Distinção Essencial entre Fundação e
Associação e Algumas de suas
Conseqüências
Érika Spalding
Advogada
“De acordo com o censo de 2000 do terceiro setor - assim chamado por não visar
ao lucro -, o número de voluntários no Brasil cresceu de cerca de 150 000, em
1997, para 260 000, em 1999” (Revista Forbes, 31/01/2001)
“Embora não haja nenhum registro oficial, estima-se que existam no Brasil cerca
de 200 mil Organizações Não Governamentais, e que 2 milhões de pessoas são
empregados dessas ONGs. Nos Estados Unidos, para se ter uma idéia, o terceiro
setor movimenta, hoje, mais de US$ 600 bilhões anualmente e absorve um
contingente de 12 milhões de trabalhadores remunerados, mais uma infinidade de
pessoas que atuam como voluntárias. Nos EUA, o terceiro setor vem crescendo
vertiginosamente. Em 1990 movimentava cerca deUS$ 300 bilhões por ano, ou
seja, em um período de nove anos dobrou de tamanho.O fenômeno não é
localizado nos EUA. Em países da Europa como Itália, França e Alemanha o
terceiro setor já movimenta, anualmente, mais de 3% do PIB de cada país.”
(Administrador Profissional - Órgão Informativo dos Administradores Profissionais
de São Paulo - ANO XXII - nº158)
Como se pode observar, o desempenho e a conseqüente expansão do Terceiro
Setor no Brasil vem sendo festejado em tons jubilosos pela imprensa nacional. Em
tempo algum se ouviu falar tanto em oportunidades e iniciativas nesta área como
em 2001, Ano Internacional do Voluntariado, conforme declaração oficial da
Organização das Nações Unidas – ONU.
Entretanto, nada obstante a imensa veiculação de termos como “serviço
comunitário” e “desenvolvimento social”, mesmo nos segmentos onde mais se
constata o interesse pelo desenvolvimento do Terceiro Setor, como é o caso dos
setores ligados à cultura, à proteção ambiental, à saúde, à assistência social, à
educação
e
à
pesquisa
técnico-científica,
onde
atuam
os
chamados
“empreendedores sociais”, persistem alguns pontos que, dada a dificuldade que
representam, ainda são vistos como verdadeiros enigmas. Em alguns casos, a
escolha da forma jurídica para reger as entidades do Terceiro Setor é vista como
um destes enigmas.
Em vista disso, traçaremos um paralelo entre as duas formas jurídicas mais
comumente escolhidas para nortear as entidades do Terceiro Setor, quais sejam as
Fundações e as Associações.
Fundação pode ser definida como o patrimônio, personalizado pela ordem jurídica,
destinado a uma finalidade estipulada pelo seu instituidor. É, portanto, um acervo
de bens livres que recebe da lei a capacidade jurídica para realizar as finalidades
pretendidas pelo seu instituidor, em atenção aos seus estatutos. Nas palavras de
Maria Helena Diniz, fundação “é um patrimônio (propriedades, créditos ou
dinheiro) colocados a serviço de um fim especial”.1
Uma fundação pode ser constituída pelo Poder Público, como também por
liberalidade de particulares, pessoas físicas ou jurídicas, incluindo-se aí as
hipóteses de constituição pela decisão de um único indivíduo e a constituição por
testamento, após a morte do instituidor - singularidades estas que as diferenciam
de outras espécies jurídicas, tais como as sociedades civis e as associações.
Quando instituídas por indivíduos ou empresas, as fundações terão personalidade
de direito privado (denominadas “fundações de direito privado”), sendo
submetidas integralmente às normas e regras do Código Civil Brasileiro. Com
relação às fundações instituídas pelo Poder Público, em que pesem as inúmeras
discussões sobre o assunto e o fato de a doutrina ter assentado que é possível o
Estado fazer nascer tanto fundações de direito público, como de direito privado,
com a entrada em vigor da Emenda Constitucional nº 19, talvez não seja mais
1
Maria Helena Diniz, “Curso de Direito Civil Brasileiro”, 1º vol., pág. 146.
possível a instituição de fundações de direito público. Entretanto, para não nos
distanciarmos do escopo deste estudo, abordaremos apenas as fundações de
direito privado.
O Código Civil Brasileiro, em seus artigos 24 a 30, regula o instituto das fundações
de direito privado, tenham sido elas instituídas pelo Poder Público ou por
particulares. Estabelece que o instituidor deve, por meio de escritura ou
testamento, especificar os bens livres que a integram, a finalidade à qual são
destinados e a forma de administrá-los. Esta escritura, depois de aprovada pelo
Ministério Público, autoridade competente a regular o funcionamento da fundação,
deverá ser registrada em Cartório de Registro Civil de Pessoas Jurídicas, momento
em que começará a existência legal da pessoa jurídica, conforme determinado
pelos artigos 119 e 120 da Lei de Registros Públicos, Lei nº 6.015/73.
O objeto inserido no ato de instituição e no estatuto, e que expressa a vontade do
instituidor, tem o condão de reger a fundação por toda a sua existência. Os
estatutos somente poderão ser alterados mediante deliberação da maioria absoluta
dos órgãos de administração e aprovação do Ministério Público2, desde que tais
modificações não contrariem o fim da fundação.
Embora nosso diploma civil não estabeleça o montante mínimo relativo ao
patrimônio das Fundações, entende-se, inclusive por parte do Ministério Público,
que este deva ser suficiente para o cumprimento das finalidades das fundações.
Em alguns Estados, os curadores de fundações, ao apreciarem a constituição de
uma fundação, observam apenas o seu potencial, ou seja, a sua capacidade de
expansão, cujo grau poderá moderar a exigência de patrimônio inicial sólido.
Além do patrimônio inicial, em regra, os bens imóveis das fundações são
inalienáveis. Para Edson José Rafael “(1) determinados bens fundacionais,
especialmente os de natureza imobiliária, são, em tese, inalienáveis, quer por seu
caráter infungível, quer por suas específicas qualidades individuais que podem
2
art. 28 I e III do Código Civil e art. 1203 do Código de Processo Civil.
estar escrita e indissoluvelmente vinculadas à própria finalidade da fundação.; (...)
(2) a despeito de inalienáveis, alguns bens fundacionais podem ser suscetíveis de
sub-rogação,
fundamentada,
após regular
utilizando-se
aprovação pelos órgãos diretivos, de
processo
judicial
próprio,
(ou
por
forma
exceção,
procedimento administrativo) seguindo-se, em tudo, as normas gerais referentes
ao gravame de inalienabilidade ”.
Tal inalienabilidade, embora tida como regra, poderá ser dispensada quando restar
comprovado que a venda do bem imóvel não afetará a finalidade da fundação.
Exemplo disso é o caso da alienação de um bem imóvel qualquer, de pouca
utilidade para a fundação, em detrimento da aquisição de uma nova sede, onde
poderá ser instalado, por exemplo, um centro médico, um laboratório de pesquisa
ou uma escola.
Ademais, preleciona o autor que os “bens fungíveis, bem como todos e quaisquer
valores destinados a propiciar meios para a realização das finalidades das
fundações, podem ser, sob a estrita vigilância do Ministério Público, livremente
alienados.”3
Outra característica da fundação, talvez a mais marcante, é a presença do
Ministério Público como órgão velador de seu patrimônio e de suas atividades. Ao
teor do art. 26 do diploma civil, “velará pelas fundações o Ministério Público, onde
situadas”4, sendo que quando as atividades se estenderem a mais de um Estado, a
fundação será velada pelos Ministérios Públicos de cada Estado em que ela atuar.
Tal prerrogativa se justifica “primeiro, porque o patrimônio que compõe a
fundação pertence à sociedade ou a uma parcela desta, pois, quando a pessoa
3
4
Edson José Rafael, “Fundações e Direito”, São Paulo, Companhia Melhoramentos, 1997, pág. 103.
Dicionário Plácido e Silva, Vocabularium Jurídico, 2 ed., Rio de Janeiro, Forense, 1967, V. IV. - Velar. Do
latim “vigilare” (estar atento, estar vigilante), na terminologia jurídica é o verbo tomado na significação de
vigiar, cuidar, zelar tomando interesse, ou assistindo coisas e pessoas, para que nada lhes falte, para que não
pereçam, e cumpram o seu destino, como é para desejar e ser. (...) Em relação às coisas, não é somente
cuidar de sua conservação, zelar para que se mantenham íntegras e de acordo com a lei, mas fiscalizar as
suas atividades, quando a outrem se comente o encargo de administrá-las ou de dirigir seus negócios. É assim
o velamento do Ministério Público às fundações (CC, art. 26) que não se reduz à assistência que lhes deve
prestar, mas se estende à fiscalização permanente que sobre elas deve exercer.
jurídica fundacional (patrimônio destinado a um fim social) adquire personalidade
(no momento em que ocorre o registro no cartório de registro civil das pessoas
jurídicas) aqueles bens que passaram a constituir a fundação se desvincularam
totalmente do instituidor – surge uma pessoa nova, um novo sujeito de direitos e
obrigações, o qual não detém, por si, capacidade para exercitar direitos ou cumprir
tais obrigações, de vez que o próprio patrimônio é também a pessoa (não
pertencendo ao instituidor, ou aos membros de sua administração, nem ao Estado,
tampouco a seus usuários), necessitando, assim, de uma assistência diferenciada
por parte do Estado, uma vez que é público objetivo e indeterminado o “dono” do
patrimônio. Segundo, porque, diferentemente das demais pessoas jurídicas nas
quais pessoas físicas se unem para criação de um ente jurídico, geralmente
temporário e com especificação das atribuições, direitos e vantagens de cada um
dos seus membros, a fundação é um patrimônio que se transforma em pessoa.
Pessoa eternizada em seu próprio conceito. Pessoa jurídica a quem a lei assegura
a continuidade de seus objetivos, mesmo depois de sua extinção, como se vê no
artigo 30 do Código Civil”5 .
A nosso ver, esta é uma das maiores distinções entre as fundações e as
associações. Nas associações observa-se a união de pessoas em busca de uma
finalidade não econômica. Não giram em torno de um patrimônio comum, mas sim
em torno de um elemento pessoal (idéias e esforços dos associados). A fiscalização
é feita pelos próprios associados.
Nas associações as pessoas se unem por fins morais, filantrópicos, espirituais,
auto-ajuda, enfim, para alcançar um objetivo comum, distinto do lucro. Segundo
Carvalho de Mendonça, a essência da associação consiste em “reunir e congregrar
esforços6”.
Thomaz de Aquino Resende, 3º Setor Reflexões sobre o Marco Legal, ed. Fundação Getúlio Vargas, 1998,
pág 46.
5
6
Carvallho de Mendonça, Contractos no Direito Civil Brasileiro, Tomo II, 1938, 2ª ed., pág. 218.
Outro fato que distingue as pessoas associativas das fundacionais é a possibilidade
daquelas serem constituídas, em algumas hipóteses, com cunho social e em outras
com cunho simplesmente associativo.
Eduardo Szazi, em sua obra “Terceiro Setor Regulação no Brasil”, distinguiu o
cunho associativo e o social da seguinte forma, “verbis”:
“Buscando apoio nas ciências exatas, podemos definir as entidades de cunho
associativo ou de benefício mútuo como aquelas de natureza endógena, ou seja,
que dedicam suas ações ao benefício de seus quadros sociais. Já as entidades de
cunho social ou de benefício público são aquelas de natureza exógena, que atuam
em favor daqueles que estão fora de seus quadros sociais.”7
Na concepção do autor, com a qual corroboramos e concordamos, essa distinção
não se aplica às fundações, haja vista que estas têm por definição um fim público,
em benefício da coletividade.
No mais, a constituição de uma associação é significativamente mais simples que a
constituição de uma fundação. O processo se formaliza com o registro da ata que
aprova os estatutos e os dirigentes no Cartório de Registro de Pessoas Jurídicas da
sede da entidade.
Ante o exposto, pode-se concluir que, nada obstante algumas diversidades de
ordem operacional, o que de fato distingue fundações e associações é o contexto
para o qual elas são criadas. Enquanto na constituição de fundações almeja-se a
personificação de patrimônio, nas associações o objetivo consiste em congregrar
esforços para que sejam alcançados objetivos comuns entre os associados. Desta
distinção decorrem algumas conseqüências que norteiam o funcionamento das
entidades em estudo, a saber:
7
Eduardo Szazi, Terceiro Setor Regulação no Brasil, ed. Fundação Peirópolis, 2ª ed., São Paulo, 2001, pág. 28.
I.
FINALIDADES
As finalidades das fundações não poderão, em qualquer hipótese, ser
alteradas. Admite-se, entretanto, que algumas regras dos estatutos (que não
afetem as finalidades) sejam modificadas, devendo, para tanto, haver deliberação
da maioria absoluta dos órgãos de administração e aprovação do Ministério Público
(art. 28 do Código Civil).
As associações poderão, na forma prevista em seus estatutos, alterar ou
adaptar suas finalidades aos interesses dos associados.
II. PATRIMÔNIO
Embora não expressamente previsto em lei, é pacífico o entendimento de
que a constituição de fundação depende de patrimônio inicial suficiente para o
cumprimento de seus objetivos sociais.
Não há exigência de patrimônio inicial ou de recursos mínimos para
constituição de associação.
III. ALIENAÇÃO DE BENS
Os bens imóveis das fundações, como regra, são inalienáveis.
Os bens das associações podem, de acordo com seus estatutos e com a
vontade de seus administradores, ser alienados.
IV. FISCALIZAÇÃO
Ao Ministério Público compete velar pelas fundações.
A fiscalização das associações é feita pelos próprios associados.
V.
ADMINISTRAÇÃO
Prevalece a vontade do instituidor, inclusive quanto à forma de
administração.
Os associados têm representatividade (poder de voto nas Assembléias).
VI. TITULAÇÃO DE MEMBROS
As fundações não podem conceder títulos aos seus integrantes.
As associações podem conceder títulos aos seus membros (ex. sócios
eméritos, beneméritos etc.).
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