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Nesta liturgia de todos os santos, muito mais do que
sempre acontece em todas as liturgias que celebramos
no decorrer do ano, o céu e a terra se tocam. Com o
apóstolo João na ilha de Patmos, e ao mesmo tempo
com a inumerável multidão dos eleitos, já nos
encontramos em espírito reunidos entorno ao trono do
Cordeiro para celebrar seu louvor e eucaristias sem fim
(Ap 7, 2-140).
Também o Evangelho das bem-aventuranças, que
acabamos de ouvir, nos situa ao mesmo tempo na terra
e já nos céus. De fato, o breve texto que conhecemos
com o nome de “discurso da montanha” ou “bemaventuranças” se compõe de uma série de nove
pequenos dísticos ou anúncios, de forma que o
primeiro deles descreve o ambiente provisório dos
discípulos de Jesus sobre a terra, enquanto que o
segundo apresenta a situação correspondente de cada
um deles no além do reino: “Bem-aventurados os
pobres em espírito, porque deles é o reino dos Céus.
Bem-aventurados os mansos, porque herdarão a
terra...” e assim por diante.
Colocadas no início do Discurso sobre a montanha,
com o qual Jesus inaugura o seu ministério público,
estas nove bem-aventuranças foram sempre
reconhecidas como elementos fundamentais da
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mensagem de Jesus. Mas, no fundo, o que dizem
exatamente?
Poder-se-ia pensar que apresentam uma espécie de
programa de ação, uma estratégia pastoral. É provável
que um certo números daqueles que escutaram Jesus
efetivamente estivessem esperando algo do gênero; de
fato, após a ressurreição, perguntaram a Jesus: “Senhor,
é agora o tempo em que irás restaurar a realeza em
Israel? ” (At 1,6).
Talvez outros ouvintes estivessem esperando um
ensinamento que lhes interessasse de modo especial,
um novo Decálogo, mandamentos mais severos que
instaurassem uma ordem moral mais elevada: de fato,
uma vez também lhe perguntaram: “Mestre, que farei
de bom para ter a vida eterna?” (Mt 19,16).
Estas esperanças e expectativas eram legítimas, mas,
se lermos atentamente as nove bem-aventuranças, nos
damos conta que elas não respondem de nenhum
modo a tais preocupações. Tornar-se pobre em espírito,
chorar, ter fome e sede, ser insultado e perseguido, não
indicam alguma prioridade na ação e não constituem
tão pouco um programa de perfeição.
No caso das nove bem-aventuranças o gênero
literário adotado por Jesus não aponta nesta direção.
De fato, Jesus não exorta, não prescreve, não ordena
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nada. Faz outra coisa: proclama feliz, ou seja, revela e
anuncia uma certa qualidade da alegria.
No máximo, as “Bem-aventuranças” pertencem mais
ao gênero literário eucarístico com o qual os fiéis se
dirigem a Deus na oração. A palavra eucaristia significa
“ação de graças”, de modo que, para escrever um texto
eucarístico necessariamente adota-se certa forma
literária que aponte na direção do “reconhecimento e
gratidão”. Vejam, não é sempre necessário em nossas
orações pedir algo a Deus. Ás vezes basta dar graças
antecipadamente, como que se aquilo que se pede fosse
já recebido (Mc 11,24). Da mesma forma, no caso das
nove bem-aventuranças, Jesus não dá ordens em nome
de Deus, mas proclama que certas situações
privilegiadas anunciam antecipadamente, como por
transparência, a beatitude que será aquela de amanhã.
A maior parte destas situações beatas, quer dizer,
“felizes” não se introduzem naturalmente no campo das
nossas possibilidades. Elas não estão à nossa
disposição, ao alcance das mãos. É vão o esforço de
introduzir-se nelas, produzindo-as. De que forma e a
troco de quê, por exemplo, provocaremos perseguições
das quais seremos as vítimas ou nos tornaremos alvos
de discursos malvados por nossa própria conta? Não
nos é pedido para fazer isso. Ao contrário, isto é tudo
quanto nos é prometido, infalivelmente, tudo quanto
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nos acontecerá, sem dívida, quando procuraremos
comportar-nos, por pouco que seja, como verdadeiros
discípulos de Jesus.
Jesus mesmo nos anuncia isto, porém, como uma
graça que nos será concedida. As bem-aventuranças
são, portanto, uma graça e não uma tarefa. Um dia
devemos aprender a chorar, a suportar a miséria, a ser
cobertos de calúnias, a carregar cotidianamente a nossa
cruz seguindo Jesus. Mas é precisamente por força de
sermos sujeitos a todas estas beatitudes surpreendentes
e totalmente externas – as beatitudes que são mais
interiores surgirão por si mesmas no nosso coração –
mas é em virtude das beatitudes exteriores que um dia
interiormente nos tornaremos, por exemplo, pouco a
pouco, pobre e desapegado de tudo, não tendo mais
outro desejo senão a justiça e a santidade de Deus.
Assim nosso desejo por Deus somente, voltará a ser
simples e puro, fonte inesgotável de doçura, de paz, de
reconciliação, de ternura, até mesmo para com os que
nos perseguem.
“Alegrai-vos e regozija-vos, porque será grande a
vossa recompensa nos céus”. É já a alegria de todos
aqueles que nos precederam neste caminho e que nós
festejamos hoje. Mas é também a nossa alegria desde
agora, sem dúvida discreta, mas inevitável, resultante
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de toda e qualquer dificuldade acolhida em nome de
Jesus, com uma gratidão humilde e fiel. AMÉM.
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Nesta liturgia de todos os santos, muito mais do que sempre