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MÃES DE CRIANÇAS ABRIGADAS E A QUESTÃO DE GÊNERO
Denise Jesuína Faria – (UNESP – Franca)1
Neide Aparecida de Souza Lehfeld – (UNESP – Franca)2
Vanessa de Oliveira – (UNESP – Franca)3
Aos nos propormos a abordar o tema que se refere a mães de crianças e
adolescentes abrigados, um dos elementos decorrentes e possíveis de reflexão diz
respeito aos aspectos ligados à construção social do gênero feminino: o papel da
mulher na sociedade contemporânea enquanto mãe, trabalhadora, esposa e,
sobretudo, enquanto mãe que “fracassa” em seu dever “natural” de proteger, cuidar,
criar e educar os filhos.
Inicialmente, nesta proposta de análise, entendemos ser necessário, antes
de falar sobre a figura materna construída e instituída socialmente, conhecer sobre
as transformações ocorridas na família, dos casamentos por grupos até a família
burguesa, buscando compreender o papel feminino nas relações privadas, ou seja,
no âmbito familiar.
As leituras dos pensadores críticos como Marx, Lênin e Engels trazem a
idéia de que as relações entre os sexos são instituídas e construídas socialmente.
Na pré-história, os casamentos ocorriam por grupos, com o direito materno
ocupando forte poder, pois a descendência era contada apenas na linha feminina,
sendo o tio materno a figura masculina familiar à criança.
Engels descreve a família sindiásmica, ocorrida no período da barbárie, em
que um homem vive com uma mulher, mas a poligamia e a infidelidade ocasional
são direitos masculinos. Há a exigência de fidelidade feminina com a punição cruel
em caso de adultério. Nessas famílias, os filhos pertenciam exclusivamente às
mulheres.
Já a família monogâmica nasce a partir da necessidade de ter filhos
advindos de paternidade incontestável, servindo os filhos como herdeiros diretos das
propriedades acumuladas pelo pai. A monogamia era exigida apenas das mulheres,
através da submissão de um sexo ao outro. Nesse modo de família, o adultério
feminino é uma instituição social fatal, proscrito, punido com rigor e impossível de
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ser suprimido. A legislação vigente era o Código Napoleão que afirmava que a
criança concebida durante o casamento tem por pai o marido.
O surgimento do patriarcado enquanto sistema de dominação-exploração
traz, dentre outros aspectos, as questões do modo de produção. Tal sistema é
constituído por um grupo, que envolve outros parentes, amigos, pessoas próximas e
criados que, posteriormente, foi transmutado na família burguesa/nuclear/moderna.
A família nuclear composta por pai, mãe e filhos, resulta de profundas
transformações sócio-econômicas ao longo dos séculos XVI e XVIII. Neste contexto
vamos observar que a dominação do pai permaneceu constante até o final do século
XIX, quando o poder paterno se viu em decadência. Julgado fraco, o pai teve seu
papel complementado pelo Estado.
Exemplo deste contexto foi quando, em 1889, entram em vigor na França,
leis que proibiam aos pais considerados indignos de infligirem a seus filhos castigos
injustos, podendo perder seus direitos de pai.
Aproximando do contexto das famílias brasileiras, vamos observar que,
associados às modificações ocorridas de forma geral na sociedade, decorrentes do
desenvolvimento econômico, político, cultural, entre outros; temos que acrescer fatos
históricos de nossa realidade que interferem também na construção das famílias
brasileiras.
Alguns pressupostos presentes no processo sócio-histórico da formação de
nossa sociedade precisam ser considerados, quais sejam: a imposição da cultura
européia, a escravidão de negros e o descaso e desvalorização das crianças
provenientes de classes pauperizadas, situação que permanecesse até os dias
atuais.
Desde o Brasil colonial, há diversos tipos de configuração familiar, sendo
predominante e aceita socialmente a família patriarcal caracterizada pelo matrimônio
civil e religioso, com legitimação social e com a finalidade de transmissão de
herança aos filhos “legítimos”.
Em tal família, o papel paterno é exercido de forma onipotente, tendo o pai
direito absoluto nas decisões referentes ao filho, enquanto a mãe recebia auxílio de
terceiros nos cuidados com a prole como, por exemplo, as “amas de leite”, que eram
responsáveis pelos cuidados com crianças em tenra idade.
As crianças das classes pauperizadas eram marcadas pela ausência da
figura paterna, pois eram filhos advindos de uniões efêmeras e passageiras. O
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senhor de escravos poderia ser um potencial substituto à figura paterna, mas não
assumia tal função, na medida em que era distante e detentor do poder de mando.
Já no Brasil republicano, com o advento do capitalismo em sua fase inicial,
aparecem intensas modificações nos papéis parentais, que são redefinidos a partir
de transformações sociais, econômicas e políticas no contexto mundial.
Importantes alterações nas relações familiares ocorrem através da transição
do modelo familiar patriarcal para o modelo burguês de família nuclear, em que as
relações intrafamiliares tinham o objetivo de se tornarem cópia fiel das relações
entre as classes sociais.
As transformações na instituição familiar se deram a partir de processos de
caráter histórico e não natural, em que os homens exercem o domínio-exploração
sobre as mulheres, portanto, compreendemos que os sistemas de sexo/gênero são
produtos da atividade humana histórica, pois o gênero se constrói-expressa através
das relações sociais.
A máxima de Simone de Beauvoir, em seu livro o Segundo Sexo (1949), diz
que “não se nasce mulher, torna-se mulher” em alusão a que os comportamentos
dos sexos advêm de construções sociais que ditam como ser mulher e como ser
homem em determinada sociedade e época.
Alguns aparelhos ideológicos do Estado, como a religião, incentivam o
imaginário popular a, através de simbologismos, ter representações femininas
contraditórias e excludentes: “santa” (Virgem Maria) e “puta” (Eva que levou Adão a
cometer o pecado).
Conceitua-se representação enquanto o reconhecimento do eu no outro, é o
pensar-sentir a vivência. De acordo com SAFFIOTI, “cada ser humano é a história
de suas relações sociais. Ora, um ser humano não entra em relação com apenas um
OUTRO, mas com incontáveis OUTROS” (1992, p. 210) sendo, portanto, um ser
relacional e histórico.
Estamos produzindo e reproduzindo a vida real, a diferença é a base para a
construção do poder e a mulher é um ser marcado pela diferença que é construída,
atribuída e identificada.
No
século
passado,
em
decorrência
de
diversas
transformações
socioeconômicas, a mulher adentrou ao mercado de trabalho e passou a contribuir
financeiramente para a manutenção do lar e dos filhos, se sobrecarregando
triplamente nas tarefas - filhos, marido e emprego.
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Com o capitalismo, recria-se na fábrica a mesma forma de hierarquia social
característica do patriarcado sob a chefia masculina. De 1970 a 1980 houve a
elevação da taxa de participação feminina no mercado de trabalho, devido, dentre
outros fatores, ao empobrecimento da população e à degradação das condições de
vida.
Dados levantados pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1980
indicam que as mulheres eram as responsáveis por realizar dois terços do trabalho
mundial, mas obtinham apenas 10% da renda mundial e detinham 1% da
propriedade, conferindo às mulheres a condição de as mais miseráveis entre os
pobres do mundo.
A igualdade entre os sexos não se delimita apenas pela inserção da mulher
no mercado de trabalho, pois este não significa necessariamente a libertação
feminina. De modo geral, as mulheres continuam a ocupar posições auxiliares em
uma sociedade dominada pelos homens.
Na atualidade é possível observar na mídia e em alguns outros segmentos
sociais, sobretudo na área de medicina, a proposição do retorno da mulher ao lar, às
atividades domésticas e cuidados com os filhos, justificando que os filhos em tenra
idade precisam da presença dos pais, sobretudo da mãe.
E, nesta perspectiva, nos propomos a pensar a mulher enquanto mãe que,
diante do abrigamento de seus filhos, se transmuta de cuidadora a negligente.
Entendemos que “os papéis de pai, mãe e filho são construídos de acordo
com cada época e cultura, respondendo assim a necessidades sociais (específicas)”
(SILVA, 2005, p. 17).
Histórica e socialmente, as meninas são educadas, desde a infância, a
serem cuidadoras e, quando se tornam mulheres, são cobradas a serem as
responsáveis pelo cuidado do lar, transfigurando-se na figura central do espaço
privado, pois conforme destaca Valente (2007, p. 95) “é na família que a ordem
sociocultural é reproduzida e as relações de gênero são atualizadas em todas as
dimensões, seja no trabalho, no exercício da sexualidade ou nas relações de
cuidado”.
A maternidade, construída pela sociedade burguesa, nos remete à idéia de
que é indispensável para a realização feminina ser mãe, trazendo o conceito de que
só se é mulher verdadeira a partir do momento em que gera e cria filhos. Assim
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podemos indagar: é uma faculdade natural amar sem restrições e cuidar sob
quaisquer condições da criança que concebeu?
Passando
pelo
estigma
da
mãe
solteira
e,
posteriormente,
pela
incapacidade de ter condições socioeconômicas e/ou familiares para cuidar de filhos,
a mãe que tem seu filho ou filhos abrigados passa por diversos tipos de
preconceitos.
Partindo-se do pressuposto de que mães que possuem seus filhos em
situação de abrigamento não são, a priori, boas cuidadoras, mas tornam-se assim
diante de circunstâncias familiares, psicossociais, políticas e econômicas.
Na obra de Engels “A situação da classe trabalhadora na Inglaterra”,
segundo Venâncio (1980, p.74) traz que
“a negligência de todos os deveres
domésticos, a negligência, sobretudo, em relação às crianças é demasiado
freqüente entre os operários ingleses e é provocada pelas instituições sociais
existentes”. O mesmo autor segue destacando que na obra de Marx, o Capital, há
referências de que:
[...] as crianças são negligenciadas, mal-tratadas, mal-nutridas, às
vezes alimentadas com opiatos, abandonadas pelas suas mães, que
chega a sentir por elas uma aversão desnatural. Muitas vezes são
vítimas de fome ou do veneno. (VENÂNCIO, 1980, p. 82).
Nos dias atuais, tempos marcados por crises econômicas, altas taxas de
desemprego, depressão do sistema, que afetam, sobretudo as classes pauperizadas
e seus filhos, os quais têm seus direitos violados tanto no âmbito familiar como no
social e político.
Em uma breve aproximação do número de abrigamentos ocorridos na
Comarca de Orlândia/SP de 2005 a 2008, em um total de vinte e sete ocorrências, é
possível observar que os fatores motivadores dos abrigamentos estiveram
relacionados a abandono, negligência e alcoolismo/drogadição materna, pois
embora as crianças tenham a paternidade reconhecida em 67% dos casos
analisados, a presença paterna nos cuidados efetivos dos filhos é pouco expressiva.
Qual a história das famílias de crianças abrigadas? Foi propiciado a essas
mães, pais, avôs, tios falarem sobre sua trajetória de vida que, provavelmente, foi
marcada por várias formais de violência (interpessoal, no mundo doméstico, mundo
280
da rua), além de usar da violência educativa para “enquadrar” o filho em
determinado padrão de comportamento?
É necessário buscar ultrapassar o imediatismo de “julgar” as famílias,
sobretudo
as
mães,
no
âmbito
da
responsabilidade
e
responsabilização
individual/familiar e nos indagar: “Onde situar aquela mulher que já cria sozinha
algumas crianças e que não recebe auxílio de qualquer espécie, seja moral, afetivo
ou econômico?” (MOTTA, 2008, p. 60).
A ausência de políticas públicas de atendimento a famílias cujos filhos
estejam abrigados, sobretudo de fortalecimento da mãe que cria e educa seus filhos
sozinha é uma realidade em nosso país.
É de suma importância a implantação de ações nas três esferas de governo
quanto ao planejamento e execução de políticas públicas de atendimento à mulher,
como exemplo, o Programa Cidadania e Efetivação de Direitos das Mulheres – PPA
2008/2011, que abrange as seguintes áreas: fortalecimento da cidadania e ações de
maior abrangência; trabalho; educação e saúde, que engloba a incorporação dos
direitos sexuais e reprodutivos nas políticas de saúde.
Embora não dispomos, no momento, dados sobre a idade das mães das
crianças e adolescentes abrigados na Comarca de Orlândia/SP no período
mencionado, quando tiveram a primeira gestação, pressupomos que foram mães
jovens, sem apoio de um companheiro ou de uma rede familiar que possibilitasse a
permanência das crianças no lar de origem em condições adequadas.
Na esteira desta reflexão é possível pontuar sobre a gravidez na
adolescência, o censo demográfico de 1991 e de 2000 demonstra a reversão da
taxa de natalidade de jovens entre 15 e 19 anos, pois houve um aumento em 1990
devido a fatores como maior liberdade sexual, desvalorização da virgindade, início
da vida sexual mais precoce, falta de planejamento familiar, dentre outros.
Avalia-se que o declínio dessas gravidezes a partir de 2000 se deve, dentre
outros fatores, a campanhas de prevenção de doenças sexualmente transmissíveis
(DST), estratégias da política de saúde reprodutiva e educação sexual nas escolas.
A efetiva implantação e execução de políticas públicas é urgente e
necessária, a fim de capacitar essas mulheres a criarem seus filhos, trabalhar e
continuar os estudos, sobretudo quando os motivos do abrigamento ocorreram por
motivos externos (falta de condições de habitação, renda, pressão familiar e outros),
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mas não desprezando as motivações internas (idade precoce, despreparo para a
maternidade).
Assim, ao aproximarmos de situações que envolvem o abrigamento de
crianças e adolescentes e sua relação com a suposta negligência das mães, é
preciso considerar o contexto vivenciado em um âmbito histórico perpassando as
transformações ocorridas na instituição familiar desde o período pré-histórico até o
presente momento que desenharam o papel feminino na sociedade e na família.
Considerar ainda que a mulher passou de detentora exclusiva do poder
sobre os filhos, nos casamentos grupais até a família burguesa, em que trabalha fora
e dentro do lar, se sobrecarregando de funções e tarefas.
A maternidade, enquanto construção social, dita às mulheres o “dom natural
de amar incondicionalmente seus filhos”, mas, ao observarmos a realidade, nos
deparamos com mães que não conseguem sozinhas cuidar adequadamente de si e
de seus filhos, gerando situações de negligência, drogadição/alcoolismo e abandono
que culmina no abrigamento dos filhos.
Observamos algumas iniciativas do Estado de apoio a mulheres no que diz
respeito aos direitos reprodutivos, entretanto ainda são frágeis as políticas públicas
que possam fortalecer as família e, em especial, as mães que têm seus filhos em
situação de abrigamento. A fim de poder reavê-los em sua família de origem o mais
breve possível.
Marx dizia que as mulheres deveriam partir da maternidade individual para a
social e que o grau de emancipação feminina seria o grau de emancipação da
sociedade, porém, em tempos atuais, tanto a maternidade social como a
emancipação feminina carecem de investimentos para que sejam uma realidade.
As reflexões realizadas nesse artigo apontam que as mulheres não podem
ser culpabilizadas individualmente pela condição de abrigamento de seus filhos, uma
vez que a insuficiência de políticas públicas de apoio a essas mães é fator
imperativo no aumento do número de crianças abrigadas.
Pensamos que o caminho a ser trilhado é longo e árduo, porém necessário
e possível com vistas a garantir, a todas as mulheres e a seus filhos, direitos sociais
mais amplos, além de melhores condições de trabalho e de salários.
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¹Assistente Social do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – Comarca de Orlândia; Mestre em Serviço
Social pela Faculdade de História, Direito e Serviço Social – UNESP - Franca, aluna especial do doutorado junto
ao Programa de Pós Graduação em Serviço Social da Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho – UNESPFranca, E-mail: [email protected]
² Professora livre docente, coordenadora do Curso de Serviço Social da Universidade de Ribeirão Preto
UNAERP; professora do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Estadual Paulista
UNESP - Franca, E-mail: [email protected]
³ Assistente Social do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – Comarca de Orlândia; aluna regular do
mestrado junto ao Programa de Pós Graduação em Serviço Social da Universidade Estadual Paulista – UNESPFranca, E-mail: [email protected]
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