata o Laio, e depois vai se suicidar, já que está mesmo
treslouco… Então eu fugi, para vir pedir proteção ao senhor, seu
Major. Pela Virgem Santíssima, não me largue na mão dele, seu
Majorzinho nosso! (Vmp, p. 144-145).
Acontece que Major Anacleto chama Lalino, e as mulheres trazem Maria Rita, para
os dois fazerem as pazes. ―O chefam agora é quem se ri, porque a mulherzinha chora de
alegria e Lalino perdeu o jeito‖ (Vpm, p. 149).
Marcas da Oralidade
Ao lermos Guimarães Rosa, deparamo-nos com uma beleza inexplicável. Jogo de
palavras, invencionices, trocadilhos, filosofia, enfim, todo o mundo surpreendente das
estórias49 rosianas, causa-nos impacto, estranhamento.
As manifestações culturais ocorridas nos sertões de Minas Gerais tomam formas
poéticas nas mãos de Rosa, o alquimista da palavra, segundo Eduardo de Faria Coutinho
(1991).
Rosa, entre 1946 e 1967, interveio no paradigma da literatura brasileira, ocorrido a
partir de 1922 no cenário nacional, passando a influenciar no processo de repensar a
tradição narrativa brasileira.
Em carta escrita ao amigo João Condé, revelando os segredos de Sagarana, João
Guimarães Rosa explica por que escolheu sua terra para transformá-la em arte:
49
Segundo Guimarães Rosa, a palavra estória diz respeito à ficcionalidade em si. E que a obra de arte tem
que ser basicamente invenção, acionada pelo mecanismo do imaginário enquanto que história é a narração
dos fatos que supostamente ocorreram, ou seja, qualquer narração da realidade objetiva. Para este
trabalho, adotaremos, portanto, de acordo com proposta rosiana, a palavra estória.
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Àquela altura, porém, eu tinha de escolher o terreno onde localizar as
minhas histórias. Podia ser Barbacena, Belo Horizonte, o Rio, a China, o
arquipélago de Neo-Baratária, o espaço astral, ou mesmo, o pedaço de
Minas Gerais que era mais meu. E foi o que preferi. Porque tinha muitas
saudades de lá. Porque conhecia um pouco melhor a terra, a gente,
bichos, árvores. Porque o povo do interior – sem convenções, ―poses‖ –
dá melhores personagens de parábolas: lá se vêem bem as reações
humanas e a ação do destino: lá se vê bem um rio cair na cachoeira ou
contornar a montanha, e as grandes árvores estalarem sob o raio, e cada
talo do capim humano rebrotar com a chuva ou se estorricar com a seca.
(ROSA, 2001, p. 25).
Em suas viagens de cunho etnográfico pelo sertão de Minas Gerais, Rosa retoma
contato com os costumes, as falas, as estórias, os cantos e as danças do homem do sertão,
sendo, portanto, uma das marcas da sua escritura a mediação entre dois modos de vida, um
rural e tradicional e outro urbano e moderno.
Chega a ser quase impossível falar da obra de Guimarães Rosa, abstraindo-se a
importância da elaboração linguística em busca da revitalização da linguagem. Em sua obra,
as dicotomias entre a modernidade urbana e a cultura tradicional vigentes até então, na
ficção da literatura brasileira, são quebradas, através da fusão dessas polaridades, momento
em que o erudito e o popular, palavra falada e palavra escrita se misturam no mesmo grau
de importância, restaurando o sentido poético, através da exploração das potencialidades da
língua, reinvenção da língua escrita.
Ainda em carta a João Condé, Rosa explica como se deu o início do processo de
sua escritura.
Tinha de pensar, igualmente, na palavra ―arte‖, em tudo o que ela para
mim representava, como corpo e como alma; como um daqueles
variados caminhos que levam do temporal ao eterno, principalmente [...].
Rezei, de verdade, para que pudesse esquecer-me, por completo, de que
algum dia já tivessem existido septos, limitações, tabiques, preconceitos,
a respeito de normas, modas, tendências, escolas literárias, doutrinas,
conceitos, atualidades e tradições – no tempo e no espaço. Isso porque
na panela do pobre, tudo é tempero. E, conforme aquele sábio salmão
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grego de André Maurois: um rio sem margens é o ideal do peixe.
[...]
Aí, experimentei o meu estilo, como é que estaria. Me agradou. (ROSA,
2001, p. 24).
Nos contos de Sagarana, alia-se ao falar do homem do sertão uma linguagem culta,
extremamente elaborada. A arte da narrativa rosiana é marcada pela experimentação
linguística, por frases sintéticas, entrecortadas, pelo discurso justaposto, em oposição à
linearidade utilizada até então por outros escritores. Sendo assim, Rosa rompe com as
estruturas tradicionais, incorporando o ―não-senso‖ da linguagem oral (da poesia),
impondo ao leitor uma lógica particular.
Segundo Simões (1976), a criação das palavras surge da necessidade de se expressar
diante de um novo acontecimento, ou uma outra realidade, tanto por parte do escritor,
quanto por parte do homem comum.
A arte de contar estórias inventadas é própria do protagonista falador, Lalino
Salãthiel, que, dotado de fértil imaginação não se cansa de contar uma estória dentro da
outra.
Para Candido (1993), Sagarana se caracteriza pela paixão de contar. Seus
personagens, contadores de estórias, são inspirados na vivência do povo brasileiro, e,
apesar de absorver algumas experiências da literatura estrangeira, representam uma vivência
nossa, do sertão, e ao mesmo tempo universal, do mundo, dos sertões.
Os contos de Sagarana estão permeados de expressões populares e provérbios,
poetizados pelo autor. Quem não tem brio engorda!/ Quem não trabuca, não manduca. (Vmp, p.
103). Essas expressões populares fazem parte da sabedoria do homem do sertão, assim
como do convívio de Lalino Salãthiel. Sabedoria essa que advém da tradição oral.
Baseada na teoria da oralidade de Zumthor e nos estudos de Cascudo, esta leitura
nos possibilita uma visão da escritura rosiana como representação da literatura modernista,
em que valores como o erudito e o popular estão mesclados num mesmo discurso, sem que
haja, portanto, um distanciamento dessas duas categorias, as quais se apresentam
intrínsecas, proporcionando assim, uma erudição do popular na narrativa rosiana.
Em ―A volta do marido pródigo‖, percebemos a palavra como elemento-chave,
pertencente ao personagem central. Para Nobre (2000), as estórias de Sagarana são
consideradas rapsódias, contos em grande forma que trazem, em seu âmago, a representação poética
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do espírito da realidade de uma região. (NOBRE, 2000, p. 29). De acordo com Nelly Novaes
Coelho (1975), as narrativas de Sagarana transformam-se em poesia, levando o leitor a se
deleitar com esse contato com a palavra/verbo.
―Pau! Pau! Pau!
Pau de jacarandá!…
Depois do cabra na unha,
quero ver quem vai tomar!…
(Vmp, p. 149)
Em todas as estórias de Sagarana, a poesia é presentificada pelo canto, e essas
cantorias representam a cultura desse povo, que as entoa e ouve daqueles a quem
chamamos cantadores, ou, caso nos reportemos à Idade Média, os chamaremos de
trovadores (cantores, músicos e recitadores ambulantes que eram contratados pelo senhor
para divertir a corte através de suas cantigas).
O ouvir/contar e transmitir a outrem o contado e o sabido também de outrem são
próprios de uma cultura. Assim como as dos trovadores, as manifestações orais do
sertanejo, através do contar/cantar, para repassar o sabido e o conhecido, são garantia de
continuidade dessa cultura, é tradição50 como permanência. (MORAIS, 2004).
Em Sagarana, os contadores de estórias são semelhantes aos narradores dos textos
literários populares publicados em folhetos, literatura de cordel, em que existe um
mediador entre a narrativa e o público ouvinte (seja o próprio autor, seja outra pessoa que
memoriza o texto ou, apenas, conta para os presentes). As estórias de Sagarana, assim como
os cordéis, são textos para serem recitados em voz alta, oscilando da leitura à verbalização
50
Cascudo (2006, p. 29) esclarece: Entende-se por tradição, traditio, tradere, entregar, transmitir, passar
adiante, o processo divulgativo do conhecimento popular ágrafo.
Para Cascudo, a tradição reúne elementos de estórias e de história popular, anedotas reais ou sucessos
imaginários, críticas sociais, vestígios de lendas, amalgamados, confusos, díspares, na memória geral.
Confundem com certas superstições. Parece-me articular-se aos ‘rumores’ clássicos, o ‘rumor antigo
conta’, como dizia Camões, uma forma de comunicação de valores indistintos do saber coletivo. Sua
caracterização é compreendida quando uma tradição é equivocada. Quase sempre inicia-se pela frase: ’
— Os antigos diziam…’ Não é uma lenda, nem um mito, fábula ou conto. É uma informação, um dado,
um elemento indispensável para que se possa sentir o conjunto mental de um julgamento antigo, de meio
século, de cem anos, do século XVIII. ‘Como diz o provérbio dos antigos’, lê-se no primeiro livro de
Samuel, XXIV, 13. (CASCUDO, 2006, p. 53).
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oral. Sendo assim, a oralidade se faz imprescindível na constituição do texto escrito, porém
precisa deste para demarcar sua presença.
Ainda no conto em estudo, assim como em todas as estórias de Sagarana,
percebemos que as antinomias escrita x fala, letrado x iletrado, professor x jagunço não são
vistas sob a forma de ambigüidade, e sim, de entrecruzamento, uma ligação entre a
literatura e as raízes profundas do homem. O narrador rosiano dá voz às falas populares, a
elas sede espaço no cenário textual, fazendo a necessária travessia em direção a esse
imaginário, a outras esferas, assim como afirma Bosi (1999, p. 343):
Nessa luta, a obra é tanto mais rica e densa quanto mais intensamente o
criador participar da dialética que está vivendo a sua própria cultura,
também ela dilacerada entre instâncias altas, internacionalizantes e
instâncias populares. (Grifo do autor)
Sendo assim, percebemos que o narrador rosiano, ao contrário da tradição
canônica, vigente até então, dá ensejo à articulação de outras vozes, que de certa forma
haviam sido marginalizadas até o momento (NOBRE, 2000).
Em Sagarana, encontramos o fabulário popular arraigado pela epopéia, momento
em que as culturas popular e erudita se dão as mãos num entrecruzamento de caráter
plural, através da penetração da oralidade na ficção da literatura brasileira, comprovando-se
que, ao invés de diluir-se, enraizou-se no comportamento cultural brasileiro e, de forma
singular, na narrativa rosiana. (NOBRE, 2000).
A terceira margem, por onde se constrói a obra de Guimarães Rosa, não
é um lugar definido, que possamos encontrar e nomear, pois,
propositadamente, joio e trigo, erudito e popular, palavra falada e palavra
escrita se misturam num mesmo grau de importância, como materiais de
construção e de composição. (ALMEIDA, 2003, p. 410).
Ao dizermos que o erudito e o popular e a palavra escrita e a falada se misturam
num mesmo grau de importância, o que talvez seja a marca mais importante da escritura de
Guimarães Rosa, talvez muito mais que uma marca seria o princípio norteador e fundador,
o âmago, quase religioso da sua poética.
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A criação de uma língua própria, que incorpora as diversidades linguísticas e as
técnicas de criação artística produzidas em todos os tempos e, no caso das manifestações
da oralidade, as marcas da cultura popular que persistiram até hoje nos sertões, causa um
rompimento entre os limites e as limitações impostas pelo rigor da gramática dos textos
impressos, fazendo de Rosa, reinventor da língua escrita, ao incorporar a esta o vigor da
língua falada que os séculos de língua escrita haviam enfraquecido. (ALMEIDA, 2003, p. 410).
Diante dessa perspectiva, a trajetória aqui intentada traduziu a possibilidade de uma
(re) leitura do conto Traços biográficos de Lalino Salãthiel ou A volta do marido pródigo, assim
como também nas demais estórias de Sagarana cujo engendramento consubstancia a
multissignificação da palavra lavrada em terra e gente sertaneja, tecida por Guimarães Rosa
com uma linha de expressão e estilo geniais, atingindo uma transcendência ímpar na
história da literatura brasileira.
O estudo sobre o autor e sua obra nos revela uma síntese entre o regionalismo e a
reação espiritualista em nossa literatura. Síntese esta que inclui, além do apreço à
transcendência e a metafísica, a valorização e exploração dos fatos vividos pelo povo
sertanejo, suas estórias e sua cultura, detalhando seus pormenores, indo além do valor
documental, chegando à recriação literária.
Sagarana é um monumento, esculpido em palavras, ao e pelo homem do sertão, que
nos dá testemunho do universo singular desse espaço em que a presença de jagunços se faz
constante nas estradas acompanhada pelo som das cantorias, das cantigas desse povo que
comprova a não inferioridade da literatura oral, fator este que constata que a literatura
brasileira, muitas vezes, recorre a fontes de inspiração na memória do povo. Um mundo de
vivências que habita a linguagem e é um constructo do próprio homem.
A narrativas aqui estudada é uma clara síntese entre o regionalismo e a reação
espiritualista em nossa literatura, entre a modernidade e os valores de uma tradição, cidade
versus campo. A reinvenção da linguagem, associada à sua rara capacidade de contar estórias
e criar seres e situações, se mostra alheia a qualquer experimentalismo estéril. Obra de
caráter essencialmente épico, revela-se como um momento privilegiado da moderna
literatura brasileira, haja vista que Guimarães Rosa faz prosa como se estivesse fazendo
poesia, uma vez que valoriza sobretudo a palavra e busca adequar a linguagem altamente
condensada da poesia a uma cadência e ritmos lógicos, com uma fluência própria da
musicalidade dos versos. Dizemos, pois, que sua narrativa realça a rima e a matéria a ser
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narrada, tornando sua arte não apenas expressão, mas fundamentalmente construção, assim
como a poesia.
Dessa forma, destacamos que antes de qualquer questão filosófica, a abordagem
engendrada neste estudo pretendeu levantar pontos fundamentais sobre a escritura tão
laboriosa e magnífica de Guimarães Rosa. A estrutura textual, as artimanhas presentes no
desenrolar da estória contada, as estratégias utilizadas no plano do enunciado e da
enunciação, a revitalização da linguagem, as diversidades entre a cidade e o campo e o mais
importante de tudo, a magia, associada à profunda harmonização, com que tece o
entrecruzamento entre as culturas popular e erudita, linguagem falada e linguagem escrita,
fazendo parte de um mesmo patamar de construção, a poesia, momento este que as
manifestações da literatura oral se fazem presente.
Dizemos assim que não existe um roteiro prévio para se adentrar na poesia rosiana,
visto que as trilhas e os percursos são inesgotáveis, o que causa-nos, na maioria das vezes,
uma experiência de muita inquietação diante da possibilidade de atravessarmos, ou mesmo,
sermos atravessados pelo grande sertão rosiano, visto que, através da poesia imensurável, da
sabedoria latente, o verdadeiro artista, poeta, consegue, mais uma vez, impulsionar-nos,
homens, a mergulhar, incansavelmente, dentro de si mesmo.
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10. MINHA VIDA DE MENINA: DIÁRIO DE HELENA MORLEY
BOEIRA, Eloísa Elena Prates51
ARAÚJO, Roberta Duarte de52
O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim:
esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e
depois desinquieta. O que ela quer da gente é
coragem. O que Deus quer é ver a gente
aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no
meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio
da tristeza! Só assim de repente, na horinha em
que se quer, de propósito – por coragem. Será?
Era o que eu às vezes achava. Ao clarear do dia.
(Grande Sertão:Veredas, p. 278).
O livro Minha vida de menina, escrito pela adolescente Alice Dayrell Caldeira Brant
que usou o pseudônimo de Helena Morley, mostra um período da história do Brasil no
final do século XIX, na pequena Diamantina em Minas Gerais.
Aconselhada pelo pai a escrever diariamente num caderno suas observações sobre o
mundo a sua volta, a menina dos treze aos quinze anos manteve um diário em que anotava
não apenas o dia-a-dia na família e na escola como também alguns comentários sobre a
vida da cidade e da região, com seus costumes arraigados, suas relações sociais, suas
contradições. Além do pai, Helena teve um outro incentivador, seu professor de Língua
Portuguesa da Escola Normal na qual estudava, que exigia uma composição semanal e
percebendo a desenvoltura e o gosto de Helena ao escrever, incentivava-a cada vez mais.
51
Eloísa Elena Prates Boeira é graduada em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
Especialista Leitura e Literatura pela UnP, Especialista em Psicopedagogia pela UnP e aluna especial do
mestrado em Literatura Comparada – UFRN.
52
Roberta Duarte de Araújo é graduada em Letras pela UFRN e mestra em Estudos da Linguagem –
Literatura Comparada pela UFRN e aluna especial do doutorado pela UFRN.
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O diário de Helena Morley traça um retrato bem-humorado do dia-a-dia em
Diamantina entre os anos de 1893 e 1895, faz uma radiografia da sociedade brasileira
provinciana nos primórdios da República, momento em que ―a escravidão acabava de ser
abolida e o trabalho livre não estava ainda enquadrado nas alienações da forma salarial,‖
como observou o crítico Roberto Schwarz em seu ensaio sobre Morley, ―Outra Capitu‖
(SCHWARZ, 1977).
A menina magra sardenta e rebelde cresceu respondendo às contradições de seu
tempo. Dividida entre a infância e a puberdade, entre o sonho do diamante redentor e as
lavras e minas esgotadas, ela criou um olhar independente sobre a província tacanha e
decadente. No seu diário Helena se revelou determinada e única.
Outros registros da vida infantil, assinados por pessoas que, chegando à idade
madura se voltaram com nostalgia à sua infância, foram comentados pelo poeta Carlos
Drummond de Andrade que nenhum desses testemunhos, que ele chamava de ―aurora da
minha vida, oferece a singularidade que torna o livro de Helena Morley incomparável: ele
não recompõe o passado com maior ou menor fidelidade; vive-o, respira-o, insere-se nele‖.
( SCHWARZ, 1977, p. 60).
Uma espécie de diário doméstico o livro atinge fundo na
descrição do ambiente da família brasileira modesta em zona de mineração, ali está refletido
a pobreza, o sonho de libertação das necessidades, o convívio social, a despreocupação, a
alegria e a tristeza do viver, sobretudo a alegria, pois a infância de Helena ―tem o gênio de
rir de tudo.‖ Ela se confessa impaciente, rebelde, respondona, passeadeira, incapaz de
obedecer a tudo que querem que ela seja; dona de um espírito vivaz, bem-humorado, que
capta o aspecto grotesco das cenas e das coisas e se diverte em passar em revista o
mundinho de Diamantina.
O livro ―Minha vida de menina‖ despertou a atenção da poetisa norte-americana
Elizabeth Bishop que vivia no Brasil e traduziu a obra para o inglês; outro admirador das
histórias de Helena Morley foi o pensador francês George Bernanos, que morou no Brasil
na década de 1940. Em 1969 foi produzida a primeira filmagem, de David Neves, com o
título de ―Memória de Helena‖; a segunda versão para o cinema chamou-se ―Vida de
Menina‖ (2004).
O interesse pelo livro foi renovado, nos últimos anos, com estudos de alto nível do
crítico Roberto Schwarz (no livro ―Duas Meninas‖, 1997), que aproxima a menina de
Matacavalos, Capitu de Dom Casmurro, com a menina de Diamantina, Helena de Minha
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Vida de Menina, uma distância tão próxima, duas histórias semelhantes, e irreverentes.
Roberto Schwarz consegue aproximar uma obra prima de Machado de Assis a uma escrita
ingênua e sem intenção de uma adolescente descendente de ingleses em Diamantina, no
final do século XIX.
A ousadia maior coube, sem dúvida, a Roberto Schwarz que comparou as histórias
de Helena Morley à Capitu de Machado de Assis. Diz o autor de Um mestre na Periferia do
Capitalismo:
As duas meninas surpreendem pelo iluminismo e clarividência de
capturar a história daqueles tempos. Comenta que Minha vida de menina
é um dos bons livros da literatura brasileira, e não há quase nada a sua
altura em nosso século XIX, se deixarmos de lado Machado de Assis.
Transcrevo o que o crítico Roberto Schwarz coloca no início do capítulo que
chamou de ―Outra Capitu‖, sobre o prefácio notável de Alexandre Eulálio:
[...] nada impede o leitor de imaginar que a escrita tão espontânea da
guria seja obra da autora já adulta, e que se trate então de uma impostura
literária. Mas conta ainda que Guimarães Rosa em conversa dizia que
neste caso o diário seria até mais extraordinário, pois que soubesse, não
existia em nenhuma outra literatura mais pujante exemplo de tão literal
reconstrução da infância. Noutro ensaio posterior, em que retoma e amplia
o seu prefácio, Alexandre acredita que a hipótese do ―pasticho de gênio‖
deva ser afastada, e conclui, agora como que sabendo mais, e criando
novo mistério, que não resta senão louvar a leveza da mão experiente
que preparou para o prelo os velhos cadernos da mocinha (publicados
pela primeira vez em 1942), sem deturpar em nada o caráter genuíno
deles.
O Diário de Helena Morley abre com estas palavras: ―quinta-feira, 5 de janeiro de
1893. Hoje foi nosso bom dia da semana.‖ (p. 5) É o dia em que a família acorda de
madrugada, arruma a casa e vai para o campo lavar a roupa. Nesse lugar, enquanto a mãe e
as filhas Helena e Luizinha lavam as roupas embaixo da ponte, os filhos Renato e Nhonhô
um pesca e o outro pega passarinhos, enquanto Emídio, um crioulo agregado, vai procurar
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lenha. As meninas lavam e botam as roupas pra corar, para que a mãe prepare o almoço de
tutu de feijão com torresmos e arroz, depois do almoço a mãe fica vigiando o caminho pra
ver se vem alguém, para que possam entrar no rio, tomar banho e lavar os cabelos,
enquanto isso a roupa seca pendurada nos galhos. Depois é só procurar frutas no campo,
ninhos de passarinho, casulos de borboletas e pedrinhas redondas para o jogo.
Roberto Schwarz fala das primeiras quatro entradas do diário que formam um
bloco:
Vimos a quinta-feira dos Morley, em que a tônica na frugalidade e no
trabalho em comum dissolve as distinções sociais. Em seguida veremos a
mesma família em casa, no seu papel de gente respeitada e
apadrinhadora, isto é, distinta, a que os pobres tomam a bênção. Na
terceira cena as posições se invertem e serão os Morley que estarão de
visita meio de cortesia e meio interesseira na chácara de vizinhos
abastados, que os costumam obsequiar. A quarta entrada por fim inclui
todos estes temas e põe o acento na relação já mais crua com a
propriedade privada e o pagamento em dinheiro. Os contrastes são
secos, estão à vista como um fato, além de intocados pela glosa, o que os
recomenda à contemplação reflexiva. ( SCHWARZ, 1977, p. 62).
Conforme Schwarz (1977, p. 62-63), no Diário de Helena Morley os conflitos e as
aflições morais das personagens figuram com mais beleza, mais variedade, profundidade e
humor do que os que aconteceram nos romances da primeira fase de Machado de Assis.
Os ―frouxos de risos‖ são peculiaridades simpáticas da família Morley, que mal ou bem se
conforma e veve com eles, como Benvinda com o noivo sem perna.
O Diário de Helena Morley traz à tona as segregações e formas de estupidez da
sociedade brasileira, fala das relações entre negros e brancos, a abolição da escravatura e a
liberdade sem trabalho, os agregados e a troca de favores, trocas e vendas, da pobreza, da
religião, da política e economia e os interesses e interesseiros. Denuncia a face verdadeira e
oculta das mazelas sociais daquela época.
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Minha vida de menina é sublime, é uma verdadeira viagem ao final do século XIX;
os dias desses dois anos de anotações feitas pela menina Helena são puro encantamento,
vejamos algumas passagens:
Benvinda vem participar o seu casamento a D. Carolina e seu Alexandre, pais de
Helena, a moça conta que o noivo tem um defeito, não tem perna e D. Carolina pergunta:
―Coitado! Então ele não anda?‖ Em seguida a mãe de Helena pergunta se já sabem como
vão viver. ―Não pensei ainda não, mas viver a gente veve de qualquer jeito. Deus é que
ajuda.‖ Conforme Schwarz (p. 58), a resposta de Dona Carolina faria a felicidade de
Machado de Assis. Observamos que os Morley aproveitam a parecença para comer as
frutas, dissonância entre ―obsequiar e aproveitar.‖ Nessa cena os Morley estão de visita na
chácara de uma família da vizinhança, que costuma obsequiar com frutas, ovos, frangos e
verduras. Esses obséquios ligam-se a um movimento muito brasileiro. Luizinha (irmã de
Helena) dizem que se parece com Quitinha, que viajou. Os tios desta, donos da chácara e
casal sem filhos, têm muito apego à sobrinha; para matar a saudade, gostam de olhar a
menina tão parecida e comentar as semelhanças, além de lhe encher a família de presentes.
Os Morley não se fazem de rogados. Fica evidente as aflições morais das personagens
imbricadas entre razão individual e familismo paternalista. Schwarz comenta que o leitor
interessado no nervo social da forma artística reconhecerá ao vivo o conflito que organiza
os romances da primeira fase de Machado de Assis, embora com mais beleza, variedade,
profundidade e humor no livro de Helena.
Helena comenta em uma das belas passagens do diário:
[...] penso que a educação nada vale. Cada pessoa nasceu como Deus fez
e assim terá de ser. Somos quatro irmãos e mamãe disse que eu nem
pareço filha dela, nem de ninguém da família. Meu pai disse que sou igual
a irmã dele Alice que casou e foi embora para São Paulo e nunca mais
voltou. (p. 90).
A menina Helena gostava muito de criança e costumava ajudar a cuidar dos filhos
das negras que moravam na fazenda da sua avó. Certa vez a filha de um casal de negros
adoeceu e Helena passava as noites cuidando da menina e isso incomodava a sua mãe que
dizia:
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Você não sabe como eu fico aborrecida de vê-la sair da cama com este
frio, e ficar descalça carregando negrinha dos outros. Eu dou razão a
mamãe de ficar zangada comigo. Mas que hei de fazer se não posso
mudar meu gênio? Penso que se a menina fosse branquinha mamãe não
se incomodava. Mas ela sempre ralha da gente pajear negrinhos. Que
culpa têm os pobrezinhos de serem pretos? Eu não diferenço, gosto de
todos (p. 94).
Sente-se incomodada quando tem que ir para o Bom Sucesso, prefere o seu
interior, a Boa Vista e escreve em seu diário no dia 13 de fevereiro de 1894, terça-feira:
As férias acabaram esta semana. Graças a Deus vai acabar meu
sofrimento de ficar com inveja de mamãe e meus irmãos que ainda estão
na Boa Vista. Quando acordo todas as manhãs e abro os olhos e me vejo
na cidade, em vez de estar na Boa Vista, me dá tal tristeza que ofereço o
sacrifício a Deus. Passo a maior parte do tempo pensando: ―Ah, se eu
estivesse na Boa Vista!‖(p. 94).
Helena sente pena da falta de pena do pai, habitualmente boníssimo, ao comentar
sobre a ignorância do pai de Arinda, a menina que achou o diamante no desbarranque:
Que idiota! Eu sei onde ele vai enterrar o dinheiro; é naquela grupiara do Bom
Sucesso que nós já lavramos‖. Segundo Schwarz (p. 65), Machado de Assis completaria que
seria mais metódico e racional que Helena e não Arinda tivesse apanhado a pedra?
―Quando eu tenho inveja da sorte dos outros, mamãe e vovó dizem: ‗Deus sabe a quem dá
sorte‘- comentário de Helena sobre o diamante achado.
Roberto Schwarz vai mais longe, trás para a sua análise o parentesco que o leitor da
literatura infantil de Monteiro Lobato sentirá entre a Diamantina de Helena e o Sitio do
Pica-Pau Amarelo, com pouca diferença, aí estão as avós boníssimas, o mundo dos primos,
o culto das travessuras, as meninas com resposta para tudo, a cozinheira negra que é uma
santa, e sobretudo a informalidade, que é o remédio a que os males não resistem. Schwarz
fala da irreverência juvenil e belicosa de que se nutre a estética de Helena com birra por
tudo que seja ostentação social.
Ao término do livro Duas Meninas, Roberto Schwarz (1977) diz que:
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Minha vida de menina integra uma lista substantiva da literatura
brasileira, compara o livro de Helena Morley a algo à maneira do Sargento
de milícias, que pouco rema contra a corrente, e nem por isso é trivial,
nem cheira a justificação ideológica. Por contraste, sugerimos que as
visões simpáticas do país, mesmo em autores de grande calibre,
dependeram da exclusão de aspectos evidentes da realidade. Na prosa da
menina isto não ocorre, não por artifício artístico superior, e sim porque
o momento histórico se havia encarregado da filtragem: a Abolição
acabava de suspender o trabalho escravo, e a involução relativa da
economia regional barrava o progresso burguês desimpedido, abrindo a
brecha para um progresso de outra sorte, da ordem da reacomodação
interna, de cuja humanidade a beleza do livro fala e dá prova. (p. 144).
[...]
Terça-feira, 31 de dezembro de 1895:
―Hoje estou me lembrando de vovó, porque a alma dela nos tem
protegido desde que morreu. [...] as coisas mudaram e nossa vida tem
melhorado tanto, [...]. Meu pai entrou para a Companhia Boa Vista [...].
Agora não vamos sofrer mais faltas, graças a Deus. Não é mesmo
proteção de vovó lá do Céu?‖ (p. 271).
Helena vive um conflito constante, um querer audacioso, pois, nas suas memórias,
projeta um desejo imaginário de consertar o mundo que se encontra desmoronando,
afetado pelos questionamentos religiosos, pelo desenvolvimento mercantil e pelas
contradições sociais, vivencia no seu diário de menina já adolescente a angústia da morte e
vida, dor e alegria, falta e abundância. Carrega nas suas lembranças, as inquietudes, as
alegrias, as descobertas, as paisagens, a poesia, as histórias e recordações.
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VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 252
11. AS RUÍNAS BARROCAS D’O ATENEU, OU DA ESTÉTICA DO
ROMANCE
Francisco Magno de Araújo
(Universidade Federal do Rio Grande do Norte)
―Vais encontrar o mundo [...]. Coragem para a luta‖. Assim começa um romance como
se poema épico; um dos livros mais radicais da Literatura Brasileira, embora não o bastante
polêmico aos olhos de nossa crítica literária, a qual, grosso modo, ainda restrita a
identificações autobiográficas, se mantém mais ou menos contida frente ao tom arrebatado
e à forma apoteótica deste monumento poético de nossa prosa de ficção.
O Ateneu, de Raul d‘Ávila Pompéia – já no subtítulo se nos indica – abre as portas da
―crônica de saudades‖ do menino Sérgio: a volta retrospectiva de quem sai de casa para
moldar-se no gesso microscópico do internato, ―a escola da sociedade‖. Publicado em série
na Gazeta de Notícias, na antológica década de 1888, os corredores deste livro ―decadente‖
desde então nos enveredam pelas reminiscências de um colegial que muitos identificam
com o próprio autor e sua experiência no Colégio Abílio, concorrido estabelecimento de
ensino do Segundo Reinado:
A irradiação do reclame alongava de tal modo os tentáculos através do
país, que não havia família de dinheiro, enriquecida pela setentrional
borracha ou pela charqueada do sul, que não reputasse um compromisso
de honra com a posteridade doméstica mandar dentre seus jovens, um,
dois, três representantes abeberar-se à fonte espiritual do Ateneu
(POMPÉIA, 1905: 10).
O ambiente da escola, como signo institucional, como resumo dos códigos sociais e
depósito de cultura – ou seja, mecanismo de moldagem do espírito, e mesmo dos gestos e
do corpo – é recorrente em certo gênero romanesco a partir do século XVIII, onde assoma
a personagem jovem, nuclear, geralmente em meio a aventuras: seus primeiros contatos
com a sociedade e o pensamento da época e, por conseguinte, suas primeiras reflexões
morais e estéticas etc. Basta lembrarmos – sem que esqueçamos As aventuras de Telêmaco, de
Fénelon, ou o Tom Jones, de Fielding, e mesmo os ainda mais remotos diálogos platônicos, e
VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 253
determinado episódio do texto homérico que vale citar logo mais – o exemplo categórico
do Wilhelm Meister, de Goethe, onde se mostra o conceito explícito de ―romance de
formação‖ (Bildungsroman, ou Künstlerroman, quando se refere especificamente à formação de
um artista). Mas é no século XIX quando esse tipo de obra de ―formação‖ se identifica
com a tendência subjetiva e mesmo autobiográfica então delineadora dos gêneros
novelísticos, sobretudo o romance, quando as metamorfoses do espírito adolescente e a
própria modulação discursiva do gênero romanesco ―em formação‖, ou deformação, se
correspondem na busca ainda romântica da personalidade pelo ―equilíbrio entre o eu e o
mundo, o subjetivo e o objetivo‖ (MUTRAN: 2002, 73), enfim, na busca pela estátua
unitária do caráter psicológico e da estrutura de um gênero que a moldasse: estátua a qual,
no século XX, destinar-se-ia à decadência simultânea do indivíduo e do romance,
prometida logo em seguida, no século XX, em obras como A portrait of the artist as a young
man e realizada, de maneira radical, por um Ulysses.
N‘O Ateneu, assim como no texto de James Joyce, o jovem artista se lança na busca
em comum – no mesmo périplo epopeico dramatizado no espaço da escola – por uma
―boa forma‖. Que nostalgia de forma persegue Stephen Dedalus? Talvez a mesma de
Sérgio, de tantas maneiras metamorfoseada, que leva a maioria dos leitores d‘O Ateneu a
identificá-lo como núcleo do livro, como protagonista, ora estarrecidos com suas maldades,
ora emocionados com sua máscara de garoto de internato à Charles Dickens. Em ambos os
livros, o ambiente do colégio é imprescindível como referência aos resíduos livrescos tanto
de Stephen quanto de Sérgio, e seus desdobramentos estilísticos; mas no caso deste,
alimenta ainda a polarização crítica, ou melhor, moralista, em torno ao jovem narrador e à
formação de sua personalidade ambígua – dentro do gênero romanesco – emoldurada na
forma proteica que o disfarça entre menino ingênuo e o artífice de uma crônica cheia de
malícias.
Muitas leituras têm buscado, portanto, desnudar a personalidade deste garoto entre
as paredes da escola, como em sendo esta o microcosmo do mundo, como diz o próprio
autor, em mais uma das muitas pistas que despistam nossa leitura; poucas, no entanto,
lograram ultrapassar o ambiente físico e humano do Ateneu, em busca de suas raízes
míticas, ou melhor, da estrutura fabulosa onde se modela todo o procedimento de criação
radical de Raul Pompéia – e onde, em verdade, não Sérgio, mas a própria linguagem se
revela como protagonista. Não falta quem haja apontado indícios dessa linguagem estilística
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e literalmente ―dramática‖, a exemplo da caricatura e da paródia, numa perspectiva, no
entanto, apenas sociológica/ naturalista, como mero rechaço ao sistema escolar da época; o
que não se faz, ou pelo menos não se tem feito expressamente – quiçá porque fazê-lo é tão
radical quanto a criação deste escritor artista (e o radicalismo afugenta os gênios cautelosos
da crítica literária, cada vez menos idiossincrática e nem por isso mais arguta) – é admitir O
Ateneu como obra simultaneamente de tese e criação, a grande metalinguagem alegórica do
gênero romanesco, estruturada em fragmentos da historiografia literária que, partindo de
uma remota origem fabulosa das narrativas modernas, busca as raízes poéticas do seu
gênero mais representativo: o gênero da unidade utópica da classe burguesa, da plenitude
romântica, da psicologia moderna, e, por ironia, o mais fragmentário e residual de todos os
gêneros – o romance. Vejam como Sérgio, enquanto personagem, desloca a vida subjetiva
para o espaço dramatizado de sua luta:
Apesar deste ensaio da vida escolar a que me sujeitou a família, antes da
verdadeira provação, eu estava perfeitamente virgem para as sensações
novas da nova fase. O internato! Destacado do conchego placentário da
dieta caseira, vinha próximo o momento de se definir a minha
individualidade (POMPÉIA, ibidem: 7).
Quem fala é apenas uma das muitas faces de Sérgio, o clichê da criança que sai ―do
conchego placentário da dieta caseira‖ ao encontro da ―verdadeira provação‖, ou seja, da
luta algo epopeica em busca do tempo perdido de suas reminiscências: em busca do
arquétipo mítico que lhe serve de modelo, e que o jovem narrador ardentemente emula,
virgem apenas na perspectiva cronológica, mas em verdade envelhecido sob o signo do
livro. Não à toa, a ―crônica de saudades‖ aqui se articula em uma espécie de dialética
própria do século XIX, entre o signo romântico e o realista/naturalista (e, de modo mais
remoto, em face do poema épico); entre o sonho e a realidade; entre a vida e a ficção: ou
melhor, entre o lar e o internato. Daí o jogo de antíteses responsável pela sequência de
contrastes que impulsionam o próprio ritmo da ―crônica de saudades‖ de Sérgio e, por fim,
sua mecânica alegórica. No espaço de contrastes, o colégio se codifica como alegoria da
própria desconstrução – o pensamento crítico, em crise – do romance (lembremos Bakhtin
e Lukács, e imaginemo-los ―operacionalizados‖, com menos preconceitos teóricos de
época e mais ousadia criativa, na ―obra‖ em si mesma, em marcha substancial e concreta...).
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Todo o radicalismo dessa postura sobre o pensamento crítico/criador do romance se
oculta, se disfarça, na pose ―ingênua‖ de Sérgio, que tem burlado muitos leitores alheios às
artes do engenho deste que pega nas letras e armas em busca de uma personalidade que já
não lhe pertence, ou que lhe pertence apenas como máscara. Ocultando a persona, resta a
pessoa, a instância psicológica e social, em verdade artificiosamente emotiva, que Sérgio
finge para a crença dos muitos que identificam suas emoções com as do próprio Raul
Pompéia, enveredando algumas vezes por nuances psicanalíticas (as quais se viabilizariam
uma vez somente se em correspondência com a matéria concreta da obra em questão).
Assim, Mário de Andrade, num ensaio por demais paradoxal, reconhece que Raul Pompéia
―saiu-se com uma obra-de-arte esplêndida, filigranada, trabalhada, magnificente de graças e
belezas‖ (ANDRADE, 1972: 183), uma ―obra-prima‖, não se escusando da maravilhosa
sacada de tê-la como ―a última e derradeiramente legítima expressão do barroco entre nós‖.
No entanto, no mesmo ensaio, Mário vê n‘O Ateneu uma acanhada perspectiva de
―caricatura sarcástica e, relativamente a Raul Pompéia, dolorosíssima, da vida psicológica
dos internatos‖; ou: ―O Ateneu é um livro de vingança pessoal. Contra a vida?... Contra o
internato que lhe desorientou o desejado destino?... Contra si mesmo?...‖; ou ainda: ―O
Ateneu castiga o regime dos internatos. Dos internatos exatamente? Não. Um internato
errado que se individualiza logo, é o Ateneu – em grande parte o colégio Abílio que é a
base de inspiração do livro‖. Quando afirma que Raul Pompéia ―se vinga do colégio com
uma generalização tão abusiva e sentimental que chega à ingenuidade‖, é que o autor de
Macunaíma se deixa burlar de vez pela malícia de nosso pequeno herói de múltiplo caráter,
que dele ri não menos sarcástico do que sua personagem tropical, proteica e igualmente
alegórica.
*
O romance é, por si mesmo, o gênero residual da modernidade, em cujo arcabouço
se debatem antigas estruturas no afã burguês, romântico, de uma forma subjetiva e unitária
– remanescente, quanto à unidade, das poéticas clássicas, inclusive em torno ao gênero
épico –, o que se inviabiliza desde logo pela natureza fragmentária, polifônica e híbrida do
próprio romance. Na paródia dos outros gêneros, o romance ―revela o convencionalismo
das suas formas e da linguagem, elimina alguns gêneros, e integra outros à sua construção
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particular, reinterpretando-os e dando-lhes um outro tom‖ (BAKHTIN, 1988: 399); mas
não tarda ele próprio a tornar-se convenção, limitando-se em termos de linguagem, técnica
e estrutura, calcificando-se assim no discurso das escolas de época. Não estranha que, nos
fins do século XIX, uma vez reconhecida sua decadência, uma vez saturado como obra de
ficção, o romance se haja voltado de maneira explícita à origem poética, seja ao encontro da
fábula ou do próprio viço ancestral, metafórico, da linguagem como de quando era uma vez
no tempo dos antigos aedos... Essa volta é o núcleo alegórico d‘O Ateneu, sob ambos os
aspectos, e muito se identifica com o cenário finissecular de sua gênese. Por conseguinte, a
gênese paródica, assinalada por Bakhtin, do romance como ―gênero em formação‖,
mostra-se patente desde sua origem nos romanços nacionais, glosados em verso, nas
crônicas régias, e sobremaneira num Don Quijote, paródia por excelência; e ainda nesta
paródia da paródia quixotesca, o Tom Jones, já dentro de um escopo romanesco que o
próprio Fielding teoriza nas introduções aos capítulos, sem que escapasse à ironia
machadiana, íntima das técnicas inglesas de ficção.
Sérgio (assim como Stephen Dedalus) é um herói, igualmente labiríntico. Mas uma
coisa é situar seu heroísmo apenas na instância da vida, ainda que reconhecendo os valores
estilísticos da enunciação, as ―graças e belezas‖ da obra-prima... Ou situá-lo sim como
ficção, mas ainda nos limites de uma psicologia condicionadora da personagem e da
linguagem por ela enunciada, que se deixa levar pela malícia de um narrador em primeira
pessoa sem perceber que no jogo antitético de clichês – por exemplo, no lugar-comum da
infância fragilizada no internato – da narrativa se oculta a busca alegórica pelos arquétipos
de um heroísmo muito mais antigo e as próprias fontes épicas que impregnam, como
palimpsesto de ecos, a estrutura do romance moderno. Sérgio se limitaria, assim, a meras
questões técnicas da ficção, como herói apenas porque personagem em primeira pessoa,
onisciente e onipresente em uma narrativa ―psicológica‖:
O Ateneu pode ser considerado como uma sucessão de quadros [...]. Mas,
apreciadas em conjunto, essas cenas, por mais nítidas que sejam, tornamse meros elementos ilustrativos de uma figura única, a de Sérgio: este
aparece indiretamente, reconstituído pelas sensações que cada episódio
lhe despertara. De realistas, os quadros se fazem impressionistas, já que
seu verdadeiro sentido provém, não de si mesmos, das minúcias que os
compõem, mas nas reações que provocam no adolescente. A
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personalidade de Sérgio, que nenhuma análise decompõe, se vai assim
fixando aos poucos, como se os leitores o vissem viver. E o verdadeiro
herói do livro não é o Ateneu, é esse menino que lá esteve sempre só,
entre companheiros de sua idade, murado pela barreira que a timidez e o
orgulho levantavam entre ele e os outros (MIGUEL-PEREIRA: 1973: p.
115).
Outra coisa, no entanto, é admiti-lo herói como paradigma da própria fábula, no
gesto heroico de reinventar a ficção a partir da alegoria teatral de seus resíduos históricos,
acumulados numa época da escrita onde se situa o próprio romance. Ao contrário da
epopeia e sua ―natureza oral e declamatória‖, o romance está ―organicamente adaptado às
novas formas da percepção silenciosa, ou seja, à leitura‖ (BAKHTIN, ibidem: 397). A volta
nostálgica à origem poética da linguagem, que balizou os processos de criação dos
modernos, remete, pelo contrário, a uma mnemônica muito mais rica, a uma verdadeira
relíquia da historiografia literária – nos termos que lhe dão Haroldo de Campos e,
especificamente no que tange a O Ateneu, Leyla Perrone-Moisés53. Assim, a natureza
livresca, e seus mitos calcificados no código alfabético, voltam-se cada vez mais para a
imagem, naquele sentido barroco, segundo Walter Benjamin, da ruína, ou de acordo com
McLuhan: ―A idéia das palavras apenas como correspondência da realidade, a idéia de
combinar, é característica somente de uma cultura altamente literal em que o sentido visual
é dominante‖ (MACLUHAN, 1973: 141), isto é, de uma cultura decadente, assombrada
pelos espetros do passado. No século de Raul Pompéia, basta lembrarmos o Balzac de
Ilusões Perdidas, e as ganas de Lucien de Rubempré por revisitar a cultura humana sob o
signo da produção/ proliferação em série da tipografia; ou, no mesmo caminho
enciclopédico, o Flaubert de Bouvard e Pécuchet (e o ainda mais engenhoso de Salambôo e das
Tentações de Santo Antão) etc. No século XX, como alguns exemplos, o Mann de Doutor
Fausto (ironicamente muito mais radical, no sentido de paródia, é o de Goethe54); Proust em
busca do tempo perdido; e o Joyce de Ulysses e Finnegans Wake, esses dois amontoados de
53
Conferir, respectivamente: 1) Haroldo de Campos: ―Esta ‗estória‘ na ‗História‘ poderia também ser
rebatizada como uma ‗História do epifânico‘ (protagonizada pelo ‗como‘) versus (ou paralelamente a)
uma ‗história do epos‘ (cujos heróis, no nível funcional da gramática narrativa, são os verbos de ação,
factivos e performativos)‖ etc. (CAMPOS, s/d: 125); 2) Leyla Perrone-Moisés, numa leitura que
emparelha as retóricas e paixões de Raul Pompéia e Lautrèamont (PERRONE-MOISÉS, 1988: 19).
54
A esse propósito, vejam meu ensaio ―Goethe, o Fausto (in scena) barroco‖, in SILVA, Francisco Ivan
da (org.). Colóquio Barroco, vol. I. Natal: EDUFRN, 2008, pp. 125-179.
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ruínas da história, protagonizados por heróis em frangalhos (sem esquecermos os dois
aedos da contemporaneidade, misto de síntese formalista e lirismo polilíngue, Eliot e
Pound)...
Quando Walter Benjamin sublinha que
O herói é o verdadeiro tema da modernité. Isto significa que para viver a
modernidade é preciso uma formação heróica. Esta era também a
opinião de Balzac. Assim, Balzac e Baudelaire se opõem ao romantismo.
Sublimam as paixões e as forças de decisão; o romantismo sublinha a
renúncia e dedicação. Essa nova concepção é muito mais complexa e rica
no poeta do que no romancista (BENJAMIN, 1975: 12),
lembramos que Raul Pompéia, logo às portas de sua crônica de saudades, satiriza de
maneira simultaneamente poética e heroica o conceito vulgar de espaço e tempo – duas
categorias intrínsecas à ―crônica‖ enquanto gênero –, deslocando-o para a metamorfose
cênica, alegórica, como um alternar dramático de quadros fragmentários que,
inevitavelmente, se voltam àquela origem fabulosa dos que primeiro manejaram a fábula
em linguagem humana, imitando-os naquilo que foram desde logo, ou seja, poetas, então
sagrados porque criadores. Raul Pompéia, votando-se de maneira paródica ao passado não
histórico, ou antes trans-histórico, para logo arquetípico, por meio de seus fragmentos,
desmistifica tais categorias e, enfim, a utopia neokantiana/ hegeliana de uma arte abstrata,
espiritual, plena e unitária – como a estátua neoclássica, desenterrada intacta –, e mesmo de
um tempo ―absoluto‖ por sua vez já desmentido como lugar-comum da ―crônica de
saudades‖ que Sérgio artificiosamente encarna sob o signo romântico. Vejam como ele
parodia o discurso histórico, de matiz religioso, lançando-o à derrisão para o campo dos
jogos pueris:
Amarguei por antecipação o adeus às primeiras alegrias; olhei triste os
meus brinquedos, antigos já! os meus queridos pelotões de chumbo!
espécie de museu militar de todas as fardas, de todas as bandeiras,
escolhida amostra da força dos estados, em proporções de microscópio,
que eu fazia formar em combate como uma ameaça tenebrosa ao
equilíbrio do mundo; que eu fazia guerrear em desordenado aperto, –
massa tempestuosa das antipatias geográficas, encontro definitivo e
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ebulição dos seculares ódios de fronteira e de raça, que eu pacificava por
fim, com uma facilidade de Providência Divina, intervindo sabiamente,
resolvendo as pendências pela concórdia promiscua das caixas de pau
(POMPÉIA, ibidem: 7).
E outra vez se volta ao clichê de uma Idade de Ouro:
Força era deixar à ferrugem do abandono o elegante vapor da linha
circular do lago, no jardim, onde talvez não mais tornasse a perturbar
com a palpitação das rodas a sonolência morosa dos peixinhos rubros,
dourados, argentados, pensativos à sombra dos tinhorões, na
transparência adamantinada da água... (POMPÉIA, idem, ibidem).
Desmistificando, por conseguinte, o discurso histórico, de modo autocrítico, e acionando
assim, dentro de seu próprio discurso, a constante dialética acirrada no século XIX entre o
sonho e a realidade, a história e a ficção, a vida e a arte:
Eufemismo, os felizes tempos, eufemismo apenas, igual aos outros que
nos alimentam, a saudade dos dias que correram como melhores. Bem
considerando, a atualidade é a mesma em todas as datas. Feita a
compensação dos desejos que variam, das aparições que se transformam,
alentadas perpetuamente do mesmo ardor, sobre a mesma base fantástica
de esperanças, a atualidade é uma. Sob a coloração cambiante das horas,
um pouco de ouro mais pela manhã, um pouco mais de púrpura ao
crepúsculo – a paisagem é a mesma de cada lado beirando a estrada da
vida (POMPÉIA, ibidem: 6).
O herói moderno é melancólico, pessimista, justo porque se desengana com a
imortalidade, apenas sonhada na feira das vaidades do velho Aristarco... A ―formação
heróica‖ do artista moderno evoca, pois, antigos modelos, tanto da iconografia literária
quanto da própria forma da linguagem estética, sabendo-os desde logo não como verdades
absolutas, mas sim artifício estético; modelos, por conseguinte, já desgastados seja pelo uso
ou pelo próprio tempo, que satura o sentido das coisas e as deforma, soterrando-as com
seu entulho, o que se mostra patente nas próprias línguas. Resta-lhe a caricatura: ―O artista
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exagera, no contrário disto, o momento presente, e dissolve-se na visão literária. Nessa
decomposição de suas forças pela obra de arte, e no contraste que resulta desse estado,
com a aspereza do ambiente, reside todo o preconizado pessimismo dos tempos atuais‖
(ARARIPE JÚNIOR, 1978: 151). O heroísmo de Sérgio assemelha-se, assim, ao gesto
arqueológico de sua época: ―O herói cultural empreende relatar seu mundo à realidade
pelos labores hercúleos de sondagem, recuperação e purgação‖ (MCLUHAN, ibidem: 137).
O romancista, heroico como um poeta, volta-se às formas antigas, que em sua origem
correspondiam à linguagem fabulosa do mito, um dia apoteótica na poesia e já estéril na
prosa de ficção, no gênero por si mesmo saturado e residual que é o romance. A frase que
Sérgio ouve do pai ―biológico‖, às portas da vida, na verdade traduz dentro do romance –
em termos de dramatização alegórica – o eco de uma paternidade arquetípica, ambientada e
atualizada no espaço pluridimensional do Ateneu, cuja síntese é a imagem do próprio
Aristarco. Sabemos, lição barroca: ―o absolutamente singular, a pessoa, se multiplica no
alegórico‖ (BENJAMIN, 1984: 217). No que se refere a Sérgio, o herói, O Ateneu se abre
de maneira apoteótica, como a forma de um sonho fantástico, tão fascinante e artificial
quanto um mural de biscuit, e não mais verossímil:
Eu me sentia compenetrado daquilo tudo; não por entender bem, como
pela facilidade da fé cega a que estava disposto. As paredes pintadas da
ante-sala imitavam pórfiro verde; em frente ao pórtico aberto para o
jardim, graduava-se uma ampla escada, caminho do andar superior.
Flanqueando a majestosa porta desta escada, havia dois quadros de altorelevo; à direita, uma alegoria das artes e do estudo; à esquerda, as
indústrias humanas, meninos nus como nos frisos de Kaulbach,
risonhos, com a ferramenta simbólica – psicologia pura do trabalho,
modelada idealmente na candura do gesso e da inocência. Eram meus
irmãos! Eu estava a esperar que um deles, convidativo, me estendesse a
mão para o bailado feliz que os levava. Oh! que não seria o colégio,
tradução concreta da alegoria, ronda angélica de corações à porta de um
templo, dulia permanente das almas jovens no ritual austero da virtude!
(POMPÉIA: 1905, 13).
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Sérgio ainda é, ou se faz, dominado pela fé cega da inocência, em contraste dialético
contra a qual logo se mostrará a metamorfose da ronda angélica de corações ainda
―virgens‖ para a luta vaticinada à porta do colégio, enfim levada a cabo na tradução mais
concreta do Ateneu – ou seja, na própria alegoria, pictórica, ou mesmo ―combinação
esplêndida da beleza da forma com a suprema plenitude do ser‖ a qual, ―porque chegou à
sua mais alta expressão na escultura grega, pode ser chamado o símbolo plástico‖
(BENJAMIN, 1984: 186). Desde então, desmistificado o símbolo romântico, despojada a
infância das vestes angelicais, Sérgio experimenta a melancolia da realidade do internato,
que lhe exige não menos a manha humana do que as letras e armas do artifício artístico
(lição acirrada a partir do segundo capítulo do livro e, sobretudo, do terceiro, junto ao
mentor mefistofélico, o Sanches). Vemos o amadurecimento de um menino, quiçá
autobiográfico; mas em verdade o que se projeta é o próprio romance em sua decadência,
que o narrador busca atualizar desde a estrutura narrativa aos artifícios da linguagem, numa
volta utópica à origem poética onde bebe sua narrativa ―pessoal‖, como uma criança
fascinada frente ao espetáculo de um livro de figuras, de um Tesouro da Juventude:
Na ocasião em que me ia embora, estavam acendendo luzes variadas de
Bengala diante da casa. O Ateneu, quarenta janelas, resplendentes do gás
interior, dava-se ares de encantamento com a iluminação de fora. Erigiase na escuridão da noite, como imensa muralha de coral flamante, como
um cenário animado de safira com horripilações errantes de sombra,
como um castelo fantasma batido de luar verde emprestado à selva
intensa dos romances cavalheirescos, despertado um momento da
legenda morta para uma entrevista de espectros e recordações. Um jato
de luz elétrica, derivado de foco invisível, feria a inscrição dourada
[ATHENAEUM] em arco sobre as janelas centrais, no alto do prédio
(POMPÉIA, ibidem: 19-20)
Mas logo se desvanece o brilho de papel de bala, o sonho se mostra tão verdadeiro
quanto os ideais camuflados no alto-relevo de gesso, ou seja, tão convencional quanto o
próprio símbolo, e assim como este, inexoravelmente perecível. No Ateneu, tudo lembra
fingimento, e o próprio Aristarco, uma estátua. Uma imagem que se vende primeiro como
onipotente:
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A uma delas, à sacada, Aristarco mostrava-se. Na expressão olímpica do
semblante transpirava a beatitude de um gozo superior. Gozava a
sensação prévia, no banho luminoso, da imortalidade a que se julgava
consagrado. Devia ser assim: - luz benigna e fria, sobre bustos eternos, o
ambiente glorioso do Panteon. A contemplação da posteridade embaixo
(POMPÉIA, ibidem: 20).
Para logo cair em derrisão:
Uma hora trovejou-lhe à boca, em sanguínea eloqüência, o gênio do
anúncio. Miramo-lo na inteira expansão oral, como, por ocasião das
festas, na plenitude da sua vivacidade prática. Contemplávamos (eu com
aterrado espanto) distendido em sua grandeza épica – o homem sandwich da
educação nacional, lardeado entre dois monstruosos cartazes. Às costas,
o seu passado incalculável de trabalhos; sobre o ventre, para a frente, o
seu futuro: o reclame dos imortais projetos. (POMPÉIA: ibidem, 25).
O primeiro capítulo d‘O Ateneu foi todo um sonho; mas a ―realidade‖ que Sérgio aos
poucos descobre não é menos fabulosa, apenas deliberadamente híbrida de traços da
circunstância enunciativa e de outra, um tempo próprio da obra de ficção. Uma das
consequências dessa dialética, sob o signo da alegoria e do fragmento, é a plasticidade com
que Sérgio reinventa a própria vida, a exemplo da ininterrupta caricatura que faz de
Aristarco:
Nas ocasiões de aparato é que se podia tomar pulso ao homem. Não só
as condecorações gritavam-lhe do peito como uma couraça de grilos:
Ateneu! Ateneu! Aristarco todo era um anúncio. Os gestos, calmos,
soberanos, eram de um rei – o autocrata excelso dos silabários; a pausa
hierática do andar deixava sentir o esforço, a cada passo, que ele fazia
para levar adiante, de empurrão, o progresso do ensino público; o olhar
fulgurante, sob a crispação áspera dos supercílios de monstro japonês,
penetrando de luz as almas circunstantes – era a educação da inteligência;
o queixo, severamente escanhoado, de orelha a orelha, lembrava a lisura
das consciências limpas – era a educação moral. A própria estatura, na
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imobilidade do gesto, na mudez do vulto, a simples estatura dizia
dele:aqui está um grande homem... não vêem os côvados de Golias?!...
Retorça-se sobre tudo isso um par de bigodes, volutas maciças de fios
alvos, torneadas a capricho, cobrindo os lábios fecho de prata sobre o
silêncio de ouro, que belamente impunha como o retraimento fecundo
do seu espírito – teremos esboçado, moralmente, materialmente, o perfil
do ilustre diretor. (POMPÉIA, ibidem: 23)
E enfim conclui: ―Em suma, um personagem que, ao primeiro exame, produzia-nos a
impressão de um enfermo, desta enfermidade atroz e estranha: a obsessão da própria
estátua‖. Nada mais semelhante, nem menos atual, do que a perspectiva de McLuhan sobre
a reciclagem de lugares-comuns e sua revitalização em novos discursos: ―Qualquer clichê,
levado a um alto estágio, é desprezado em favor de um novo clichê que pode ser a
ressurreição de um antigo, por exemplo, um velho clichê como um novo arquétipo =
arquétipo como novo clichê‖ (MCLUHAN, ibidem: 69); ou: ―Esses resíduos verbais das
tecnologias primordiais do homem ilustram a maneira pela qual se desenvolve um clichê.
Qualquer extensão da vida sensorial, tal como o cão ou o automóvel, imprime numerosos
clichês em qualquer linguagem, estendendo seu alcance como sonda‖ (MCLUHAN, ibidem:
75); ou ainda: ―Inicialmente todo clichê é uma ruptura para dentro de uma nova dimensão
de experiência‖ (MCLUHAN, ibidem: 77).
Aí está como Raul Pompéia vai do clichê de um ridículo diretor de colégio do
Segundo Império ao arquétipo da figura aristocrática, mítica, de Aristarco. Aí está um
exemplo fecundo do culto barroco de Pompéia pelas ruínas... Observem a sagacidade
hieroglífica do poeta, quando une ao signo pictórico, à imagem – a caricatura, ou seja, a
ruína da origem –, o signo alfabético, a palavra, criptografando assim, por meio de
anagrama, os fragmentos de Aristarco Argolo de Ramos: a) arist (do gr. áristos)/arco (do gr.
arkhê), literalmente, ―origem do melhor poder‖, ou seja, do poder aristocrático dos homens
primevos (um aspecto de ordenamento e hierarquia intrínseco não apenas à organização
social, de genes, mas também à própria ordem alfabética, que sucedeu às linguagens
icônicas dos primitivos); b) argolo (do gr. argós), ―brilhante‖, ―alvo‖, ―branco‖, com
acepção de fama e pureza, como se do papel ―em branco‖ onde nada houvesse sido escrito,
donde se derivam, também, ―argila‖, o barro adônico, moldado originalmente pelo Criador,
que pode ganhar feição demoníaca se o do que deu forma ao que primeiro se rebelou
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contra Ele, ou ―argentado‖, o brilho da prata, em parte com ideia apenas de brilho, mas
igualmente da usura monetária dos povos em geral e do diretor em particular, o valor de
troca e combinatória do dinheiro, algo próprio da civilização e também muito parecido
com a ordem alfabética, ou também de ―argumento‖, ―argúcia‖, ―agudeza‖, característica
tanto do matreiro mestre de meninos quanto dos que primeiro manejaram a linguagem
humana, os quais, por serem engenhosos, falaram a linguagem poética, isto é, simulada; c)
ramos (do lat. rámus), árvore ―que gera frutos‖, cópias, ou raiz ―genealógica‖ etc. Esta
última raiz latina, por conseguinte, lembrar-nos-ia desde os ramos, os louros no arroz dos
que manejam letras e armas, nos tempos de Horácio e Virgílio, aos poetas e heróis, à cidade
eterna, Roma, incinerada assim como o Ateneu. Mas nela está cifrada outra cidade, Samos,
outro nome de Samotrácia, ilha do Chipre onde nasceu o primeiro Aristarco, gramático e
filólogo do século II a. C., primeiro crítico do texto homérico, por ele compilado. Muitas
são as inferências arqueológicas a tal personagem...
Aquela passagem, quando sintetiza a antes aparição homérica de Aristarco, agora
como ―o homem sandwich da educação nacional, lardeado entre dois monstruosos cartazes‖,
elucida bem a dialética entre as categorias de ―romance de personagem‖ e ―romance
dramático‖, segundo Edwin Muir, as quais muito se adéquam à alegorização do Ateneu:
O romance de personagem [...] preocupa-se de imediato apenas com a
exibição externa da realidade e encerra, sob isso, não algo
correspondente a ela mas algo relativamente incôngruo com ela. O
romance de personagem revela o contraste entre aparência e realidade,
entre as pessoas como elas se apresentam à sociedade e como elas são. O
romance dramático mostra que tanto a aparência como a realidade são
idênticas, e que o personagem é a ação e a ação, personagem (MUIR,
s/d: 24-25).
Um jogo antitético entre realidade e ficção que permite, não à toa, que Sérgio largue
os brinquedos e corte os cachinhos dourados, como se fosse outro que não ele mesmo, o
próprio Telêmaco no episódio homérico com Minerva, ou melhor, com o caricato
Aristarco:
―Como se chama o amiguinho?‖ perguntou-me o diretor.
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– Sérgio... – dei o nome todo, baixando os olhos e sem esquecer o ―seu
criado‖ da estrita cortesia.
– Pois, meu caro Sr. Sérgio, o amigo há de ter a bondade de ir ao
cabeleireiro deitar fora estes cachinhos...
Eu tinha ainda os cabelos compridos, por um capricho amoroso de
minha mãe. O conselho era visivelmente salgado de censura. O diretor,
explicando a meu pai, acrescentou com o risinho nasal que sabia fazer:
―Sim, senhor, os meninos bonitos não provam bem no meu colégio...‖
(POMPÉIA, ibidem: 23).
A passagem suscita muitos pruridos psicanalíticos, que se ouriçam ainda mais com a
entrada da personagem feminina, a mulher do diretor, Ema, misto edipiano de mãe e
primeira amante dos amores intransitivos de Sérgio, a qual, semelhante à canarina Ângela,
conduz de propósito a leituras maliciosas, de ranço naturalista. Mas tais pruridos, em
respeito ao próprio substrato mítico da ciência freudiana, logram êxito apenas se
apercebidos da intenção estritamente artística de Raul Pompéia na arqueologia das fontes
míticas. A memória de Homero, não nos parece demasiado crê-lo, ilustra explicitamente o
ricorso à origem épica do romance, coisa que poucos leitores têm percebido: ―Sérgio terá,
então, a ocasião de testar o ‗caráter‘ de sua identidade. Temos, portanto, de um lado, Sérgio
face à forma do ‗mito‘ [...]‖, ou ―Sérgio já se revela conhecedor das formas do mito; e faz
uso delas na ocasião de seu encontro com o Diretor‖ (SILVA, s/d: 122). É uma perfeita
identidade híbrida entre modulações de velhos discursos e seus respectivos tons poéticos
na estrutura ―dramática‖ do romance moderno:
As qualidades conhecidas dos personagens determinam a ação, e a ação,
por sua vez, modifica de maneira progressiva os personagens e assim
tudo é impelido para diante em direção a um fim. No seu ponto máximo
a afinidade do romance dramático se dá com a tragédia poética,
exatamente como a do romance de personagem com a comédia. O
diálogo [...] mal se distingue da elocução poética; as figuras mais
memoráveis [...] estão sempre à beira de se tornarem figuras puramente
cômicas [...] (MUIR, s/d: 21-22).
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As saudades heroicas de Sérgio, evocando o mundo das origens, o mundo dos pais
ancestrais, o mundo dos primeiros e dos melhores – como o da epopeia – deslocam-se
assim à fonte épica, que ―atua somente para os descendentes como um poema sobre o
passado‖ (BAKHTIN, ibidem: 405). Diante de Aristarco, Sérgio se porta como um
descendente que se rebela contra a paternidade hierática, ―baixando os olhos e sem
esquecer o ‗seu criado‘ da estrita cortesia‖. Aristarco, gabando-se da superioridade,
apaixonado pela própria estátua, delicia-se na ―chusma por alter-egos, glorificado por uma
multidão de si-mesmos‖. Mas logo o filho subverterá as influências, e quem primeiro sofre
a subversão é o próprio Aristarco, pai ancestral de nosso pequeno herói, tão logo arrastado
à derrisão caricaturesca. Os dois chegam mesmo ao embate físico, na verdade alegórico,
entre pai e filho:
– Sérgio, ousaste tocar-me!
– Fui primeiro tocado! repliquei fortemente.
– Criança! feriste um velho!
Reparei que havia no chão fios brancos de bigode.
– Fui vilmente injuriado, disse.
– Ah! meu filho, ferir a um mestre é como ferir ao próprio pai, e os
parricidas serão malditos! (POMPÉIA, ibidem: 191).
Sérgio, embora impressionado ―até o íntimo da alma‖ com o desgosto do mestre, e
uma vez delegado ao ―abutre‖ da consciência ―o encargo da sua justiça e desafronta‖, valese de uma digressão narrativa para desmistificar o mito: ―Hoje penso diversamente: não
valia a pena perder de uma vez dois pagadores prontos, só pela futilidade de uma
ocorrência, desagradável, não sem dúvida, mas sem testemunhas‖. Que ―hoje‖
problemático em um romance artístico! Aristarco, por um lado, é o mestre, o melhor de
uma estirpe aristocrática e hierática; por outro, é o simples diretor de colégio, que Sérgio
desmistifica em várias passagens por meio da caricatura, a exemplo desta maravilhosa
síntese metafórica que o mostra como ―o homem sandwich da educação nacional, lardeado
entre dois monstruosos cartazes‖.
A perspectiva do heroísmo de Sérgio, sob o signo da modernidade, leva-nos ao
caminho não menos melancólico dos que, desenganados com a verdade prometida pelas
ciências sociais e tecnológicas oitocentistas, voltam-se para o regaço da fábula, ao tempo
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primitivo da linguagem poética. O caminho da decadência. Os decadentes, nostálgicos do
passado, revisitaram-no todavia de maneira muito diversa do romantismo neokantiano/
hegeliano; mas igualmente seduzidos por aquelas promessas que emergiram no início do
século XIX, para findá-lo desenganadas, melancólicas, voltadas outra vez – lição viquiana –
ao dialeto fabuloso dos antigos. Um ensaio de Oscar Wilde ilustra bem esse momento
cultural, que é o mesmo da gênese d‘O Ateneu, quando, analisando a ―decadência da
mentira‖, mostra-se igualmente nostálgico da forma fabulosa dos antigos narradores, a
exemplo de Heródoto, não obstante metonímia da historiografia, também ―o Pai das
Mentiras‖. Eis como Wilde lamenta a gana verídica de sua época: ―Não somente os fatos se
introduzem na história, mas usurpam o domínio da Fantasia e invadiram o reino do
Romance‖ (WILDE, 1961: 1081). Ou, de maneira ainda mais epigramática:
A literatura sempre se antecipa à vida. Não a copia, mas a modela à sua vontade.
O século XIX, tal como o conhecemos, é largamente uma invenção de Balzac.
[...] Não fazemos mais do que praticar – com notas ao pé da página e com
acréscimos inúteis – o capricho, a fantasia ou a visão criadora de um grande
romancista (WILDE, ibidem: 1085).
Balzac criou a vida, não a copiou; não se valeu assim do realismo sem imaginação, ou
do naturalismo de tese, ambos então em voga, mas de uma realidade imaginada: segundo
Wilde, não cometeu o erro fatal de utilizar a vida como método – como um
realista/naturalista –, senão apenas como matéria moldável pelo gênio artístico. Opinião
que também era de Baudelaire, uma das influências diretas sobre Raul Pompéia e, assim
como Flaubert, um dos ícones do Decadentismo. Os primeiros leitores d‘O Ateneu não
titubearam em identificar os matizes decadentistas do livro de Pompéia, dentre os quais, o
da prosa poética, o velo de ouro do herói moderno. A obsessão de Raul Pompéia pela
forma poética mesura toda sua prosa, estruturando os outros gêneros por ele exercitados,
seja o teatro, a novela, a crônica, a crítica de arte e, sobretudo, seu único romance. Uma
obsessão mais visível nas Canções sem metro, mas que se codifica de maneira importantíssima
na estrutura ―vibrante‖ e ―colorida‖ d‘O Ateneu. Eis como o sublinham: ―Quem quiser
captar decassílabos e alexandrinos no estilo de Pompéia encontrá-los-á em toda a parte de
suas obras, sobretudo em ‗O Ateneu‘, mas em certos trechos desse romance é que o
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número cedeu a uma fluidez mais característica de impregnação simbolista‖ (GOMES,
1958). Vejam um Huysmans:
O estilo vívido e sumamente maneiroso de Huysmans, com os seus
arcaísmos, a sua aglomeração de epítetos, a um tempo rico e recherché, a
sua grande cópia de imagens visuais, vinham apresentar uma espécie de
santo do estetismo, que abrira mão de todas as distrações normais da
vida social, afim de arder, tal como Pater, com a chama viva e fugaz da
sensibilidade estética (LAVER, 1961: 22).
E, outra vez, Wilde:
A arte começa com uma decoração, com um trabalho puramente
imaginativo e agradável, aplicado ao irreal e ao não existente. É esta a
primeira etapa. Depois a Vida, fascinada por esta nova maravilha, solicita
sua entrada no círculo encantado. A Arte toma a vida entre seus
materiais toscos, cria-a de novo e torna a modelá-la em novas formas e
com uma absoluta indiferença pelos fatos, inventa, imagina, sonha e
conserva entre ela e a irrealidade a intransponível barreira do belo estilo,
do método decorativo ou ideal. A terceira etapa se inicia, quando a vida
predomina e atira a Arte ao deserto. Esta é a verdadeira decadência e é
por isso que sofremos atualmente (WILDE, 1961: 1079).
Vejam agora como nesses decadentes identificamos muito da ―sensibilidade estética‖
de Raul Pompéia. Eis o panorama onde melhor podemos situar a psicologia estética,
segundo Araripe Júnior, de Raul Pompéia no século XIX e que o projeta, por conseguinte,
no diálogo com autores da mais sofisticada modernidade, a exemplo de James Joyce.
Desmistificada a leitura naturalista d‘O Ateneu, que toma o internato por simulacro
sociológico a partir do qual o autor vilipendiaria o mundo, desmistifica-se também a que se
ocupa de Sérgio como autobiografia de Raul Pompéia, leitura esta incompatível com o
próprio caráter protéico da personagem. A revisão de uma obra guarda surpresas, algo
como relíquias. Hoje, por meio de certo distanciamento, é possível averiguar como O
Ateneu logrou, tão logo publicado, a recepção esclarecedora e até hoje singular destes titãs
da crítica literária nacional, Araripe Júnior e Sílvio Romero.
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Sílvio, embora lendo o livro de Raul Pompéia tão logo de sua publicação, em pleno
frenesi naturalista, teve a sensibilidade escassa na maioria das críticas imediatas, e mesmo
em algumas leituras posteriores desse livro, de justamente distingui-lo de certos caracteres
daquela escola com os quais, segundo ele, opor-se-ia a crônica de saudades de Sérgio. O
crítico sublinha, primeiro, as ―belas qualidades estilísticas‖ (ROMERO, 1949: 436) do
autor, seja no bem manejar ―a difícil arte da prosa‖, seja no construí-la a partir do ―brilho,
no cintilar das frases‖ (ibidem, 447-448). O mais curioso, no entanto, está nas refutações
idiossincráticas contra a escola naturalista, que se adéquam tanto à perspectiva alegórica
quanto ao entendimento da obra de arte ―como estilo‖ que vemos patente em Raul
Pompéia e sintetizada na figura de Dr. Cláudio. Quando aponta a ―intuição monística‖ do
século XIX, o século da historiografia arqueológica, em mostrar a ―continuidade, a unidade
de todos os fatos, de todos os fenômenos, que são o objeto da ciência‖ (idem, 255), intui
sobre uma perspectiva muito barroca. Se pensarmos tal continuidade não como algo que se
repete de maneira uniforme, mas ainda que se transformando, continua a movimentar-se
(algo que Bakhtin apontou no romance, como ―gênero em formação‖, e tanto Pompéia
quanto Joyce o praticaram como ―obra em progresso‖), se pensarmos enfim na
correspondência cíclica dos fragmentos históricos, podemos a leitura de Sílvio Romero
quando, por conseguinte, a confrontamos com os discursos do Dr. Cláudio, segundo o
entendimento da arte como obra social, que em vez de se educar pela natureza, termina
educando-a. Dr. Cláudio, por um lado, afirma: ―Arte, estética, estesia é a educação do
instinto sexual‖. Sílvio Romero, por outro:
A natureza não tem arte; a arte é um produto da cultura humana. [...] A
teoria de Zola fere o princípio fundamental de ser a evolução, o
desenvolvimento, o fieri perpétuo da humanidade o resultado justamente
de uma luta contra a estreiteza, contra a esterilidade da natureza;
desconhece o combate da cultura contra a natura (ROMERO, ibidem:
256).
E segue:
Tudo quanto de elevado e grandioso tem a humanidade produzido é um
resultado dessa luta, desse combate diuturno. A civilização é o
coeficiente desse esforço. O homem natural é o das cavernas, o coevo do
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megatério e do mamute. O homem pode ser definido o animal que faz
estátuas, músicas, edifícios e poemas. É o animal que faz livros
(ROMERO, ibidem: 256-257).
Essa perspectiva é o contrário do que ensejou o Romantismo, o Realismo, o
Naturalismo... Aqui, a psicologia humana em vez de educar o livro, educa-se nele. Ou,
segundo Wilde (ibidem: 1082), a verdade da vida se educa na fantasia da arte, qual a do
primeiro mentiroso que, nos tempos primitivos, sem haver ido à caçada, falou aos seus
como pelejou com o megatério... Eis a educação sentimental do romance, por exemplo, no
autor destas duas fábulas que partem do excremento histórico para a vida moderna, e vice e
versa, que são Bouvard e Pécuchet e Salambôo. Quando Raul Pompéia delineia uma
personagem como Ângela, reiteremos, na qual muitos notam o exemplo perfeito do
naturalismo (como o fez Mário de Andrade), fá-lo também sob o signo da caricatura, da
ironia. Não é o caso de um objeto de tese, ou rechaço ao mundo sexual do internato,
tampouco a válvula autobiográfica que desenha, de jeito igualmente artificioso, a figura
feminina como se a não conhecesse... Nesse desenho caricato o que funciona é a
personagem, não a vida; e o autor deliberadamente a modela como se uma cigana, uma
Carmem das óperas. Mostra-se a sabedoria, tão velha quanto muitas vezes esquecida pelo
século XIX, de que ―a arte não consiste na imitação exata e completa dos fatos e sim na das
simples relações necessárias‖ (ROMERO, ibidem: 257).
*
Enquanto Victor Bérard busca a veracidade da cartografia homérica, sob o frisson
historiográfico do século XIX, James Joyce deliberadamente a reinventa no século XX
sobre o concreto de uma cidade moderna e, em muitos aspectos, comezinha, escavando
assim no demasiadamente humano a forma arquetípica do mito. A forma moderna
almejada por Joyce se delineia num acúmulo de ruínas literárias, num palimpsesto de
fábulas e resíduos etimológicos que lhe permitem atualizar, dentro da estrutura já decrépita
da linguagem literária e, em particular, do romance, os passos épicos de Ulisses. Pouco
importa se o códice de antigos escoliastas – de algum Aristarco de Samos, por exemplo –
ou a trivial novela de Charles Lamb: em outras palavras, não importa a verdade, mas a
fábula, a obra de ficção. Sabemos o quanto Stephen apreciava Wilde; muitos resíduos da
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decadência finissecular apregoada nos aforismos daquele esteta se abeiram da obra
joyceana, sobretudo no A portrait of the artist as a young man, de 1916. Também aqui, assim
como n‘O Ateneu, a escola se abre como espaço saturado de referências culturais onde o
jovem herói moderno trava, cheio de utopias românticas, mas também de malícia
sarcástica, a luta pela sua própria identidade. A identidade se torna heróica como reciclagem
– como queira McLuhan – das muitas técnicas modernas, dentre as quais a da ficção, como
já dito, sob o signo da escrita e da tipografia. No périplo de sua aventura para as páginas do
Ulysses, de 1922, Stephen Dedalus infla o peito como um Teseu vitorioso, invocando ao
Criador boas alvíssaras na busca do que ele chama ―a forma ainda não moldada‖ de minha
raça – ou melhor, a forma artística já impossível no romance, senão estraçalhado como no
Finnegans Wake, em todo caso uma forma em contínuo devir, ou obra em progresso como
o próprio romance...
O signo viqueano, barroco, do ricorso às ruínas ancestrais, é importantíssimo no
entendimento histórico a partir do século XIX, contrapondo o espiritualismo romântico,
neo-hegeliano e neokantista de uma unidade infinita à compreensão barroca da história
como ruína revisitada por Walter Benjamin, que sintetiza toda a crise não apenas conceitual
como formal da contemporaneidade e sua própria ausência de forma. Daí a identificação
dos contemporâneos, a partir dos impressionistas e decadentes, com o barroco no que este
implica, em parte, de fragmentação e metamorfose, mas também de uma apoteose da
forma não como verdade, mas antes como artes do engenho, criação artística (ou, como
lembrado por alguns leitores, dentre os quais Machado de Assis, da écriture artiste que Raul
Pompéia apreende de seu panorama, a partir dos Goncourt). A decadência dos séculos
XIX e XX reitera o limite das civilizações assinalado por Vico, quando estas atingem o
acúmulo – o acúmulo técnico, científico, cultural da burguesia democrática –, saturando-se,
até se voltarem à decadência, devorando-se umas as outras, enfim, arruinando-se. A
linguagem, primeiro código das civilizações, é quem primeiro o denota, tornando-se estéril
pelo uso, algo como o lixo de uma lixívia. A cultura, por demais civilizada, como se
cristaliza e quebra, voltando outra vez ao caos de sua origem. Nessa volta – que segundo
McLuhan implica na reciclagem do lixo civilizatório – ganha vulto outra vez o poeta, aquele
que se distingue porque inventa e, por isso mesmo, se reveste das formas heróicas do mito.
O poeta é o herói da modernidade porque inventa, mas já não inventa como nos tempos
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arcaicos, fingindo a natureza; resta-lhe agora fingir a partir dos próprios detritos da história,
ou seja, reciclando a ruína. Flaubert foi mestre disso.
Não é difícil perceber como a vida, a social e biológica, e não menos a verdade
histórica, deixam-se negligenciar nas páginas d‘O Ateneu, em favor da invenção. Uma
olhadela num fragmento do discurso do Dr. Cláudio: ―Extasia, educação do instinto
sexual‖. Além de uma espécie de alter ego do pensamento estético de Raul Pompéia, Dr.
Cláudio sintetiza um núcleo teórico que se realiza em todo o romance, do começo ao fim.
No século de Raul Pompéia, ou melhor, na decadência finissecular quando publica O
Ateneu, todos os meios sociais da elite se empanturram das últimas tecnologias. É a
sociedade de Dom Pedro II, um entusiasta do progresso das civilizações (ao passo que um
dos primeiros a escavar o passado). A escola, que se apresenta como microcosmo formador
da sociedade, não deixa também de consumi-las. O próprio Aristarco se arvora a última
tendência da pedagogia moderna. Os manuais didáticos, os aparelhos científicos e
ginásticos etc., tudo no Ateneu rescende a novidade... Menos o diretor, que Sérgio descreve
tão decrépito como uma múmia engalanada de condecorações por seu labor pedagógico,
imortal e também ―heróico‖; enfim, como uma ―couraça de grilos gritando ao peito‖. Sob
toda a casca de plaquê do Ateneu jazem as raízes de sua antiguidade arquetípica, a única
que dá sentido aos clichês, caricaturas, metáforas e, por fim, a todo o mecanismo alegórico
da supostamente ingênua, ou despeitada, crônica de saudades de Sérgio. Nisto reside a
identificação do poeta, como inventor de linguagem, com o herói mítico: ―O inventor, o
descobridor de novas formas e novas tecnologias, era, para o homem arcaico, alguém que
era mais que um homem [...]. Para o homem arcaico a linguagem é algo que conjura de
imediato a realidade, uma forma mágica‖ (MACLUHAN, 1973: 141). Sobretudo quando
dos alfabetos, e sua organização automática, permanecer inventando sobre o código social
era algo apenas do poeta. O heroísmo de Sérgio se identifica, assim, com os antigos poetas
os quais, algo divinos, algo míticos, manejavam as forças criativas da linguagem.
O poeta, como inventor de linguagem, se identifica com o herói mítico: ―O inventor,
o descobridor de novas formas e novas tecnologias, era, para o homem arcaico, alguém que
era mais que um homem [...]. Para o homem arcaico a linguagem é algo que conjura de
imediato a realidade, uma forma mágica‖ (MACLUHAN, ibidem: 141). Ou: ―A sacralização
do arquétipo foi trabalho do homem civilizado com sua perspectiva literal e histórica‖
(idem, ibidem: 144). O romântico almeja a estátua; o decadente, neobarroco, o pedaço de
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mármore. O primeiro se lança ao encontro de sua personalidade; o segundo põe a máscara,
e outra vez mente... Quando Sérgio se mostra um romântico, na verdade é o clichê que ele
incorpora, é o fragmento que ele submete ao processo de suas colagens, digna de um estilo
que levou a considerá-lo última expressão de um barroco tardio entre nós (bem, não
esqueçamos os sertões de Euclides da Cunha e Guimarães Rosa...).
Naquela ―fonte espiritual‖, aonde afluía ―a fina flor da sociedade brasileira‖, bebe
Sérgio, o protagonista, e com ele, nós leitores; mas é preciso sondar com mais perícia
justamente a água turva, prolífera, cheia de microorganismos sígnicos, na qual a imagem
narcisista de um narrador em primeira pessoa, supostamente inteiriço, se quebra dentro do
discurso literário, multiplicada já em estilhaços e modulações que se metamorfoseiam a
todo instante em imagens outras, especulares. Sérgio é a voz onipresente e onipotente desta
―crônica de saudades‖, mas não a única, ou melhor, uma voz polifônica, impregnada de
outros discursos, de ecos remissivos à origem da própria obra de ficção: nostálgico, de
maneira dramática, das fontes primevas da fábula. À crítica resta voltar-se a essa origem,
manejando os resultados positivos de sua pesquisa (e há vários, dos primeiros aos mais
recentes críticos, no sentido da compreensão do valor estético de Raul Pompéia) e entendêla como vital ao processo de criação deste livro. O Ateneu é, simultaneamente, uma tese e
uma obra de criação, ou seja, uma metalinguagem do discurso literário em geral e do
romance em particular, que decompõe a historiografia literária por meio de processos
fragmentários como a paródia e a caricatura, resultando daí quadros sintéticos, fragmentos
alegóricos que ao mesmo tempo ilustram e materializam o pensamento estético do autor
por meio de múltiplos artifícios verbais e imagéticos.
Não seria demais evocar para O Ateneu as referências de Edwin Muir a respeito da
saga em busca do tempo perdido de Marcel Proust, quanto à epopeia deste como uma
―coleção de outros romances dramáticos e de personagens entretecidos uns com os
outros‖, segundo ele, ―com um fim não na ação externa, mas na mente do autor: antes o
fim de uma busca do que de um conflito‖ (MUIR, s/d: 73). O incêndio pode não resultar
de um ―conflito‖ em parte dispensável dentro do enredo (BARBOSA, 2000: 16), mas
inegavelmente sucede a uma sequência de conflitos estruturais e imagéticos entremeados
no plano expressivo da linguagem de Sérgio. Outrossim, resulta da busca nostálgica deste
jovem aedo pela origem poética do romance a qual, sabemos, é o texto épico, lançado em
sua crônica de saudades desde o signo da ―luta‖; um intertexto ou palimpsesto que termina,
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sempre, sobre ruínas, como já notado, e que vale reiterar, em relação ao tempo no romance
dramático ou, melhor, dramatizado:
O sentimento de tempo, então, pode ser amplamente dissimilar em
diferentes romances dramáticos; nossa captação do fim para o qual ele se
movimenta pode ser definida ou indefinida; a marcha da ação pode ser mais
lenta ou mais rápida, mas talvez se tenha dito o suficiente para mostrar que a
sensação de tempo esgotando-se dá a verdadeira margem à emoção
dramática. No romance dramático, pois, como em toda a literatura
dramática, o tempo se move e, portanto, vai mover-se para seu fim e
destruir-se (MUIR, s/d: 46).
Ou ainda:
O final de qualquer romance dramático será uma solução do problema que
põe os eventos em movimento; a ação específica terá se completado,
produzindo um equilíbrio ou resultando em alguma catástrofe que não pode
ter prosseguimento por mais tempo. equilíbrio ou morte, estes são os dois
finais em direção aos quais se move o romance dramático (MUIR, s/d: 3132).
Eis Aristarco sobre o ―desastre universal de sua obra‖. E nós ante as ruínas do
espetáculo... Neste livro, é preciso vê-lo com olhos de artista, Raul Pompéia evoca a origem
poética da linguagem literária – aí sim, não se tem percebido tal radicalismo, tal beleza! –
por meio de uma mecânica que desloca a circunstância enunciativa de Sérgio, o narrador
―psicológico‖, para uma voz arquetípica, ou polifonia, por meio das artes do engenho de
um barroco moderno que revisita o pensamento estético da linguagem, materializando-o na
estrutura, na forma outra vez apoteótica – como se uma rapsódia epopeica – deste resíduo
da fábula, o romance.
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12.
A CARNAVALIZAÇÃO LITERÁRIA EM SARAMAGO: ENTRE O RISO
E AS RUÍNAS
PAIVA, K. A. R. de. (IFRN) - autora55
ARAÚJO, R. D. de. (IFRN) - coautora56
Se podes olhar, vê. Se podes ver,
repara.
(Epígrafe de abertura de Ensaio sobre a
Cegueira, extraída do Livro dos
Conselhos)
Mal abrimos o Ensaio sobre a Cegueira e lá está uma epígrafe nos desafiando a
reparar. Mas, o que será mostrado a ponto de necessitar ―reparação‖? Se explorarmos a
carga semântica dessa recomendação inicial de leitura, essa reparação tanto pode significar
dirigir ou fixar a vista, perceber ou notar, consertar ou restaurar.
Assim, iniciamos uma leitura: cheios de questionamentos, deparando-nos com um
enredo que se propõe dialógico e paradoxal antes mesmo de começar, já que o título nos dá
pistas de que o romance pretende ressaltar a cegueira, enquanto a epígrafe nos desafia ao
exercício do olhar.
O livro, ironicamente, faz com que o leitor enxergue e tema a própria humanidade
da qual faz parte, diante de uma situação de caos: uma epidemia de cegueira. A partir da
súbita e inexplicável epidemia, o enredo passeia livremente pelas vias da desorganização e
da superação de valores mais básicos da sociedade, mostrando as faces ocultas dos seus
personagens egoístas, numa luta travada consigo e com o mundo desolador que os cerca,
em favor da própria sobrevivência. Esse mundo os rejeita em virtude de estarem cegos e
por temerem acontecer o mesmo com os demais indivíduos que ainda vêem, isolando
aqueles no manicômio - submundo dos cegos. Em meio a esse caos, existe a mulher do
médico, única personagem que transita incólume sem ser infectada pela epidemia. É através
dos olhos dela que assistimos aos acontecimentos. Seu cônjuge, um oftalmologista, não
consegue explicar ou sequer solucionar a enfermidade que acomete os humanos, aliás, ele
55
Kalina Alessandra Rodrigues de Paiva é professora do IFRN, graduada em Letras, especialista em
Educação e mestra em Estudos da Linguagem pela UFRN. E-mail: [email protected]
56
Roberta Duarte de Araújo é professora substituta do IFRN, graduada em Letras e mestra em Estudos da
Linguagem pela UFRN. E-mail: [email protected]
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figurará como cego no enredo, não diferindo dos demais.
Ao peregrinarmos pelo enredo, acompanhando esses cegos, percebemos
que Saramago confere ao humor um espaço que habita as entrelinhas do romance. Não se
trata de um humor desbragado, mas amargo, lapidado a partir de situações experimentadas
pelos personagens à semelhança do estado de exceção vivido em contexto de guerra.
Nesse sentido, Saramago fornece-nos material suficiente para investigarmos um
campo importante na literatura: o cômico, permeado pela ironia, paródia, sarcasmo,enfim
diferentes níveis de humor.
Em entrevista para a Revista de Língua Portuguesa (2005), sobre o procedimento
narrativo presente no Ensaio sobre a Cegueira, Saramago afirmou escrever como quem faz
música, decidindo abolir os sinais de pontuação para criar um ritmo próximo da palavra
falada em seus romances. Assim, lembrando-nos que ―A voz é a vista de quem não vê‖
(SARAMAGO, 1996, p. 120), a musicalidade aparece em sua obra.
No romance, a ligação entre o que se diz e o modo como se diz tem um
lugar muito especial. É claro que, se escrevesse de outra maneira, contava
a mesma história. O que ocorre é que transponho para o discurso escrito
os mecanismos da fala. Afinal, quando nós falamos não estamos a fazer
parágrafos nem pontos de interrogação. Falamos como se estivéssemos a
fazer música, com sons e pausas. Proponho, então, um pacto, dizendo:
aqui não há sinais de pontuação, o que há são sinalizações de pausa; uma
leve, simbolizada por uma vírgula, e outra um pouco mais longa,
representada pelo ponto final. Se o leitor aceita esse pacto, a história
segue. (SARAMAGO, 2005, p. 18).
Neste pacto estabelecido entre leitor e texto, a leitura se transforma numa via de
possibilidades musicais, marcadas pela leitura ora pausada, ora mais acelerada.
Essas possibilidades musicais são permitidas e alcançadas a partir da forma
saramagueana de organizar o discurso, isto é, a substituição das marcas tipográficas que
separam a fala do narrador da fala dos personagens por vírgulas, seguidas de uma letra
maiúscula, demarcando mudança de fala. O ESC não só discorre sobre o olhar como
exerce uma função metalinguística, exigindo um olhar diferente do usual para a obra de arte
e o faz a começar pelos aspectos gráficos. É uma educação do olhar, através de um jogo
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temático, verbal e musical; um mosaico, um labirinto a ser percebido via plano de
expressão (forma como o enredo se apresenta) aliado ao plano de conteúdo (temática
abordada pelo ensaio). E quanto mais se joga, mais elementos se percebem, bem ao estilo
Barroco.
Se por um lado, temos inovações nos aspectos sonoros e tipográficos da obra em
estudo, também encontramos marcas implícitas na estrutura do romance, por meio das
quais detectamos rebaixamento paródico em diferentes níveis de riso, à luz de Bakhtin.
Ao comentar sobre a estrutura romanesca em Dostoievski, Bakhtin falava sobre a
capacidade de renovação do gênero literário, afirmando que
O gênero sempre é e não é o mesmo, sempre é novo e velho ao mesmo
tempo. O gênero renasce e se renova em cada nova etapa do
desenvolvimento da literatura e em cada obra individual de um dado
gênero. Nisto consiste a vida do gênero (BAKHTIN, 1997, p. 106).
Isso implica assegurar a unidade e a continuidade do desenvolvimento literário, ou,
caso contrário, as obras de arte enquadradas como romance manteriam sempre a mesma
estrutura, não oferecendo nada de novo.
Nessa busca de desenvolvimento do gênero, tomando como exemplo o ESC,
percebemos a presença de uma literatura que sofreu influência de diferentes modalidades
de folclore carnavalesco, intitulada de literatura carnavalizada que figura o campo do sériocômico.
Bakhtin (1997) nos alerta que, enquanto festividade, o carnaval não é um fenômeno
literário, mas como criou uma linguagem de formas concreto-sensoriais simbólicas, o
teórico toma a cosmovisão carnavalesca como empréstimo para compor a teoria da
carnavalização na literatura.
Segundo o teórico, uma literatura sofre processo de carnavalização quando:
a) o objeto da representação passa a ser a realidade inacabada e não o elemento
mítico;
b) não se baseia na lenda nem se consagra através dela, mas sim na fantasia livre,
desmascarando a lenda de forma crítica e cínica (leia-se: por meio do humor); c) há
pluralidade de estilos e variedade de vozes, renunciando a unidade estilística para dar lugar
à politonalidade da narração, fundindo sublime e vulgar, sério e cômico, empregando
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gêneros intercalados (cartas, diálogos relatados, paródia de gêneros literários elevados,
citações recriadas em paródia).
Essas mudanças provocam outros efeitos na narrativa, tais como: a quebra da
hierarquia socialmente imposta; a permissão da liberdade comportamental, gestual e
discursiva de forma excêntrica; as mésalliances carnavalescas, isto é, as livres relações que
se estendem a tudo (valores, ideias, fenômenos e coisas), combinando elementos antes
fechados,
separados,
distanciados pela cosmovisão
hierárquica extracarnavalesca
(sagrado/profano); a profanação, resultante da paródia de textos sagrados, configurando
sacrilégios, descidas e indecências. Exatamente por promoverem a livre familiarização do
homem com o mundo, essas categorias carnavalescas foram transpostas para a literatura.
Isso destruiu as distâncias épica e trágica e refletiu substancialmente na estrutura do enredo.
A fim de entendermos melhor essas categorias carnavalescas, entrelaçaremos a
teoria bakhtiniana com algumas cenas do romance saramagueano.
Para Bakhtin (1988), a paródia consiste numa construção dialógica muito especial
por meio da qual o discurso que representa estabelece uma relação de desmascaramento em
relação ao discurso representado, desentronizando-o. Nela, encontram-se as mais variadas
formas de linguagens determinadas por inter-relações, desejos verbais e discursivos que se
encontram nos enunciados. Ainda segundo o autor, a paródia ―introduz livremente um
material de outrem nos temas contemporâneos [...], põe à prova a língua estilizada,
colocando-a em situações novas e impossíveis para ela‖. (BAKHTIN, 1997, p. 102).
Acreditamos que a paródia não somente desentroniza uma imagem primeira, um
texto primeiro, mas também a resgata, não a deixando cair no esquecimento, pois a paródia
também apresenta essa função: a de trazer à memória um elemento parodiado, mesmo que,
para isso, subverta-o.
Em ESC, existe fusão do trágico com o cômico que, em si, já constitui uma
hibridização de gêneros e oferece outras fusões do sublime com o vulgar, empregando
gêneros intercalados.
No segundo capítulo do livro, encontramos elementos do cômico por meio do uso
parodiado de um dito popular. Enquanto o primeiro cego sofre o infortúnio da desgraçada
cegueira e um homem se oferece para ajudá-lo a voltar para casa dirigindo seu carro, o
narrador nos lembra: ―se é certo que a ocasião nem sempre faz o ladrão, também é certo
que o ajuda muito‖ (SARAMAGO, 1996, p. 25). Enquanto a dor de um dos personagens é
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apresentada, o narrador faz do momento uma piada em forma de dito popular reconstruído
como prenúncio de que assistiremos à ação de um ladrão de cego que também cegará após
o roubo. Mais requintada ainda é a expressão ―bom samaritano‖, remetendo-nos
parodicamente à parábola cristã que assegura a honestidade neste mundo, muito embora –
no contexto do romance - o ―bom samaritano‖ que se dispõe a ajudar o primeiro cego não
faça jus ao episódio bíblico original que motiva a paródia.
A própria descrição da linguagem com que os cegos se comunicam é de um humor
amargo, pois eles não falam, eles ladram. Considerando que ladrar significa latir ou proferir
com violência, então, que tipo de comportamento esperamos desta ―outra raça de cães‖
(SARAMAGO, 1996, p. 64)? A narrativa segue dando lugar à musicalidade da linguagem
canina falada pelos homens, funcionando como melodia para a metamorfose por que
passam os cegos, pois passam de humanos a animais, de animais a seres bestializados; um
prenúncio do caos em que a humanidade vai adentrando.
No liame entre o sério e o cômico, o romance prossegue através das palavras das
personagens que insistem em falar sobre impossibilidades de nomeação da cegueira, do que
estão vivendo, enfim, de tudo que os cerca. Enquanto isso, o adâmico narrador esbanja
imagens e situações sem economizar as classes de palavras, desenhando as cenas de horror
com humor amargo.
No 5º capítulo, os cegos questionam a validade de um especialista em olhos que
não pode ver:
Quem é este, a resposta veio do primeiro cego, É médico, um médico
dos olhos, Esta é das melhores que ouvi na vida, disse o motorista, logo
nos havia de ter saído na rifa o único médico que não nos vai servir para
nada, Também nos saiu na rifa um motorista que não nos levará a parte
alguma, rispostou com sarcasmo a rapariga de óculos escuros.
(SARAMAGO, 1996, p. 68).
Retextualizando o que nos diz as personagens para o provérbio popular: ―chumbo
trocado não dói‖. É bem isso que acontece entre as afirmações sarcásticas das personagens.
À medida que lemos, o nível de linguagem avança em violência e animalidade. Aqui, por
enquanto, as ironias são refinadas, alegóricas – porque dizem uma coisa para significar
outra – e sinalizam para o leitor que os ânimos das personagens, por enquanto, estão sob
controle.
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Ainda neste capítulo, mais adiante no enredo, a rapariga de óculos escuros disfarça
as lágrimas, usando colírio em olhos que já não vêem. E quanto mais o romance avança,
encontramos o surrealismo da obra, à medida que temos a sensação de passar os nossos
olhos por uma nau de loucos. Ao fim deste capítulo, acontece uma execução. Ela permitirá
uma pausa para um olhar mais apurado, já que consideramos uma cena representativa, haja
vista que o cadáver se torna um problema. ―Esse problema‖ se instala quando a mulher do
médico aponta a possibilidade de o cadáver contagiar os outros que não cegaram, inclusive
os militares de serviço. Estes últimos providenciam uma enxada para cavar uma sepultura, a
fim de enterrar não só o corpo, mas também qualquer possibilidade de propagação da
doença.
Ademais, um fato que deve ser lembrado é a justificativa para a execução, a saber,
―a legítima defesa do soldado‖. Agora, imaginemos um soldado com uma arma de última
geração atirando num homem desarmado e cego – Eis a representação da covardia diante
do que existe de mais inofensivo: um cego desarmado. Vejamos o fragmento em que a
mulher do médico, supostamente cega, é guiada pelos militares, até uma enxada para cavar
e enterrar o cadáver do ladrão:
Não me posso esquecer de que estou cega, pensou a mulher do médico,
Onde está, perguntou, Desce a escada, que já te irei guiando, respondeu
o sargento, muito bem, agora anda na direção em que estás, assim, assim,
alto, vira-te um pouco para a direita, não, para a esquerda, menos, menos
do que isso, agora em frente, se não te desviares vais dar com o nariz
mesmo em cima dela, quente, a escaldar, merda, eu disse que não te
desviasses, frio, frio, está a aquecer outra vez, quente, cada vez mais
quente, pronto, agora dá meia volta que eu torno a guiar-te, não quero
que fiques para aí como uma burra à nora, às voltas, e me venhas parar
ao portão, Não estejas tão preocupado, pensou ela, irei daqui à porta em
linha reta, no fim de contas tanto faz, ainda que ficasses a desconfiar de
que não estou cega, a mim que me importa, não virás cá dentro buscarme. Pôs a enxada ao ombro, como um cavador que vai ao seu trabalho, e
caminhou na direcção da porta sem se desviar um passo, Nosso
sargento, já viu aquilo, exclamou um dos soldados, até parece que ela
tem olhos, Os cegos aprendem depressa a orientar-se, explicou,
convicto, o sargento. (SARAMAGO, 1996, p. 85-6).
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Afinal, quem é o cego nesta passagem? O sargento pensa que guia uma cega, e o faz
semelhantemente a uma brincadeira do folclore infantil, o jogo do quente/frio que,
segundo Duarte (2000), é originário da Suíça. Percebemos, então, uma hibridização de
gêneros com introdução de um jogo folclórico no enredo do romance estudado.
Refletindo sobre a inserção de um gênero em outro, encontramos uma das
peculiaridades da literatura carnavalizada que, segundo Bakhtin (1997), se caracteriza pela
pluralidade de estilos e a variedade de vozes de todos esses gêneros, isto é, pela
politonalidade da narração, no momento em que intercala gêneros, a fim de dar andamento
ao enredo por meio da fantasia livre, oferecendo novo tratamento à realidade. Dessa forma,
o discurso da representação faz surgir o discurso representado.
No oitavo capítulo, aparece um elemento da arte pictórica, no mínimo, curioso:
uma tela que, na verdade, contém 7 telas conhecidas. Como se era de esperar, Saramago
decidiu lançar mais um desafio ao olhar dos leitores, pois não há nomes de pintores e sim
nacionalidade de alguns; inexistem os nomes das obras, porém há uma descrição das
imagens. É com essas pistas que o leitor tem de chegar a uma imagem paródica e alegórica.
[...] O último que eu vi foi um quadro, Um quadro, repetiu o velho da
venda preta, e onde estava, Tinha ido ao museu, era uma seara com
corvos e ciprestes e um sol que dava a ideia de ter sido feito com
bocados doutros sóis, Isso tem todo o aspecto de ser de um holandês,
Creio que sim, mas havia também um cão a afundar-se, já estava meio
enterrado, o infeliz, Quanto a esse, só pode ser de um espanhol, antes
dele ninguém tinha pintado assim um cão, depois dele ninguém mais se
atreveu, Provavelmente, e havia uma carroça carregada de feno, puxada
por cavalos, a atravessar uma ribeira, Tinha uma casa à esquerda, Sim,
Então é de inglês, Poderia ser, mas não creio, porque havia lá também
uma mulher com uma criança ao colo, Crianças ao colo de mulheres é do
mais que se vê em pintura, De facto, tenho reparado, O que eu não
entendo é como poderiam encontrar-se em um único quadro pinturas
tão diferentes e de tão diferentes pintores, assim. (SARAMAGO, 1996,
p. 130-1).
A conclusão a que chegamos sobre essas várias imagens, fundidas numa só? São
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excessivas e despertam a sensação de angústia no observador, tal como as imagens
barrocas. A sensação decorrente da leitura dessa tela, à medida que os objetos artísticos são
descritos na obra, é de uma ansiedade sem precedente, pois o narrador revela pistas sobre o
objeto artístico, envolvendo o leitor como peça desse jogo. Num livre exercício semiótico,
decidimos materializar a descrição saramagueana:
Não por acaso A Seara com Corvos (1890), do holandês Van Gogh é citada
inicialmente. Essa tela foi a última produção desse artista, antes do seu suicídio. As cores
quentes nela utilizadas marcam a intensa fase em que o pintor produzia (uma tela por dia!)
dentro do manicômio onde esteve internado. Tais cores são as preferidas dos loucos.
Por sua vez, o cão enterrado, pelas características estéticas, corresponde ao de
Picasso, muito embora Dali também tenha produzido uma tela em que aparece um animal
semelhante. O que nos faz optar pelo primeiro? O traço jamais utilizado em pintura
outrora. Dali se inspirou nos modelos neoclássicos para compor sua arte surrealista, já
Pablo Picasso, não. Esse último parece ―rascunhar‖ sua imagem. Além disso, o próprio
enredo do ESC é fragmentado, tal qual a arte cubista. Mesmo assim, se necessitássemos
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traduzir a linguagem do ESC em pintura, certamente, a obra seria cubista, pela sua
fragmentação cenográfica; barroca, pelos contrastes não só pelo jogo de luz e sombra, mas
pela suntuosidade da catástrofe; moderna, pela capacidade de reunir várias tendências
estéticas.
Seguindo a linha de raciocínio da narrativa, é-nos apresentada a tela do inglês John
Constable, O carro de feno (1820-1821). O que a tela de cenário bucólico tem a acrescentar
a este conjunto ―desarmônico‖? À semelhança de Saramago, o inglês produziu uma arte
fora dos padrões acadêmicos. Aliás, o português é contrário ao academicismo que impede a
criação artística. Constable está para a ruptura no tratamento impressionista da cor, sendo
um dos pioneiros a pintar ao ar livre, assim como Saramago o está para a ruptura com a
sintaxe, com a gramática normativa.
Já que o romancista não é adepto do academicismo, seria natural que ele instigasse a
imaginação do leitor para a tela seguinte: a mãe com uma criança no colo.
Presente na cultura judaico-cristã, a mãe de Jesus segurando-o no colo ainda
menino figura na lista das imagens mais parodiadas na pintura. As representações da mãe
de Nosso Senhor ultrapassam as barreiras do tempo e a nacionalidade dos artistas,
aparecendo nas estéticas bizantina, barroca, renascentista, romântica, entre outras.
Escolhemos, portanto, a Madona de Salvador Dali, Madonna Port Lligat (2ª versão
-1950), a título de composição da imagem, muito embora ela não seja descrita no texto.
Em seguida, A Última Ceia (1495-1498), de Da Vinci, que nos prepara mais uma
vez para a morte. A escolha dessas telas é regida pelo signo da morte. Então, passamos a
―reparar‖ que a tela é metalinguística, visto que a vida das personagens e a representação da
vida na arte se irmanam.
A seguir, Vênus é revelada entre as telas A Última Ceia e a cena da batalha.
Na tela, Vênus é a deusa, emergindo das águas em uma concha, empurrada para a
margem pelos ventos do oeste. Símbolo das paixões espirituais, assemelha-se à mesma
representação produzida pelas antigas estátuas de mármore com longos membros e
traços harmoniosos. É surpreendente que o quadro tenha escapado das fogueiras que
consumiram tantas outras obras de Botticelli, já que possui um tema pagão e foi pintado
em um período histórico o qual os artistas se atinham a temas católicos. Ao inserir este
quadro como fragmento da imagem descrita pelo cego, Saramago consegue unir as duas
pontas do sagrado e do profano, regados pela sinergia afetiva das sensações, de
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sentimentos e da sensualidade. Em torno de Vênus existe ―a atração simpática pelo objeto,
a embriaguez, o sorriso, a sedução, o impulso de prazer‖. (CHEVALIER;
GHEERBRANT, 2005, pág. 938).
A última das telas fecha o ciclo vital, trazendo uma batalha que não escolhe faixa
etária, raça, crença ou gênero. Estamos mais uma vez sob o signo da morte, da finitude. E a
imagem faz questão de deixar isso claro, iniciando com a temática e fechando-se nela de
igual modo: apontando na direção da morte.
Na realidade, acreditamos que a tela do ESC é uma alegoria da vida e da arte, da
estética e da concepção artística como um todo. Por meio dela, a memória da modernidade
é forjada numa imagem que abarca sete outras diferentes em todos os sentidos. Tais
diferenças são necessárias para a compreensão do convite ao olhar feito desde a epígrafe de
abertura. Nesse sentido, Saramago empreende um meticuloso trabalho de investigação,
demonstrando conhecimento da tradição pictórica que, à semelhança de um exímio
retratista e pintor de paisagem, vai oferecendo detalhes históricos na tela antropofágica.
No contexto da tela, a representação de cada paisagem é importante, quando
relacionada às ações humanas se levarmos para o que está ocorrendo com os personagens
do enredo. Para discutirmos essa ―humanidade‖, temos um contraponto personificado na
figura de um cão, o das lágrimas, mais humano e autêntico do que os cegos que, mesmo
padecendo do mal branco, são incapazes de se verem inseridos num padrão de
normalidade imposto pelo ―filtro condicionado socialmente‖. (BARROS, 2004, p. 45).
O filtro social seria constituído por uma série de elementos, como a linguagem, a
lógica, os tabus sociais, mas também por uma série de hábitos enraizados, de atitudes
automatizadas e de impulsos que dão origem a práticas culturais diversas.
Esse caráter social corresponde a ―um núcleo da estrutura do caráter que é inerente
à maioria dos membros da mesma cultura, diferentemente do caráter individual que varia
entre as pessoas da mesma cultura‖. (BARROS apud FROMM, 2004, p. 45).
Relacionando esse pensamento com a personagem o cão das lágrimas do romance e
o cão pintado por Picasso, percebemos o porquê de serem tão diferentes, visto que são
personagens autênticas e que preservam um caráter individual que parece faltar aos cegos,
por isso encontramos a humanidade nos cães e não nos homens. Estes últimos, inclusive,
decidiram usam a mesma linguagem: ladrar.
A cena chama a atenção do espectador, pois legitima um pensamento coletivo
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condicionado pelo filtro social sobre a arte, sobre o fazer artístico. A representação dessa
imagem assegura a comunicação entre um passado histórico, dependente das regras
artísticas ditadas pelo consumidor da obra de arte. Esse tipo de discussão sobre o mercado
da arte e o simbólico é recorrente nas obras de Saramago.
Em Manual de Pintura e Caligrafia, o narrador diferencia o retratista do pintor,
mostrando ainda que a arte, muitas vezes, não percebida completamente no presente em
que é feita, já que carrega mensagens subliminares.
Faço retratos para pessoas que estimam suficientemente para os
encomendarem e pendurarem em átrios, escritórios, livingues- rumes ou
salas de conselho. Garanto a duração, não garanto a arte, nem ma
pedem, mesmo que eu pudesse dá-la. Uma semelhança melhorada é ao
mais longe que chegam. E como nisso podemos coincidir, não há
decepção para ninguém. Mas isto que faço não é pintura. Apesar das
insuficiências que me deu para aqui confessar, sempre soube que o
retrato justo não foi nunca o retrato feito. (SARAMAGO, 2001, p. 7).
O fator que motiva a produção de uma linguagem implícita na obra de arte,
dependendo do contexto, é o medo de o autor se denunciar:
Só eu sabia que o quadro já estava feito antes da primeira sessão de posse
e que todo o meu trabalho iria disfarçar o que não poderia ser mostrado.
Quanto aos olhos, esses estavam cegos. Assustados e ridículos estão
sempre o pintor e o modelo diante da tela branca, um porque se teme de
ver-se denunciado, outro porque sabe que nunca será capaz de fazer essa
denúncia [...]. (SARAMAGO, 2001, p. 8).
De certa forma, esse ―desabafo‖ do pintor que exerce a função de retratista, serve
como legenda para as obras reunidas na tela do ESC, pois todas elas sofreram críticas, cada
uma em sua época, sobre o conteúdo veiculado entendido como subversivo, herético, entre
outras concepções pejorativas. Essas telas reunidas numa só constroem e legitimam uma
representação do passado. Expor essas obras ao público possibilita a criação de um
consenso acerca do discurso sobre o passado, através da circulação dos códigos de
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significação dessas telas, no entanto, a tela do ESC aliada à escrita de Saramago nos faz
questionar sobre as tradições em arte, os modelos, as mensagens moralizadoras da pintura
histórica, pensada e criada para entrar em contato com o público. Saramago, de certa
forma, nos conduz à visão de que, mesmo sendo um bem encomendado, a obra de arte é
fruto de um longo processo que envolve observação, pesquisa e estudo.
Retomando a discussão sobre o processo de carnavalização, a partir de agora,
ressaltaremos outra particularidade do enredo, a saber, a ―combinação orgânica do
fantástico livre e do simbolismo e, às vezes, do elemento místico-religioso com o
naturalismo de submundo‖ (BAKHTIN, 1997, p. 115). Isto que o teórico chama de
naturalismo de submundo mostra que as idéias não são temerosas quanto à lama da vida,
ou seja, o homem se depara com o mal universal, a baixeza e a vulgaridade, ocorrendo em
espaços como prisões, covis de ladrões, entre outros. O espaço mais baixo entra em
primeiro plano.
Dessa forma, temos o manicômio como espaço de elevado simbolismo, do
fantástico da aventura e do naturalismo de submundo. É sobre este propício lugar do ESC
que o narrador experimenta suas posições filosóficas e busca mostrar palavras derradeiras,
decisivas diante dos atos humanos, por isso se tornam comuns as cenas de escândalos, os
comportamentos excêntricos dos personagens, os discursos e declarações inoportunos.
Assim, percebemos, através do narrador, as dúvidas, perplexidades, ilusões e decepções das
quais falava Saramago ao escrever sobre um assunto tão universal: o homem diante de
situações-problemas em espaço marginalizado.
Na cena do estupro, não temos apenas corpos violados, temos discursos violados
também. Um exemplo? As vozes femininas que não têm a liberdade para gritar, para
protestar contra o estupro. No manicômio, as pessoas se reconhecem pela voz, contudo às
mulheres esse direito é privado. Assim, elas seguem silenciando a própria identidade, a
sevícia e o sofrimento, adotando a servidão.
O fato de escolherem para espaço de reclusão um manicômio e, posteriormente,
comparar cegos a loucos já nos prepara para o riso acre e flutuante entre as cenas de
tragédia durante todo o romance.
São três camaratas de cada lado, há que ver como é isto cá dentro, uns
vãos de portas tão estreitos que mais parecem gargalos, uns corredores
tão loucos como os outros ocupantes da casa, começam não se sabe
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porquê, acabam não se sabe onde, e não chega a saber-se o que querem.
(SARAMAGO, 1996, p. 112).
Dentro da atmosfera melancólica do manicômio, os cegos são tidos como loucos.
Aliás, são nomeados assim em vários momentos. Chevalier (2005) nos lembra que o poeta,
assim como o iniciado e o inspirado aparecem como loucos, de acordo com algum aspecto
de seu comportamento, que escapa às normas habituais. A sabedoria, neste sentido, é a
loucura encarnada para aqueles que não conhecem outra regra que o bom senso.
O louco está fora dos limites da razão, fora das normas da sociedade.
Segundo o Evangelho, a sabedoria dos homens é loucura aos olhos de
Deus e a sabedoria de Deus, loucura aos olhos dos homens: por detrás
da palavra loucura se esconde a palavra transcendência. (...) O louco,
segundo a simbologia dos números [no Tarô], quer dizer o limite da
palavra, o lado de lá da soma que não é outra coisa senão o vazio, a
presença superada, que se transforma em ausência, o saber último, que se
torna ignorância, disponibilidade: a cultura, aquilo que fica quando tudo
o mais é esquecido, como se diz. O Louco não é o nada, mas o vácuo do
fana dos sufis, uma vez que nenhum haver é mais necessário, tornandose a consciência do ser a consciência do mundo, da totalidade humana e
material, da qual ele se desligou para avançar mais à frente. (...) ele
caminha na frente, com uma evidência solar, sobre as terras virgens do
conhecimento, para além da cidade dos homens. (CHEVALIER, 2005,
p. 560).
A experiência do manicômio, neste sentido, mostra-nos seres humanos em seu
primitivismo, experimentando, inclusive, a linguagem em sua forma sonora, imprecisa, com
rupturas, elipses, com sua estrutura linguística fraturada, por sinal, características da música
moderna. Um louco falando da loucura é a própria insanidade enlouquecida. Ser louco é
renunciar ao mundo e procurar algo cujo fim não se conhece.
Por buscar o desconhecido, a todo instante, no romance, toda a situação é
mencionada como aquilo que não tem nome, pois ―começam não se sabe o porquê,
acabam não se sabe onde, e não chega a saber-se o que querem‖. (SARAMAGO, 1996, p.
112).
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Para renunciar ao mundo regrado, o louco passa a controverter a ordem. O mesmo
acontece no ambiente carnavalesco que Bakhtin (1997) apresenta da seguinte forma:
Esta é uma vida desviada da sua ordem habitual, em certo sentido uma
vida às avessas, um mundo invertido. As leis, proibições e restrições, que
determinavam o sistema e a ordem da vida comum, isto é,
extracarnavalesca, revogam-se durante o carnaval: revogam-se antes de
tudo o sistema hierárquico. (BAKHTIN, 1997, p. 123).
Quando armados, os cegos malvados se apropriam da comida e a utilizam para
estabelecer uma nova hierarquia. Esquecem-se de que a cegueira é igual para todos, de que
as relações mútuas do homem com o homem são modificadas e que as mésalliances
carnavalescas são necessárias para reorganizar valores, idéias, fenômenos e coisas. Como
não se adéquam à nova organização que tornam iguais todos os cegos, sofrem
destronamento quando seu líder é assassinado pela mulher do médico, cuja ação homicida
traduz um riso de júbilo contra a supremacia. No carnaval é assim: tudo se destrói, mas
também se renova. Apegados a essa afirmativa/promessa, seguimos esperançosos por uma
reviravolta no enredo.
Diante disto, questionamo-nos: até que ponto o limite da insanidade humana é
capaz de chegar? Vítimas da própria loucura, uns mais que outros, vagando e percebendo a
humanidade através dos outros sentidos que lhes restaram, os personagens, silenciados pela
dor e pelo isolamento, esquecem que ainda existe a palavra.
Enquanto os personagens poupam os verbos, o narrador desata mares sonoros de
palavras, velozmente desenhando o amargor que parece não esgotar diante da vitrine de
pessoas que perderam a si mesmas. Riso cortante, corrosivo e implacável do narrador bem
ao gosto de Bakhtin que vê o riso como eco das vozes de seu tempo, da história de um
grupo social, de seus valores, crenças, preconceitos, medos e esperanças.
Pensamos que a loucura em sua forma de sabedoria só pode inspirar temor, o que
faz com que tenhamos piedade dos homens de bom senso. Neste sentido, ter olhos
quando todos perderam pode provocar furor, daí o pedido do médico para que a esposa se
mantivesse calada sobre o fato de ainda ter a capacidade de ver, não só porque os cegos
delas tirariam proveito, mas principalmente porque a sabedoria e, por conseguinte, os olhos
críticos são um perigo numa sociedade que nem se reconhece como tal. Amar a sabedoria é
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assumir a própria loucura. O saber incomoda assim como o louco que profere aparentes
desatinos, subvertendo a ordem, o poder.
Como nem só de loucura e angústia vive o personagem, esperamos a experiência
com o sagrado para dar suporte ao ser ante o peso da morte que ronda o seu destino. No
entanto, ao invés de amenizar a cruel realidade, o sagrado é tocado pelo humor corrosivosubversivo de Saramago, na cômica passagem em que a mulher do médico entra numa
igreja, desmaia e, após recobrar os sentidos, pensa que está louca:
[...] naquele mesmo instante pensou que tinha enlouquecido, ou que
desaparecida a vertigem ficara a sofrer de alucinações, não podia ser
verdade o que os olhos lhe mostravam, aquele homem pregado na cruz
com uma venda branca a tapar-lhe os olhos, e ao lado uma mulher com
o coração trespassado por sete espadas e os olhos também tapados por
uma venda branca, e não eram só este homem e esta mulher que assim
estavam, todas as imagens da igreja tinham olhos vendados, (...) só havia
uma mulher que não tinha os olhos tapados porque já os levava
arrancados numa bandeja de prata. (SARAMAGO, 1996, p. 301).
Na página inteira, o autor repete 18 vezes a palavra ―tapado‖, causando
musicalidade e certo humor corrosivo, pois a palavra ganha uma nova conotação: além do
sentido de venda, aparece como estupidez. Todos estão ―tapados‖, isto é, nem os santos
estão disponíveis para amenizar a desgraçada experiência da cegueira, posto que, inclusive
eles, também possuem olhos e não vêem, contrariando a máxima de que os representantes
e mediadores de Deus, feitos de gesso, a tudo podem ver, estando disponíveis para a tarefa
da salvação dos seus filhos.
Aqui, se por um lado a cegueira não faz distinção de cor, raça, situação econômica,
assemelha-se a Deus quanto à onipresença, à onipotência e à formação de um rebanho
implacável na terra, composto por cegos. Assim, Saramago faz do riso um mecanismo que
ridiculariza a idéia de salvação, ironiza a clemência, subverte a ordem por meio do discurso,
devassando qualquer possibilidade de esperança, diante do catastrófico mal branco. Ao
leitor, só resta mesmo esperar pela morte dos personagens de olhos iluminadamente
abertos. Saramago conduz os personagens, alimentando o andamento da narrativa com a
musicalidade das palavras numa espécie de dança macabra, como se a morte afinasse sua
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rabeca para começar a grotescamente ceifar vidas em potencial, entre aliterações,
repetições, assonâncias. Ao repetir 18 vezes a palavra ―tapado‖, o narrador paulatinamente
vai fechando as possibilidades de salvação que o cego encontraria ao pedir a São João, São
Pedro, São Sebastião, entre tantos outros. É nessa passagem que a situação grotesca se
mistura ao riso. A morte não só ronda como também dança grotescamente mais selvagem
e febril, cercando os cegos, acelerando seu ritmo à medida que o texto corre, sacudindo e
chacoalhando seus ossos. O seu riso lembra sua universalidade celebrada: não importa o
estatuto de uma pessoa em vida, ela, a morte, unirá a todos.
Fomos avisados ainda no capítulo 7 que ―na terra de cegos quem tem um olho é
rei, Deixa lá o outro, Este não é o mesmo, Aqui nem os zarolhos se salvariam‖
(SARAMAGO, 1996, p. 103). A palavra ―outro‖ se refere ao dito popular inadequado à
situação de calamidade em que se encontravam os cegos, antecipando aos leitores que não
há cura para a cegueira da humanidade. O mar de leite prossegue como num pesadelo
cinematográfico.
Finalmente, quando todos os personagens voltam a enxergar, a única mulher que
atravessou o romance assistindo a tudo sente medo e pensa que sua vez é chegada.
Movida pelo medo, ela baixa os olhos e, ao mirar seu rosto para o céu, percebe que
a cidade ainda estava lá. E assim o romance termina: numa felicidade amarga flutuando
num céu de um azul ilusório. Terminamos a leitura não deixando de ver que há – como em
Machado de Assis – uma gota da baba de Caim em toda essa ―felicidade‖ presente.
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2002.
______. Problemas da Poética de Dostoievski. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1997.
BARROS, José D´Assunção. O Campo da História. Especialidade e abordagens. 4.
ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2004.
BENJAMIN, Walter. A Modernidade e os Modernos. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 2000.
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. 19. ed. Rio de
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Janeiro: José Olympio, 2005.
COSTA, Horácio. Entrevista com José Saramago. In: Revista CULT. São Paulo:
Lemos editorial, dez/1998. Número 17.
FOUCAULT, Michael. História da Loucura. São Paulo: Perspectiva, 2004.
JÚNIOR, Luiz Costa Pereira. José Saramago. Um português de sons e pausas. In:
Revista Língua Portuguesa. São Paulo: Editora Segmento, Dez/2005. Ano I, n. 3.
KONDER, Leandro. Walter Benjamin: O Marxismo da Melancolia. Rio de Janeiro:
Campos, 1988.
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Cia das Letras, 1996.
______. Manual de Pintura e Caligrafia. São Paulo: Cia das Letras, 1996.
______. O autor como narrador. In: Revista CULT. São Paulo: Lemos
Editorial, dez/1998. Número 17.
SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
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13.
DOM QUIXOTE - ENTRE O BARROCO E A MODERNIDADE
Jóis Alberto da Silva
(Mestrando em Ciências Sociais da UFRN)
1 – Nosso Senhor Dom Quixote
Analisar as relações do Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, com o Barroco e a
Modernidade é um dos principais objetivos deste artigo. Dom Quixote é considerado, por
muitos críticos literários, o melhor romance já escrito em todos os tempos. Figurando
entre os livros mais traduzidos no mundo, depois da Bíblia, Dom Quixote é um orgulho não
somente para os espanhóis, mas, sobretudo, para toda a humanidade. O El ingenioso hidalgo
don Quijote de la Mancha alcançou sucesso desde o lançamento da primeira parte do livro, em
1605 - a segunda parte foi lançada em 1615, não apenas em decorrência do êxito anterior,
mas também para desmascarar uma fraude: a falsa continuação, ou edição apócrifa do livro,
publicada em 1614 por Alonso Fernández Avellaneda. A partir de então, o livro de
Cervantes conquistou inúmeros leitores em vários países. Cerca de três séculos depois,
entre a segunda metade do século 19 e as três primeiras décadas do século 20, um dos
primeiros escritores da Espanha a destacar a importância da obra-prima de Cervantes para
a formação do caráter nacional espanhol foi o pensador Miguel de Unamuno, nascido em
Bilbao em 1864 e morto em Salamanca em 1936. Para Unamuno, famoso escritor e reitor
da Universidade de Salamanca, com doutorado em Filosofia e Letras pela Universidade de
Madri, essa que é uma das obras-primas da literatura de todos os tempos, ―é a verdadeira
bíblia espanhola, e ‗Nosso Senhor Dom Quixote‘ é um autêntico Cristo‖, conforme citação
de Harold BLOOM (2001).
Crítico literário e professor universitário norte-americano da contemporaneidade,
que tornou-se conhecido no Brasil a partir, principalmente, dos anos 80 do século 20 para
cá, Harold Bloom, na citação, não menciona os livros de Unamuno aos quais se refere. Eu
acrescento aqui, a título de esclarecimento, que possivelmente Bloom se refere à
conferência ―Espanha e os Espanhóis‖ e ao fim do penúltimo capítulo do livro O Sentimento
Trágico da vida, de Miguel de Unamuno. Na conferência, publicada no livro ―Titãs da
Oratória‖, vol. X da antiga coleção ―Os Titãs‖ publicada pela Livraria ―El Ateneo‖,
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UNAMUNO (s/d) comenta: ―(...) comparai o culto dos ingleses a Shakespeare ou dos
alemães a Goethe, com o que acontece entre nós com o bom Cervantes, cuja obra imortal,
a Bíblia Nacional, deveria ser nosso breviário patriótico e matéria de meditação frequente‖
(p. 421). Já em O Sentimento Trágico da Vida, UNAMUNO (1953) faz a seguinte
interpretação do personagem: ―(...) e há uma figura, figura comicamente trágica, figura em
que se vê todo o trágico profundo da comédia humana, a figura de Nosso Senhor D.
Quixote, o Cristo espanhol, em que se cifra e inclui a alma imortal do meu povo‖ (op. cit, p
349). Nesse sentido, segundo a opinião de BLOOM (op. cit, p. 139), Cervantes lhe parece
―o único rival possível de Shakespeare, na literatura de ficção produzida ao longo dos
últimos quatro séculos‖. Ambos, Cervantes e Shakespeare, morreram em 1616. O
dramaturgo inglês era mais moço, já que nasceu em 1564; o pioneiro romancista espanhol
nasceu em 1547. De acordo com Bloom, Shakespeare, evidentemente, leu ‗Dom Quixote‘,
porém é improvável que Cervantes soubesse da existência de Shakespeare.
Pertencente à famosa ―Geração de 98‖, Unamuno é autor de uma vasta obra – que
vai do ensaio, em títulos como Vida de Don Quijote y Sancho (1906), Del Sentimiento Trágico de
la Vida (1912) e La Agonia del Cristianismo (1924) às poesias, como ―El Cristo de Velázques‖
(1920 – considerado o maior poema religioso espanhol desde o século de ouro – passando
pelo teatro e, principalmente, pela novela ou romance, em títulos como Niebla (1914), Abel
Sánchez (1917) e La Tia Tula (1921). Um dos mais destacados sucessores de Unamuno no
cenário cultural da Espanha, da transição do espírito do século 19 para o modernismo do
sec. 20, foi José Ortega y Gasset, autor também de estudos sobre o Dom Quixote, como por
exemplo Meditaciones del Quijote, de 1914. Mais conhecido do público leitor brasileiro, por
títulos como O homem e sua circunstância e La rebelión de las masas (1930), Ortega y Gasset, que
nasceu em Madri em 1883 e morreu na mesma cidade em 1955, tendo se licenciado em
Filosofia e Letras na Universidade de Madri e obtido seu doutorado em 1904, é
considerado ―o máximo filósofo espanhol‖, segundo Julián MARÍAS (2004). Em 1905,
Ortega y Gasset foi para a Alemanha e estudou nas Universidades de Leipzig, Berlim e
Marburgo – nesta última foi discípulo do grande neokantiano Hermann Cohen. Escritor
produtivo – próximo a escritores do movimento literário ultraísmo – e grande estudioso
das principais correntes filosóficas de então, como a fenomenologia de Edmund Husserl,
Ortega posteriormente desenvolveu uma filosofia própria, determinada pela superação de
todo subjetivismo e idealismo, com base no seu sistema de ―metafísica segundo a razão
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vital‖ A partir de 1910 foi catedrático de Metafísica da Universidade de Madri, onde
ministrou cursos até 1936. Segundo MARÍAS,
―A fórmula mais sintética da filosofia de Ortega é a frase das
‗Meditaciones Del Quijote‘, já citada: ‗eu sou eu e minha circunstância‘.
As coisas aparecem interpretadas como circunstância, como o que está
ao redor do eu, referidas, portanto, a ele. Trata-se, portanto, de um
mundo, que não é a soma das coisas, mas o horizonte de totalidade sobre
as coisas e distinto delas; as coisas estão – como eu – no mundo, mas
esse mundo é meu mundo, ou seja, minha circunstância‖ (op. cit, p.
508).
Acerca do texto, que, além do quixotismo, aborda outros temas, ORTEGA Y
GASSET (1953) comenta:
―En las ‗Meditaciones del Quijote‘ intento hacer um estudio del
quijotismo. Pero hay en esta palabra un equívoco. Mi quijotismo no
tiene nada que ver con la mercancia bajo tal nombre ostentada en el
mercado. ‗Don Quijote‘ puede significar dos cosas muy distintas:
‗Don Quijote‘ es um libro y ‗Don Quijote‘ es un personaje de ese
libro. Generalmente, lo que en bueno o en mal sentido se entiende
por ‗quijotismo‘, es el quijotismo del personaje. Estos ensayos, en
cambio, investigan el quijotismo del libro.
La figura de Don Quijote, plantada en medio de la obra como
una antena que recoge todas las alusiones, ha atraído la atención
exclusivamente, en perjuicio del resto de ella, y, en consecuencia, del
personaje mismo. Cierto; con un poco de amor y otro poco de
modéstia – sin ambas cosas no –, podria componerse una parodia
sutil de los ‗Nombres de Cristo‘, aquel lindo libro de simbolización
românica que fué urdiendo Fray Luis com teológica voluptuosidad en
el huerto de la Flecha. Podrian escribirse unos ‗Nombres de Don
Quijote‘. Porque en cierto modo es Don Quijote la parodia triste de
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un cristo más divino y sereno: es él un cristo gótico, macerado en
angustias modernas; un cristo ridículo de nuestro barrio creado por
una imaginación dolorida que perdió su inocencia y su voluntad y
anda buscando otras nuevas (...)‖ (p.326).
Nascido em Alcalá de Henares, Espanha, em 1547, Miguel de Cervantes Saavedra
viveu numa época em que a Idade Moderna estava no início. Poucas décadas antes haviam
ocorrido as grandes viagens marítimas capitaneadas por espanhóis, portugueses, ingleses,
franceses, holandeses, descobridores e colonizadores de novas terras e continentes. Nesse
sentido, o nascente comércio com as colônias européias do Novo Mundo contribuía com a
revolução inicial do capitalismo. Nos campos político e cultural, era uma época em que, na
Europa, começavam a se formar os grandes Estados modernos; a Igreja passava pela
Reforma e pela Contra-Reforma; o Renascimento promovia importantes mudanças nas
artes e se iniciava a Revolução Científica que teve como pioneiros Copérnico, Galileu,
Francis Bacon e Descartes. Nesse contexto, a Espanha, sob o reinado de Carlos V,
imperador do Sacro Império Romano-Germânico, a partir de 1519, estava envolvida em
guerras contra os mouros no norte da África. Após 40 anos de reinado, Carlos V retirou-se
para um mosteiro. Em 1556 começou o reinado de Felipe II que acompanhou boa parte da
vida de Cervantes, até 1598, ano em Cervantes deixou a prisão, depois de ter sido preso em
Sevilha, no ano anterior, após ser condenado a pagar dívida exorbitante.
Filho de um modesto barbeiro-cirurgião e de uma plebéia, Cervantes, quarto filho
dos sete do casal, cresceu sem cuidados e sem conforto, conforme informações de algumas
de suas biografias. Sua educação formal lhe foi ministrada por volta dos vinte anos, pelo
mestre Juan López de Hoyos, um humanista espanhol. Nessa época da juventude,
Cervantes viveu em Valladolid e em Madri. Começou a se interessar pela literatura,
inicialmente escrevendo poesias, depois despertou o interesse pelo teatro, além de ter
mantido contatos com outros estudantes e aventureiros. Aos 22 anos mudou-se para a
Itália, a convite de um nobre cardeal. A Itália era palco, então, do Renascimento. Aos 24
anos, Cervantes juntou-se ao exército espanhol e lutou com coragem contra os turcos na
Batalha de Lepanto, na costa oeste da Grécia. Nessa batalha, em outubro de 1571, embora
as forças cristãs da Santa Liga tenham saído vitoriosas, Cervantes foi ferido e perdeu uma
mão (o que lhe valeu o apelido de ―El manco de Lepanto‖). Após um período de
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recuperação e depois de outra expedição militar em 1575 ao norte da África, foi preso por
corsários turcos em seu regresso à Espanha. Passou cinco anos e meio em cativeiro em
Argel, de onde só foi libertado quando foi pago o resgate, embora antes ele tenha tentado
fugir, por quatro vezes. De volta à Espanha, em 1584, após passar um período em Lisboa,
Miguel de Cervantes teve uma filha, Isabel, do relacionamento com Ana Franca, de quem
se separou e em seguida casou-se com Catalina de Salazar. Trabalhou, a partir de 1587,
como coletor de imposto. Dez anos depois, em 1597, voltou a ser preso, desta vez por
supostas fraudes na arrecadação. Enquanto isso, nas atividades literárias, escreveu para o
teatro e, posteriormente, novelas. Após a publicação do ―Dom Quixote‖, em 1605, veio o
sucesso literário, mas o escritor continuou enfrentando uma série de adversidades
econômicas na vida pessoal. Morreu em Madri, em 1616, às voltas com uma pobreza
franciscana, literalmente, já que três anos antes havia ingressado na Ordem Terceira de São
Francisco.
As Novelas exemplares, editadas em 1613, se destacam dentre as outras obras
literárias de Cervantes, embora a sua obra-prima seja, sem dúvidas, ―Dom Quixote‖, na
qual o protagonista, um fidalgo castelhano, dom Alonso Quijano, enlouquece por excesso
de leituras dos livros de cavalaria e acredita ser ele mesmo um cavaleiro andante, passando
a imitar seus heróis preferidos. Alonso Quijano passa a autodenominar-se com o título de
Don Quijote de la Mancha. Convencido de que necessita dedicar-se a uma dama por cujo
amor deverá lutar, de acordo com preceitos da cavalaria, Dom Quixote escolhe a
camponesa Aldonza Lorenzo, que ele passa a chamar Dulcinea del Toboso e a considerá-la
uma dama de alta nobreza. Assim, montado no cavalo Rocinante, Dom Quixote parte pelas
terras da Mancha, de Aragão e de Catalunha. Depois de viver as mais tragicômicas
aventuras, na companhia do camponês Sancho Pança, a quem havia convencido a
acompanhá-lo, prometendo-lhe fama e poder, seus vizinhos conseguem, finalmente,
recorrendo a várias artimanhas, fazê-lo retornar à casa. Antes de morrer, Dom Quixote
recupera o juízo e toma consciência das loucuras cometidas.
2 – Espírito Barroco e Tempos Modernos
O Dom Quixote situa-se entre o espírito barroco da época e o advento dos tempos
modernos. No século 18, o termo barroco designava tudo o que ia contra as normas
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clássicas e e, por extensão, tudo o que fosse extravagante e raro. Na atualidade,
notadamente a partir do século 20, o vocábulo perdeu sua conotação pejorativa, e o
barroco passou a ser considerado um sistema que se opõe formalmente ao renascentista.
Sobre a questão do Barroco em Cervantes, uma das fontes imprescindíveis no Brasil é a
coleção ―História da Literatura Ocidental‖, de Otto Maria Carpeaux, especificamente o
volume três, que trata do Barroco e do Classicismo, e em seis capítulos aborda o problema
da literatura barroca, poesia e teatro da contra-reforma, pastorais, epopéias, epopéia heróicômica e romance picaresco, o barroco protestante, misticismo, moralismo e classicismo, e
o antibarroco. Neste último capítulo, CARPEAUX (1987) afirma inicialmente que ―por
mais poderoso que o Barroco seja como expressão política e social e como expressão
estilística, não lhe falta oposição‖ (op. cit. 734). De acordo com esse crítico, ―(...) Américo
Castro e seus sucessores provaram que López de Hoyos, o mestre de Cervantes foi
erasmiano e que Cervantes deve a ele seu perspectivismo ‗liberal‘ e céptico‖ (op. cit., p. 740).
Mais adiante, Carpeaux é taxativo: ―o erasmismo de Cervantes basta para justificar seu
antibarroquismo‖ (op. cit., p. 741), embora ressalve:
―(...) O único argumento contra a interpretação de Américo
Castro é a última obra de Cervantes, o romance ‗Persiles y
Segismunda‘. É um romance de cavalaria, cheio de episódios
fantásticos passados em ambiente fabuloso. Os críticos antigos
registraram a obra como recidiva lamentável; confessaram-se
incapazes de explicar por que Cervantes deu a esse romance
importância muito grande, considerando-o como o principal dos seus
livros. Neste ponto, todos caíram na confusão entre cervantismo e
quixotismo. Para Américo Castro, a última obra de Cervantes é a
profissão de fé definitiva do seu idealismo platônico; mas não é
possível ignorar as sombras escuras de angústia barroca em ‗Persilles
y Segismunda‘ (...). O fenômeno Cervantes é muito mais complicado
do que se pensava. Com razão se salientaram os elementos platônicos
e renascentistas em sua obra. Mas também com razão Casalduero
destaca os elementos de Barroco idealizado, em Cervantes, apoiandose especialmente na demonstração bem sucedida da homogeneidade
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das ‗Novelas Exemplares‘: são todas elas, sem exceção, expressões de
um elevado idealismo moral, estritamente conforme a moral severa e
aristocrática da Contra-Reforma‖ (idem, p. 741-742). .
Mas o Dom Quixote não deve ser visto tão somente por esse viés dicotômico, que
opõe fantasia e realidade, espiritualismo e materialismo, dualidade do ser humano, voltado
para o céu e preso à terra, etc. E mais: Sancho Pança tem um papel tão importante quanto
o Cavaleiro da Triste Figura. Essa é a tese de Hipólito ROMERO FLORES (1969), autor
da ―Biografia de Sancho Panza – Filósofo de la Sensatez‖. No prólogo desse livro, Julian
Marías afirma:
―Hace ya muchos anos, y por mérito principal de Unamuno,
aunque no solo suyo, que se superó e rectificó la imagen habital de
um Sancho ‗opuesto‘ a Don Quijote, como se oponem el realismo y el
idealismo, lo material e lo espiritual, la generosidad y el ‗egoísmo´. Se
comprendió la participación de Sancho em la empresa quijotesca, la
‗quijotizacion´ del escudero – con no poca ‗sanchificacion´ del
Caballero de la Triste Figura –, frente a los que aconsejan ser Quijotes
o bien Sanchos, Ortega advirtió hace más de cuarenta años que
Cervantes vino al mundo para ponernos más allá de esa oposición,
que eso precisamente significa su libro, y que si no fuera así, se
hubiera fatigado en vano escribiéndolo. El personaje principal del
‗Quijote‘ no es Don Quijote: es la pareja, es Don Quijote y Sancho,
personage dual, esencial amistad desnivelada y, por eso, dinámica.
Don Quijote y Sancho no están, em efecto – como suelen los amigos
–, al mismo nível, a igual altura humana: hay entre ellos lo que
podríamos llamar una ‗diferencia de potencial‘, y por eso pasa de uno
a outro una corriente eléctrica y, en ocasiones – cuando se separan un
poco -, violentos, tonificadores chispazos‖ (op. cit, p. 8).
Na conclusão de O Sentimento Trágico da Vida, UNAMUNO (op. cit. p. 355) analisa
acerca da cultura e da Europa da sua época, lançando uma pergunta que permanece atual:
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―quem sabe já hoje, pelo menos em Espanha, que é a Europa?‖. Uma questão que será
retomada por um autor da atualidade, o escritor tcheco Milan Kundera, numa abordagem
igualmente filosófica e literária, a exemplo de Unamuno que, no texto citado, comenta
ainda sobre o Dom Quixote, faz referência ao ensaio de autoria dele, Vida de Dom Quijote y
Sancho e ao ―culto do quixotismo, considerado como religião nacional‖. Hoje, passado
cerca de um século desde a publicação dos ensaios aqui comentados de Unamuno, e,
parafraseando este último, considero ser fato inegável que o quixotismo tornou-se religião
internacional – religião aqui não como mero dogmatismo ou ritual de reverências, mas
como fenômeno cultural e expressão de amor profundo ao que há de melhor na criação
humana. É nessa direção também que Milan KUNDERA (1988), ao abordar, na primeira
parte do livro A Arte do Romance, ―A herança depreciada de Cervantes‖, afirma: ―o
fundador dos Tempos Modernos não é somente Descartes, mas também Cervantes‖ (op.
cit. p. 10). O escritor inicia essa seção fazendo referência às conferências que Edmund
Husserl realizou, em Viena e Praga, em 1935, sobre a crise da humanidade européia. Como
ele enfatiza, o adjetivo ―europeu‖ designava para Husserl a identidade espiritual que se
estende além da Europa geográfica (à América, por exemplo) e que nasceu com a antiga
filosofia grega. Kundera comenta também a análise que Heidegger dá a essa questão,
quando fala em ―o esquecimento do ser‖. Em seguida esse escritor a relaciona com a
evolução do romance, destacando nesse sentido as contribuições pioneiras do Dom Quixote.
De acordo com o autor de A insustentável leveza do ser, ― todos os grandes temas existenciais
que Heidegger analisa em ‗Ser e tempo’, julgando-os abandonados por toda a filosofia
européia anterior, foram desvendados, mostrados, esclarecidos por quatro séculos de
romance (...)‖ (idem, p. 10). Na argumentação inicial, Milan Kundera comenta que ―elevado
outrora por Descartes a ‗senhor e dono da natureza‘, o homem se torna uma simples coisa
para as forças (da técnica, da política, da História), que o ultrapassam, o sobrepassam, o
possuem‖(idem, ibidem, p.10).
Outro grande escritor, Jorge Luis Borges, mais que um leitor erudito, escreveu um
dos textos mais inovadores a respeito da obra imortal de Cervantes: Pierre Menard, Autor do
Quixote, um dos contos do livro Ficções. Cervantes é um dos autores que povoaram o
universo literário de Jorge Luís Borges ao longo da vida, desde a infância desse escritor
argentino – ele conta que um dos primeiros textos que escreveu, quando menino, foi uma
imitação da escrita de Cervantes – até a fase adulta, quando Borges recebeu o Prêmio
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Cervantes, em 1979. Pierre Menard, Autor do Quixote foi publicado na revista Sur, em maio
de 1939, posteriormente incluído no volume que inicialmente se chamou O Jardim dos
Caminhos que se Bifurcam, em 1941, e depois, com a inclusão de novos textos, passou a ter
como título geral Ficções, de 1944. Trata-se de um texto em que BORGES (1999) mistura
ficção e ensaio, escritura e reescritura, numa narrativa de muita originalidade, que tem
desafiado leitores e críticos.
3 – Dom Quixote no Brasil
De acordo com Luís da Câmara CASCUDO (1954), no prefácio para a edição de
Dom Quixote, da José Olympio Editora, os primeiros exemplares do livro chegaram ao
continente americano já em 1605, ou seja, no mesmo ano da publicação da primeira parte,
na Espanha:
―Desde quando é lido no Brasil Dom Quixote, Rodriguez Marin
apurou que a primeira remessa do Dom Quixote para a América foi em
1605, poucas semanas depois de publicar-se a primeira parte do El ingenioso
hidalgo Don Quijote de La Mancha (...). O indispensável mestre Rodriguez
Marin informa que antes de terminar o ano da publicação (1605) e começo
do seguinte, em 1606, habia em las tierras americanas cerca de mil
quinientos ejemplares de ella. Não encontrei registro no Brasil seiscentista
mas não é crível o desconhecimento do Engenhoso Fidalgo para os olhos
coloniais brasileiros‖ (op. cit. p. 22).
A obra chegou ao Brasil na versão original. A primeira tradução para o português
só foi publicada quase dois séculos depois, em 1794. No Brasil, circulam várias traduções,
desde a mais tradicional, que é a dos viscondes de Castilho e Azevedo, publicada pela
primeira vez no país nos anos 1970 – segundo informações de Denise GÓES (2005) – e
relançada pela Nova Cultural, até a edição integral de bolso da LP&M, em dois volumes, e
uma edição luxuosa, de 2004, em capa dura, da Nova Agullar. Existem também várias
edições e adaptações desse clássico para o público infanto-juvenil, em texto traduzido e
adaptado por grandes nomes da literatura brasileira, desde Monteiro Lobato, passando por
Orígenes Lessa, até Ana Maria Machado.
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No livro Dom Quixote – A Letra e os Caminhos, coletânea de ensaios, organizada por
Maria Augusta da Costa VIEIRA ( 2006), esta autora, no texto ―A recepção crítica do
Quixote no Brasil‖, afirma que se fosse o caso de identificar os movimentos da recepção
crítica do ―Quixote‖ no Brasil, seria possível dizer que, de modo geral, oscilou entre a
leitura livre e interpretativa e a que se preocupa com os aspectos estruturais do texto,
destacando o envolvimento da obra com seu universo cultural. Ainda segundo essa autora,
―um marco importante da história do ‗Quixote‘ em terras brasileiras
foi, sem dúvidas, a comemoração realizada em torno do terceiro centenário
da publicação da primeira parte da obra, cuidadosamente preparada pelo
Gabinete Português de Leitura, em 1905, o que constituiu, segundo relato
de José Carlos de Macedo Soares, um verdadeiro acontecimento na vida
literária do Rio de Janeiro‖ (op. cit, p. 343).
Foi nesse evento que o poeta Olavo Bilac realizou a conferência intitulada ―Don
Quixote‖, posteriormente publicada em ―Conferências Literárias‖, em 1906, pela ―Revista
Kósmos‖ do Rio de Janeiro. De acordo com Costa VIEIRA, ―pelo que se tem notícia, esse
foi o primeiro estudo interpretativo da obra de Cervantes publicado no Brasil‖ (idem, p.
344). No tópico ―Fortuna crítica no âmbito brasileiro‖, essa professora afirma que de um
conjunto de estudos produzidos ao longo do século 20, destacam-se alguns ensaios, entre
eles o de José Veríssimo; o do advogado paraense José Pérez, que passou quase toda sua
vida em São Paulo, dedicando-se com empenho aos estudos cervantinos, tendo publicado
A Psicologia Social do Quixote (1936) e Sabedoria do Quixote (1937), dentre outros. A autora
cita ainda textos, sobre o assunto, de autoria dos diplomatas e escritores Vianna Moog e
Osvaldo Orico; de Nelson Omegna e San Tiago Dantas, Josué Montello, Brito Brocca,
Augusto Meyer; até trabalhos de autores mais recentes, como a tese de doutorado de Luiz
Fernando Franklin de Matos, ―O Leitor Quixotesco: o Leitor de Dom Quixote‖, e Luís Costa
Lima, com o ensaio ―A Preocupação Nacional como Forma de Controle: o Caso do Quixote‖,
publicado nos ―Anais do 1 e 2 Simpósios de Literatura Comparada‖ (Belo Horizonte,
Imprensa da UFMG, 1987, vol. 1, p. 239-257).
REFERÊNCIAS
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BLOOM, Harold. Como e por que ler. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
BORGES, Jorge Luis. Ficções. Prefácio Davi Arrigucci Jr; tradução Carlos Nejar. 8.ed. São
Paulo: Globo, 1999.
CARPEAUX, Otto Maria. História da Literatura Ocidental. Vol. III. Rio de Janeiro:
Alhambra, 1987.
CASCUDO, Luís da Câmara. Com Dom Quixote no Folclore do Brasil. In: ___. Dom
Quixote. Rio de Janeiro: José Olympio, 1954.
CERVANTES, Miguel de. Dom Quixote. Prefácio de Luís da Câmara Cascudo. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1954.
________. Dom Quixote. São Paulo: Nova Cultural, 2003. Tradução: Viscondes de Castilho
e Azevedo.
GÓES, Denis. Uma vida de tinta e sangue. Entre Livros. São Paulo, ano I, n. 8, p. 48-53,
2005.
KUNDERA, Milan. A Arte do Romance. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.
MARÍAS, Julián. História da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
ORTEGA Y GASSET, Jose. Obras Completas. Tomo 1 (1902-1916). Tercera edicion. Madri:
Revista de Occidente, 1953.
ROMERO FLORES, Hipólito R. Biografia de Sancho Panza – Filósofo de la Sensatez.
Barcelona: Editorial Aedos, 1969.
UNAMUNO, Miguel. O sentimento trágico da vida. Porto: Editora Educação Nacional, 1953.
_______. Espanha e os Espanhóis. In: __. Titãs da Oratória. Coleção ―Os Titãs‖. Vol. X.
Rio de Janeiro – São Paulo: Livraria ―El Ateneo‖ do Brasil, s/d.
VIEIRA, Maria Augusta da Costa. A recepção crítica do Quixote no Brasil.
In:_____.VIEIRA, Maria A. da Costa (org.). Dom Quixote: a Letra e os Caminhos. São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006.
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14.
O NEOBARROCO EM “CONTO BARROCO OU UNIDADE
TRIPARTITA”, DE OSMAN LINS
Maria Luíza Assunção Chacon (Universidade Federal do Rio Grande do Norte) 57
Andrey Pereira de Oliveira (Universidade Federal do Rio Grande do Norte)58
Introdução
Osman Lins, escritor nascido em Vitória de Santo Antão (PE), no ano de 1924,
publica em 1966, Nove, novena, uma coletânea de nove narrativas. Na obra, é possível
perceber um rompimento com as estruturas convencionais. ―Narrativas‖, o subtítulo do
livro, demonstra o desinteresse, por parte do autor, em classificar os textos como contos.
Mesmo a narrativa ―Conto barroco ou unidade tripartita‖, que, a primeira vista, poderia nos
sugerir tratar-se realmente de um conto devido ao seu título, foge do padrão de conto por
não ter seu conjunto de eventos amarrados pela causalidade, pela lógica de causa e efeito. O
título da narrativa seria assim, irônico, completamente passível de desconfiança.
Para Anatol Rosenfeld, Nove, novena é ―uma das mais importantes obras de ficção que
apareceram na década de 1960‖ (apud LINS, 2003, p. 9). Já para o crítico francês Maurice
Nadeau, é ―um dos sete melhores lançamentos de ficção estrangeira de 1971‖ (apud LINS,
2003, p. 9). Sandra Nitrini (apud LINS, 2003) mostra-nos, ainda, que a obra foi um marco
na transformação do modo de Osman Lins narrar – o autor buscava produzir narrativas
peculiares, nesse quesito, diferentes das mais tradicionais que compunham, por exemplo,
Os gestos, uma de suas primeiras obras, publicada em 1957.
Percebemos, em Nove, novena, a tentativa de equilíbrio em meio à desordem, o
homem desejando unificar-se, ―o homem diante da consciência: da arte, da história, da
política, do cosmos (tempo e espaço)‖ (FRITOLI, 2006, p. 22). Pretendemos, assim, no
presente trabalho, mostrar como essa atmosfera caótica na qual os personagens de Nove,
novena estão inseridos, permite-nos pensar ―Conto barroco ou unidade tripartita‖ a partir do
57
Graduanda do Curso de Licenciatura em Letras. Bolsista de Iniciação Científica do CNPq, vinculada ao
Projeto ―Quixote intersemiótico: estudos de semiótica comparada‖, sob orientação do Prof. Dr. Andrey
Pereira de Oliveira.
58
Professor do Departamento de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem
(PPGeL).
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conceito de neobarroco, usando como principal referencial teórico o livro A idade
neobarroca, de Omar Calabrese.
―Conto barroco ou unidade tripartita‖, por meio de um ―ou‖ várias vezes repetido,
estrutura-se numa sucessão de alternativas ou possibilidades narrativas, e, por isso, prestase a uma quase-infinidade de leituras. O texto, narrado em primeira pessoa, tem como
narrador-personagem um matador de aluguel encarregado de matar José Gervársio. O
matador conhece uma negra que teve um filho de José Gervásio e pede que ela lhe mostre
sua futura vítima. Como ela demonstra insatisfação pelo fato de o pai do seu filho tê-la
abandonado, concorda em indicar a pessoa procurada. Podemos entender que a negra
indica José Gervásio em três versões e cidades diferentes – Congonhas, Ouro Preto e
Tiradentes. Em Congonhas, no entanto, podemos apreender somente que a negra espera a
chegada de José Gervásio, mas ela não chega realmente a indicá-lo para o matador de
aluguel – essa possibilidade de leitura chega ao fim quando a indicação ainda está prestes a
acontecer. O matador de aluguel passa então a ter um relacionamento afetivo-sexual com a
negra, havendo uma despedida de ambos também em três versões diferentes. O matador é
procurado pelo pai da vítima que se oferece para morrer no lugar do filho, pelo próprio
José Gervásio e pela negra. Temos, então, para o desfecho, três assassinatos possíveis: o da
negra, de um homem até então não citado na narrativa e do pai de José Gervásio que,
somente na segunda na segunda versão em que procurar o matador para morrer no lugar
do filho, tem a sua súplica atendida.
Pretendemos, ao longo deste estudo, observar de que forma o caos e a desordem,
características das obras neobarrocas, inserem-se na linguagem utilizada por Osman Lins.
O homem imerso em dúvidas e dualidades não seria, portanto, característica exclusiva do
homem barroco do século XVII.
Conceitos teóricos
Quando se fala em neobarroco, é de fundamental importância pensá-lo não como o
barroco histórico ou como um mero retorno a esse período – o termo ―neo‖ funcionaria
apenas por analogia, não como um regresso. O neobarroco apresenta traços da
modernidade, tem peculiaridades da contemporaneidade, embora tenha semelhanças com a
estética barroca do século XVII. Como bem nos mostra Omar Calabrese,
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O neobarroco é simplesmente um ar do tempo que alastra a muitos
fenómenos culturais de hoje, em todos os campos do saber, tornando-os
parentes uns dos outros, e que, ao mesmo tempo, os faz diferir de todos os
outros fenómenos de cultura de um passado mais ou menos recente.
(CALABRESE, 1987, p. 10)
A desordem e o caos presentes nos textos considerados neobarrocos rompem com a
tradição do que antes era considerado arte. Com a modernidade, o conteúdo literário
adquire pluridimensionalidade e instabilidade, bem como se utiliza de metáforas e palavras
que antes seriam inaceitáveis dentro de uma poética clássica. O caos, no entanto, é
proposital, o autor preocupa-se cada vez menos em facilitar o ofício do leitor, e se
preocupa mais em romper com o tradicional, seja por meio da pontuação, da linguagem
utilizada ou até mesmo pelo grande grau de abertura da obra.
No neobarroco, as noções de uma estética perfeita deixam de existir, cedendo lugar a
dualidades, à miséria humana, ao incompreensível, ao duvidoso, ao assimétrico. A beleza é
relativizada, e o que antes era considerado idílico e simétrico tende a ficar em segundo
plano. O neobarroco encontra sua ordem na assimetria, no caos. Calabrese mostra-nos,
ainda, que ―qualquer fenómeno seria clássico ou barroco‖ (1987, p. 28), fazendo-nos
realmente ver nas obras modernas subversivas uma forma expressiva predominantemente
barroca.
Para a análise de ―Conto barroco ou unidade tripartita‖ pretendemos utilizar algumas
dualidades advindas do Barroco e conceitos utilizados por Omar Calabrese, a saber: limite e
excesso, desordem e caos, nó e labirinto, pormenor e fragmento, quase e não-sei-quê. Essas
noções nos ajudam a compreender o alto grau de complexidade presente nas obras do
neobarroco.
As noções de limite e excesso trabalham com o conceito de ―confim‖, sendo uma
abstração que pertence ao espaço interno e externo de uma configuração, articulando esses
dois espaços, determinando abertura ou fechamento.
O confim constitui um limite;
quando há excesso, o limite é então ultrapassado e o limiar do sistema fechado sofre
ruptura. Sendo assim, podemos entender que obras simétricas e ditas ―harmônicas‖ ficam
no âmbito do sistema fechado. Já as obras assimétricas e excessivas, a exemplo das
neobarrocas, fazem parte do sistema aberto, pois ultrapassam os limites. Essa
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desobediência aos limites não ocorreria, no entanto, por acaso – o autor moderno tem a
intenção de ser excessivo, utilizando-se da estrutura ou do conteúdo do texto como meio
de alcançar tal objetivo.
As obras que fazem parte do sistema aberto têm mais elasticidade, e por isso o
contorno se torna menos propenso à destruição. O exagero faz parte da cultura
contemporânea, proporcionando múltiplas interpretações dentro de uma única obra.
No que diz respeito à desordem e o caos, percebemos nas obras neobarrocas, de
modo semelhante ao período Barroco, a busca da imprevisibilidade e do ininteligível, as
noções de desordem, assimetria e caos em forte evidência. Omar Calabrese divide, todavia,
a compreensão dessas noções em três posições distintas. A primeira consiste em:
―(...) pensar a ordem como um princípio de regularidade que se sobrepõe a
um instindo originário, ou inversamente, como uma condição que, no
entanto, tende para a dissolução final, absoluta eqüiprobabilidade dos
fenômenos‖. (CALABRESE, 1987, p. 132)
A ordem, nessa primeira posição, seria derivada do caos.
Na segunda posição, há uma ordem que rege qualquer acontecimento. Essa ordem
pode ser chamada de ―irregular‖ caso seja obscura a ponto de não poder ser resgatada pelo
leitor. Para a terceira posição, a irregularidade dependerá de como a obra é explicitada e
interpretada, sendo assim uma posição mais relativista.
Podemos pensar também as obras neobarrocas a partir da dualidade nó e labirinto. O
entrançamento presente nessa dualidade está muito ligado às manifestações de arte do
período Barroco, mas transcendem esse período, surgindo também nas manifestações
artísticas modernas. A complexidade da literatura moderna, por exemplo, não pode ser
automaticamente interpretada como labiríntica – ―O caos do indefinido não torna
forçosamente a figura em um nó.‖ (CALABRESE, 1987, p. 147). O labirinto implica,
necessariamente, na ambiguidade, no movimento, ainda que a existência da ordem, ainda
que causadora de confusão, em si não seja questionada . O leitor traça um itinerário em que
se perde e se reencontra diante do objeto de arte, porque ―não se possuem mapas para se
chegar ao centro do labirinto.‖ (CALABRESE, 1987, p. 147). O labirinto deve ser
―experenciado‖ pelo leitor, pois é imprescindível que ele cumpra seu itinerário dentro do
texto para, além de desfazer os nós, captar a infinidade de sentidos oferecidos na obra ou
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pelo menos alguns deles. Falar do esgotamento da obra labiríntica, em muitos casos, é algo
tão improvável que só poderia ser feito por um leitor altamente idealizado.
Nas obras neobarrocas, podemos perceber a atmosfera enigmática como forma de,
propositalmente, fazer o leitor se debruçar de forma lúdica sobre o texto, percorrendo os
sentidos mais diversos a fim de encontrar o centro do labirinto. No entanto, Affonso
Romano de Sant‘anna nos diz que ―O labirinto não existe apenas como desenho, como
jogo, como enigma. Tem uma conotação existencial‖ (2000, p. 66), uma vez que se tem o
personagem vagante que percorre o labirinto.
O pormenor e o fragmento, por sua vez, estão de tal forma unificados que não é
possível explicar um sem o outro. O pormenor seria o detalhe, podendo aparecer com mais
ou menos frequência nas obras neobarrocas, indo em direção ao excesso de detalhamento
de um texto ou a uma espécie proposital de enxugamento e tolhimento desses detalhes.
Acreditamos que a obscuridade de um texto independe da quantidade de detalhes que nele
são fornecidos. A obscuridade da obra pode ocorrer ao passo em que o leitor tem a
sensação de que falta algum pormenor, mas também ao mesmo tempo em que o texto é
tão detalhado que se torna confuso atribuir funções a cada detalhe.
A fragmentação da obra pode indicar seu inacabamento, sugerindo assim leituras
diversas. ―Diferentemente do detalhe, o fragmento, embora fazendo parte de um inteiro
anterior, não contempla, para ser definido, a sua presença‖ (CALABRESE, 1987, p. 88). O
fragmento não possui um limite nítido, não evidencia o sujeito, o tempo, o espaço,
funciona mais como recorte.
Podemos, ainda, falar em quase e não-sei-quê. É possível pensar uma representação
que almeja a perfeição como sendo mais peculiar ao período clássico, e a busca da quaserepresentação como mais uma das características que confirmam a caos e a vaguidade do
barroco e, consequentemente, do que chamamos neobarroco. Diante do indizível, da
incapacidade, e da insuficiência ao definir um objeto, a obra resulta no quase. Nesse
quesito, Calabrese faz três especificações importantes:
Actuação: não se consegue pôr em foco o objeto, ou então, desfoca-se
propositadamente. Espacialização: não se consegue captar o contorno, o
perfil, o confim do objeto por causa da distância errada entre sujeito e
objecto, ou então produz-se uma distância inadequada. Temporalização:
falta a capacidade de fixar a duração do objecto (e em particular o seu
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caráter instantâneo), mas também este sentido pode ser construído.
(CALABRESE, 1987, p. 174)
Análise da narrativa
Em ―Conto barroco ou unidade tripartita‖, elementos que evocam o período
Barroco são constantemente mencionados. A escolha das cidades de Congonhas, Ouro
Preto e Tiradentes, localizadas em Minas Gerais, não é aleatória, uma vez que essas cidades
foram verdadeiros marcos do barroco brasileiro. A caracterização dos ambientes externos
em que os personagens vivem nos permite quase que visualizar as marcas que o barroco
deixou no Brasil.
Elementos como o vestido suntuoso da negra com desenhos a ouro sobre carmesim,
a descrição da ladeira de Congonhas ―cheia de Cristos e apóstolos imóveis (...)‖ (LINS,
2004, p. 120), a imagem recorrente das igrejas, casas com beirais e as ruas sinuosas
comprovam essa atmosfera barroca. No seguinte trecho da obra, vemos também que o
narrador-personagem, além de evidenciar a sinuosidade dos ambientes externos, reflete
sobre eles:
Sentei-me, abri um livro e pus-me a dissertar, solícito, sobre os arabescos,
festões, bordaduras, conchas e volutas que o ilustravam. Declarava-me
inferior a todos os enigmas e me desculpava por ter o dom de penetrá-los.
(LINS, 2004, p. 133)
Podemos citar como exemplos de confusão presentes nas narrativas neobarrocas, o
fato de, no primeiro ―ou‖ do conto, haver um enterro em Ouro Preto que podemos
considerar como sendo de José Gervásio, embora isso não fique claro – em nenhum
momento o narrador nos dá tal informação. Já no segundo ―ou‖, percebemos, no texto,
um espaçamento maior que o habitual para o próximo parágrafo, o que ocorre por diversas
vezes nesse e em outros textos de Osman Lins, a exemplo de ―Retábulo de Santa Joana
Carolina‖, novela presente em Nove, novena. É possível que o afastamento dos trechos
indique além do afastamento físico – seria uma forma de separar dois acontecimentos
muito distintos, funcionando talvez como um distanciamento temporal. A forma que o
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autor se utiliza para separar dois acontecimentos é que, a primeira vista, causa
estranhamento, confusão e surpresa ao leitor. Após o espaçamento, temos:
Nua, no leito, os joelhos redondos para cima, pernas abertas, o braço
esquerdo em repouso ao lado dos quadris, a mão direita presa ao gradil
recurvo da cama, a colcha de chitão com desenho de papoulas, palmas
entrançadas e grandes magnólias ocultando o sexo e subindo à altura do seu
ombro direito, lembra, com o redondo umbigo e os ombros achatados, a
atitude de um anjo que vi não me recordo onde, erguendo um cálice. (LINS,
2004, p. 122)
A descrição que o narrador faz da negra é tão meticulosa que permite ao leitor a
visualização do que é dito, como se o determinado momento da negra fosse um quadro
pintado com palavras. A negra é comparada, ainda, com um anjo que o narrador diz ter
visto não sabe onde, o que além de nos remeter a religiosidade do período Barroco,
reafirma mais uma vez a atmosfera de incerteza e confusão na qual o narrador está
mergulhado.
A narrativa se mostra excessiva, elástica, fazendo parte do sistema aberto –
permitindo várias interpretações possíveis, sendo labiríntica. Quando o próprio Osman
Lins informa que, ―segundo os cálculos de um professor de matemática, ‗Conto barroco ou
unidade tripartita‘ se presta a quatro mil e novecentas e noventa e cinco recriações
possíveis‖ (NITRINI, 2002, p. 18, n. 4), a ideia de que o autor neobarroco tem consciência
dos limites tradicionais que deseja subverter é apenas reafirmada.
Além da riqueza de interpretações proporcionada pela quantidade de leituras a qual a
obra, de forma geral se presta, podemos tratar ainda das várias interpretações que uma
única passagem pode ter, sendo assim alegórica. No segundo ―ou‖, durante o diálogo
empreendido pelo matador de aluguel e a negra sobre o filho que ela teve de José Gervásio
e o respectivo abandono do pai da criança, o matador diz que a negra não prossegue em
sua fala, mas sim que ―volta aos começos, aos meios, ao tortuoso giro de sua memória,
maldizendo homens, um homem, esse Gervásio que ao mesmo tempo é ele e eu, e outros
(...)‖ (LINS, 2004, p. 123). O fato de a negra voltar aos começos, aos meios, aos giros, nos
remete à figura da espiral que não tem começo e nem fim. Já quando o matador fala desse
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―Gervásio que ao mesmo tempo é ele e eu, e outros‖, percebemos a indefinição própria do
barroco e do neobarroco.
O matador risca, ainda, uma espiral no ventre da negra. A espiral está ligada ao
movimento, transitoriedade que se repete, interminável. Ao mesmo tempo, o ventre
feminino está diretamente relacionado à fertilidade e, nesse caso, invariavelmente ao filho
morto da negra. Podemos dizer, assim, que a figura da espiral tem caráter alegórico.
Em Avalovara, Osman Lins utiliza-se do labirinto barroco, o palíndromo inscrito em
um quadrado atravessado por uma espiral, e esse é o centro da narrativa. Características
neobarrocas podem ser, portanto, encontradas de forma recorrente na obra de Lins, tais
como alegorias, instabilidade, movimento, teor enigmático e obscuro. Podemos pensar,
ainda, a espiral com o significado ligado à figura do ouroboros – a serpente egípcia que
morde a própria cauda e transmite a ideia de circularidade, eterno retorno.
A mesma noção de alegoria pode ser pensada no que diz respeito ao número três,
presente no ―tripartita‖ do título e na quantidade de assassinatos possíveis. As conotações
religiosas do conto comprovam uma possível ligação entre o ―tripartita‖ e a santíssima
trindade que, apesar de subdividir-se em três, constitui uma unidade. O texto, apesar da
tripartição, constitui também uma unidade, só que criativa, capaz de reinventar-se. ―Conto
barroco ou unidade tripartita‖ suscita, assim, o conceito de obra inacabada, a dificuldade e
estranhamento do leitor diante de uma infinidade de desdobramentos.
No quarto ―ou‖, o homem fala de uma mulher que podemos pensar ser a negra.
Diferindo da forma de tratamento ―negra‖ que ele usa durante todo o conto, usa agora
―mulher‖. O matador pensa em deixá-la ou em deitar-se novamente com ela, nos fazendo
pensar, embora não possamos assegurar com certeza, que a ―mulher‖ realmente se trata da
―negra‖, já que ele mantinha um relacionamento afetivo-sexual prévio com ela e, em uma
das alternativas de leitura, já havia abandonado-a. A sensação de estranhamento do leitor,
no entanto, não para por aí. O homem mergulha em suas lembranças da infância, lembra
da irmã. A lembrança é esquisitíssima, completamente fantástica – o rato sorve a irmã do
homem; o pavão sangra o rato com uma faca; a irmã casa-se com um cachorro; o cachorro
faz um bolo de terra para que a irmã do homem coma; a irmã aponta um pão na mesa e diz
para o homem que é um menino – esse lhe responde dizendo que não é um menino, mas
um escorpião; o homem diz que nos seus pratos transbordam crianças, jacarés, cavalos,
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búfalos, lacraias, mães e flores, que eles devoram. Revela-se aí, o extravagante, o bizarro, o
imprevisível – características essas que constituem as obras neobarrocas.
Na narrativa, a confusão e o caótico trânsito de acontecimentos não param de
desnortear e sugerir ambiguidade ao leitor. O quinto ―ou‖, de início, provoca confusão –
temos a impressão de que o diálogo entre o homem e o pai da vítima ainda acontece, a mão
que no ―ou‖ anterior sustenta um gesto, agora não se estende. O matador conversa, no
entanto, com o próprio José Gervársio. A confusão proposital a qual o leitor é submetido
confirma a aproximação existente entre pai e filho: de início, os dois fundem-se,
confundem-se. A vítima coloca, ainda, que o seu verdadeiro nome não é José Gervásio, ao
que o matador complementa com ―Sei. É Artur.‖ (LINS, 2004, p. 128), levantando
inúmeras questões ao leitor. Entre elas: por que teria, a vítima, um nome falso? A
informação de que o nome da vítima não é José Gervársio ocorre sem precedentes, de
forma totalmente inusitada na narrativa. A vítima, no entanto, não confirma se o seu real
nome é mesmo Artur. Diante dessas estranhezas, Lins confere certo caráter onírico ao
texto: a imprecisão e a esquisitice trazem a sensação de sonho ao leitor.
A evocação feita por José Gervársio, quando crucificado, no momento em que seus
pais o abandonam levando o dinheiro que estava no bisaco, nos remete diretamente a Jesus
Cristo. José Gervársio, que tem cabelo à nazarena – ou seja, cabelos longos? – gritava:
―Meus pais, meus pais, por que vocês me desampararam?‖ (LINS, 2004, p. 129), mantendo
ligação direta com ―Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?‖ (Sal. 22), proferido
por Jesus Cristo, em sofrimento, no momento de sua crucificação. José Gervásio se coloca,
ainda, como homem que perdoa tudo, nos lembrando a figura do Jesus Cristo. No entanto,
não fica somente no âmbito do sagrado o caráter da religiosidade na narrativa – após José
Gervársio dizer que andava a pé quando era explorado pelos seus pais, enquanto eles se
locomoviam de trem ou de ônibus, mostra-se vingativo ao inverter os papeis: depois de
crescido, anda de carro enquanto os pais andam a pé. Podemos perceber aí, o contraponto
entre o sagrado e o profano, pois ao mesmo tempo em que José Gervásio se assemelha
fortemente a Jesus, mostra-se vingativo como um homem qualquer. Já a figura do pai que
se oferece para morrer em lugar do filho José Gervársio, como nos mostra José Paulo Paes,
―inverte o episódio de Gólgota, e o abandono do Filho pelo Pai, numa palinódia onde
ressoam ecos paródicos da teologia do ‗Deus está morto‘‖ (2004, p. 207, n. 5).
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Podemos, portanto, classificar ―Conto barroco ou unidade tripartita‖ como uma obra
neobarroca por encontrarmos nela um alto grau de instabilidade, ambiguidade,
entrançamento, dúvidas, incertezas, detalhes e dualidades. A obra é rica em detalhes, mas se
mostra caótica e propositalmente desordenada, tendo uma confusa ordem dos atos, sendo
difícil, por exemplo, resumi-la. Essa dificuldade e confusão provocada pela obra são
peculiares às obras modernas que, muitas vezes, são herméticas e exigem extrema
competência do leitor.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CALABRESE, Omar. A idade neobarroca. Lisboa: Edições 70, s.d.
LINS, Osman. Nove, novena. 4. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
LINS, Osman. Melhores contos de Osman Lins. Seleção e prefácio de Sandra Nitrini. São Paulo:
Global, 2003.
SANT‘ANNA, Affonso Romano de. Barroco: do quadrado à elipse. Rio de Janeiro: Rocco,
2000.
Fontes da internet
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http://www.google.com.br/#hl=ptBR&q=FRITOLI%2C+2006+o+homem+diante+da
+consci%C3%AAncia&aq=f&aqi=&aql=&oq=&gs_rfai=&fp=f3b53f9ebc94cbd8 (acesso
em 18 de setembro de 2010)
http://www.revistaletras.ufpr.br/edicao/69/LuizFritoliOsMisteriosDaPinturaEscritaNaNarrativaDeOsmanLins.pdf
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15.
UMA LEITURA ALEGÓRICA DO CONTO “ELES”, DA OBRA O OVO
APUNHALADO, DE CAIO FERNANDO ABREU
Antonio Peterson Nogueira do Vale
(Universidade Federal do Rio Grande do Norte)
―Apesar de você amanhã há de ser outro dia
Você vai ter que ver a manhã renascer a esbanjar poesia
Como vai se explicar, vendo o céu clarear de repente, impunemente?
Como vai abafar nosso coro a cantar na sua frente?‖
(Chico Buarque, Apesar de você, 1972)
01. Panorama de uma época
A obra de Caio Fernando Abreu está repleta de fatos ocorridos durante as décadas de
1960 e 1970, período este em que o Brasil sofreu com as repressões ditatoriais dos
governos militares; dentre elas, o mais repressivo de todos os atos, o AI-5, que cassava
deliberada e exaustivamente os direitos políticos dos brasileiros. Muitos outros artistas,
ligados direta e/ou indiretamente com o movimento considerado subversivo, tiveram seus
direitos limitados e uma grande parcela deles foi mantida exilada em outros países.
Histórica e oficialmente, a ditadura no Brasil prevaleceu até o ano de 1985, embora
no ano anterior houvesse acontecido o movimento ―Diretas Já‖, ato político que mobilizou
milhões de brasileiros com a finalidade de tornar democrática a política vigente no país.
Foi em 1985, no entanto, que houve a eleição para presidente no país, em que
Tancredo Neves – que não chegaria a assumir a presidência – venceu as eleições, na época,
contra Paulo Maluf. O vice de Tancredo, José Sarney, assume a presidência.
Em 1988 é aprovada a nova Constituição do Brasil, que apagaria os resquícios
políticos da ditadura militar, ao estabelecer novos princípios democráticos na nação.
Nesse ínterim, o autor gaúcho Caio Fernando Abreu escreve, registrando a sua época,
desenvolvendo habilidades narrativas, usando a situação política enquanto literatura,
inserindo o seu ponto de vista na história do país.
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Dentre os seus livros, Ovo apunhalado se encontra num período marcante da ditadura,
pois, conforme o próprio autor, os contos que compõem a obra ―foram escritos entre 1969
e 1973‖, num tempo de ―lindos sonhos dourados e negra repressão‖. (ABREU, 2008, p.
11).
Outros livros de Caio também giram nessa época repressiva, contendo, de igual
forma, um cunho massivo contra a ideologia da ditadura, consoante as suas palavras na
apresentação do romance ―Limite Branco‖, publicado em 1970: ―é um romance de e sobre
um adolescente no final dos anos 60. Naquela transição, no Brasil, entre o golpe militar e o
fatal AI-5, um pouco antes do psicodelismo e do sonho hippie mudarem os
comportamentos.‖ (ABREU, 2007, p. 15)
Dado esse contexto, e vertendo sobre uma análise minuciosa com ênfase para o
barroco, e mais detidamente para os aspectos da alegoria, vemos no conto ―Eles‖, através
das imagens alegóricas construídas neste trabalho, um substancial poder repressivo ao
governo de então.
É importante acentuar que a noção de leitura alegórica aqui intencionada vai ao
encontro do que propõe Walter Benjamin, ao se referir à imagem enquanto fragmento, e
João Adolfo Hansen e Olivier Reboul, entendendo a alegoria como figura retórica de
significação.
Nossa proposição é, então, empreender uma conjectura interpretativa para o conto,
analisando alguns trechos e não os concluindo hermeticamente, pois, justamente por se
tratar de texto literário, acreditamos haver outras leituras cujas interpretações e métodos
podem ser eleitos para estar em harmonia com o escopo de leitura a que cada um se
propõe.
2. “Eles”, de Caio Fernando Abreu
Do conto ―Eles‖, Caio Fernando Abreu diz não lembrar absolutamente nada. ―Nem
sequer precisar de onde exatamente brotaram – de que região submersa da cabeça, de que
fugidia impressão do real. Mistério.‖ (ABREU, 2008, p. 12).
Pode ser uma das formas de tentar apagar o passado para que não se desvende a
fugidia impressão do real, o mistério. Esse se enquadra, na literatura, dentro de um
panorama que vai do fantasioso imaginário ao maravilhoso encantado, dentro de uma
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perspectiva fantástica. Rodrigues (1988, p. 9) clarifica a palavra com as bases etimológicas
explicando que o fantástico se refere ―ao que é criado pela imaginação, o que não existe na
realidade, o imaginário, o fabuloso‖. A obra de Caio, como um todo, está longe de se
enquadrar em características embasadas no irreal, embora exista em sua antologia um livro
infantil – o que já se explica – com essas ditas características, As frangas.
No entanto, o leitor desatento que encetar a leitura do conto ―Eles‖ pode ter uma
compreensão inocente acerca da narrativa, que gira em torno de alguns elementos
estruturais, que têm, supostamente, aspectos fantasiosos. Um narrador o qual, conforme ele
próprio diz, não sabe nada sobre si mesmo, como se observa neste trecho: ―Eu não tenho
importância, não procure saber nada sobre mim porque ninguém saberá dizer, nem eu
próprio, estou apenas contando esta história que não é minha e a que assisti como todos os
outros habitantes da vila [...]‖ (ABREU, 2008; p. 61). A escolha por um narrador que não
sabe quem é traz à tona a necessidade do anonimato para aqueles que se insurgiam contra o
governo. Um menino – assim não identificado, sem nome – mais uma vez o autor reforça
o recurso de deixar anônimas as personagens – mas que propaga importante papel no
conto, devido a sua coragem, pois, a partir dela é que se tem conhecimento da história
relatada, conforme assinala o narrador:
Mas como eu ia dizendo, se aquele menino não tivesse ido lá ninguém
saberia jamais, porque não creio que um outro menino ou qualquer outra
pessoa
se atrevesse a ir, inventavam coisas, cobras, plantas, animais
estranhos, medos – e não se atreviam. Aquele menino, não. (ABREU, 2008,
p. 61);
Há, ainda, três ―seres estranhos‖ que, dentro da história, habitam um bosque, onde
fatos estranhos acontecem. Esses fatos são a mola propulsora para encetar a história. O
menino, que tem coragem de ir conhecer os tais seres, tenta descrevê-los sob os delírios de
uma febre, não sabendo dizer se eram ―homens ou mulheres‖, mas sabia que ―eram altos,
claros, tinham grandes olhos azuis e gestos compassados, cabelos compridos até os
ombros, movimentavam-se mansos dentro de vestes brancas com amuletos sobre o peito.
Falavam uma língua estranha e sorriam [...].‖ (ABREU, 2008, p. 63).
Um impasse na narrativa é resolvido quando o narrador vai ao bosque com o
menino, e aquele vê mudanças neste, enquanto divaga e aconselha:
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Quando entramos no bosque, senti que ele [o menino] se modificava e seu
olhar ganhava aquela espécie de luz de que falei a você. Foi então que eu o
senti maior do que eu – maior porque sendo apenas um menino se atrevera
a penetrar no que me assustava, embora soubesse do irreversível do que o
menino vira. Porque você não pode voltar atrás no que vê. Você pode se
recusar a ver, o tempo que quiser: até o fim de sua maldita vida, você pode
recusar, sem necessidade de rever seus mitos ou movimentar-se de seu
lugarzinho confortável. Mas a partir do momento em que você vê, mesmo
involuntariamente, você está perdido: as coisas não voltarão a ser mais as
mesmas e você próprio já não será o mesmo. O que vem depois, não se
sabe. (ABREU, 2008, p. 64)
Do narrador – a quem devemos o registro da história – concluímos também o seu
status de detetive ao investigar, ir em busca dos acontecimentos estranhos e presenciar os
fatos nos quais o menino é envolvido. Esse, depois da ida ao bosque, volta para a vila, onde
incendeia a casa dos líderes locais, transformando então a cidade num verdadeiro
pandemônio: casas incendiadas, população revolta com os seres estranhos, que são
massacrados e queimados vivos, enquanto lançavam uma essência alucinógena – da qual o
narrador não era inebriado. Uma marca da insurreição deliberada contra o poder local,
contra os desmandos. O menino marca, nesse trecho, o poder que a população tem e
demonstra, quando não se cala diante da violência que a ditadura tem como legítima
patente.
Sobre o menino, o narrador o viu pela última vez e constatou que aquele não era mais
o mesmo: ―Não era mais aquele menino. Era um deles, com os mesmos olhos azuis em luz,
sem sexo, lento e decidido.‖ (ABREU, 2008, p. 68). Ser um deles, para um entendimento
alegórico, é ratificar o poder unido do povo contra o autoritarismo perverso que o regime
governamental pós-64 denotava.
O conto é finalizado com as impressões do narrador, tal qual ocorre durante toda a
história relatada, com o seu toque de cautela para o ouvinte/leitor: ―A história é essa, talvez
eu tenha falado mais do que devia, mas tenho uma certeza dura de que nem você nem os
outros todos perdem por esperar. Cuidado: eles estão aqui: à nossa volta: entre nós: ao seu
lado: dentro de você.‖ (ABREU, 2008, p. 70).
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3. Sob uma perspectiva alegórica
Empreender a leitura do conto ―Eles‖ – cuja demarcação cronológica insere a sua
feitura no pós-modernismo – e direcionar os objetivos para detectar noções do barroco,
como a alegoria, é fomentar a ideia de que o Barroco, conforme afirma Deleuze (1991, p.
13), é o traço que vai ao infinito. A fim de ressignificar essa proposição, aduz: ―O barroco
remete não a uma essência, mas sobretudo a uma função operatória, a um traço. Não pára
de fazer dobras.‖ (DELEUZE, 1991, p. 13)
Essa ideia de dobra está intimamente ligada à subjetividade, enquanto evidencia as
inúmeras formas de relação consigo e com o mundo. Tal como experimentou o escritor
gaúcho Caio Fernando Abreu ao registrar, sob aspectos que remetem ao fantástico, uma
narrativa que estabelece o seu convívio com as relações de poder e de estar no mundo.
Todorov (2008, p. 16) expõe sobre o fantástico, ao remetê-lo à ―vacilação experimentada
por um ser que não conhece mais do que as leis naturais, frente a um acontecimento
aparentemente sobrenatural.‖
Na narrativa ―Eles‖, a partir de uma leitura alegórica, percebem-se os meandros da
época da ditadura militar, com suas intrigas carregadas de subordinação e repressão. O
conto em análise restaura esse clima de tensão, de medo e de revolta.
Paramentada sob as afirmações de Benjamin, a alegoria se apresenta enquanto
imagem fragmentada. ―Sua beleza simbólica evapora, quando tocada pelo clarão do saber
divino. O falso brilho da totalidade se extingue.‖ (BENJAMIN, 1984, p. 198) A
multiplicidade da significação respaldada pela alegoria faz perceber os traços que desenham
essa característica do barroco na obra de Caio. Assim, em ―Eles‖, a visão fragmentada das
lembranças do narrador deixa no vácuo a percepção do que poderia ter acontecido de fato.
O narrador se encontra sob a égide da investigação, colaborando para que a visão seja
parcial, contando apenas aquilo que quer narrar. Ora ele adormece, deixando sempre preso
ao tempo alguns detalhes da história, ora observa as coisas a sua volta, registrando aquilo a
que ele assistiu.
Para outro crítico, Olivier Reboul, a alegoria pode ser vista como elemento didático.
Segundo ele: ―A alegoria é uma descrição ou uma narrativa que enuncia realidades
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conhecidas, concretas, para comunicar metaforicamente uma verdade abstrata. Ela é a
estrutura do provérbio, da fábula, do romance de tese, da parábola.‖ (1998, p. 130)
Aqui, os nossos esforços são visitados a partir da corroboração ideológica que cerca a
nossa leitura, pois, desde o título do livro, O ovo apunhalado, há o início de uma leitura que
lança uma ideia para anunciar outra. Nesse entendimento, vemos uma tensão que envolve
os elementos ovo e apunhalado. Sob o primeiro elemento, Campelo discorre:
O objeto ovo terá para todos os homens de qualquer cultura um acréscimo
no entendimento que acarreta: é a lembrança de vida, de transformação, de
fecundação, de dualidade (na representação fora/dentro, fechado/aberto,
simplicidade/complexidade, amarelo/branco, duro/mole, vida/não-vida,
por exemplo), de gênese, de nascimento, de totalidade, de múltiplas
possibilidades, de ciclo, de abrigo ou útero, de prosperidade. (CAMPELO,
1996, p. 23)
Ainda Campelo, ao retomar o sentido universal do ovo, clarifica:
Um ovo possui desde o início todo o material essencial para desenvolver
suas potencialidades, sendo uma complexidade químico-biológica dentro de
uma simplicidade aparente. É um texto universal, comum a todos, um texto
um tanto óbvio, quase passando despercebido ante a complexidade e
multiplicidade sígnica em que vivemos. [...] O ovo guarda a qualidade do
maravilhoso e por isso permitirá sempre uma nova leitura que iluminará a
vida. (CAMPELO, 1996, p. 24-5)
Assim, inferimos que o adjetivo apunhalado margeia a significação corriqueira da era
ditatorial, rompendo a obviedade dos direitos e a significação da vida, sentido recuperado
pela palavra ovo. O sentido de traição, da perda da inocência, do aborto, de subversão, do
expugnado ante as atitudes ditatoriais que cercavam o país, fica óbvio diante dessa análise.
Finalmente, no cabo da tríade que aqui fomenta a alegoria, Hansen (2006, p. 07)
apresenta: ―A alegoria (grego allós = outro; agourein = falar) diz b para significar a. A retórica
antiga assim a constitui, teorizando-a como modalidade da elocução, isto é, como ornatus ou
ornamento do discurso.‖
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Nesse sentido, nos apropriamos em dizer que o menino – elemento central da
narrativa – ao ir ao bosque, ao ser identificado como aquele que ―trazia na testa a marca
inconfundível‖ (ABREU, 2008, p. 61), ao ter coragem e enfrentar – no sentido de
experimentar o desconhecido – os seres estranhos dos bosques, transmuta a perda da
inocência, e mesmo quando volta febril para o colo da mãe – a segurança – já não era mais
o mesmo.
O menino não luta contra os seres que conhece no bosque. Não há embate entre
eles. Lepargneur (apud Leal, 2002, p. 69) aduz: ―O embate com o que não se conhece, com
o que não se consegue apreender do mundo, ainda legitimaria um confronto do indivíduo
com uma vontade superior, com um determinismo vago e impreciso.‖ (LEAL, 1989, p. 69).
Assim, percebe-se que o menino aceita o desconhecido, está ―do lado‖ deles, não contra si
mesmo, ele se insurge contra os poderes locais, tais quais fizeram os jovens durante a
ditadura, rompendo com a máscara do anonimato, quebrando a barreira do status que se
lhe evidenciava uma resignação mórbida. Agora era ―o‖ menino, não mais ―um‖ qualquer.
A revolta proporcionou um novo status quo, uma nova situação, na qual, depois de
experimentada – conforme repetidas vezes alertou o narrador – jamais voltaria à situação
primeira. O ovo fora apunhalado. O menino quebra o sentido da vida da população e o
narrador observa:
Os habitantes da vila levaram muitos dias para voltarem ao normal [...]
Agora os dias não são mais de pesca, sono, sesta, cadeiras sem procuras na
frente das casas. Todos buscam com olhos desvairados luzes estranhas no
céu, alfa, beta, gama, delta, sinas, signos, cumprem esquisitos rituais de
devoção e perdição. (ABREU, 2008, p. 68-9)
O trecho analisado encontra confluência com as ideias de Benjamin, para o qual a
ideia fragmentária está na esfera da alegoria, respaldando o teor barroco na ―exposição
barroca, mundana, da história como história mundial do sofrimento, significativa apenas
nos episódios do declínio.‖ (BENJAMIN, 1984, p. 188). A destruição dos costumes da vila,
da própria vila, do sumiço do menino podem ser interpretados como alegoria a que a
cidade foi reduzida.
A alegoria de Hansen, a partir dos processos retóricos, nos ajuda a entender o conto
em análise como uma estrutura receptiva dos diversos olhares que o entendimento barroco
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pode perpassar, conforme afirma: ―Como procedimento retórico, a alegoria subentende o
projeto de afirmar uma presença in absentia – coisa que se exacerba, por exemplo, em artes
dos séculos XVI e XVII hoje classificadas como ‗maneirismo‘ e ‗barroco‘.‖ (HANSEN,
2006, p. 33, grifo do autor). E continua respaldando o teor fragmentário da narrativa lida:
―Mais fortemente, a alegoria serve para demonstrar (ad demonstrandum), pois evidencia uma
ubiqüidade do significado ausente, que se vai presentificando nas ‗partes‘ e no seu
encadeamento no enunciado.‖ (HANSEN, 2006, p. 33, grifo do autor).
Os seres, alegoricamente iguais à ditadura militar, deixaram três postulados:
―importante é a luz, mesmo quando consome; a cinza é mais digna que a matéria intacta e a
salvação pertence apenas àqueles que aceitarem a loucura escorrendo em suas veias.‖
(ABREU, 2008, p. 60). A luz é esperança, uma nova saída para a população amedrontada
pelos desmandos dos militares. As cinzas remetem à morte – no contexto do conto, uma
morte que não se resguarda diante da covardia da espera pelo tempo bom. A salvação, sob
o pretexto da ditadura, seria aliar-se àqueles que se insurgem contra o poder. Conforme
percurso feito, muitas vezes, por incontáveis e desaparecidas pessoas que afrontaram o
regime ditatorial.
Isso posto, entendemos que a obra em análise de Caio Fernando Abreu está ligada ao
fragmentário da ditadura militar, repleta de facetas que a população de então sofria e da
situação que resultava nas ações dos ditos subversivos contra os militares.
4 – Últimas palavras
O conto em análise clarifica a escritura de Caio Fernando Abreu enquanto
instrumento para delinear o momento histórico em que o autor gaúcho vivenciou. O conto
―Eles‖ é uma base para as interpretações das marcas que o Brasil ganhou após 64.
A alegoria nos serviu para entendermos o texto como aporte para as inúmeras
imagens construídas pelo autor ao denunciar o autoritarismo do poder que a ditadura
exercia no Brasil, nos anos compreendidos entre 1964 a 1985. Nesse sentido, foram
analisadas algumas características que, sob um entendimento mais profícuo, por serem mais
bem delineadas, ganham nova força interpretativa.
É interessante também perceber que os contos do livro em questão, O ovo apunhalado,
foram elencados sob três partes distintas, com nomes que derivam da Química e Física:
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Alfa, Beta e Gama. Líria Alves, em poucas palavras, nos explica o fator radiação: ―A
radioatividade é definida como a capacidade que alguns elementos fisicamente instáveis
possuem de emitir energia sob forma de partículas ou radiação eletromagnética.‖59
Ao perceber o estudo de radiações na Química, entende-se que esses três elementos
nomeiam raios que, segundo sua potência, respectivamente, têm um poder menos
penetrante, razoavelemente penetrante e muito penetrante. Sendo que as partículas Beta,
segundo Alves ―são mais penetrantes e menos energéticas que as partículas alfa‖. 60
O conto ―Eles‖ está inserido na parte Beta, o que nos leva a pensar que o autor
sugeriu uma alegoria quanto a interpretação dos poderes abusivos da ditadura, mas poderes
de penetração beta indicaria o insucesso do autoritarismo: emissão alta, mas não tão
penetrante quanto a vontade popular, resultando nas inúmeras revoltas nas quais a
população se insurgiu contra o governo de então.
―Eles‖ sugere a ideia de pessoas das quais não se pode falar o nome, como era feito
na ditadura, que exilou políticos, artistas, estudantes, pessoas comuns e quaisquer outras
que demonstrassem ser contrário ao regime vigente. O pronome de terceira pessoa plural
―eles‖, no conto, remete aos seres estranhos, os que triunfam sobre o ―mal estabelecido‖,
mesmo pagando com as próprias vidas, o mesmo que acontecera durante os governos
militaristas. O conto nos mostra o menino que foi exilado de sua infância, sem saber ao
certo quem eram as pessoas que o afastaram dessa sua fase, à qual jamais voltaria com a
visão pueril e inocente que tinha antes, fomentando assim outra visão: a adulta, cheia de
riscos a serem assumidos. O menino já é um menino de grandes responsabilidades. Essa
reflexão de estar no mundo nos é dada pelo narrador, que nos mostra a sua incompletude,
mas ratifica a inquietude de um momento marcadamente repressor em nosso país.
Cumpre ratificar aqui que as leituras feitas adotaram um viés alegórico para o conto
em referência. Assim, entende-se que o apossamento das metáforas, da complexidade, do
estranhamento, por parte do narrador, traz à superfície a lembrança de um sistema injusto,
no qual cassava direitos e desumanizava os indivíduos, ressaltando ainda que esses
indivíduos, enquanto participantes de uma sociedade acuada pelo medo, temiam não
encontrar na união a vontade de sair do ovo apunhalado, desmascarar os ―eles‖,
59
O artigo se encontra, na íntegra, no artigo ―Radioatividade‖ no site:
http://www.brasilescola.com/quimica/radioatividade.htm
60
O artigo ―Raios Alfa Beta Gama‖, de Alves se encontra, na íntegra, no site:
http://www.brasilescola.com/quimica/raios-alfa-beta-gama.htm
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deturpadores da ideologia que deveria ser predominante, segundo a vontade popular. As
estratégias estruturais de Caio rompem com o convencionalismo adotado e mostra a
originalidade de fazer pensar o leitor.
Essa ligação feita entre o conto narrado e o ponto de vista depreendido sobre a
contextualização histórico-social é um dos enfoques críticos possíveis diante do texto de
Caio Fernando Abreu. A intenção dessa leitura é provocar uma reflexão sobre o
autoritarismo e a dimensão do processo de criação literária. Ler o conto do autor gaúcho
em análise é, sobretudo, empreender no processo criativo uma crítica relevante ao regime
político adotado durante o período da ditadura militar, sem fazer esquecer as tormentas e
agonias revisitadas nessas páginas da história do país, marcada pela dor e supressão de
direitos do brasileiro.
Referências Bibliográficas
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______. O ovo apunhalado. Rio de Janeiro: Agir, 2008.
BENJAMIN, Walter. A origem do drama barroco alemão. Tradução de Sergio Paulo
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SP: Hedra: Campinas. SP: Editora da Unicamp, 2006.
LEAL, Bruno Souza. Caio Fernando Abreu, a metrópole e a paixão do estrangeiro:
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Alves, Líria. Raios Alfa Beta Gama. http://www.brasilescola.com/quimica/raios-alfabeta-gama.htm
BUARQUE,
Chico.
Apesar
de
você.
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Disponível
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http://letras.terra.com.br/chico-buarque/7582/
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16.
O
BARROQUISMO NA
SIMBOLOGIA DOS
ELEMENTOS
DA
NATUREZA: AR, FOGO, ÁGUA E TERRA, EM LOS PERROS DEL PARAÍSO,
DE ABEL POSSE
Regina Simon da Silva (UFRN)
Introdução
O romance Los perros del Paraíso situa seu enredo em um período histórico que
compreende os anos de 1461 a 1500 – de fins da Idade Média, ao ano em que Cristóvão
Colombo é detido por Francisco de Bobadilla e deportado à Espanha – portanto, um
tempo histórico do passado. Porém, o que o leitor americano tem de ler nesse romance não
é o passado que ele encerra e sim a raiz do seu presente.
Isso quer dizer que o autor ao se referir a um tempo histórico do passado o faz à
luz do seu tempo. Abel Posse ao ―romancear‖ o descobrimento da América nos aproxima
daquele episódio sem que nos afastemos ou nos esqueçamos do tempo real em que nos
encontramos.
O ano de 1492 é uma data que representa não só a ―descoberta da América como
também a ―re-descoberta‖ da Europa. O feito de Colombo desestruturou as convenções
formadas sobre o mundo, tanto no campo científico, como no religioso e no social. Uma
nova ordem foi gerada. Esta data marca o instante em que se põem frente a frente dois
mundos que se ignoravam e que a partir de então passariam a ―conviver‖ em um mesmo
tempo e espaço. Para o mundo ocidental os acontecimentos históricos anteriores a este
episódio ocorriam entre povos europeus, culturas conhecidas e reveladas, portanto,
conceitos pré-estabelecidos. A necessidade de uma nova interpretação surgiu com
Colombo. Nesse momento, segundo Dussel, entramos na Modernidade, já que em sua
opinião:
[…] el fenómeno que lanzó a Europa a auto-interpretarse de manera
completamente nueva fue, exactamente, la expansión que se produjo en
1492, donde un ‗Nuevo Mundo‘ –para Europa fue ‗Nuevo‘– vino a cambiar
cotidiana y geopoliticamente la vida y el pensamiento de todos los europeos –y,
por supuesto, la vida y el pensamiento de todos los pueblos ‗impactados‘ en
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la ‗periferia‘ por tal evento–. Europa, sin notarlo casi, se transformó en el
‗centro‘ de la recién nacida empíricamente Historia Mundial. […] Pienso que este
‗hecho‘, el 1492 inicia exactamente esta ‗centralidad‘ europea y es el
fundamento de lo que hoy se denomina ‗Modernidad‘ (DUSSEL, 1992, p. 20).
Esta perspectiva pode ser identificada no romance de Posse, que estende o tempo
do relato da narrativa à contemporaneidade da escrita da obra, ou seja, ao século XX,
promovendo uma continuidade do processo histórico, onde se desenvolve o paradoxo do
mundo moderno descrito por Berman como ―a união da desunião‖ (In: CASULLO, 1993,
p. 67). Assim, os conflitos de ontem se repetem no presente ―globalizado‖ que integra e
que exclui.
Em Los perros del Paraíso, o narrador heterodiegético, desenvolve a ficção de forma
fragmentada, representando o redemoinho em que o homem moderno está inserido, como
também a memória destruída do povo indígena, incumbindo o leitor da reconstrução da
narrativa. Os jogos anacrônicos, tão frequentes na obra, dificultam a sua compreensão. O
narrador elimina os elementos tradicionais de coesão do texto, mas as datas dos
acontecimentos – históricos ou não – e as descrições do narrador direcionam o leitor para
frente (prolepse) ou para trás (analepse). Assim, identificamos três momentos e espaços
diferentes anteriores ao descobrimento: a Espanha e a adolescência de Isabel e Fernando; a
Itália e a adolescência de Cristóvão Colombo; a América e o encontro hipotético dos
líderes das civilizações asteca e inca. São três relatos que se desenvolvem simultaneamente,
sem que um tenha conhecimento da existência do outro (exceto o narrador e os leitores),
mas que se unirão em um momento único da História: o Descobrimento. O elo de união
entre esses três fios narrativos é proporcionado por Colombo, personagem ambíguo tanto
para a história como na ficção.
Segundo palavras de Posse, quando ele teve de enfrentar tudo isso, ele se deu conta
de que a linguagem que melhor estaria à altura de tal incumbência era uma linguagem muito
fantasiosa e poética, às vezes contraditória com o uso conceitual. Ou seja, o barroco, em
Los perros del paraíso, reside no estilo adotado pelo autor, na linguagem empregada, que
funciona como um instrumento hermenêutico para compreender a realidade americana.
Buscaremos, portanto, analisar a linguagem fantasiosa adotada por Posse para
desvendar a simbologia dos elementos da natureza: ar, fogo, água e terra.
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Estrutura quaternária: ar, fogo, água e terra
Los perros del Paraíso apresenta uma primeira grande divisão quaternária. Para a
aritmética esta palavra significa a progressão dos quatro primeiros números: 1, 2, 3, 4.
Somando esses números obtemos a Década, ―símbolo da perfeição e chave do universo‖
(CHEVALIER, 1998, p. 758). Incita a que se pense no número quatro61, que por sua vez
também traz consigo uma significação simbólica: os quatro braços da cruz, que, ao lado da
Bíblia, são os expoentes do Cristianismo – doutrina implantada pelo Império Espanhol nas
terras conquistadas –. A relação do número quatro com a cruz faz dele ―um símbolo
incomparável de plenitude, de universalidade, um símbolo totalizador‖ (CHEVALIER,
1998, p. 759), reforçando os planos de construção – por parte dos Reis Católicos – de um
mundo unitário, subjugado a uma única crença.
Em Posse, também observamos a totalização do tempo e do espaço, já que o autor
descreve o passado sem se afastar do presente, ou seja, a compreensão de nossa realidade
passa pelo conhecimento de nossas raízes – daí a importância de se conservar a memória –.
Sua obra totaliza – de forma ao mesmo tempo integradora e caleidoscópica – a
modernidade, onde ―os distintos tempos e os distintos espaços se combinam em um agora
e um aqui que está em todas as partes e sucede a qualquer hora‖ (PAZ, 1976, p. 137).
Como forma de demonstrar essa contradição da modernidade, que totaliza e ao mesmo
tempo desintegra, Posse divide a sua ficção em quatro partes bem delimitadas,
representando os quatro elementos da natureza, deixando que o leitor se encarregue de
fazer a união, um jogo de memória.
Para os adeptos da via mística o número dos elementos significa o número de
portas a ser transposto. Cada uma dessas portas está associada a um dos quatro elementos
na seguinte ordem de progressão: ar, fogo, água, terra (CHEVALIER, 1998, p. 561).
61
O número quatro tem uma série de representações: o cruzamento de um meridiano e de um paralelo
divide a terra em quatro partes, existem quatro pontos cardeais, quatro ventos, quatro pilares do Universo,
quatro fases da lua, quatro estações, quatro elementos, quatro humores, quatro rios do Paraíso, quatro
letras no nome de Deus (YHVH) e no do primeiro homem (Adão), quatro braços da cruz, quatro
Evangelistas (CHEVALIER, 1998, p.759). Em Los perros del Paraíso Seymour Menton também
identificou uma série de repetições com o número quatro: ―‗Desde los cuatro extremos del mundo
civilizado‘ (36); ‗durante los cuatro años de guerra civil‘ (93); durante la visita de Colón a Beatriz de
Bobadilla en las Islas Canarias, ‗eran deliciosas las cuatro jóvenes que atendían‘ (130), y lo bañan ‗las
cuatro ciervas‘ (138); los cuatro curas subversivos: ‗Buil, Valverde, Colangelo y Pane‘ (191); cuatro
superhombres de los Reyes Católicos: ‗Gonzalo de Córdoba, el chancherro Pizarro, el amoral genovés, el
aventurero Cortés‘ (110); etc.‖ (1993, p. 124).
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Coincidentemente esta também é a ordem disposta em Los perros del Paraíso e em cada uma
dessas partes – ou portas – histórias simultâneas são narradas, progressivamente, até a sua
transposição para a próxima parte – ou porta –.
Discorreremos sobre cada uma dessas partes na sequência em que estas se
apresentam.
A) O elemento ar simbolicamente está associado ao vento, ao sopro – Deus soprou
no rosto do primeiro homem o espírito da vida –; representa o mundo em expansão. É um
elemento ativo, masculino (CHEVALIER, 1998, p. 68).
Nesta primeira parte, antes mesmo de começar o capítulo propriamente dito, nos
certificamos da força motriz que dá vida à obra: o livro começa e termina com a palavra
―Paraíso Terrestre‖. A presença de cinco epígrafes, tanto históricas – ―Aquí es el Paraíso
Terrenal, adonde no puede llegar nadie, salvo por voluntad divina‖ (carta del Almirante a
los Reyes Católicos) –, como fictícias – ―¡se le envió a que fuera por oro y demonios, y él
que nos viene con plumas de ángeles!‖ – (Fernando de Aragón) (POSSE, 1987, p. 8) 62, dão
a tônica do texto. História e ficção se misturam e dialogam com diversos intertextos, quase
sempre anacrônicos. Como exemplo desse anacronismo podemos citar o momento em que
o narrador descreve o comportamento autoritário de Isabel (ainda não havia se tornado
rainha) e sem nenhum esclarecimento prévio dá aos leitores uma informação
correspondente ao ano de 1940:
Penumbra.
Un
amanuense
triste
frente
al
libro
de
audiencias.
Aparentemente nadie. Pero en el rincón del eterno retorno de lo mismo, casi
invisibles, el general Quipo de Llano con altas botas muy lustradas y
planchadísimos breeches preside la comitiva de académicos y magistrados
(¿Días Plaja? ¿El doctor Derisi? ¿Battistesa? ¿D‘Ors?). Le pedirán al Rey
patrocinio y fondos para el Congreso de Cultura Hispánica de 1940 (PP, p.
17).
Também é anacrônico o encontro entre Colombo e Nietzche – representado no
romance pelo personagem Ulrico Nietz, soldado mercenário alemão que cuida do
62
Los perros del Paraíso (POSSE, 1987, p. 8). A partir de agora todas as referências do corpus serão
feitas no corpo do trabalho indicadas pelas letras PP e a página correspondente.
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ferimento de Cristóvão, resultado da surra que seu cunhado Santiago Bavarello e seus
primos lhe deram –. Ulrico chega ao Vico de l‘Olivella foragido da Alemanha por haver
revelado seus pensamentos:
En la odiosa Berna de los relojeros había osado decir que ―el hombre es una
cosa que debe ser superada.‖ Amaneció brutalmente golpeado. Desde
entonces ocultaba celosamente un terrible secreto que sólo podía revelar a
los fundadores de un Imperio (PP, p. 23).
Neste discurso identificamos o elo que o unirá a Colombo, possibilitando que
ambos se reencontrem na grande viagem rumo a América: o seu segredo só poderia ser
revelado aos fundadores de um Império.
No esquema cronológico que antecede cada parte e pretende dar caráter verossímil
aos fatos ao resumir os pontos mais representativos de cada capítulo, já é possível
identificar os três fios narrativos que se desenrolarão ao longo da narrativa.
O narrador descreve uma Europa em crise, decadente e sem esperança. A Espanha
amarga anos sob o domínio árabe e vê fracassar as tentativas da Igreja Católica de uma
reconquista do território. O homem sente-se aprisionado dentro de um espaço que já não
comporta as novas aspirações; deseja expandir, construir um Novo Mundo. O narrador
comenta ironicamente que ―las multinacionales se asfixiaban reducidas a un comercio entre
burgos‖ (PP, p. 13). Essa insatisfação generalizada levava o homem a cobiçar um mundo
perfeito, uma vez que o Ocidente, ―vieja Ave Fenix, juntaba leña de cinamomo para la
hoguera de su último renacimiento. Necesitaba ángeles y superhombres. Nacía, con fuerza
irresistible, la secta de los buscadores del Paraíso‖(PP, p.13). Faltavam, para a concretização
desses anseios, homens de coragem, conhecimento científico, reis com força política, tudo
o que a Espanha do momento era incapaz de oferecer.
Gradativamente o narrador vai elaborando esses itens. O destino do homem que
abriria as portas para a expansão espanhola estava traçado desde a sua infância. O mar
confidenciava um presságio a Colombo em um momento de pura contemplação e poesia:
―El mar no decía Coo-lom-bó. No. Decía claro (en español): ‗Cooo-lón‘. El ‗lón‘, de una
forma seca y rápida, diríase autoritaria. O como quien pronuncia la última palabra
amenazado de estornudo‖ (PP, p. 20), revelando que o destino de Colombo estava
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vinculado à Espanha, ele era o ―eleito‖ para realizar essa parte da história ―posseana‖. O
conhecimento necessário nosso protagonista conquistará de várias fontes, mas a paixão e a
nostalgia do Paraíso lhe foram incutidas ainda na infância, na paróquia onde o até então
Cristoforo recebia sua pouca educação:
… fue el cura Frisón el que contagió a Cristoforo la pasión, pena y nostalgia
del Paraíso. Un viernes lluvioso (pleno invierno) después de un almuerzo
con una botella entera de Lacrima Christi, el cura, ante los asombrados niños,
comenzó a describir playas de arena blanquísima, palmeras que rumoreaban
con la suave brisa, sol de mediodía en cielo azul de porcelana, leche de
cocos y frutas de desconocido dulzor, cuerpos desnudos en agua clara y
salina, músicas suaves. Pajaritos de colores. Trinos. Fieras tranquilas. El
colibrí libando en la rosa. El mundo de los ángeles, seres perfectos, sin
tiempo. ‗¡Eso es el Paraíso! ¡Y de allí hemos sido expulsados por Adán y por
los judíos! ¡Ahora mejor morir, mejor ser abandonados por esta sucia y triste
carne y estos días! ¡Lo mejor, muchachos, el Paraíso! ¡Es lo único que vale la
pena! (PP, p. 26).
A geografia da cidade de Gênova protegia seus moradores da cultura humanista que
crescia na Itália, deixando-os em uma total ignorância, livres de ―michelángelos y dantes
(…) de aquel tiempo de mutaciones profundas‖ (PP, p. 25).
Simultaneamente à narrativa da adolescência de Colombo, o narrador também
descreve a formação dos futuros reis da Espanha, alternando as entradas em cena. Isabel,
uma adolescente impetuosa e ambiciosa, consegue a legitimidade do trono da Espanha em
uma batalha entre ―feras‖; monta e domina um leão que protegia o leito do Rei Enrique IV,
cuja impotência consegue provar, o que impossibilitaria que Juana, la Beltraneja, fosse sua
filha, logo, sua herdeira, declarando-se, portanto, a futura herdeira do trono: ―la batalla
entre la ilegal legitimidad y la ambición quedaba declarada‖ (PP, p. 19).
O erotismo na obra aparece explícito e impulsiona Isabel a conquistar seu primo
Fernando, com quem acaba mantendo relações sexuais antes do casamento, embora
estivesse proibida de vê-lo – ―para los poderes establecidos, resultaba bien claro que la
unión de aquellas fuerzas, compelidas por una cósmica eroticidad, tendría por resultante
una mutación política, económica y social sin precedentes‖ (PP, p. 51) – a adolescente
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queima de desejo, ―ni el viento frío de septiembre, que ya soplaba, la calmaba‖ (PP, p. 45).
Aconselhada pela mãe que lhe diz ―mata como puedas la fiera del deseo. El deseo es la
esencia del Mal‖ (PP, p. 46), Isabel compreendeu que poderia transformar aquela
compulsão sexual em algo mais produtivo, mais vantajoso, e ―freudianamente buscó una
ideología para encauzar tanto deseo, una superestructura adecuada‖ (PP, p. 47). Nasce a
congregação dos partidários fiéis aos reis sob o signo da SS. Não podendo mais se opor à
união dos adolescentes, estes se casam, vivem momentos fortes de erotismo, sadismo e
luxúria, para finalmente o narrador introduzir o primeiro diálogo entre o casal:
— ¡Acabar con esa pecaminosa felicidad de los moros en sus territorios de
Al-Andalus!
— ¡Un Imperio, un pueblo, un conductor!
— ¿Y el terror? ¿Cómo conseguir alguna unidad sin terror?
— ¿y el dinero?
— Lo tienen los judíos. Si ellos lo prestan, ¿por qué no quitarles el capital
en nombre de la religión verdadera? ¿Un judío sin sufrimiento se
vulgariza como cualquier cristiano…?
— ¡Todo por hacer! ¡El mundo, la vida! ¡Hay que conquistar Francia,
Portugal, Italia, Flandes! ¡Despedazar a los moros! ¡Los mares! ¡Los
mares!
—
¡Y el Santo Sepulcro!
— No lo olvidaremos. (PP, p. 56)
A linguagem, rica em detalhes, muito humor, ironia e crítica, engendra os quesitos
necessários para a realização da expansão que o elemento ar sugere. A virilidade do
elemento ―ar‖, ao contrário do que se imagina, é representada em Los perros del Paraíso pela
figura feminina de Isabel, que, seduzida pelo poder, acaba dominando Fernando.
Enquanto o Ocidente se preparava para a grande conquista, do outro lado do
Atlântico uma outra história se desenvolve paralela às narradas anteriormente.
Ao falar das civilizações ameríndias a criatividade do autor surpreende o leitor ao
promover um encontro entre as civilizações asteca e inca para resolverem o problema da
morte do sol, na cerimônia do Fogo Novo, assim explicada por Vaillant: ―La ceremonia del
Fuego Nuevo se simbolizaba por la extinción del fuego del altar antiguo, que había ardido
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continuamente durante cincuenta y dos años y encendido otro nuevo, en prueba de la
nueva concesión de vida‖ (VAILLANT, 1973, p. 166). A cada cinquenta e dois anos se
fechava o ciclo da história, ou seja, o Fogo Novo simbolizava o fim da história. Para se
assegurarem de que um novo ciclo se iniciasse, neste dia se realizavam sacrifícios em
homenagem ao deus sol e o chefe inca foi convidado para a festa. O narrador traça perfis
diferentes entre as culturas, o que dificulta as negociações entre elas.
O chefe asteca, o tecuhtli, deseja convencer o representante inca Huamán a invadir
as terras geladas e fazer prisioneiros ―veinte o treinta mil de aquellos brutos pálidos para
inaugurar, en el año azteca 219, el tiemplo de Huitzilipochtli y conjurar el drama de la anemia
solar‖ (PP, p. 33). Na ficção ―posseana‖ os incas possuíam as técnicas para se chegar à
Europa; conheciam ―el secreto de los ríos que corren en el mar‖ (PP, p. 34); dominavam a
difícil ciência de voar em balões. Segundo Huamán ―uno de nuestros globos llegó a
Düsselfort‖ (PP, p. 35). Mas o leitor logo percebe a inviabilidade do projeto, pois quando o
narrador descreve essas civilizações as põe em lados opostos, declarando sua opinião sobre
elas: ―Estos aztecas tenían aperturas a la gracia, a la inexactitud. Toleraban el comercio libre
y la lírica. El Incario, en cambio, era geométrico, estadístico, racional, bidimencional,
simétrico. Socialista, en suma‖ (PP, p. 33). Logo, também o tecuhtli se conscientiza de que
seria impossível convencer Huamán e seu povo, eles ―no se comprometerían en una
aventura imperial hacia las tierras frías‖ (PP, p. 35); as negociações fracassaram.
O narrador finaliza esse encontro com uma imagem solene. Em sua narrativa os
chefes indígenas realizam o último banquete no Palácio Imperial. Esse episódio estaria
registrado no Codex Vaticanus C. O narrador antecipa o futuro e lamenta que essa memória
tenha sido destruída pelos espanhóis: ―Ceremoniosamente se encaminaron hacia el
banquete en el Palacio Imperial. Ingresaron en ese panteón de luz y calor que es el Codex
Vaticanus C, tercera parte, perdida para siempre en la quemazón de documentos aztecas
ordenada por el atroz obispo Zumárraga‖ (PP, p. 35).
De forma humorística,
antropofágica e trágica, o tecuhtli tenta, sem sucesso,
convencer Huamán de que a única forma de evitar uma conquista é conquistando: ―Señor,
¡mejor será que los almorcemos antes que los blanquiñosos nos cenen…!‖ (PP, p. 35).
O narrador decifra o Codex enquanto os chefes indígenas ―a punta de sandalia
avanzaban por el papel delicadamente pintado del Codex Vaticanus C‖ (PP, p. 57). Era a
descrição do último banquete, uma festa que terminaria com o sacrifício de escravos. Neste
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momento temos acesso ao fluxo de consciência de Huamán ―¿Por qué esclavos? ¿Por qué
no todos trabajadores del Imperio, como en el Incario?‖ (PP, p. 57), e se evidencia a
diferença entre as duas culturas.
Antes de transpor a porta, o narrador faz mais uma referência ao fogo, que na mão
do homem é metáfora da destruição, consome a história e tudo o que poderia representar
de luz para o conhecimento da evolução do mundo: ―Son harto extrañas las imágenes que
aparecían en el rollo Vaticanus C quemado por el atroz cura Zumárraga (él y el Obispo
Landa equivalen a todas las pérfidas llamas que abrasaron la Biblioteca de Alexandría), (PP,
p. 59).
B) O elemento fogo por sua característica está sempre relacionado à cor vermelha e
a alta temperatura. Simboliza o amor – seu lado positivo –, mas também a cólera – seu lado
negativo –. O fogo que destrói e consome favorece o ressurgimento da vida (técnica
utilizada por agricultores para adubar a terra), revertendo o aspecto negativo da destruição.
A dualidade na representação do fogo, onde tudo tem seu oposto, pode ser identificada em
outros elementos: os raios do sol – celeste, positivo –; o fogo do inferno – terrestre,
negativo –; os círios em funerais representam a morte – negativo –, mas a luz que emana
representa a outra vida – positivo –. Ainda que exista vida no elemento fogo o seu aspecto
negativo sobressai, se manifesta com maior intensidade: ―obscurece e sufoca, por causa da
fumaça; queima, devora e destrói: o fogo das paixões, do castigo e da guerra‖
(CHEVALIER, 1998, p. 443), o ―domínio do fogo é igualmente uma função diabólica‖ (Ibid.
p. 441).
Esta parte ou porta representada pelo elemento ―fogo‖ cobre o período de 1476 a
1488. Aqui se consolidarão os elementos forjados para a expansão. Cada história seguirá o
seu curso conforme a busca empreendida pelos personagens no intuito de atingirem seus
objetivos. O narrador seguirá a mesma técnica até a finalização da obra: saltos anacrônicos,
metaficção, intertextualidade, humor, crítica e ironia, parodiando a história.
Em Los perros del Paraíso o fogo ganha representação na sua polaridade negativa,
representando o período negro da Espanha da época, por isso o fogo destruidor: a guerra
civil, a Inquisição. Os presságios aparecem sempre com um sinal de fogo, como mau
agouro. No entanto não podemos deixar de pensar que a ciência ganha espaço, o
antropocentrismo divulgado pelo humanismo leva o homem a acreditar em si mesmo, a
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traçar o seu destino livre da intervenção da Igreja, e isso significa crescimento, expansão.
Passaremos a observar essas considerações dentro da obra, seguindo a trajetória de nossos
personagens na transposição para esta segunda parte.
Seguindo seu destino, o Colombo de Posse já se encontra na Espanha com o nome
de Cristóbal, conforme havia anunciado o mar. O protagonista pensa na melhor forma de
aproximar-se do poder – os Reis Católicos – e revelar seu segredo, mas por enquanto é
apenas uma figura ridícula que sofre com a zombaria alheia ―se burlaron desde varias
mesas. Le tiraron algún hueso, ya roído por los perros naturalmente‖ (PP, p. 64).
Dialogando com a História, o Colombo de Posse também passa por Portugal antes
de chegar à Espanha. O narrador faz um retrato de Colombo através da retrospectiva dos
últimos vinte anos de sua vida. Sentado em uma mesa de taberna, Colombo passa por uma
crise existencial, se questiona sobre a vida e recorda melancolicamente seu passado:
Sobreboló su largo ventenio de navegante y náufrago, de cartógrafo
improvisado y de marido por interés (PP, p.71). […] Y recordó con
melancolía su perdida posibilidad de orden y felicidad, su matrimonio con
Felipa Moñiz Perestrello, en una Lisboa que para siempre quedaría atrás
(PP, p. 73).
O narrador revela alguns dos métodos utilizados pelo personagem Colombo para
conseguir as informações que tanto desejava. Descobrimos que nosso protagonista
explorava as mulheres, ―largos años juntando datos. Buscando signos entre las medias
palabras. Robando mapas apolillados en los cajones de la cómoda cuando las seducidas
viudas de infaustos navegantes se dormían fatigadas de saciamiento y culpa‖ (PP, p.71);
torturava indefesos, ―abofeteó al náufrago que agonizaba en la playa de Madeira‖ (PP,
p.71); e também ―torturó a un vikingo que tuvo que explicarle con sus dos docenas de
palabras latinas cómo era la costa de esa Vinland donde hasta había llegado el obispo
Gnuppron en misión pastoral‖ (PP. p. 72).
Sua esposa Felipa tampouco foi poupada. Conhecemos um Colombo com
requintes de sadismo em suas núpcias, mas nem esse momento de erotismo o afasta de seu
destino, de sua obsessão:
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En ese mismo cajón, al fondo, a la derecha, encontró la famosa carta secreta
del geógrafo y cosmólogo florentino Paolo Toscanelli, dirigida al finado
Perestello con un claro croquís sobre las Antillas y el Cipango, no muy lejos
de la costa portuguesa. […] Se trataba de un hecho decisivo en su destino:
ignaro de aquella erótica geografía, que le pareció fantástica, creyó haber
descubierto el mapa del Paraíso terrenal (PP, p. 77-78).
Ao mesmo tempo em que crescia a sua convicção na existência de um Paraíso
Terrestre advinda de sua formação religiosa, de suas novas descobertas e de leituras
populares que o influenciavam, principalmente o livro do cardeal Pedro d‘Ailly Imago
Mundi, lido repetidas vezes, Colombo chega a algumas conclusões:
1º) de que podía retornar al Paraíso Terrenal, que como anotaba el
Cardenal: ―Hay en él una fuente que riega el Jardín de las Delicias y
que se divide en cuatro ríos.‖
2º) ―El Paraíso Terrenal es un lugar agradable situado en Oriente,
muy lejos de nuestro mundo.‖ Colón anotó al margen: ―Allende el
Trópico de Capricornio se encuentra la morada más hermosa, pues es
la parte más alta e noble del mundo, el Paraíso Terrenal.‖
3º) Supo que en él no podía haber otra decoración que no fuese de
joyas y de oro. ¡Por lo tanto se podía saquear, invertir en las empresas
genovesas y comprar la mayoría accionaria! Por último, sí, se podría
rescatar el Santo Sepulcro y reabrir el camino de Oriente en manos de
la ferocidad tártara y la ―cortina de cimitarras de hierro‖.
4º) Definió un conocimiento esotérico que no podía anotar y que
confió a la memoria (PP, p. 79).
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Também se intensificava a procura, por parte de Colombo, de conhecimento
científico que possibilitasse essa grande viagem, mas isso esbarrava, obviamente, na crença
de que a terra era uma grande esfera, teoria de que Colombo discordava, porém, como
revelar sua descoberta a um mundo onde os homens
temen arrojarse mar adentro porque saben que avanzan peligrosamente por
una esfera, la de la curvatura de la Tierra. Saben que al no tener goma en la
planta de los pies, ni estar las naves fijadas al agua, caerían en el Vacío
Estelar irremediablemente una vez superado el máximo tolerable del ángulo
de curvatura que atribuían –equivocadamente– al planeta (PP, p. 73).
Colombo sabia que deveria ser prudente ao revelar a descoberta de que a Terra não
era redonda, pois em Portugal não o levaram a sério; portanto, aguardar o momento ideal
fazia parte de sua tática e essa espera o atormentava: ―le costaba aceptar el increíble juego
del mundo. Tenía que comprender que si echase a correr hacia la tienda real vociferando
sus revelaciones, sería despedazado por la jauría de guardia‖ (PP, p. 72). Neste momento da
ficção o personagem Colombo unirá os três fios da narrativa, ou seja, fará o elo entre as
histórias que ainda se desenvolviam de forma simultânea, mas em cenários distintos. Falta
promover esse encontro que se realizará em duas etapas: 1º) Colombo revela seu segredo
aos Reis e os convence a investir em sua Empresa; 2º) Colombo transpõe o mar e expande
o império espanhol, encontrando-se com a terceira história narrada.
Vejamos a primeira etapa desse encontro. Como dissemos anteriormente, o
domínio do fogo é uma função diabólica e Isabel demonstra conhecer bem o que isso
significa. Nesta parte da narrativa vemos que essa personagem se fortifica e o narrador
justifica seu crescimento devido a uma guerra íntima. O comentário do autor dentro do
relato esclarece ao leitor a posição crítica deste com relação à visão de que apenas a história
dos grandes feitos seja registrada:
El Reino se consolidaba apenas. Paralelamente, una guerra secreta, íntima,
correspondía a la exterior, la que registraron los historiadores (sólo hay
Historia de lo grandilocuente, lo visible, de actos que terminan en catedrales
y desfiles; por eso es tan banal el sentido de historia que se construyó para
consumo oficial) (PP, p. 66).
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Essa guerra íntima se refere à guerra de sexos, de poder, que existe entre Isabel e
Fernando, onde a ―fêmea‖ resultou mais astuta e sagrou-se Rainha após a morte de
Enrique IV, não respeitando a supremacia do homem, e ―Fernando quedó herido en su
más delicado machismo‖ (PP, p. 66).
Isabel empreendeu uma luta intensa para confirmar seu poder e unificar a Espanha.
A linguagem adotada nesse instante e a sonoridade criada pelas palavras provocam no leitor
a sensação de estar cavalgando, junto com a Rainha, pelos campos incendiados e ardendo
pelo fogo da batalha:
Monta tanto
Tanto monta
Isabel como Fernando.
¡Ya la caballería! ¡y los lanceros! ¡infantes, alabarderos, ballestas! ¡ya que
hay que morir, mejor morir a puñaladas! ¡y fuego, mucho fuego, hasta
que la unidad se imponga y la tolerancia impere! ¡Muerte a los
intolerantes! (PP, p. 84).
O poder domina a Rainha que se mostra cruel, diabólica, ressaltando, neste
momento, seu lado negativo: ―El Orden Nuevo se consolidaba‖ (PP, p. 86) e com ele a
Inquisição e a figura impressionante de Torquemada, sempre submisso à Rainha.
Como bons estrategistas os Reis percebem a necessidade da legitimação dos atos de
seu governo, do apoio de uma Igreja que fosse conivente com a nova ordem criada e
subjugasse as massas sem piedade. Cria-se então um ―Papado a medida de su Imperio‖ (PP,
p. 87) e Rodrigo Borja é escolhido como Papa ideal, ―un gran mundano, capaz de ejercer el
poder con natural violencia‖ (PP, p. 87).
Colombo, ―desesperado de esperar en vano, de ser desconocido, de no ser
encontrado por quienes lo buscaban y no lo intuían‖ (PP, p. 98), se apresentará pela
primeira vez a essa rede de poder. O episódio será marcado pela comicidade de sua
representação e terminará em um grande fracasso; ainda não foi dessa vez que sua
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cosmologia abriria as portas da Espanha para o mundo. Até aquele momento o império
espanhol se encontrava ―contaminado‖ por judeus e muçulmanos contrários às leis
professadas pela nova ordem estabelecida. Fazia-se necessário sua eliminação total para a
expansão do cristianismo no mundo e Isabel intuía que
no podía consolidar un Imperio, dominar al mundo y frenar la expansión
del turco hacia Occidente sin una sangrenta guerra civil. Sabía que el fuego
que se exporta para someter a los otros pueblos y crear un Imperio no es
más que la llama del fuego de adentro, el de la guerra civil (PP, p. 104).
Com esse discurso o narrador demonstra conhecer profundamente o pensamento
de sua fictícia Rainha e o alcance dessas palavras, já que críticos e historiadores da
atualidade são praticamente unânimes em afirmar que os métodos de conquista
empreendidos na América não foram senão uma exportação dos já testados anteriormente
na Península, como nos confirma Enrique Dussel:
La ‗conquista‘ nos habla de una ‗re-conquista‘, aquella que los cristianos
hispanos durante más de siete siglos llevaron a cabo contra los musulmanes.
Desde el lejano 718, cuando comienza la reconquista en Covadonga, hasta
1550 aproximadamente, cuando termina la ocupación de los imperios azteca
e inca. […] El ‗espíritu de Guerra Santa contra los musulmanes, se
transformará sin mucha conciencia en la lucha contra los indígenas‘
(DUSSEL, 1992, p. 16).
Em nosso texto se intensifica o terror na Espanha. Torquemada é implacável na sua
caça aos judeus. Desta vez o próprio Colombo tem a sua segurança ameaçada, uma vez que
o escritor argentino se apoia na tese da ascendência semítica de Colombo63 ao construir o
seu personagem, aumentando o mistério e a ambiguidade em torno a sua figura. Isto
63
Marianne Mahn-Lot não vê a menor lógica na ―tese judaica‖ levantada por Salvador de Mandariaga em
seu livro Christophe Colomb, tradução francesa, Paris, 1952, sobre Cristóvão Colombo, rebatendo essa
hipótese com outra pergunta: ―Por que, em um país que tinha fobia judaica, como a península ibérica sob
os Reis Católicos, os numerosos inimigos do Almirante das Índias, que o tratavam de estrangeiro cúpido e
cruel, nunca o acusaram de pertencer à raça maldita?‖ (1992, p. 12).
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permite ao autor colocá-lo no centro de interesses díspares onde Colombo se apresenta
como solução para ambos: os judeus ―conversos‖ necessitam de um aventureiro que os
levem à Nova Israel; em contrapartida os Reis Católicos ambicionam conquistar o mundo e
propagar o cristianismo. Essas pretensões lhe parecem insignificantes e pouco
representativas, porém, esse poder ao qual Colombo se associa lhe permitirá dissimular o
próprio interesse e realizar a sua utopia, pois ele, ―en cambio, descendiente de Isaías como
se sabía, sólo buscaba la mutación esencial, la única: el retorno al Paraíso, al lugar sin
muerte‖ (PP, p. 109).
Pouco a pouco os elementos vão-se alinhando e narrador e leitor os vão
―costurando‖ um a um, de modo a formar um conjunto compacto que, aparentemente,
converge para um único propósito. Assim que as forças do exército espanhol conseguem
derrotar os árabes e expulsar os judeus, o Império se consolida e todos compreendem que
é chegada a hora de concretizar o que, em passagem anterior, fora intuído pela Rainha.
Pode-se observar neste fragmento que o narrador começa a valorizar o elemento ―água‖,
ou seja, ele dá início à passagem para a outra porta, ou parte: ―todos comprendieron que
había nacido el ciclo del mar, aunque el fuego de las hogueras no cesaba. Terminada la
guerra santa, tendría que empezar –necesariamente– la salvación internacional‖ (PP, p.
116).
Para realizar essa travessia o único homem com coragem suficiente se chamava
Colombo, ou o ―messias‖ como ele se intitulava. Forjou-se um encontro misterioso entre
Colombo e Isabel, onde se escutava ―el rumor constante de una fuente‖ (PP, p. 117), nosso
protagonista foi nomeado ―Almirante de la Mar Océana‖ (PP, p. 120). Colombo
compreendeu que aquele ritual64 ―sellaba un gran acuerdo. ¡La Reina era su cómplice
secreta en la secretísima aventura del Paraíso!‖ (PP, p. 120).
Para finalizar esta parte acompanharemos a progressão do terceiro fio narrativo que
ainda se encontra desgarrado do bloco maior que se formou no Ocidente em torno a
Colombo.
Na ilha do Caribe, o narrador descreve o ritual de iniciação dos adolescentes que
tomam porções alucinógenas para a viagem em direção a ―lo abierto‖ (PP, p. 81),
64
Este ritual se refere à dança sedutora que a Rainha realiza para Colombo, que, muito excitado, tem um
intra-orgasmo, o que leva Posse, em seu intertexto, a discordar da possível relação sexual entre a Rainha e
Colombo de que fala Alejo Carpentier em seu livro El arpa y la sombra (POSSE, p. 119).
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observados por el tecuhtli de Tlatelolco, uma visita no mínimo inesperada para o leitor, mas
totalmente possível na ficção contemporânea latino-americana. Entram em cena os
personagens: Caoanabo, Anacaona, Siboney, Belbor, Guaironex, o cacique Cubais e Bimbú,
futuros anfitriões de Colombo.
O leitor sente, por meio da linguagem, a tristeza que invade o coração dos jovens e
se impregna da mesma tristeza. O narrador indica com precisão o tempo e o espaço de sua
história ―era una tarde tibia, en la vega real de Guanahani, el 12 de octubre de 1491 (para
ellos, gentes de las Lucayas poseedores de un mágico calendario, era el año 16-Estrella)‖
(PP, p. 82), começariam, portanto, a receber os primeiros presságios. Um dos índios, ao
retornar do infinito em que se encontrava, revela a sua visão de que ―sobre la mar, hacia
Oriente, había visto las sombras de los tzitzimines, los demonios invasores, las furias,
capaces de quitar a los hombres del sagrado continuo del Origen‖65 (PP, p. 83), mas
ninguém acreditou nele.
De volta ao império asteca o Supremo Sacerdote, Mexicatl Teohuatzin, julga as
informações trazidas pelos informantes com os códigos disponíveis da cultura indígena
vigente, ou seja, ―antes de ‗inventar‘ uma imagem capaz de explicar a presença de
forasteiros, por uma espécie de projeção, os índios apoiaram-se no velho mito do retorno
de Quetzalcóatl. Pensaram que eram os deuses vindos do céu, os deuses que voltavam‖
(LEÓN-PORTILLA, 1987, p. 48). O texto de Enrique Dussel corrobora esse pensamento,
segundo o qual os índios ―no tuvieron categorías apropiadas para interpretar a los intrusos
invasores. Sólo pudieron pensar que eran dioses‖ (DUSSEL, 1992, p. 24). Vejamos a
passagem em Posse.
— No, no. Los hombres que vendrán del mar, barbados serán y uno de
ellos barba rojiza tendrá. Están ya cerca (tenemos información). No. No son
tzitzimines, esos monstruos del crepúsculo que esperan en el fondo del cielo
del Oriente para devorar la última generación de humanos. No. ―los que
65
Segundo o Frei Ramón Pané que fez registros sobre a religião e os costumes dos índios tainos a pedido
de Colombo, essa ―viagem‖ era provocada pelo jejum excessivo: ―por la debilidad que sienten en el
cuerpo y en la cabeza, dicen que han visto algunas cosas, quizás por ellos anhelados‖ (apud ZEA, 1991, p.
56). Em seus escritos Pané disse que um cacique informa ao grupo que chegaria ao país gente vestida, que
os dominariam e os matariam. Interpretaram que se tratava dos canibais e não deram muita importância
ao fato.
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ahora se aproximan son los últimos dioses menores. Vienen del Gran Mar.
Los manda Quetzalcóatl, que los predijo‖ (PP, p. 121).
Na narrativa de Posse este não teria sido o único erro de interpretação por parte do
Sacerdote asteca. O Mexicatl Teohuatzin julgou os europeus que se aproximavam a partir
da análise da crença cristã de seu Deus e de seu maior representante – Cristo –, avaliou o
todo pela parte (sinédoque) e com isso conjecturou que todos professavam o mesmo
pensamento; imaginou um futuro feliz para seu povo:
— ¡Oh, son seres maravillosos, los que llegan! Hijos de la mutación.
¡Generosos! Una infinita bondad los desgarra: se quitarán el pan de la boca
para saciar el hambre de nuestros hijos. Sé que su dios humano les manda
amar al otro como a sí mismo. Serán incapaces de traernos muerte: detestan
la guerra. Respetarán nuestras mujeres, porque su dios –infinitamente
benigno– les manda no desear otra mujer que no sea la propia. […] Adoran
un libro escrito por sabios y poetas. El dios que adoran es un hombrecillo
golpeado, torturado, hasta ser puesto a muerte por unos militares. ¡Con el
débil se identifican! ¡Al débil aman! (PP, p. 122).
Lamentavelmente Teohuatzin ignorava que os homens que ele supunha serem
portadores de profunda bondade compartilhavam do mesmo instinto de crueldade dos que
um dia torturaram até a morte o ―hombrecillo‖ e que eles passariam pelos mesmos
sofrimentos, assim que estas culturas tão antagônicas se encontrassem no mesmo espaço e
tempo, quando Colombo vencesse o desafio do mar – próxima parte, ou porta –
representada pelo elemento ―água‖.
C) O dicionário de simbologia de Jean Chevalier aponta três significações básicas
para a representação da água: fonte de vida, meio de purificação, centro de regenerescência
(CHEVALIER, 1998, p. 15), podendo apresentar outros matizes nas diferentes culturas.
Para o cristianismo, a água é a matéria-prima onde pairava, no gênesis, ―o Sopro ou
Espírito de Deus‖ (Ibid., p.15).
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A familiaridade de Colombo com a água é apresentada no relato desde o princípio
quando o narrador revela sua natureza anfíbia, mas, especificamente nesta parte do
romance, essas relações se estreitam e a água se torna fonte de conhecimento. Em uma tina
―proyección de la Mar Océana‖ (PP, p. 142), o Almirante submerge para meditar e
―adquiere preciosas enseñanzas sobre la costumbre de Dios‖ (PP, p. 142). Podemos
identificar que a água é representada como meio de purificação e regeneração; a submersão,
neste caso, também tem uma representação simbólica: ―A imersão é comparável à
deposição de Cristo no Santo Sepulcro: ele ressuscita, depois dessa descida nas entranhas
da terra. A água é símbolo de regeneração. A água batismal conduz explicitamente a um
novo nascimento […], é iniciadora‖ (CHEVALIER, 1998, p. 18). Por isso, podemos falar que
a viagem de Colombo é iniciática.
De acordo com as representações acima, não encontramos nenhum motivo que
possa justificar o medo que o elemento água desperta no ser humano; porém, a água
também apresenta dois aspectos opostos: ―é fonte de vida e de morte, criadora e
destruidora‖ (CHEVALIER, 1998, p.16). Foi usada por Deus para punir os pecadores no
grande dilúvio:
A água pode destruir e engolir, as borrascas destroem as vinhas em flor.
Assim, a água também comporta um poder maléfico. Nesse caso, ela pune
os pecadores, mas não atinge os justos: estes nada têm a temer das grandes
águas. As águas da morte concernem apenas os pecadores e se transformam
em água da vida para os justos (CHEVALIER, 1998, p. 18).
Em Posse, o medo da água se justifica para a tripulação, que teme o pior, pois se
encontra exposta ao perigo, ou seja, aos monstros, que no imaginário da época, habitavam
as profundezas do Mare Tenebrarum. Porém, como descendente de Isaías, Colombo estaria
protegido de qualquer mal, por isso, navegaria sempre em direção ao Ocidente, ―en la ruta
de los iniciados‖ (PP, p. 131), até efetuar a transposição para a próxima parte, ou porta,
representada pelo elemento ―terra‖. Ali, enfim, se efetivará o ―encontro‖ com o outro fio
narrativo.
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D) O elemento Terra, que designa a quarta parte de Los perros del Paraíso representa
o coração da narrativa. Todas as energias e expectativas que agitavam o Ocidente serão
ativadas deste lado do Atlântico, curiosamente denominada ―terra‖. Em Chevalier, nos
chamou a atenção a interpretação dada pelo I-ching que diz:
A terra é o hexagrama k’uen, a perfeição passiva, recebendo a ação do
princípio ativo k’ien. Ela sustenta, enquanto o céu cobre. Todos os seres
recebem dela o seu nascimento, pois é mulher e mãe, mas a terra é
completamente submissa ao princípio ativo do céu (1998, p. 878).
Analisando por este lado, o da submissão do elemento ―terra‖, podemos dizer que
ela está vulnerável à ação externa não só de fenômenos naturais – como sugere a
simbologia – mas também do homem. Não é muito difícil encontrar em Posse essa
demonstração de passividade, da impossibilidade de reação frente à destruição imposta
pelos invasores. A terra está exposta à vontade humana que nem sempre a valoriza pelo
que ela é, e sim pelo que ela pode oferecer de lucro no mercado; o narrador denuncia esta
insensatez:
Las plantas, los grandes árboles, los tigres fueron quienes primero
descubrieron la impostura de los falsos dioses. Las familias de monos, tan
neuróticos y vivos en sus reacciones, también comprendieron que los
campesinos y los herreros hacían de su hoz y de su martillo los instrumentos
de un exterminio. Era absurdo, pero derribaban la arboleda con su
complejísima vida tramada desde el origen de los tiempos. Arrancaban las
yerbas y lianas, quemaban el follaje, hasta que aparecía una especie de
desierto cuadrangular de tierra calva. Después los blanquinos labraban día y
noche, sacrificando la alegría de sus mujeres e hijos y el tiempo para los
dioses y el amor, con el fin de plantar. Esta vez indebles plantitas de
almácigo que levantaban la indignación de la floresta antigua. Eran las
―plantas útiles‖, regimentadas en hilera, cuyos frutos se cotizaban en
mercado (PP, p. 234).
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A prática de cultivo da terra por parte do homem, descrita no texto acima, aparece
em Chevalier simbolicamente comparada à mulher, ―a terra é a virgem penetrada pela
lâmina ou pelo arado, fecundada pela chuva ou pelo sangue, o sêmen do céu‖ (1998, p. 879).
Além disso, é conveniente mencionar os motivos que levavam o homem ocidental
a procurar por terras novas e o principal deles era a ambição de encontrar riquezas. Quanto
a isso, sabe-se que universalmente ―a terra é uma matriz que concebe as fontes, os minerais,
os metais‖ (CHEVALIER, 1998, p. 879), o que desperta a cobiça humana. O projeto de
expansão do Império Espanhol coincidia no interesse por ouro, por isso a decepção
estampada nos olhos do Rei Fernando quando recebe a carta de Colombo: ―—¡Maldito
genovés! ¡Se le manda por oro y tierras y él nos devuelve una caja con moñitos llena de
plumas de ángel!‖ (PP, p. 196).
Os astecas também apresentam uma simbologia para o elemento Terra. Para essa
civilização ―a deusa Terra apresenta dois aspectos opostos: é a Mãe que alimenta,
permitindo-nos viver da sua vegetação; mas por outro lado precisa dos mortos para
alimentar a si mesma, tornando-se, desta forma, destruidora‖ (ALEC apud CHEVALIER,
1998, p. 879). Por isso os povos pré-colombianos sempre demonstraram um profundo
amor e consciência da necessidade de sua preservação; afinal, a Terra era uma deusa a
quem se devia dedicação e respeito.
Nesta parte do romance, onde os personagens se encontram em território
ameríndio, notamos a preocupação, por parte do narrador, em reproduzir o pensamento
indígena quanto à simbologia do elemento que dá nome à parte. Através de suas palavras
vemos surgir essa representação simbólica da Terra, que é parte da cultura desse povo e
consequentemente de sua memória:
La gran vera, el árbol hembra más importante de la región (las plantas
tienden a cierto matriarcalismo), hizo comprender que sería una batalla
perdida: los pálidos venían signados por una pulsión de exterminio, se
habían olvidado de su relación primigenia con el Todo, eran traidores a la
hermandad original de lo existente […]. Donde los blanquiñosos avanzaban,
el orden natural quedaba quebrado. Hasta desviaban los torrentes para
irrigar vides, sin saber que esas delicadísimas cintas de plata que corren por
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la selva son sagradas, son cintas de vida que exigen el mayor respeto, arterias
del cuerpo del mundo (PP, p. 235).
Os habitantes desta terra viviam em harmonia com o mundo criado, com a
natureza, com a deusa Terra que fornecia o alimento de que precisavam. Eram como um
rio, uma árvore, uma ave. Não é surpresa, portanto, que Todorov ao analisar o
comportamento do Almirante nesse ―encontro‖ tenha dito que ―Colombo fala dos homens
que vê unicamente porque estes, afinal, também fazem parte da paisagem. Suas menções
aos habitantes das ilhas aparecem sempre no meio de anotações sobre a natureza, em
algum lugar entre os pássaros e as árvores‖ (TODOROV, 1998, p. 33). Assim foram vistos
e assim foram tratados, como um animal a mais na natureza e sofreram as mesmas
agressões.
Podemos observar que a terra é vista sob dois pontos de vista: o ocidental domina a
natureza, enquanto o pré-colombiano integra a natureza. Esses aspectos da obra nos fazem
pensar na atualidade, quando vemos o planeta Terra ameaçado pela ação do homem, que
continua a destruí-la, como fizeram no passado. A cobiça segue seu rumo, em nome do
progresso tudo se justifica, inclusive a nossa aniquilação.
Conclusão
Foi possível observar em Los perros del paraíso que a linguagem tem um papel
preponderante no romance, ela é o fio condutor do passado e do presente. Por meio de
uma linguagem fantasiosa, poética e barroca, Abel Posse integra elementos contraditórios e
irracionais para falar da mestiçagem resultante da conquista da América desde sua origem
até o presente.
A linguagem, vinda da Espanha como elemento de dominação e de colonização
cultural, é protagonista nesta história, e, através dela, Posse mostra uma América
fragmentada em que persistem raízes culturais contraditórias, buscando explicitar as
oposições secretas do espírito latino-americano frente ao espírito europeu e a idéia de
homem europeu.
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Referências
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modernidad / posmodernidad. Buenos Aires: El Cielo por Asalto, 1993.
CHEVALIER, Jean. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos costumes, gestos, formas,
figuras, cores, números. Trad. Vera da Costa e Silva [et al.]. Rio de Janeiro: José Olympio,
1998.
DUSSEL, Enrique. 1492: diversas posiciones ideológicas. In: DONASSO, M. [et al.]. La
interminable conquista 1492 –1992. Buenos Aires: Ayllu, 1992. p. 11-29.
LEÓN-PORTILLA, Miguel. A visão dos vencidos: a tragédia da conquista narrada pelos
astecas. Trad. Carlos Urbim e Jacques Waimberg. 2. ed. São Paulo: L&PM, 1987.
MAHN-LOT, Marianne. Retrato histórico de Cristóvão Colombo. Trad. Lucy
Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.
PAZ, Otavio. Signos em rotação. São Paulo: Perspectiva, 1976.
POSSE, Abel. Los perros del paraíso. Argentina: Emecé, 1987.
SPILLER, Roland. Conversación con Abel Posse. Iberoamérica. Disponível em:
http://www.abelposse.com. Acesso em: 13 set. 2010.
TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. 2. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1988.
VAILANT, George C. La civilización azteca: origen, grandeza y decadencia. Trad.
Samuel Vasconcelos e Margarita Montero. 2. ed. México: Fondo de Cultura Económica,
1973.
ZEA, Leopoldo. Ideas y presagios del descubrimiento de América. México: Fondo de
Cultura Económica, 1991.
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17.
ROMANCE HISPANO-AMERICANO E ALEGORIA
Afinidades entre Onetti, Puig e Bolaño
Reno Nícolas de Araújo Torquato
(Universidade Federal do Rio Grande do Norte)
I
Na segunda metade do século XX, a América Latina viveu um de seus momentos
mais intensos. Foi a época das violentas ditaduras militares, das lutas dos grupos
revolucionários armados, das crises econômicas agudas, da ascensão do neoliberalismo e,
no campo literário, do surgimento do boom. Atravessando esse período e mergulhados no
mar das tormentas sociais, o uruguaio Juan Carlos Onetti (1909-1994), o argentino Manuel
Puig (1932-1990) e o chileno Roberto Bolaño (1953-2003) sintomatizaram em suas obras as
angústias de quem se viu entre ondas de choques ideológicos, destroços de navios
históricos, corpos de náufragos políticos, entre páginas e mais páginas em chamas a boiar.
Assim, referirmo-nos à nacionalidade de cada escritor é fazer-lhes certa injustiça ou ironia,
dado que todos foram lançados ao mar-mundo, na condição de cidadãos exilados
politicamente e na condição de escritores exilados espiritualmente, não apenas das pátrias
onde o destino achou por bem os parir, mas, concordando com Bolaño: ―Toda literatura
lleva en sí el exílio...‖66. Isto é, na qualidade de grandes escritores que foram, viram-se
desgarrados do próprio mundo, buscando na literatura uma pátria que certamente também
nunca encontraram, sendo a escrita mais um caminho do que certamente um lugar em que
possamos nos sentir, enfim, confortados. Por isso, transparece em seus livros a ideia de
uma fuga, de uma busca, de um estar perdido, de uma insuficiência que apenas incita uma
nova fuga, uma nova busca...
Houve também entre os três o fato de que estiveram sempre num outro entre-lugar,
além da própria literatura, o que lhes propiciou uma visão a qual, não tendo sido plena, no
sentido de que não possibilitou a apreensão de uma totalidade orgânica – dado que
66
BOLAÑO, 2004, p. 49.
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julgaremos isso impossível aqui –, foi privilegiada ao expor claramente as fissuras entre os
fragmentos que compõe essa enorme montagem-continente chamada América Latina.
Como indivíduos, Onetti, Puig e Bolaño percorreram estas terras e outras terras do mundo,
o que lhes propiciou uma visão de dentro-entre-fora; como alegoristas, viram, por dentro
da montagem, por entre as fissuras da montagem e, enfim, por fora dessa montagem
precária e labiríntica de fragmentos. Como grandes escritores que foram, suscitaram
discussões que provam a multiplicidade de enfoques permitida em suas obras, a capacidade
de escapar às garras do rótulo ligeiro. Onetti, por exemplo, segundo algumas definições,
parece situar-se no entre-lugar entre o neobarroco de Sarduy e o não-barroco, entre e o
boom de Márquez e o não-boom. Puig, por sua vez, podemos tentar compreendê-lo como o
escritor pós-moderno de literatura acessível às massas, mas capaz de encantar os críticos
acadêmicos mais exigentes. Bolaño, enfim, mesmo ao parecer zombar das tentativas críticas
de encerrar o sentido da experiência literária, incita-nos a tentar compreendê-lo, perseguilo, sob pena de termos que assumir nossa derrota.
Quanto ao contexto em que apareceram os três escritores, falemos primeiramente
das ditaduras militares, como as que atingiram o Brasil, o Uruguai, a Argentina, o Chile, etc.
Acreditamos terem sido momentos tão traumáticos à história e à consciência dos povos,
que ainda hoje não se conseguiu realizar um trabalho de superação das perdas ocorridas, se
entendermos superação como um trabalho efetivo de luto, e não de um esquecimento
engendrado para que não se veja o presente assentado sobre uma pilha de escombros e
cadáveres. Por isso, acreditamos, concordando com Idelber Avelar 67, que a implementação
do neoliberalismo, que se seguiu aos regimes militares, foi resultado de um trabalho
sistemático do capital, ou seja, as próprias ditaduras militares tinham como objetivo gerar
as condições para que a nossa ―modernização‖ viesse a ocorrer. A celebrada ―democracia‖
que se seguiu à coerção militarista foi apenas a constatação, pelo sistema, de que todas as
formas de resistência mais consistentes haviam sido eliminadas. As torturas e assassinatos
ocorridos durante os regimes, seja de membros dos grupos revolucionários que se
esconderam nas florestas do continente, seja de estudantes e operários que articulavam
entre si e as massas os protestos contra o terror militar, assim como o desenvolvimento dos
meios de comunicação em massa e das formas de propagar a apatia, o consumismo e um
alienado patriotismo, prepararam o terreno para que a nossa burguesia populista e títere do
67
AVELAR, 2003.
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capital internacional viesse a exercer sua ―democracia‖, privatizando empresas estatais,
arrochando salários, aumentando impostos e juros, entre tantas outras medidas que
revelaram ser tão ruins quanto algumas das medidas tomadas durante os governos militares.
Assim, ainda hoje convivemos num clima de alienação política, de explosão da violência
nas grandes cidades, de lutas por terra...
Portanto, no campo histórico e ideológico, acreditamos que houve, no período
citado, um processo que foi mais de uma linearidade – não absolutamente ―reta‖ nem
muito menos ―progressiva‖, como numa crescente positiva por um acúmulo de vitórias,
riquezas, direitos, etc. – do que de uma suposta ruptura entre os tempos de ditadura e os
chamados tempos de democracia, como se esta não fosse produto daquela. Esse processo
de ―derrota histórica‖ é tratado de forma implícita, ou mesmo explícita, nas obras que
analisaremos. Simbolicamente, vemos em Onetti um prólogo; em Puig, a peça encontra-se
no seu momento central; em Bolaño, num tratamento em retrospecto, vemos uma espécie
de epílogo analítico-remissivo.
Ainda no campo literário, também concordando com Idelber Avelar 68, vemos no
surgimento do boom, movimento que celebrava a modernização estética de nossas letras, o
engendramento de um discurso progressista, de uma ambicionada superação, através de um
verdadeiro salto, de um passado dito primitivo para um presente dito moderno. Não é à toa
que o seu declínio deu-se em paralelo à ascensão e à intensificação dos regimes ditatoriais,
inclusive tendo como marco simbólico a destituição forçada de Allende. Viu-se que o
celebrado progresso de nossas letras e que o nosso vanguardismo literário não coincidia
com uma evolução sem traumas nos campos social, político e econômico, o que gerou,
certamente, bastante desconfiança e mal-estar a muitos escritores. Os questionamentos
acerca do fazer literário em tempos de perseguições, torturas e exílios se impuseram aos
participantes do boom e a todos os escritores.
A nossa chegada à ―modernidade‖ ter-se-ia, portanto, assentado sobre uma base de
ruínas e cadáveres: essa é assertiva que serve de ponto fulcral à nossa discussão, da qual
também se extraem alguns tantos questionamentos, que podemos exemplificar. Que
condições propiciaram a explosão do militarismo no continente? Como a literatura se
encontrava no limiar do surgimento do boom e à margem dele, entre o otimismo das letras e
o pessimismo social? O que se seguiu depois disso? Como se deu o processo de tentativa
68
Idem.
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de silenciamento das vozes contrários ao regime opressor? Como se deu a ―produção de
consciências‖ prontas a aceitar o neoliberalismo como uma suposta superação do regime
ditatorial? Como o presente sente-se em relação ao seu passado e seus mortos? Qual a sua
atitude perante a lembrança daqueles que tiveram que morrer por ideais que hoje se veem
esquecidos? Que sentimentos foram produzidos com a definitiva fragmentação da América
Latina?
Não é nosso objetivo responder a essas perguntas. Nosso objetivo, bem mais
modesto, é discutir como essas perguntas, e tantas outras, assim como tantas e tantas
respostas, são possibilitadas pela leitura de algumas obras dos escritores citados.
Preocupamo-nos em desfazer o que frequentemente é apontado como um componente de
nossa época: a cegueira histórica que acomete a tantas pessoas. Nisso, analisaremos, ainda
que de forma sucinta e mais para levantar questões e hipóteses do que para oferecer
respostas, os seguintes romances: La vida breve (publicado em 1950) e El astillero (1961), de
Onetti; El beso de la mujer araña (1976), de Puig, e Los detectives salvajes (1998), de Bolaño69.
Concordando com Fredric Jameson, achamos que esses romances, como narrativas
alegóricas, ou ao menos com elementos alegóricos, ―constituem uma persistente dimensão
dos textos literários e culturais exatamente porque refletem uma dimensão fundamental de
nosso pensamento coletivo e de nossas fantasias coletivas referentes à História e à
realidade‖70. Explorá-las é percorrer essa dimensão onde forças históricas, sociais,
ideológicas, espirituais, etc. cruzam-se e produzem efeitos tão chocantes nas pessoas. Pois
o alegórico, ainda seguindo Jameson, ―pode ser sumariamente formulado como a questão
colocada ao pensamento pela consciência de distâncias incomensuráveis no interior dos
objetos desse pensamento‖71, o que nos exige tentar chegar até esses objetos por vários
caminhos interpretativos, embora sabendo que até mesmo essa estratégia resulta na
impossibilidade de abarcar esses objetos como ―totalidades‖. Pensar o alegórico é,
portanto, pensar numa escala que vai do micro ao macro, numa luta que parece vã, mas que
69
Em relação ao nosso corpus analítico, isto é, os romances estudados, citamos no texto apenas a data da
primeira publicação de cada livro, tendo em vista nossa compreensão de ser necessário enfatizar o
momento histórico preciso de cada primeiro lançamento. Nas outras vezes que nos referirmos a esses
livros, no entanto, preferimos não citar qualquer ano, seja a data de publicação original, seja a data de
publicação do material de que dispomos, por já se encontrarem devidamente citados nas referências
bibliográficas e pela frequência com que nos referimos a eles sem fazer citações diretas.
70
JAMESON, 1992, p. 30-1.
71
JAMESON, 2007, p. 184.
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a História exige, para achar um elo perdido que, se achado, conseguiria dar coesão a todos
os elementos que compõem o mundo.
II
Antes de passar às obras, entendamos o conceito de alegoria. Por alegoria (grego allós
= outro e agourein = falar) compreendemos uma técnica metafórica que trabalha, através de
uma relação de semelhança, para ―representar e personificar abstrações‖ 72. Logo, a alegoria
é de ordem mimética. No entanto, como bem adverte João Adolfo Hansen, a rigor não se
pode falar apenas de uma alegoria, visto que essa figura, durante toda a história, foi
bastante utilizada e compreendida de diferentes maneiras. Importa-nos, por hora, acentuar
os seus traços mais gerais, aqueles que permaneceram em todos os seus diferentes tipos: o
seu mimetismo e sua intenção de, através de uma semelhança intuída, representar ideias
abstratas. Apoiados nisso, chegaremos a um entendimento do conceito de alegoria barroca
desenvolvido por Walter Benjamin. Para esse pensador, a compreensão dessa alegoria está
implicada numa relação dialética com outros conceitos, como fragmento, luto, melancolia e
jogo.
Por fragmento, sabemos algo fraturado, do qual foi rompido qualquer elo com um
todo do qual esse fragmento fazia parte. De modo bem mais abrangente, entendemos que
hoje é um mundo fragmentado que se oferece aos olhos dos homens, e os próprios
homens sabem-se fragmentos desse mundo. Com o capitalismo, não há possibilidade de
que o mundo seja percebido objetivamente, de que os homens sintam-se totalmente
integrados a ele e entre si mesmos, de que haja uma relação orgânica entre tudo aquilo que
compõe esse mundo, incluindo os próprios homens. Como fragmentos, homens e coisas
agonizam, sabem-se em morte, dispensáveis, substituíveis. Um fragmento, segundo Omar
Calabrese, ―deixa-se assim ver pelo observador tal como é, e não como o fruto de uma
ação de um sujeito. É determinado pelo caso, se assim quisermos dizer, e não por uma
causa subjetiva‖73. Ou seja, um fragmento torna-se ele mesmo um todo, mesmo que
precário, que deve ser lido enquanto tal, e não como parte de um todo ou como o
resultado de um processo reproduzível. Um fragmento jaz como algo que foi arrancado,
72
73
HANSEN, 2006, p. 7.
CALABRESE, 1987, p. 88.
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mas que não permite reconstituição no ser fraturado, pois esse simplesmente não é mais
acessível. Um fragmento é o vestígio de um crime, um dedo amputado, mas que não
possibilita ao investigador saber quem foi o criminoso e mesmo onde está o resto do corpo
da vítima. Tem a ver, de certa forma, com reificação, no sentido marxista clássico, em que,
por exemplo, as mercadorias são vistas como autônomas pelo operário, dada a sua posição
limitada, alheia à totalidade da cadeia produtiva e do sistema capitalista em si. Para Adorno
e Horkheimer74, no momento em que o homem divorciou-se da natureza, passando a vê-la
como objeto, nada o impediu de ver também a outro homem como objeto, passível de ser
manipulado e explorado de uma forma muito mais intensa e calculada. Logo, é por essa via
que podemos estabelecer uma relação entre fragmento, na qualidade mesma de uma
alegoria, e mercadoria, seja essa uma coisa ou mesmo um ser humano coisificado. Por isso,
Benjamin, no seu estudo sobre Baudelaire, decretou: ―A mercadoria procura olhar-se a si
mesma na face, ver a si própria no rosto. Celebra sua humanização na puta‖ 75. A figura da
prostituta institui-se, pois, como um ícone da fragmentação do mundo moderno, da
transformação absoluta das pessoas em mercadorias, em fragmentos, em alegorias de um
mundo sem um sentido teleológico.
Aquele senso de completude que, à leitura das epopeias clássicas, conjeturamos que
pareciam sentir os antigos gregos, não pode ser mais sentido por nós, sendo até difícil
imaginá-lo. Por isso, para Lukács, o romance é a epopeia de um mundo abandonado pelos
deuses. Supondo, por exemplo, que era Deus, durante a Idade Média, que fazia a necessária
relação entre todas as coisas, sendo ele o fim último de toda direção de sentido; supondo
ainda que, após a Idade Média, com a secularização do mundo, Deus tenha sido deslocado
do centro para o qual tudo apontava; supondo que hoje não exista um único centro e que
os homens orbitam elipticamente ao redor de vários centros, resultantes de suas buscas por
um substituto de Deus (daí a excentricidade e o descentramento do homem moderno);
enfim, supondo que não haja uma causa última para a qual aponte nossa existência, para
dar-lhe sentido, o homem volta-se para a sua subjetividade, procurando dentro de si
mesmo, e não na coletividade ou no mundo, nos quais ele não se reconhece mais, algo que
dê sentido à sua existência. Julgamos que a obra de arte romanesca, entre muitas outras
manifestações do espírito humano, demonstra claramente, dada a sensibilidade exigida para
74
75
ADORNO; HORKHEIMER, 1985.
BENJAMIN, 1989, p. 163.
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a realização de sua configuração, a relação entre subjetividade e perca da organicidade do
mundo. Daí concordarmos com Lukács, para quem o ―processo segundo o qual foi
concebida a forma interna do romance é a peregrinação do indivíduo problemático rumo a
si mesmo, o caminho desde o opaco cativeiro da realidade simplesmente existente‖,
realidade a qual é ―em si heterogênea e vazia de sentido para o indivíduo...‖76. Benjamin,
por sua vez, fala da perca da capacidade de vivenciar experiências, e logo de narrá-las, já
que para isso o autor pressupunha a necessidade de uma vida em comunidade, de uma
dimensão prática dos saberes narrados, de um ritmo de vida mais lento, tudo o que o
capitalismo foi, progressivamente, devastando da terra77. Por isso, para Benjamin, o
―primeiro indício do que vai culminar na evolução da morte da narrativa é o surgimento do
romance no início do período moderno‖.78 O romance é, portanto, uma espécie de ―apesar
de tudo‖. Continuar a escrevê-lo, sabendo que sua existência é já o sintoma de um mundo
em perdição, é também a constatação da posição de extrema contradição de quem escreve.
―O romance anuncia a profunda perplexidade de quem vive‖79. O romancista é aquele
indivíduo isolado que ―não recebe conselhos nem sabe dá-los‖80.
Dessa discussão, chegamos, aos conceitos de luto e melancolia. Por luto, vulgarmente
compreendemos o estado de quem sente a perda de um ente querido ou, de modo mais
genérico, de algo que se achava vivo – um ideal de vida comunitária, um senso de
integração orgânica entre sujeito e sociedade... em suma, tudo aquilo que a fragmentação
do mundo fez morrer – e com o qual se estabelecia uma relação especial. Esse estado, no
entanto, é necessário para que cheguemos a redimir o morto, isto é, superar a sua perda,
através da reflexão acerca de tudo o que ocorreu e do que devemos fazer para seguirmos
vivendo um pouco engrandecidos intelectual e sentimentalmente, quem sabe. É, portanto,
um estado que não pode ser reprimido para que quem sobrevive consiga sentir-se em paz
consigo, sem que fantasmas o atormentem. O enlutado vê um fim ao seu sofrimento, do
qual pode sair com uma compreensão do processo pelo qual passou, encerrando uma etapa
de sua vida e apreendendo, portanto, um sentido de sua experiência. Diferente é o tipo
melancólico, que não consegue sair do estado de sofrimento. O melancólico, também
grosseiramente, é aquele que não consegue identificar a origem e, logo, um fim para a
76
LUKÁCS, 2000, p. 82.
BENJAMIN, 1994.
78
Idem, p. 201.
79
Idem, Ibidem.
80
Idem, Ibidem.
77
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apatia mórbida que o acomete. Diferente do depressivo, que sabe a origem de seu mal, o
melancólico não consegue expressá-la. Embora esteja sempre a um passo de traduzi-la, vêse atado à sua condição. O fim para a sua melancolia, portanto, significaria pôr fim a sua
própria vida, daí a figura do suicida como outro ícone da modernidade.
Tendo aprendido isso, chegamos às recorrentes assertivas de Benjamin sobre a
relação entre alegoria, melancolia, luto e jogo. O pensador afirma: ―A alegoria é o único, e
muito poderoso, divertimento que se oferece ao melancólico‖81, e ainda: ―Na via-crucis do
melancólico as alegorias são as estações‖ 82. Ou seja, como fragmentos, ou ainda como
montagens de fragmentos, as alegorias oferecem-se ao olhar dos melancólicos como
enigmas a serem decifrados, labirintos a serem percorridos. As alegorias, portanto,
convidam o melancólico ao jogo. Para Afonso Ávilla, o ―jogo para o homem barroco,
especialmente para o artista mais sensível ao dilaceramento humano, foi a saída instintiva
que teve para deter, ainda que ilusoriamente, o lento escoar de sua situação absurda no
mundo‖ 83. No entanto, seguindo ainda Ávilla, a ideia de lúdico, intrínseca ao conceito de
jogo, não deve ser compreendida como uma atitude alienada do ser, porquanto que é um
jogo cuja única regra é não limitar-se, dobrar-se ao infinito, expandindo potencialidades e
formas de explorar o (sem)sentido das coisas. É por isso que Ávilla também afirma:
―sempre que ele se sinta acuado pelas forças da conjuntura ideológica e social, o artista
estará fatalmente tentado a uma espécie de rebelião através do jogo‖84. Porém, ―a expressão
criadora só atinge a ambicionada meta da comunicação quando esta e a expressão se resolvem
numa forma apta a viabilizar aquele acordo, aquela indispensável empatia entre produtor e
consumidor‖85.
Ou seja, disso tudo podemos deduzir que: a) há um vínculo espiritual entre o homem
barroco e o homem contemporâneo, o que é evidenciado pela arte alegórica, fragmentada,
labiríntica, aberta, convidativa, apresentada nos dois períodos; b) essa arte fragmentada,
como já vimos, resulta de um mundo em ruínas, em que os sujeitos veem-se atormentados
com a perda da organicidade, da relação entre os homens entre si mesmos e entre os
homens e o mundo, já que não há mais um centro em torno do qual tudo orbite e para o
qual tudo aponte; c) a arte, fragmentada, revela o estado de melancolia dos homens, o seu
81
BENJAMIN, 2004, p. 201.
BENJAMIN, 1989, p. 157.
83
ÁVILLA, 1994, p. 30.
84
Idem, p. 67. [grifado no original]
85
Idem, p. 65. [grifado no original]
82
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possível trabalho de luto pelas coisas mortas, fragmentadas, pela perda da organicidade do
mundo; d) a arte fragmentada revela a tentativa de os homens dotarem as coisas mortas,
fragmentos, de um sentido último que, sabendo eles já impossível, adotam a alegoria, que é
aberta e explode em mil sentidos; e) a arte alegórica, sendo aberta, convida ao jogo, dado
que o artista, ao produzi-la, tenta dotá-la de um sentido que se apresenta como enigmático;
tenta montar os fragmentos num sistema que, precariamente, simula uma totalidade,
cabendo ao observador encontrar esse suposto sentido; d) tanto o artista quanto o
observador, tanto o escritor quanto o leitor, devem partilhar do mesmo sentimento de
melancolia para compreenderem essa arte, para verem nela o sem-sentido e ainda assim
insistirem em buscarem um, adentrando nos seus labirintos...
Muitas outras formulações poderiam ser feitas. No entanto, para que concluamos
esta seção retomando o que expressamos há pouco, sobre o caráter mimético da alegoria e
sobre a sua intenção de, através de uma semelhança intuída, representar ideias abstratas,
podemos afirmar que a alegoria mimetiza, portanto, o impossível, o sentido último perdido
e fragmentado em mil sentidos, e que as abstrações que a alegoria tenta representar, como
transcendências sempre falhas, aderem a concretudes, à materialidade dos fragmentos,
sempre imanentes, mas negando essa imanência sempre, pois sabem-na seu decreto de
morte.
III
Tendo compreendido a conjuntura latino-americana em que se inserem os escritores
e as obras que analisaremos, assim como o complexo sentido de alegoria e qual o vínculo
estabelecido por ele entre o barroco e a modernidade, comecemos a discutir as duas obras
de Juan Carlos Onetti.
Em La vida breve, Onetti nos apresenta a Brausen, homem que vive miseravelmente:
sua esposa o abandona, ele perde o emprego e envolve-se na trama de assassinato de uma
prostituta. Após desistir de tentar escrever o roteiro de um filme, em meio a tantos
infortúnios, entrega-se à criação de universos imaginários, preparando a sua saída do plano
que traduzimos como a própria realidade da trama do romance para ir habitando,
paulatinamente, outros planos, inferidos como diferentes tipos de ficção dentro da própria
trama principal. Nosso protagonista, já no início do enredo, ouve e imagina o que se passa
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no apartamento vizinho, onde Queca, a prostituta, recebe vários homens. Desenha-se,
então, uma instância que o leitor entende, a priori, como intermediária, já que, quando passa
a habitá-la, em suas visitas a Queca, Brausen passa a representar Arce, misturando a sua
realidade com elementos fictícios. Depois, Brausen, ao escrever, concentra-se na criação de
uma cidade a qual denomina Santa María. Essa é a instância que, também a priori, o leitor
entende como plenamente fictícia, a qual poderia ser totalmente independente das outras
instâncias, seja a realidade de Brausen ou o seu devaneio ao denominar-se Arce. Em Santa
María, Brausen projeta-se na figura do doutor Díaz Grey, personagem principal de uma
história em que estranhamente, nada significativo parece ocorrer, em que as cenas que o
médico divide com a mulher viciada em morfina, Elena Sala, inspirada na própria mulher
de Brausen, Gertrudis, são sempre monótonas. Percebe-se, enfim, que, seja como Arce ou
Díaz Grey, Brausen fracassa. Mesmo em Santa María, onde ele, encarnado no doutor,
poderia desfrutar o amor de Elena já que não mais o consegue em sua realidade, com
Gertrudis, há uma clima que assegura uma contínua frustração, uma insatisfação que não
pode ser aplacada. Enfim, todos esses planos entendidos aprioristicamente como
separados, embaralham-se, fundem-se, incitando o leitor a duvidar de que a sua própria
realidade é também um dos planos dessa ficção. Cabe, quanto a isso, um último ressalto: a
colocação em xeque da própria realidade do leitor dá-se pela sutil, mas genial, utilização de
uma técnica de jogo de espelhos, quando o escritor Onetti insere a personagem Onetti na
trama do próprio romance.
Em El astillero, acompanhamos Larsen, ou Juntacadáveres, um ex-cafetão que retorna
a Santa María cinco anos depois de haver sido expulso pelo governador. Larsen, então,
aceita o convite de Petrus, dono de um estaleiro em Puerto Astillero, nas proximidades de
Santa María, para tornar-se gerente-geral desse estabelecimento. No entanto, fica claro que
o estaleiro está em ruínas e que nunca será recuperado, embora todos, incluindo dois
patéticos operários que nele trabalham, insistam em assegurar que haverá sim um dia em
que tudo novamente irá voltar a funcionar com sucesso. Larsen, ao menos, parece ter mais
de uma razão para entrar nesse jogo, porque fica noivo de Angélica, a filha louca de Petrus.
Ele almeja, portanto, a suposta herança milionária que pode lhe cair em mãos, mas, no
fundo, sabe que nada de bom ocorrerá, sendo aquele que, ao lado de Petrus, mais imerge
na farsa quanto mais se assegura de que tudo não passa apenas disso mesmo, uma farsa,
agarrando-se a ela por saber que é tudo que lhe resta.
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Podemos já dizer que uma angústia avassaladora acomete aos personagens
onettianos. Eles, no entanto, são incapazes de nomeá-la, impossibilitados de enganá-la, por
isso entram em fuga, seja através do devaneio, do pensar em um passado fragmentado e
irrecuperável, do criar histórias e universos. Sentem-se desamparados, querem anular-se,
apagar os vestígios de suas vidas ―verdadeiras‖, transformarem-se em outros em quem não
se reconheçam mais aqueles. Porém, eis a ironia, eles são traídos pelo desejo de viver – por
suas pulsões de vida, pelo desejo, por exemplo, de fazer amor –, mesmo como outros,
noutras vidas, fazendo com que o desamparo volte, ainda que sob uma nova forma – o que
gera novas pulsões de morte, desejos de (auto)destruição. Viver um outro, mas não nomear
a angústia onipresente, o sem sentido que acomete a tudo, deixa um buraco, o não
nomeado, que fica, digamos, no céu de cada novo universo criado, fazendo com que por
ele escoe tudo aquilo que era maléfico no universo abandonado. O desejo inominável –
muito maior que as simples pulsões de vida – que também os oprime, ao realizar-se apenas
incompletamente, pelo devaneio, pela fuga, gera sempre mais frustração, fazendo com que
o novo universo torne-se sempre uma cópia piorada do mundo primeiro. O entregar-se ao
devaneio, ao escrever, ao criar mundos paralelos, gera deslocamentos sempre ineficientes.
O desejo inominável – mascarado em outros desejos ―menores‖, em pulsões de vida como
o sexo –, sendo reprimido, sempre volta a acometê-los. A angústia persiste. Ao não
poderem nomeá-la, negam-na, negam a realidade em que vivem. Mas negar é admitir que
aquilo que os oprime estará sempre presente, olhando-os de soslaio. Daí o clima de
desconfiança. Desconfia-se da linguagem, de si mesmo, do outro, de tudo.
A desconfiança reina em El astillero, por exemplo, quando as personagens assumem a
farsa como o único aceitável, temendo que alguém ameace desfazê-la, porque também
entendem que, se essa farsa ruir, em que outro estado irão viver, se não se podem nomear
o mal onipresente? Assim, tanto em La vida breve quanto em El astillero, as personagens
sentem-se impossibilitadas de agir no plano da existência ―real‖, por isso criam outros
planos, saem em rota de fuga, e assim recomeçam o processo já descrito, que novamente
gera angústias. O universo diegético de El astillero, no entanto, é o universo criado por
Brausen. O estaleiro em ruínas do velho Jeremías Petrus fica próximo a Santa María, cidade
criada como um destino para a fuga de Brausen. Escrito alguns anos depois de La vida breve,
em El astillero Onetti nos apresenta um desdobramento do universo criado por Brausen.
Disso, deduzimos: um demiurgo imperfeito é incapaz de criar um universo perfeito; com
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fragmentos não se constrói uma totalidade, um mundo orgânico, mas apenas uma
montagem precária, com partes que se descolam e caem. O universo opressivo e sombrio
de Puerto Astillero e Santa María são reproduções da opressão e angústia sentidas por
Brausen. Ao discutir os dramas de destino de Calderón, Benjamin nos fala das técnicas de
enquadramento e miniaturização implicadas numa reflexão que ―repete-se até ao infinito, e
miniaturiza até ao imprevisível o círculo que circunscreve‖. A realidade e a ficção
envolvem-se, geram ―a miniaturização lúdica do real e a introdução de uma infinitude
reflexiva do pensamento na finitude fechada de um espaço profano. (...) um espaço
fechado sobre si próprio‖86. De fato, é o universo fragmentado de Brausen, um todo
precário voltado sobre sua própria condição de desgarrado do mundo, fecha-se sobre si
mesmo, com todos os seus defeitos e carências reproduzidas até a menor escala, como um
destino implacável do qual não se pode fugir, mesmo criando-se mil mundos imaginários,
um dentro do outro, numa estrutura labiríntica ou espiralada, que vai se fechando até um
centro inatingível. Enfim, um demiurgo imperfeito e fechado na sua (i)limitada
subjetividade é incapaz de criar um universo perfeito (ao escrever isso, pensamos não
apenas na personagem Brausen, mas no próprio Onetti e na condição de todo bom
romancista em tempos de crise).
Em La vida breve, sabemos ainda do sadismo de Brausen, ao bater em Queca, e vemos
nisso uma identificação com a face de um pai opressor inominável, uma tentativa de
salvaguardar-se que se relaciona ao mesmo sadismo com que ele cria seus duplos, pois, ao
criá-los, o faz na qualidade de novos oprimidos e maltrata-os como a si mesmo, vendo na
dor de duplicar-se como um novo fracassado um fim em si; um conflito cíclico que se
retroalimenta e se autorreproduz, como um narcótico, como a morfina traficada e usada
por Elena, como o próprio ato de escrever/ler. A dialética opressor/oprimido instaura-se
como uma doença existencial. Brausen vê em si mesmo a causa da dor que o acomete (em
uma passagem do livro, alude a uma sucessão de ―brausens‖ fracassados). A melancolia de
Brausen, então, decreta uma imutabilidade de sua circunstância, dado que ela advém de
tempos imemoriais, reproduzindo-se através de seus ancestrais, tendo, portanto, que
reproduzir-se em seus duplos.
O tom lento, descritivo, em permanente suspensão, com que Onetti escreve, fazendo
o leitor perceber que muito pouco acontece, mas que muito se diz, incitando-o a buscar
86
BENJAMIN, 2004, p.79.
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segredos numa linguagem densa, numa atmosfera nebulosa, é um contrapeso dos
elementos formais que se equilibram com o presente eterno e labiríntico que configura o
universo diegético de seus livros. Também afirmamos que, mesmo em face a um mundo
fragmentado, mesmo estando sempre a encarar a face das coisas mortas, o trabalho de luto
parece ser negado por suas personagens. Elas insistem em fingir que há qualquer coisa que
lhes dará a redenção, sem que encarem os mortos como mortos. Nisso, a melancolia parece
inflar-se, estar na iminência de explodir. Ler Onetti é vivenciar essa tensão. E é na
linguagem, no plano mais imediatamente imanente pelo qual se adentra no(s) universo(s) de
seus livros e que interconecta a todos eles, que esse luto negado é mais evidente. Luto e
jogo, a relação intrínseca ao olhar do melancólico, que ―brinca‖ com os fragmentos (coisas
mortas) tentando dar-lhes sentido, é evidente no estilo onettiano, ao fazer das palavras e
dos fonemas os seus fragmentos mais imanentes, odiados (pela insuficiência da linguagem)
e amados (é tudo que lhe resta). O luto a que se resiste, portanto, também é o luto pela
própria linguagem literária.
Ainda sabemos que Brausen, como escritor, é uma espécie de narcisista, que
incorpora os objetos degradados (os seus duplos, a sua escrita) em si, anulando-os e, logo,
anulando a si mesmo. Anular-se, como Brausen, transformar-se em outro, portanto, é uma
forma de suicídio, daí o seu narcisismo, a sua fixação num ―eu‖ negado e mesmo assim
onipotente. Esse ―eu‖, esse Brausen a quem Brausen aspira perder, transformando-se em
Arce, em Díaz Grey, é um ―quem‖, mas não aquele ―quê‖ essencial que se deveria nomear.
Ou seja, Brausen vê em si a causa dos seus fracassos, mas ainda não consegue nomear isso
que o faz ser um angustiado. Ele, então, chega sempre perto de uma verdade: há sempre
um patrão velho e degradado que o despede, há sempre a falta de dinheiro, a mulher-mãe
degradada – Gertrudis, sem o seio materno que é fonte de alimento e também de conforto
infantil; Queca, a prostituta com quem Brausen trava um primeiro contato desajeitado, com
quem ele envolve-se numa relação edipiana de atração/repulsão; Elena, a viciada em
morfina que procura a Brausen/Díaz Grey apenas para que ele a forneça drogas; Angélica,
a filha louca de Jeremías Petrus, com quem Larsen pretende casar-se por interesse; a
própria Santa María, cidade com o nome da mãe de Jesus, dominada por um filho edipiano
Brausen-Grey, deus fundador ou pai-filho edipiano, que nomeia praças, ruas e demais
lugares, como os generais-estátuas feitos de ficções oficiais que habitam as praças das
cidades do mundo, etc. Brausen, então, chega sempre perto da alguma verdade, do porquê
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estar sempre em angústia, da impossibilidade de unidade e organicidade no mundo, o que
gera sempre uma frustração, para leitor e escritor, daí o seu decreto ao sem sentido da vida,
ao ―mundo louco‖ no bordão de Queca, à falta de uma verdade, de um fundamento que dê
razão ao viver. Sem razão, as personagens de Onetti fingem o tempo todo, fantasiam.
A falta de uma verdade fundacional, então, é o decreto de que não há sentido algum
a ser buscado, só há falta de sentido, mas que exige sempre uma busca, fazendo com os
sentidos precários multipliquem-se ao infinito. Em El astillero, é o próprio estaleiro, ponto
de chegada e partida entre cada jornada, lugar onde os navios-navegadores buscam abrigo e
reparo, após cruzarem os mares-desertos-desafios, que está em ruínas. Não há solução,
portanto. Assim, ―por que escrever, por que ler, por que seguir buscando esse sentido
inexistente?‖, sugerem-nos os romances, em muitas passagens. Achamos, por isso, que
Onetti, Brausen e o leitor são os melancólicos do mundo moderno, sempre em luto,
sempre angustiados, querendo recuperar o sentido perdido, montar os fragmentos do
mundo, buscando reconstruir uma totalidade perdida, adentrando em labirintos de pura
linguagem, de pura imanência que explode em sentidos que nunca transcendem a um
sentido soberano. Daí a sensação reforçada pela leitura de Onetti de que a escrita e a leitura
de um romance são atitudes totalmente utópicas, por insinuarem aos melancólicos que
esses vislumbrarão, por um segundo, um possibilidade de totalidade, através do próprio ato
solitário de ler/escrever. Sabemos já, no entanto, que, ao fazer uma montagem de
fragmentos, não conseguimos nunca obter uma totalidade. Fragmentos são dispensáveis,
substituíveis, não se encaixam perfeitamente, não formam nunca um todo perfeito. O
leitor/escritor, como fragmento do mundo, é também dispensável, substituível. A paranoia
de buscar um sentido, que acomete ao escritor e ao leitor, portanto, expressam a melancolia
moderna, o luto por um sentido morto, o luto pelas coisas mortas, em ruínas, que mostram
suas faces em degradação nos objetos, nos rostos das pessoas-objeto-fragmentos, das
memórias sempre fragmentadas incompletas, falseadas, duvidosas.
IV
Em El beso de la mujer araña, Puig nos introduz na pequena alcova de uma prisão
argentina em que se encontram presos Valentín e Molina. Enquanto presos, sabemo-nos
desgarrados da sociedade, apartados do mundo, postos à margem. Dado o caráter leve da
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prosa, já no início, somos incitados a delinear seus caracteres, mesmo através de seus
diálogos entrecortados, ágeis, em discurso direto. Assim conhecemos Valentín, um
revolucionário, homem reflexivo e desconfiado, preso por subversão às leis ditatoriais, e
Molina, um homossexual, homem falante e sentimental, acusado de corrupção de um
menor de idade. Molina, além disso, mostra-se um contador de histórias; ele narra a
Valentín, de modo fragmentado, mas eficiente, os enredos de filmes B estadunidenses que
assistira na juventude. As narrativas fílmicas são, portanto, uma rota de fuga para a
realidade dura que acomete aos presos, e é já no desenrolar de uma dessas histórias que
somos inseridos na trama, ou seja, somos introduzidos num entre-lugar, entre a realidade
da alcova e a realidade da ficção narrada pela personagem.
Ao seguirmos lendo, vemos como Puig estrutura o seu romance com a inserção de
várias notas de rodapé em que se discute o tema da homossexualidade e a psicanálise. Há,
ainda, longos monólogos interiores de Molina e, ao final, um relatório policial sobre as
ocorrências que marcam o fechamento da trama, com a trágica morte das duas
personagens: Valentín é morto por tortura, Molina é morto, ao sair da cadeia, pelos
camaradas de Valentín, ao temerem que ele os prejudicasse de algum modo, ao relatar algo
à polícia. El beso de la mujer araña é, portanto, um romance estruturado a partir de uma
montagem de diferentes planos discursivos, planos fictícios e de diferentes gêneros
textuais, os quais condicionam o leitor a fazer constantemente relações analíticas,
inferências, relações entre o político, o social, o econômico, o histórico, a sexualidade, a
religiosidade e a moral, até.
Pelas narrativas fílmicas de Molina, por exemplo, pensamos no universo da cultura
de massas, que moldou o caráter da personagem, inculcando-lhe valores que nada tem a ver
com a sua realidade. Ora, Molina, achando-se preso numa alcova latino-americana, com um
preso político (e ele também não era um preso político?), devaneia a imaginar-se como
heroínas de universos distantes. Desse modo, é Valentin quem questiona a Molina, critica
os enredos, pouco falando, mas suscitando a reflexão. Gera-se uma tensão entre uma
imanência fria e a uma transcendência que, embora falsa, aquece os corpos e as mentes.
Porém, dada a condição em que Valentín se encontra, pela necessidade de também
esquecer-se preso às vezes, de concentrar-se em alguma história, para não perder a própria
história, preservando-se, para aliviar os sofrimentos, tudo faz com que até mesmo ele
sucumba à imaginação de Molina. Ambos compartilham sentimentos que revelam o
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absurdo de sua situação, mas que fazem o leitor refletir acerca das possibilidades de
transformação humana, mesmo através do relato ficcional de filmes ruins, mesmo através
dos valores encaixotados da cultura de massas.
Desse modo, se pensarmos na relação entre os valores ideológicos muitas vezes
propagados pelo tipo de cinema americano retratado no livro – o individualismo, a
martirização, o romantismo piegas... – e a alienação deflagrada pela fragmentação social
imposta pelo regime capitalista, que faz os sujeitos não perceberem os laços entre, por
exemplo, os regimes ditatoriais latino-americanos e a política de Washington, nisso tudo
percebemos uma ironia muito profunda, a de que Valentín, o revolucionário comunista,
transforme-se em alguém mais humano, menos preconceituoso, ainda mais livre das
convenções sociais sobre a sexualidade, culminando no próprio ato de copular com Molina.
El beso de la mujer araña, devemos confessar, aparenta-nos ser de uma decifração mais
rápida (sem que isso signifique aqui algum tipo de reprovação). Uma obra plenamente
alegórica, como demonstramos, é aquela que faz com que percamos o foco de outros
fragmentos se nos fixarmos em apenas um. É aquela que dificulta ao máximo a nossa
apreensão do todo que conforma a sua montagem. Estando isso não tão marcado em El
beso de la mujer araña, ou seja, dando esse romance a impressão de que podemos nos focar
em um de seus componentes sem perder de foco os outros, parece-nos tratar-se de uma
obra cujos elementos aproximam-se mais ao conceito de símbolo, isto é, que faz uma
ligação mais instantânea e orgânica entre o que se representa e o que é representado, sem
induzir o observador a confusões, a perder-se87. Contudo, de um outro ponto de vista, se
entendermos que há uma impossibilidade de se representar, ainda nesse romance, uma ideia
de totalidade – embora haja a clara incitação a pensar nas relações entre o particular e o
geral, o individual e o social, a realidade de uma cadeia latino-americana e de seus presos e a
indústria cultural de massas dominante em praticamente todo o mundo... – sendo a própria
trama uma espécie de recorte na trajetória das personagens, sendo os seus passados vistos
como quadros fragmentados, perdidos, mortos; sendo o seu presente uma trajetória que
parece rumar, definitivamente, para uma morte sem transcendência (eles ainda são
fragmentos de uma sociedade que produz a morte não redimida, que esconde os mortos e,
portanto, proíbe o trabalho do luto), podemos ver nisso um aspecto alegórico. Além de
tudo, há um componente labiríntico na obra, evidenciado pelos diferentes planos
87
BENJAMIN, 2004.
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discursivos (a narrativa de filmes, a discussão psicanalítica nas notas de rodapé, os
relatórios frios da polícia, a própria história de Valentín e Molina) que o leitor é obrigado a
percorrer fazendo relações, ainda que não tão complexas, entre esses planos. Se a trama,
em si, não contém características definitivamente alegóricas, a obra em si alegoriza o caráter
paradoxal da sociedade latino-americana durante os anos de chumbo.
V
Achamos interessante iniciar a nossa análise de Los detectives salvajes a partir de uma
discussão sobre o seu próprio título. Está claro que ele não deixa totalmente evidenciado
do que trata o romance (comparem-no com os títulos de romances realistas, aqueles com
uma pretensão de totalidade). Considerando que a arte alegórica convida à decifração de
um hipotético enigma e que o alegorista insinua possuir um suposto segredo, o qual seria o
sentido almejado pelo leitor melancólico, o título Los detectives salvajes é em si mesmo um
elemento alegórico. No entanto, já sabendo que a alegoria, por sua natureza, não permite
um fechamento de sentido, que ela é a própria multiplicidade semântica, devemos sugerir
mais de uma interpretação, como uma forma de cercar, por vários lados, o nosso alvo.
Dito isso, pensemos que, havendo no título a palavra ―detetives‖, estamos tratando
de lei e crime; um detetive é aquele que procura pistas para desvendar os mistérios
envolvidos num crime, suas causas, seus culpados. Se um crime ocorre, há uma lei que foi
infringida, um sistema jurídico que rege a sociedade e que garante punição aos culpados
pela infração. Se um crime ocorre, no entanto, essa sociedade não está assegurada de que
todos os seus participantes estejam obedecendo ao sistema imposto; há sempre alguém à
margem, que quer ou necessita desobedecer às leis, havendo ainda os crimes acidentais.
Pode ser, no entanto, que o próprio sistema cometa crimes, e que o detetive atue para
achar as provas que o apontem por ter infringido as próprias leis por alguma razão. De
qualquer forma, ―detetives‖, por si só, convida à decifração, alude ao melancólico que
encara as alegorias como um modo, sempre falho, de buscar um sentido à vida.
Por sua vez, ―selvagens‖ também nos incita a pensar em lei, lei da selva, em que os
animais mais fortes, ágeis ou melhor adaptados ao ambiente vão devorando os mais fracos,
lerdos ou inadaptados. Todavia, não fica claro se, nesse caso, caberia usar a palavra ―crime‖
para o fato, por exemplo, de um leão devorar um antílope. ―Lei‖, sugerido por ―detetives‖,
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e ―selvagens‖, do próprio título, parecem excluir ―crime‖, também sugerido por
―detetives‖. Todos os atos violentos praticados em nome de uma lei da selva, parece-nos,
estariam naturalmente justificados, ou então, no caso de uma sociedade, as leis que regem o
sistema estariam sendo bastante desobedecidas quiçá pela perda de controle das
autoridades, instaurando o caos. De outro ponto de vista, se pensarmos em ―selvagens‖
como ―inadaptados‖ ou ―desobedientes‖, ou seja, em que não há conformidade com um
sistema estabelecido, podemos entender ―detetives selvagens‖ como uma referência aqueles
que, apesar de agirem em nome da lei, enquanto detetives, desobedecem-na em algum
momento, ao cometer algum ato inadequado. Por fim, ―selvagens‖ incita-nos a pensar,
obviamente, em selva, natureza, onde tudo obedece a um ciclo que, infalivelmente, passa
pela morte, sem que haja crimes e, logo, culpados.
Assim, pensemos na relação estabelecida por Benjamin entre alegoria, história e
natureza: ―...a natureza, se desde sempre está sujeita à morte, é também desde sempre
alegórica‖88, ou ainda: ―A palavra ‗história‘ está gravada no rosto da natureza com os
caracteres da transitoriedade. A fisionomia alegórica da história natural, que o drama
trágico coloca em cena, está realmente presente sob a forma de ruína‖89. Fazendo um
paralelo disso com Los detectives salvajes, concluímos haver – e nisso apoiamo-nos também
numa interpretação de seu enredo – uma alusão à história dos homens como algo que
parece estar fora do seu controle, tal qual ocorre na natureza com os terremotos e os
furacões, que produzem mortos e ruínas sem que ninguém possa apontá-los como
assassinos. Os detetives selvagens seriam aqueles que buscariam, em meio à selva histórica,
utilizando-se da força ―literária‖, por exemplo, e de métodos contrários às falhas leis
dominantes (como os questionamentos dirigidos à história oficial, como um desafio ao
poder instaurado), investigar, pela análise das ruínas, das carcaças, dos fragmentos, as
causas e os culpados, se os há, pelos tantos mortos que se vão esquecendo, pelos tantos
escombros sobre os quais se erigem novas construções. Detetives, portanto, seriam até
mesmo os leitores, dado que a alegoria convida ao jogo, mantém a obra de arte em
abertura. Os leitores, como melancólicos e em estado de permanente insuficiência,
buscando também no romance e na selva histórica algum sentido, decifrando alegorias,
refletindo sobre a precariedade do mundo, questionando, pela leitura, a realidade imposta,
88
89
BENJAMIN, 2004, p. 181.
Idem, p. 192.
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pensando nos crimes cometidos, nos mortos esquecidos... os leitores, enfim, fazem sua
própria investigação. Detetives, como interpretantes, são aqueles que buscam transcender,
que não aceitam a pura imanência crua da matéria natural fragmentada, sempre em vias de
putrefação.
O romance Los detectives salvajes nos conta a história de jovens latino-americanos que,
no México de meados dos anos 70, viram-se seduzidos, depois da leitura de um único e
enigmático poema, por Cesárea Tinajero, uma obscura poetisa (ou, como nos advertem
algumas personagens, obscura ―poeta‖) integrante de um grupo mexicano de vanguarda no
início do século XX. Por essa fascinação, eles partem para o deserto de Sonora, em busca
de pistas para saber do seu paradeiro. Essa busca, porém, compreende a primeira e a
terceira (e última) partes do romance, que nos são narradas através de um diário escrito por
um jovem chamado García Madero, quem abandona a universidade para dedicar-se à
poesia e juntar-se aos real-visceralistas, grupo do qual fazem parte, entre outros, Arturo
Belano e Ulises Lima. Os real-visceralistas de Belano e Lima inspiram-se, justamente, nos
real-visceralistas liderados supostamente, décadas antes, por Cesárea Tinajero. É, porém, a
segunda e maior parte do romance que atrai a maior atenção crítica. Nela, narra-se
justamente a história de Belano e Lima após terem deixado o deserto de Sonora e partido
para uma jornada que os fez passar por vários lugares do mundo, como melancólicos
errantes. Tal narrativa, porém, dá-se de modo fragmentado, disperso, descentrado. A
começar, fala-se da trajetória de dois homens, fazendo com que se aponte para duas
direções, dois centros, já que Belano e Lima seguem caminhos diferentes. No entanto, dado
que os depoentes falam também de si mesmos, os dois centros vistos em Belano e Lima,
que geram uma órbita elíptica nos discursos dos depoentes, muitas vezes se dispersam,
quando um dos depoentes fala em si mesmo, deslocando a trajetória da órbita narrativa
elíptica para girar ao redor de um terceiro, quarto, quinto...
novo eixo provisório.
Utilizando uma metáfora musical, podemos dizer que, se Belano e Lima são dois baixos
que trabalham em contraponto e que todas as outras vozes – entre as dos depoentes e as
outras vozes ouvidas através destas, que constituem o restante da orquestração romanesca,
gerando uma harmonia intrincada e dissonante, pontuada às vezes por um solista, um
depoente que centra o seu discurso acentuadamente em si mesmo –, são os próprios
baixos, deduzidos como essenciais à harmonização sinfônica da trama, que silenciam,
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desaparecem, desafinam, fazendo as outras vozes se dispersarem, fazendo os solistas irem
das regiões mais graves até as mais agudas da escala para preencher o vazio harmônico.
Los detectives salvajes é, portanto, um romance labiríntico, em muitos sentidos. Sua
composição estrutural é composta ressaltemos, de três partes, sendo a primeira e a última
estruturalmente idênticas, escritas em forma de um diário pessoal, e a segunda uma série
enorme de relatos pessoais. A primeira e a última partes, no entanto, contam-nos o início
da enredo, se o dispusermos numa ordem cronológica (com a segunda parte, há uma
suspensão do relato contido no diário), e a segunda parte é, portanto, o final da história. Os
labirintos aparecem também nas peregrinações dos jovens poetas pelas ruas da gigantesca
Cidade do México, ou D.F.; pelas suas incursões em lugares como o bar Encrucijada
Veracruzana, o que por si só evidencia a alusão a um labirinto. Há labirinto também em
Sonora, o estado e deserto em que adentram os poetas em sua fuga de uma cafetão violento
e em sua busca por Cesárea Tinajero. Aliás, a própria ideia de um deserto como um labirinto
alude a uma recorrência na literatura, isto é, o deserto como um labirinto do qual se é mais
difícil escapar, por conter todas e nenhuma saída ao mesmo tempo, visto que se pode andar
para qualquer direção, mas nenhuma que leve a qualquer saída. Há labirinto, ainda, na
jornada empreendida por Belano e Lima pelo mundo, quando passam por vários países e
continentes, em sua fuga e busca de algo inominável. Contudo, o caráter labiríntico do
romance é evidenciado de modo mais evidente no já referido caráter estrutural da segunda
parte da trama, em que tudo é narrado por depoentes, em textos nos quais todos falam
tanto de si mesmos quanto de Belano e Lima. Apesar de obedecerem, com algumas
exceções, a uma ordem cronológica, de um período que compreende cerca de vinte anos,
entre 1976 e 1996, várias personagens repetem-se, e alguns depoimentos são apenas um só,
fragmentado em diversas partes, podendo o leitor ler sem obedecer à ordem em que são
dispostos no romance, como num labirinto que oferece várias entradas.
Sendo os labirintos tão evidentes na composição do romance, podendo ser ele
mesmo considerado um único grande labirinto, constituído a partir de uma montagem de
labirintos menores (a técnica de miniaturização a que já nos referimos, que se reproduz da
menor à maior escala), as ideias de fuga, busca e jogo são exigidas. Ora, entra-se ou sai-se
de um labirinto buscando algo ou fugindo-se de algo. O caráter lúdico, de todo modo, está
contido na operação. Perguntamo-nos, então: de que fogem as personagens? O que
buscam ao ingressarem nesses labirintos? O que encontram neles? Isso nos leva a refletir
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acerca dos seus nomes. Notemos, por exemplo, que Arturo Belano, alter ego de Roberto
Bolaño, também alude ao Rei Arthur. Há, inclusive, uma passagem em que a personagem
entra num duelo de espadas totalmente anacrônico e despropositado. Ulises Lima, por sua
vez, alude ao Ulisses homérico e ao joyceano. É, de toda forma, alguém que também faz
uma travessia, em busca de fechar um ciclo, encerrar uma experiência, dotar-se de um
sentido. São, portanto, nomes que aludem à ideia tanto de provação, travessia,
transformação, quanto de heróis epopeicos que, por isso, deveriam representar todo o seu
povo. Nisso, eis o problema: como já vimos, Belano e Lima ligam-se precariamente a todos
aqueles que fazem parte, digamos, de sua geração, sua comunidade. Os fios que os ligam
rompem-se facilmente. Ao tentar descrevê-los, os depoentes esquecem fatos, confundemse, dirigem o discurso para si mesmos. Ou seja, não há uma ligação orgânica entre todos, o
que nos traz novamente o conceito de fragmento e fragmentação. Como fragmentos,
Belano e Lima não mantêm uma ligação orgânica com aqueles a quem, na qualidade de
proto-heróis épicos, deveriam representar. A fragmentação social imposta como que
naturalmente pela história, pelas forças repressivas que eles não conseguem bem identificar,
estilhaçam o quadro social, faz todos se voltem para suas próprias subjetividades e
insuficiências, para suas próprias memórias falhas, embora compartilhem as mesmas dores.
O que motiva Belano e Lima a saírem pelo mundo é já um fato chocante, e não um
chamado à provação de seus valores ou honra. Conforme sabemos no fim do romance, o
único ciclo que se fecha não é aquele que resulta num engrandecimento, ao fim de sua
travessia, pois a trama mesma do romance termina em suspenso, deixando-se em abertura.
Um ciclo anterior, no entanto, já lhes é dado como fechado, o destino já lhes é selado
quase como inescapável. No meio do deserto de Sonora, em sua investigação, os jovens
descobrem em Cesárea Tinajero uma mulher degradada, que em nada lembra os ideais
pelos quais eles pareciam buscar como uma prova de que haveria esperança. Cesárea é o
passado que novamente os trai. Nada há nele a ser buscado que propicie redenção. O nome
de Cesárea, aliás, invoca a ideia de parto, mãe, de um passado em conforto, como um
possível tempo em que houve na América Latina alguém que, por sua arte, tenha plantado
a semente de mudança, de algo bom a ser frutificado no presente. Estando essa mãe, esse
passado, degradado, perdido, doente, morto simbolicamente, que espécie de herança esses
filhos esperam receber? (A mesma ideia de falha num retorno ao passado, da imagem
materna degradada, é encontrada, como vimos, em Onetti, que em El astillero, por exemplo,
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mostra-nos, já no final do livro, a cena de um parto-aborto, em que uma mãe esvai-se em
sangue e gritos). Ainda há o agravante de que foi por causa deles mesmos, dos poetas
perseguidos por um cafetão violento, que esse passado possivelmente redentor
representado por Cesárea Tinajero foi aniquilado, quando a poeta levou o tiro que causou
sua morte efetiva. Os heróis, portanto, carregam em si as marcas da culpa, da cumplicidade
com a morte de um passado que tentavam resgatar, do destino inescapável, da angústia
inominável.
Fechamos Los detectives salvajes, portanto, com um pouco da sensação que acomete ao
leitor também das obras de Onetti e Puig. Bolaño, do nosso presente fracassado, pois
assentado sobre cadáveres e ruínas não redimidas, volta-se ao período em que os jovens
desarraigados, homossexuais, poetas, loucos, traficantes, prostitutas... vagavam por uma
América Latina em crise declarada, a América Latina explicitada por Puig, a partir de uma
alcova. Os heróis de Bolaño, no entanto, em plena crise, decidem também voltar-se para
um passado ainda mais distante, tentando achar nele uma semente que dê ao seu presente e
ao futuro uma possibilidade de esperança, talvez plantada em si mesmos, mas sozinhos não
são capazes de achar nada, ainda que em si mesmos, a não ser um profundo senso de não
pertencimento ao mundo em que vivem. De Onetti, passando por Puig, até Bolaño, tem-se
a persistência de uma sensação de derrota, daí os escritores voltarem-se ao passado, numa
tentativa de ativar o luto que parece querer ser apagado das mentes das pessoas, como se
nada tivesse ocorrido. Quer-se redimir esse passado, seus mortos, pois se vê no presente
uma sensação insustentável de dívida, que faz os espectros virem em busca de redenção,
que faz os melancólicos no presente percorrerem labirintos filosóficos, literários... catarem
fragmentos para neles encontrarem enigmas, na esperança de que, se desvendados,
forneçam a chave para um fundamento transcendental.
Referências
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18.
O PRESENTE BARROCO: A MÁQUINA DO TEMPO TEÓRICO-
LITERÁRIA DE AGUALUSA
Lisane Mariádne Melo de Paiva (Departamento de Letras - UFRN)
Julianny Katarine Aguiar de Oliveira (Departamento de Letras – UFRN)*
Pode parecer óbvia a escolha para trabalhar o barroco no livro Barroco Tropical do
escritor angolano José Eduardo Agualusa, contudo mostraremos no decorrer deste
trabalho que a escolha não está presa a uma idéia clara de encaixe teórico, e sim, está
estritamente relacionada a uma percepção crítica de que este livro não é uma obra literária,
é, porém, uma obra que propõe uma estética nova, uma crítica, é um novo modo de se
dizer e fazer teoria.
Dividiremos nossa análise em três tópicos: Estética Barroca, que tratará do modo
como Agualusa absorveu as características barrocas para construir seu enredo, para isto o
dividimos em quatro sub-tópicos: O Jogo, A Dualidade, O Sagrado e o Profano e O
Labirinto. O tópico em que serão focalizados os personagens intitula-se sugerindo esta
leitura Os Personagens está dividido nos sub-tópicos de análise: Bartolomeu Falcato e
Kianda, narradores e protagonistas de Barroco Tropical. E por fim o terceiro tópico,
Tropicalismo que observará as particularidades do barroco de Agualusa, destacando nos
sub-tópicos: Barroco e Modernidade e O Anjo Negro, a sua originalidade.
1. Estética Barroca
Em meio às discussões de modernidade ou pós-modernidade, os escritores
Agualusa (o autor) e Bartolomeu Falcato (o personagem) discutem o existir na construção
amedrontadora da sociedade de Luanda, em que é natural um labirinto para se jogar os
loucos e os dissidentes políticos, e um prédio que abriga as pessoas das mais altas classes
sociais e os marginalizados num mesmo espaço caótico e hipócrita de convivência.
Barroco Tropical absorve a estética barroca transformando-a em uma estética própria,
não observamos traços típicos do barroco em seu sentido mais usual, os elementos
orientam-se independentemente da sua tradição, porém mantendo sua influência. Há então,
concordando com diversos pesquisadores, o neobarroco, destacando sua particularidade: o
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tropicalismo, este, não sendo apenas um neobarroco de crítica ao capitalismo e à
colonização cultural da contemporaneidade, é um não-europeu, uma vertente dos trópicos,
dos marginalizados.
Neste caso, Agualusa faz questão de miscigenar a miscigenação, reafirmando e
reforçando a ponte afro-latino-americana. Apesar de o enredo passar-se em Luanda, é
evidente a negação a uma fronteira, é uma sobreposição de entre - lugares, culturais e
sociais.
Angola, como todos os países do subterrâneo do edifício das relações políticoeconômicas, é agora, uma neocolônia, e é isto que defendemos neste trabalho, a volta da
estética barroca, se definindo como neobarroco, é justificada pela explosão da nova
colonização, a imposição do medo levando à degradação das relações sociais.
A extravagância barroca passa a ser um detalhe cultural, tudo pode, este é o artifício
da crítica de Agualusa. Numa cidade que tudo pode, até uma mulher cai do céu. O exagero
não é mais barroco ou neobarroco, é uma característica da modernidade/pós-modernidade.
Logo, a escolha do novo olhar sobre a tradição barroca é a escolha de um novo olhar para
si mesmo.
As contradições – leia-se aí uma influência dos jogos de oposição característico do
(neo) barroco – descritas pelo personagem Bartolomeu em suas andanças por Luanda
reforçam a crítica de Agualusa a visão atual do colonizador (mais conhecidos como os
‗desenvolvidos‘) sobre o colonizado (os ‗subdesenvolvidos‘), o autor/escritor – escrevemos
deste modo, porque posteriormente discorreremos sobre a fronteira entre o autor Agualusa
e o escritor Bartolomeu Falcato - defende que a cultura ‗civilizada‘ faz dos europeus e
americanos ―mortos muitíssimo saudáveis‖ (AGUALUSA, 2009:108), enquanto que os que
passam fome morrem todos os dias sabendo viver.
1.1 O Jogo
―O poeta é um jogador‖ (ÁVILA, 1994: 117 ) é assim que Affonso Ávila define o
escritor barroco. Fazendo uma analogia com o poeta fingidor de Fernando Pessoa, ele dirá
que ―jogar e fingir são verbos de afinidade semântica‖ (ÁVILA, 1994: 117), pois aquele que
finge sentir algo para dá início a sua narrativa, joga com as imagens, emoções, projeções; e
dá início a esse universo lúdico que banha a escrita de um escritor (fingidor). Em ‗Barroco
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topical‘, Agualusa decide jogar com sua narrativa ludibriando o leitor que também estará
jogando ao ler o enredo desse romance.
A primeira página do livro vem com duas citações: uma retirada da Bíblia Sagrada,
Sabedoria, Idolatria dos navegantes, 14, 22 e outra que fala sobre o inferno, uma citação
retirada do filme ‗Platoon‘.
E entre essas duas outras citações, numa espécie de entre-lugar de céu e inferno
bem à moda barroca (que tem sua arte habitada na curva, na elipse): ―Não me interessa
ordenar o caos: o que eu quero é fazê-lo florir!‖ (AGUALUSA, 2009: 5) esta é uma citação
de Mouche Shamba, em entrevista a Malaquias da Palma Chambão, publicada o seminário
O impoluto, de 10 de maio de 2008, sendo este um personagem do livro. Observamos aqui
que o autor (ou autores) coloca a máscara de seu personagem, fingindo sê-lo para dá a
primeira ―dica‖ ao leitor do que se passará nesse livro, que se organiza propositalmente no
caos, na desordem, no insólito e no medo.
O primeiro capítulo que tem como título ―uma mulher cai do céu‖ (AGUALUSA,
2009: 7), é como se fosse, na verdade a apresentação do jogo, como um daqueles manuais
de ajuda onde explicam o que vai se passar no jogo – Que jogo é esse? Que história tem
esse jogo? – caso o jogador decida continuar, ele então expõe as cartas... As cartas
principais, ou seja, os personagens principais, as cartas de defesa e ataque, os personagens
secundários... E assim começa esse jogo chamado Barroco Tropical. Passada essa fase, não
tem mais para onde correr, ou o jogador/leitor segue em direção ao fim, ou morre no meio
da narrativa!
Durante todo o livro somos expostos a citações feitas pelo(s) autor(es) do
livro(Bartolomeu Falcato ou José Eduardo Agualusa). Na verdade, não são apenas citações
são dicas, sejam dos personagens, dos significados das palavras ou de esclarecimento, que
servirão para o leitor continuar no jogo.
―Lua é o diminutivo carinhoso com que nós, os luandenses, nos referimos
a nossa cidade. Acho um termo muito acertado. Luanda partilha com a lua
a mesma árida e agreste desolação, a mesma poeira sufocante. Todavia,
como a Lua, vista de noite, e de longe, parece bela. Iluminada seduz. Além
disso, a sua luz tem o estranho poder de transformar homens simples em
lobos ferozes.‖ (AGUALUSA, 2009: 90)
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Esta é um exemplo das citações em que o autor explica o porquê da utilização de
um determinado vocábulo, neste caso, da palavra Lua. Durante a narrativa o escritor
também pede para voltarmos a algum ponto, algum capítulo, como se tivéssemos que
voltar a uma casa em um jogo de dados, para assim poder prosseguir na narrativa.
1.2 A Dualidade
A produção barroca de Agualusa não incorpora apenas características de um
barroco literário, em sua leitura formamos telas, vemos a sua arquitetura e ainda, ouvimos
música. Em meio a vários trompe-l’oeil de palavras, iremos analisar neste sub-tópico a estética
barroca da dualidade, entendendo claro, a particularidade dela na obra do autor angolano.
Uma característica que no barroco se limita ao significado etimológico da palavra
que a conceitua, em Barroco Tropical a dualidade é encadeada, o dual, o‗dois‘ é muito pouco
para as sobreposições lidas. Por tão diversa, a dualidade que escolhemos trabalhar por
pensar ser também a mais rica, é a da relação entre os personagens Rato Mickey e Dálmata.
Depois de um acidente com uma mina o Mestre António Taborda teve seu rosto
totalmente desfigurado, e em um dia qualquer uma pessoa lhe deu uma máscara de rato
Mickey, então ele nunca mais a tirou e desse modo ficou conhecido pelo personagem que
lhe deu um novo rosto, a partir de então também uma nova identidade, a do Rato Mickey.
Nessa construção do personagem, lemos uma entrelinha bastante curiosa, o antes
Mestre António Taborda era um belo crítico da nova colonização que passam os países
subdesenvolvidos, mas especialmente a Angola. Contudo, ao ser lhe arrancado o rosto, sua
nova identidade é a de uma figura tipicamente americana, não uma figura qualquer, mas a
representação do lúdico americano. Rato Mickey, assim como Angola, ao desfigurar-se
absorve e carrega a identidade do bondoso colonizador.
Opondo-se e ao mesmo tempo acompanhado o Rato Mickey, o taxista Dálmata, ao
contrário do amigo, naturalmente aproxima-se da figura colonizadora. Dálmata tem vitiligo,
e seus dedos já completamente despigmentados são escondidos por uma luva, ele justifica
isto dizendo: ―Um dia ainda vou ser branco. [...] Ser branco é uma doença‖ (AGUALUSA,
2009:192).
A sobreposição de dualidades a partir da relação entre esses personagens se dá mais
evidentemente, quanto Bartolomeu tenta a todo o custo descobrir a verdade sobre Núbia e
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o Anjo Negro. Para ter acesso à sala de Tatá Ambroise ele usa a máscara do Rato Mickey,
em uma leitura paralela, pra ter acesso à verdade ele teve de se identificar como semelhante
ao colonizador.
A convivência e a parceria entre Dálmata e o Rato Mickey é também a do
colonizador e do colonizado, daquele que se travesti e o que nega o simulacro, do patriota
corrompido e o que não se vê já absorto nessa rede ditatorial.
1.3 O Sagrado e o Profano
Uma das dualidades mais bem articuladas por Agualusa em Barroco tropical é o
engendramento entre o sagrado e profano. Observamos isso de várias formas na narrativa,
poderíamos destacar para explanação dessa dialógica construção a personagem Kianda,
uma das narradoras e uma das personagens principal do livro, uma vez que em kimbundo
‗Kianda‘ é um ser mitológico que corresponderia à idéia ocidental da sereia.
Kianda, incorpora as características desse ―ser‖ mitológico. Ela é cantora, dona de
uma voz que encanta milhões e, igualmente a uma sereia que consegue encantar o homem
e levá-lo junto consigo para o fundo do mar, Kianda consegue encantar Bartolomeu
Falcato e levá-lo para o abismo que era a sua vida, pois para o escritor ela era a ―Rainha dos
Abysmos‖ como está logo no índice do capítulo 24.
Núbia de Matos, a mulher que caiu do céu, é uma personagem arquitetada desde o
início da narrativa numa perspectiva sagrada e profana. A sua queda já faz lembrar a queda
do anjo ‗Lúcifer‘ que, segundo o cristianismo, por querer ser mais que Deus foi expulso do
céu. Logo depois perceberemos o desdobramento de um profano dentro do sagrado, pois
Núbia no início da narrativa define a si mesma como a mulher escolhida por Deus para dar
luz ao Salvador, sendo assim uma espécie de Maria e para isso ela escolhe Bartolomeu
Falcato para ser o pai do seu filho.
No desenrolar dos fatos percebe-se que Núbia nada tem haver com a figura de
Maria, ver-se que ela é uma menina que foi abusada sexualmente na infância pelos irmãos,
depois se torna prostituta, decide fazer um concurso para e miss e ganha. Mesmo Miss,
continua em meio a orgias e drogas... Até que depois de uma alucinação, (que pode ter sido
causada pelo uso de drogas) que ela trata como uma visão, decide mudar, tornando-se
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assim, a mãe do Salvador. O que percebemos no personagem de Núbia é o desdobramento
do profano no sagrado.
A escolha de Núbia leva-nos a uma reflexão sobre a literatura: Porque o salvador
teria de ser filho de um escritor? Qual o filho de um poeta senão sua própria palavra? A
literatura salva? Seria a literatura sagrada? O próprio escritor (es), responde nossa pergunta:
―Não acredito que a literatura possua tal poder. Os meus livros amenos
não possuem. Eu não conseguiria escrever se suspeitasse que fosse mudar
a vida de alguém. Escrever é uma irresponsabilidade.‖ (AGUALUSA,
2009: 132)
Outros tantos exemplos poderiam ser retratados nessa análise, tais como: O
curandeiro Tata Ambróise, uma espécie de Pastor que utiliza feitiços; O pai de Kianda, um
terrorista islâmico que decide tornar-se budista; a Santa Cecília, santa de Kianda que ela
queria chicotear, que não sabe de nada, que recebe desaforos da cantora e nada faz, enfim
vários são os exemplos... Mas nada tão clássico como a figura do anjo negro.
A primeira pista do Anjo Negro é logo no inicio da narrativa, quando o narrador
(es) nos fala sobre um homem que anda com asas negras penduradas nas costas e morre na
guerra. Depois temos o mito do anjo negro, e logo mais no final da narrativa, nos
depararemos com a sua morte. Este anjo, não é um anjo mal, que opera para as forças do
maligno... É apenas um anjo humano! Com asas produzidas com ―penas, arames, cartolina
e alcatrão‖ (AGUALUSA, 2009: 49). Vemos aqui uma reflexão trazida pelo autor sobre a
liberdade em seu país, pois Angola é um lugar que habita anjos negros, que construíram
suas asas com matérias do lixo e alçaram a liberdade ainda que a preço de sangue!
1.4 O Labirinto
O caos barroco é retratado severamente por Agualusa em sua crítica a uma prática
famosa em seu país, o acorrentamento dos ‗indesejáveis‘ – loucos ou não – a peças de
ferro. No enredo ficcional além da prisão violenta, os ‗loucos‘ são jogados em um labirinto,
nus, abandonados com um único abrigo, as paredes.
O labirinto é a representação fiel que nos permite voltar à discussão do barroco
como movimento cíclico, preso à consciência, ou a falta dela, do homem. Se o barroco
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retorna à superfície crítica sempre que a razão é superada pela dúvida e pelo medo, nada
melhor que o labirinto de Agualusa para definir isto.
As pessoas que lá se encontram, ou melhor, se esquecem, são forçadas a participar
de interrogatórios que vão de apenas perguntas a consumo de alucinógenos, que trazem à
tona ‗verdades‘ e fantasias, e o mais funcional, faz com que o ‗paciente‘ à medida que conta
esquece.
O labirinto ultrapassa a fronteira de apenas um elemento do enredo transformandose em elemento estético de sua construção. O edifício ‗A Termiteira‘ é o mapa de leitura
dos desdobramentos de ‗Barroco
Tropical‘, seus andares reproduzem o caminho que o
leitor deve seguir, subindo, neste caso adiantando-se as páginas, e descendo, retornando a
capítulos anteriores.
O enredo é o próprio labirinto, onde não só os personagens como o leitor e o autor
procuram achar uma saída, e libertar-se. O edifício ‗A Termiteira‘ é um labirinto e também
uma ‗Torre de Babel‘, o personagem Bartolomeu que está em dos mais altos andares físicos
e sociais do prédio, volta e meia precisa descer ao caos dos andares mais baixos e do
subsolo. Sua morada é um labirinto que ele percorre sem rumo, ao mesmo tempo em que é
o seu lar é também o que há de mais desconhecido para ele.
2. Os Personagens
As sobreposições barrocas estão nas entrelinhas da teia criada pelas relações entre
os personagens, um tipo de re-leitura de ‗relações perigosas‘. Cada personagem traz consigo
um caminho a mais no decorrer da história, uma tangente desvendada apenas nas idas e
vindas da trama, que se centraliza mais especialmente em seus narradores Bartolomeu
Falcato e Kianda.
Personagens assumidamente secundários, pelo escritor e principal narrador,
Bartolomeu, por fim tornam-se essenciais no desdobramento do enredo, tais como: Mãe
Mocinha, Benigno Anjos Negreiros e Humberto Chiteculo.
2.1 Bartolomeu Falcato
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Um escritor e documentarista que presencia, ele e sua amante a cantora Kianda, a
morte de uma mulher que acabara de cair do céu. Após esse estranho acontecimento ele e
Kianda dividem a narrativa da trama, em que personagens se entrelaçam em torno do
medo.
Entre a narrativa de Bartolomeu e Kianda há uma diferença quase que ‗hierárquica‘,
pois apesar de paralelas a narrativa de Kianda parece depender do rumo dado pela a de
Bartolomeu. A narrativa do escritor orienta o enredo, e ainda sugere ter duas vozes, a do
escritor/personagem Bartolomeu Falcato e a do escritor/autor Agualusa. Obviamente em
toda construção de uma história a voz do autor está presente mesmo que não aparente,
mas no caso de Barroco Tropical a sua particularidade é a possível participação do autor no
enredo.
Seja através de comentários ‗suspensos‘ no enredo, ou de forma indireta ou
camuflada. Por exemplo, no capítulo em que Núbia conta os motivos que levaram à sua
morte ela se refere ao personagem de Bartolomeu como ‗José‘, o enredo possibilita duas
leituras: Núbia dizia ser a reencarnação da Virgem Maria que daria luz ao Salvador, seu
filho com ‗José‘, que ela afirmava ser Bartolomeu. Contudo, a fronteira não delimitada
entre o personagem e o autor nos permite a outra leitura de que este ‗José‘ está se referindo
ao autor José Eduardo Agualusa.
2.2. Kianda
Famosa cantora angolana que narra o seu ponto de vista como amante de
Bartolomeu, e ao contrário dele não participa efetivamente do enredo, suas contribuições
são indiretas, porém essenciais ao desdobramento da trama.
A cantora viciada em drogas e casada com Lulu, seu produtor, conhece
Bartolomeu, um famoso escritor e documentarista, e envolve-se amorosamente com ele.
Após testemunhar a morte de Núbia de Matos, ex-miss Angola, resolve terminar seu
relacionamento com Bartolomeu e é abandonada por seu marido.
O seu envolvimento com Bartolomeu representa a oposição ao envolvimento do
escritor com a modelo. Enquanto Núbia representa o sagrado, ela o profano. Núbia queria
apenas cumprir ordens divinas, já Kianda ser amante para saciar o seu ego.
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Em Barroco Tropical as oposições se aproximam, Kianda opondo-se à Núbia em seu
envolvimento com Bartolomeu se assemelhou à modelo com a sua morte. Abandonada
pelo marido e com uma doença grave recém descoberta, que a deixaria impossibilitada de
cantar, suicida-se. Seu suicídio foi planejado minuciosamente por ela, a cantora planejou
um último espetáculo. Contratou um grupo que simulava o Anjo Negro, a fixação de
Bartolomeu, e se jogou da varanda do seu apartamento, desse modo assim como Núbia,
caiu do céu fazendo de testemunha o seu ex-amante.
Nesta leitura, portanto, a característica mais conhecida do barroco foi representada
de modo fiel a sua tradição, o sagrado e o profano opostos e unidos.
3. Tropicalismo
Ao longo deste trabalho já destacamos em vários momentos a particularidade e
originalidade do enredo barroco construído por Agualusa. A partir da leitura de Sant‘Anna
observamos que o autor angolano não é o único a construir novos barrocos, autores afrobrasileiros mostram certas tendências estéticas que reforçado pela teoria de mestiçagem de
Gilberto Freyre, indica que:
―[...] o Barroco, por ter se espalhado por diferentes e longínquas partes do
mundo num momento em que a globalização era feita por intermédio da fé
e da espada – teria, forçosamente, que se tornar um produto mestiço e
mesclado.‖ (SANT‘ANNA, 2000: 257).
3.1 Barroco e modernidade (Luanda)
Angola é um país que escreveu sua história com tinta de sangue, com muito
sangue... Sabe-se que é triste essa cena... Mas essa é a realidade! Angola foi o palco onde se
encenou um dos conflitos armados mais duradouros da guerra fria... Um povo que lutou
por um chão, por um pedaço de terra com muita força e determinação! Em 2002, enquanto
o Brasil comemorava seu pentacampeonato mundial, e elegia o povo na figura do
presidente Lula para governar o país, Angola sentia pela primeira instância o sabor azul da
liberdade, pois com a morte do líder do UNITA, Jonas Savimbe, tem fim à guerra civil
angolana... E Colorindo o ar com seus sorrisos amarelos e singelos, Angola decide ser... O
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lugar onde a poesia decidiu habitar: essa é a única explicação que encontramos para tal
encantamento! Em angola rir-se, da mesma forma que se chora, pra não dizer do mesmo
motivo... É o lugar das cores, da beleza dos cabelos trançados, dos panos cor de arco-íris
que cobre o ventre não alimentado, das casas hospitaleiras sem camas, das crianças que
brincam uma infância inventada, país dos mutilados, sejam pela guerra ou pelo HIV... É o
lugar de um povo que decide rir, quando as circunstâncias lhe impõem um choro... É sobre
esse povo que construiu sua habitação com alicerce no medo e na angústia da alegria das
cores, que Agualusa decide contar a sua história... História de um passado presente
extremamente futurista! Diante disso, fica claro que essa história não poderia ser contada
de outra forma, senão numa estética barroca.
Em Barroco tropical fica claro que o barroco é atemporal, não se prende a
determinados momentos da história, mas uma estética do ser! Agualusa utiliza a estética
que se desenha no labirinto, no jogo e na elipse para refletir ―mal-estar, e porque não, das
patologias da cultura moderna‖, como diria Irlemar Chiampi. O mal-estar causado pela
desigualdade, desemprego, indiferença política, fome, sede, dor e morte a qual os países
pobres são expostos todo dia; para refletir isso é necessária uma estética do feio, do
exagero, do avesso, do insólito: o barroco.
―Não se pode esquecer, sobretudo, que o que está em jogo
quando invocamos o potencial desconstrutivo do barroco é o papel que
toca hoje, numa nova concepção de arte e da cultura nas sociedades
hegemônicas do ocidente, aos povos e culturas periféricas [...]‖ (CHIAMP,
1998: 26)
3.2 O Anjo Negro
O Anjo Negro não é um anjo, é um homem com asas feitas de arame e penas, é o
profano que incorpora o sagrado. O limiar entre a aparência e a essência não é distinto, por
fim os personagens e o próprio enredo constroem-se em torno do que acham que existe,
que acreditam que vêem.
Assim como a interpretação do poema ‗Labirinto Cúbico‘ por Sant‘Anna in
SANT‘ANNA, 2000: 60 vê-se na estética barroca a crítica à impossibilidade de
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independência do homem. O homem barroco está jogado em um labirinto fixo que não
pode ser manipulado.
Tanto faz o Anjo (Sangue Frio, Humberto Chiteculo), ele sempre morrerá. O jogo
sempre será o mesmo, independente dos personagens o roteiro será o mesmo. O
protagonista é o Medo, ele é o único insubstituível.
3.3 Aspectos barrocos da cidade de Luanda
Tanto as características barrocas, quanto a presença tropical são evidenciadas na
ficção de Agualusa pela escolha do quadro espacial, a cidade de Luanda:
História e literatura se entrelaçam objetivando, segundo o próprio autor, denunciar
e fazer cognoscitível as disparidades e belezas da cultura angolana. Casos reais são usados
por Agualusa, como por exemplo, os métodos (medicinais) desumanos aceitados pela
sociedade em nome de uma tradição. Tal qual o Barroco, os jogos de oposição são
utilizados como método de crítica à dualidade existente nos processos de rápidas
transformações sócio-econômico-culturais.
A crítica de Agualusa não nega a tradição, contudo indica a necessidade de uma
racionalidade, teria portanto como objetivo defender a re-leitura da tradição.
O autor faz múltiplas críticas à sociedade, à tradição, à imposição sócio-cultural
através do poder econômico e do poder do medo, e ainda ao próprio barroco. Entende-se
que o barroco/Neobarroco precisa também de releituras, não o tratando como constituído
por características fixas, mas vendo-as como móveis/adaptáveis respeitando os objetivos
do autor e a estrutura da obra.
Em termos livres, Barroco tropical não se classifica apenas como releitura
barroquiana, mas como re-leitura literária, uma miscigenação teórica que dança entre as
oposições e os labirintos barrocos até a racionalidade iluminista, imersa em uma
atemporalidade da ficção e da realidade.
*Pesquisadora CnP-q na área de literaturas africanas
Referências bibliográficas
AGUALUSA, José Eduardo. Barroco tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
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ÁVILA, Affonso. O lúdico e as projeções do mundo barroco. 3 ed. São Paulo: Perspectiva, 1994.
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 42 ed. São Paulo: Cultrix, 2004.
CÂNDIDO, Antônio. Das origens ao romantismo. 10 ed. São Paulo: DIFEL, 1980.
CHIAMPI, Irlemar. Barroco e modernidade: ensaios sobre literatura latino-americana. São Paulo:
Perspectiva: FAPESP, 1998.
HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura. São Paulo: Martins Fontes, 1995
SANT‘ANNA, Affonso Romano de. Barroco: do quadrado à elipse. Rio de Janeiro: Rocco,
2000.
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ENSAIO DE UMA SOCIOLOGIA BARROCA
19.
Luciano Albino - UEPB
Resumo
A minha proposta de doutoramento consistiu numa investigação do processo de
modernização dos engenhos produtores de cana-de-açúcar na Paraíba. Mas a motivação
para tanto partiu da percepção de como a cachaça, bebida desvalorizada socialmente,
iniciou um processo de resignificação simbólica a partir dos anos de 1990. Como a mesma
ganhou cidadania e, a partir de então, ocupou espaço em mesas e acontecimentos
impróprios para ela noutras circunstâncias. O estudo sobre a da cana-de-açúcar me
permitiu uma aproximação sobre aquela cultura que, por excelência, estimulou o processo
de construção de um país. Encontrei na literatura grande fonte de leitura e fonte de
inspiração, uma vez que José Lins do Rego e João Cabral de Melo Neto passaram a ocupar
destaque na revisão bibliográfica necessária para a tese. Num certo momento me encontrei
numa encruzilhada: estava fazendo um trabalho sociológico ou literário? Descobri na
leitura atenta da obra de José Lins forte ligação com a de Gilberto Freyre. Com mais
cuidado notei que ambos partiram da mesma orientação sócio-antropológica para
fundamentação de seus trabalhos, quer dizer, o pensamento de Franz Boas. A sociologia de
um parecia literatura, enquanto a literatura do outro se mostrou bastante sociológica. Ao ler
Antonio Candido tive certo esclarecimento da relação entre literatura e ordem social, no
entanto, percebi o quanto minha tese se atolava no dilema (ou falso dilema) de não ser
considerada científica nos moldes da sociologia clássica. Percebi, após intensa reflexão,
quanto meu trabalho, do ponto de vista ideológico, estava contaminado por uma narrativa
de temporalidade circular, ou melhor, de um devir permanente, como nos ensinou a
professora Irlemar Chiampi, o Barroco, na sua dimensão Latino Americana, brasileira, coisa
nossa, moreno. Esse encontro ideológico se estendeu ainda mais na leitura de Antonil.
Quis, como ele, entender o engenho como espaço construtor de riqueza, agora, na Paraíba,
redimensionado aos novos apelos de fetichização mercadológica. Enfim, do ponto de vista
estético e metodológico, meu trabalho foi produzido por várias orientações, quer literárias
ou sociológicas, mas, na preocupação de me limitar a uma problematização racionalmente
orientada e de intenção objetiva, quero dizer, científica. Neste trabalho pretendo evidenciar
dois momentos em que sinalizo aproximações e encruzilhadas entre literatura e sociologia,
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quero dizer, uma irregularidade estética, mas com fins claros de recuperar na arte a
dimensão social que lhe foi fator. Inicialmente com João Cabral, em seguida com José Lins
do Rego e Gilberto Freyre. Se o barroco foi nossa inicial tentativa de construir uma idéia de
identidade (um projeto moderno para o novo mundo), então recorro, inspiro-me em suas
teias para me localizar melhor nessa configuração social da qual faço parte.
Palavras-chave: Sociologia, Literatura, Barroco, Engenho
Barriguda centenária no engenho Serra Preta, Alagoa Nova, PB.
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O esplendor da natureza, assim como na culinária e noutros cozeres dos engenhos
me fizeram viver, melhor, sentir, dois momentos sobrepostos. Ora há séculos, ora aqui.
Talvez nosso projeto moderno não possa perder de vista esse lance pendular, como que
para sê-lo, moderno, não podemos perder de vista o tradicional.
2. O vento no canavial de João Cabral
―Não se vê no canavial
nenhuma planta com nome,
nenhuma planta Maria,
planta com nome de homem.
É anônimo o canavial,
sem feições, como a campina;
é como um mar sem navios,
papel em branco de escrita.
É como um grande lençol
sem dobras e sem bainha;
penugem de moça ao sol,
roupa lavada estendida.
Contudo há no canavial
oculta fisionomia:
como em pulso de relógio
há possível melodia,
ou como de um avião
a paisagem se organiza,
ou há finos desenhos nas
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pedras da praça.
Se venta no canavial
estendido sob o sol
seu tecido inanimado
faz-se sensível lençol,
se muda em bandeira viva,
de cor verde sobre verde,
com estrelas verdes que
no verde nascem, se perdem.
Não lembra o canavial,
então, as praças vazias:
não tem, como tem as pedras,
disciplina de milícias.
É solta sua simetria:
como a das ondas na areia
ou as ondas da multidão
lutando na praça cheia.
Então, é da praça cheia
que o canavial é a imagem:
vêem-se as mesmas correntes
que se fazem e desfazem,
voragens que se desatam,
redemoinhos iguais,
estrelas iguais àquelas
que o povo na praça faz.‖ (MELO NETO, 2007, 61/62)
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O canavial, na sua exclusividade, unifica o espaço e atropela tudo. Não deixa existir
outra planta além da cana que o compõe. Sua ocupação ao largo submete a paisagem a um
só horizonte verde, fixado assim em predomínio que se lança. Parece coisa sem enigmas,
clara, evidente na mesmice entediante para quem nele anda, embora traga, ao mesmo
tempo, no imediatismo do olhar primeiro, outras dimensões, complexidades recônditas,
variações em detalhes e nuances mais diversos nas folhas que não deixam de aparecer.
A força do canavial avança com desdém sobre o mais, impiedoso e faminto nas
terras a desmatar. Seus tentáculos invasores esticados têm forma, contornos sutis. Nele,
lutas são travadas, ondas de conflito definem a orquestra. Nele, homem e terra se
misturam, empilham-se, fazem-se touceiras; como cana são cortados, moídos, lançados à
brasa. Nele, como cana, extrai-se o açúcar de cada um. Quem entra no canavial cana se
torna e como tal se faz e desfaz.
3. Franz Boas, Gilberto Freyre e José Lins do Rego: a busca de uma descendência
antropológica90
Divergente do pensamento antropológico de sua época, século XIX e início do XX,
Boas constrói uma abordagem revolucionária que passa a ser ponto de partida para as
pesquisas na área a partir de então. Ao contrário dos Evolucionistas, preocupados em
elucidar cientificamente as etapas pelas quais a raça humana se aperfeiçoou, pretende
focalizar seu olhar sobre a diversidade da cultura.
Com Boas a cultura assume um caráter plural fugidio à uniformidade teórica que a
determina como desdobramento de imposições naturais. Sua observação focaliza o diverso
de cada grupo, a complexidade e a dinâmica sociais peculiares, não reduzidas a
determinismos geográficos, biológicos ou de qualquer ordem, porque é múltipla pela forma
como se torna peculiar, especifica, portanto. A explicação da cultura passa a ser buscada no
registro cuidadoso da história pontual do grupo estudado, sem a pretensão evolucionista de
definir uma história geral da cultura humana.
90
Sobre a relação de amizade e cumplicidade intelectual entre José Lins e Gilberto Freyre tive a
feliz oportunidade de entrevistar Edson Nery da Fonseca que conheceu profundamente os dois.
Nossa conversa no seu sobrado em Olinda foi uma experiência de grande valia para minha
pesquisa. A ele agradeço o tempo a mim desprendido, assim como os ensinamentos tão
apurados e sofisticados de um homem ao mesmo tempo bastante culto e gentil.
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O conhecimento das muitas possibilidades de como os grupos humanos se
desenvolveram revela meios para o entendimento da própria sociedade do pesquisador.
Em outras palavras, a diversidade cultural sinaliza a problematização da cultura Ocidental,
vista não mais como padrão ou referência para as outras, mas sim localizada em um plano
horizontal a partir do qual seus valores não podem assumir a posição qualitativa de melhor
ou pior. Há no pensamento de Boas o vigor do relativismo cultural necessário para, a partir
do ―outro‖, encontrar orientações à sua própria sociedade. A antropologia não é, portanto,
o relato de comportamentos exóticos de grupos distintos mas um mecanismo poderoso de
alteridade.
―A concepção boasiana de cultura tem como fundamento um
relativismo de fundo metodológico, baseado no reconhecimento
de que cada ser humano vê o mundo sob a perspectiva da cultura
que cresceu – em uma expressão que se tornou famosa, ele disse
que estamos acorrentados aos ‗grilhões da tradição‘.‖ (Castro,
2004, 18).
Embora o homem se organize socialmente a partir de universais como a política, a
religião, a economia etc., o que de fato interessa para Boas é como individualmente cada
grupo se construiu historicamente, tornando-se diverso em relação a outros. Nesta direção
sugere o método histórico ou de indução empírica que consiste no mapeamento das causas
segundo as quais os fenômenos culturais se desenvolveram naquele espaço específico, para
então, entender sua lógica interna, sem alocá-la num plano geral ou num sistema evolutivo.
A preocupação de investigar o processo histórico particular de cada grupo é cara para
Boas, pois segundo ele, todos trazem consigo uma tradição. Daí seu interesse de descobrir
como os costumes existem e lhe fazem sentido pelo detalhamento de seu desenvolvimento
no decorrer do tempo.
Recuperar a tradição historicamente significa viabilizar no presente, pela memória
material e simbólica, o esclarecimento de um passado significativo que o distingue dos
demais, que o peculiariza e oferece ao grupo referência para construção de identidade.
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―A grande e importante função do método histórico da
antropologia parece-nos residir, portanto, em sua habilidade para
descobrir os processos que, em casos definidos, levam ao
desenvolvimento de certos costumes.‖ (Boas, 2004, 38).
A dedicação investigativa ao detalhar a complexidade de relações próprias a cada
cultura sinaliza um novo fazer antropológico, especialmente em termos de método, que
inspirou seus alunos, Ruth Benedict, Gilberto Freyre, e outros, a buscarem no seu gênio o
impulso ao entendimento da diversidade cultural ou das múltiplas formas de organização
social.
―(...) Até agora temos nos divertido demais com devaneios mais ou
menos engenhosos. O trabalho sólido ainda está todo à nossa
frente.‖ (Boas, 2004, 39).
Sem dúvidas, este vigor intelectual de Boas, principalmente relativo ao método como
os grupos humanos deveriam ser abordados no estudo de suas manifestações culturais,
instigou aqueles que, posteriormente nas primeiras décadas do século XX, esforçaram-se ao
esboço de um instrumental investigativo conhecido como culturalismo.
O olhar sobre o particular, à busca do pontual e de sua universalidade, na medida em
que as partes combinadas e interdependentes demarcam unidade significativa, induziu o
surgimento de uma nova antropologia, cultural propriamente dita, diversa daquela
evolucionista e raciológica.
Apoiar-se em categorias naturais para compreender formações próprias da cultura é
amplamente refutada por Boas na medida em que, falar em raça, só faz sentido quando é
possível delimitar unidades corporais definidas e herdadas por descendentes de uma mesma
ancestralidade, o que segundo ele, torna-se praticamente impossível em termos modernos,
haja vista a multiplicidade de linhagens que formam os atuais grupos humanos. Em
resumo, não há, racialmente falando, um grupo puro, genuíno em termos de descendência.
Deste modo, as características culturais não podem ser classificadas como particulares a
grupos genéticos específicos, exclusivo a certa descendência. Em uma perspectiva
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puramente biológica os homens não se diferenciam tanto quanto a que se manifesta
culturalmente, ainda mais quando o estranho é anunciado ao lado.
―(...) Podemos dizer que cada grupo racial consiste de muitas
linhagens familiares que são distintas em formas corporais.‖ (Boas,
2004, 70).
―(...) Acredito que o estado atual de nosso conhecimento nos
autoriza a dizer que, embora os indivíduos difiram, as diferenças
biológicas entre as raças são pequenas. Não há razão para acreditar
que uma raça seja naturalmente mais inteligente, dotada de grande
força de vontade, ou emocionalmente mais estável do que outra, e
que essa diferença iria influenciar significativamente sua cultura.‖
(Boas, 2004, 82).
Estas afirmações boasianas influenciaram demasiadamente Gilberto Freyre no
tocante ao modo como este pensou o Brasil. Não à toa sua monumental obra Casa Grande
& Senzala tem o subtítulo: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal,
notadamente destacando a herança híbrida, escravocrata e agrária dos portugueses, e como
estes a incrementaram com os nativos e com os africanos. Essa inquietude de Gilberto
Freyre sobre a miscigenação brasileira encontra em Boas o suporte teórico para a devida
problematização antropológica.
―O Professor Franz Boas é a figura de mestre de que me ficou até
hoje maior impressão. Conheci-o nos meus primeiros dias em
Colúmbia. Creio que nenhum estudante russo, dos românticos do
século XIX, preocupou-se mais intensamente pelos destinos da
Rússia do que eu pelos do Brasil na face em que conheci Boas. Era
como se tudo dependesse de mim e dos de minha geração; da
nossa maneira de resolver questões seculares. E dos problemas
brasileiros, nenhum que me inquietasse tanto como o da
miscigenação.‖ (Freyre, 1984, lvii, prefácio à primeira edição).
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Gilberto Freyre volta ao Brasil depois de seus estudos nos Estados Unidos, carregado
dos ensinamentos antropológicos de Boas, no propósito de problematizar a formação da
sociedade brasileira segundo critérios teóricos e metodológicos centrados sobre a cultura,
nas suas manifestações mais sutis: culinária, sexualidade, parentesco, economia,
religiosidade etc.
Se Margareth Mead e Ruth Benedict representaram uma corrente antropológica
conhecida como Culturalismo, no Brasil, o pensamento de Gilberto Freyre é destacado
como Regionalista, devido sua preocupação com questões locais, com problemas específicos
do Nordeste. Sua influência se faz presente em vários intelectuais da época, com destaque,
em José Lins do Rego, cuja amizade se tornou intensa e duradoura, de acordo depoimento
deste em 1941 ao mestre e amigo pernambucano:
―Conheci Gilberto Freyre em 1923. Foi numa tarde do Recife, do
nosso querido Recife, que nos encontramos, e de lá pra cá a minha
vida foi outra, foram outras as minhas preocupações, outros os
meus planos, as minhas leituras, os meus entusiasmos; [...] para
mim teve começo naquela tarde de nosso encontro a minha
existência literária. [...] Começou uma vida a agir sobre outra com
tamanha intensidade, com tal força de compreensão, que eu me vi
sem saber dissolvido, sem personalidade, tudo pensado por ele,
tudo resolvendo, tudo construindo como ele fazia. Caí na imitação,
no quase pastiche. Isso não só no seu jeito de escrever como em
tudo o mais: nos seus gostos, nas suas relações, nos seus modos de
vida.‖ (In: Fonseca, 2007, 242).
O pensamento de Boas chega ao Brasil através de Gilberto Freyre, ou pelo menos, é
através deste que se torna significativamente difundida sua herança intelectual, seu método
de abordagem antropológica. Uma influência que não pára no autor de Casa-Grande &
Senzala, mas que se espraia, por este autor, para outros da mesma época, quando decidem
contornar suas trajetórias literárias sob a versão boasiana do pernambucano de Apipucos.
Pelo menos sobre José Lins do Rego essa influência é sintomática. A relação de
amizade que se constrói entre os dois viabiliza também o empenho de ambos sobre
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temáticas afins, sobretudo a respeito da herança tradicional comum. É através de José Lins
do Rego que Gilberto Freyre conhece os engenhos paraibanos, aqueles que se tornaram
palco de suas obras por ele mesmo denominadas de ciclo da cana-de-açúcar, de Menino de
Engenho a Usina. É Gilberto Freyre quem apresenta a José Lins do Rego autores europeus e
norte-americanos desconhecidos no Brasil daquela época, década de 1920, e o estimula a
deixar o jornalismo panfletário do qual fazia parte para se dedicar à literatura, especialmente
uma que destacasse sua memória nos engenhos paraibanos (Fonseca, 2007, 239).
―Em 1932, publica-se no Rio de Janeiro o primeiro romance de
José Lins do Rego. Romance autobiográfico no qual é evidente a
influência de Gilberto Freyre: evidência somente negada por antifreyrianos renitentes. Como diz o velho ditado: o pior cego é
aquele que não quer ver. Pois foi o próprio José Lins do Rego
quem proclamou, alto e bom som, que tinha vergonha de sua terra
e de sua gente antes de conhecer Gilberto Freyre, com quem
aprendeu a importância da formação e dissolução da família
patriarcal, do esplendor e decadência da aristocracia açucareira
como matéria digna de ser aproveitada em obras literárias.‖
(Fonseca, 2007, 241).
A construção literária de José Lins do Rego tem no pensamento de Gilberto Freyre
uma fonte irrefutável, um suporte sócio-antropológico a partir do qual não apenas elabora
romances sobre sua infância, graças à pungente memória, mas principalmente, por lhe
permitir explorar valores, imagens, relações e símbolos pertinentes ao seu contexto
paraibano, tal qual uma análise histórica e ao mesmo tempo sociológica de um mundo que
vê ruir. No caso, a falência dos engenhos produtores de açúcar provocada pelas usinas.
A leitura dos romances de José Lins do Rego permite a visualização dos engenhos,
suas imagens, suas histórias, cheiros, sabores e fantasias, mas também, revela, por meio da
literatura, uma análise social bem localizada, aguda da dinâmica histórica por que passava a
região produtora de açúcar da Paraíba no início de século XX. Mostra, nas entrelinhas do
seu texto, entre um partido de cana e outro, os detalhes de um contexto que para ele,
declina, desmantela-se. É possível, até certo ponto, ao ler suas obras, sentir o cheiro de
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caldo de cana cozendo em tachos grandes à indústria do açúcar, da rapadura e da cachaça,
ao mesmo tempo em que é possível conhecer mais sobre o patriarcalismo, a economia
canavieira, a política e as falas de pé-de-parede das Casas-Grandes, com suas sinhás
submissas que vendiam, às escondidas, ovos de galinha no período de crise financeira do
engenho.
―Gilberto Freyre falou muito com José Lins do Rego sobre seu
projeto de escrever uma história do menino brasileiro. Essa
história pungente – a de meninos precocemente ‗de tudo da
própria meninice‘- está como que entranhada em Casa-Grande &
Senzala, obra muito mais abrangente do que a inicialmente
projetada pelo autor: Menino de Engenho é um romance
autobiográfico desentranhado por José Lins do Rego de CasaGrande & Senzala, obra que leu ainda em provas tipográficas, tendo
escrito sobre o ensaio seu amigo, antes mesmo dele aparecer nas
livrarias do Rio de Janeiro...‖ (Fonseca, 2007, 241).
Gilberto Freyre e José Lins do Rego são meninos de engenho. Cada qual ao seu
modo disseca em textos a dinâmica social própria daquele cotidiano que demarcou o início
do processo de formação da sociedade brasileira. Ninguém melhor do que os dois para
explicar o espaço que foi o centro econômico e social por séculos no Brasil, o engenho. E,
em se tratando de uma pesquisa sobre cachaça de engenho na Paraíba, a menção a José
Lins do Rego é algo obrigatório.
4. Conclusão
O projeto das elites para o Brasil é positivista e clássica, cópia mal feita da sociedade
liberal burguesa moderna. Mas o Brasil vai além das elites, não se delimita a esquemas
arbitrários como os de progresso e história linear. Do mesmo modo, as iniciativas para sua
compreensão devem se estender para horizontes mais autônomos sem, necessariamente,
perder de vista o rigor do ponto de vista sociológico.
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Percebi no Barroco um encontro ideológico principalmente porque em seu estilo de
confrontos, torna-se possível a convivência num plano ético de irregularidades. Nada mais
brasileiro nesse Barroco, ou será o contrário?
5. Bibliografia
1.
ANTONIL, André João. Cultura e Opulência do Brasil. São Paulo: Edições
Melhoramentos, 1976.
2.
FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala: formação da família brasileira
sob o regime da economia patriarcal. 23ª Edição. Rio de Janeiro: Livraria José
Olympio Editora, 1984.
3.
REGO, José Lins. Menino de Engenho. Rio de Janeiro: José Olympio,
4.
REGO, José Lins. Doidinho. Rio de Janeiro: José Olympio,
5.
REGO, José Lins. Bangüe. 22ª Edição. Rio de Janeiro: José Olympio,
6.
REGO, José Lins. Moleque Ricardo.
7.
REGO, José Lins. Usina. 18ª Edição. Rio de Janeiro: José Olympo, 2008.
8.
REGO, José Lins. Fogo Morto. 59ª Ed. Rio de Janeiro: José Ollympio, 2003
9.
CHIAMPI, Irlemar. Barroco e modernidade: ensaios sobre literatura latinoamericana. São Paulo: Perspectiva, 1998.
10.
SILVEIRA, Francisco Maciel. Literatura Barroca: literatura portuguesa. São Paulo:
Global,1986.
11.
CANDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade: estudos de Teoria e História
Literária. 10ª Edição. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2008.
12.
SANT‘ANNA, Affonso Romano de. Barroco: a alma do Brasil. Rio de Janeiro:
comunicação Máxima, 1997.
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Sessão de Comunicação: INTERFACES BARROCAS
Coordenadores: Profª Ms. Reny Gomes Maldonado
Prof. Ms. Samuel Anderson de Oliveira Lima
1.
LOS JESUITAS Y SUS RESONANCIAS EN EL BARROCO BRASILEÑO
Gleba Coelli Luna da Silveira
Márcia dos Santos do Nascimento
(Universidade Estadual da Paraíba)
Resumen
En Portugal, la Casa de Avis fue responsable por una nueva visión del mundo. En
1383 con la revolución popular, la burguesía desarrolló un pensamiento positivo que ha
conducido Portugal a importantes descubrimientos91. En el siglo XVI, este pensamiento
que conducía el país, entró en declive debido a una débil economía y no existencia de
estructura administrativa. La aristocracia sentía que su poder político estaba amenazado por
la clase burguesa. Estos factores eran contra la mentalidad formada en el siglo XV y
estaban agregados a la Inquisición, un instrumento de la Contra Reforma, utilizado como
arma por la clase aristocrática, surgiendo la persecución y condenación de los Judíos que
constituían la clase burguesa. En los años que siguieron a 1580, cuando Portugal se unió a
España, se consolida un estado de terror, donde los Jesuitas apoyaron la nobleza, hacían
prácticas de tortura, basándose únicamente en las quejas. La religión impone sus valores de
una manera brutal, en violación de la conciencia humana, y el hombre del siglo XVII tuvo
que asumir una actitud de contrición con aceptación de Dios como ser absoluto que todo
puede y que quita el derecho humano de libre voluntad. Estos hechos fueron trasladados al
Brasil colonial y durante todo el siglo XVII, las persecuciones de la Inquisición ocurrieron
porque éramos parte de Portugal. En Brasil, la situación política y social no era propicia a
las artes y la literatura, y lo que se hizo en el período que hubo la presencia del estilo
barroco fue la producción de textos de brasileños y de portugueses con sensibilidad para
91
Esa palabra ―descubrimiento‖ pasó a ser utilizada en lugar de la palabra colonización, porque ―colono‖
en una de sus acepciones significa también ―aquel que ocupa la tierra del otro‖ (BOSI, 2005).
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literatura que poseían una formación cultural con estudios hechos en Portugal. Entre ellos
están: Gregorio de Matos, Botelho de Oliveira y el sacerdote Antonio Vieira, con sus textos
inspirados en la realidad del Brasil colonial.
Palabras claves: Literatura Barroca. Los Jesuitas. Brasil. Portugal.
Introducción
Las primeras manifestaciones conocidas como barroco surgieron principalmente en
el siglo XVII. El barroco es un estilo que tiene como principal característica, la existencia
de una tensión entre la materia y el espíritu, el cielo y la tierra, la razón y la sensibilidad, la
contención y el derramamiento, el científico y la realidad. En Europa estas características se
relacionan con el conflicto de ideas que surgieron debido al progreso de la ciencia que tuvo
influencia del renacimiento y de la reforma protestante, así como también de la reacción de
la iglesia católica con su contra reforma. Es probable que la palabra ―barroco‖ tenga su
origen en la palabra italiana ―barroco‖, usada en la edad media por filósofos que la
empregaban para describir obstáculos al pensamiento lógico.
Así se pasó a designar la palabra ―barroco‖ para cualquier idea oscura o pensamiento
tortuoso. Hay también otra origen para la palabra ―barroco‖, pero ésta se refiere a la
palabra portuguesa y se trata de un tipo de perla con formas irregulares, que se encuentra
crítica de arte para describir cualquier objeto irregular, que no se encuentra dentro de las
reglas establecidas. Estos conceptos existían hasta el final del siglo XIX, dónde la palabra
aún poseía el significado de extraño, grotesco, exagerado y exceso de ornamentación. Por
fin, fue con los estudios del historiador de arte, Heinrich Wölfflin, ―Renacimiento y
Barroco‖ en el año de 1888, que el Barroco se cambió en una designación estilística con la
sistematización de sus características.
No son los tiempos modernos, los descubrimientos geográficos del nuevo mundo,
las invenciones, ni el revivir del espíritu griego latino que marcó el final de la edad media.
Portugal fue el país europeo que más ha conservado parte de la herencia socio cultural de la
época medieval. Esto sucedió en el siglo XVIII, donde ha desaparecido toda esta cultura,
debido únicamente a la llegada del racionalismo iluminista. Así, serán los buques de Pedro
Alvares Cabral, que llegarán a la tierra de Santa Cruz en abril de 1500, con una visión del
mundo Medievo y con las reglas propias de la cultura europea.
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El navegante portugués y también cronista oficial, Pero Vaz de Caminha tenía una
visión pre renacentista del nuevo mundo, debido a su formación e ideologías, sin embargo,
esos hombres aún poseían pensamientos e ideas del período medieval. Ellos fueron
conducidos por una cosmovisión en la que Dios era el centro del mundo, no el hombre
como afirmaba el humanismo y como Portugal también había comenzado a darse cuenta.
De ese modo, la nueva tierra tuvo una configuración cultural diferente a través de la mirada
portuguesa; o sea, el Brasil fue retratado, en efecto, por una ―visión del paraíso‖. La Carta
de Pero Vaz de Caminha posee una coloración idílica, los paisajes literarios son
descriptivos, los indígenas son presentados con sus ―vergüenzas‖ desnudas, entre otros
elementos culturales que edifican esta visión portuguesa (HOLLANDA, 1963).
Figura 01: Carta de Pêro Vaz de Caminha para D. Manuel I.
Ali estiveram conosco, a ela, perto de cinqüenta ou sessenta deles, assentados todos
de joelho assim como nós. E quando se veio ao Evangelho, que nos erguemos todos em
pé, com as mãos levantadas, eles se levantaram conosco, e alçaram as mãos, estando assim
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até se chegar ao fim; e então tornaram-se a assentar, como nós. E quando levantaram a
Deus, que nos pusemos de joelhos, eles se puseram assim como nós estávamos, com as
mãos levantadas, e em tal maneira sossegados que certifico a Vossa Alteza que nos fez
muita devoção.
Como podemos observar en el fragmento de la Carta de Pero Vaz de Caminha, la
misión de educar los ―gentíos‖ ha tenido éxito. Estos hombres viajaban a través de océanos
por muchos meses, enfrentaban muchos peligros y supersticiones, debido a sus creencias
humanísticas. En sus mentes estaban sus creencias medievales y toda su religiosidad, con la
busca antes del reino de Dios que el reino de los hombres; ellos hacían la propagación en el
nuevo mundo de la Fe y del Imperio. Los hombres y viajes tenían como objetivo la
exploración, el dominio de las nuevas tierras y de todo que allá se ha encontrado. Para eso
se ha usado el nombre de Cristo, haciendo la difusión del catolicismo, que en principio era
lo único ideal, pero después sirvió para justificar las actitudes por veces más deshumanas
practicadas tanto por los navegadores, como por los explotadores que llegaban a la nueva
tierra.
Los primeros años de nuestra formación histórica son caracterizados por una
literatura pragmática, sea ella de carácter Jesuítica, o sea aquella que se ha originado a partir
de los viajes que tenían la finalidad de reconocer y fornecer informaciones acerca de la
nueva tierra. En lo que se refiere a la literatura Jesuítica, que tenía como función la
catequesis de los indios y la educación de los blancos que vinieron colonizar la tierra
descubierta, eso según las reglas pedagógicas aplicadas por los seguidores de la escolástica.
Al revés, cuando se refiere a los informes o registros de viajes, esta literatura nos ofrecía
mejores datos sobre la tierra, que por su vez eran conducidos a los superiores en Lisboa
para que ellos supieran todas las posibilidades de expansión y exploración que iban traer
grandes lucros a la metrópolis.
En las dos actividades literarias los escritos eran al azar, o por veces resultaban del
uso de los recursos estilísticos animados por la estética. Así podemos decir que todos eses
documentos servían a cuestiones portuguesas, o sea, servían al interés en expandir sus
tierras y el comercio, tanto en el Brasil como en todas las partes del mundo. Los
documentos producidos en el siglo XVI no presentan gran carácter literario, pero por su
vez presenta gran riqueza sociográfica y historiográfica que han sido reconocidas por los
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especialistas y son consideradas un importantísimo documento con grandes informaciones
culturales.
Los Jesuitas y la Compañía de Jesús
Inicialmente podemos preguntar cuáles son las influencias y la importancia de la
Compañía de Jesús en la colonización y en la historia cultural brasileña. No es algo fácil,
hablar sobre la actuación de la Compañía de Jesús92 en la formación de la nación brasileña y
eso es debido al facto de que ellos conquistaron muchos enemigos (MASSAUD, 1997,
p.24). En los siglos coloniales la acción de los Jesuitas en el Brasil ha sido desarrollada en
dos momentos distintos. El primer se refiere al expansionismo geográfico de la metrópolis,
que empezó a ser puesto en práctica desde la conquista de Ceuta en el año de 1415, y éste
facto jamás podrá ser negado. Después, en la nueva tierra aumentaran y fijaron las
fronteras, hicieron la catequesis de los indígenas con un trabajo sistemático y que les han
traído mucho dinero; también influenciaron de manera benéfica tanto los nativos como los
colonos. Los Jesuitas fueron los primeros a romper las barreras naturales existentes en
nuestra tierra, como lo que les obligaba la Sierra del Mar, y por veces eran los únicos
blancos a entrar en las grandes extensiones de bosques vírgenes.
Cuando intentamos hacer un análisis de la cuestión cultural, infelizmente se trata de
algo aún menos claro. En los años de 1555, El Rey Don João III93, entrega a los Jesuitas
―O Colégio das Artes‖ y como tenían el control, ellos hacen prevalecer la cultura
portuguesa. Como consecuencia y debido al uso de una pedagogía de base escolástica, los
Jesuitas no han beneficiado Portugal con el estudio de la filosofía natural y humanística, así
como con el experimentalismo que surge en esta época debido al renacimiento
(MASSAUD, 1997, p.25). Con ese pensamiento, la cultura portuguesa aún direccionada
para las características medievales, se ha visto con retraso en relación a toda Europa con
una educación libresca, artificial y ciega en lo que se refiere a las realidades presentes, que
92
La Compañía de Jesús es un orden religioso que fue fundada en 1534 por un grupo de estudiantes de la
Universidad de Paris, liderados por el vasco Íñigo López de Loyola, conocido como Inácio de Loyola.
Los miembros de la Compañía de Jesús son conocidos como Jesuitas y por trabajo misionero y
educacional. El primer grupo de seis misioneros liderados por Manuel da Nóbrega fueron traídos por el
gobernador general Tomé de Sousa, aportando en Bahia (Brasil), en el año de 1549.
93
El Rey Don João III (1502-1557) fue el décimo quinto Rey de Portugal, conocido como ―El Piadoso‖ o
―El Pio‖ debido a su devoción religiosa. Inició la colonización en Brasil y fue responsable por la división
en Capitanías Hereditarias.
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ha llevado siglos para reconocer su retroceso con relación a otros países europeos y por lo
tanto salir en búsqueda de lo que se estudiaba en el viejo mundo.
Este era el modelo de cultura que los Jesuitas, sacerdotes de Santo Inácio de Loyola,
que han traído al Brasil. Cuando ellos aquí llegaron en 1549, con el primero gobernador
general de las regiones del Brasil (Rio de Janeiro, Bahía y Pará), han fundado escuelas con la
misma función del ―Colegio de Artes‖, o sea con un estudio direccionado a la filosofía,
teología, y del área de humanas, con el interés en formar personas para el Orden de Loyola.
Además, con el uso de los mismos valores y con todo direccionado a fe y al imperio,
también se dedicaron a la enseñanza del colono y de los indígenas. Con eso, recibimos de la
formación considerada humanista con origen en el siglo XVI portugués, la retórica, la
gramática y la educación libresca. Los Jesuitas eran responsables por toda la cultura de la
nueva tierra en el periodo colonial, y creemos que sin ellos la situación cultural del Brasil
colonia hubiera sido peor. A ellos debemos las primeras escuelas que aquí han existido,
mismo con una enseñanza destinada a contenidos ofrecidos solamente por la iglesia.
Los sacerdotes que aquí estaban en misiones en las selvas del Brasil, no eran
responsables directamente por esta obscuridad literaria. Los libros que se han puesto en la
lista eran prohibidos y entre ellos estaban: la Diana de Jorge Montemor y las obras de
Plauto, Terencio, Horacio, Marcial y Ovidio, con excepción de las expurgadas o adaptadas
de manera determinada por el Colegio Romano94. Por su vez también era prohibido recitar
sonetos y versos espirituales en eventos religiosos. Así mismo, son a los Jesuitas que
debemos las primeras manifestaciones de poesías, de teatro y pinturas, pues eran las únicas
actividades relacionadas a la cultura existente en la tierra recién descubierta. Los Jesuitas
desarrollaban sus actividades culturales en dos ramos definidos, eran ellos: primero era la
catequesis de los indígenas, cuyo objetivo era cambiarlos haciendo sociales para que fueran
útil al trabajo y cambiarlos en cristianos; y el segundo era direccionado a la educación de los
colonos, que se encontraban en éxtasis delante del paraíso que era la tierra nueva aún no
explotada.
Los libros usados por los Jesuitas en esta nueva empresa y que se direccionaba para la
enseñanza eran fragmentados en epistolografías, informes y informaciones acerca de la
nueva tierra, gramáticas, poesías y teatro. Estas tres últimas categorías literarias tenían
94
El Colegio Romano surgió un año después de la fundación de la Compañía de Jesús. Su principal
objetivo es la educación y formación de vida del estudiante, desde los estudios elementares hasta los
estudios universitarios.
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como objetivo solamente la catequesis y la educación, y las otras tenían como principal
objetivo el conocimiento de la tierra para llevar informaciones a la metrópolis acerca de
todo lo que los misioneros desarrollaban en la nueva tierra. Cuanto a la cuestión literaria
solo la poesía y el teatro eran sus representantes, los demás pertenecían a la historiografía,
sociografía, etnografía y etc. Pero no hay duda que en los dos casos el valor estético de las
obras es menor que el valor historiográfico, sociográfico, etnográfico, lingüístico y etc.
Varios Jesuitas han dejado sus observaciones escritas, principalmente en cartas, dónde
cuentan sus observaciones sobre la realidad socio geográfica del Brasil y de las
peregrinaciones como misioneros. Entre ellos, los principales Jesuitas son: Manuel da
Nóbrega, José de Anchieta y Fernão Cardim. Otros también dejaron sus contribuciones,
como: Antônio Blásques, Leonardo do Vale, João de Aspilcueta Navarro, Leonardo Nunes,
Luís da Grã y Francisco Pires.
El Barroco Literario
En la etimología de la palabra ―barroco‖, según Afrânio Coutinho (2007, p.89), en su
origen ibérica española ―barrueco‖, o portuguesa ―barroco‖, significa una perla irregular
como antes mencionado. Como ejemplo, en la literatura de catequesis podemos inferir que
la forma de representación de esas irregularidades, en la escritura jesuítica, es la presencia
de un lenguaje más trabajado y retórico.
En los siglos XVI y XVII, algunos registros textuales designaban una manera de
raciocinio que no hacía distinción entre el falso y el verdadero, entre una argumentación
extraña y viciosa, evasiva y fugaz, haciendo uso de la subversión a las reglas del
pensamiento. Así es considerada negativa, peyorativa, bizarra, extravagante, artificial,
monstruosa, que tenía como objetivo, el menosprecio por el arte del siglo XVI como forma
decadente.
En Brasil, en los siglos XVII y XVIII ha tenido rasgos representativos del barroco
europeo, en las escrituras de Gregorio de Matos y Botelho de Oliveira, Frei de Itaparica, así
como los primeros textos académicos que tenían resonancias, motivos y formas estilísticas
del barroco ibérico e italiano. El trazo de singularidad del barroco en Brasil se encuentra en
el llamado ―Ciclo de Oro Minero‖, principalmente en el material que se ha utilizado como
sustrato en la arquitectura y en la escultura. Además podrmos habar de un barroco
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brasileño y más específicamente de un baroco minero, que tiene como su mayor
representante Manuel da Costa Ataíde, más conocido como ―O Aleijadinho‖ (BOSI, 2006,
p.34).
Conclusión
En el barroco brasileño hay características específicas, como enfatizado antes en el
texto. Según las interpretaciones de Afrânio Coutinho (2007, p.97) ―o barroco é, portanto o
estilo artístico e literário, e mais do que isso, o estilo de vida, que encheu o período
compreendido entre o final do século XVI e o século XVIII, e de que participaram todos
os povos do Ocidente‖. En esas manifestaciones culturales y literarias, gracias a las cosas
locales en Brasil, el barroco se configuró un fenómeno distinto, por sus representaciones
históricas, geográficas y sociales en el arte y en la literatura barroca.
Sin embargo, podemos identificar el fenómeno barroco como una contra reacción a
las tendencias de la contra reforma de la iglesia católica, o sea una manera de reencontrar el
hilo perdido de la tradición cristiana en búsqueda de expresarla a través de nuevos
paradigmas intelectuales, artísticos y literarios. Para el estudioso, el barroco es resultante de
la contra reacción espiritual al renacimiento humanista y racionalista también.
A pesar de las contradicciones estilísticas del barroco: claro y oscuro, materia y
espíritu, cielo y tierra, razón y sensibilidad, contención y derramamiento, científico y
realidad, sus zonas de intersticios son demarcadas más ideológicamente que
territorialmente, pues las manifestaciones literarias de los Jesuitas son más misioneras e
ideológicas.
Esas son las resonancias que podemos sorprender acerca de la Compañía de Jesús en
el barroco brasileño, en periodos comprendidos en el nuevo mundo y en las
manifestaciones literarias y artísticas del Brasil, a saber, la fundación en el Brasil de un
barroco diferente, o sea, un barroco Jesuítico.
Referencias
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 43ª Ed. São Paulo: Cultrix, 2006.
______. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
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Janeiro, RJ. 2007.
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HOLLANDA, Sérgio B. As Raízes do Brasil. Brasília: UNB, 1963.
MOISÉS, Massaud. História da Literatura Brasileira. Origens, Barroco, Arcadismo. Editora
Cultrix. 4ª edição. V. 1. São Paulo, SP. 1997.
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2.
EL AMOR EN LA POESÍA DE LOPE DE VEGA
Reny Gomes Maldonado (UFRN)
Paula Pires Ferreira (UFRN)
Lope de Vega es considerado el fundador del teatro español; en el rasgo del teatro
no fue superado por ninguno de sus contemporáneos, tanto su inmensa obra dramática
como lírica, Lope es el poeta nacional por excelencia. Hablar de este poeta es hablar de la
España del siglo XVII, que nació en Madrid, a los 25 días del mes de noviembre del 1562.
Aprendió varios idiomas como el griego, latín, italiano y el francés, a los diez años ha
traducido poemas en latín y a los trece años compuso su primera comedia El verdadero
Amante, comedia pastoril a moda nueva de las tres jornadas.
La obra de Lope de Vega en sus miles de versos es llena de lirismo que lo ha dejado
en igualdad con poetas de gran renombre, como Fray Luis de León, Garcilaso de la Vega y
Don Luis de Góngora, todos con destaque en el siglo XVII.
Al leer su poesía se encuentra un mixto de lo que acontece en su diario, sus encantos
y desencantos. La mujer y el amor siempre están presentes en su vida, esto le trajo amor,
inspiración, felicidad, odio, desilusión, inseguridad, tal vez por no saber administrar su lado
romántico, trayendo con esto grandes trastornos en su vida. Por causa de sus muchos
amores tuvo una familia numerosa que también lo hizo producir muchas obras para
conseguir vivir con dignidad.
La lírica de Lope es uno de los destaques de la literatura española, ya que en sus
versos se puede visualizar la vida del hombre, su pluralidad desenfrenada, amores,
incertidumbres, odio, perfil picaresco y también arrepentimientos. Se nota trazos
autobiográficos, como si el hombre descripto en sus versos fuese el propio poeta, con el
alma inquieta, feliz o infeliz, confundiéndose la realidad con el imaginario, donde se traduce
su estilo a través de su propia visión.
Su genialidad de describir sus poesías, lo que el alma y el corazón hablaban, advenían
del encantamiento que la mujer y el amor hacían nacer en su vida. Compuso versos en tal
abundancia, que mereció en su tiempo los sobrenombres de Fénix de los Ingenios y
Monstruo de la Naturaleza, atribuido éste último al propio Cervantes.
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Se presenta ahora A mis Soledades voy… y su traducción en forma de transcreación
poética al portugués:
A mis soledades voy...
Às minhas solidões vou…
A mis soledades voy,
Às minhas solidões vou…
de mis soledades vengo,
de minhas solidões venho,
porque para andar conmigo
porque para andar comigo
me bastan mis pensamientos.
me bastam meus pensamentos.
¡No sé qué tiene la aldea
Não sei o que tem a aldeia
donde vivo y donde muero,
onde vivo e onde morro,
que con venir de mí mismo
que vindo de mim mesmo
no puedo venir más lejos!
não posso vir mais longe!
Ni estoy bien ni mal conmigo;
Nem estou bem nem mal comigo;
mas dice mi entendimiento
mas diz meu entendimento
que un hombre que todo es alma
que um homem que é todo alma
está cautivo en su cuerpo.
está cativo em seu corpo.
Entiendo lo que me basta,
Entendo o que me basta,
y solamente no entiendo
e somente não entendo
cómo se sufre a sí mismo
como se sofre de si mesmo
un ignorante soberbio.
um ignorante soberbo.
De cuantas cosas me cansan,
De quantas coisas me cansam,
fácilmente me defiendo;
facilmente me defendo;
pero no puedo guardarme
mas não posso me guardar
de los peligros de un necio.
dos perigos de um néscio.
Él dirá que yo lo soy,
Ele dirá que eu o sou,
pero con falso argumento,
mas com falso argumento,
que humildad y necedad
que humildade e estupidez
no caben en un sujeto.
não cabem em um sujeito.
La diferencia conozco,
A diferença conheço,
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porque en él y en mí contemplo,
porque nele e em mim contemplo,
su locura en su arrogancia,
sua loucura em sua arrogância,
mi humildad en su desprecio.
minha humildade em seu desprezo.
O sabe naturaleza
Ou sabe a natureza
más que supo en otro tiempo,
mais que soube em outro tempo,
o tantos que nacen sabios
ou tantos que nascem sábios
es porque lo dicen ellos.
é porque o dizem eles.
Sólo sé que no sé nada,
Somente sei que nada sei,
dijo un filósofo, haciendo
disse um filósofo, fazendo
la cuenta con su humildad,
contas com sua humildade,
adonde lo más es menos.
aonde o mais é menos.
No me precio de entendido,
Não me considero entendido,
de desdichado me precio,
Mas, desgraçado me considero,
que los que no son dichosos
pois os que não são felizes
¿cómo pueden ser discretos?
como podem ser discretos?
No puede durar el mundo,
Não pode durar o mundo,
porque dicen, y lo creo,
porque dizem, e eu creio,
que suena a vidrio quebrado
que soa a vidro quebrado
y que ha de romperse presto.
e que há de romper-se logo.
Señales son del juicio
Sinais são do juízo
ver que todos le perdemos,
ver que todos o perdemos,
unos por carta de más
uns por carta a mais
otros por cartas de menos.
outros por cartas a menos.
Dijeron que antiguamente
Disseram que antigamente
se fue la verdad al cielo;
a verdade se foi aos céus;
tal la pusieron los hombres
tal a puseram os homens
que desde entonces no ha vuelto.
que desde então não mais voltou.
En dos edades vivimos
Em duas idades vivemos
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los propios y los ajenos:
os próprios e os alheios:
la de plata los extraños
a de prata, os estranhos
y la de cobre los nuestros.
e a de cobre, os nossos.
¿A quién no dará cuidado,
A quem importará,
si es español verdadero,
se é espanhol verdadeiro,
ver los hombres a lo antiguo
ver os homens à antiga
y el valor a lo moderno?
e o valor ao moderno?
Dijo Dios que comería
Disse Deus que comeria
su pan el hombre primero
seu pão o homem primeiro
con el sudor de su cara
com o suor de sua cara
por quebrar su mandamiento,
por quebrar seu mandamento,
y algunos inobedientes
e alguns desobedientes
a la vergüenza y al miedo,
à vergonha e ao medo,
con las prendas de su honor
com as provas de sua honra
han trocado los efectos.
trocaram os seus efeitos.
Virtud y filosofía
Virtude e filosofia
peregrina como ciegos;
peregrinam como cegos;
el uno se lleva al otro,
um leva o outro,
llorando van y pidiendo.
chorando vão e pedindo.
Dos polos tiene la tierra,
Dois polos tem a terra,
universal movimiento;
universal movimento:
la mejor vida el favor,
a melhor vida, o favor,
la mejor sangre el dinero.
o melhor sangue, o dinheiro.
Oigo tañer las campanas,
Ouço tocar as campas95,
y no me espanto, aunque puedo,
e não me espanto, embora possa,
que en lugar de tantas cruces
que em lugar de tantas cruzes
haya tantos hombres muertos.
haja tantos homens mortos.
95
Também, ― ouço tocar os sinos‖.
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Mirando estoy los sepulcros
Olhando estou os sepulcros
cuyos mármoles eternos
cujos mármores eternos
están diciendo sin lengua
estão dizendo sem língua
que no lo fueron sus dueños.
que não foram seus donos.
¡Oh, bien haya quien los hizo,
Oh, bem haja quem os fez,
porque solamente en ellos
porque somente neles
de los poderosos grandes
dos poderosos grandes
se vengaron los pequeños!
se vingaram os pequenos!
Fea pintan a la envidia,
Feia pintam a inveja,
yo confieso que la tengo
eu confesso que a tenho
de unos hombres que no saben
de uns homens que não sabem
quién vive pared en medio.
quem vive parede no meio.
Sin libros y sin papeles,
Sem livros e sem papéis,
sin tratos, cuentas ni cuentos,
sem tratos, contas nem contos,
cuando quieren escribir
quando querem escrever
piden prestado el tintero.
pedem emprestado o tinteiro.
Sin ser pobres ni ser ricos,
Sem ser pobres nem ser ricos,
tienen chimenea y huerto;
têm chaminé e horto;
no los despiertan cuidados,
não lhes despertam cuidados,
ni pretensiones, ni pleitos.
nem pretensões, nem pleitos.
Ni murmuraron del grande,
Nem murmuraram do grandes,
ni ofendieron al pequeño;
nem ofenderam ao pequenos;
nunca, como yo, afirmaron
nunca, como eu, afirmaram
parabién, ni pascua dieron.
parabéns, nem felicitações deram.
Con esta envidia que digo
Com esta inveja que digo
y lo que paso en silencio,
e o que passo em silêncio,
a mis soledades voy,
às minhas solidões vou,
de mis soledades vengo.
de minhas solidões venho.
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A MIS SOLEDADES VOY...
(TRANSCREACIÓN POÉTICA)
Se plantea esta poética de traducción manifestándose la búsqueda de una constancia
del movimiento, sumado al interés por la multiplicación de las lenguas hispánicas a un
público luso hablante y, envueltos en los misterios de la traducción agregados al mundo de
imagen barroco. Lope de Vega representa como también nos autoriza una lectura hacia este
universo contemporáneo del barroco, presentándonos temas conflictivos del propio
hombre en su eterno porvenir.
A mis soledades voy… nos ha contagiado por ser un poema que nos propone un
desafío y nos provoca verlo en la lengua portuguesa, ya que
Na tradução o original cresce, elevando-se a uma atmosfera por assim
dizer mais elevada e mais pura da língua, onde naturalmente não
poderá viver para sempre, e está longe de alcançá-la em todas as
partes de sua figura, mas pelo menos alude a ela de um modo
maravilhosamente penetrante, aludindo assim igualmente ao âmbito
predestinado e interdito, da reconciliação e da plenitude das línguas.
(BENJAMIN, apud LAGES, 2007, p.222)
Se ha intentado descubrir un sendero propio de una traducción con calidad,
adecuándose al estilo barroco. Con este intento de recuperar una traducción más
aproximada de su original fue desarrollado y aplicado, en todas las etapas de esta práctica
traductológica, un lenguaje a veces ni tan sonoros, pero de modo a aclarar el sentido de su
mensaje en cada verso utilizado en el poema.
Se debe considerar que la traducción debe permitir que el traductor supere las
dificultades que la diferencia entre las dos lenguas (la de origen y la de llegada) implica. Es
la propia lengua de llegada que impone una traducción diferente. El traductor resuelve esas
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dificultades a través de que Costa llama de ―probabilidade tradutória‖ existente entre las dos
lenguas.
Esto quiere decir que en la traducción libre hay una traducción opcional, creativa,
poética. Libre no porque no tenga parámetros o tenga los parámetros que cada traductor
elige, ya que el traductor elige una opción entre opciones, pero siempre en un plano
estético:
Em breves palavras, o que pretendemos é (talvez um tanto
apologeticamente) lembrar ao leitor que toda tradução representa uma
dentre várias possíveis opções de transposição de um texto da língua
onde ele se formou e informou para uma outra língua onde ele surge
dependente e originário de n fatores - a começar pela indispensável
consideração da identidade cultural dos prováveis consumidores desse
texto de chegada. (COSTA, 1990)
En toda traducción se presupone el desarrollo de un proceso mental, por parte de
quien traduce, que le permite efectuar la transferencia del texto original hacia la producción
del texto de llegada. Este proceso mental consiste, en esencial la comprensión del sentido
del texto de partida para en seguida reformularlo con los signos de la otra lengua. En el
desarrollo de este proceso mental es conveniente distinguir: los procesos básicos de la
lengua que la integra, en el campo de la comprensión y (re)expresión; los mecanismos que
ayudarán a resolver los problemas encontrados a través de estrategias traductoras.
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PROCESO
MENTAL DEL
TRADUCTOR
TEXTO
ORIGINAL
TEXTO
TRADUCIDO
FINALIDAD
COMUNICATIVA
Sabemos que en toda práctica de traducción se adopta un método traductor. Ese
método es el desarrollo de un proceso fundamentado en un principio para alcanzarse con
éxito la lengua de llegada.
La escoja de un método depende de la finalidad de la traducción, no se trata de
formas opuestas de traducir, pero de contextualizar el objeto de estudio, en este caso, sobre
poéticas de la traducción, se ha procurado respetar la lengua original, adaptándose al
destinatario, informando y manteniendo la misma función y género textual, ya que la
traducción literaria se caracteriza por los aspectos históricos, culturales, etc.
Se resalta que en el ejercicio de la traducción hay una operación entre textos, y no
solamente entre lenguas, y la escrita funciona de manera diferente en cada lengua y cultura.
A partir de este punto de vista tenemos de llevar en consideración cómo funcionan los
textos en cada lengua, considerando que el texto poético trabaja con el lenguaje en todos
los niveles, semánticos, sintácticos, fonéticos, rítmicos, entre otros, además es necesario
verificar qué principios son regidos, qué convenciones son seguidas, etc.
En lo que se refiere a la traducción, los mecanismos de coherencia no
cambian, al ser fundamentos universales de significación; lo que
cambia son los mecanismos cohesión y la manera de estructurar la
progresión temática. De ahí el interés de los estudios contrastivos
textuales, que nos ayudan a conocer las discrepancias y semejanzas.
(HURTADO ALBIR, 1999, p. 33).
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Se habla de competencia o competencias del traductor, y de hecho, si hablamos de
un texto técnico se presupone conocimientos que no son los mismos del texto poético. Sin
embargo, la traducción literaria se diferencia de las características de la traducción general,
sobretodo por la sobrecarga estética. El lenguaje literario, marcado con recursos literarios,
tiene como objetos preponderantes el deleite en el uso estético de la lengua como también
transmitir emociones al lector.
Es justamente ese concepto de (trans)creación – en el caso de la traducción poética la pieza fundamental para comprender la tarea específica del traductor poético.
Mario
Laranjeira denomina de significância do texto, lo que Walter Benjamin ha llamado de
significação poética: "...não se trata, então, da mera reprodução do sentido, não visa ao
significado enquanto tal, mas à vinculação do significado com o modo de significar, com
uma forma significante". (CAMPOS, 1996, p. 207)
Como Costa afirma, en una traducción poética se debe permanecer fiel a la creación
poética, al proceso creativo, al pensamiento que está atrás de la palabra. A la vez, el
traductor debe conocer el proceso creativo que está atrás de una frase o de un verso; debe
saber que antes de traducir un poema, tiene que traducir y comprender el sentir poético del
autor. Es ese sentir poético del autor que lo llevará a escoger aquella y no una otra
combinación específica de palabras.
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A MIS SOLEDADES VOY...
A mis soledades voy… ya en su título nos sugiere un viaje interior, como si el poeta
estuviese haciendo un diálogo consigo propio, reflexionando sobre su vida solitaria
haciendo una toma de decisión de pura retrospección. Sus indagaciones son propias del
hombro barroco, con su espíritu contradictorio, intentando buscar respuestas para curar el
mal que lo aflige. El reflejo de esa soledad es la incertidumbre de la vida, del amor,
sentimiento que domina el corazón del poeta. De modo que hay una melancolía que se
expresa a través de la poesía, demostrando en palabras, que el amor causa en su vida y que
no rellena su alma, ésta que está dividida entre esos conflictos de ideas y de amores.
El sujeto lírico no habla de una soledad genérica, pero de su propia soledad. En esta
formulación crea un campo de identificación entre el poeta y el lector.
Como el poeta se dirige a si propio, hay aún una reflexión y esto se dirige a una
reflexión sobre la soledad. Como punto de partida ya hay en el propio título un poeta que
habla del amor a si propio, como si estuviese haciendo un análisis de su vida:
Ni estoy bien ni mal conmigo;
mas dice mi entendimiento
que un hombre que todo es alma
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está cautivo en su cuerpo.
La intertextualidad está muy presente en el poema cuando busca en la afirmación de
Sócrates una manera de refuerzo en decir que no se sabe todo, es una herramienta de
juzgarse aprendiz y de concretar que la sabiduría consiste en la conciencia de saber que no
se sabe todo nunca jamás, con su humildad adonde lo más es menos. Como todo hombre barroco
intenta pasar una enseñanza, una moral, o sea que Lope hace una inserción a la
intertextualidad buscando en el filósofo una manera propia de su discurso en función del
don de la humildad.
Hay un cuarteto que demuestra una cierta conciencia de brevedad del mundo
terrenal, hay una fragilidad en sus palabras. Cuando habla de su brevedad en el mundo,
este poeta piensa también en su brevedad de su vida, y también de la vida terrena, de su yo.
Y cuando lo dice eso, Lope piensa en la fragilidad del mundo, se acuerda de los hombres
que se han ido a la eternidad, donde no hay más sufrimiento, soledad y el tiempo no se
cuenta más.
No puede durar el mundo,
porque dicen, y lo creo,
que suena a vidrio quebrado
y que ha de romperse presto.
En las últimas cuadras tenemos la envidia como un sentimiento indigno. En ella el
poeta se refleja y tal vez confiesa que siente envidia de hombres que se fueron y que ya no
sufren más los dolores del alma. Es como si la envidia estuviese en su corazón ocasionada
por la soledad, por la sensación de abandono y por no tener más placer en la vida que está
llevando. Hay también una cierta reflexión delante la paradoja de la vida y la muerte, esta
última representando la eternidad.
Fea pintan a la envidia,
yo confieso que la tengo
de unos hombres que no saben
quién vive pared en medio.
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[…]
Con esta envidia que digo
y lo que paso en silencio,
a mis soledades voy,
de mis soledades vengo.
Son pensamientos que lo atormentan y que lo hacen admitir su fragilidad delante la
brevedad de la vida y también de su vida. Esto demuestra que el ser humano es
esencialmente insatisfecho en busca de su esencia y por lo tanto un hombre y no un dios
sujetos a mutaciones de la vida a los caprichos principalmente del amor.
Por lo tanto en su obra lírica, Lope de Vega, fue más innovador en formas y
contenidos y refleja con gran soltura su personalidad. Entre todos sus romances hay uno,
incluido en La Dorotea, que, tal vez, sea uno de los más populares de la literatura española, y
que comienza así: A mis soledades voy…
REFERENCIAS
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formación de traductores e intérpretes. Madrid: Ed. Edelsa, 1999.
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sobre poetas y poesía iberoamericanos. México: Fondo de Cultura Económica, 2001.
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3.
A PÉROLA IMPERFEITA: BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A
SOCIEDADE COLONIAL BAIANA COM BASE NA POESIA BARROCA DE
GREGÓRIO DE MATOS GUERRA
Keidy Narelly Costa Matias
(Universidade Federal do Rio Grande do Norte)
Na Bahia de todos os Santos, há 387 anos, nascia um poeta, surgia um cronista,
satírico, erótico, escatológico, depreciativo, religioso, herético, sagrado e profano 96. Era
pica-flor97. Rejeitado pela alta sociedade seiscentista, profundamente estudado no século
XX, amado no século XXI – com as devidas reservas – e, personagem do futuro98.
Acusado e inocentado, bandido, vítima e herói. Seus escritos o levaram ao auge, acabaramno, ressuscitaram-no e o mataram.
Os papéis pregados nas paredes das igrejas, tal como acontecia em certo período da
Idade Média, propagavam sua obra. Ninguém sabia de quem se tratava, suas idéias se
espalhavam, seus conflitos o libertavam e a sociedade ficava imensamente agitada. Quanta
intimidade para falar dos mestiços e dos fidalgos, quanta coragem para falar do clero,
quanta coragem para falar de Deus, quanta dualidade para falar de todos. É uma pérola
imperfeita.
Mesmo que diante de sua obra fiquemos com a audição imutável e os olhos fechados
– algo perfeitamente comum aos dogmáticos e até mesmo aos laicos –, é fundamental que
o conheçamos. Suas atitudes diante dos vícios daqueles que pregam e não obedecem a seus
próprios preceitos é louvável. Ele é profundo na forma de se apresentar aos seus leitores,
mesmo com quase quatro séculos. É seiscentista e intensamente contemporâneo.
Não sei se a perenidade era sua intenção, provavelmente não. Ele estava
infinitamente mais preocupado em delatar os outros e a si próprio e, a denunciar os falsos
devaneios de uma sociedade que no fim explorava e vivia sob a égide do luxo e da
96
Nomes pelas quais, no âmbito da minha pesquisa, vi que se referiram a Gregório de Matos.
Alcunha que poeta recebeu de uma religiosa.
98
Expressão utilizada pelo historiador e poeta Fernando Peres.
97
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ociosidade. Ele reprovava e, ao mesmo tempo, era reprovado. Era valeroso ou temerário?
Valente ou espadachim? Atrevido ou esforçado?99
Estudiosos, certamente, levados pela controvertida figura de Gregório, como
Haroldo de Campos e João Adolfo Hansen, tem pontos divergentes em algumas de suas
interpretações. É base de minha bibliografia, também, Fernando Rocha Peres, que trabalha
com fatos documentados e lendas a respeito de Matos. Os poemas presentes neste trabalho
foram retirados da obra de Segismundo Spina, intitulada ―A poesia de Gregório de Matos‖.
Esses estudiosos parecem ter sido influenciados não só pela obra, mas também pela
personalidade de Gregório.
Esse trabalho se justifica pela importância da obra de Gregório e pelo cunho
profundo em que está inserida. Grandes poetas do barroco agitavam a Europa e nós temos
um representante tão legítimo quanto. Uma poesia polêmica por natureza foi unida a uma
sociedade dúbia e contraditória, de forma que esses elementos oferecem subsídios para
tratar desse importante período de nossa história: a Colonial.
Inicialmente, tratarei dos versos do poeta barroco direcionados a Igreja católica
baiana. O temerário Gregório implicou, delatou, horrorizou e, foi perseguido pela Santa
Inquisição. Ora! A instituição poderosa fora suplantada pelas faíscas jogadas pela pérola
imperfeita. Por um instante de 73 anos ela pareceu menos poderosa aos olhos de um poeta.
Os padres e as freiras eram ridicularizados. Coitadas das beatas que podiam se unir as
carpideiras e chorar, alcunhar e, perceber que as retrucas à Gregório eram a consolidação
de uma milagrosa inspiração.
Então, sua poesia implicou com um dos grupos responsáveis pela sua beleza. Aliás,
os ataques de Gregório parecem voltar facilmente e positivamente para a polidez de sua
obra. Falo dos mestiços, dos quais o vocabulário muito serviu a pena e a tinta de uma
inspiração que, ao mesmo tempo, era pitoresca e grotesca. Nessa segunda parte do
trabalho, minha intenção é a de mostrar como o barroco se fundiu ao tupi e que, apesar
disso ser um diferencial na obra gregoriana, o poeta abastado não estava muito inclinado a
simpatia. Ao contrário, refere-se aos mestiços com palavras de afronta.
Na terceira e derradeira parte deste trabalho, falarei brevemente da deportação de
Gregório à Angola, fato esse que fora culminado pela extrema rispidez e um tanto de
loucura – como a de Rotterdam – de seu poema ―Aos Caramurus da Bahia‖.
99
Referência a um poema gregoriano chamado ―Reprovações‖.
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Assim, um estudo sobre dois grupos da sociedade colonial baiana culmina em uma
breve admiração biográfica. Seus escritos influíam na sociedade na mesma proporção em
que alteravam sua vida. Para ele, consistia numa infelicidade e desgosto o fato de ter
nascido numa família abastada. Talvez por isso, critique tão veemente o luxo e o esplendor
dessa terra.
Trata-se de um trabalho que oferece minha pouca experiência no assunto. Mas aqui,
a questão central é justamente essa: tentar enxergar o tumulto que causa a obra gregoriana
através do ponto de vista de uma pessoa comum. Para isso me fiz cobaia de mim mesma e
certamente não permaneci a mesma depois de entrar em contato. Pois, como já disse uma
famosa escritora do século XX: ―suponho que entender é questão de entrar em contato, ou
toca ou não toca100‖.
Gregório de Matos Guerra, alcunhado de Boca de Inferno, nasceu em 1623 na
cidade da Bahia de Todos os Santos101, então capital da América Portuguesa, filho de
Gregório de Matos e de Maria da Guerra. O poeta do Recôncavo era de família abastada,
estudou no Colégio dos Jesuítas e aos 19 anos foi enviado à Coimbra por seu pai para
estudar leis. Por causa de suas sátiras foi perseguido e deportado para a Angola. Para sua
felicidade e alívio do governador do reino, abortou uma conspiração contra dom Henrique
Jaques e como prêmio pôde voltar à terra tupiniquim, dessa vez ao território recifense, pois
estava proibido de retornar a sua terra natal.
Em 1696, o poeta falece e é sepultado no Hospício de Nossa Senhora da Penha dos
Capuchinhos, em Pernambuco.
Não há melhor testemunho do que a obra de Gregório de Matos para analisar a
sociedade do Brasil Colonial, sobretudo, a nobreza e os mestiços da Bahia. Para ele,
consistia numa infelicidade e desgosto o fato de ter nascido numa família abastada. Talvez
por isso, critique tão veementemente o luxo e o esplendor dessa terra.
Abarcada pela ―pérola imperfeita‖, como ficou conhecido o Barroco, a poesia
gregoriana contempla a sátira, a lírica e a caricatura. É regida por um cunho profano e
religioso. As aspirações entre o sagrado e o profano caminham dualisticamente e a
contradição entre pontos divergentes provoca um sentido uno e gigantesco.
100
Refiro-me a Clarice Lispector (ligeiramente adaptado para fins de coerência com o texto, o sentido
permanece o mesmo).
101
A data de nascimento é motivo de controvérsia entre autores. Segismundo Spina acredita que o poeta
nasceu em 1623, adotei essa data em minha pesquisa. No entanto, Fernando Peres acredita que Gregório
nasceu em 1636.
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Críticos o depreciam, acusando-o de plagiar Góngora e Quevedo. A história provou
sua originalidade. Gregório é impiedoso com a luxúria e a escatologia presentes na fidalguia
Baiana. É munido por um realismo pornográfico, por jogos verbais e semânticos, por
violência e depreciação, ao mesmo tempo em que, possuía concessões ao gosto de seu
tempo.
A farsa regurgitada pelos costumes maculados e libidinosos da nobreza e da Igreja
Católica resultou no primeiro prelo que circulou na Colônia e, em fontes imprescindíveis a
compreensão da História do Brasil.
No soneto ―Jesus Cristo Crucificado, estando o poeta para morrer‖, Gregório exerce
um jogo de imagens e conceitos típicos do barroco. Promete viver e morrer sob a lei de
Cristo, diz que é um pecador súdito do cordeiro e pede perdão pelos seus pecados. O poeta
mostra uma aflição diante do episódio da crucificação de Cristo capaz de afrontar a Igreja e
os beatos, as carpideiras e os fidalgos. Esse comportamento não se dá como um
desrespeito à Igreja, que muitos podem encontrar nesses versos, e ao sentimento dos que
sofrem, mas pela extrema ousadia de escrever algo desse teor, e que aos olhos de hoje é
ainda ameaçador, em uma sociedade regida pelo catolicismo. A culpa refletida e a certeza
de que o amor de Cristo é maior do que os seus pecados expressam a cosmovisão barroca,
o homem como ser infinitamente inferior a Deus. Veja o poema:
Meu Deus, que estais pendente de um madeiro,
Em cuja lei protesto de viver,
Em cuja santa lei hei de morrer,
Animoso, constante, firme e inteiro:
Neste lance, por ser o derradeiro,
Pois vejo a minha vida anoitecer,
É, meu Jesus, a hora de se ver
A brandura de um Pai, manso Cordeiro.
Mui grande é o vosso amor e o meu delito;
Porém pode ter fim todo o pecar,
E não o vosso amor, que é infinito.
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Esta razão me obriga a confiar,
Que, por mais que pequei, neste conflito
Espero em vosso amor de me salvar.
Nesse trecho, Gregório segue falando de seus pecados, confessa-se e se mostra
arrependido, pois sabe da infinita misericórdia do Senhor.
Ofendi-vos, Meu Deus, bem é verdade,
É verdade, Senhor, que hei delinqüido,
Delinqüido vos tenho, e ofendido,
Ofendido vos tem minha maldade102.
O poema possui uma série de pontos que mostram o arrependimento por seus atos e
a vontade de salvar sua alma. A salvação da alma era o motivo mais latente no discurso da
Igreja no âmbito da Colônia. Era preciso evangelizar e Matos não deixou que isso se
passasse inocentemente. Ele satirizou.
Em ―Buscando a Cristo‖, uma de suas obras primas, o poeta segue nessa mesma
lógica, constrói um soneto com metonímias e repetições para que sua mensagem ganhe
mais força:
À vós correndo vou, braços sagrados,
Nessa cruz sacrossanta descobertos
Que, para receber-me, estais abertos,
E, por não castigar-me, estais cravados.
A vós, divinos olhos, eclipsados
De tanto sangue e lágrimas abertos,
Pois, para perdoar-me, estais despertos,
E, por não condenar-me, estais fechados.
102
Soneto intitulado de ―Ao mesmo assunto‖.
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A vós, pregados pés, por não deixar-me,
A vós, sangue vertido, para ungir-me,
A vós, cabeça baixa, p‘ra chamar-me
A vós, lado patente, quero unir-me,
A vós, cravos preciosos, quero atar-me,
Para ficar unido, atado e firme.
Ao mesmo tempo em que busca a salvação e a remissão dos pecados, mostra-se
arredio ao clero. Seus poemas dualísticos e repletos de figuras de linguagem afrontavam a
alta sociedade. Em ―Soneto (A cada canto um grande conselheiro)‖ ele profana e acusa a
alta sociedade baiana. Trata-se de uma crítica ferrenha aos governantes da "cidade da
Bahia". Os grandes conselheiros são os indivíduos que não sabem governar sua cozinha, mas
podem governar o mundo inteiro. Ou seja, os hipócritas que apontam os defeitos dos outros sem
olhar os seus.
A cada canto um grande conselheiro,
Que nos quer governar a cabana, e vinha,
Não sabem governar sua cozinha,
E podem governar o mundo inteiro.
Em cada porta um freqüentado olheiro,
Que a vida do vizinho, e da vizinha
Pesquisa, escuta, espreita, e esquadrinha,
Para a levar à Praça, e ao Terreiro.
Muitos Mulatos desavergonhados,
Trazidos pelos pés os homens nobres,
Posta nas palmas toda a picardia.
Estupendas usuras nos mercados,
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Todos, os que não furtam, muito pobres,
E eis aqui a cidade da Bahia.
Esse poema remete imediatamente a um outro, intitulado ―Reprovações‖:
Se sois homem valeroso,
Dizem que sois temerário,
Se valente, espadachim,
E atrevido, se esforçado.
Se resoluto, – arrogante,
Se pacífico, sois fraco,
Se precatado, – medroso,
E se o não sois, – confiado.
Se usais justiça, um Herodes,
Se favorável, sois brando,
Se condenais, sois injusto,
Se absolveis, estais peitado.
Se vos dão, sois um covarde,
E se dais, sois desumano,
Se vos rendeis, sois traidor,
Se rendeis, – afortunado.
[...]
Se não sofreis, imprudente,
Se sofreis, sois um coitado,
Se perdoais, sois bom homem,
E se não sois, - um tirano.
[...]
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Se não compondes, sois néscio,
Se escreveis, sois censurado,
Se fazeis versos, sois louco,
Se o não fazeis, sois parvo.
[...]
Se falais muito, palreiro,
Se falais pouco, sois tardo,
Se em pé, não tendes assento,
Preguiçoso, se assentado.
E assim não pode viver
Neste Brasil infestado,
Segundo o que vos refiro
Quem não seja reprovado.
Para entrar com mais afinco na análise do conteúdo que a obra gregoriana nos
oferece sobre a sociedade do período colonial do Brasil, vejamos os poemas seguintes que
tratam da Bahia.
No epigrama ―Juízo anatômico dos achaques que padeciao corpo da república em
todos os membros, e inteira definição do que em todos os tempos é a Bahia‖, Gregório é
portador de um discurso profundamente polêmico e ameaçador. Arrisco-me a proferir que
o poema contribuiu para o que posteriormente acontecera: sua deportação para a Angola.
Que falta nesta cidade?... Verdade.
Que mais por sua desonra?... Honra.
Falta mais que se lhe ponha... Vergonha.
O demo a viver se exponha,
Por mais que a fama a exalta,
Numa cidade onde falta
Verdade, Honra, Vergonha.
Quem a pôs neste rocrócio?... Negócio.
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Quem causa tal perdição?... Ambição.
E no meio desta loucura?... Usura.
Notável desventura
De um povo néscio e sandeu,
Que não sabe que o perdeu
Negócio, Ambição, Usura.
Quais são seus doces objetos?... Pretos.
Tem outros bens mais maciços?... Mestiços.
Quais destes lhe são mais gratos?... Mulatos.
Dou ao Demo os insensatos,
dou ao Demo o povo asnal,
Que estima por cabedal,
Pretos, Mestiços, Mulatos.
[...]
E que justiça a resguarda?... Bastarda.
É grátis distribuída?...Vendida.
Que te, que a todos assusta?... Injusta.
Valha-nos Deus, o que custa,
O que El-Rei nos dá de graça,
Que anda a justiça na praça Bastarda,
Vendida, Injusta.
[...]
Sazonada caramunha,
Enfim, que na Santa Sé
O que mais se pratica é,
Simonia, Inveja e Unha.
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E nos frades há manqueiras?... Freiras.
Em que ocupam os serões?... Sermões.
Não se ocupam em disputas?... Putas.
Com palavras dissolutas
Me concluo na verdade,
Que as lidas todas de um Frade
São freiras, sermões, e putas.
[...]
À Bahia aconteceu
O que a um doente acontece:
Cai na cama, e o mal lhe cresce,
Baixou, Subiu e Morreu.
A Câmara não acode?... Não pode.
Pois não tem todo o poder?... Não quer.
É que o governo a convence?... Não vence.
Que haverá que tal pense,
Que uma Câmara tão nobre,
Por ver-se mísera, e pobre,
Não pode, não quer, não vence.
As críticas a sociedade e ao clero estão por toda a obra de Gregório, um exemplo
disso é o trecho abaixo:
A nossa Sé da Bahia,
Com ser um mapa de festas,
É um presepe de bestas,
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Se não for estrebaria:
Várias bestas cada dia103.
Ainda nesse contexto, temos um episódio curioso sobre Gregório. Uma Freira
resolveu satirizá-lo publicamente, chamando-o de ―pica-flor‖ (beija-flor), ela se referiu
assim por conta da fisionomia do nariz saliente de Gregório, que imediatamente
respondeu-a:
Se Pica-Flor me chamais,
Pica-Flor aceito ser,
Mas resta saber agora,
Se no nome que ma dais,
Meteis a flor, que guardais!
[...]
Se me dais este favor,
Sendo eu só o Pica,
E o mais vosso, claro fica,
Que fico então Pica-Flor.
Em mais uma sátira ao clero Matos protesta contra uma freira que não quis que outra
freira o mandasse um peixe:
Pois destes tão mal conselho,
Rogo ao demo que vos tome,
Por deixar morrer à fome
Um pobre faminto velho:
Rogo ao Demo que o seu relho
Vos prenda com força tanta,
Que nunca arredeis a planta,
E que a espinha muito ou pouca,
103
Trecho do poema ―À Sé da Bahia‖.
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Que me tirastes da boca,
Se vos crave na garganta.
Assim como é verdade,
Que pelo vosso conselho
Perdi eu o meu vermelho104,
Percais vós a virgindade:
Que vo-la arrebate um frade;
Mas isto, que praga é?
Praza ao Demo, que um cobé
Vos plante tal mangará,
Que parais um Paiaiá,
Mais negro do que um Guiné105.
Boca de Brasa não se resguardava ao falar da nobreza e do clero na sociedade baiana.
Aliados aos exemplos citados existem uma infinidade em sua obra. A cidade padecia em
fome enquanto os clérigos, o Estado e os fidalgos viviam sob o luxo e a vaidade. Os
incomodados com tamanha audácia o alcunhavam e o depreciavam, mas isso não foi
obstáculo para que ele se calasse, ao contrário, ele se lisonjeava.
Tratarei agora de seus versos aos mestiços da Bahia. Como podemos entender o
papel que desempenhavam na sociedade tomando como fonte a obra do poeta barroco?
Ele fala dos principais aspectos sociais da época se colocando em diversas classes da
sociedade. E seu objetivo, como bem esclarece a obra de Fernando Peres, não era o de
guardar esses escritos, aliás, talvez ele próprio fabricasse os folhetos para que moleques o
espalhassem, já que não poderia ser identificado. Antes de analisar esses poemas, é
necessário esclarecer que a própria poesia de Gregório é mestiça.
No poema ―Milagres do Brasil são ao padre Lourenço Ribeiro, homem pardo que foi
vigário da Freguesia do Passé‖, Gregório diz que o cargo que Lourenço Ribeiro ocupa é
por conta de um milagre do Brasil. Chama-o de ousado e de canaz106, e culpa a Santa Sé
104
Vermelho é o nome do peixe que Gregório deixou de comer.
Sátira intitulada ―A uma freira‖.
106
Cão grande.
105
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pelo fato de um cão revestido em padre107 ladrar contra um branco. Nesse ponto de sua obra,
notamos certa aversão aos mestiços, mas Gregório também tinha aversão aos prelados.
Lourenço Ribeiro é um membro da Igreja e, nesse ponto, o poema é dúbio: Gregório o
trata com aversão por ser mestiço ou por ser prelado, ou ainda, as por causa das duas
características? Para tentar elucidar essa questão, recorro a Fernando Peres:
Sua poesia tem muita mestiçagem, até mesmo agressiva, na medida
em que ele assume um papel preconceituoso contra o negro, o
mulato. De modo algum ele pode ser considerado etnicamente um
mestiço, um mulato. Era descendente de galegos que vieram da
cidade de Guimarães e se instalaram na Bahia no início do século
XVI. Naquela época, havia uma triagem através de um processo
chamado habilitação de gênere. O sujeito que fosse mestiço — tivesse
sangue de mouro, de judeu, de africano, ou como eles chamavam,
―sangue de infecta nação‖ — ou que descendesse de oficial mecânico
não poderia freqüentar a Universidade de Coimbra nem ser nomeado
pelo rei para exercer uma função de juiz. Na sua poesia, Gregório em
todo momento está se auto-referenciando como branco e honrado.
Sua linguagem é mestiça e esse é seu grande mérito108.
Analisemos esse trecho do poema citado:
Se este tal podengo asneiro
O pai o esvanece já,
A mãe lhe lembro, que está
Roendo em um tamoeiro:
Que importa um branco cueiro,
Se o... é tão denegrido!
Mas se no misto sentido
Se lhe esconde a negridão:
Milagres do Brasil são.
107
108
Esse trecho faz parte do poema.
Em entrevista concedida ao jornal ―A Tarde‖ em 1996.
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Lourenço Ribeiro desdenhou publicamente, aliás, como quase todos os
representantes da Igreja, dos versos de Gregório. Mais uma vez atento para o fato de que o
tratamento dado ao padre pode não ser desencadeado pela sua etnia, visto que quando uma
freira – que já citei antes –, o chamou de pica-flor ele não deixou por menos e, sabendo que
iria ofendê-la profundamente, tendo em vista os desígnios de uma consagrada a Deus –
respondeu-a com muita ousadia e coragem. O mesmo se dá e, dessa vez ele roga ao Demo,
quando uma freira lhe nega um peixe. A diferença é que nesse poema ele a deseja que seja
tomada por um mestiço.
É fato que Gregório se mostra indignado com o fato de o padre ser mestiço, e em
todo o tempo se refere a ele como cão. Duvida de sua capacidade em aplicar os sermões e,
nas dez estrofes que tem esse poema, critica-o por ser mestiço e culpa a Ordem, finaliza
dizendo que o dito padre tem sangue de carrapato.
É necessário perceber, também, que todos os poemas, sejam eles destinados a Igreja,
aos mestiços ou aos fidalgos, são repletos de críticas. Gregório não tinha intenção de
elogiar ninguém. Por menor que fosse a ofensa ele a fazia. Essa poesia extremamente forte
é típica do barroco e por ser tão agressiva desperta a todos.
No soneto ―À procissão de cinza em Pernambuco‖ fica claro que não somente a
sociedade estava miscigenada, mas também a poesia. A procissão recebe negros, brancos,
crianças, estrangeiros, cegos e mamalucos109. O soneto:
Um negro magro de sufulié justo,
Dois azorragues de um joá pendentes,
Barbado o Peres, mais dois penitentes,
Seis crianças com asas sem mais custo.
De vermelho o mulato mais robusto,
Três meninos, fradinhos inocentes,
Dois ou doze brichotes muito agentes,
Vinte ou trinta canelas de ombro onusto.
109
O mesmo que ―mameluco‖.
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Sem débita reverência seis andores,
Um pendão de algodão tinto em tijuco,
Em fileira dez pares de menores.
Atrás um cego, um negro, um mamaluco,
Três lotes de rapazes gritadores:
É a procissão de cinza em Pernambuco.
No soneto ―Aos mesmos Caramurus110‖ Gregório abusa de termos tupis.
Há coisa como ver um Paiaiá,
Mui prezado de ser Caramuru,
Descendente de sangue de tatu,
Cujo torpe idioma é Cobepá?
A linha feminina é Carimá
Muqueca, pititinga, caruru
Mingau de puba, vinho de caju
Pisado num pilão de Pirajá.
A masculina é um Aricobé
Cuja filha Cobé, c‘um branco Paí
Dormiu no promontório de Passé.
O branco era um marau que veio aqui:
Ela era uma índia de Maré;
Cobépá, Aricobé, Cobé, Paí.
Aos olhos contemporâneos, esse soneto soa estranho. Mas a intenção de Gregório
era a de chocar com o que escrevia e de ridicularizar a todos. Ele não poupava nem a si
mesmo. As palavras tupis dão uma força ao soneto que certamente era percebida na época.
110
Esse poema é escrito depois do soneto ―Aos Caramurus da Bahia‖, mas preferi analisá-lo antes em
meu trabalho por motivo de organização. O outro soneto será trabalhado quando for me referir a
deportação de Gregório para a Angola.
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O poeta sabia atingir, tinha o dom de chocar. Respondia aos menores questionamentos
com um jogo de palavras espetacular.
O Paiaiá prezado de ser caramuru é o pajé. O idioma Cobepá, o dialeto da tribo
Cobé. As mulheres se dedicavam aos afazeres da casa, elas cozinhavam carimá – bolo de
mandioca posta no molho –, mingau de puba (mandioca) e vinho de caju. A miscigenação
entre índios e brancos é relatada por Gregório na terceira estrofe: uma índia da tribo Cobé
dormiu com um branco, que era marau (em tupi, quer dizer, maracujá). No fim do soneto o
poeta relata diversos termos tupis e termina com uma gíria. Segundo Haroldo de Campos,
Matos se utilizou de aspectos do barroco e da mistura de idiomas. Esse poema não é o
único em que ele faz isso, é comum em sua obra encontrar esses elementos que sem
dúvida, dão-lhe mais originalidade.
Na terceira parte deste trabalho, irei falar brevemente do estopim para a deportação
do poeta à Angola. Nessa época, tem-se início o período final da vida de Gregório, visto
que sair de sua cidade e de seu país foi um golpe emocional muito forte, arrisco-me a dizer
que tenho dúvidas se o que entristeceu o poeta foi o fato de ser deportado ou, de ser
privado de atacar a sociedade tão de perto.
Proponho que primeiramente leiamos o poema ―Aos Caramurus da Bahia‖ e depois
analisarei porque o mesmo causou tamanha confusão.
Um calção de pindoba111, a meia zorra,
Camisa de urucu112, mantéu de arara113,
Em lugar de cotó, arco e taquara,
Penacho de guarás, em vez de gorra.
Furado o beiço, sem temor que morra
O pai, que lho envasou c‘uma titara,
Porém a mãe a pedra lhe aplicara
Por reprimir o sangue que não corra.
Alarve sem razão, bruto sem fé,
111
Palmeira.
Fruto que de cuja polpa se extrai uma cor avermelhada.
113
Saiote feito com penas de arara.
112
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Sem mais leis que as do gosto, quando erra,
De Paiaiá tornou-se em Abaité114.
Não sei onde acabou, ou em que guerra:
Só sei que deste Adão de Massapé115
Procedem os fidalgos desta terra.
A miscigenação entre indígenas e europeus estava consolidada e o soneto deixa essa
questão bem explicitada. As palavras em tupi do texto reforçam esse argumento. Essas
palavras não possuem a inocência que aparentam, dizem muito e satirizam como nunca.
Lembro que Gregório era de família abastada e que apesar de criticar a fidalguia, de
certa forma, fazia parte dela. Certamente estava profundamente incomodado com a
ascensão dos muitos indígenas que, permitidos por certa contravenção social, permitiam-se
fidalgos.
Em 1685 foi delatado à Santa Inquisição sob a acusação de difamar Cristo – denúncia
que para sua sorte não teve prosseguimento. Mas Gregório nem por isso calou-se e como
já estava acostumado a satirizar o clero e os fidalgos, empreitou-se a provocar a ira de
parentes próximos (provavelmente os filhos) do governador Antônio Luís Gonçalves da
Câmara Coutinho. Os parentes acharam, possivelmente com razão, que os versos desse
soneto fossem uma crítica ao governador.
Quando o poeta fala que deste Adão de Massapé procedem os fidalgos desta terra quer dizer
que dos domínios das terras de Mém de Sá (Adão de Massapé) procedem esses fidalgos.
Segismundo Spina fala que o solo massapé é comum na Bahia, principalmente, no
município de Santo Amaro.
Essa afronta deixou o poeta sob o risco latente de ser assassinado. Temendo isso, sua
deportação foi forçada. Assim, não mais pisou em sua terra natal e quando voltou ao Brasil,
em território pernambucano, imensamente amargurado, pouco viveu.
A obra gregoriana nos revela um homem extremamente incomodado e dela
dependente, que quando não criticava o meio em que vivia estava imerso em solidão. De
114
115
Horrível.
Solo argiloso, escuro e fértil.
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certa forma, pode-se concluir que Gregório era dependente do que escrevia. Ele não
conseguia calar diante da tamanha vergonha que seus olhos testemunhavam.
REFERÊNCIAS
SPINA, Segismundo. A poesia de Gregório de Matos. Tradução: Haroldo de Campos.
São Paulo: Edusp, 1995.
CAMPOS,
Haroldo
de.
Original
e
revolucionário.
Disponível
em:
<http://www.revista.agulha.nom.br/har01.html>. Acesso em: 24 abr. 2010.
EBLE, Laeticia Jensen. A Sátira a Serviço de Gregório: Aspectos relevantes da sátira e
sua
conveniência
para
Gregório
de
Mattos
e
Guerra.
Disponível
em:
<http://www.revista.agulha.nom.br/laeticiajensen4.html>. Acesso em: 24 abr. 2010.
HANSEN, João Adolfo. Floretes agudos e porretes grossos. Disponível em:
<http://www.revista.agulha.nom.br/jah01.html>. Acesso em: 24 abr. 2010.
PERES, Fernando. Gregório de Mattos, 360 Anos: Fatos Documentados e Lendas
Relativas
a
Gregório
de
Mattos
e
Guerra.
Disponível
em:
<http://www.revista.agulha.nom.br/peres01.html>. Acesso em: 24 abr. 2010.
VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 435
4.
O LUGAR DE GREGÓRIO DE MATOS NA LITERATURA BRASILEIRA
Samuel Anderson de Oliveira Lima
(Prof. Assistente da UFRN)
Ser poeta, não. Poder sê-lo.
Paul Valéry
I
A figura exponencial de Gregório de Matos tem causado ao longo dos séculos
grande agitação entre os estudiosos da Literatura Brasileira, quiçá da Literatura Universal.
Críticos têm levantado teorias acerca da autenticidade das poesias atribuídas ao poeta
seiscentista. Dessa forma, são formados dois grupos: os que defendem a poesia de GM 1
como marco inicial da Literatura Brasileira e os que acreditam que sua poesia, além de não
ser autêntica, não pode ser considerada tipicamente brasileira, já que, ao que se parece, não
houve preocupação do poeta em escrever configurado em estilos literários.
Dos dois grupos, podemos citar duas importantes figuras para a crítica literária
contemporânea: Antonio Candido e Haroldo de Campos. Este aprova Gregório como
precursor da poesia brasileira; aquele o retira de sua Formação da Literatura Brasileira,
que de acordo com sua ideologia – uma perspectiva histórica – GM não se insere nos
parâmetros de construção de nossa literatura, uma vez que o poeta baiano mais se
encaixaria nas ―manifestações literárias‖ do que na ―literatura enquanto sistema‖. Dessa
forma, argumenta Candido (2000, p. 24):
Período importante e do maior interesse, onde se prendem as raízes da
nossa vida literária e surgem, sem falar dos cronistas, homens do porte de
Antônio Vieira e Gregório de Matos, - que poderá, aliás, servir de
exemplo do que pretendo dizer. Com efeito, embora tenha permanecido
na tradição local da Bahia, ele não existiu literariamente (em perspectiva
histórica) até o Romantismo, quando foi descoberto, sobretudo graças a
Varnhagen; e só depois de 1882 e da edição Vale Cabral pôde ser
devidamente avaliado. Antes disso, não influiu, não contribuiu para
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formar o nosso sistema literário, e tão obscuro permaneceu sob os seus
manuscritos.
É interessante notar que o crítico até cita os nomes de Antônio Vieira e Gregório
de Matos, como autores de ―porte‖, nomes importantes para o enraizamento do sistema
literário no Brasil, porém ao se referir especificamente a GM, ele o destaca como um traço
não influenciador da construção desse sistema literário. Para Candido, os alicerces de nossa
literatura são firmados após autores em cuja vida ―histórica‖ se percebeu a preocupação em
criar uma literatura brasileira: é com os chamados árcades mineiros, as últimas academias e certos
intelectuais ilustrados, que surgem homens de letras formando conjuntos orgânicos e manifestando em graus
variáveis a vontade de fazer literatura brasileira (p. 24-25). Sendo assim, o fato de GM não ter se
preocupado em realizar um trabalho de criação de um sistema literário no Brasil, fez com
que o crítico diminuísse o valor do poeta baiano, pondo em xeque até sua formação
intelectual, pois deixa implícito que só com os árcades surgiram homens de letras. Mas é
sabido que Gregório, Anchieta, Vieira – só para citar alguns – foram homens estudados,
cultos, que beberam da cultura ibérica e aqui mesclaram seus conhecimentos com a rica
cultura americana. É fato também que eles não se preocuparam em escrever ditados pela
norma de um regime literário vigente na Europa, o que não exclui a possibilidade de terem
sofrido influência da literatura portuguesa. Sua preocupação estava além disso, eles
pensaram em fazer poesia enquanto arte e através dessa arte atingir seu público. Talvez,
Gregório quisesse mesmo fugir do historicismo de que tanto fala Candido. O Poeta, como
pesquisador, não pode estar atrelado aos conceitos datados sob uma perspectiva histórica,
mas se distanciar disso, buscando trabalhar sua poesia de forma realmente artística. Paul
Valéry (1998, p. 15), ao falar sobre o método de Leonardo da Vinci, critica o historicismo e
apresenta alguns parâmetros para a produção da arte:
Tento dar uma visão do detalhe de uma vida intelectual, uma sugestão
de métodos que toda descoberta implica, uma, escolhida entre a
multidão das coisas imagináveis, modelo que sabemos ser grosseiro, mas
de qualquer modo preferível às sucessões de anedotas duvidosas, aos
comentários dos catálogos de coleções, às datas.
Valéry nos afirma que é preciso escolher um dentre os vários métodos existentes,
porém esse um deve, preferencialmente, estar distante dos comentários de catálogos de coleções,
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das datas. Ou seja, fazer literatura – enquanto arte – não pode estar ligado aos ditames dos
códigos, dos manuais. É claro que aqui não estamos excluindo as escolas literárias, os
sistemas, até porque a poesia de GM se enquadra num desses estilos – o Barroco -, mas
acima disso, a poesia gregoriana ultrapassa os conceitos historicistas, como o fez Góngora,
Quevedo etc. O que Paul Valéry nos apresenta é justamente a noção de que, embora não se
deva estar ligado ao historicismo, é preponderante a pesquisa, pois, para se produzir arte, é
preciso estudo e o resultado desse estudo – a poesia (arte literária) – se dá com a influência
dos cânones universais da literatura. Toda produção literária que se tenha no Brasil e no
mundo não é fruto do acaso, mas, sim, influência de muita pesquisa, de muito trabalho. O
que Homero fez em suas epopéias é fruto, sem dúvida, do estudo de outras fontes. Nesse
sentido, a poesia de GM, como de outros, também sofreu influência de outros poetas,
formando, portanto, uma constelação de intelectuais. Sob essa perspectiva, o crítico e poeta
Octavio Paz (1982, p. 20) diz que um poeta não deve fazer poesia moldado por um
sistema, pois sendo assim, ele perde as prerrogativas para ser um poeta:
Quando um poeta adquire um estilo, uma maneira, deixa de ser um
poeta e se converte em construtor de artefatos literários. Chamar
Góngora de poeta barroco pode ser verdadeiro sob o ponto de vista da
história literária, mas não o é se queremos penetrar em sua poesia, que é
alguma coisa mais.
Góngora é mais que Barroco, ele é Universal, assim como Gregório, que veio
depois e, portanto, sofreu influência. Bosi (2001, p. 39) anota a esse respeito:
Resta ver a força artesanal, que é patente em um versejador hábil como
Gregório. Alguns de seus sonetos sacros e amorosos transpõem com
brilho esquemas de Góngora e de Quevedo, e valem como exemplo do
gosto seiscentista de compor símiles e contrastes para enfunar imagens
e destrinçar conceitos.
Então, de acordo com Antonio Candido, só existe literatura, ou se faz literatura, se
houver preocupação em construir um sistema ou se enquadrar em um. O que dizer dos
clássicos universais, estavam eles preocupados com a questão de regras, de sistemas? Será
que Gil Vicente, um dos mais importantes dramaturgos da literatura portuguesa,
preocupou-se em fazer peças voltadas para as normas do Humanismo? Ou será que o texto
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por si só já não nos leva a tal ou qual movimento? O que falar, então, de João Cabral de
Melo Neto, sua poesia poder ser tachada como modernista? Não podemos deixar de
lembrar que a literatura desse ou daquele autor é influenciada por muitas coisas, dentre elas,
os fatores históricos, culturais. E parece que é justamente isso que o rotula dentre de uma
ou outra escola literária. No entanto, o fato de o artista seiscentista não ter pautado sua arte
dentro das normas, não é razão para excluí-lo dos manuais. Não estamos, com esse
discurso, desmerecendo o estudo sobre nossa literatura feito pelo crítico Antonio Candido,
e sim, querendo mostrar que o poeta GM foi a mola principal da poesia no Brasil e um dos
marcos da formação da Literatura Brasileira.
II
É preciso dar à arte um tratamento peculiar, ou seja, a literatura requer dos críticos
um estudo minucioso, para não incorrer em erros. Nota-se sob essa perspectiva que nem
todos terão a mesma opinião sobre determinado assunto – e isso vale para qualquer ramo
da vida humana -, porém há coisas que precisam de um olhar mais atento. Candido (2000,
p. 9) no prefácio da 1ª edição, inicia seu texto com cada literatura requer tratamento peculiar, em
virtude dos seus problemas específicos ou da relação que mantém com outras. Ou seja, ele aprova que a
literatura não é um manual artificial cheio de conceitos para analisar a obra de arte, mas
requer do analista determinadas peculiaridades. E se existem essas peculiaridades, Candido
nos parece contraditório porque afirma que o ponto de vista histórico é um dos meios mais legítimos
de estudar literatura (p. 29). Dessa forma, outro ponto de vista que não seja o histórico, para
ele, não é legítimo no estudo da literatura brasileira (apesar de não especificar que tipo de
literatura, mas fica subentendido que se refere à literatura brasileira). Com isso, fica sem
sustentação a idéia de se tomar cuidado com as peculiaridades no estudo de literatura, já
que legítimo mesmo seria o ponto de vista histórico.
Uma outra frase de Candido que é interessante ser notificada é a seguinte:
localizaram na fase arcádica o início de nossa verdadeira literatura (p. 25). Atente-se para o vocábulo
verdadeira. Significa que a literatura anterior ao Arcadismo é falsa, sem sentido para o Brasil.
Então, que valor teriam os sermões de Vieira? E a poesia plurilíngüe de Anchieta? Sem
falar, é claro, na língua ferina do Boca-do-inferno. De nada valeriam, então, os textos
desses poetas para a literatura brasileira? Ao que nos parece, é justamente isso que diz o
crítico. Ele tacha a literatura pré-arcádica – a literatura dos cronistas, a literatura barroca -,
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do século XVI e XVII, no Brasil, como sem importância, sem conteúdo, sem matéria
suficiente para demarcar espaço, fazer-se notória. Dizer assim é uma forma de demonstrar
preconceito, de negar a força poética dos poetas. Parece mais uma questão ideológica do
que mesmo a apreciação de um conteúdo literário de influência marcante no século XVII e
no atual. A Formação se propõe mesmo a ver a literatura no Brasil como expressão da realidade
local e, ao mesmo tempo, elemento positivo na construção nacional. (p. 25) Esquece o crítico que a
literatura do século XVI ao XVII está pautada num processo de transculturação. Por
exemplo, Gregório trabalha, em sua poesia, com o elemento estrangeiro – o colonizador -,
mesclando-o ao elemento nacional. É o caso da língua: Gregório escreve poesias em língua
espanhola, algo feito antes por Anchieta. Isso é importante porque a língua é um meio de
se ensinar uma cultura e/ou sua porta de entrada. O poeta não usou somente de elementos
da Europa, mas fez uma mistura com o americano. Esse fato nos leva a crer que a poesia
gregoriana é brasileira e universal e, portanto, digna de ser a precursora de uma literatura no
Brasil. Seja para qual fim se destina, a poesia do século XVI aponta para um horizonte de
grande poder artístico-cultural.
Raquel Chang-Rodríguez (1993, p. 301) analisa o processo de construção da poesia
na América no período colonial e diz:
Durante los siglos XVI, XVII y XVIII, Hispanoamérica experimentó un
intenso proceso de transculturación del cual surgió una sociedad cuyo
ideario e instituciones llevan las senas tanto de lo europeo como de lo
americano.
Tanto o Brasil como toda a América estavam passando pelo processo de
colonização. Era muito forte a presença do estrangeiro, que ao chegar aqui, tentou
transferir sua cultura para nosso povo. No entanto, em vez de ter havido somente a
absorção da cultura portuguesa (no caso do Brasil), houve – como já foi dito – uma mistura
com os elementos culturais brasileiros. Pode-se constatar essa afirmação estudando a
poesia de Anchieta e de Gregório de Matos. Sendo assim, Massaud Moisés (1983, p. 104)
nos considera a importância da obra gregoriana para o Brasil:
E acionada por autonomia de espírito e coragem moral, que desde logo
o aproximam de Antônio Vieira, seu contemporâneo. Ambos
representam o melhor da cultura portuguesa e brasileira durante a
quadra barroca: na ação, desempenadamente anti-obscurantista, eram
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faces da mesma moeda, e na visão do mundo, com exigências de rigor
intelectual e ético, individualidades de idêntico calibre e porte.
Dessa comunicação entre as duas culturas nasceu, na modernidade, a noção de
neobarroco, que significa o ponto de diálogo entre o Ocidente e o Oriente.1
O Brasil Colônia passou por esse processo de transculturação de que fala Raquel,
no tocante à língua, aos costumes, ao modo de escrever etc. O mesmo aconteceu com a
cidade do Natal, que durante a Segunda Guerra Mundial, foi palco da presença e atuação
do povo norte-americano, absorvendo assim muitos elementos daquela cultura. Por isso,
tão importante é estudarmos a literatura do período colonial, para entendermos como se
deu esse processo, como a literatura enquanto arte marcou a sociedade colonial brasileira.
A poesia dessa época foi um veículo culto de expressão; foi a forma como o homem
conseguiu expressar a realidade, já que a literatura – no dizer de muitos – é a expressão da
realidade. Talvez não uma realidade do dia-a-dia, do cotidiano, de fatos ou cenas
corriqueiras, mas uma realidade que ultrapasse o plano do real e nos insira no vácuo dos
contrastes, que nos absorva para dentro de nós mesmos, como a imagem alegórica
valeryriana da serpente que morde a própria cauda, o conhecimento circundante sobre o
espírito literário, bem apresentada na frase eu mordo o que posso (CAMPOS, [199-?], p. 59).
Isto é Literatura: é encontrar a ordem na desordem, é saber que o caos é harmônico.
Sobre a poesia do período colonial e o que ela significou para a época, ChangRodríguez (op cit, p. 305) declara:
Como consecuencia de este interés en la literatura propiciado por el
ocio de las clases altas – debido en parte a la abundancia de mano de
obra barata – y por el prestigio de la poesía como vehículo culto de
expresión, el menos sujeto a revisiones oficiales o inquisitoriales, el
género tuvo gran auge em Hispanoamérica, especialmente en los dos
primeros siglos coloniales e así lo muestran los frecuentes certámenes
poéticos.
Tudo isso nos confirma que a poesia do período colonial e, em conseqüência, a de
Gregório é primordial para a estruturação de uma literatura no Brasil e fica evidente que
sua formação depende também do poeta baiano.
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III
Haroldo de Campos entra em conflito com as afirmações de Antonio Candido e
redige um texto sob o título O seqüestro do barroco na formação da literatura brasileira: o caso
Gregório de Matos (1989). Nesse texto, Haroldo integra o poeta seiscentista dentro da
Literatura Brasileira como fator determinante de sua formação e contra-argumenta com o
discurso de Candido. Para tanto, fala:
Ainda que Gregório de Matos tenha ficado provisoriamente confinado
na memória local e na ―tradução manuscrita‖ (que, todavia, teve forças
para prolongar-se através dos séculos XVII e XVIII); ainda que só
tenha sido resgatado em letra impressa cerca de 150 anos depois de sua
morte; ainda que tenha pesado renitentemente sobre sua reputação a
―morte civil‖ da acusação de ―plágio‖, a ausência do poeta, num sentido
mais fundamental, foi meramente virtual ou larvada (mascarada).
Presente, como inscrição em linha d‘água, Gregório sempre esteve no
miolo do próprio código barroquista de que ele foi operador
excepcional entre nós (p. 67-68).
A fala de Haroldo conclama o que vimos discutindo aqui. Gregório é um expoente
da poesia brasileira, sobretudo, da Literatura enquanto ―sistema‖. Os argumentos de
Haroldo são pertinentes, pois atestam aquilo que outros críticos dizem do poeta. Por
exemplo, dentre os modernistas, Oswald de Andrade (apud HAROLDO, op cit, p.9) diz:
Gregório de Matos foi sem dúvida umas das maiores figuras de nossa
literatura. Técnica, riqueza verbal, imaginação e independência,
curiosidade e força em todos os gêneros, eis o que marca a sua obra e
indica desde então os rumos da literatura nacional.
É importante termos a voz de um modernista em defesa do poeta baiano, porque,
em vez de negar um autor do século XVII, uma literatura dita – por alguns – não-nacional,
Oswald enaltece a obra de GM e o marca como essencial para a literatura nacional. Isso
demonstra que o grau de conhecimento do modernista atingiu o ambiente idealizado por
Valéry: o espírito da literatura circundou seus pensamentos: E isso torna indescritível o espírito,
que é o lugar delas. As palavras perdem aí a sua virtude. Lá, elas se formam, jorram diante de seus olhos:
é ele (o espírito) que os descreve as palavras (1998, p. 23) (grifo nosso). Noutro momento, à pagina
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27, ele diz: com ele tem início a análise de todas as fases intelectuais, de tudo o que ele vai poder chamar
louco ídolo, descoberta. Isto que dizer que o artista para ser artista precisa ter a ―bênção‖ desse
espírito, o espírito da Literatura. Por isso, a idéia de constelação, cada poeta (artista) é
influenciado pelo espírito e consegue fazer realmente Arte. Tal espírito é universal, uma vez
que desde os clássicos vem ―iluminando‖ o intelecto dos artistas até hoje, saindo, talvez, de
Homero, passando por Góngora, Gregório, João Cabral, entre outros. Dito dessa forma, a
Literatura é muito mais que um quadro historicista de datas, autores e obras; é uma
complexa teia de intelectuais, de ―cientistas‖, imersos no universo do conhecimento,
amparados pelo espírito da Literatura. Pode parecer caótico, mas é harmônico. Tudo se
combina, o contraste se organiza de forma perfeita, os cacos se juntam formando um todo,
único e universal. Assim:
A nuvem de combinações, de contrastes, de percepções que se agrupa
em torno de uma pesquisa ou que se esgueira indeterminada, conforme
o prazer, desenvolve-se com uma regularidade perceptível, uma
continuidade evidente de máquina (VALÉRY, 1998, p. 29).
Quando Antonio Candido fala em literatura como ―expressão da realidade local‖,
esquece que a poesia de Gregório se enquadra nessa categoria, pois reflete perfeitamente a
sociedade baiana da época. Sua poesia é também uma espécie de desmascaramento de uma
Bahia mal administrada, de um poder público hipócrita, entre outras coisas. Dizer que sua
poesia não mexeu com a população colonial é falso, é insustentável porque, como se sabe
através de suas biografias, GM foi deportado para Angola justamente pelo fato de que suas
poesias estavam ferindo a imagem do poder político baiano. Manuel Rabelo, biógrafo, nos
diz o seguinte a esse respeito: mas dom João o desenganou, intimidando-lhe que por sua conhecida
culpa, e necessário remédio, havia de embarcar-se para Angola em uma nau, que prontamente carregava a
tropa de cavalo d’el-rei para Benguela (1992, p. 1263). Sabe-se também que Gregório recitava
seus textos em praça pública, aos pobres. Não eram só os ricos que tomavam
conhecimento da sátira gregoriana, mas toda a população colonial. De alguma forma sua
poesia mexeu com a sociedade, seja para aguçar o senso crítico dos marginalizados, seja
para incitar a ira dos poderosos. Com este negócio, pois, e com valentia, se fez Gregório de Matos
aborrecido de uns, e temido de outros (RABELO, op cit, p. 1251). Tanto mexeu que os ouvintes
das poesias gregorianas as reproduziram mais tarde. Dessa forma, não se perdeu. Ficou na
memória deles; foi marcante. Se não tivesse tido importância, esses textos teriam
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desaparecido. Num processo natural, sua poesia atingiu a nós, atingiu e mexeu com a
modernidade.
Com isso, Gregório promoveu mudanças na vida social baiana: todos tiveram que
tomar cuidado com o que faziam. A vida do poeta também sofreu mudanças. Desde que
empreendeu seus textos nas ruas da Bahia, sua figura se tornou ainda mais conhecida.
Mudou ainda mais com seu exílio na África, e mesmo de volta ao Brasil, não pôde ficar na
terra amada, terminando seus dias em Pernambuco. Mas mesmo lá, o poeta não renega sua
capacidade de apontar os problemas de uma sociedade; seus poemas continuaram
maculando o poderio administrativo colonial, pois percebeu que em qualquer lugar, Bahia
ou Pernambuco, havia imprudência na política, na igreja, no povo.
IV
Um outro ponto em que a poesia gregoriana é atingida pela crítica diz respeito a
plágio. Afirma-se que GM nada tem de original, mas é na verdade, um imitador da poesia
de Góngora e Quevedo – poetas barrocos espanhóis. Esse é um dos pontos principais de
que se utiliza a crítica para duvidar da autenticidade das poesias de GM. Porém, se houve
imitação, isso não é motivo para não ser um grande poeta, pois a imitação faz parte da
produção de qualquer tipo de arte. É preciso conhecer para fazer diferente. E quando se
conhece, é inevitável a influência. Assim fizeram os modernistas: estudaram o passado para
trabalhar o futuro.
Há críticos, como Flávio Kothe (1997), que por perceberem essa imitação em GM,
afirmam que ele não pode ser considerado um poeta brasileiro, popular, já que estaria ainda
dentro de uma perspectiva portuguesa. Isso é óbvio, porque mesmo não tendo se
preocupado em fazer literatura, nem muito menos portuguesa, o poeta foi influenciado por
esta. Assim declara Kothe:
Ele não pode ser considerado um revolucionário, populista, antilusitano,
anticolonial. [...] Fazer dele um protótipo de brasilianidade antilusitana é
um engano e um engodo (p. 343).
É descabido ver nele a conjunção de brasilidade com qualidade artística,
o início da literatura brasileira. Se for um início, então é o início de uma
literatura que não vai além do país e que, portanto, nem para o Brasil
serve propriamente (p. 344).
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Por outro lado, dizer que foram os românticos ou a partir deles que se fez uma
literatura verdadeiramente brasileira, sem influência do europeu, é perigoso, pois eles
beberam das fontes portuguesas. Ora, o Brasil do século XIX vivia um momento de
ascensão econômica e muitas famílias puderam enviar seus filhos à Europa para estudar,
dentre eles, Gonçalves de Magalhães, precursor do Romantismo no Brasil. Sendo assim, o
Romantismo Brasileiro foi influenciado pelos ideais do Português, tanto é que a criação de
um herói nacional não foi idéia genuinamente brasileira. Na Europa se pensou em criar um
herói à imagem do cavaleiro medieval. No Brasil, o cavaleiro foi substituído pelo índio. Ou
seja, foi uma imitação da ideologia portuguesa.
Em Portugal os escritores românticos procuravam retomar o passado
histórico medieval. Já os autores brasileiros retomaram a época colonial
realizando a idealização do índio, que passou a ser o nosso herói.
Entretanto, o índio brasileiro possuía a mesma perfeição física e moral
do cavaleiro medieval europeu. [...] O Brasil dirige seu olhar à Europa e
ao Ocidente (MARTINS, 2001, p. 194).
Houve apenas a substituição do elemento a ser cultuado, mas as idéias eram as
mesmas. Nesse sentido, não foi autêntico, não foi original, portanto, mesclado com a
ideologia portuguesa. A única diferença entre GM e os românticos é que estes se
preocuparam em fazer uma literatura brasileira, enquanto o outro fez literatura sem essa
preocupação. Sua poesia estava acima disso, mas ao mesmo tempo ligada aos ideais do
Barroco, através do espírito da literatura.
Nessa perspectiva, o crítico Massaud Moisés defende o poeta, colocando-o par a
par com clássicos da literatura universal. Ele diz: Assim procedeu Camões com referência a Petrarca
e Virgílio, apenas para lembrar dois de seus mestres, e ninguém cuidará de tachá-lo de poeta menor, ou de
que a apropriação lhe empana a grandeza (1983, p. 95). Massaud Moisés põe em pé de igualdade
Gregório e Camões, afirmando que o poeta português também fez imitações dos seus
mestres e nem por isso, é tachado de ―poeta menor‖. Por que, então, Gregório o seria?
Será que seria o fato de ele ser brasileiro, fruto da colônia, sem sangue europeu? A
comparação elaborada pelo crítico aponta para algo de que já falamos: há uma constelação
de poetas que são agraciados pelo espírito da literatura, fazendo com que eles trabalhem a
arte (poesia), mesmo que em épocas distintas, em conexão uns com os outros. Ou seja, a
VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 445
qualidade da produção artística é igual. Por isso, Moisés (op cit, p. 109) afirma: Contraditório?
Paradoxal? Tão-somente barroco, e uma singular organização lírica, análoga à de poetas como François
Villon, Baudelaire, Camões.
Sigismundo Spina (apud GOMES, 1985, p. 88) também confirma que a apropriação
do original e do precioso alheios não constitui desmerecimento de quem o faz, antes virtude e conformidade
com os cânones que regem a verdadeira formação de estilo. Citações como essas nos mostram que
Gregório de Matos não foi um plagiador, mas ele apenas fez algo comum na literatura; fez
comunicação entre obras, entre estilos. Paul Valéry (1998, p. 15), trabalhando o conceito de
método nos estudos artísticos, declara imitará para tocá-la, e acabará tendo dificuldades de conceber
um objeto que ela não contenha.
Silviano Santiago no livro Uma literatura nos trópicos (1978) faz uma citação que
pode ajudar na defesa de Gregório em relação ao plágio, mesmo que não a dirija
especificamente ao poeta nem a seu tempo:
Tanto em Portugal, quanto no Brasil, no século XIX, a riqueza e o
interesse da literatura não vem tanto de uma originalidade do modelo, do
arcabouço abstrato ou dramático do romance ou do poema, mas da
transgressão que se cria a partir de um novo uso do modelo pedido de
empréstimo à cultura dominante. Assim, a obra de arte se organiza a
partir de uma meditação silenciosa e traiçoeira por parte do artista que
surpreende o original nas suas limitações, desarticula-o e rearticula-o
consoante a sua visão segunda e meditada da temática apresentada em
primeira mão da metrópole (p. 58).
Para Santiago, a obra de arte, quer seja o romance ou o poema, quebra com a idéia
de originalidade (no sentido de único) e promove uma reorganização dos ideais do velho e
do novo; é isso, portanto, o que fez Gregório e outros artistas. Para Poe (1981, p. 917)
durante séculos, nenhum homem, em verso, jamais fez ou jamais pareceu pensar em fazer uma coisa
original.
Há aqueles que tentam de todas as formas atrair o poeta seiscentista ao lugar do
mentiroso, do falsário, do ladrão, mas por outro lado, há os que o defendem de tais
acusações – parece que estes são em maior número – e dão, para isso, um compêndio de
argumentos que elevam ainda mais o ―poder‖ do poeta.
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V
A obra de arte permite que o artista transcorra por lugares sempre ou nunca
habitados; faz com que o outro, a quem essa obra chegue, perceba as conexões do
Universo em constante equilíbrio, mesmo que parta dos estilhaços de um cristal quebrado;
envolve as suas duas forças criadoras, o ontem e o hoje, criando um ambiente de
eternidade, onde nada pode ser destruído.
A poesia reúne os cacos do lixo cultural desde o Princípio e transforma-os em um
todo organizado e perfeito, sem nuances; a poesia é a nascente do rio caudaloso que nos
leva ao outro lado, aquele de onde partimos e para onde não queremos ir. Se queremos, é
devido ao espírito que encanta e desencanta, amarga e adocica, machuca e alivia, mata e
ressuscita. É preciso nos desvencilharmos dos rótulos e nos envolvermos com a Arte, pois
é ela que interessa, é ela que constrói o que foi destruído. Poe (op cit, p. 911) diz só tendo o
epílogo constantemente em vista poderemos dar a um enredo seu aspecto indispensável de conseqüência, ou
causalidade, fazendo com que os incidentes e, especialmente, o tom da obra tendam para o desenvolvimento
de sua intenção. Para ele, o fim é o começo. Só existe fim se houver o começo e vice-versa.
Assim diz Gregório:
O todo sem a parte não é todo,
A parte sem o todo não é parte,
Mas se a parte o faz todo, sendo parte,
Não se diga, que é parte, sendo todo.
As considerações que aqui foram feitas dão uma idéia sobre a importância da obra
gregoriana para a Literatura Brasileira e Universal, bem como mostram o rebuliço que o
poeta Gregório de Matos vem causando desde o século XVII. Sabemos que muito pode ser
discutido a esse respeito e que esse texto deu sua contribuição para toda essa discussão.
Para finalizar nosso discurso, damos a voz a um estudioso de GM, citado
anteriormente, que na sua fala confirma o objetivo do nosso texto, que propôs mostrar a
mudança que o poeta causou e causa à Literatura, à Sociedade, à Crítica, entre outras
instâncias. Antônio Dimas (1993, p. 356) considera:
Como homem de seu tempo, Gregório de Matos não podia ser
indiferente à noção de mutabilidade, elemento tão do agrado da estética
barroca e fartamente encontrável numa sociedade que mal se punha em
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pé. Surpreendê-la nas mais diversas modalidades foi-lhe tarefa
obstinada. Portanto, nada mais coerente do que recorrer a um só objeto,
como a Igreja, por exemplo, e rodeá-lo ressabiado, ora sisudo, ora
trêfego, ora devastador. À multiplicidade incômoda das variantes de
seus versos, junte-se, então, a das perspectivas. Com ambas compõe-se
uma polivalência longe de se esgotar.
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5.
NOS FIOS DO TEMPO: REFLEXÕES ACERCA DA NOÇÃO DE
“SISTEMA LITERÁRIO” DE ANTONIO CANDIDO NA FORMAÇÃO DA
LITERATURA BRASILEIRA
Moisés Ferreira do Nascimento - UFES
Para Marcos A. Ramos
―Há literaturas de que um homem não precisa sair para receber cultura e
enriquecer a sensibilidade; outras, que só podem ocupar uma parte da sua vida de
leitor, sob pena de lhe restringirem irremediavelmente o horizonte. Assim,
podemos imaginar um francês, um italiano, um inglês, um alemão, mesmo um
russo e um espanhol, que só conheçam os autores da sua terra e, não obstante,
encontrem neles o suficiente para elaborar a visão das coisas, experimentando as
mais altas emoções literárias.
―A nossa literatura é galho secundário da portuguesa, por sua vez arbusto de
segunda ordem no jardim das Musas...‖
O trecho acima faz parte do prefácio do livro Formação da literatura brasileira –
momentos decisivos, de Antonio Candido116 e servirá de base para o desenvolvimento do nosso
trabalho. O autor levanta alguns questionamentos no mínimo intrigantes ao afirmar que a
literatura feita no Brasil, de um modo geral, é ―galho secundário da portuguesa‖. Para além
da polêmica que esta proposição articula (e que logo mais a frente será discutida aqui),
chamamos atenção para um dado interessante: Candido realiza, a observar o recorte acima,
não só o que os estudos literários chamam de ―literatura comparada‖ 117, mas, sobretudo,
um estudo cultural. Ao pensar daquela forma, o autor estabelece uma comparação entre a
produção literária brasileira e as produções literárias européias; consequentemente, há a
comparação da cultura brasileira com a cultura européia.
Se lá no século XIX, quando surgiu enquanto estudo e disciplina acadêmica, a
literatura comparada era compreendida apenas como ―o estudo comparativo de duas ou
116
Candido, Antonio. ―Prefácio da 1ª edição‖. In: Formação da literatura brasileira: momentos
decisivos. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2009. As demais citações da obra se darão pela sigla FDB
seguida do número da página no corpo do texto.
117
Em artigo posterior, Candido vai afirmar que ―estudar literatura brasileira é fazer literatura comparada
(Candido, 1993, p.211)
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mais obras literárias‖; no século XX, principalmente com o pensamento pós-estruturalista,
ela passou a caracterizar-se como um ―movimento para fora dos estreitos limites
disciplinares, em vista da ampliação de seu campo de estudo‖, expandindo-se também para
―a comparação entre obras literárias e obras pertencentes a outras linguagens artísticas‖.
118
Essa ponte com as demais ―linguagens artísticas‖ é que vai desembocar, na
atualidade, nos estudos comparativos que se estabelecem entra a literatura e outras áreas do
conhecimento (antropologia, história, sociologia, semiótica, psicanálise, por exemplo),
inclusive com os ―estudos culturais‖. Portanto, se o leque se estendeu de forma bastante
significativa, propiciando estudos diversos a partir do texto literário, deve-se isso aos
primeiros estudos comparatistas que compreenderam a literatura como autônoma, mas,
sobretudo, livre para se valer das demais áreas do conhecimento.
E Antonio Candido foi um desses primeiros estudiosos a sugerir essas
comparações: ―uma crítica que se queira integral deixará de ser unilateralmente sociológica,
psicológica ou lingüística, para utilizar livremente os elementos capazes de conduzirem a
uma interpretação coerente‖.119 Ao afirmar a liberdade da crítica pela coerência, Candido
não só expande o conceito de análise literária, na sua época muito voltado para a estilística,
como também abre portas para as demais áreas do conhecimento, desde que a crítica não
seja ―unilateral‖.
Embora não possamos afirmar que Antonio Candido participe da corrente
denominada ―estudos culturais‖, não há dúvida de que a sua obra tenha aberto caminhos
para que no Brasil, no que tange a literatura, esses estudos fossem feitos. Uma prova disso
é o método sociológico que o autor emprega na sua Formação. Nesta, no capítulo ―literatura
como sistema‖ da introdução, o autor faz uma distinção entre ―manifestações literárias‖ e
―literatura propriamente dita‖, articulada por ele como um conjunto de ―denominadores
comuns, que permitem reconhecer as notas dominantes duma fase‖.
Estes denominadores são, além das características internas (línguas, temas,
imagens), certos elementos de natureza social e psíquica, embora literariamente
organizados, que se manifestam historicamente e fazem da literatura aspecto
orgânico da civilização. Entre eles se distinguem: a existência de um conjunto de
118
Marques, Reinaldo. ―Literatura comparada e estudos culturais: diálogos interdisciplinares. In:
Culturas, Contextos e Discursos: Limiares Críticos no Comparatismo. Porto Alegre: Editora da
Universidade, 1999. p.60
119
Candido, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo: Nacional, 1965. p.7
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produtores literários, mais ou menos conscientes do seu papel; um conjunto de
receptores, formando os diferentes tipos de público, sem os quais a obra não vive;
um mecanismo transmissor, (de modo geral, uma linguagem, traduzida em estilos),
que liga uns a outros. O conjunto dos três elementos dá lugar a um tipo de
comunicação inter-humana, a literatura, que aparece sob este ângulo como sistema
simbólico, por meio do qual as veleidades mais profundas do indivíduo se
transformam em elementos de contato entre os homens, e de interpretação das
diferentes esferas da realidade. 120
―A formação da continuidade literária‖, conforme as palavras de Candido, só se
torna possível a partir do momento em que autor e obra estiverem integrados neste
―sistema literário‖, isto é, somente com a tríade básica (produtores literários – leitores –
linguagem) que se tem a ―tradição‖. E para o autor, tal sistema inicia-se na segunda metade
do século XVIII, no Arcadismo mineiro, e se estende até o Romantismo da primeira
metade do século XIX.
Para que não se tenha dúvida: toda a literatura produzida no Brasil do século XVI a
primeira metade do século XVIII é denominada por Candido de ―manifestações literárias‖.
As demais produções, a partir de 1750, são consideradas partes integrantes da ―literatura
propriamente dita‖, organizadas dentro de um ―sistema literário‖.
Esta noção, totalmente estrutural, foi elaborada pelo autor com base na sociologia.
Em entrevista à Heloísa Pontes, Candido afirma que na época do seu doutorado estudou
os autores Redfield, Melville Herskovits, Irving Hallowell, Raymond Firth, Malinowski,
Evans Pritchard, Radcliffe-Brown, e que essas leituras (principalmente dos dois últimos
autores) foram fundamentais para o seu pensamento nos estudos literários: ―fiquei marcado
pelo funcionalismo, me apeguei ao conceito de estrutura, que depois transpus da
antropologia para a crítica literária‖.121
Portanto, é na Antropologia social inglesa, principalmente nas leituras de Evans
Pritchard e Radcliffe-Brown, que Candido retira os elementos necessários para a noção de
―sistema‖. Essa transposição do método antropológico para os estudos literários já marca
no autor a transdisciplinaridade, a comparação do texto literário com outros campos do
120
121
Candido, Antonio. op. cit. p. 25
Pontes, Heloísa. Entrevista com Antonio Candido. RBCS. v.16 nº 47. Outubro/2001
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saber e, por que não dizer, com a ―virada culturalista‖,
122
que marca a primeira metade do
século XX. Antonio Candido, ainda que não se possa chamá-lo de multiculturalista, realiza
estudos multiculturais, se levarmos em conta as afirmações acima.
No entanto, algumas perguntas necessitam ser feitas. O que Candido aufere da
Antropologia inglesa que de fato avaliza suas inferências sobre a literatura brasileira? Quais
são as bases dessas afirmações? Pode-se pensar a literatura brasileira a partir dessas bases?
O autor não deixa claro no livro o lugar onde fundamenta o seu ―sistema‖. No
entanto, de forma minuciosa, assinala às fontes que direcionam seu pensamento:
(...) Os escritores brasileiros que, em Portugal ou aqui, escrevem entre, digamos
1750 (início da atividade literária de Cláudio) e 1836 (iniciativa consciente de
modificação literária, com a Niterói), tais escritores lançaram as bases de uma
literatura orgânica, como sistema coerente e não manifestações isoladas.123
O uso das palavras ―orgânicas‖ e ―coerente‖, embora possam passar ilesas numa
leitura desatenta, não esclarece a ―armadura teórica‖ de Candido. É no livro Literatura e
Sociedade, publicado um pouco depois da Formação, que o autor traz alguns poucos
esclarecimentos para os seus apontamentos:
A acepção aqui utilizada foi desenvolvida com certa influência da Antropologia
Social Inglesa (tão atacada neste aspecto por Lévi-Strauss) e se aproximaria antes da
noção de ―forma orgânica‖, relativa a cada obra e constituída pela inter-relação
dinâmica dos seus elementos, exprimindo-se pela ―coerência‖.124
Quem chama a atenção para este dado é o escritor Luiz Costa Lima, no texto
―Concepção de História Literária na Formação‖. Com um olhar bastante atento, o escritor
direciona o olhar para a palavra ―coerência‖: ―o privilégio pois do conceito de coerência
também se prende à influência do funcionalismo antropológico inglês‖.
125
Indo à fonte,
Costa Lima cita um trecho do ensaio Estrutura e função na sociedade primitiva, de RadcliffeBrown:
122
Seligmann-Silva, Márcio. ―Teoria literária? Esqueça!‖. In: a crítica literária: percursos, métodos,
exercícios. Vitória: Edufes, 2009. p. 87
123
Candido, Antonio. op. cit. p. 71
124
Candido, Antonio. Literatura e Sociedade.
125
Lima, Luiz Costa. Concepção de História Literária na Formação. Rio de Janeiro: Rocco, 1991. p. 160
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―Função‖ é a contribuição que determinada atividade proporciona à atividade total
da qual é parte. A função de determinado costume social é a contribuição que este
oferece à vida social total como o funcionamento do sistema social total. Tal modo
de ver implica que certo sistema social (...) tem certo tipo de unidade a que
podemos chamar de unidade funcional. Podemos defini-lo como condição pela
qual todas as partes do sistema social atuam juntas com suficiente grau de harmonia
ou consistência interna, isto é, sem ocasionar conflitos persistentes que nem podem
ser solucionados nem controlados.126
O que Costa Lima nos mostra, e sem dúvida é um mérito do seu trabalho, são as
raízes do pensamento de Candido. Conforme já assinalado, o Funcionalismo teve um
―impacto‖ significativo sobre o pensamento do crítico, e quando ele fala de ―bases
orgânicas‖, de ―sistema coerente‖, não faz mais do que justificar sua vinculação à
Antropologia inglesa. Uma forma de esclarecermos isso é nos atentarmos para a primeira
frase da citação acima. Radcliffe-Brown afirma ser a ―função‖ um aporte para a ―atividade
total da qual é parte‖; ou seja, uma perfeita relação de contribuição para o todo, para a
―coerência‖ e organicidade do sistema social. O pensamento funcionalista, portanto,
articula-se em torno de uma homogeneidade, fruto sem dúvida de uma analogia com a
Biologia, privilegiando a ―‘harmonia ou consistência‘ do sistema‖. 127
A comparação com a Biologia poderá esclarecer um pouco mais o pensamento de
Candido. Qualquer pessoa, no mais absoluto senso comum, sabe que todas as partes do
corpo humano confluem para um funcionamento coerente e perfeito. Se uma das partes
está fora do ―sistema‖, com certeza todo o corpo padecerá. Portanto, o corpo humano –
sendo aqui compreendido como um conjunto de funções que se organizam
sistematicamente – necessita que as ligações entre seus membros sejam restritas,
interdependentes, coerentes, e que suas tarefas sejam desempenhadas em conjunto; dessa
forma, temos um ―corpo‖ perfeito. É dessa forma que o Funcionalismo inglês pensava o
―sistema social‖. Segundo Costa Lima, ―às relações sociais então se conectam sua
concepção de tempo, seus sistemas políticos e de linhagem‖. 128
126
Radcliffe Brown, A. R. Apud: Lima, Luiz Costa. op. cit. p. 161
Lima, Luiz Costa. op. cit. p. 161
128
Idem. Ibidem.
127
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É pelas concepções de tempo, política, história e de linhagem, que Antonio
Candido faz o seu recorte a partir do Arcadismo. O autor está em busca de uma
―coerência‖ e ―coesão‖ histórica, homogênea, conforme já dito acima.
No entanto, se podemos concordar com Costa Lima na afirmação de que ―o
sistema é da mais absoluta coerência e a coesão não pouco invejável‖, queremos ir um
pouco além e observar a sistematização de Candido através de outros olhares.
Colocar o Arcadismo como pedra fundamental da nossa formação literária custou
caro para o autor, tanto para os que consideram literatura brasileira toda a produção
literária desde o período quinhentista, quanto os que não concordaram com a exclusão do
Barroco. Duas obras são fundamentais nestes aspectos: Conceito de literatura brasileira, de
Afrânio Coutinho, e O sequestro do barroco na formação da literatura brasileira: o caso gregório de
matos, de Haroldo de Campos.
O livro de Afrânio Coutinho foi escrito em 1960, um ano após a publicação da
Formação. Numa clara demonstração de resposta a obra de Candido, Coutinho busca
desconstruir o pensamento crítico que estabelece uma distinção entre literatura colonial e
literatura nacional. Para ele, tal distinção favorece a historiografia portuguesa, que costuma
colocar toda a produção literária brasileira do período colonial como que pertencente a
literatura daquele país: ―tal perspectiva acostumou uns e outros a encarar o passado literário
português como comum a Brasil e Portugal. Eram os chamados ‗clássicos‘ luso-brasileiros,
patrimônio de uma cultura comum, vazada numa mesma língua‖. 129
Afrânio Coutinho afirma que ―escapou‖ à visão do português o processo de
―revolução‖ que se estabeleceu na colônia desde o momento que os primeiros homens que
para aqui se transferiram ou nasceram:
Revolução tão importante que, desde o primeiro momento havia transformado a
mentalidade dos habitantes, através de mudança da sensibilidade, das motivações,
interesses, reações, maneiras de ser e agir novas, tudo provocado pela nova situação
histórica e geográfica. (...) Os colonos à medida que se afastavam da costa e
pequenos povoados, regrediam à condição primitiva, esquecendo o estado de
civilizados, a fim de adaptar-se ao meio e de habilitar-se à luta com os silvícolas. (...)
129129
Coutinho, Afrânio. Conceito de literatura brasileira. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica, 1960. p.
10
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Um homem novo criou-se desde o primeiro instante em que pôs o pé no novo
mundo.130
Coutinho chama atenção para o caráter político da palavra ―colonial‖. Para o autor,
o emprego de tal termo nos estudos literários apresenta uma visão da literatura como
―epifenômeno da vida política e social‖, relacionada ao fato político do Brasil, no período
denominado ―literatura colonial‖, ser uma colônia de Portugal. Daí que só se tem
autonomia literária a partir da independência política (consequentemente, depois de 1822).
Neste aspecto, a palavra ―colonial‖ soa inadequado por pressupor que a produção literária
passasse pelo mesmo ―processo pelo qual o povo colonizador exerce a colonização do
povo colonizado‖.131 E a observar a crítica literária, seus pressupostos e características, não
há outro critério para a inclusão do termo senão pelos vezos sócio-político e econômicos
do Brasil daquele tempo.
O leitor que conhece o texto da Formação perceberá que Afrânio Coutinho ataca
principalmente as proposições de Candido, em função de este ter sido um dos que se valem
do termo ―luso-brasileiro‖ (ou ―literatura comum‖) como forma de caracterizar não
somente algumas das ―manifestações literárias‖ brasileiras, mas também algumas produções
dos ―momentos decisivos‖ da formação literária a partir de 1750.
Para Coutinho, deslocar-se do local de origem para uma terra estrangeira, habitar
em outro território que não seja sua pátria, já pressupõe um novo homem que se instaura,
um grau zero da vida. Daí desconsiderar a ―noção de sistema literário‖ de Candido, por
acreditar que essa privilegia o conceito de literatura colonial, colocando as produções do
período colonial como aspecto da portuguesa.
Afrânio Coutinho afirma que Candido confunde ―autonomia‖ com ―formação‖.
Esta, para ele, começa desde as primeiras manifestações literárias do país, tendo Antonio
Viera e Gregório de Matos como seus principais nomes. Já a ―autonomia‖ literária começa
exatamente no espaço em que Candido enxerga o início da nossa ―formação‖: a partir de
1750, com as academias e os árcades mineiros.132
A obra de Coutinho e a de Haroldo de Campos possuem uma preocupação
comum: a não inclusão do barroco na ―formação‖ de Candido. Em O Sequestro do Barroco,
130
Idem. Ibidem.
Coutinho, Afrânio. op. cit. p. 17
132
Coutinho, Afrânio. op. cit. p. 62
131
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Campos chama a atenção para um problema que verifica na Formação, ancorando-se nas
―funções da linguagem‖ arquitetadas por Roman Jakobson:
O modelo semiológico, articulado por Antonio Candido para descrever a formação
da literatura brasileira, privilegia as funções EMOTIVA e REFERENCIAL,
acopladas na função COMUNICATIVO-EXPRESSIVA de exteriorização das
―veleidades mais profundas do indivíduo‖ e de ―interpretação das diferentes esferas
da realidade‖. 133
A ―literatura que privilegia a função EMOTIVA‖, segundo o autor, em
conformidade com a teoria de Jakobson, ―é a literatura romântica‖. Com base nisso, o
autor define o pensamento de Candido da seguinte maneira:
Quando ao privilégio dessa função EMOTIVA se alia uma vocação igualmente
enfática para a função REFERENCIAL (para a literatura da 3ª pessoa pronominal,
objetiva, descritiva, tal como caracterizada pela épica), é possível dizer que estamos
diante de um modelo literário do tipo romântico imbuído de aspirações
classicizantes (aspirações a converter-se, num momento de apogeu, em ―classicismo
nacional‖).134
Embora Haroldo de Campos valha-se do linguista russo para fazer sua definição,
bem claro já estava na Formação esta ligação com o pensamento romântico:
o leitor perceberá que me coloquei deliberadamente no ângulo dos nossos
primeiros românticos e dos críticos estrangeiros que, antes deles, localizaram na
fase arcádica o início da nossa verdadeira literatura, graças à manifestação de temas,
notadamente o Indianismo, que dominarão a produção oitocentista. 135
A crítica de Campos, portanto, gira em torno da recuperação do cânone do século
XVII – Gregório de Matos – por entender que não é clara a sentença de Candido que
afirma que Gregório não existiu numa ―perspectiva histórica‖, que não contribuiu para o
133
Campos, Haroldo. O sequestro do barroco na formação da literatura brasileira: o caso gregório de
matos. 2ª Ed. Salvador: FOJA, 1989. p. 27
134
Idem. p. 28
135
Candido, Antonio. op. cit. p. 27
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―sistema literário‖,136 já que ele é ―a fonte dessa mesma história‖.137 Para Campos, não tem
outra explicação para a ―exclusão‖ senão pelo vezo da valoração, do olhar crítico de
Candido que sempre tende para a ―relutância, as hesitações judicativas, na abordagem do
Barroco brasileiro‖. A própria noção de público leitor que Candido emprega não visualiza
de fato suas proposições, já que não se tem a dimensão desse volume de leitores das
produções neoclássicas. E se o autor leva em conta a realidade regional, o público baiano e
pernambucano do século XVII, que conheceu e divulgou a poesia de Gregório, garantiriam
o lugar do poeta no ―sistema literário‖; somente através de uma visão linear e ―finalista da
história literária‖, na busca pelos ―momentos decisivos‖, que se consegue excluir as
produções do século XVI e XVII, segundo Campos.138
Tais palavras são atestadas por Costa Lima, quando afirma que a ―coesão‖ e a
―coerência‖ do sistema literário de Candido são articuladas na concatenação das relações
sociais com a sua ―concepção de tempo, seus sistemas político e de linhagem‖. 139 E o que
Haroldo de Campos e, de certa forma, Afrânio Coutinho criticam é o fato do autor da
Formação pensar a literatura brasileira de forma ―orgânica‖, ―homogênea‖. Se para o
segundo, a literatura brasileira já estava formada, ainda que sem as bases orgânicas,
inclusive sugerindo Autonomia da literatura brasileira como o nome correto para o livro de
Candido; o primeiro afirma que nossa literatura não teve infância, não teve um nascimento
―simples‖, mas ―já nasceu adulta‖, tendo uma origem de ―transformação‖, ―vertiginosa‖,
num diálogo claro com Walter Benjamin.140
No entanto, embora façam um trabalho digno de leitura e crítica da Formação,
ambos os escritores – Afrânio e Haroldo – partem de visões com as quais não
concordamos. Afrânio Coutinho, embora faça uma crítica no mínimo interessante à tese de
Antonio Candido, enfatiza a ideia de formação literária quando coloca o Barroco como o
início desta, discordando do Arcadismo pensado por Candido, colocando inclusive as
figuras de Antonio Vieira e Gregório de Matos como os principais fundadores; Além disso,
constrói seu pensamento por um vezo nacionalista, que por vezes cai num discurso
―localista‖. Com relação a Haroldo de Campos, acreditamos ser um anacronismo atribuir a
136
Candido, Antonio. op. cit. p. 26
Campos, Haroldo. op. cit. p. 43
138
Idem. p. 51-52
139
Lima, Luiz Costa. op. cit. p. 161
140
Campos, Haroldo. op. cit. p. 64
137
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Gregório de Matos a verdadeira autoria dos poemas que contêm seu nome, principalmente
depois da obra A Sátira e o engenho, de João Adolfo Hansen, que afirma:
―Gregório de Matos‖ é uma etiqueta, unidade imaginária e cambiante nos discursos
que o compõem contraditoriamente numa hierarquia estética, determinada pela
―cadeia de recepções‖, na expressão de Jauss. Não-substancial, é efeito da leitura dos
poemas atribuídos, não sua causa.141
Além disso, não acreditamos que tenha ocorrido de fato um ―seqüestro‖, já que
Candido sequer leva em conta os períodos anteriores a 1750. No entanto, concordamos
com Campos quando pensa a literatura como ―trans-formação‖, isto é, não homogêneo,
não-linear.
Um olhar atual à historiografia literária não nos permite pensar uma literatura
nacional a partir de nenhuma dos pontos de vista elucidados acima (no caso, Antonio
Candido, Afrânio Coutinho e Haroldo de Campos). Se perguntássemos ao escritor Jacint
Verdaguer, ou até mesmo ao contemporâneo Jaume Cabré, qual a sua nacionalidade, não
só diriam ―catalão‖, como também chamariam de ―catalã‖ as suas literaturas. E se sabemos
que a Catalunha não constitui um estado-nação de acordo com a tradição advinda do
século XIX, pois politicamente faz parte do território espanhol, temos aqui um bom
exemplo da fragilidade que se instala quando pensamos o sistema literário de acordo com
Candido.
Se levarmos em conta as noções de língua, povo e nação, de acordo com o
pensamento contemporâneo, veremos que as proposições lançadas na Formação se tornam
complexas se ainda forem aplicadas à literatura brasileira, haja vista a fluidez que tais
conceitos possuem na pós-modernidade. Peguemos a noção de língua, por exemplo: se nos
séculos XIX e XX ela era imprescindível para se caracterizar uma literatura nacional, na
atualidade tal conceito se perde a partir do momento que surgem escritores como a turca
Elif Shafak, que escreve suas obras tanto em turco quanto em inglês.
Voltemos agora ao início do nosso texto, no ponto em que propomos discutir a
afirmação de que a literatura brasileira é ―galho secundário da portuguesa, por sua vez
arbusto de segunda ordem no jardim das Musas...‖. Foi neste ponto que vimos Candido
fazer literatura comparada, já que compara a produção literária brasileira com as produções
141
Hansen, J.A. A Sátira e o engenho. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 14-15
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européias. Com o intuito de clarear a mente do leitor, tais palavras foram escritas no
primeiro prefácio à Formação, em 1959; portanto, o autor tinha visto passar diante dos
seus olhos toda a movimentação da literatura brasileira, desde a década de 30 à geração de
45. Uma pergunta se faz necessária: se galho é parte de um todo, o que de fato é a literatura
brasileira? Se a brasileira é o galho, onde se localiza a árvore?
Não há explicação para a afirmação de Candido senão pelo pressuposto de haver aí
a um juízo de valor, que se sustenta em face da ocultação no texto das bases que sustentam
tal definição. O que garante ao crítico que Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa,
é uma literatura menor que Crime e Castigo, de Dostoievsky?
Se a abordagem do autor faz referências às produções literárias dos séculos
anteriores (XVI, XVII, XVIII e XIX), de imediato temos a falha de informação no texto da
Formação, que não marca no tempo e no espaço a afirmação do autor. Todavia, se tais
palavras alfinetam as temáticas, a não pureza ideológica e o caráter híbrido de nossos
autores, chamamos atenção para o ensaio ―O entre-lugar do discurso latino-americano‖, de
Silviano Santiago, que afirma que ―a maior contribuição da América Latina para a cultura
ocidental vem da destruição sistemática dos conceitos de unidade e de pureza‖. Para este, a
América Latina se posiciona no ocidente exatamente no ―movimento de desvio da norma,
ativo e destruidor, que transfigura os elementos feitos e imutáveis que os europeus
exportavam para o Novo Mundo‖.142
O discurso de Candido serve a uma época que para a América Latina não existe.
Não somos intelectualmente do tempo de Quixote, não nascemos no mesmo continente
que Homero, Horácio. Palavras como essa, segundo Santiago, ―reduz a criação dos artistas
latino-americanos à condição de obra parasita, uma obra que se nutre de uma outra sem
nunca a lhe acrescentar algo de próprio; uma obra cuja vida é limitada e precária,
aprisionada que se encontra pelo brilho e pelo prestígio da fonte, do chefe-de-escola‖.143
A literatura brasileira, assim como a latino-americana, nasce exatamente como
segunda. E nisso consiste o seu sabor. Na assimilação de que somos um povo colonizado,
que recebemos uma cultura imposta, arbitrária e reacionária, mas que, a partir disso,
construímos nossa trapaça no poder, citando Roland Barthes, nossa literatura parte como
um segundo texto, mas totalmente desviado do discurso dominante.
142
Santiago, Silviano. ―O entre-lugar do discurso latino-americano‖. In: Uma literatura nos trópicos. São
Paulo: Perspectiva, 1978. p. 18
143
Idem.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Campos, Haroldo de. O Sequestro do barroco na formação da literatura brasileira: o caso Gregório de
Matos. 2ª Ed. Salvador: FOJA, 1989.
Candido, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 12ª Ed. Rio de Janeiro:
Ouro sobre Azul, 2009.
______________. Literatura e Sociedade. São Paulo: Nacional, 1965.
Carvalhal, Tania Franco. Culturas, Contextos e Discursos: Limiares Críticos no Comparatismo.
Porto Alegre: Editora da Universidade, 1999.
Lima, Luiz Costa. Pensando nos trópicos: dispersa demanda II. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.
Pontes, Heloísa. Entrevista com Antonio Candido. RBCS. V. 16. Nº 47. Outubro/2001
Santiago. Uma literatura nos trópicos. São Paulo: Perspectiva, 1978.
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6.
BÍBLIA E A LITERATURA BRASILEIRA: PRESENÇA DO DIABO NA
POESIA DE GREGÓRIO DE MATOS
Ciro Soares dos Santos (UFRN)
Apresentação do problema: uma busca de paz intelectual
Alguém pode considerar como verossímil uma alegação de o poema lido a
seguir não ser da autoria de Gregório de Matos e Guerra (1636-1695?). Ocorre de alguém
considerar acertada a hipótese de o poeta não haver existido de fato como pessoa, assim
como acontece de alguém negar a relevância literária do legado elaborado pelo bacharel
literato para as letras brasileiras. Essas teses podem ser úteis para relativizar ou refutar no
todo ou em parte a leitura tecida nas próximas páginas para uma pequena mostra da obra
do poeta baiano. Discussões centradas em polêmicas relativas à referência autoral, à
existência biográfica e à importância literária de Gregório de Matos (GM) serão
consideradas exploradas o suficiente para se poder construir uma reflexão sobre a obra
desse homem de Estado poeta-tradutor-recriador com paz intelectual minimamente
suficiente, propiciada pelas considerações consolidadas pelo debate acadêmico em torno do
maior dentre os primeiros dos poetas brasileiros, o fundador da literatura brasileira.
Haroldo de Campos valida a abordagem de João Carlos Teixeira Gomes (1985) quanto
a sua concepção de plágio-tradução-cópia como trabalhos criativos, entendimento capaz de
motivar a retirada do poeta do banco dos reus, e refuta a relativização da certeza da
existência humano-histórica da vida espantosa de o poeta Devorador, contada por
Pedro Calmon (1983) e por Fernando da Rocha Peres (2004), empreendida por João
Adolfo Hansen (2004), ao abordar a obra de Gregório de Matos e a Bahia do século
XVII. Defensor incansável de O boca de brasa, como prefere chamá-lo Gomes a, ―o
boca do inferno‖, Haroldo de Campos dedica-se a desconstruir a verdade historiográfica
construída com fundamento em convenções metodológicas de sistematização construídas
por Antônio Cândido (1981) responsáveis por levá-lo a cometer o seu sequestro do
barroco na formação da literatura brasileira (CAMPOS, 1988), tal como o lança no
banco dor reus o inquérito do seu ex-aluno poeta-tradutor paulista ao investigar o caso
Gregório de Matos. As breves considerações seguintes terão por livre de quaisquer
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cativeiros o estadista-poeta Gregório de Matos e Guerra como pressuposto à leitura do
poema seguinte, com a convicção de que os poemas copilados por James Amado
seguramente resultam do trabalho da figura humana do filho de portugueses nascido e
criado nas terras brasileiras, embora com idas e vindas para Portugal e para África. Assim,
os parágrafos seguintes se dedicarão a um poema em especial, não para investigação
histórico-autoral, como a empreendida por Maria Aparecida Ribeiro sobre a imagem de
Angola no espelho barroco projeção das canções de Exílio de Gregório de Matos,
como fez Maria Aparecida Ribeiro (2008) para um colóquio barroco, mas para
explorar-lhe um motivo literário da poesia de Gregório: a presença do diabo como
elemento-personagem literário tomado de empréstimo da tradição histórico-literária para
elaboração poética. As linhas seguintes passam de largo, o máximo possível, por polêmicas,
compondo um texto baseado em mapa de leitura construído sob as indicações de Haroldo
de Campos, sem marcas de angústia gerada por desejo de desviar-se para os descaminhos
das questões acima mencionadas.
O diabo como construção histórico-literária: a pena luciferina de Gregório de matos
O estudo da presença da Bíblia na poesia de Gregório de Matos (GM) tem sua
motivação fundada em mais do que mera identificação pessoal do estudante em relação ao
objeto estudado, fruída com a liberdade das relações de transferência-contratransferência
na recepção-leitura do texto poético e de projeções do estudante em relação ao seu objeto
de observação, embora uma investigação crítica da apropriação gregoriana da enciclopédia
de lugares, episódios e personagens bíblicos seja uma oportunidade para resignificar
histórias e doutrinas ouvidas e internalizadas desde sua tenra infância. A impossibilidade de
dar conta da amplidão de referências às escrituras operada pelo poeta exige o recorte para,
por escolha livre, a presença do diabo, do satanás, do demônio na poesia de GM: será a
personificação do mal construída pelo cristianismo o cerne da reflexão sobre a presença da
Bíblia na literatura brasileira por via da poesia de Gregório de Matos. Harold Bloom, Piter
Stanford e Haroldo de Campos serão autores chamados para socorro útil à difícil tarefa
de construir uma compreensão da personagem-personificação do mal consoante ela se
manifesta em sua aparição em um poema de Gregório sob o cotejamento com a sua
aparição nas escrituras bíblicas. Leituras de narrativas e discussões de exegese bíblicas
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empreendidas por leigos e por pastores, testemunhadas nos templos dos adventistas ao
longo de uma infância e a apresentação do barroco Gregório de Matos das aulas de
literatura brasileira elaboradas pelo Professor Francisco Ivan da Silva nas salas da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte são fatores motivadores à reflexão a seguir,
como o são a experiência de leitura literária de Harold Bloom, associada ao seu judaísmo
de família e ao seu gnosticismo de formação estética, baseado na sua leitura do mormismo
e do cristianismo, para construção de sua crítica literária à Bíblia, assim como o interesse de
Haroldo de Campos pela literatura bíblica, pelo barroco e por Gregório de Matos. Os
principais motores para a elaboração deste ensaio são seus objetivos acadêmicos abaixo
apresentados, além de idiossincrasias afetivas e gosto literário apresentadas acima.
Duas metas correlacionadas se apresentam frente ao caminho para a
composição deste ensaio-tentativa de registrar uma leitura pertinente para poema de
Gregório de Matos: divulgar a importância do poeta e difundir o tratamento crítico da
bíblia como literatura. Os dois objetivos se coadunam em uma fusão propiciada pelo
recorte temático e pelo corpus: desmistificar o diabo como personificação material do mal
ao tratá-lo como personagem literário historicamente forjado em multifaces. A negligência
da academia quanto ao legado bíblico, vivo na poesia brasileira, abandona os leitores
perdidos entre o preconceito desdenhoso e a leitura normativo-dogmática da composição
estético-literária fundamental de maior difusão do Ocidente. O estudo da biografia do
diabo como construção histórico-literária revela a pena de Gregório de matos como uma
luciferina ferramenta, mas não no sentido vulgar, no sentido depreciativo que importa aos
desmerecedores de seu trabalho.
Os poemas de Gregório de Matos reunidos no Códice organizado por de
James Amado apresentam mais de cem referências a lugares, episódios e personagens
bíblicos. Deus e o diabo são mencionados dezenas de ocorrências, às vezes no mesmo
texto, às vezes com papel idêntico entre textos diferentes, às vezes com papeis diferentes,
mas nunca como antagonistas similares aos da construção histórica empreendida pelo
cristianismo desde Paulo até os papas, desde a origem até os dias atuais (STANFORD,
2003). As páginas seguintes sobre especificamente o diabo na poesia de Gregório
possibilitam a divulgação ao público em geral de estudos capazes de retirar as nuvens
dogmáticas, normativas e catequéticas responsáveis por encobrir interesses escusos da
religião alcançados pela manipulação de uma personagem multifacetada, como
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demonstrado por Stanford (2003) ao construir uma biografia histórico-religiosa para o
diabo; figura tão importante quanto Deus, seja o Javé da Bíblia hebraica, seja o Deus Pai da
Bíblia cristã, para a cultura ocidental. A pena luciferina de Gregório de Matos fere a quem
atinge, mas não faz dele um ―boca do inferno‖, como o demonizou o poderio estatalreligioso de sua época, única e simplesmente por ele não se fazer mudo ante os de seu
século, conforme conta Peres, Calmon . O poeta não poupava quem quer que fosse, como
o defende da acusação de somente versejar contra os mais vulneráveis da sociedade, como
o defende Atônio Loureiro de Souza (SOUZA,1959). A poesia de Gregório escapou às
amarras históricas da cena de sua época por não ser expressão panfletária de protesto em
tomada de partido contra ou a favor seja lá do que fosse. Embora o poeta não se fizesse
cego aos aspectos sociais configuradores de seu século, como o demonstra sua obra, a
atualidade e a permanência de seu trabalho devem-se não a esse aspecto, mas ao labor
artístico empregado para constituir uma elaboração estética capaz de inseri-lo no legado
literário universal. A apropriação do legado bíblico-literário é um aspecto da poética de
gregoriana comprobatório dessa inserção.
Se Gregório foi detentor de uma ―boca do inferno‖, foi somente numa
acepção bem diferente da construída pelo poder cristão hegemônico há séculos durante a
história do cristianismo católico (STANFORD, 2003), o qual lançou condenação contra
toda voz dissidente de seus ditames político-dogmáticos. Gregório de Matos foi o artífice
de uma pena luciferina, um boca do inferno, no sentido de ser um instrumento de Deus
capaz de e responsável por lançar contra quem merecera juízo capaz de atingir a terceira e
quarta geração dos abonáveis poderosos, alcançando até os dias de hoje: a punição da
ridicularização. Gregório gerou o saboroso riso paródico delineado diante das convenções
sociais, das imposições normativas, como um Lúcifer, um anjo de luz, um rebelde em
busca de mais saber e de mais poder para desvelar as trapaças dos homens.
Inescapavelmente, o legado literário reunido na Bíblia pela sua riqueza estética, por sua
vastidão de alcance ao público, por sua repercussão na cultura oral, por sua deturpação nos
meios eclesiásticos ao longo da história, seria matéria-prima para a poesia de Gregório, caso
ele se aventurasse, como o fez para a felicidade geral da nação, em ser poeta desde jovem.
O diabo não escaparia a esse processo de apropriação poética do legado bíblico-literário,
personagem tomado por Gregório do mesmo modo como o tomou o discurso religioso:
para fazer o que bem entenda (STANFORD, 2003). A apropriação literária da
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personificação do mal, com cada poema atribuindo-lhe um aspecto novo, adequado ao
interesse poético subversivo ou não em relação à Bíblia, verificável na obra poética de
Gregório, demonstra respeitou somente aos ditames da criatividade. A criação-apropriação
dogmática da face do mal verificável na biografia do diabo (STANFORD, 2003), com cada
momento histórico sendo atribuído um traço peculiar ao maior sedutor de mundo
adequado aos interesses circunstancias do poder religioso hegemônico, demonstra respeito
somente a intenções escusas de obtenção de mais poder pela agremiação de uma
coletividade ignorante e amedrontada, mas pelas consequências de desafiar o poder
instituído do que de se deparar com o sobrenatural, deve bem ser essa a verdade. Gregório
de Matos e seus perseguidores foram ―bocas do inferno‖ (o poeta, por lançar-lhes no
inferno do fogo da ridicularização pelo riso paródico; seus detratores, por semearem sobre
o solo da vida do artista a mentirosa alcunha difamatória e demonizadora), criadores como
foram de mais uma fase da materialização personificada em uma face com personalidade da
concepção dualista quanto à existência do mal, nascida nas remotas culturas da antiguidade
da história do homem.
Uma brevíssima incursão teórica: Gregório de Matos e o barroco – paródicos
Em sua obra Deus e o diabo no Fausto de Goethe (CAMPOS, 2005),
Haroldo de Campos pouco fala sobre Deus, apesar do título, mas apresenta o diabo com
elemento literário universal, advindo das ânsias humanas por transcendência, como o
declara em entrevista publicada em O arco-íris branco (CAMPOS, 1997), quando
responde Questões fáusticas a J. Jota de Moraes, sobre a presença do diabo no universo
das narrativas populares, ao que o entrevistado remete a esse seu livro sobre a obra máxima
de Johann Wolfgang Von Goethe. Uma indicação teórica registrada em nota sobre o
escrito sobre um corpo de Severo Sarduy revela, segundo Haroldo de Campos (2005,
p.133), a pertinência dos estudos do ensaísta para a linguagem barroca quanto ao seu
artifício paródico de composição. Em Por uma ética do desperdício, estudo estimado
por Campos, Sarduy estabelece a paródia como elemento do seu ―esquema operatório
preciso‖, criado pelo criativo ensaísta cubano para ―restringir o conceito de barroco‖, a fim
de codificar ―a permanência de sua aplicação‖ (SARDUY, 1979, p.59). Uma breve incursão
teórica se faz necessária para esclarecer o fato de a análise seguinte ter por fundamentação
o conceito de ―paródia que não deve ser necessariamente entendida no sentido de imitação
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burlesca‖, como estabelece Haroldo de Campos ao entendê-la ―enquanto ‗canto textual‘‖,
da maneira como ele a encara, ―etimologicamente, [...] enquanto ‗canto paralelo‘‖,
acercando-a ―tanto da idéia batikhtiniana de dialogismo (Gr, dia, entre, através, logos,
discurso) como da noção de inter (entre) textualidade kristeviana‖ (CAMPOS, 2005, p.7374). Combinando-se Sarduy com Campos ―na medida em que‖ a obra de Gregório de
Matos permitir ―uma leitura em filigrana, em que esconde, subjacente ao texto [...]- outro
texto – outra obra – que este revela, descobre, deixa decifrar‖, o trabalho de elaboração da
poética gregoriano se harmoniza com ―o barroco latino-americano‖ que ―participa do
conceito de paródia, tal qual o definia em 1929 o formalista russo Bahktin‖ (SARDUY,
1979,p.68). Demonstrada essa relação, sob as provas de se tratar de legítima a paródica
operação textual de Gregório ―na medida em que orienta seu desenvolvimento e
proliferação‖, com sua ―estrutura inteira constituída, gerada pelo princípio da paródia‖
(SARDUY, 1979, p.70) de textos bíblicos, será, então, entregue ao mundo acadêmico mais
uma parcela do resgate do barroco e de Gregório de Matos e Guerra para pagamento do
seqüestro há muito sofrido.
Considerações sobre a presença do diabo na poesia de Gregório: uma a voz paródico- tentadora
As menções ao diabo realizadas por Gregório de Matos apresentam oscilações
em relação à Bíblia cristã, como prefere chamar o Novo Testamento Harold Bloom:
aproxima-se e afasta-se das representações da personagem construída pelos autores bíblicos
responsáveis produção dos escritos fundamentais à expansão do cristianismo e a sua
consolidação institucional. O Pai Criador do universo divide espaço com o inimigo
humano universal (criações cristãs) no poema seguinte, situado dentre os tecidos para Os
homens bons, homenageados às avessas na Crônica do viver baiano seiscentista de
Gregório de Matos, mais especificamente como as Pessoas muito principais da cidade da
Bahia. Ocorre nele de ser dada voz ao Demônio para construção de diálogo cujo resultado
esperado é o de uma peleja para seduzir uma alma ―cristã resistindo às tentações
diabólicas‖, enquanto clama por Deus:
Alma
Se o descuido do futuro,
e a lembrança do presente
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é em mim tão continente,
como do mundo murmuro?
Será, porque não procuro
temer do princípio o fim?
Será, porque sigo assim
cegamente o meu pecado?
mas se me vir condenado,
Meu Deus, que será de mim?
(OC, I, 73)
Segismundo Spina (1995), em seu livro A poesia de Gregório de Matos,
organiza antologia da obra do poeta pluriguista, publicação estimulada, prefaciada por e
oferecida a Haroldo de Campos, destaca a ocorrência de tupinismos, africanismos,
termos chulos, gírias e arcaísmos na obra poética do artista considerado por Campos como
―maior poeta barroco‖ do Brasil e ―um dos maiores‖ da literatura nacional (1988, p.35) e a
quem talvez ninguém tenha superado na sátira em ―toda a América Latina‖ (1995, p.12).
Spina, porém, silencia quanto à ocorrência do léxico de origem bíblica na poesia do poeta
um dia degredado para Angola por sua língua luciferina, declamadora dos textos sagrados,
como se reflete em seu vocabulário do que é mostra a palavra ―alma‖. Haroldo de
Campos e Harold Bloom constroem explicações para o uso bíblico da palavra,
esclarecedoras ao emprego dela no poema de Gregório. Para comentar sua escolha pela
palavra alma para sua tradução transcriadora do mais barroco dos textos, o Eclesiastes,
Haroldo de Campos afirma que sublinha para a palavra néfesh (’eth-nafshi), traduzida para
alma, a ―conotação [...] ligada à séde das ‗emoções‘, dos ‗apetite‘‖, assim como pode
significar ―si mesmo‖ (CAMPOS, 2004, p. 135 e p. 122), o homem como um todo.
Campos, para comentar tradução publicada em seu livro Bere’shith, nome dado pela
tradição hebraica ao livro de Gênesis, primeira palavra dessa obra atribuída a Moisés,
registra o ensino de que ―alma‖ (néfesh) pode ter o sentido de ―ser que respira‖ (CAMPOS,
2000, p. 30). Harold Bloom, em comentário sobre a palavra alma, empregada na tradução
do episódio do Gênesis (o mesmo traduzido por Campos), transposta para o português, a
partir da versão em inglês elaborado de David Rosenberg, por Monique Balbuena, em
que é narrada a criação do homem a partir da terra moldada por Javé, esclarece que:
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J é o mais monístico dos autores acidentais, assim como São Paulo é o
mais dualístico. Para J não há qualquer divisão entre corpo e alma,
natureza e mente. Até onde posso ver, tal monismo foi criação de J
(BLOOM, 1992, p.192).
Seja qual for a acepção mais adequada para alma no texto de Gregório, o certe
é que se vê um ser vivente pensando consigo mesmo em simultânea busca com
concomitante influência do Demônio sobre seus pensamento a respeito de sua experiência
com os prazeres do mundo. Campos aprova comentário crítico sobre o fato de que, na
expressão do Qohélet, ―os prazeres físicos da vida eram divinos na origem‖, e de que,
embora o prazer não fosse ―um objetivo adequado à vida‖, constitui-se como ―único
programa prático para a existência humana‖ (CAMPOS, 2004, p.122.):
Eu saudei eu § o prazer § §
pois benesse alguma para o homem §
fora
E isto
sob o sol
§ comer e beber § e se aprazer
§
§§
§§§
o há de seguir em seu afã de fazer §
Pelos dias de vida § que lhe deu Elohim § sob o sol
(QO, 2004, p.80)
Nesse sentido, o anseio da alma e o incentivo do demônio estão em harmonia
com a pregação bíblica do Qohélet (capítulo oito, verso quinze), mas apresenta-se na dual
condição de entrega deliberada ao seguir ―cegamente pecando‖ associada ao sentir temor
causado por crer em possíveis consequências de seu proceder. A expressão de tom bíblico
―do princípio o fim‖ da composição da estrofe expressa um prognóstico de futura danação,
antecedente às seguintes palavras de sedutora persuasão do demônio:
Demônio
Se não segues meus enganos,
e meus deleites não segues,
temo, que nunca sossegues
no florido dos teus anos:
vê, como vivem ufanos
os descuidados de si;
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canta, baila, folga, e ri,
pois os que não se alegraram.
dois infernos militaram.
Bangüê, que será de ti?
(OC, I, 73-74)
Segundo a tradição cristã, o Demônio é anjo caído e tem voz em alguns dos
relatos bíblicos desde o Gênesis, quando teria se encontrado com o ser humano; aos
evangelhos, quando teria se deparado com Jesus. Como fizera com usufruto de a astúcia
da serpente, assim Haroldo de Campos chama o episódio de Gênesis, para alcança êxito
em sua persuasão na busca por mobilizar Eva no Éden, o sedutor, semelhante ao do
poema de Gregório, tenta Cristo no deserto. Nos dois episódios (ou nos três, para incluir o
do poema em comento, a despeito da peculiaridade de os relatos bíblicos dizerem respeito
ao Satanás em pessoa e não a um enviado, um demônio, como pode ser o personagem do
poema de Gregório), o sedutor age sob promessas de mais viver. Haroldo de Campos
elabora uma dublagem transcriadora em português para a voz do diabo cujo tom é dado
pela tradição javista comentada por Harold Bloom como objeto de manipulação pelos
escritores neotestamentários:
E a serpente § era o mais astuto § §
dentre todos § os animais do campo § §
que fizera § O-nome-Deus § § §
E ela disse § à mulher § §
acaso § terá dito Deus § §
não comerás § § de toda árvore do jardim?
E disse a mulher § à serpente § § §
Do fruto das árvores do jardim §
Poderemos comer
E do fruto da árvore §
que está no meio do jardim § §
disse Deus § não comereis § dele § §
não tocareis nele § § §
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Senão morrereis
E disse a serpente § à mulher § § §
Morrer § não morrereis
Pois § sabe Deus § §
que § no dia em que dele comerdes § §
se abrirão § vossos olhos § § §
E sereis § como deuses § §
sabedores § do bem e do mal
E viu a mulher § §
que era boa a árvore para comer §
e uma delícia para os olhos §
e aprazível a árvore que dá conhecimento § §
e tomou de seu fruto § e o comeu § § §
E deu também ao homem § junto a ela §
e ele comeu
(CAMPOS, 2004, p.54-55)
Harold Bloom elabora extensa análise aos relatos considerados de origem
javista, em tese, separados em O livro de J por David Rosenberg, das contribuições
sacerdotais, redatoriais e eloístas para a composição do que hoje é o Pentateuco, a Torá
hebraica, os cinco primeiros livros bíblicos. Embora o comentarista da elaboração literária
javista, ao escrever sobre o Gênio autoral presente na Bíblia, desaprove a trabalho
tradutório de Rosenberg (BLOOM, 2003, p.142), reitera o estudo em que da seguinte
forma explicita uma reflexão advinda de pesquisa sobre a questão da gênese literáriocultural da ideia de o diabo haver se metamorfoseado em serpente, como o estabeleceu a
Bíblia Cristã em sua reescritura da Bíblia hebraica:
O homem e a mulher não conheciam a malícia; a serpente não conhece
nada além dela. Nosso problema, enquanto leitores de J, está em
desembaraçar sua estória da serpente no Éden da escandalosa
proeminência que alcançou na teologia cristã e na literatura de ficção do
ocidente. É um desafio enorme resgatar J neste ponto em particular.
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Como será que a encantadora serpente de J se transformou em Satã? A
resposta parece remontar a pelo menos o primeiro século antes da era
comum, a certos escritores judaicos apocalípticos e eréticos, incluindo o
testamento de Adão, a vida de Adão e Eva e aquele outro, curiosa e
incorretamente intitulado Apocalipse de Moisés. Por trás deles está uma
vida perdida, ou o apocalipse de Adão, onde supostamente o Diabo e a
serpente de J aparecem pela primeira vez, onde a história da
desobediência escrita por J foi transmutada em uma história de luxúria, e
onde a árvore do conhecimento do bem e do mal se transformou em
absolutamente qualquer outra árvore que pudesse ser associada à
serpente Satã. (BLOOM, 1992, p.197-198)
O fato de a serpente do livro de Gênesis ser identifica em fusão com o Satanás
dos livros do novo testamente é exemplo de como o cristianismo é marcado por ensinos
construídos com base em narrativas mitológicas antigas, anteriores a sua constituição como
movimento religioso. Haroldo de Campos, em comentário a passagem sobre a
sagacidade da serpente, um dos capítulos do seu Éden: um tríptico bíblico, confirma a
leitura de Harold Bloom relativa à personagem criada pela suposta autora da narrativa, a J,
mulher intelectual da corte salomônica como a imagina de Bloom. Esclarece Haroldo de
Campos:
Diferente do que é sugerido nas representações cristãs, a serpente,
(nahash), termo que significa ―brilhante‖ e que pode ser associado ao
bronze (nehósheth), não é, por definição, no texto hebraico, um ―ente
diabólico‖. Ao contrário, mais do que qualquer outro animal, foi dotada
―astúcia‖, de ―ardilosidade‖ [...]. No episódio do Éden, a serpente
aparenta um conhecimento da ―árvore do bem e do mal‖ que vai além da
―inocência‖ paradisíaca do casal humano (fato que, para Bloom,constitui
a maior ironia do texto ―javista‖). O verbo que descreve o ato de
persuasão praticado pela serpente em relação à mulher é nasá’ ou nashá,
com o sentido de ―elevar para um plano mais alto‖ [...], ―seduzir‖,
―iludir/decepcionar‖. (CAMPOS, 2004, p.45-46)
O ensaio anjos caídos, escrito por Haroldo Bloom, apresenta uma síntese da
esclarecedora correlação do diabo como serpente com Eva e com Lilith, personagem
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mitológica não mencionada por Haroldo de Campos em suas considerações
interpretativas de cunho linguístico e tradutório sobre a serpente do Éden. Ao ensino de
Bloom sobre o fato de que ―a estrela‖ dos demônios (categoria de ser universal e
pertencente a todos o povos) habitantes enfestadores da Mesopotâmia era Lilith, ―primeira
esposa de Adão‖, ―afastada pela criação de Eva‖ (BLOOM, 2008, p.41), associe-se a
explicação explicitada por Jorge Luis Borges e Margarita Guerrero em seu O livro dos
seres imaginários e se percebe o fato de que não é uma peculiaridade criada pelo
cristianismo a existência de uma personagem para personificar concretamente o mal, tal
como a que surge no texto de Gregório para dialogar com a alma:
―Porque antes de Eva foi Lilith‖ lê-se em um texto hebraico. Sua lenda
inspirou o poeta inglês Dante Gabriel Rossetti (1828-1882) a
composição de Eden Bower. Lilith era uma serpente; foi esposa de Adão e
lhe deu glittering sons and radiant daughters (filhos resplandecentes e filhas
radiantes). Depois, Deus criou Eva; Lilith, para vingar-se da mulher
humana de Adão, instou-a a provar o fruto proibido e a conceber Caim,
irmão a assassino de Abel. Tal é a forma primitiva do mito, seguida por
Rossetti. Ao longo da Idade Média, a influência da palavra layil, que em
hebraico quer dizer noite, foi transformando esse mito. Lilith deixou de
ser uma serpente para ser um espírito noturno. Às vezes é um anjo que
rege a procriação dos homens; outras, um demônio que assalta aqueles
que dormem sós ou aqueles que andam pelas estradas. Na imaginação
popular costuma assumir a forma de uma mulher alta e silenciosa, de
negros cabelos soltos. (BORGES e GUERRERO, 2000, p.113)
De Lilith como serpente perseguidora do homem depois de lhe tornar-se
defeso prosseguir como sua companheira, à serpente como diabo perseguidor do homem
depois de ser um angélico irmão em Deus Pai, a origem do demônio cristão apresentado
como verdade única e última na Bíblia cristã e na interpretação normativa dos textos
escriturais advém de transformações de mitos de fontes várias em escrituras de valor
sagrado. Nesse sentido, pode também Gregório de Matos, ao seu bel prazer, modificar
como entenda essa tradição em nome da criatividade poética, retomando a voz seguida pela
pena distante de ―J‖, assim como as narrativas dos evangelhos. O poema, em sua segunda
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estrofe, registra aos argumentos da tentação: deleite dos que vivem sem temor futuro
―descuidados de si‖ pela garantia de livrar-se de ao menos uma danação, a do presente mal
vivido. A tentação de cristo, para quem, segundo a narração de Lucas144 foi oferecido todo
prazer secular acessível ao homem (fato não contado por Marcos) na condição de se
prostrar ao diabo, assédio sofrido em dado momento dos quarenta dias de fome sofrida no
deserto; ao contrário da versão de Marcos145, segundo a qual os anjos lhe serviam, é
referência recuperável a partir dos versos de GM.. Haroldo Bloom, em suas reflexões
sobre os evangelhos, publicadas em Jesus e Javé: os nomes divinos, detém-se
consideravelmente à explicitação de relações verificáveis por meio do exercício de
comparação dos evangelhos sinóticos entre si. Para o crítico, ―tanto Mateus quanto Lucas
procedem de Marcos‖, ―provavelmente, o Evangelho mais antigo, [que] costuma ser
datado da época da rebelião judaica contra a Roma, ocorrida entre 66 e 70 da Era Comum‖
(BLOOM, 2006, p. 83e p. 77). O fato de certo de que ―nenhum dos Evangelhos, em si,
representa um relato confiável dos ensinamentos do Messias ao qual eles se referem, seja
em palavras ou em atos‖ (p.78.) em nada diminui a beleza resultante da exegese das
escrituras (midrash), operada por Marcos e por Lucas, como defende Karem Armstrong
em sua biografia da Bíblia (ARMSTRONG, 2008) haver ocorrido para consolidação da
justaposição de elementos históricos dispersos sobre Jesus, concretizada para a composição
dos evangelhos - pois a riqueza literária estaria nas diferenças. Empobrecedora é a leitura
dos textos para busca de uma versão unitária ao negar as discrepâncias para afirmar a não
contradição impossível de ser percebida, criada para sustentar a defesa de palavra revelada e
não de literatura elaborada como mais pertinente para as narrativas. Em GM, não é o
prazer secular de possuir os bens materiais, a pompa dos poderosos apresentadas a Cristo
no deserto e sob a montanha da tentação, mas o prazer mundano de se entregar ao riso, ao
144
No evangelho segundo Lucas, a Bíblia de Jerusalém assim conta o episódio da tentação de Cristo,
após o relato de sua genealogia: Jesus, pleno do Espírito Santo, voltou do Jordão; era conduzido pelo
espírito através do deserto durante quarenta dias, e tentado pelo diabo. Nada comeu nesses dias e, passado
esse tempo, teve fome‖. Em seguida, o texto apresenta um duelo de conhecimento do Antigo Testamento,
travado entre Jesus e o diabo, parte do qual é a seguinte passagem: ―o diabo levou-o para mais alto,
mostrou-lhe num instante todos os reinos da terra e disse-lhe: ‗eu te darei todo este poder com a glória
destes reinos, porque ela me foi entregue e eu a dou a quem eu quiser. Por isso, se te prostrares diante de
mim, toda ela será tua‘. Replicou-lhe Jesus: ‗Está escrito: Adorarás ao senhor teu Deus, e só a ele
prestarás culto”, destaque do original, (BJ, p.1794). No evangelho segundo Marcos, tradução da Bíblia
de Jerusalém, lê-se, imediatamente após o relato da submissão de Jesus ao ritual do batismo: ―e logo o
espírito o impeliu para o deserto. E ele esteve no deserto quarenta dias, sendo tentado por Satanás, e vivia
entre as feras e os anjos o serviam (BJ, p.1759). o evangelista nada fala sobre as ofertas do diabo
145
Os Evangelhos segundo João e segundo Mateus nada contam sobre a chamada tentação de Jesus.
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deleite da alegria festiva, em substituição ao comedimento introspectivo da vida religiosa, as
vivências postas em evidência pelo tentador Demônio do poema de Gregório. Nesse
sentido, a solene abstinência do carnaval em vida (concretizada por um não entregar-se sem
medida ao cantar, bailar, folgar e rir), equivale a não ter vida em abundância, é infernal
escolha.
Assim como a absoluta impaciência dolorosa do duvidoso Jó diante da
injustiça de lhe haver sido subtraído todo deleite de vida sem qualquer razão admissível,
posto que sua desgraça, como não o sabia o miserável homem, fora fruto de uma disputa
entre Iahweh e satanás, para quem a fidelidade de um homem a seus princípios devia-se
somente às recompensas de gozo material por ele aferidas, também a alma sofre em vida
eterna insolucionável dúvida quanto a entregar-se ou não ao prazer, embora Deus em nada
se manifeste. Enquanto na dramatização, o diabo se faz presente em voz, Deus aparece
somente na expressão irônico-cômica da alma entregue deliberadamente ao pecado em seu
clamor: é uma imagem do inferno cristão às avessa, pois o diabo oferece não dor, mas
prazer à alma pseudo-sofredora ou sofredora senão apenas do medo de um possível futuro
de castigo: Como em Gregório tudo é fingido, até o diabo finge enganar, pois convida à
elevação da alma ao enganoso estado de plenitude para futura descida ao inferno, à moda
da serpente, como explica Haroldo de Campo, com a paradoxal advertência de que se
trata de enganos os seus convites: isso não é engano; é enganar de enganar.
A primeira das passagens bíblica construídas com o registro da voz do diabo
encontra-se em O livro de Jó, segundo Harold Bloom (fonte de onde ele, como judeo
crítico literário estudioso leitor da literatura bíblica, pode encontrar a sabedoria), o
Satanás, no episódio abertura do livro e ao longo da Bíblia hebraica, Antigo Testamento, é
um servo de Iahweh; ―um advogado de acusação, um funcionário de excelente reputação‖
(2008, p.53), enquanto na Bíblia cristã, Novo Testamento, é um inimigo voraz da
humanidade, conforme as epístolas de Paulo e as narrativas dos evangelhos. O diabo do
poema em análise se aproxima da concepção literária de Bloom, explicitada em suas
reflexões sobre os Presságios do milênio e sobre os anjos caídos, em nada divergentes
da leitura biográfico-histórica de Stanfor: para os dois, o diabo é um personagem literário
crucial para a história do cristianismo, mas cujo nascimento remonta a época muito mais
remota do que dois mil. Jorge Luis Borges bem sintetiza a origem biográfica do diabo
como o considera os estudos de Bloom e Stanford ao categorizar a personagem com um
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ser fruto da imaginação em O livro dos seres imaginários, erudito catálogo de
personagens fantásticas, elaborado em co-autoria com Margarita Guerrero. Os dois
escrevem sobre os demônios do judaísmo:
Entre o mundo da carne e o do espírito, a superstição judaica
pressupunha um universo habitado por anjos ou demônios. O censo
de sua população excedia as possibilidades da aritmética. Egito,
Babilônia e Pérsia contribuíram, ao longo do tempo, para a formação
desse universo fantástico. Talvez por influência cristã [...] a
demonologia, ou ciência dos demônios, teve menos influência do que a
angiologia, ou ciência dos anjos. (BORGES e GUERRERO,
2000, p.184)
Bloom, na sua negação da existência de Anjos caídos na bíblia hebraica,
justificada exatamente pelos fatos apresentados acima, desenvolve a percepção explicita por
Borges, acrescentado a cultura da ―Índia antiga, que via o demônio por toda parte‖ (2008,
p.41) ao rol borgeano, e destacando a importância helenista para uma reconstrução das
origens literárias não bíblicas formadoras da concepção de demônio de que toma posse
Gregório de Matos. Sobre o interesse por anjos como um dos presságios do milênio,
ensina o professor da universidade de Yale quanto à origem do demônio:
Embora os anjos, os do nosso tipo, se tenham originado na Pérsia e na
Babilônia, qualquer história dos anjos caídos provavelmente deve
começar com o autor helenista do séculos 2 da E.C. Apuleio, mais
conhecido por seu esplêndido romance O asno de ouro, porém no fim
mais influente como autor de um ensaio, ―Do Deus de Sócrates‖. O
―deus‖ de Sócrates era o seu daimon, um espírito nem humano nem
angélico, que mediava entre os deuses e o filósofo. Apuleio identificava
os daimons como habitantes do ar, como corpos tão transparentes que
não podemos vê-los, só ouvi-los, como ouvia Sócrates o seu. Apesar
disso, os daimons são materiais, como são os deuses; foi inovação de
Tomaz Aquino encarar os anjos, equivalentes dos deuses, como puros
espíritos. Segundo Apuleio, cada um de nós tem um guardião e gênio
individual. No fim da Idade Média, esses daimons foram também
identificados com os anjos caídos, ou ―demônios‖, como certamente o
eram por Aquino. C. S. Lewi aventurou que São Paulo, em última
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análise, estava por trás disso, pois em Efésios 2:2 escreveu sobre ―o
príncipe do poder do ar, que agora atua nos filhos da desobediência‖, o
que foi entendido como uma referência aos daimons como seres
satânicos. (BLOOM, 2006, p.52-53)
A poética constituída por Gregório de Matos com as marcadas da apropriação
paródica do legado bíblico-religioso, relido pelo poeta sob a inescapável influência (ainda
que para transformá-la ao menos em parte) da herança teológico-doutrinal-catequética,
deixadas por Paulo e por Aquino na transformação dos daimons de Apuleio em anjos caído
ou demônios, didaticamente explicitada por Harold Bloom, manifesta-se no texto
comentado pela construção de um diálogo de uma alma vivente com um seu daimon (ela
não consegue vê-lo, mas pode ouvi-lo, sem conseguir distinguir, talvez, se se trata de sua
voz ou da dele), transnomeado em demônio, conforme a tradição católico-cristã o realizou.
A alma dirige-se a Deus, mas quem a ouve é o demônio:
Alma
Se para o céu me criastes,
Meu Deus, à imagem vossa,
como é possível, que possa
fugir-vos, pois me buscastes:
e se para mim tratastes
o melhor remédio, e fim,
eu como ingrato Caim
deste bem tão esquecido
tenho-vos tão ofendido:
Meu Deus, que será de mim?
(OC, I, p.74)
A exaltação a Deus como criador se dá não para esboçar sequer uma sombra
de real submissão piedosa por desejo de mudança de postura diante da vida, mas para
igualar-se em postura ao primeiro dos homicidas na tradição do cristianismo, conforme a
leitura normativa de Gregório para o episódio em que o primeiro filho de Eva é vítima das
diabruras de Javé, registrada no relato de Gênesis. Gregório, ao referir-se a Caim como
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ingrato, adequa-se à leitura cristã da Bíblia hebraica, ignorante do fato levantado por
Harold Bloom de que o fratricídio cometido pelo ―rebelde trágico‖, construído por J, não
como um homicida, comete um ―assassinato provocado pela arbitrariedade de Yahweh‖
(BLOOM, 1992, p.206), em acréscimo à defesa do ponto de vista de que ―Caim é a
primeira realização humana após a expulsão do Éden, e sua principal qualidade não é o
mal, mas um implícito ressentimento de Yahweh‖ (BLOOM, 1992, p.205).
Nas palavras da alma, Deus é apresentado como responsável por predestinar a
sorte humana para a redenção sobre o pecado, mas não para exaltar o criador, senão em
contraponto à confissão de se destinar para longe de se salvar pelos méritos Dele. A alma
percebe-se destinada ao ceu (seria o terceiro, para onde foi levado em espírito o apóstolo
Paulo?), no sentido destinar-se a um lugar preparado por Deus para habitação das almas
não tragadas pelo demônio, porém ver-se em permanente marcha contrária a alcançá-lo.
Ao demônio resta tão somente reiterar a alegria de um viver entregue ao cantar como bem
o deseje a alma vivente em uma sério-cômica apologia à construção de um viver alheio às
possibilidades de perder ou ganhar um lugar no ceu:
Demônio
Todo o cantar alivia,
e todo o folgar alegra
toda a branca, parda e negra
tem sua hora de folia:
só tu na melancolia
tens alívio? canta aqui,
e torna a cantar ali,
que desse modo o praticam,
os que alegres pronosticam,
Bangüê, que será de ti?
(OC, I, p. 74)
O Demônio assume, então, o mero papel de validar o modo como a alma
conduz sua vida, apresentando as vantagens de permanecer sob a força da alegria oferecida
na recitação da estrofe anterior, um ato de bufonaria realizado quando deveria não ser um
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gesto de provocação de riso burlesco transluciferino; mas uma defesa diabólica da servidão
ao mal contraposta à resistência da alma cristã em se entregar ao fáustico deleito dos bens
mundanos. Como uma instância jurídica em ação para defesa da liberdade, fruída no levar
vida regalada em detrimento do temor nascido da previsão de possíveis conseqüências, o
diabo, pelo elogio à recompensa imediata de fruir como bem deseje os prazeres da vida
livre, apresenta contra-razões para rechaçar os motivos de inquietação apresentados nas
confissões de angústia. A alma apela para o símbolo maior de punição advinda da
permissividade humana de saciar seu desejo de saber, de poder, de ser: temerosa de fruir
para depois sofrer punição simula impossibilidade de algo fazer para não se lançar à entrega
dos deleites apresentados pelo demônio e apela para a crucificação 146. Bloom questiona a
factualidade da morte de Jesus no Calvário como consequência de sua não aceitação da
concepção de Jesus ser Deus, e, mais ainda, de sua inaceitabilidade relativa à existência de
um Deus suicida, conforme declara: ―nada no cristianismo teológico é para mim tão difícil
de aprender quanto à noção de Jesus Cristo enquanto um Deus que morre e revive‖
(BLOOM, 2006, p.19). A remissão gregoriana à crucificação, realizada para representar um
ideal de modo de estar no mundo não atingido pela alma – de fato, sequer perseguido –, é
alheia à discussão teológico-historiográfica tecida por Bloom, pois se limita a se referir ao
episódio do Gólgota para expressão de uma futura culpa gerada pelo não alcance de um ideal
de ser humano à altura do abnegado homem do sacrifício evangélico, fracasso a terminar
por ocorrido mediante a inequívoca incapacidade de a alma se ajustar aos padrões de quem
se submete à perene lembrança de um ideal de redentor alinhado a altíssimo padrão de
auto-negação humana. Javé fora o Deus ideal para as almas viventes israelitas, nos tempos
bélico-imperialistas; Jesus representa o Ideal para a alma, nos seus momentos de
angustiante culpa.
Alma
Eu para vós ofensor,
vós para mim ofendido?
146
Segundo Harold Bloom, ―gnósticos e mulçumanos insistem que Simão, o Cireneu, que
carregou a Cruz, foi crucificado em lugar de Jesus‖, além do que. ―há outras tradições, ainda
mais esotéricas, segundo as quais os soldados romanos foram subornados, e Jesus retirado da
Cruz ainda vivo‖ (2006, p.162.).
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eu já de vós esquecido,
e vós de mim redentor?
ai como sinto, Senhor,
de tão mau princípio o fim:
se não me valeis assim,
como àquele, que na cruz
feristes com vossa luz,
Meu Deus, que será de mim?
(OC, I, p.74-75)
A alma quer mesmo deixar-se levar pela entrega desmedida aos deleites ao
alcance de seu uso, enquanto ao demônio cabe prosseguir com as promessas de mais
prazer e de mais ainda ser válida a fruição quando da força da juventude em sua sede
demasiadamente humana de mais viver. A sugestão do usufruto dos bens do presente
durante a juventude, ressaltado por Qohélet, está nos lábios das demoníacas alegações
destinadas à alma, por si só já entregue, embora com temor, à fuga das tristezas de uma
vida regrada desde a juventude.
Demônio
Como assim na flor dos anos
colhes o fruto amargoso?
não vês, que todo o penoso
é causa de muitos danos?
deixa, deixa desenganos,
segue os deleites, que aqui
te ofereço: porque ali
os mais, que cantando vão,
dizem na triste canção,
Bangüê que será de ti?
(OC, I, p.75)
Produção poética cujo ―foco principal é a mortalidade‖, com o ―destino e o
acaso‖, considerados tal qual não o ocorre em outros livros bíblicos, fonte onde Harold
Bloom encontra a sabedoria (BLOOM, p.36, 2009), o discurso poético-sapiencial
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Eclesiastes, dublado em português pelo tradutor-transcriador Haroldo de Campos em
Qohélet: O-que-sabe=Eclesiastes, é recuperado pelo demônio de Gregório de Matos
para persuadir a alma a se entregar ao deleite dos anos joviais. Campos reelabora da
seguinte forma as palavras sapienciais atribuídas a Salomão:
Jovem: júbilo em tua juventude §
e bonança em teu coração § na infância dos teus dias §§
e vai § pelas vias do teu coração
§§
e pelas miragem dos teus olhos
§§§
E sabe §§
Por tudo isso § Elohim te fará vir a § a julgamento
E afasta o sofrimento § do teu coração §§
e aparta o mal § do teu corpo
§§§
Que a juventude e cabelos negros § névoa-nada
(CAMPOS, 2004, p.102)
Terminasse nesse ponto o discurso de sabedoria qohélitica, a alegação de tentação de diabo
Gregoriano teria nele inquestionável fundamento bíblico para o elogio ao deleito proferido
aos ouvidos da alma, pois a desobediência à ordem de aproveitar o vigor da juventude para
extrair dela prazer será levada a julgamento por Elohim segundo o teria dito Salomão. O
texto, embora prossiga sob influência das marcas normativas nascidas da necessidade de
adequação para inclusão no cânone bíblico, apresenta um capítulo final, deste que é o livro
bíblico mais apreciado por Harold Bloom, capaz de fazer o crítico calar profundamente,
conforme admite (BLOOM, 2009, p.41e p.42):
E recorda § o teu criador §§
nos dias § de tua juventude
§§§
Antes que venham § os dias ruins
§§
e se avizinhem os anos §§§ dos quais dirás
§§
neles para mim § nenhum prazer
Antes § que se escureça o sol § e a luz §§
e a lua § e as estrelas
§§§
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E venham de volta as nuvens turvas § depois da chuva
(CAMPOS, 2004, p.103)
Bloom cita mais versos do trecho, o capítulo doze, do poema a ser, segundo
ele, lido até a memorização, percepção plausível, pois a influência normativa verificada pela
crítica não atenuou a beleza e a profundidade da expressão poética milenar. Se analisado
sob a mira de olhar capaz de se focar em cada verso com simultânea visão voltada ao
antecessor (a ordem para fruir a vida) e ao sucessor, a ciência do juízo de Elohim e a
lembrança do criador devem servir ao jovem para levá-lo a fruir uma vida de deleites, em
conformidade com a incentivada pelo demônio do poema de Gregório. Na ―flor dos
anos‖, nos dias do júbilo da juventude, não haveria, na concepção demoníaco-gregoriana,
espaço para a amargura de uma vida temerosa de fenecer em um futuro de danação, como
também vai mostrado na expressão divino-sapiencial. Espanta-se o demônio diante da
angústia confessada pela alma advinda de um senso de autopunição pelo apreciar os
prazeres.
Como antigo anjo de luz no coração de quem nasceu a sanha por mais poder e
por mais saber, agente de disseminação na humanidade desses quereres, conforme sua
construção cristã, baseada na leitura normativa não literária do relato javista do Gênesis, o
demônio é o único referente – exógeno ao texto, diga-se -, para o qual um dedo ao
percorrer os versos poderia apontar. Antes de pensar a próxima estrofe nesses termos já
apresentada, importa um aparte sobre o pensamento de Harold Bloom, tomado como
norte para a leitura que se vai construindo. Se a Bíblia hebraica é obra artística antes de ser
escritura sagrada, então os autores cristãos em nada erram ao dela se apropriarem para criar
a Bíblia cristã. Do ponto de vista composicional é uma arquitetura por demais complexa
tornar um Deus humano guerreiro em um Deus Pai bondoso, feliz por ter seu filho
unigênito crucificado, um humano Deus suicida pelo propósito de cumprir os planos do
seu Pai em um conjunto de obras com quatro narrativas da vida do filho, primeiras
consequências de sua morte, cartas sobre ensinamentos sobre a religião nascida de seus
ensinamentos e um grande poema escatológica com seu ressurgimento divino-fantástico.
Nesse sentido, vale ser relativizado o amargor de Bloom em relação à apropriação dos
escritores neotestamentários da Bíblia hebraica a despeito do uso tendencioso realizado da
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literatura por eles tomada posse para fins de torná-la um Antigo Testamento, cuja força
poética Harold Bloom não deixa de reconhecer em seus comentários, por exemplo, às
narrativas da vida de Cristo, registrado em seu Jesus e Javé: os nomes divinos (BLOOM,
2006). Voltando ao poema, a alma menciona o primeiro ofensor de Deus, pela construção
cristã, o anjo caído chefe dos demônios, ou o demônio em si:
Alma
Quem vos ofendeu, Senhor?
Uma criatura vossa?
como é possível, que eu possa
ofender meu Criador?
triste de mim pecador,
se a glória, que dais sem fim
perdida num serafim
se perder em mim também!
Se eu perder tamanho bem,
Meu Deus, que será de mim?
(OC, I, 75)
A alma construída por GM para o poema não tem reverente precisão
dogmática em relação às informações bíblicas, mas faz uma livre apropriação da literatura
sacralizada. A Bíblia, no discurso de Ezequiel, em poema interpretado como referência à
queda de Lúcifer, segundo a Nota da Escola Bíblica de Jerusalém (BJ p.1520), retrata o anjo
rebelde como um ―querubim cintilante‖ antes de contra Deus voltar-se, segundo lê o texto
a tradição cristã, desde quando passa a pôr em prática a construção de Lúcifer como anjo
caído personificador do mal, conforme ensinam Bloom (2006) e Stanford (2003), baseados
em suas pesquisas. Em uma passagem de Presságios do milênio, Harold Bloom ressalta a
participação de São Paulo no processo de demonização do Satanás de O livro de Jó e
apresenta um enfrentamento à impossibilidade aritmética de calcular o número de
demônios, ressaltada por Borges e Guerrrero:
João Evangelista, no capítulo 12 de seu Apocalipse, diz que caiu
um anjo em cada três, enquanto Gustav Davidson, em seu
delicioso A Dictionary of Angels [Dicionário de anjos], cita um bispo
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do século 15 que estabelece o número dos caídos na substancial
soma de 133.306.608. Essa cifra teria apavorado os primeiros
rabinos, pois eles seguiam a Bíblia hebraica ao não atribuir
nenhum impulso mau aos anjos, para os quais nenhuma lei divina
teria sido demasiado severo, sem dúvida outro motivo por que
São Paulo tanto detestava os anjos.
[...]
Na medida em que o cristianismo é essencialmente paulino, pouco
uso tem para anjos virtuosos. O que Paulo e o cristianismo
precisavam era de anjos caídos, em particular do chefe deles,
Satanás. Não devemos esquecer nunca que, na Bíblia hebraica,
―Satanás‖ não é um nome próprio. No Livro de Jó, o leitor
encontra ha-Satan, ―O Satanás‖, que é um título da corte
equivalente ao nosso ―promotor público‖. Como um dos b’ne
Elohim, ―filhos de Deus‖, o Satanás é um ser divino ou anjo, malak
Javé, ou representante diplomático de Deus. Seu título significa
alguma coisa como ―agente barrador‖: é um adversário autorizado
dos seres humanos. Em grego, o agente barrador é um diabolos, e
assim Satanás se tornou diabólico. (BLOOM, 2006, p. 55-56)
Harold Bloom apóia-se nas pesquisas de Norman Cohn para afirma que, para alcançar o
cristianismo ―os nomes dos anjos vieram da Babilônia, e a natureza má dos anjos caídos, da
Pérsia‖, e passaram antes pela traição judaica apócrifa, de modo que ―ironicamente,
Zoroastro, e não o javista ou Isaías, é o autêntico ancestral de são Paulo e de Santo
Agostinho‖ (BLOOM, 2006, p.54-55).
Querubins foram seres guardiões postos à porta do jardim do Éden para
protegê-lo do alcance do homem, conforme registrado no capítulo três do livro de
Gênesis. A alma expressa medo de se igualar ao ―serafim‖ em sua ofensa de tudo poder
pela total falta de compromisso com regras estabelecidas pelo Criador. Os serafins são
seres celestes descritos por Isaías como detentores de seis asas, empregadas, segundo o
relato fantástico do capítulo seis do livro do profeta, para voar e para reverenciar Deus. São
cantores-poetas tais anjos: Isaías testemunha com ouvidos e olhos seu contar poético:
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Santo, santo, santo é Iahweh dos exércitos,
a sua glória enche toda a terra.
Gregório de Matos de modo algum passa incólume a essa construção social
demonizadora de satanás, realizada pelo cristianismo, como se percebe em outro poema,
elaborado como indicado no códice de James Amado, com propósito de homenagear uma
autoridade em estado de enfermidade. Um poeta se apresenta para compor versos com
remissão a Apolo e a Tália para expressar modéstia relativa ao seu cantar encomiástico. O
texto encerra a seção dedicada aos homens de bem da Crônica do viver baiano
seiscentista:
1 Oitavas canto agora por preceito,
Sem que na oitava possa diligente
Louvar as excelências de um sujeito,
Que pode ser em tudo o melhor Lente:
Mas como em mim não pode ser perfeito
O canto, ficará menos cadente
A música de Apolo, e de Talia,
Que não há cantar bem sem melodia.
[...]
6 Deixem-se os Gregos já do seu Eliano,
Condenam a silêncio um Xenofonte,
Não louve Alexandria Herodiano,
Que na Bahia tem Timocreonte:
O qual pode ensinar Quintiliano,
Camões, Terêncio, Ênio, Anacreonte,
Platões, Anaximandros, e Musés,
Acusilaus, Priscianos, e a Timéus.
(OC, I, p.189-190 e 191)
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Após o desfilar de filósofos e personagens gregos, junta-se à convivência
comum o ―decrépito invejo‖ Lúcifer, segundo a tradição cristã, anjo ambicioso responsável
pela origem do grande conflito bíblico. O texto bíblico interior ao fragmento de poema a
seguir tem sua leitura polemizada por Harold Bloom:
7 Nos anos climatéricos glorioso
Vosso nome será tão dilatado,
Que suba, onde o decrépito invejoso
O veja nas estrelas colocado:
Sereis novo Planeta luminoso,
E Sol em nova esfera sublimado,
Que, a quem o mundo singular aclama,
Só descansa no céu com ele a fama.
(OC, I, p.191)
O texto bíblico recuperável pela leitura dos versos, discutido por Bloom
segundo a tradução de Rei James, encontra-se no capítulo quatorze, versos de doze a
quinze, do livro do profeta Isaías:
Como caíste do céu,
ó estrela d‘alva, filho da aurora!
Como fostes atirado à terra,
vencedor das nações!
E, no entanto, dizias no teu coração:
‗subirei até o céu,
acima das estelas de Deus colocarei meu trono,
estabelecer-me-ei na montanha da Assembléia,
nos confins do norte.
Subirei acima das nuvens,
tornar-me-ei semelhante ao altíssimo‘
E, contudo, foste precipitado ao Xeol,
nas profundezas do abismo‖.
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(BJ, p.1276)
O fragmento acima está configurado segundo a tradução da Bíblia de
Jerusalém e seus editores elaboram nota para esclarecer o sentido dessa ―sátira ao rei da
Babilônia‖. À Vulgata o leitor é levado a voltar sua mente para aderir a uma interpretação, a
mais aceita pela tradição católica, para as palavras do Deus poeta, já que foi Iahweh o autor
dos versos. Segundo a referida nota, os versos em que se divide o trecho acima:
parecem inspirar-se em modelo fenício. Em todo caso,
apresentam vários pontos de contato com poemas de Râs-Shamra:
a estrela d‘alva e a aurora são duas figuras divinas; a montanha da
Assembléia é aquela em que os deuses se reuniam, como no
Olimpo dos gregos. Os padres interpretam a queda da estrela
d‘alva (Vulg. ―Lúcifer‖) como a do príncipe dos demônios (BJ
p.1276).
A abordagem dos textos bíblicos da Escola Bíblica Francesa responsável pela
tradução da Bíblia de Jerusalém (BJ), autora das notas traduzidas para o português para a
edição brasileira da BJ, é a de literatura elaborada com raízes em diversas tradições. A
poesia de Gregório de Matos deu o calor do novo mundo ao legado literário milenar
elaborado e reelaborado ao longo das eras. A vulgata assim traduz o trecho a que se refere a
nota dos estudiosos franceses:
Quomodo cecidisti de caelo,
Lucifer, qui mane ariebaris?
Corruisti in terram,
Qui vulnerabas gentes?
Qui dicebas in corde tuo:
In caelum conscendam,
Super astra Dei
Exaltabo solium meum;
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Sedebo in monte testamenti,
In lateribus aquilonis;
Ascendam super altitudinem nubium,
Similis ero Altissimo?
Verumtamen ad infernum detraheris,
In profundum laci.
(VULGATA, p.690)
Harold Bloom, em seus Presságios do milênio, ao discutir angiologia, tece
esclarecedor comentário sobre a construção do diabo na Bíblia cristã quanto à passagem
ensejadora da presença dele fragmento presente na poesia de Gregório:
Embora seja sempre surpreendente compreender que na Bíblia
hebraica não há anjos caídos, eles na verdade não são uma idéia
judaica durante o longo período de composiçã
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