IV CONALI - Congresso Nacional de Linguagens em Interação Múltiplos Olhares 05, 06 e 07 de junho de 2013 ISSN: 1981-8211 MARIA HELENA KÜHNER E AS AVENTURAS DE UM DIABO MALANDRO PELO REINO DA INTERTEXTUALIDADE Joaquim Francisco dos SANTOS NETO1 Introdução Maria Helena Kühner escreveu As aventuras de um diabo malandro em 1971. No mesmo ano, o texto foi à cena pela primeira vez. Uma primeira edição, pela Editora Cátedra, ocorreu em 1975, no livro A menina que buscava o sol, juntamente com outras três peças. Em 2011, pela Editora Vertente, foi publicado novamente no livro Teatro para criança e jovens (de todas as idades), que reuniu todos os textos publicados pela autora. O livro de 2011 traz a informação de que, já na primeira montagem, a peça recebeu o Prêmio de Melhor Texto, Melhor Direção, Cenografia e Figurinos, no III Festival de Teatro Infantil do Rio de Janeiro, em 1971, e faz saber também que, além da primeira montagem, outras 38 foram realizadas em vários Estados do País até 2009. Por essas observações iniciais, em que pese, em seu contexto de produção, a destinação inicial da obra ao público infantil, as sucessivas montagens realizadas, a publicação dos livros e as questões relativas ao mercado editorial – o título da publicação de 2011, por exemplo – não se pode deixar de notar a capacidade que tem mostrado da peça de Kühner para dialogar com diferentes públicos em diferentes contextos históricos, independentemente de idade e, pode-se afirmar também, de condição social. Um critério para justificar tal adesão e analisar o texto, explicitando pontos possíveis que justifiquem a permanência da peça de Kühner no palco do teatro brasileiro, é o modo como a autora constrói sua obra. Nesse particular, o que se evidencia a quem se dispõe à tarefa de observação de As aventuras de um diabo 1 Doutorando em Estudos Literários pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). IV CONALI - Congresso Nacional de Linguagens em Interação Múltiplos Olhares 05, 06 e 07 de junho de 2013 ISSN: 1981-8211 malandro é a aguda percepção que Maria Helena Kühner tem da sociedade de seu tempo e do momento histórico por que passa. Expressando essa realidade, há que se notar o hábil diálogo que estabelece entre a tradição e as convenções artísticas, de maneira que, ao elaborar seu objeto, ilumina a ciranda inventiva da criação, acabando por constituir uma forma própria que renova o sistema simbólico, qualificando-a a permanecer no tempo. 1. Origem popular e cultura erudita Em relação à questão das vozes textuais que se cruzam no interior da peça de Kühner, um primeiro aspecto que pode ser destacado é que, na intenção em fazer rir, já o título remete o espectador a horizontes de expectativas que vão desde referências aos contos populares tradicionais na cultura brasileira e ibérica até a cultura erudita. Superpondo textos, em uma atitude de intertextualidade, as conexões de As aventuras de um diabo malandro com a cultura popular partem de uma questão de fundamentação temática que está na origem da literatura infantil. Leonardo Arroyo, um pioneiro nos estudos históricos dessa manifestação literária no Brasil, apontava, em 1968, que “na base da literatura infantil estará sempre, soberana, a literatura oral, que a antecede historicamente e a fundamenta tematicamente” (ARROYO, 2011, p. 29). Essas “raízes no passado”, transmissoras da ideologia popular e, por isso, como salienta Arroyo (p. XXIX), ligadas “aos sentimentos do povo, suas tradições e aspirações” reforçam a fascinação que os mitos, os contos de fadas e as matérias folclóricas exercem sobre a humanidade, valorizando-os como substrato cultural básico a ser transmitido como herança cultural da coletividade. São essas questões de cunho arquetípico ligadas ao Diabo como personagem protagonista e sua caracterização como representante da malandragem que conectam intimamente, em princípio, As aventuras de um diabo malandro à visão hierárquica do “realismo conceitual da Idade Média” (ROSENFELD, 1996) e a sua expansão gradual como elemento folclórico. Desse IV CONALI - Congresso Nacional de Linguagens em Interação Múltiplos Olhares 05, 06 e 07 de junho de 2013 ISSN: 1981-8211 modo, quando o Diabo aparece no palco de Kühner, ele ainda traja os mesmos adereços que lhe pintaram as alegorias medievais. Nessa perspectiva, a remissão do texto de Kühner aos autos de Gil Vicente salta à vista do leitor. Contudo, se para estar na cena de Gil Vicente, a personagem já havia percorrido importante caminho do altar ao adro das igrejas até chegar às praças para depois adentrar os palácios da nobreza lusitana como arrais do inferno, na peça de Kühner, o Diabo, por sua vez, já não é mais o velho demônio do cristianismo, o Mal absoluto, disputando almas com anjos do Bem. Nem tampouco Mefistófeles, demônio aristocrático. Se o seu figurino ainda é medieval, ele agora já não sabe mais quem é. Falta-lhe uma identidade. Não poder defini-la causa-lhe aborrecimentos. Se está em crise de identidade, se já não causa mais medo a ninguém, sua crise de imaginação, impossibilitando-o de colocá-la a serviço de suas reinações, soluciona-se em um segundo. E a saída é oferecer seu trabalho para poder divertir-se à custa de quem pode lhe restituir seu antigo status. Essa lição de malandragem se reaviva frente ao diálogo com um outro auto, também descendente de Gil Vicente, o Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna. Todavia, diante de João Grilo, herói popular, “nascido da galeria brasileira do ‘herói sem nenhum caráter’” (MAGALDI, 2004, p 238), o Diabo ainda encarna o modelo unilateral de verdade imóvel pregado pelo cristianismo. Sua aparição em cena ainda tem a função de contribuir para o tom de moralidade da peça, pois aí, nesse momento, o que importa é mostrar o herói do povo em sua tortuosa espontaneidade e, por isso, redimido pela Compadecida. Nesse ponto é preciso salientar que não há como dissociar João Grilo de seu parentesco com Malasartes, que, assim como o Diabo, vindo da cultura medieval da Península Ibérica, aclimatou-se no Brasil, vivendo num imenso anedotário (CASCUDO, 1972). Ao se transformar na figura lendária e folclórica da literatura popular nordestina, inclusive herói de dois romances, o protagonista da peça de Suassuna, “o malandro, o desocupado, o conversador, o homem sem objetivo senão o de sair-se melhor do instante – o que se inventa e inventa as IV CONALI - Congresso Nacional de Linguagens em Interação Múltiplos Olhares 05, 06 e 07 de junho de 2013 ISSN: 1981-8211 soluções à medida que surgem os problemas” (MAGALDI, 2004, p. 238), pela esperteza e imaginação, passa então a ser um duplo do Diabo em cena e, obviamente, mais um elemento a conferir reciprocidade ao texto de Kühner. Assim, através do protagonista e, principalmente de sua caracterização, não há como ignorar também as conexões que o texto de Kühner pode estabelecer com o samba, a música brasileira e, consequentemente, com a Ópera do malandro, de Chico Buarque, embora escrita e encenada alguns anos depois. Pelo lado da música, está novamente presente a imagem do “rapaz folgado” que usa da astúcia para conseguir o que quer, nas letras de Noel Rosa, ou do contraventor, nas letras de Moreira da Silva. Pelo lado da Ópera, o diálogo se faz com o malandro profissional em suas relações com uma burguesia hipócrita e consumidora (SANTOS, 2010). Como texto-elo que dialoga com uma rede de textos, a peça de Kühner constitui-se então um anel a conferir persistência e tom peculiares a elementos que transitam espontaneamente entre o folclórico e o erudito. A persistência reside no fato de trazer à baila duas figuras arquetípicas herdadas da Península Ibérica: o Diabo e o herói popular. O tom peculiar fica agora por conta da atualização do Diabo não mais como a personificação do Mal, mas, por conta de uma crise de identidade, como personificação da malandragem. Ao atualizar essas personagens pelo viés da literatura infantil, Kühner mantém desse modo a perspectiva da fantasia como elemento ordenador do mundo, mas não aquela fantasia escapista, pois, como se pode notar pela leitura de As aventuras de um diabo malandro, ao elaborar seu texto, a autora também o constrói utilizando-se de um processo retórico que abre perspectivas a outros horizontes de análise. 2. A alegoria e os modos de dizer o mundo. Em 1971, o Brasil vivia os “anos de chumbo” da Ditadura Militar e o período do “milagre econômico”. Num panorama mais amplo, à proporção que o Brasil, visando à industrialização como forma de estabilizar a economia nacional, IV CONALI - Congresso Nacional de Linguagens em Interação Múltiplos Olhares 05, 06 e 07 de junho de 2013 ISSN: 1981-8211 combalida até então pelos altos índices inflacionários, importava tecnologia, bens de serviço e abria a economia ao capital estrangeiro, os países desenvolvidos vinham pela mesma via de mão dupla em busca de mercados consumidores, matérias primas disponíveis e mão de obra barata. Enquanto isso, a corrida espacial, como consequência da corrida armamentista dentro do contexto da Guerra Fria, com a chegada do homem à Lua, em 1969, mostrava o potencial do capitalismo. Em paralelo ao desenvolvimento econômico brasileiro, a restrição das liberdades individuais e ainda a supressão das liberdades políticas e de expressão tiveram um marco significativo com a edição do Ato Institucional número 5, em 13 de dezembro de1968. É nesse contexto que jovens idealistas de esquerda organizaram-se em guerrilhas contra o sistema. Essas reações são contemporâneas de acontecimentos significativos para a cultura jovem no País. Tropicália, Canção de Protesto, Teatro Oficina, Grupo Opinião, Jovem Guarda são referências que atestam o potencial da juventude brasileira na época. 1968, o ano do AI-5 no Brasil, também ficou conhecido no século XX como o ano em que a rebeldia jovem explodiu. As cenas de estudantes protestando pelas ruas de Paris contra estruturas arcaicas e atirando paralelepípedos na polícia tornaram-se emblemáticas, mas a juventude como categoria social vinha ganhando espaço no planeta há algum tempo. Na década de 50, com o estouro do rock, ser jovem passou a significar outra coisa muito diferente do que havia sido até então. O cinema retratou-os como Rebeldes sem causa, em 1955. A beat generation, conhecida no final da década – On the Road, 1957 –, e o movimento hippie incendiaram a contracultura e toda década seguinte. Woodstostock, em agosto de 1969, é outro exemplo de que a juventude tinha passado por profundas modificações. Sobre esse momento histórico no qual a peça foi escrita e encenada pela primeira vez, Boaventura de Souza Santos diz ser o momento em que “o princípio do mercado adquiriu pujanças sem precedentes, e tanto que extravasou do econômico e procurou colonizar tanto o princípio do Estado, como o princípio da IV CONALI - Congresso Nacional de Linguagens em Interação Múltiplos Olhares 05, 06 e 07 de junho de 2013 ISSN: 1981-8211 comunidade” (SANTOS, 1996, p. 79), dois outros princípios reguladores do projeto da modernidade. É do caldo desse caldeirão que tinha se tornado o mundo e o Brasil que Maria Helena Kühner retira suas personagens e as direciona para o público infantil. O site da autora assim traz a sinopse da peça: Num planeta distante, um diabo “na fossa” porque hoje ninguém mais teme os diabos, é surpreendido com a chegada de dois terráqueos, Capitolino e seu serviçal aliado, o Comandante, dispostos a explorar o novo planeta para obter o máximo de lucros. Como para isso precisam de quem trabalhe para eles, o Diabo se dispõe a divertir-se às suas custas, ocasionando uma série de peripécias que envolvem, incluso, uma habitante do lugar. Até descobrir que aqueles homens desenvolveram tecnologia muito mais “diabólica” e mais eficaz que a sua para fazer o mal... deixando, como sonho da Moça, a idéia de um mundo e de gente melhor. Como se pode deduzir facilmente, o procedimento é alegórico. Cada elemento em cena passa a ser a representação concreta de uma ideia abstrata, pois “a alegoria (grego allós = outro; agourein = falar) diz b para significar a”. (HANSEN, 2006, p 6 – grifos do autor). Ou ainda, “Uma vez que, conforme seu étimo, alegoria significa ‘dizer o outro’, nela cada elemento quer dizer outra coisa que não o seu sentido original” (KOTHE, 1986, p. 52). Mais especificamente definindo, alegoria é então um “processo por meio do qual entidades, conceitos e valores abstratos tornam-se concretos por meio de imagens e figuras, como por exemplo, o uso da figura da bruxa ou do demônio para significar o mal” (PASCOLATI, 2009, p. 108). Logo, nesse mundo distante que a peça instaura, cada elemento é significativo, não sendo apenas um planeta em que personagens chamadas Capitolino e Comandante pousam. Esse planeta bem pode ser um país periférico, situado na América do Sul, ou qualquer outro lugar em que o apetite desordenado do capitalismo passe a ser escoltado por Forças Armadas. Por outro lado, quem seriam Diabo e Moça dentro desse contexto de planeta invadido? Como diz a sinopse da peça, Moça é uma habitante do lugar, representante do povo. É jovem, suave. IV CONALI - Congresso Nacional de Linguagens em Interação Múltiplos Olhares 05, 06 e 07 de junho de 2013 ISSN: 1981-8211 O Diabo por sua vez, como já se salientou, conserva nos figurinos os traços dos modelos unilaterais de verdades imóveis e absolutas do cristianismo. Mas diante das várias faces que, como legítimo representante do Mal, veio assumindo ao longo da história, encontra no momento em que aparece no palco de Kühner uma incongruência entre sua imagem externa e interna. O que é certo é que, mesmo em crise de identidade, por um lado, pela agregação de textos ao texto de Kühner, é um elemento constituinte da cultura produzida e acumulada pela humanidade e, por outro, é a personagem protagonista da peça. Seu nome figura no título como chamariz para um público, a princípio infantil, ou seja, é um ingrediente importante para a empatia entre palco e plateia. Essa relação entre personagem e público a que se destina é legitimada pelos dicionaristas. Houais, por exemplo, assegura que entre as acepções para o vocábulo diabo é possível encontrar, como derivação por metáfora ou sentido figurado de anjo rebelde que foi expulso do céu e precipitado no abismo das trevas, o sentido de “pessoa, em especial criança, importuna ou barulhenta, inquieta e travessa” (HOUAIS, 2001, p. 1028) e Michaelis (1998, p. 713), “rapaz travesso e petulante”. A título de exemplo, na literatura infantil e juvenil, Figueiredo Pimentel, o primeiro a publicar, a partir de 1895, textos de teatro para crianças e jovens no Brasil, em peças como A culpa é dos pais e Irmão e irmã, já traz crianças e adolescentes com caracterizações expressamente relacionadas ao Diabo. Além disso, vista no contexto de escritura da peça, lançar mão do Diabo para falar às crianças e adolescentes amplia os questionamentos sobre essa faixa da população e reflete sobre os estereótipos que se faziam notar à época. No Brasil, em um momento histórico em que as gerações jovens partiam para a luta armada contra o Regime, sequestravam embaixadores e “viravam o diabo” para defender suas ideologias, associá-las ao espírito do mal não era “forçar a barra”. Dito de outro modo, pela maneira como se expressa no texto de Kühner, a indefinição da personagem protagonista parece ser uma condição dela e por IV CONALI - Congresso Nacional de Linguagens em Interação Múltiplos Olhares 05, 06 e 07 de junho de 2013 ISSN: 1981-8211 consequência de todos os outros que representa. Logo, é um traço característico dessas identidades não tê-las por completo, o que afirma ainda mais o procedimento alegórico, pois como afirma Kothe (1986, p. 53 – 54): Se no alegórico tudo significa outra coisa que não o seu sentido mais literal e imediato, aparentemente indicia-se a impossibilidade de a verdade coincidir consigo mesma, o que implicaria, no entanto defini-la apenas como identidade. É preciso, contudo, entender que ela – por mais doloroso que isso tantas vezes nos venha a ser na vida – talvez tenha de ser contradição. Por mais que a retórica vigente seja analítica e procure camuflar e sufocar a dinâmica inerente ao caráter contraditório das coisas, é exatamente a lógica, enquanto identidade, que acaba sendo questionada pelo alegórico, à medida que neste a identidade se dá através do “outro” e no outro. Porém esse “outro” está naquilo, é aquilo que o designa como outro – não como quem gesticula, apontando para algo externo, mas porque contém nos traços básicos de sua estrutura aquilo que ele próprio aponta e significa. (Grifos do autor). Desse modo, pelo alegórico, quando se relaciona em As aventuras de um diabo malandro seu conteúdo manifesto a outros níveis latentes de conteúdo, pode-se ler também que lhe é subjacente intertextualidades com a discussão dialética que Benjamim faz entre aura e alegoria. Se genericamente definindo, a primeira pode ser conceituada como “a aparição única de algo distante, por mais próximo que esteja” (BENJAMIN, apud KOTHE, 1986, p. 49), pode-se se afirmar que pelo viés aurático, a peça de Kühner indica semelhanças entre dois momentos históricos distantes no tempo. Essas semelhanças podem ser resumidas na unilateralidade de pontos de vista sobre a realidade, sejam esses olhares oficializados pela religião, na Idade Média, seja pelas Forças Armadas de um país dando guarida ao capitalismo em seu processo de solidificação pelo mundo, na década de 1970. Quanto à segunda, sendo um procedimento que retira o caráter concreto dos fatos, elevando-os a uma categoria universal, através de um processo complexo, que é o reverso da aura, pode ser entendida na sua superficialidade como convenção, mas também como alteridade. É nesse sentido que, segundo Kothe (1978), Benjamin vê na alegoria relação com a história e com a história literária, entendendo também a obra de arte como uma expressão alegórica. IV CONALI - Congresso Nacional de Linguagens em Interação Múltiplos Olhares 05, 06 e 07 de junho de 2013 ISSN: 1981-8211 Decorrente e constituinte de uma visão de mundo, a obra de arte passa a ser então reveladora não somente de algo que houve, mas também do que não houve e do que não poderia nem deveria mais ser. Lidas desse modo, as obras são capazes de desvelar idéias, retomando-as e redescobrindo-as no curso da história. Tratam, portanto, de superações, perdas, e descontinuidades, livrando-se também elas de se converterem em ruínas. Sendo alegoria e, portanto “o outro” da história, é que o paralelo intertextual de As aventuras de um diabo malandro com Ópera do malandro, de Chico Buarque se faz mais revelador quando observadas à época em que foram produzidas. Enquanto Chico Buarque, em 1978, contrapondo a Era Vargas, em que se ambientam as ações, à Ditadura Militar, momento da escritura da peça – dois estágios de implantação do capitalismo por essas plagas – revela que o sistema acaba por cooptar a malandragem, transformando seus representantes, em Kühner, ela expulsa o capital. Nesse sentido, se o texto de Chico Buarque mostra mudanças na identidade dos malandros e vai indicando concretamente para o que estava se tornando a sociedade brasileira em determinado momento, a malandragem em Kühner aventa para o que poderia ter sido, ou seja, para as utopias e para o poder de transformação das faixas etárias mais jovens. De tal sorte que, como alegoria, As aventuras de um diabo malandro têm a possibilidade de alargar ainda mais suas perspectivas estéticas, o que revigora seu potencial para atualizar-se na cena brasileira e consequentemente atingir outros públicos que não apenas o de origem. 3. Ordem, desordem, comédia, literatura Pelo prisma que indica elementos folclóricos e eruditos unidos a um processo de elaboração e figurativização da linguagem que remete ao momento histórico e para a obra de arte como elemento alegórico e suas relações com a sociedade, é possível entender ainda o texto de Kühner como desvelador de certos dinamismos específicos da sociedade brasileira, ou seja, forças históricas escondidas no interior da peça, estruturando sua forma. IV CONALI - Congresso Nacional de Linguagens em Interação Múltiplos Olhares 05, 06 e 07 de junho de 2013 ISSN: 1981-8211 Por esse viés, podem-se identificar também em As Aventuras de um diabo malandro traços de intertextualidade com a discussão que Candido (2004) faz em Dialética da malandragem. A consequência disso é o diálogo que a obra de Kühner estabelece com uma tradição na novelística brasileira e, por sugestão do autor de Dialética da malandragem, com a obra de Martins Pena no teatro. Duas, entre outras questões, podem ser apontadas em relação a esse movimento, sugerindo as ligações de As aventuras de um diabo malandro com a Dialética da malandragem. A primeira diz respeito à ação inicial da peça. Já os nomes das personagens Capitolino e Comandante de início remetem à hierarquização e ordem militar, porém são invasores, o que pressupõe uma infração a uma ordem estabelecida no lugar invadido, ou seja, uma desordem. E para quem quiser lutar contra ela, diz Comandante: “corto-lhe o nariz”! A segunda diz respeito ao panorama limitado que também Kühner estabelece em relação à sociedade existente no tal planeta invadido através das personagens que ali são encontradas e às ações delas em relação aos invasores. Se em Memórias, Manuel Antônio de Almeida suprime as camadas de mando do Rio de Janeiro na primeira metade do século XIX e os escravos, responsáveis pelo trabalho, restringindo a visão de sociedade à gente livre e modesta da época, uma “organização bruxuleante fissurada pela anomia” (CANDIDO, 2004, p.38), Kühner trabalha com um processo semelhante, mas em vez de personagens que escapam ao sentido de classe, Kühner coloca em evidência discussões sobre faixa etária e cultura ao trazer como habitantes do lugar uma moça e um diabo. Por esse viés, o que a autora parece evidenciar é a percepção de que a sociedade moderna não é apenas constituída pelas estruturas de classe, mas também é organizada pelas “faixas etárias e a cronologização do curso da vida” (GROPPO, 2000, p. 12). Isso define a juventude como uma categoria social, ou também, “uma representação sócio-cultural e uma situação social” (Idem, p. 07). Dentro desse contexto é que as ações das personagens de Kühner também oscilam entre os dois polos. Não é a toa que, mesmo em crise de identidade, desejoso de ser um representante da desordem, ao saber da chegada de IV CONALI - Congresso Nacional de Linguagens em Interação Múltiplos Olhares 05, 06 e 07 de junho de 2013 ISSN: 1981-8211 Capitolino e Comandante, o Diabo diz: “Aqui é meu lugar de descanso! Temos que expulsá-los daqui!” (Kühner, 2011, p. 39). Para conseguir seu intento, o Diabo não hesita em apresentar-se como morador do lugar a fim de ocupar-se como empregado e divertir-se a expensas dos “patrões”. Nesse apresentar-se como empregado, a condição servil é pragmática e trata-se de restabelecer a ordem. Dito de outro modo, o Diabo, sendo representante da desordem, ao se envolver com a desordem instaurada pelos invasores em prol da ordem, desencadeia o movimento de gangorra entre os dois polos que estruturam a dinâmica da peça. O Diabo ao passar para o lado da desordem arrasta consigo também a Moça e promete, em nome dos dois, cumprir todas as ordens rigorosamente, sem desobedecer, pensar ou discutir, mas impõe uma condição, afinal gosta de tudo em termos de igualdade. Se fizerem tudo o que lhes for determinado e mesmo assim os mandantes ficarem descontentes, ele e Moça querem também o direito de cortar-lhes os narizes. Prepotentes, Capitolino e Comandante aceitam, pois, se Diabo e Moça trabalharem e obedecerem, só poderão ficar contentes. Essa proposição que passa a ter o cunho de teorema que precisa ser demonstrado é o que constitui o desenrolar das ações no palco. Assim, em três episódios que envolvem a esperteza do Diabo em sua habilidade para lidar com a linguagem, as personagens oscilam também entre o hemisfério da ordem e da desordem. Ao final, para Capitolino e Comandante não há outra solução senão entrar no foguete e fugir dali e a antiga ordem é reestabelecida. Contudo, as personagens que continuam no planeta distante voltam aos seus conflitos originais. Quanto ao Diabo, com sua ambiguidade ampliada: é “herói bonzinho” ou o “gênio do mal”? Quanto à Moça, persiste no seu sonho de ver a gente boa da Terra, da qual sua mãe já tanto lhe falara. Assim, o final ambíguo do texto de Kühner aponta para algumas maneiras de ler o texto. Uma possibilidade é observar que, restaurando no desfecho o antigo equilíbrio, a premissa de discussão da ordem e da desordem em As IV CONALI - Congresso Nacional de Linguagens em Interação Múltiplos Olhares 05, 06 e 07 de junho de 2013 ISSN: 1981-8211 aventuras de um diabo malandro, pode, em um primeiro momento, ser observada como um quesito congênito à forma utilizada por Kühner para a revitalização da alegoria: a comédia, “chão e a raiz do teatro brasileiro” (GUINSBURG, FARIA, LIMA 2009, p. 95). Pavis (2008, p. 52), por exemplo, afirma que “tradicionalmente, define-se a comédia por três critérios que a opõem à tragédia: suas personagens são de condição modesta, seu desenlace é feliz e sua finalidade é provocar o riso no espectador”. A justificativa para esse final feliz é que, segundo Pavis, mesmo a comédia pressupondo uma “visão contrastada e até contraditória de mundo”, a ponto de as personagens serem simplificadas e generalizadas para encarnarem de modo esquemático e pedagógico uma extravagância ou visão inusitada de mundo, a conclusão chama-as à ordem, às vezes com amargura, para reintegrálas à ordem social dominante. O riso dá-se então por cumplicidade ou superioridade. Vilma Arêas (1990, p. 15), por sua vez, diz que “esse final feliz, que partilha com os contos de fada o elemento simples da realização do desejo, é o que mais tem servido para diferenciar a comédia da tragédia”, mas é meramente convencional. Torna-se simplista por não levar em consideração o entrecho da obra e o conflito principal, tampouco a função que a temática exerce na estrutura da obra. É nesse ponto que, em As aventuras de um diabo malandro, ao restaurarse a antiga ordem, mas ao permanecer os conflitos individuais das personagens que ficam no planeta, há a historicização e, consequentemente, a atualização do gênero. Ao permanecer ao final também uma desordem individual nas identidades inconformadas, como em Memórias de um sargento de milícias, essa desordem também parece apontar para a suspensão do juízo de valor que legitima a malandragem como uma dinâmica de caráter social significativa nos modos de vida no Brasil. Ao final, permanecendo ao mesmo tempo a ordem na expulsão dos intrusos e a desordem na indefinição da identidade do protagonista e o desejo não IV CONALI - Congresso Nacional de Linguagens em Interação Múltiplos Olhares 05, 06 e 07 de junho de 2013 ISSN: 1981-8211 realizado de Moça, permanece também a ideia de Candido de que “o mundo hierarquizado na aparência se revela essencialmente subvertido” e que “ordem e desordem, portanto, extremamente relativas, se comunicam por caminhos inumeráveis”. (CANDIDO, 2004, p. 35). Diante do conflito que permanece, da fluidez entre ordem e desordem e dos dinamismos significativos de vida social brasileira reunidos no texto, as personagens que continuam no planeta distante ao final da peça suspendem no ar interrogações e contradições. O que é a identidade? É possível encontrar-se? Como resposta, ampliando ainda mais a discussão, o que parece sugerir o conflito das personagens no desfecho é mais um diálogo da peça de Kühner com um tema já discutido na literatura desde os primórdios da modernidade. Camões, por exemplo, assim o enuncia: “Todo o Mundo é composto de mudança, / tomando sempre novas qualidades. (...) E, afora esse mudar a cada dia, / outra mudança se faz com mais espanto, / que já não muda mais como soia”. Outra questão a ser relacionada, no texto de Kühner, à figura do Diabo e da Moça, ao processo de construção de identidades, ao universo jovem e também aos acontecimentos históricos é a própria situação da literatura dita infantil nos anos de 1970. Nesse aspecto, ao menos duas discussões podem ser destacadas. Uma delas é o permanente debate sobre autoritarismo ou emancipação como atitudes a serem promovidas pela literatura destinada a crianças e jovens. Essa demanda originária da ambiguidade fundante dessa literatura, entre o pedagógico e o literário, já tinha em Monteiro Lobato se livrado de sua tutoria, mas somente na década de 70, surgiram no Brasil “obras com dicção própria” e “autores capazes de dar tal contribuição ao gênero” (ZILBERMAN E MAGALHÃES, 1987, p. 139). Nesse sentido, mais uma intertextualidade pode ser identificada no texto de Kühner. Quando Comandante ameaça com o bordão “corto-lhe o nariz!” a quem o desobedecer, qualquer ameaça aos narizinhos arrebitados não será mera coincidência. A outra controvérsia diz respeito a uma temática própria da literatura destinada a crianças e jovens a partir da segunda metade do séc. XX: a IV CONALI - Congresso Nacional de Linguagens em Interação Múltiplos Olhares 05, 06 e 07 de junho de 2013 ISSN: 1981-8211 construção da própria personalidade, um tema realista ligado à vida em família, à convivência em sociedade e ao amadurecimento pessoal. Nessas circunstâncias, a confusão de identidade das personagens estabelece referências diretas com as discussões que eram feitas à época sobre a identidade da própria literatura infantil e hoje, marcando atualidades, sob os debates que se fazem sobre a existência ou não de uma literatura juvenil, tantas são as instâncias que as envolvem. 4. Intertextualidade e identidade Assim, se o que se percebe é que os recursos que Kühner viabiliza para a construção de As aventuras de um diabo malandro acabam por afirmar a íntima relação entre a temática e função que a mesma exerce na estrutura da obra, pode-se apontar o tema como um fator decisivo para o êxito de sua peça. Nesse sentido, a discussão sobre construção de identidades aponta, apesar da destinação inicial da peça ao público infantil, para o que estabelece o título do livro de Maria Helena Kühner, em 2011. Seu teatro destina-se a todas as idades. Isso por que, a partir do final ambíguo em termos de equilíbrio ou desequilíbrio, ordem ou desordem, as vozes intertextuais que perpassam o desenrolar das ações da peça parecem sugerir também que a identidade de uma criança, um jovem, das pessoas em geral e, por consequência, da cultura humana pelo mundo a fora nunca está completa. Faz-se em processo, à medida que acontecem os encontros, pelo diálogo, pela interação e superposição de experiências culturais. A identidade de um se reverbera na identidade do outro. Por esse processo, também é possível entender que a identidade de uma pessoa, esteja ela na idade em que estiver, ou de uma cultura, se faz sempre com fragmentos dela mesma e daqueles com os quais se intercomunica e nunca se completa. Está sempre em construção como se sugerisse um movimento. Se intermitente ou contínuo, depende da maneira como se olha. IV CONALI - Congresso Nacional de Linguagens em Interação Múltiplos Olhares 05, 06 e 07 de junho de 2013 ISSN: 1981-8211 REFERÊNCIAS ARÊAS, Vilma. Iniciação à Comédia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990. ARROYO, Leonardo. Literatura infantil brasileira. São Paulo: Editora UNesp, 2011. CANDIDO, Antonio. Dialética da malandragem. In: O discurso e a cidade. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2004. São Paulo: Duas Cidades. GUINSBURG, Jacó. FARIA, João Roberto. LIMA, Mariangela Alves de (Cord). Dicionário do teatro brasileiro: temas, formas e conceitos. São Paulo: Perspectiva: Edições SESC SP, 2009. HOUAIS, Antônio. VILLAR, Mauro de Sales. Dicionário Houais da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. KOTHE, Flávio René. O sentido da alegoria. In: Benjamin e Adorno: Confrontos. São Paulo: Editora Ática, 1978. ______. A Alegoria. São Paulo: Editora Ática, 1986. KÜHNER, Maria Helena. Teatro para crianças e jovens (de todas as idades). Rio de Janeiro: Ed. Vertente Cultural, 2011. 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