No Último Degrau da Vida: Um Estudo no Asilo Barão do Amparo em Vassouras
No Último Degrau da Vida: um Estudo no Asilo Barão do
Amparo em Vassouras
Maria Elisa Carvalho Bartholo
Professora de Sociologia e Antropologia
da Universidade Severino Sombra
Resumo
O envelhecimento humano não
se limita a aspectos físicos e biológicos.
Ele é indissociável de uma dimensão
sócio-cultural. Há tantas velhices quantas
identidades culturais. Na moderna
sociedade de consumo contemporânea
envelhecer significa exclusão de uma
instituição-chave, o mercado, que se
afirma através de uma progressiva
juvenização. Os idosos reclusos em asilos
vivem essa exclusão do modo mais agudo.
A dimensão mais grave desse processo é
a expropriação da memória. O presente
trabalho busca se contrapor a essa
negação, afirmando pela atitude dialogal
o respeito à alteridade do idoso. Nesse
empenho questões que dizem respeito à
generalidade da condição do idoso na
moderna modernidade dita globalizada
são referidas à situação concreta da vida
vivida dos internos do Asilo Barão do
Amparo na cidade de Vassouras, Estado
do Rio de Janeiro.
Palavras-chave
velho - velhice - envelhecer - memória - condição humana
R. Mestr. Hist., Vassouras, v. 5, p. 111-142, 2003
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“No melhor e mais forte da vida não passou de um
temerário; assim devemos esperar de sua velhice não somente
as imperfeições há muito arraigadas, como também os
desregramentos caprichosos que os anos enfermos e coléricos
trazem consigo”.
William Shakespeare (Rei Lear)
“Sei que estou no último degrau da vida, meu amor”.
Nelson Cavaquinho
1. Olhando nos olhos da irmã velhice
Tenho como objetivo neste artigo fazer alguns questionamentos
a respeito da velhice, tendo como referência uma pesquisa por mim realizada
no asilo Barão do Amparo, em Vassouras, Rio de Janeiro. A questão
que imediatamente se coloca é a tentativa de responder à pergunta: o que
entendemos por velhice?
As concepções correntes na sociedade contemporânea, tanto
da parte de especialistas (acadêmicos ou não) como as formuladas pelo
senso comum sobre o que seja a velhice se assentam sobre premissas e
pressupostos que podem configurar pré-conceitos, quer seja no sentido estrito
da palavra, ou se trate de condicionantes que definem o campo de vigência
e delimitam o poder explicativo dos conceitos e teorias propostos, ou ainda
no sentido mais vulgar de entendimento (clichês assumidos dogmaticamente
como verdadeiros e nunca sujeitos a discussão). Não é tarefa fácil aclarar
essas questões. Um esforço exaustivo exigiria que percorrêssemos de modo
mais aprofundado meandros das diversas disciplinas dedicadas ao estudo da
velhice, desde diferentes perspectivas, num trabalho de cunho eminentemente
teórico e epistemológico. E de antemão informamos ao leitor não ser esse
nosso intento. A perspectiva desde a qual o trabalho será desenvolvido é de
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cunho sócio-antropológico, tomando como pressuposto de nossa abordagem
não considerar a velhice como uma categoria estritamente natural.
Nos distanciamos assim de visões correntes na medicina geriátrica,
que partem de um determinismo biológico, que entende a vida como um
contínuo de etapas naturais e universais de desenvolvimento. Isso permite
que desde uma perspectiva geriátrica a velhice possa ser percebida como uma
doença a ser “curada” ou prevenida mediante terapias específicas. Por outro
lado nos aproximaremos da perspectiva da gerontologia, que se preocupa
com a dimensão cultural da velhice, e, reconhecendo que os processos físicobiológicos do envelhecimento são comuns a todos os seres vivos, assume que
eles possuem dimensões próprias conditio humana, onde se faz presente
um ser de “natureza biocultural”, onde os processos metabólicos não são
autarquicamente biofísicos, mas se prolongam nas dimensões imateriais da
realidade cultural (sócio-histórica, simbólico-comunitiva e ético-valorativa)
da vida humana.
Desse modo, na condição humana o envelhecimento e a velhice
são categorias construídas. Os seres humanos não apenas envelhecem,
eles significam culturalmente o envelhecimento que experienciam em suas
realidades físico-biológicas. Dito de modo mais simples os homens não
apenas ficam velhos, eles pensam em condições socialmente determinadas
seu envelhecimento, e ao pensarem-no produzem representações expressam
simbolicamente os diferentes momentos da vida, fixando-lhes valorações,
identidades e condutas correspondentes... É assim importante ressaltar que
“... as representações sobre velhice, a posição social dos velhos e o tratamento
que lhes é dado pelos mais jovens ganham significados particulares em
contextos históricos, sociais e culturais distintos”.1
É importante não esquecer que o dito aqui relativamente à velhice
não lhe é um atributo específico. A mesma forma de categorização ocorre
com respeito às outras fases da vida, como a infância, a adolescência e a
juventude. Isso implica que a simples idade cronológica não basta para definir
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identidades e comportamentos de um ser bio-cultural, que tem tipicamente
suas funções do metabolismo vital prolongadas na cultura, e, como apontou
M. Foucault (1985), bio-politicamente reguladas e ordenadas. As fronteiras
entre as idades da vida, são, na condição humana, fluídas e plásticas,
configurando-se de modo variado nas diferentes sociedades e épocas.
Percorrendo o caminho das representações sociais sobre a velhice
desde o século XIX até nossos dias, constatamos que suas representações não
se vinculam aos aspectos físicos do envelhecimento, mas sim que se entrelaçam
com a definição, culturalmente construída, de um modo de vida. Ariès (1981)
aponta que no século XIX, nas sociedades ocidentais urbanas, a velhice
era vivida como uma etapa onde ocorriam mudanças radicais no estilo de
vida e nos costumes. As maneiras de ser velho eram uniformes, facilmente
identificáveis e exigidas. Essas mudanças ocorriam, entre as mulheres, na
faixa dos 40 a 50 anos e, entre os homens, na faixa dos 50 a 60. A geração
nascida no final do século XIX, tal como enfatizou Ariès (1983) foi a geração
do progresso, caracterizada tipicamente pelo horror à velhice.
Num período de mais ou menos 120 anos as representações
sociais sobre a velhice, o envelhecimento e o velho se modificaram,
permanecendo como denominador comum, o fato de serem construídas
com base em classificações que estabelecem fronteiras. A aparência de uma
eliminação de limites entre as idades cronologicamente medidas, teve como
contrapartida o favorecimento das condições para a constituição de guetos,
e a intensificação da segregação dos idosos.
2. Falar com, não apenas falar de
É importante ressaltar que um olhar unilateral sobre a velhice,
reduzindo um fenômeno complexo a algum de seus atributos, ou um esforço
por homogeneizar a configuração do processo de envelhecimento, ambos
podem ser atitudes equivocadas que eclipsam a busca por uma compreensão
do sentido da velhice. Essa busca está no cerne daquilo a que a pesquisa
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tentou se aproximar. Nesse empenho nos baseamos na hipótese fundamental
que esse sentido nos pode ser mais acessível se logramos efetivar uma relação
dialógica com os velhos.
Como aponta Bartholo (2001), a antropologia filosófica de
Martin Buber tem no princípio dialógico seu fundamento. A obra prima de
Martin Buber, Eu e Tu (1977), seria assim parte de uma silenciosa revolução
copernicana, ocorrida nos anos vinte do século passado, que introduziu,
“... uma verdadeira migração do “lugar do pensamento”,
fundada na afirmação de que não é o sujeito a “chance
primordial do Ser”, mas sim nossa vulnerabilidade à alteridade.
Ou, de modo mais cortante: a afirmação de que, sem o Tu, o
Eu é impossível”.2
Para efeito da nossa pesquisa a perspectiva buberiana traz a
direta implicação de antes de ter os velhos como objetos de estudo, entrarmos
em relação com eles, nos colocando em disponilidade para escutar a palavra
que nos dirigem, sendo vulneráveis à verdade que ela nos quer desvelar. Essa
tentativa foi desenvolvida desde uma perspectiva situacional e específica:
A interlocução com quem vive o envelhecimento em asilos, é a situação.
Os velhos do asilo Barão do Amparo em Vassouras, são os interlocutores
específicos.
Nas sociedades da modernidade contemporânea vem sendo
construída a idéia da velhice e do envelhecimento como um empreendimento
privado, a ser baseado na afirmação da autonomia como valor mais alto,
entendida como referida ao estímulo constante de capacidades individuais.
A velhice se torna uma das faces do individualismo, que Louis Dumont
(2001) apontou como o denominador comum ideológico da modernidade
ocidental contemporânea, enraizada no triunfo bio-político do capitalismo. A
velhice se apresenta assim como mais um contexto de afirmação da vontade
autônoma do individualismo possessivo, a ser bem ou mal vivida segundo
uma métrica consumista. Desde essa perspectiva a velhice se constitui em
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clientela diferenciada de um marketing específico. As práticas relacionadas ao
atendimento dos idosos se despolitizam. A ênfase é a adequação de estratégias
de gestão de mercado e posicionamento de produtos, que induzem na
clientela comportamentos adequados. Esse processo soterra o desvelamento
do sentido da velhice em camadas sucessivas de práticas mercantilizadas.
Nossos interlocutores são tipicamente parte dos elementos descartados desse
processo. São pessoas que não puderam (ou quiseram) “envelhecer bem”, e
que desde a lógica da mercantilização permanecem como resíduos humanos,
descartados e inservíveis para uma mercantilização que se quer afirmar como
irrestrita e ilimitada. Ouvindo a voz dos resíduos humanos tentei identificar
elementos de aproximação ao sentido da velhice que se afirmam para além
das regras mercantilizadas do suposto bem envelhecer.
Seguindo critérios e normatizações do suposto bem envelhecer, as
sociedades modernas buscam oferecer aos idosos, percebidos como clientela,
diversas alternativas de comercialização de bens e serviços: atividades físicas,
lazer, centros de convivência e cursos. Nesse movimento criam-se novas
especialidades e especialistas, novos horizontes de profissionalização e novas
oportunidades de negócios. Não pretendemos caracterizar tais práticas como
intrinsecamente más. Apenas afirmamos a impossibilidade de toma-las em
si mesmas como desveladoras do sentido da velhice. Afirmamos, sim, que
se nos ativermos a elas esse sentido nos permanece oculto. Ainda que o
marketing e a diferenciação de produtos possam se apoiar sobre elementos
da verdade da velhice, não devem ser com ela identificados.
A formulação das hipóteses de trabalho se apoiou de modo
fecundo em proposições de Gusmão (2001), em particular em seu
questionamento fundamental:
“... seria o velho, tal como o selvagem do passado ocidental,
um ser destituído e dependente que necessita ter a si, seus
bens e a própria vida geridos por outrem (ou, para ser tão
radical, só por estes?). Poderia o velho, ou aquele que adentra
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o chamado terceiro ciclo, escolher um caminho próprio e ser
bom, ser feliz?”.3
A noção de tutela aqui proposta é a mais abrangente e inclui
as definições dos caminhos convenientes a serem seguidos. A tutela como
elemento constitutivo da velhice faz do envelhecer um processo eminentemente
adaptativo. O velho experiencia uma desqualificação de sua faculdade
decisória, que, no limite, conduz a uma eliminação de sua capacitação para
agir como sujeito ético, imposta por uma ordenação exterior. In extremis isso
implica a negação do envelhecimento como evento público e sua ocultação
no asilo. Não se adaptar é aceitar aproximar-se do louco.Vive-se assim
num contexto, onde consideramos ser cada vez menos possível o acesso ao
entendimento da velhice, do envelhecimento e dos velhos, uma vez que
silenciamos a expressão de seus termos próprios. A sociedade é um campo
de relações comunicativas onde “... pouco se vê e pouco se ouve o velho e
a velhice”.4
O questionamento que apresentamos aqui não se limita a discutir
a melhor maneira de viver o envelhecimento, definida a priori. Ele se foca
sobre a própria legitimidade desse apriorismo, e aponta para outras atitudes
que poderão criar espaços para a abertura de novas realidades. Em outras
palavras: um envelhecimento destutelarizado, não controlado, e no sentido
proposto no texto, “selvagem”, deve ser entendido como uma questão que
ultrapassa os limites dos simples processos biológicos e psicológicos. Segundo
Gusmão (2001) o cerne da questão é a aceitação ou contestação de “...
formas outorgadas de vivência no real”.5
O mundo moderno identifica na velhice descartada e inservível
para a acumulação capitalista, um elemento potencialmente subversivo da
ordem estabelecida. Conter o risco de uma irrupção potencial da ordem é
transformar a velhice em clientela de consumidores. Esse é um processo hoje
em curso, operado através do marketing de uma juvenização induzida, voltada
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a prolongar nos velhos o ímpeto consumista.
Mas os riscos subversivos da velhice são ainda mais radicais.
Os velhos são companheiros da morte. A velhice é a marca indelével da
mortalidade em nossas vidas. Por mais que os contemporâneos “milagres da
ciência” possam ter contribuído para elevar a expectativa de vida, a morte
permanece, diante dos anseios de onipotência do homem moderno, como a
expressão última de um limite para o controle do homem sobre a natureza.
Como situa Bartholo (1992) o homo industrialis da modernidade
contemporânea sofre de uma ilusão de onipotência,
“... que vigora na identidade de saber e poder, e transforma a
ingenuidade do pragmatismo num cinismo totalitário, o cinismo
de se impor que somente aquilo que está sujeito ao controle dos
ídolos modernos do dinheiro, das mercadorias, da ciência e
da tecnologia tenha direito a ser objetivamente existente nesse
mundo”6.
Mas nossa mortalidade se afirma como existente para além da
ilusão de onipotência. Diante do impasse imposto por nossa consciência da
finitude, as sociedades modernas buscaram um caminho de fuga, expulsando
a morte para fora da vida. E empurraram a morte para longe do olhar dos
vivos, para um segundo plano, oculto aos olhos que se prendem ao desenrolar
da vida normal das sociedades. É assim que, como nos aponta Elias (2001),
vivemos num mundo peculiar, pois “... nunca as pessoas morreram tão
silenciosa e higienicamente como hoje, e nunca em condições tão propícias
à solidão”7.
A velhice é a companhia cotidiana da morte, vivida numa
sociedade que a teme e dela foge, escamoteando as evidências de sua presença.
Nesse contexto a velhice precisa ser dissimulada, circunscrita aos limites
do gueto, ou afastada dos olhares. Ela se torna a velhice vivida nos asilos.
É assim que, como aponta Gusmão (2001) a velhice e o envelhecimento
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imbricam-se num processo contraditório, onde o velho “... transita entre ser
e não ser parte integrante das relações sociais, ter e não ter um papel que
diga de si e diga de sua experiência consolidada pela maturidade”8.
Na pesquisa busquei escutar a voz de velhos ocultos, asilados.
O termo asilo é tradicionalmente empregado com o sentido de abrigo e
recolhimento, usualmente mantidos pelo poder público ou por grupos religiosos.
A retórica corrente tenta amenizar a idéia de isolamento associada ao asilo,
com outras designações como lar, recreio, residência, casa de repouso, clínica
geriátrica. Os nomes enfatizam aspectos tais como as dimensões de família,
convivência, e terapêutica. Mas o denominador de todas as designações e
toda as instituições reais existentes, ricas ou pobres, bem equipadas ou não,
com grau de liberdade maior ou menor, é serem direcionadas a recolher
aqueles que têm seus vínculos sociais enfraquecidos.
Nos asilos de idosos vivem juntas pessoas velhas que nunca
se conheceram antes. A vida vivida é vivida em relações e como fruto de
relações. Na vida vivida são estabelecidos laços e vínculos afetivos. Não só
com a família, mas com um círculo mais ou menos amplo de amizades e
conhecimentos. Com o envelhecimento, esses laços gradativamente desfazemse. Os relacionamentos tornam-se mais restritos. As pessoas admitidas num
asilo, com exceção do caso estatisticamente atípico de casais, experienciam
uma radical ruptura de seus vínculos relacionais afetivos.
O asilado torna-se membro impositivo de uma nova comunidade
compulsória, convivendo cotidianamente, em condições de radical privação
de privacidade, com pessoas com as quais guardam quaisquer vínculos
afetivos histórico-pessoais. Independentemente da qualidade do atendimento,
necessariamente acontece o afastamento da vida normal e a reunião com
estranhos. Como situa Elias (2001), significa para o asilado viver a
irreversibilidade de perdas de vínculos afetivos, fazendo de seu tempo de vida
a condenação perpétua a desertos de solidão (ELIAS, 2001, p.86).
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A ruptura radical dos vínculos afetivos é a pré-condição de
um penoso processo adaptativo, onde, aceitar as normas e regulamentos, e
responder ao comportamento esperado, instauram-se como única realidade
possível. Mesmo para os que ingressam no asilo lúcidos e com certo grau de
autonomia, pode acabar sendo a estratégia adaptativa mais eficaz a regressão
ao comportamento infantil (ELIAS, 2001, p. 82).
Tentar compreender a experiência do envelhecimento dentro
dos limites de uma instituição, a partir dos depoimentos dos idosos, implica
estabelecer uma relação entre o pesquisador e os entrevistados. Esta relação
não é apenas a que se cria entre pesquisador e objeto de pesquisa, mas é,
antes de tudo, baseada em um vínculo de amizade e confiança. Este vínculo
não é somente fruto de empatia.
Como afirma Bosi (1999) a relação feita vínculo “... resulta de
um amadurecimento de quem deseja compreender a própria vida revelada
do sujeito”9 . No desejo de compreensão quem pesquisa é, simultaneamente,
sujeito e objeto. Sujeito, quando indaga, e objeto quando ouve e registra.
Sujeito e objeto que se fundem numa relação pessoal de interlocução, onde
o pesquisador está lidando com o tesouro de lembranças vitais da alteridade
do outro, sua memória.
A hipótese-diretriz de nossa interlocução nasceu de uma visita
ao olhar que a perspectiva biológica lança sobre a velhice, enfatizando a
identificação de uma característica fundamental da vida: as faculdades
cognitivas de raciocínio e memória. A idéia fundamental é que na velhice
essas características sofrem significativa deterioração, de modo que ser velho
é vivenciar essa perda no desempenho eficiente dessa função vital.
É usual a afirmação da medicina contemporânea de que o
envelhecimento afeta primordialmente “... a memória prospectiva e a evocação
livre e retardada de material verbal aprendido, preservando as lembranças
baseadas em pistas contextuais”10. No envelhecimento dito normal, mesmo
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sem a presença de doenças neurológicas, a capacidade de recordar fica
comprometida, ainda que somente este dado não seja suficiente, como nos
aponta Bosi (1999, p. 80) para se considerar obrigatória a instalação da
senilidade.
A nossa indagação fundamental foi: as ciências médicas
conseguirem minimizar, ou mesmo eliminar, os comprometimentos de funções
cerebrais associados ao processo de envelhecimento, preservando a memória e
o raciocínio, como produtos da atividade celular, seria isso condição suficiente
para alterarmos a relevância do comprometimento da memória como elemento
de base para a compreensão do sentido da velhice?
No esforço por respondermos a essa indagação, tomamos
como base a perspectiva proposta por Bosi (1999), que discute a memória
como fenômeno social, pois a “... memória do indivíduo depende do seu
relacionamento com a família, com a classe social, com a escola, com a Igreja,
com a profissão, enfim com os grupos de convívio e os grupos de referência
peculiares a esse indivíduo”.11
Como nos afirma Bosi (1999) só nos lembramos porque os
outros e a situação por nós vivida, no presente e em confrontação com os
outros, nos faz lembrar. Nossa tarefa de relembrar será tanto mais frutífera
quanto maior for sua relevância para a sociedade. Coloquei então duas
perguntas-chave : 1. são as lembranças dos velhos nas sociedades modernas
relevantes e positivamente qualificadas ou irrelevantes e desqualificadas?,
e 2. que valor tem para as sociedades modernas a socialização da memória
dos velhos?
Qualificar positivamente as lembranças dos velhos é um
discernimento ético-valorativo que ultrapassa o simples processamento
mecânico da torrente de informações que, no presente, apenas saturam a
fome de conhecer, pois “... incham sem nutrir, pois não há lenta mastigação
e assimilação”12. Incorporar a nosso empenho por conhecer, como um
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conjunto de lembranças significativamente valiosas a memória dos velhos,
implica ousar uma valoração. O que os velhos lembram não significa apenas
mais informações, mas expressa uma perspectiva que possui, em si, riqueza
e diversidade, e não se deixa reduzir aos cálculos e critérios de eficiência e
utilidade.
A memória dos velhos é expressão comunicativa de uma
vivência pessoal e vinculante, acessível aos interlocutores na relação dialogal,
uma vez que essa relação não se estabeleça em função de utilitarismos e
instrumentalidades. É fundamental reconhecer na alteridade desse outro
um valor mais alto. Um valor que independe de para que ele me sirva. Em
outras palavras: não há razão instrumental que justifique essencialmente
porque escutar o que os velhos nos dizem, se já sabemos qual é para nós a
utilidade dessa escuta.
Mas, se ouvirmos os velhos porque estamos interessados nessa
escuta e e somos vulneráveis a suas verdades, então, como nos diz Bosi
(1999), essa escuta pode ajudar a humanizar nosso presente, uma vez que
“... a conversa evocativa de um velho é sempre uma experiência
profunda repassada de nostalgia, revolta, resignação pelo
desfiguramento das paisagens caras, pelo desaparecimento de
entes amados, é semelhante a uma obra de arte. Para quem
sabe ouvi-la, é desalienadora, pois contrasta a riqueza e a
potencialidade do homem criador de cultura com a mísera figura
do consumidor atual”13.
A memória dos velhos constrói pontes comunicativas vivas com
o passado, feito humanamente história e cultura. A memória coletiva de cada
sociedade é indissolúvel das memórias das pessoas. Ela é elemento constitutivo
de sentido da identidade cultural, que é (precisa ser) constantemente
atualizada. Relembrar é viver. É uma função metabólico-vital, que a condição
humana prolonga na cultura. Quem relembra refaz, reconstrói com seus
olhos de hoje, as experiências do passado. E permitir aos velhos relembrar
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é abrir-nos possibilidades de enriquecimento da vivência social comum,
histórica, pois,
“... por mais nítida que nos pareça a lembrança de um fato
antigo, ela não é a mesma imagem que experimentamos na
infância, porque nós não somos os mesmos de então e porque
nossa percepção alterou-se e, com ela nossas idéias, nossos juízos
de realidade e de valor. O simples fato de lembrar o passado, no
presente, exclui a identidade entre as imagens de um e de outro,
e propõe a sua diferença em termos de ponto de vista.14”
3. Buscando ouvir a palavra dita
A pesquisa de campo foi desenvolvida com os residentes do asilo
Barão do Amparo, em Vassouras. A escolha do local deve ao fato deste ser
o asilo mais antigo e conhecido da cidade. A isso se agrega o fato de eu já
ter conhecimento prévio de suas instalações e de pessoas que lá trabalham
e residem.
O asilo Barão do Amparo, recentemente denominado “Lar”,
pertence à Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Vassouras, assim
como também é o caso do Hospital Eufrásia Teixeira Leite. Esta Irmandade
foi criada em 1852 e instalada no ano seguinte, tendo como primeiro
provedor, Pedro Correa e Castro, Barão do Tinguá. Antes da inauguração
do hospital, ocorrida em 1941, todos os atendimentos da Santa Casa eram
realizados nas instalações do atual asilo, na praça Barão de Campo Belo.
Quando comecei o trabalho de campo, em julho de 2001, havia
72 residentes. Ao finalizar, houve óbitos, ingressos e transferências, mas
o número total se manteve, coincidentemente, em 72, sendo 28 do sexo
masculino e 44 do feminino. A capacidade física de acolhida do asilo fixa
que o número total de seus residentes não deva ultrapassar 76.
A instituição recebe residentes, tanto isentos de pagamento como
também pagantes. O pagamento mínimo é no valor de dois salários mínimos
e meio e o pagamento máximo é de cinco salários mínimos. Atualmente, o
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total de pagantes está distribuído entre 2 homens e 13 mulheres. A instituição
também recebe colaboração espontânea de habitantes e comerciantes de
Vassouras. Mesmo os residentes isentos de pagamento, dependendo da
disponibilidade, também colaboram com alguma doação.
O asilo é de responsabilidade da Irmandade da Santa Casa da
Misericórdia de Vassouras, sendo administrado pelas Pequenas Irmãs da
Divina Providência. Estas se encarregam dos cuidados gerais e principalmente
se responsabilizam pela distribuição dos medicamentos prescritos por um
médico, que ali presta assistência voluntária duas vezes por semana. Alunos
do curso de fisioterapia da Universidade Severino Sombra, supervisionados
por uma professora, dão atendimento aos que precisam de exercícios. As
decisões mais importantes, referentes a questões financeiras e patrimoniais,
ficam a cargo da Irmandade e seus conselhos, diretor e provedor. Trabalhando
nos serviços da casa, alimentação e higiene dos residentes há 32 funcionários
e um voluntário.
As acomodações dos residentes são distribuídas de acordo com
as condições de pagamento. Há possibilidade de quartos individuais, de
quartos para duas pessoas, ou ainda de espaços para mais de 10 camas.
No pavimento situado no nível da rua, encontram-se os
quartos individuais e para duas pessoas. São os cômodos mais confortáveis
e arejados. Neles é possível um ambiente quase doméstico, com camas,
armários, poltronas, televisores. Não há nestes quartos padronização, nem
de mobiliário nem de decoração. Neste mesmo pavimento localizam-se a
clausura, a secretaria e a farmácia, além de uma sala de estar com televisão,
uma varanda para banho de sol e salas de refeição. Há também dois cômodos
coletivos para internos masculinos (com dez e dezesseis ocupantes em cada
um), uma capela e banheiros.
No andar inferior há três cômodos coletivos femininos, sendo que
apenas uma instalação tem boas condições de insolação e ar. Neste andar
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também há quartos para duas pessoas, embora sejam construídos de forma
improvisada, com divisórias, o que implica precária entrada de luz e circulação
de ar. Estes quartos, apesar do esforço das residentes em dar-lhes um aspecto
mais agradável e pessoal, contribuem para tornar a atmosfera lúgubre. Há
ainda uma sala de estar com televisão, uma sala de refeições bem ampla e
clara, cozinha, banheiros, lavanderia e um pequeno terraço. No pavimento foi
instalada uma “sala de aula”, onde um funcionário da prefeitura desenvolve
algumas atividades com cinco residentes do sexo feminino. Há também
um amplo espaço que, na época da pesquisa, se encontrava em condições
precárias, destinado à instalação de equipamentos de fisioterapia..
Os residentes do asilo seguem uma rotina definida pela
administração. Após acordar, entre cinco e seis horas, as pessoas aptas
a se locomoverem fazem a higiene pessoal e aguardam o café da manhã.
Já os acamados são atendidos em seus leitos pelos funcionários e pelo
voluntário.
O café da manhã é servido às 7h00, às 11h00 o almoço, às
15h00 um lanche (café com leite e pão), às 17h00 o jantar e, antes de
dormir, outro lanche. Entre o café da manhã e o almoço, os que residem no
andar de cima são levados ao banho de sol num amplo terraço, com vista da
cidade. Aqueles que se locomovem sozinhos fazem pequenas caminhadas
pelas ruas próximas ou algumas compras. No andar de baixo não há muito
espaço para banho de sol. A maioria dos residentes senta-se na sala de estar
ou numa pequena varanda, onde permanecem muitas vezes até a hora do
jantar. As residentes que freqüentam a “sala de aula” lá permanecem até a
hora do almoço. Duas delas, em cadeiras de rodas, ali recebem a refeição.
Após o almoço, alguns dormem e outros permanecem sentados em poltronas
nas salas de estar, em bancos nos corredores ou em suas próprias camas.
A rotina dos residentes inclui a visita do médico, às terças e
sextas- feiras, na parte da manhã. Os alunos da fisioterapia visitam o asilo
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Maria Elisa Carvalho Bartholo
às sextas feiras no mesmo horário do médico, apenas durante o período
letivo.
No procedimento de pesquisa adotado, o diálogo foi o elemento
mais fundamental. Nesse sentido começo o testemunho dos interlocutores
com a minha própria colocação, pois na relação dialogal não me é possível
assumir uma posição exterior e alheia. Como foi mencionado anteriormente
não encontrei dificuldades para iniciar a pesquisa, pois já conhecia pessoas
através de contatos prévios. A princípio não houve impedimento à minha
permanência nas dependências do asilo na medida em que eu me colocava
como mais uma voluntária que se dispunha a colaborar. Desta maneira não
sofri restrições de horários ou espaços, ou seja, tive livre acesso às áreas
ocupadas pelos residentes. Como optei por não declarar explicitamente os
detalhes da pesquisa à direção, alguns problemas surgiram já na fase final do
trabalho, quando os laços com os interlocutores estavam mais fortes. À medida
que o trabalho foi se desenvolvendo e as conversas se tornaram mais longas,
fazendo com que minha permanência junto aos residentes participantes fosse
mais assídua, deixando assim de lado a assistência aos outros idosos, percebi
uma mudança de atitude do pessoal administrativo.
A mudança acima referida foi lenta e gradativa, começando
com olhares de desconfiança até a verbalização da insatisfação com minha
presença. No período inicial de olhares e ouvidos atentos surpreendi uma
funcionária tentando ler de esguelha, o meu caderno de anotações deixado,
por um momento, sobre a cama de um dos residentes. A partir deste fato
comecei a constatar o aumento de uma certa irritação provocada pela minha
atenção aos residentes. Esta irritação transformou-se em hostilidade, onde
não me foi mais permitido permanecer além do horário de visitas, como
também fui advertida a não discutir com as “pessoas estranhas” sobre as
reclamações dos residentes e sim encaminha-las diretamente à administração.
Atribuo esta mudança na relação comigo menos a qualquer transgressão
de normas por mim do que à posição de interlocução que assumi. Nesta
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No Último Degrau da Vida: Um Estudo no Asilo Barão do Amparo em Vassouras
posição criou-se um tipo de cumplicidade, muitas vezes incômoda para
os funcionários, na medida em que ficavam desconfiados imaginando que
informações estavam-me sendo transmitidas e que poderiam repercutir mal
para “pessoas de fora”. Na verdade, aos olhos dos que trabalham no asilo, eu
fui uma “pessoa de fora”, potencialmente ameaçadora, com a possibilidade
de expor aspectos negativos da instituição. Um outro fator que contribuiu
para o incômodo e, talvez, o mais relevante, foi a minha intenção de romper
com a relação infantilizadora, recorrente entre adultos e velhos. A atitude
dialogal assumida requer reciprocidade, e pressupõe respeito à alteridade do
idoso. Isto se revelou fator desestabilizador numa instituição pautada por
padrões não-dialogais de relação com seus internos.
Apesar das pequenas dificuldades, de certa forma esperadas,
pude realizar a contento o trabalho. Os contatos com os residentes se
deram facilmente, pois há em meio a eles uma necessidade visceral de
comunicação. De aproximadamente dez pessoas com as quais mantive contato
selecionei seis que possuem características diversas no que tange à classe
social, nacionalidade, etnia, profissão. Apresento a seguir um resumo dos
depoimentos dos seis interlocutores, designados em letras de “a” a “f ”. Os
depoimentos foram transcritos na terceira pessoa, uma vez que não fiz uso
na pesquisa de campo de gravador e sim de anotações.
a) Idade: 88 anos, sexo feminino. Nacionalidade alemã e residente em
Mendes. Exerceu a profissão de enfermeira. Viúva com 3 filhos. Foi
trazida ao asilo pela filha com quem residia. Ocupa um quarto na ala
privilegiada da construção com acesso direto à sala de estar, ao terraço
e à direção. Não sofre nenhuma enfermidade mas tem movimentos
limitados, caminhando apenas com ajuda.
Nasceu em 1913 em Berlim e veio para o Brasil ainda jovem,
com a família, um pouco antes da segunda Guerra Mundial. Fez apenas o
ensino fundamental e trabalhou como enfermeira até casar-se.Casou-se com
um alemão que exercia a profissão de pintor.Tiveram três filhos: duas moças
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Maria Elisa Carvalho Bartholo
e um rapaz. Antes de vir para o asilo morava em Mendes com uma das
filhas.Diz não se lembrar porque veio para Vassouras. Alega ter tido sérios
problemas com o genro. Pessoas conhecidas da família afirmam que sofria
maus tratos. Ela afirma que sempre imaginou passar sua velhice num asilo
porque preza a sua independência. Mesmo assim sente-se infeliz por não
estar em sua casa, não podendo ser tão independente quanto desejava.
No asilo sente-se mal porque não consegue se relacionar com as
pessoas. Acredita que, por ser estrangeira, não é bem aceita pelos funcionários
e residentes. Conversa com poucas pessoas e declarou estar triste com a morte
recente de uma dessas pessoas. Tratava-se de uma senhora em cadeira de
rodas em conseqüência de amputação das duas pernas. Admirava a senhora
pela fato de estar sempre muito alegre e conformada. Diz que ser velho não é
ruim quando se tem uma família acolhedora. Pensa na morte com freqüência
e tem medo de morrer. Tem formação evangélica mas a religião não tem
peso e tampouco lugar de destaque em sua vida. O contato comigo a deixa
satisfeita pois pode falar em alemão.A sua reclamação constante é a falta de
notícias da família, que a visita muito raramente. Alimenta a esperança de
voltar para casa pois acredita que o relacionamento com o genro melhorou
nos últimos tempos.
b) Idade: 57 anos, sexo feminino, negra. Nascida na região e criada
por uma família do Rio de Janeiro. Foi trazida ao asilo pelo patrão.
Tem escolaridade baixa. Faz uso de cadeira de rodas.
Nasceu em 1944 em Piraí. Quando tinha sete anos de idade
sua mãe foi internada por problemas mentais. O pai uniu-se a outra mulher
e entregou a filha para uma família do Rio de Janeiro. Viveu com a família
Vital Brasil até completar 14 anos. Antes de sair da casa do pai sofreu
abuso sexual por parte de um irmão de criação, bem mais velho. Na casa
da família que a criou trabalhou fazendo serviços domésticos. Aos 14 anos
foi mãe solteira, tendo ficado grávida outras vezes de homens diferentes.
Casou-se, engravidou novamente, mas perdeu a criança porque o marido
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No Último Degrau da Vida: Um Estudo no Asilo Barão do Amparo em Vassouras
a espancava. De todos os filhos que afirma ter tido, criou apenas dois. Faz
um relato extenso de doenças. Foi trazida para o asilo por estar doente,
não podendo mais ser mantida pelo patrão, no sítio onde era caseira junto
com o marido. Nunca pensou na velhice. É religiosa, filiada a uma igreja
evangélica. Está impossibilitada de se locomover fazendo uso de cadeira
de rodas. Freqüenta todos os dias a “sala de aula”do asilo desenvolvendo
atividades de artesanato. Se diz muito conformada com sua situação pois
é “ o desejo de Deus”. Apesar disso nutre a esperança de se mudar para
uma casa de idosos que seria administrada por uma voluntária com a qual
mantém laços muito afetivos. Esta casa poderia ser conduzida nos moldes
de uma grande família.
c) Idade: 85anos, sexo feminino, branca. Nascida na Bahia, mas viveu
em vários estados em razão de sua atividade profissional. Viúva com
cinco filhos foi costureira e mágica. Procurou por conta própria a
internação pois ficou impossibilitada de viver sozinha. Escolaridade:
não completou o antigo curso ginasial. Diabética. Sempre leu muito
e escreveu, principalmente poesias.
Nasceu em 1916 em Valença, Bahia, numa família de quatro
irmãos. Cursou até o terceiro ano ginasial. Casou-se aos vinte anos, em Feira
de Santana, com um rapaz de 25 anos que exercia a profissão de mágico.
O marido, segundo conta, tinha sido menino de rua, e surpreendentemente
tornou-se um homem fino, educado, um verdadeiro cavalheiro, com alma
de artista. Ela ficou encantada por ele. Depois de casada viajou muito
acompanhando o marido por Minas Gerais e Bahia. Foi sempre uma mulher
habilidosa, sabendo costurar, bordar, dançar. Trabalhou durante muitos anos
como costureira, além de, após a separação, exercer também a profissão de
mágica, com a ajuda de uma das filhas.
Teve cinco filhos e fez nove abortos, segundo ela por causa da
vida de artista.Todos os abortos foram provocados através da introdução de
sonda. Contraiu tuberculose e internou-se num sanatório durante dois anos.
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Maria Elisa Carvalho Bartholo
Lá nasceu sua primeira filha. Este sanatório era administrado por religiosas
que a proibiam de ler a Bíblia. Diz que essa foi sua primeira polêmica com
a igreja católica.
Saindo do sanatório passou a viver em vários lugares,
principalmente em hotéis, por causa da atividade artística. Com o nascimento
de seu último filho começaram os desentendimentos com o marido, sempre
ocasionados pelas relações extra-conjugais. Esses relacionamentos provocaram
muito sofrimento. Após várias tentativas de reconciliação, separaram-se.
Depois de 30 anos de separação, houve uma tentativa de reconciliação por
parte do marido, já velho. Ela não aceitou. Seu marido morreu há três anos.
Ela se arrepende de não ter voltado para ele.
Antes de entrar no asilo, morava sozinha em Vassouras, cuidando
da casa de uma neta, que havia viajado para os Estados Unidos. Já estava ela
com todos os documentos prontos para viajar, quando precisou ser operada
de catarata. Após a operação sofreu uma queda em casa, fraturando o
fêmur. Ao sair do Hospital Escola, voltou para casa, e por estar com os
movimentos limitados, contratou uma empregada para ajuda-la. Segundo
ela esta pessoa a roubou e assim perdeu tudo, e principalmente a esperança.
Foi então obrigada a procurar internação numa casa de repouso para idosos,
também em Vassouras. Neste lugar, que era relativamente caro (600 reais
por mês) permaneceu apenas dois meses. Afirma que permanência curta
deveu-se ao fato de não tolerar o tempero da comida. A única refeição que
tolerava era o café da manhã. Após muitas reclamações com a dona da casa
e até mesmo com o Procom, mudou-se para o Barão do Amparo.
Ela nunca pensou na velhice. Acredita que as pessoas que
adquirem conhecimento, têm curiosidade desde cedo e mantêm a lucidez
na idade avançada, podem ter alguma chance de vivenciar a velhice com um
certo grau de sabedoria . Para isso é importante que mantenha a autonomia
na direção do rumo de sua própria vida, pois num asilo, isto é impossível.
A rotina é estéril. Não há estímulo. Não aceitam que, enquanto são lúcidos,
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No Último Degrau da Vida: Um Estudo no Asilo Barão do Amparo em Vassouras
os idosos continuam aprendendo com prazer. Os funcionários, religiosas e o
próprio médico tratam os velhos como bonecos sem vontade. E afirma: “...
O que faço aqui é só lembrar, mais nada”.
Sempre gostou muito de ler e de escrever poesia desde criança,
sendo admiradora de Augusto dos Anjos. Ela acha que as crianças deveriam
ser preparadas para suportar a velhice dos pais. A sua maior tristeza é não
ter com quem conversar e não poder mais escrever.
d) Idade: 65 anos, sexo masculino, branco. Nascido no Rio de
Janeiro. Separado sem filhos. Trazido ao asilo pelo irmão mais
novo, após problemas neurológicos. É engenheiro civil, e seus pais
também tiveram instrução de nível superior. Tem domínio de línguas
estrangeiras e hábito de leitura.
É natural da cidade do Rio de Janeiro, 65 anos. Engenheiro civil,
formado pela PUC-RJ. Trabalhou durante muitos anos numa multinacional.
Separado, após 18 anos de casamento, sem filhos. Foi trazido para Vassouras,
pelo irmão mais novo, depois de sofrer problemas neurológicos. Segundo o
médico que o assistia no Rio, sofre da síndrome de Parkinson. Não possui
nenhum conhecimento em Vassouras. Fez o curso primário em Sorocaba,
no colégio Santa Escolástica. Continuou os estudos no Rio, freqüentando o
Colégio Padre Antonio Vieira. Teve formação religiosa, crê em Deus, mas
não pratica. Depois de muitos anos trabalhando na firma, foi demitido e, logo
em seguida, seu casamento acabou. Ele acredita que a mudança do padrão de
vida foi a principal causa da separação. Sua esposa era médica. Foi educado
numa família abastada, de origem italiana, num meio intelectual favorável.
Seu pai era químico industrial e sua mãe professora de francês. Em casa
ouviam-se vários idiomas, sendo que o francês era falado obrigatoriamente.
Desde os onze anos de idade teve a despertada a paixão pela leitura. Hoje
continua sendo um leitor voraz. Além da leitura sempre gostou muito de
cinema, do qual sente falta. No asilo só existe a possibilidade da televisão.
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Maria Elisa Carvalho Bartholo
Diz que nunca pensou na velhice porque acreditava que morreria
cedo como os pais (em torno dos sessenta anos). Hoje pensa com certa
freqüência na morte. Afirma que os funcionários do asilo são atenciosos e
corteses com ele. Acredita que isso se deva à sua formação e origem social.
Observa que existe uma grande diferenciação de tratamento com os outros
residentes. Atribui seu pouco convívio com os outros residentes às diferenças
de formação intelectual, e também aos estados patológicos da grande maioria
dos idosos que ali vivem. Pessoalmente não tem queixas em relação à vida no
asilo, pois ainda goza de alguma mobilidade, não sendo muito dependente.
Mas afirma que o asilo um depósito de pessoas que se sentem inferiorizadas
e desprovidas de dignidade. A condição de ousadia e “subversão” na velhice
só ocorre com aqueles que se caracterizaram por esta postura em toda sua
vida adulta.
Apesar do bom tratamento sente-se marginalizado e sozinho, e
acha que viver no asilo não é a melhor solução para o seu caso. Ele afirma que
está em Vassouras à revelia. Tem o desejo de voltar a morar no Rio, se seu
estado de saúde continuar melhorando. Mas não faz planos para o futuro. Seu
irmão mais novo vem visitá-lo a cada dois meses. Costuma receber também
a visita de uma empregada antiga da família. Lamenta a falta de relação
com o único sobrinho. Por ter um temperamento menos expansivo que seu
irmão, nunca contou com muitos amigos. Durante muitos anos afirma ter
tido um grande amigo, e hoje lamenta não ter nenhuma notícia dele. Sabe
apenas que se mudou para a Europa. E perdeu o contato. Acredita que a
maioria das pessoas se afasta nos casos de dificuldades econômicas, doença
e morte.
Gosta muito de gatos e especialmente de uma que hoje está sob
os cuidados de seu irmão. Dói-lhe muito ficar sem ela.
Segue a rotina do asilo procurando nela encaixar a sua própria,
que inclui caminhadas duas vezes ao dia. Costumava fazê-las com um
companheiro, impossibilitado no momento porque está hospitalizado. Fez um
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R. Mestr. Hist., Vassouras, v. 5, p. 111-142, 2003
No Último Degrau da Vida: Um Estudo no Asilo Barão do Amparo em Vassouras
esforço para não interromper as caminhadas na ausência do companheiro.
Por estar sozinho não tem feito passeios longos. Além das caminhadas, vê
televisão, lê e pensa na vida.
e) Idade: 89 anos, sexo feminino, negra. Nascida em Mendes. Foi
criada por uma família de muitos recursos. É solteira e procurou o
asilo espontaneamente. Escreve apenas o nome. Não sofre de nenhuma
enfermidade.
Completou, em janeiro de 2002, 89 anos. Nascida numa
família de 6 irmãos em Mendes, foi criada por uma família branca, de mais
recursos. Freqüentou a escola, mas segundo ela mesma , não sentia vontade
de aprender. Considera que isso não é uma coisa “natural”. Hoje, no asilo,
conseguiu aprender a escrever seu nome. Trabalhou durante toda sua vida
executando serviços leves como cuidar de crianças e arrumar a casa. Nunca
precisou assumir a cozinha, pois havia muitos empregados. Sempre se
considerou uma pessoa da família e diz que sempre foi muito feliz com eles.
Esta família a mantém até hoje, pagando todas as suas despesas, prestando
todo tipo de assistência e fazendo-lhe freqüentemente visitas. Também tem
sua própria aposentadoria por invalidez.
Entrou no asilo por sua livre e espontânea vontade em 7 de
março de 1997. Sempre pensou na velhice. Visitava o asilo, freqüentava a
capela. Já morou na enfermaria e hoje divide um quarto com outra residente.
Neste quarto tem suas coisas muito arrumadas. Diz gostar muito do asilo e se
considera feliz aqui. Ela não tem preocupação, tem sossego. Tem liberdade
para sair, vai à igreja, faz compras, mas sempre acompanhada. Apesar de
ainda enxergar, não tem força para determinadas atividades. Não sofre de
nenhuma enfermidade.
Sua rotina de vida inclui banho, oração, café, aula. No período
de férias ajuda a lavar as canecas, sem que isso seja uma obrigação. Diz que
lhe faz bem ter essa atividade. Gosta também de assistir televisão. Tem ótimo
R. Mestr. Hist., Vassouras, v. 5, p. 111-142, 2003
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relacionamento com os residentes, funcionários, irmãs. É muito estimada por
todos, sendo seu aniversário comemorado com muita festa.
Não se queixa da velhice, pois tem saúde. Afirma que “velhice
com saúde não é ruim”. Diz que hoje entende melhor o mundo, procura
ajudar, conversar com todos. Para ela, sua postura curvada não incomoda,
“porque não dói”. Para melhorá-la diz que vai passar a usar bengala.
Recebe muitas visitas. Nesses dias, começa a se preparar desde
cedo. Quando são visitas de Mendes, veste-se com sua melhor roupa. Diz
que desde de que está no asilo tornou-se mais religiosa, aprendendo a rezar,
entendendo a religião e tendo mais fé. Tem um pouco de medo de morrer
porque não sabe o que há do outro lado, mas não ocupa sua cabeça com
a questão da morte. Diz que vive bem no asilo porque procura respeitar as
regras da casa. Teve poucos namorados e não acertou casamento. Isso nunca
a deixou triste. Diz que nunca se sentiu abandonada e é uma pessoa feliz.
Considerou seu aniversário em 16/1 como “uma festa de 15 anos”. Diz que
seu coração foi preparado para as emoções.
f) Idade: 73 anos, sexo masculino, branco. Natural de Vassouras.
Separado sem filhos. Procurou espontaneamente o asilo. Concluiu o
antigo curso primário. Foi auxiliar de serviços gerais e porteiro. Sofreu
um derrame e necessita de atendimento fisioterápico.
É natural de Vassouras e tem 73 anos. Nasceu na Fazenda
Cachoeira, onde seus pais eram colonos, numa família de 9 irmãos. Estudou
até o curso primário. Trabalhou durante 20 anos na Manchete, no Rio de
janeiro. Voltou para Vassouras e empregou-se na FUSVE, como porteiro.
Sofreu um derrame e aposentou-se. Foi casado, mas separou-se. Não tem
filhos. Morou com uma irmã e uma amiga, mas achou que estava dando
trabalho e procurou o asilo espontaneamente. Passou a morar aqui em 10/11
de 1988. Até 1998 ainda saía pela cidade.Hoje não se sente muito seguro
para fazê-lo. Faz exercícios por conta própria e caminha pela calçada em
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No Último Degrau da Vida: Um Estudo no Asilo Barão do Amparo em Vassouras
frente ao asilo. Caminhadas mais longas somente as faz acompanhado.
Sente falta de atividade. Gostaria de vender alguma coisa, para se distrair.
Apesar de conversar com todos e receber visita principalmente de sua irmã,
sente solidão. Nunca pensou na velhice e não tem medo de morrer, só não
quer sofrer. Diz que a velhice com saúde não é ruim. Não liga para televisão,
prefere rádio, principalmente programas musicais. Sente falta de pessoas
para conversar. Mas diz que se sente feliz, até conformado, porque “não
adianta desespero”.
Gostaria de ter uma alimentação melhor, mais saborosa. Quando
tem dinheiro pede para prepararem algo do seu agrado, como quiabo. Acha
que poderiam oferecer uma alimentação diferenciada para aqueles residentes
que não têm restrição. Acha que o jantar é servido demasiado cedo. Considera
o atendimento médico bom, mas tem restrições quanto ao tratamento recebido
pelos funcionários. São impacientes e não muito gentis, além de fazerem
diferença entre os residentes. Diz que normalmente os acamados sofrem
com a impaciência deles.
4. Resposta?
O resumo de depoimentos não é suficiente para o leitor
apreender o processo comunicativo que se desenvolveu durante o período da
pesquisa. Na relação dialogal não são apenas as palavras que nos informam,
mas sobretudo gestos, olhares, sorrisos, choros, todo o corpo. Exponho em
seguida de modo sucinto algo do comunicado para além das palavras ditas
de cada um dos interlocutores.
Durante todas as conversas que mantive com a interlocutora
a) ficou evidente que a origem da sua maior tristeza é a ausência da família.
Não só porque suas filhas não a visitam com a freqüência que gostaria,
mas principalmente porque deseja profundamente ser levada de volta para
casa, se não definitivamente, pelo menos por um período prolongado. Um
fator fundamental que contribuiu em muito para fluir nossa conversação
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foi meu domínio da língua alemã. Através de sua língua materna era
mais fácil recordar-se de fatos de sua vida. É também significativo que o
idioma estrangeiro podia ser usado como “um código secreto” entre nós. A
comunicação em sua própria língua ocorria sem interferências, estimulando
o interesse em relatar acontecimentos, e ela sempre se mostrava surpresa
com a relevância dada por minha interlocução à sua vida.
A interlocutora b) sempre se mostrou sorridente e solícita
tanto com visitantes quanto com funcionários. Nosso ponto de contato se
deu a partir da atividade artesanal desenvolvida na chamada “sala de aula”.
Como precisou exercitar as mãos para se recuperar de um derrame, passou
a trabalhar com argila confeccionando e pintando vasos, demonstrando
imenso prazer com isso. Além de trabalhar com argila, dedica-se a desenhar
principalmente árvores, flores e pessoas, num estilo infantil. Apesar de ser
orientada pelo professor a colorir desenhos já prontos, mimeografados,
procura dar um toque da sua criatividade. Sentiu-se bastante estimulada a
desenvolver seu desenho mais livremente a partir do momento em que disse
apreciar mais o que fazia da própria imaginação do que as cópias oferecidas
pelo professor. A sua criatividade, como expressão da memória de vida, está
sendo controlada, cerceada, dificultando assim o desenvolvimento de uma
verdadeira atitude dialogal. Aprisionada nas formas pré-estabelecidas do
desenho pronto para ser colorido não tem sua experiência de vida reconhecida
como plenamente significativa.
A interlocutora c) me forneceu os elementos mais ricos para
formular a reafirmar a hipótese de trabalho. Com uma vida tão intensa e com
capacidade de expressar-se através da poesia vê seu mundo se fechar cada
vez mais impedida de exercer sua autonomia. Por ser plenamente consciente
de seu estado e ciosa de preservar até o fim, segundo suas próprias palavras,
a “capacidade de decidir o que é melhor para sua vida”, confronta-se
permanentemente com as normas cerceadoras da instituição. A sua posição
crítica e questionadora é interpretada, pelo corpo administrativo, como sinal
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R. Mestr. Hist., Vassouras, v. 5, p. 111-142, 2003
No Último Degrau da Vida: Um Estudo no Asilo Barão do Amparo em Vassouras
de senilidade, como nas palavras de uma funcionária “hoje ela não está
dizendo coisa com coisa”. A insubordinação, que para ela é uma forma de
resistência, é facilmente rotulada de “rabugice”, “ingratidão”e “delírio”,
numa tentativa, por parte da instituição, de exercer maior controle.
Minha aproximação com o interlocutor d) se deu por acaso,
na secretaria do asilo, quando o vi devolvendo alguns livros que lhe tinham
sido emprestados. Naquela ocasião, soube da sua preferência por romances
policiais e de suspense. Ofereci-me então para emprestar-lhe outros, pois
também gosto muito desse gênero literário. A partir de então passamos
a conversar e soube que já havia recuperado a fala, faculdade duramente
atingida pelos problemas neurológicos. Chamou-me atenção sua formação
intelectual, que lhe permitia “refugiar-se” na leitura. No nosso convívio pude
perceber que a única maneira que lhe era possível de viver nas condições
do asilo era preenchendo o tempo desperto com a leitura compulsiva. Na
ausência das antigas relações que o ligavam ao mundo, e impossibilitado de
criar novas, dedicou-se à atividade solitária que melhor dominava. Mesmo
consciente de que sair do asilo não está em seu horizonte, procura acreditar
que esta situação não é definitiva. Neste tempo de espera sofre de abandono.
Tudo o que viveu, aprendeu e ensinou, não tem serventia hoje para os que
estão à sua volta. Na última vez em que conversamos pude constatar que as
chances de retomar a vida do lado de fora estão ainda mais remotas, pois
muitos objetos que lhe pertenciam, principalmente todo seu guarda-roupa,
foram trazidos para seu quarto no asilo em Vassouras.
A interlocutora e), extremamente afável e receptiva, contribuiu
para a ampliação da compreensão do processo de envelhecimento, como a
articulação sui generis de uma experiência individual única com o contexto
sócio-cultural. Contrariando todas as expectativas de envelhecimento bem
sucedido, muitas vezes identificado com atividade e engajamento, pode-se
associar velhice feliz à tranqüilidade e sossego. Segundo esta residente as
condições de vida no asilo a protegem do “tumulto” e “barulho” do mundo
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exterior. Não sofrer de nenhuma enfermidade grave, manter praticamente
intactos seus laços afetivos anteriores e reconhecer, em seu caso individual,
mudanças propiciadas pelo seu convívio no asilo é de fundamental importância
para a valorização de sua velhice.
O interlocutor f) também não se queixa da velhice porque tem
relativamente boa saúde. Locomove-se sozinho e é lúcido. Apenas ressentese da solidão. Ao expressar seu desejo de vender, pequenos objetos ou, até
mesmo, alimentos, busca encontrar uma maneira de mitigar seu isolamento,
ampliando contatos, trocando experiências. Este desejo esbarra nas reais
condições da instituição, impossibilitando assim sua realização.
Ao longo dos primeiros meses de realização da pesquisa visitei e
conversei durante várias horas, primeiramente a respeito de assuntos gerais e
paulatinamente tentando direcionar a conversa para as questões consideradas,
naquele momento, mais importantes: vivência da velhice e a expectativa da
morte. No decorrer das conversas percebi que não havia muita preocupação
em pensar neste assunto, mas havia interesse em contar como a vida antes
do asilo era melhor. Como suas vidas haviam mudado e como desejavam
que houvesse a possibilidade de um retorno a uma situação anterior. A
impossibilidade do retorno se configura como a fonte principal de angústia.
Falar do passado estabelece pontes com a vida vivida, ainda que reduzida
a uma reminiscência.
A partir dessas conversas comecei a ver que o mais importante
para a maioria dessas pessoas era me dizer como a vida tinha perdido o
sentido. Esse sentido era encontrado apenas no passado e através do discurso
sobre o passado. Ouvindo os relatos das suas histórias de vida, encontrar o
caminho para afirmar a principal hipótese: no relacionamento com os velhos
internados no asilo constata-se a dor da desqualificação de sua memória. O
mutismo perturbador, para qualquer visitante de uma instituição para velhos,
pode dizer muito sobre o lugar e o sentido da velhice. A atitude dialogal
mostrou como esse mutismo defensivo se apresenta como um aparente
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desinteresse em reviver o passado, que logo é quebrado para se transformar
em verdadeira “revivência”. Para que tal quebra ocorra fundamental é que
haja da parte do interlocutor verdadeiramente disponibilidade e interesse em
ouvir o que os velhos têm para contar. Estabelecido este vínculo genuíno, da
parte deles se faz presente um inegável empenho e esforço para não esquecer
detalhes a serem expressos. Em todos os relatos percebi a necessidade de
se precisar os fatos com excesso de minúcias. Em muitos momentos me era
dirigida a pergunta se tudo aquilo que relatavam era realmente válido e
importante para meu trabalho.
Tentando analisar os relatos no sentido de buscar uma
convergência que pudesse corroborar minha hipótese arrolei os seguintes
pontos neles recorrentes: i. solidão; ii falta da família; iii. importância da
saúde; iv.necessidade de conversar; v. falta de autonomia; vi. pouco estímulo à
criatividade; vii. poucas possibilidades de serem ouvidos; viii. imobilidade.
Acredito ter identificado nas longas conversas mantidas com
os idosos a ânsia por escuta, por vínculos fortes, por valorização de suas
realizações. Na relação dialogal constatei uma situação de verdadeira
indigência espiritual, não meramente material, dos idosos institucionalizados.
A indigência se caracteriza pelo corte abrupto com o conjunto da vida
impedindo a atualização da memória. Quando permitimos aos velhos refazer
seu passado através de suas lembranças, estamos consolidando vínculos sociais
e históricos que não desaparecem com a morte física daquele que relembra.
O sentimento de um pertencimento comum, de vivência comum permanece
na interlocução, graças à atenção e cuidado dos que reconhecem na escuta
atenta um valor, e na palavra dita, primordialmente uma resposta e uma
responsabilidade ética.
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Abstract
Aging is not only a matter of physical and biological aspects. It is
part of a social-cultural scope. There are so many elderly cultural identities as there
are elderly people. In our modern consume society to get old means exclusion from
an “institution key”: the market, which comes stronger throughout progressive youth
ness participation.The old people installed into lodging houses live the worst kind of
such exclusion. The most severe scope of this concerning to their memory that is
taken a part from themselves. The present work looks forward to against this denial.
We try to firm a dialog attitude upon the elderly seen her/him among many other
identities. In this field, matters that concerning to the generality of the globalized
world and the elderly are sent to the concrete life experience of the old people live
in the Barao do Amparo Shelter, situated in the city of Vassouras.
Keywords
old people - old age - aging - memory - humane condition
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R. Mestr. Hist., Vassouras, v. 5, p. 111-142, 2003
No Último Degrau da Vida: Um Estudo no Asilo Barão do Amparo em Vassouras
Notas
1
Ver Debert, G.G. A Antropología e o Estudo dos Grupos e das Categorías de Idade, em Barros,
M.M.L., Velhice ou Terceira Idade. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2000, p. 50.
2
Ver Bartholo Jr., R. Você e Eu. Martin Buber, Presença Palavra, Rio de Janeiro: Garamond,
2001, p. 9.
3
Ver Gusmão N. M. M. A Maturidade e a Velhice: um olhar antropológico, em Néri. A.L (org.).
Desenvolvimento e Envelhecimento. Perspectivas Biológicas, Psicológicas e Sociológicas. Campinas:
Papirus, 2001, p. 115-116.
4
Ver idem, p. 116.
5
Ver ibidem, p.119.
6
Ver Bartholo Jr., R. Contemplatio Mortis, em Bartholo Jr., A Dor de Fausto. Ensaios, Rio de
Janeiro: Revan, 1992, p. 73.
Ver Elias, N. Envelhecer e Morrer, em A Solidão dos Moribundos, Rio de Janeiro: Zahar,
7
2001, p. 98.
8
Ver Gusmão, op. cit., p. 129.
9
Ver Bosi E. Memória e Sociedade. Lembranças de Velhos. São Paulo: Companhia das Letras,
1999, p.38.
10
Ver Damasceno, B. P. Trajetórias do Envelhecimento Cerebral: o normal e o patológico, em Neri,
A. L. (org.) Desenvolvimento e Envelhecimento, op. cit., p. 64.
11
Ver Bosi, E. Idem, p. 54.
12
Ver Bosi, E., op. cit., p. 87.
13
Ver Bosi, E., op. cit., p. 82.
14
Ver Bosi, E., idem, p. 55.
Referências
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Maria Elisa Carvalho Bartholo
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