UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE ADRIANA LEITE DO PRADO REBELLO O uso do imperfeito do indicativo pelo futuro do pretérito: uma contribuição ao ensino de português do Brasil para estrangeiros Niterói 2008 ADRIANA LEITE DO PRADO REBELLO O uso do imperfeito do indicativo pelo futuro do pretérito: uma contribuição ao ensino de português do Brasil para estrangeiros Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense, na Área de Concentração Estudos de Linguagem, Linha de Pesquisa Ensino e Aprendizagem de Línguas, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras. Orientadora: Profª. Doutora Norimar Júdice Niterói 2008 Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá R291 Rebello, Adriana Leite do Prado. O uso do imperfeito do indicativo pelo futuro do pretérito: uma contribuição ao ensino de português do Brasil para estrangeiros / Adriana Leite do Prado Rebello. – 2008. 125 f. Orientador: Norimar Júdice. Tese (Doutorado) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de Letras, 2008. Bibliografia: f. 120-124. 1. Língua portuguesa – Estudo e ensino – Falantes estrangeiros. 2. Língua portuguesa no Brasil – Estudo e ensino. 3. Língua portuguesa – Gramática - Verbos. I. Júdice, Norimar. II. Universidade Federal Fluminense. III. Título. CDD 469.0202 ADRIANA LEITE DO PRADO REBELLO O uso do imperfeito do indicativo pelo futuro do pretérito: uma contribuição ao ensino de português do Brasil para estrangeiros Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós -graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense, na Área de Concentração Estudos de Linguagem, Linha de Pesquisa Ensino e Aprendizagem de Línguas, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras. Aprovada por: BANCA EXAMINADORA ______________________________________________________________________ Profª. Drª Norimar Júdice - Orientadora Universidade Federal Fluminense ______________________________________________________________________ Profª. Drª Rosa Marina de Brito Meyer Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro ______________________________________________________________________ Profª. Drª. Patrícia Maria Campos de Almeida Universidade Federal do Rio de Janeiro ______________________________________________________________________ Profª. Drª. Lygia Maria Gonçalves Trouche Universidade Federal Fluminense ______________________________________________________________________ Profª. Drª. Rosane Santos Mauro Monnerat Universidade Federal Fluminense ______________________________________________________________________ Prof. Dr. Ricardo Borges Alencar - Suplente Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro ______________________________________________________________________ Profª. Drª. Wanda Maria Cardoso Meneses – Suplente Universidade Federal Fluminense Agradecimentos À minha orientadora Norimar Júdice, pela dedicação, pelo carinho e pela paciência durante todos os momentos de orientação deste trabalho; Aos professores que participaram da Comissão examinadora; Aos funcionários e professores do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFF, pelo apoio administrativo, pela dedicação e atenção. À querida amiga e colega de trabalho Ana Maria de Carvalho do Programa de Português para Estrangeiros da UFF e aos queridos amigos e colegas da equipe de Português para Estrangeiros da PUC-Rio, pelo incentivo, por todas as palavras de carinho e pela ajuda emocional e intelectual nos momentos necessários; A todos os meus amigos que acompanharam o processo de elaboração desse trabalho, transmitindo positividade nos momentos de desânimo; A José Luis Ramirez, por seu companheirismo, carinho e paciência em todos os momentos e pela ajuda técnica; À minha mãe e ao meu pai (in memoriam ) por terem investido em minha formação como pessoa e como profissional. RESUMO Este estudo aborda o uso do pretérito imperfeito do indicativo pelo futuro do pretérito, no português do Brasil, visando ao ensino de língua portuguesa para estrangeiros. Tendo como base teórica contribuições da Lingüística Textual e da Teoria da Polidez, e recorrendo à proposta de Travaglia (1999) de categorização dos usos do futuro do pretérito, procedeu-se à análise de um corpus extraído de 46 textos de entrevistas da Revista Caros Amigos. A partir dos resultados da pesquisa, elaborou-se um quadro de usos do futuro do pretérito que, abarcando casos em que é possível ou não sua substituição pelo pretérito imperfeito do indicativo, pode servir de guia para professores de português para estrangeiros. PALAVRAS-CHAVE futuro do pretérito; pretérito imperfeito do indicativo; ensino de português para estrangeiros; português do Brasil. ABSTRACT This study examines the use of the imperfect tense in place of the conditional tense in Brazilian Portuguese, bearing in mind its usefulness in the teaching of the Portuguese language to foreigners. An analysis of a collection of 46 interviews from the magazine Caros Amigos was conducted, having as a theoretical base the contributions from Textual Linguistics and the Politeness Theory as well as resorting to Travaglia’s (1999) proposal on the categorization of the use of the Conditional tense. A table that summarizes the uses of the conditional tense and that indicates when a substitution by the imperfect tense is suitable was elaborated. The findings of this study and the generated table could serve as a guide to professionals involved in teaching Portuguese to foreigners. KEYWORDS Conditional tense, Imperfect tense, Portuguese for foreigners, Brazilian Portuguese. SUMÁRIO 1- INTRODUÇÃO 08 2- ABORDAGENS DO USO DO FUTURO DO PRETÉRITO E DO PRETÉRITO IMPERFEITO DO INDICATIVO 12 2.1- O futuro do pretérito e o pretérito imperfeito do indicativo nos estudos tradicionais de PLM 12 2.2- O futuro do pretérito e o pretérito imperfeito do indicativo em gramáticas e manuais de PBE 17 2.3- Estudos específicos sobre o uso do pretérito imperfeito do indicativo pelo futuro do pretérito 21 3- FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA 24 3.1- O papel textual-discursivo do verbo 24 3.2- Texto, contexto e co-texto 28 3.3- O gênero entrevista 30 3.4.- O futuro do pretérito e seu uso textual 32 3.5- Teoria da polidez e conceito de face 35 3.6- O futuro do pretérito e o pretérito imperfeito nas orações condicionais 39 3.7- O futuro do pretérito e o pretérito imperfeito - a noção de modalidade 45 3.8- O futuro do pretérito e o pretérito imperfeito com os auxiliares modais 51 3.9- O futuro do pretérito e o pretérito imperfeito – paralelismo 55 4- PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS 58 4.1- Corpus – coleta e organização 58 4.2- Procedimentos empregados na análise dos dados 58 5- ANÁLISE DOS DADOS 61 5.1- Grupo temporal cronológico 61 5.2- Grupo temporal polifônico 67 5.3- Grupo nocional condição 71 5.4- Grupo nocional polidez 85 5.5- Grupo nocional desejo 95 5.6- Auxiliares Modais 99 6- CONCLUSÃO 112 7- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 120 8- ANEXO 125 1- Introdução O estudo de língua estrangeira na atualidade faz uso de metodologias que privilegiam a interação do aprendiz em diferentes situações de uso da língua. As atividades visam a produzir situações de comunicação real ou simulada, sendo, portanto, mais interativas. O ensino é centrado no aluno que, por sua vez, é levado à reflexão e à elaboração de suas próprias hipóteses sobre as regras do funcionamento da língua, mostrando assim certa autonomia. O aprendiz deixa então de exercer um papel passivo no processo de ensino-aprendizagem e o professor abandona o papel de distribuidor de conhecimento para assumir o de orientador. As técnicas utilizadas em sala de aula, por exemplo: incentivam, através da proposta de trabalhos em grupo, a comunicação entre os alunos; estimulam a criatividade por intermédio de atividades de dramatização; valorizam a leitura de textos autênticos, em oposição àqueles criados somente para fins pedagógicos. Através dessas técnicas, o aluno é incentivado a participar de forma efetiva como agente de seu processo de aquisição. Além de adquirir o saber lingüístico, o aprendiz adquire o saber sociolingüístico, ou seja, estuda as normas de uso da língua alvo na sociedade em que se inscreve. O professor, por sua vez, preocupa-se em criar condições para a construção do conhecimento lingüístico do estudante, levando em conta, entre outros, o contexto social em que o aluno interage com os nativos e a situação de interlocução em foco. Por exemplo, além de se preocupar em ensinar a conjugação de verbos no futuro do pretérito (FP), o professor também deixa claro para o aluno que formular pedidos com verbos nesse tempo verbal pode deixar expresso um distanciamento entre os interlocutores e a intenção do interlocutor de expressar polidez (Você PODERIA preencher esta ficha?)1 Como podemos constatar, as metodologias utilizadas atualmente no ensino de línguas estrangeiras valorizam o conhecimento da língua e suas normas de uso em detrimento do estudo da língua restrito ao nível da frase. Há metodologias que criticam o ensino de base puramente gramatical, existem outras que criticam o 1 Os exemplos que se apresentam em itálico nesse estudo referem-se aos criados pela autora dessa pesquisa. Os que estão entre as pas correspondem aos de outros autores. 9 ensino focado exclusivamente na comunicação. Ressaltamos que o importante é lembrar que a competência lingüística é parte da competência comunicativa e também que, para o aprendiz atingir essa competência, é necessário que ele domine as normas da língua e saiba como aplicar esses conhecimentos em diversas situações de uso. Da nossa prática do ensino de português do Brasil como língua estrangeira surgiu o interesse em estudar o emprego do pretérito imperfeito do indicativo (PI) pelo futuro do pretérito (FP), pois constatamos que é difícil assegurar ao aluno estrangeiro como e quando realizar de forma segura e consciente o emprego de um tempo pelo outro. Depois de considerar com nossas turmas algumas ocorrências como – Se eu fosse você, COMPRARIA/COMPRAVA um computador novo. – e observar que a utilização da forma COMPRAVA por COMPRARIA é comum no registro informal falado e escrito, os alunos perguntavam se sempre poderiam fazer o uso de um tempo pelo outro. Respondíamos que não, pois a substituição nem sempre pode ser feita, como é possível observar no enunciado Por favor, eu GOSTARIA de uma água com gás. Aqui temos o verbo gostar no FP, contudo, no português do Brasil, não o utilizamos no PI para fazer uma solicitação (Por favor, eu GOSTAVA de uma água com gás). Tal construção, entretanto, é comum em Portugal. Diante de uma possível notícia de jornal, como - A arma encontrada com o traficante SERIA do policial militar. - haveria também um problema na utilização o PI pelo FP, pois o jornal responsável pela notícia usa a forma SERIA com a intenção de não se comprometer com a verdade, até que ela seja de fato provada. Informados de que a substituição do FP pelo PI não era possível em todos os casos, os estudantes estrangeiros geralmente indagavam em que casos poderiam e em que casos não poderiam efetivá-la. E esbarrávamos, então, na impossibilidade de oferecer uma orientação segura para os aprendizes, pelo fato de não haver informação suficiente sobre essa questão nos livros didáticos e gramáticas de português do Brasil para estrangeiros (PBE) e de português língua materna (PLM) em circulação. Embora algumas gramáticas de PLM e gramáticas e manuais de PBE tratem do uso do PI pelo FP, não abrangem os casos em que a alternância desses tempos possa ser inadmissível. Para os falantes nativos da língua portuguesa, não seria problema decidir entre um ou outro tempo. No entanto, de que meios o aprendiz 10 estrangeiro dispõe para fazer o emprego correto do PI pelo FP? E como o professor poderá orientar seus alunos estrangeiros, se tampouco há estudos voltados para esse público, que ofereçam uma sistematização prática do uso do PI pelo FP? Torna-se necessário, portanto , um aprofundamento do estudo do fato lingüístico em questão e a sua descrição, a fim de que possam ser estabelecidos parâmetros coerentes e seguros que possibilitem ao aprendiz do português como língua estrangeira atingir uma maior comunicabilidade na língua portuguesa. Nosso objetivo nessa pesquisa é levantar os casos em que o PI pode ser usado pelo FP, elaborando um quadro de usos do FP, que abarque os casos em que esse tempo verbal pode ser substituído pelo PI. O estudo desses tempos verbais não se restringe apenas à descrição de sua forma, mas também à análise de seu significado no contexto em que se insere. Segundo Travaglia (2004), os verbos também exercem um papel importante para a coesão e a coerência do texto. Atuam na argumentação, na preservação de faces e também possuem outros usos, como operadores textuais-discursivos, podendo funcionar como: “... estabelecedores de ênfase e relevo; marcadores conversacionais; marcadores temporais; operadores argumentativos; encadeadores e/ou conectores; funções ligadas ao desenvolvimento do tópico textual (introdução de tópico, paráfrase, correção, reformulação, enumeração, exemplificação...) etc.” (idem, ibidem, 2004: 160) Tendo em conta nosso objetivo de realizar esta pesquisa, chegamos à elaboração das seguintes hipóteses: a) o emprego do PI pelo FP não ocorre de forma aleatória; b) não somente as formas simples do PI, mas também perífrases são empregadas pelo FP; c) há casos em que, no português do Brasil, o FP não pode ser substituído pelo PI. Consideramos que a descrição do uso do PI pelo FP é relevante, diante da escassez de meios que orientem o professor de PBE e o aprendiz estrangeiro a realizarem esta substituição de maneira eficaz. Propomos, então, a seguinte 11 questão: Em que contextos comunicativos e com que modalidade de verbo o uso do PI pelo FP é possível? Este trabalho está dividido em oito partes. A primeira é dedicada a um breve panorama do estudo de língua estrangeira na atualidade. Apresentamos também os motivos que nos levaram a realizar esta pesquisa, justificando a escolha do tema e também expomos as hipóteses e objetivos traçados para o referido estudo. No capítulo 2, apresentamos as abordagens do uso do FP e do PI na visão de lingüistas e gramáticos consagrados no Brasil, em gramáticas e manuais de grande circulação no Brasil, voltados para o ensino de PBE, como também mostraremos estudos específicos sobre o uso do PI pelo FP no português do Brasil. No capítulo 3, são apresentados os fundamentos teóricos que nos guiaram na descrição do uso do PI pelo FP. Conceitos advindos da Lingüística Textual e da Teoria da Polidez foram importantes para a realização dessa pesquisa, visto que descrevem os fatos lingüísticos, levando em conta aspectos textuais, discursivos e culturais. No capítulo 4, descrevemos os procedimentos metodológicos, de caráter qualitativo e interpretativo, adotados nessa pesquisa, como também as características de nosso corpus. O capítulo 5 é dedicado à análise do nosso corpus, que foi dividido em seis grupos, com base na classificação do uso do FP, proposta por Travaglia (1999). No capítulo 6, apresentamos as conclusões de nosso trabalho, também falamos acerca da utilidade de nossa pesquisa para o ensino do Português como L2 e das previsões de futuros desdobramentos. A seguir, apresentamos as referências bibliográficas e o anexo , composto pelas entrevistas das quais extraímos nossos dados. 12 2 – Abordagens do uso do futuro do pretérito e do pretérito imperfeito do indicativo. Neste capítulo, faremos uma revisão da bibliografia existente sobre o uso do FP e do PI, bem como sobre o emprego do PI pelo FP. No item 2.1, apresentaremos a abordagem de gramáticas e manuais, de ampla circulação, destinados ao ensino de português do Brasil, no item 2.2, será a vez das gramáticas e manuais de PBE e, no item 2.3, mostraremos estudos específicos sobre o uso do PI pelo FP. 2.1- O futuro do pretérito e o pretérito imperfeito nos estudos tradicionais de PLM De acordo com Cunha e Cintra (1985), o pretérito imperfeito tem como valor fundamental o de indicar um fato passado não concluído, contendo “uma idéia de continuidade, de duração do processo verbal mais acentuada do que os outros tempos pretéritos, razão por que se presta especialmente para descrições e narrações de acontecimentos passados” (idem, ibidem: 439). Esses autores apresentam a seguinte utilização do futuro do pretérito: “ (...) para designar ações posteriores à época de que se fala; para exprimir a incerteza sobre fatos passados; como forma polida de presente em geral denotadora de desejo; em certas frases interrogativas e exclamativas para denotar surpresa ou indignação; nas afirmações condicionadas, quando se referem a fatos que não se realizaram e que, provavelmente, não se realizarão” (idem, ibidem: 450-452) Além disso, atestam que o pretérito imperfeito pode ser empregado pelo futuro do pretérito “para denotar um fato que seria conseqüência certa e imediata de outro, que não ocorreu, ou não poderia ocorrer: “Tivesse ele os meios e isto VIRAVA um fazendão.” (Monteiro Lobato, 1962 apud Cunha e Cintra, 1985: 440). Acrescentam ainda que esta substituição ocorre nas afirmações condicionadas, apresentando os seguintes exemplos: “Sem a sua interferência, eu ESTARIA 13 perdido.” E “Sem a sua interferência, eu ESTAVA perdido.” (Cunha e Cintra, 1985: 452). Segundo os autores, na primeira afirmação, o “ESTAR PERDIDO” é a conseqüência provável da oração condicional, que não se realizou e, no segundo exemplo, a conseqüência apresenta-se como um fato irrefutável. Cunha e Cintra acrescentam ainda que o futuro do pretérito do indicativo é freqüentemente substituído por construções constituídas por verbos modais como PODER, DEVER, SABER, QUERER, DESEJAR, SUGERIR, etc, exemplificando: “Que móveis SUGERIA para uma sala?” (M.J. de Carvalho, 1978 apud Cunha e Cintra, 1985: 452) e “Que palavras um sujeito PODIA usar para responder ao Vieirinha?” (F. Namora, 1974 apud Cunha e Cintra, 1985: 452). Analisando outras gramáticas do português de ampla circulação, em Rocha Lima (1987), não encontramos nenhuma referência ao emprego dos tempos verbais por nós pesquisados. Já Bechara (1999) declara que o pretérito imperfeito do indicativo é empregado: quando descrevemos o que era presente, conduzindo nossas mentes para o passado; nos pedidos e solicitações, expressando modéstia; mas também afirma que o pretérito imperfeito do indicativo “principalmente na conversação pode substituir o futuro do pretérito, quando se quer exprimir fato categórico ou a segurança do falante: Se me desprezasses, MORRERIA , MATAVAME.” (Castelo Branco, s/d apud Bechara, 1999: 278). De acordo com Said Ali (1930), o futuro do pretérito pode exprimir “convicção ou certeza de que alguma coisa se realizará ou deixará de realizar-se” (idem, ibidem: 226); pode ocorrer em frases interrogativas que expressam intenção de polidez, como se o interlocutor não quisesse parecer inoportuno ao fazer a sua pergunta : O senhor DIRIA então que ele pode ser o principal suspeito? (neste caso, a indagação pode ser feita pelo falante para si mesmo, como uma forma de chegar a alguma conclusão através do raciocínio: SERIA ele o principal suspeito?); também pode ser utilizado para aceitar um fato como real ou possível, dependendo da realização de outro fato prévio: Se ele tivesse sorte, teria sido premiado com a casa própria. Em seguida, o autor faz referência ao uso do PI pelo FP nos períodos compostos por orações condicionais (idem, ibidem: 233). Said Ali tampouco se esquece da perífrase ia + infinitivo (IA FALAR, ÍAMOS COMER, IAM ABRIR, etc.) como forma alternativa para o futuro do pretérito. Ainda sobre o uso deste tempo, 14 afirma que é empregado para “dizer coisas com alguma timidez, com receio de errar ou contrariar.” (idem, ibidem: 236); além disso, aponta sua presença no discurso indireto. Em Garcia (1988:75), na seção intitulada “Tonalidades aspectuais nos tempos simples e compostos”, o autor apresenta os diferentes significados de algumas formas verbais, como o presente do indicativo, o pretérito mais-que-perfeito simples, o futuro do presente. Entre essas formas encontramos o pretérito imperfeito do indicativo, mas não há nenhuma abordagem do futuro do pretérito. De acordo com Garcia (idem, ibidem: 70-71), o PI pode expressar “simultaneidade, concomitância ou duração no passado (...), habitualidade no passado (...), vontade ou desejo (...), em discurso indireto implícito, idéias, opiniões, sentimentos alheios, num contexto em que se subentende um verbo dicendi (...).” Além das formas de expressão acima, o autor destaca que o PI é comumente usado no lugar do FP, na linguagem familiar e exemplifica: “Disseste que VINHAS (= virias) e não vieste.”, “Se pudesse, FAZIA -LHE (= far-lhe-ia) uma visita.” Garcia (idem, ibidem: 71) ainda observa que o uso do PI pelo FP pode ocorrer na linguagem escrita, literária, no entanto mantendo as características linguagem coloquial. O exemplo apresentado pelo autor e o seguinte: “O alfaiate vizinho venceu dificuldades para vesti-lo de improviso no último apuro, visto que os seus baús CHEGAVAM tarde. (Camilo apud Brandão, op. cit., p. 503).”. Neves (2000), em sua Gramática de usos do português, propõe-se a mostrar a língua em uso no português do Brasil. Para isso, a obra “parte dos próprios itens lexicais e gramaticais da língua e, explicitando o seu uso em textos reais, vai compondo a ‘gramática’ desses itens, isto é, vai mostrando as regras que regem o seu funcionamento em todos os níveis, desde o sintagma até o texto.” (idem, p. 13). A autora, então, parte da observação dos usos reais da língua portuguesa para depois sistematizá-los com base em uma orientação teórica definida. Há uma referência ao FP e ao PI no capítulo destinado à análise das construções das orações condicionais (idem, ibidem: 829), que são classificadas em factuais, contrafactuais e eventuais. O FP e o PI entram na apresentação do esquema modo-temporal das orações condicionais contrafactuais proposto por Neves (idem, ibidem: 850-852), como podemos ver através de alguns exemplos que selecionamos daqueles oferecidos pela autora: (a) “Se eu não cuidasse de mim, hoje ESTAVA na rua da amargura.”; (b) “Se fosse outro, TOMARIA o destino de um 15 bar, de um dancing, de uma boite.”; (c) Se o senhor não tivesse benzido o bichinho, a essas horas ele ainda ESTAVA vivo.”; (d) Se você tivesse nascido no mesmo dia 22 de março, mas às 18 horas, o seu ascendente FICARIA assim.” Apesar de não termos encontrado nenhuma orientação para o uso do PI pelo FP na obra de Neves (2000), a sua proposta de descrição das orações condicionais contrafactuais será útil para nossa pesquisa, quando tratarmos do uso do PI pelo FP nesse tipo de oração, no capítulo 3, destinado aos nossos pressupostos teóricos. Em relação ao FP, Câmara (1967: 45-46), apresenta três valores expressos pelo FP, no português: (1) um fato que realmente aconteceu: “Ele disse que VIRIA . (e cumpriu a promessa)”; (2) algo que está para acontecer: “Ele disse que VIRIA . (amanhã)”; (3) o que foi fruto de uma previsão equivocada e que não ocorreu: “Ele disse que VIRIA . (e não apareceu)”. De acordo com o autor, o exemplo (1) apresenta um FP tipicamente temporal e, para que isso ocorra, é necessário que “a referência ao passado se decomponha em eventos sucessivos em função do primeiro, que é objetivado em sua realidade, ou, noutros termos, surpreendido em sua ocorrência.” (idem, ibidem: 46). No caso da presença do FP no discurso indireto, o falante não atualiza o passado, como acontece no presente histórico (Em 1822, D. Pedro PROCLAMA a independência do Brasil.), mas se coloca em um momento diferente do da fala – um futuro em relação a um pretérito. No exemplo (2), o FP poderia ser substituído pelo futuro do presente (“Ele disse que VIRÁ amanhã.”), pois o momento do futuro em relação ao pretérito não sofreria alteração. Para que o futuro do presente (virá) seja usado, temos que considerar o ponto de vista do momento presente e não o momento no qual se anunciou a vinda. O exemplo (3) mostra o FP como expressão do “irreal” 2, modalidade através da qual o falante revela se crê ou não no que diz, no momento em que diz. Aprofundaremos esse conceito no capítulo 3 (seção 3.6). 2 Em lugar do termo “irrealidade”, podemos encontrar o termo irrealis, utilizado por alguns autores, no intuito de se esclarecer que esse valor modal não consiste no oposto do que é real. Irrealis é uma modalidade gramatical utilizada para expressar a incerteza quanto à realização do que se declara. Nesse estudo, preferimos utilizar o termo irrealidade (e o termo irreal) entre aspas, para nos aproximarmos da nomenclatura utilizada por Travaglia (1999) e Câmara (1967). 16 Câmara (idem) também apresenta as formas que são utilizadas no lugar do FP: perífrase com IA + infinitivo (ia vir), locução com DEVER, PODER, etc., no PI (DEVIA VIR, PODIA VIR) e acrescenta: “São variantes mórficas de uma mesma significação básica, que às vezes, até, alternam num dado texto sob impulsos estilísticos, em que entram o propósito de quebrar a monotonia formal e, mais ainda, o de acentuar certas diferenças modais.” (idem, ibidem: 46). No capítulo intitulado “A condição e a irrealidade” (idem, ibidem: 74), o autor explora mais ao uso do PI pelo FP. Ele afirma que o PI pode representar uma “maneira concreta e palpável, por assim dizer, de considerar a hipótese expressa, em vez de esfumá-la na distância.” É a expressão do “irreal”, através da qual o locutor apresenta algo como hipotético, mas que, por razões estilísticas, ele quer mostrar que aquela situação é mais provável. Vejamos alguns exemplos apresentados por Câmara (idem): (1) “Eu, se fosse Presidente da República, PROMOVIA a reforma da Constituição, para o único fim de chamar-me governador. FICAVA assim um governador cercado de presidentes, ao contrário dos Estados Unidos da América do Norte, e fazendo lembrar Napoleão, vestido com a modesta farda lendária, no meio dos seus marechais em grande uniforme.” (Machado de Assis, s/d : 17; apud Câmara, 1967: 75) (2) “Eu entrado que fosse na ilha, COMEÇAVA por não sair mais dela.” (Machado de Assis, s/d: 17; apud Câmara, 1967: 75). (3) “FAR-ME-IA rei sem súditos. FICARÍAMOS três pessoas...” (Machado de Assis, s/d: 17; apud Câmara, 1967: 76). No exemplo (2), o narrador usa o PI para marcar o momento da posse, mas, na continuação da sua narração (o exemplo 3), ao expor seus projetos para quando estivesse instalado na ilha, muda para o FP. De acordo com Câmara (idem), esse tempo é mais utilizado para a exposição das intenções do locutor. O autor afirma que o PI distingue-se do FP da mesma maneira que o presente do indicativo usado no lugar do futuro se distingue do futuro do presente. E utiliza os exemplos (2) e (3) para comprovar essa correlação, através da qual teríamos uma narrativa futuramente possível, diferentemente da anterior, que expressa o “irreal”. 17 (2) “Eu entrado que FOR na ilha, COMEÇO por não sair mais dela.” (Machado de Assis, s/d: 17; apud Câmara, 1967: 75). (3) “FAR-ME-EI rei sem súditos. FICAREMOS três pessoas...” (Machado de Assis, s/d: 17; apud Câmara, 1967: 76). Apesar de realizar um estudo aprofundado do FP e considerar o PI como seu possível substituto, Câmara (idem) não considera as situações em que o PI não pode ser utilizado no lugar do FP. Como vimos, nos textos de gramáticos e lingüistas brasileiros pesquisados, não há descrição dos casos em que o emprego do PI pelo FP não é possível, pois, tratando do português como primeira língua, não necessitam orientar o falante nativo, que já realiza esse emprego de forma intuitiva. 2.2 - O futuro do pretérito e o pretérito imperfeito em gramáticas e manuais de PBE As gramáticas e os segmentos destinados ao ensino dos componentes gramaticais nos manuais de ensino do português do Brasil para estrangeiros mencionam o emprego do pretérito imperfeito do indicativo pelo futuro do pretérito do indicativo, não explicitando de forma satisfatória como, quando e em que circunstâncias ele ocorre. Os autores analisados foram Prista (1966); Thomas (1974); Lombello e Baleeiro (1983); Ramalhete (1984); Ramalhete (1985); Lima e Iunes (1990); Lima et al. (1991); Rodrigues, El Dash, Lombello (1992); Laroca, Bara e Pereira (1992); Patrocínio e Coudry (1994); Marchant (1994); Lima, Bergweiler e Ishihara (1995); Laroca, Bara e Pereira (1996); Hutchinson e Lloyd (1996); Marchant (1997); Lima e Iunes (1999); Ponce, Burim e Florissi (1999); Patrocínio e Coudry (2000); Masip (2000); Ponce, Burim e Florissi (2000); Ribeiro e Grannier (2001); Celli (2002); Perini (2002); Lima, Iunes e Leite (2003). Prista (1966: 57) afirma que o PI é freqüentemente usado no português no lugar do FP e exemplifica: “DESEJAVA ler este livro. / Não sabia que eles VINHAM” (DESEJAVA está empregado no lugar de DESEJARIA e VINHAM está usado no lugar de VIRIAM). Os únicos dois exemplos oferecidos podem levar a falsas generalizações. No primeiro deles, com o verbo DESEJAR no pretérito imperfeito do indicativo, o aprendiz poderia deduzir, por exemplo, que, nessa frase, outro verbo 18 que expressasse desejo poderia ser usado nesse tempo verbal. Em substituição a DESEJAVA, não poderia ser usado o verbo GOSTAR (gostava) no português do Brasil. Em relação ao segundo exemplo dado por Prista: “Não sabia que eles VINHAM.”, constatamos que, se substituirmos o verbo VIR pelo verbo CONVIDAR, por exemplo, não poderemos usar o PI pelo FP e dizer: Não sabia que eles me CONVIDAVAM. Observa-se, então, que o autor não forneceu exemplos suficientes para assegurar o aprendiz de português quando utilizar o PI pelo FP de forma segura. Thomas (1974: 68) afirma que o pretérito imperfeito do indicativo pode ser empregado pelo futuro do pretérito “em qualquer circunstância”: “For the conditional in any circunstances : (normally expressed in English by the auxiliary WOULD).” E exemplifica em português, traduzindo a seguir seus exemplos para o inglês: “Eu QUERIA ir. / I’d like to go. – Ele disse que IA. / He said he’d go. Sabemos que o imperfeito do indicativo não pode ser sempre usado no lugar do futuro do pretérito do indicativo, então a afirmação feita por Thomas é equivocada. Em Rodrigues, El Dash e Lombello (1992:95-96), as autoras afirmam que o imperfeito do indicativo é também usado quando fazemos referências a situações irreais ou imaginárias em linguagem adulta na língua do dia-a-dia: “Ah, se eu ganhasse na loteria, eu DAVA a volta ao mundo...”. Ou seja, só há referência a um tipo de uso dos tempos por nós estudados, ignorando assim outras possibilidades. Laroca, Bara e Pereira (1992) somente se referem ao nosso tema no que tange aos graus de polidez, mas não deixam claras as nuances que o emprego do pretérito imperfeito do indicativo pelo futuro do pretérito pode imprimir ao enunciado (idem, ibidem: 35). Em Patrocínio e Coudry (1994), encontramos uma referência ao uso do pretérito imperfeito do indicativo pelo futuro do pretérito do indicativo como uma forma coloquial de solicitação: “A senhora PODERIA dar um recado a ele”? (A senhora PODIA ...?) (idem, ibidem: 155). Os autores também ressaltam que “as formas IA VIAJAR e VIAJAVA no lugar de VIAJARIA são modelos alternativos da linguagem coloquial”, quando sistematizam as orações condicionais: “Se eu pudesse VIAJARIA com você” (idem, ibidem: 184). Marchant (1994) afirma que “o futuro do pretérito é, com freqüência, substituído pelo imperfeito do indicativo” e exemplifica: “Se Moema não estivesse tão 19 ocupada, ESCREVIA o relatório hoje.” (idem, ibidem: 142). O termo “com freqüência” é vago, pois não nos oferece nenhuma segurança para utilizar um tempo pelo outro. Em outro manual de sua autoria, (Marchant, 1997: 114), acrescenta que essa substituição ocorre na linguagem coloquial. Mas em que circunstâncias? Em Hutchinson e Lloyd (1996), encontram-se algumas referências ao tema deste estudo. As autoras afirmam que o pretérito imperfeito do indicativo é usado quando o falante quer fazer solicitações de forma polida e ressaltam “Polite request (in the sense of ‘would’ or ‘could’)”, ou seja, declaram que o imperfeito do indicativo está sendo usado pelo futuro do pretérito, representado pelas construções em que os referidos auxiliares aparecem na língua inglesa. A seguir, confirmam tal fato através do exemplo: “Se eu tivesse dinheiro, COMPRAVA um iate.”, afirmando que o imperfeito do indicativo pode ser usado pelo “conditional tense” - futuro do pretérito (idem, ibidem: 59). Ao abordarem o tempo futuro do pretérito em sua gramática, as autoras mais uma vez afirmam que este tempo é geralmente substituído pelo imperfeito do indicativo: “The Conditional is usually replaced by the Imperfect: Se eu tivesse tempo IA à praia.” (idem, ibidem: 64). Na seção destinada ao emprego do pretérito imperfeito do subjuntivo, mais uma referência ao nosso objeto de estudo pode ser encontrada: “The Past Subjunctive is also used to express a condition to a fact that probably will not happen. It can be used with the Conditional or the Imperfect3: Se eu tivesse dinheiro, compraria/comprava um barco.” (idem, ibidem: 68). Embora, as autoras ressaltem a possibilidade do emprego do imperfeito do indicativo pelo futuro do pretérito do indicativo, não garantem através de um número satisfatório de exemplos que tal substituição pode ser feita seguramente de maneira aleatória. Além disso, restringem seus exemplos aos períodos compostos por orações condicionais. Em Lima e Iunes (1999: 94) e em Celli (2002: 148), encontra-se referência à utilização da forma ir (no pretérito imperfeito do indicativo) + infinitivo pelo futuro do pretérito, no entanto as autoras não orientam o aprendiz em relação ao seu uso, nem sequer estabelecem alguma diferença entre as construções que apresentam como possíveis. 3 O imperfeito do subjuntivo é também utilizado para expressar a condição para um fato que provavelmente não se realizará. Ele pode ser usado com o futuro do pretérito (chamado de “condicional” pelo autor) ou com o pretérito imperfeito do indicativo. 20 Perini (2002) inicia suas considerações sobre o tema, definindo o uso do futuro do pretérito, ao qual chama de “condicional”. Em relação ao seu emprego, o autor afirma que a principal utilização do futuro do pretérito é expressar algo que pode acontecer, dependendo de uma condição explícita ou subentendida. Tal condição em geral contém um fato contrário à oração em que se encontra o verbo no futuro do pretérito. Segundo o autor, este tempo verbal também pode expressar um futuro em relação a um passado; com verbos que apresentam a idéia de desejo, pode ser usado para exprimir polidez; é também utilizado quando o falante não quer se responsabilizar pelo que está sendo dito. Perini afirma ainda que a estrutura IA + INFINITIVO substitui o futuro do pretérito com freqüência, não produzindo diferença semântica significativa (idem, ibidem: 240). Mais adiante, encontra-se uma breve referência ao emprego do pretérito imperfeito do indicativo pelo futuro do pretérito, quando o autor declara que o primeiro “às vezes” substitui o segundo, na língua falada, exemplificando: “Cristiana me disse que MANDARIA um cartão. / Cristiana me disse que MANDAVA um cartão. / Se eu tivesse tempo, eu FARIA uma quiche para você. / Se eu tivesse tempo, eu FAZIA uma quiche para você.” (idem, ibidem: 240). O termo “às vezes” é demasiado vago para que o aprendiz possa realizar com segurança o uso do imperfeito do indicativo pelo futuro do pretérito do indicativo. Entretanto, em outro momento de sua obra, é apresentada uma tentativa de sistematização desse uso: (a) quando o verbo ocorre como complemento de uma oração que expressa um fato contrário, sendo este uso característico de uma linguagem mais coloquial; (b) quando o verbo complementa verbos que expressam promessa (O cara prometeu que PINTAVA. = PINTARIA ), suposição (Pensei que você nem vinha. = viria) ou um “fragmento de informação” (Todos disseram que você CHEGAVA. =CHEGARIA ) (idem, ibidem: 248). Não encontramos nenhuma informação adicional que pudesse esclarecer o que seria um fragmento de informação – em inglês: piece of information. A seguir, Perini alerta que, quando o futuro do pretérito expressa futuro em relação ao passado, não pode ser substituído pelo pretérito imperfeito do indicativo, exemplificando: “Fui apresentado a Pereira, que mais tarde SERIA eleito senador” (idem, ibidem: 248). Entretanto, constatamos que o pretérito imperfeito do indicativo pode ser usado no lugar da forma SERIA, como podemos ver a seguir: Fui 21 apresentado a Pereira, que mais tarde ERA eleito senador (ELEGIA-SE / PODIA SER ELEITO / DEVIA SER ELEITO). Em Masip (2000), não encontramos uma abordagem do uso do PI pelo FP em nenhum momento, bem como outros autores anteriormente citados: Lombello e Baleeiro (1983); Ramalhete (1984); Lima e Iunes (1990); Lima et al. (1991); Lima, Bergweiler e Ishihara (1995); Laroca, Bara e Pereira (1996); Lima e Iunes (1999); Ponce, Burim e Florissi (1999); Patrocínio e Coudry (2000); Ponce, Burim e Florissi (2000); Ribeiro e Grannier (2001); Celli (2002); Lima, Iunes e Leite (2003). 2.3- Estudos específicos sobre o uso do pretérito imperfeito do indicativo pelo futuro do pretérito. Faremos nessa seção uma breve apresentação de alguns estudos sobre o uso do PI pelo FP no português do Brasil, neles enfocando apenas o que é de interesse para nossa pesquisa. Nenhum desses estudos aborda o português do Brasil como segunda língua, mas nos oferecem importantes contribuições. Costa (1997) realiza o estudo sobre o uso do PI pelo FP, tendo como corpus amostras de língua falada no Rio de Janeiro dos anos 80 (Censo do projeto PEUL/UFRJ - Programa de Estudos sobre o Uso da Língua da Universidade Federal do Rio de Janeiro) e amostras de língua escrita (cartas pessoais escritas por cariocas da década de 40 à década de 70 e durante a década de 80), considerando fatores discursivos e sociais que influenciam a escolha de um tempo pelo outro e identificando os ambientes lingüísticos em que essa alternância ocorre. Suas bases teóricas são a Teoria da Variação Lingüística, o Funcionalismo Lingüístico e a Análise do Discurso. A autora estuda o emprego do PI pelo FP no período composto por orações condicionais, em orações encaixadas e em orações independentes. Determinados fatores foram considerados na análise dos dados, como paralelismo, ambiente sintático-semântico, tempo e factualidade, extensão lexical, tipo de texto, contexto modalizador, idade, escolarização e tipo de atividade do informante (este no caso do corpus escrito). Faremos, a seguir, algumas observações sobre a extensão lexical, por se tratar de um fator relevante para a análise de alguns dados de nossa pesquisa. 22 Em relação à extensão lexical, Costa (idem) constata que a escolha do uso do FP ou do PI pode ser influenciada pela extensão da forma verbal que vai ser conjugada em um desses dois tempos. Segundo a autora, a forma infinitiva de um verbo aumenta apenas uma sílaba quando conjugada no PI (DAR – DAVA; GANHAR – GANHAVA; VENDER – VENDIA). Já no FP o aumento é de duas ou mais sílabas (DAR – DARIA; GANHAR – GANHARIA; VENDER – VENDERIA ) (idem, ibidem: 139). Nas perífrases, o mesmo acontece apenas com os auxiliares (ia dar / iria dar) já que o verbo principal permanece no infinitivo. A hipótese de Costa (idem) é a de que há no português do Brasil uma inclinação ao uso das formas mais curtas (no caso, as conjugadas no PI) e das perífrases – neste caso, com o intuito de distribuir o peso de uma forma verbal longa em dois vocábulos. Concordamos com Costa (idem, ibidem: 141) quando afirma que o uso das perífrases seria uma forma de evitar qualquer uma das formas contrastantes acima. Em outras palavras, as combinações IRIA/IA + infinitivo são freqüentemente utilizadas com verbos de três ou mais sílabas, o que evita o uso de palavras longas. Em 2003, Costa continuou sua pesquisa sobre o uso do PI pelo FP e realizou um estudo diacrônico do FP e suas variantes em peças teatrais do início do século XVIII até o fina l do século XX.. O fator idade, presente em seu trabalho anterior, levou a autora a investigar se estaria ocorrendo uma mudança lingüística através da substituição do FP por outras formas, no decorrer do tempo. Entre as várias considerações finais de sua pesquisa, a autora constatou que a forma havia de + infinitivo (ausente no corpus de seu estudo de 1997) desaparece dos textos teatrais a partir da segunda metade do século XX, dando lugar à forma ia + infinitivo. Esta última ocorre mais freqüentemente a partir dos anos quarenta e seu uso se concentra na faixa etária mais jovem. Ainda de acordo com a conclusão de Costa (2003), o uso do FP esteve relacionado a um maior grau de escolaridade do falante e ao contexto social a que ele pertence. Nas peças teatrais que retratavam ambientes populares, por exemplo, o FP foi menos usado. Barbosa (2005), à luz da Sociolingüística Laboviana e da Sociolingüística Paramétrica, também estudou o tema, detendo-se na alternância do FP e do PI nas orações condicionadas iniciadas por SE. 23 O corpus de sua pesquisa foi composto por 45 entrevistas e focalizou o português brasileiro falado da região do Triângulo Mineiro (Estado de Minas Gerais). Fatores como idade do informante, sua classe social e grau de escolaridade foram considerados na análise dos dados coletados. De acordo com algumas de suas considerações finais, o uso do PI pelo FP se concentrou entre falantes de classe mais baixa e de faixa etária acima dos 45 anos. Nas sentenças menos extensas, não houve a predominância de nenhum dos dois tempos (nem do FP, nem do PI). No entanto, nas sentenças maiores (com advérbios encaixados, orações intercaladas) o FP se mostrou mais presente. 24 3- Fundamentação teórica 3.1- O papel textual-discursivo do verbo Como mencionamos na introdução, procuramos considerar neste estudo a significação do verbo, ou seja, pretendemos analisar nossos dados, levando em conta as possibilidades significativas do verbo e seu comportamento na “produção de efeitos de sentido” e nas “situações de uso” (Travaglia: 2003). Acreditamos, então, que podemos realizar uma pesquisa que possa contribuir posteriormente para o ensino, ou seja, que proporcione um quadro definido no bojo do qual se possa trabalhar a competência comunicativa de nossos alunos. Ao abordarmos o verbo no que diz respeito à produção de sentido em situações de uso, temos como foco os efeitos de sentido que a opção por determinada forma verbal pode imprimir a um texto. Por exemplo: sabemos que, utilizando a forma PODERIA , de futuro do pretérito, no enunciado Você PODERIA trazer um café?, estamos fazendo uma solicitação, marcando um distanciamento maior do nosso interlocutor. Mas, se o fizermos através da forma PODIA , de pretérito imperfeito do indicativo, no enunciado Você PODIA trazer um café?, o distanciamento em relação ao interlocutor diminui. Imaginemos que um falante tenha a intenção de obter uma informação de seu interlocutor e que o queira fazer de maneira polida. Para isto, ele poderia utilizar como recurso o futuro do pretérito: Como a senhora DESCREVERIA os serviços do meu restaurante? Caso a mesma pergunta fosse feita com o pretérito imperfeito, Como a senhora DESCREVIA os serviços do meu restaurante?, teríamos um problema de coerência, já que o tempo verbal então não expressaria polidez, mas sim uma pergunta sobre um fato habitual no passado. A reação do interlocutor/ falante nativo a esta pergunta seria de estranhamento, pois nada havia sido dito até então sobre os serviços do restaurante. De acordo com Weinrich (1968), existem certas afinidades entre grupos de tempos verbais e determinadas situações comunicativas. O autor entende por “situações comunicativas”: o solicitar uma informação, a própria informação, o relato de uma história, a descrição de uma cena, uma conferência científica, uma biografia, um artigo político de jornal, por exemplo. 25 Depois de avaliar os tempos verbais do francês, Weinrich (apud Koch, 1987, p. 37) constatou que: a) as marcas do tempo são altamente redundantes nos enunciados da língua; b) existem leis de concordância dos tempos dentro do período (“consecutio temporum”); c) os tempos não têm vinculação com o Tempo (“Cronos”); d) distribuem-se em dois grupos ou sistemas temporais, com empregos distintos e que não se combinam, normalmente, no mesmo período. Os dois grupos a que se refere o autor são: grupo I - tempos do mundo comentado (o presente, o pretérito perfeito composto, o futuro do presente simples e composto, além das locuções verbais formadas por estes tempos) e grupo II tempos do mundo narrado (o perfeito simples, o imperfeito, o mais-que-perfeito, o futuro do pretérito, bem como as locuções verbais constituídas por estes tempos). Uma observação importante é que, para Weinrich (1968: 67), o termo mundo significa “o possível conteúdo de uma comunicação lingüística” A fronteira estrutural entre os grupos I e II não é temporal, mas se estabelece com base na situação comunicativa da qual participam os tempos verbais destes grupos. Por exemplo, uma novela apresenta a tendência de fazer uso dos tempos do grupo II, ao mesmo tempo em que um editorial de um jornal mostra uma predileção pelos tempos do grupo I. O mundo comentado (grupo I) faz menção à lírica, ao drama, ao ensaio, ao diálogo, ao comentário, ou seja, situações comunicativas com as quais o falante está envolvido, pois não se apresentam distantes, uma vez que não passam pelo filtro do relato. De acordo com Koch (1987: 38), “comentar é falar comprometidamente”, pois o indivíduo fala do que o afeta diretamente. No grupo II (mundo narrado), predominam as situações comunicativas em que narramos uma história verdadeira ou inventada. Por isso, prevalecem os tempos desse grupo em situações comunicativas como o relato de um pequeno acontecimento real, de um fato histórico, de um conto, de uma lenda, do curso de uma assembléia de trabalhadores. O falante tem uma atitude distensa, pois se distancia de sua fala, não se comprometendo com o que está sendo relatado. Ele deixa que os fatos se apresentem por si próprios. Koch (1987: 37-48) colaborou para a teoria de Weinrich, verificando a sua validade no português. Constatou-se que, diferentemente do francês, o pretérito 26 perfeito simples ocorre com freqüência tanto no relato quanto no comentário e que o nosso pretérito perfeito composto se limita apenas ao mundo comentado. A autora analisa textos diversos (notícias, manchetes, artigos) extraídos de periódicos da cidade de São Paulo, provando que a proposta de Weinrich (idem, ibidem) é válida também para a língua portuguesa, mesmo apresentando algumas diferenças como as que citamos acima. Em sua opinião, a teoria desse autor pode colaborar tanto para a análise e interpretação de textos, como para o estudo da tipologia dos discursos. Gouvêa (2004) aplicou as contribuições de Weinrich e de Koch à análise de textos dos gêneros editorial e opinião dos seguintes jornais do Estado do Rio de Janeiro: O Globo, Extra, Jornal do Brasil e O Dia, no ano de 2003. O objetivo de seu trabalho foi analisar a atuação dos tempos verbais – inclusive do PI e do FP - no âmbito discursivo nesses textos. A sua pesquisa levou em conta a que tipo de público se destinavam os jornais, ou seja, se eram destinados a um público de maior nível de escolaridade e de situação econômica privilegiada ou se eram voltados para as classes mais populares. Gouvêa concluiu que realmente os tempos do mundo comentado predominaram nos editoriais e nas seções de opinião – situações comunicativas típicas de comentário. Ela também ressalta que um jornal consegue atingir seu público-alvo, quando sabe escolher a estratégia de argumentação adequada. Verificou-se que os jornais destinados às classes A e B apresentavam uma variação ou alternância dos grupos temporais propostos por Weinrich (idem: ibidem), ou seja, havia uma presença constante do relato para comprovar as teses propostas – uma argumentação melhor elaborada. Nos jornais voltados para as classes C e D havia o predomínio do mundo comentado, que leva ao leitor um raciocínio pronto, sem exigir que ele acompanhe uma discussão mais complexa e alongada. Weinrich afirma que, com freqüência, pode não ocorrer a concordância entre os grupos temporais e as situações comunicativas. Em outras palavras, um ou mais tempos do mundo narrado introduzem-se no mundo comentado ou vice-versa. É o que o autor chama de metáfora temporal. Aplicando as contribuições de Weinrich à nossa pesquisa, podemos afirmar que o FP e o PI, sendo tempos característicos do mundo narrado, podem ocorrer em uma situação típica do mundo comentado. Nesse caso, há uma reprodução de um 27 não comprometimento do falante em relação ao que ele comenta (atitude típica do mundo narrado). Assim, quando o FP e o PI ocorrem no mundo comentado, imprimem nuances ao enunciado, como, por exemplo: (a) um maior distanciamento entre os falantes e/ou uma preocupação em expressar formalidade revelados pelo futuro do pretérito, na pergunta que apresentamos anteriormente: Você PODERIA trazer um café?; (b) um menor distanciamento entre os falantes e uma presença menos acentuada de formalidade, expressa pelo pretérito imperfeito do indicativo na pergunta: Você PODIA trazer um café? O FP, por exemplo, não se encontra muitas vezes no grupo I, permanecendo deslocado e “transplantado a uma situação de outra espécie” (idem,1968:139). Esse tempo verbal freqüentemente participa dos dois grupos propostos pelo autor (mundo narrado e mundo comentado). Quando ocorre como metáfora temporal, o FP funciona como um recurso estilístico no mundo comentado, imprimindo valores expressivos ao que se comenta. Se considerarmos outro exemplo já citado na introdução deste estudo, a possível notícia de jornal - A arma encontrada com o traficante SERIA do policial militar. – podemos ver a presença do futuro do pretérito, tempo do mundo narrado, sendo utilizado em um comentário. A escolha do FP revela a resistência do jornalista em asseverar o que está comentando sobre a arma encontrada, pois não quer se comprometer com algo que pode não ser constatado. De acordo com Gouvêa (2004), quando a metáfora temporal expressa hipótese, polidez, timidez, prudência, por exemplo, reduz a legitimidade do comentário. Portanto, o exemplo A arma encontrada com o traficante SERIA do policial militar revela justamente esta intenção do enunciador de fazer um comentário com o futuro do pretérito, mas preferindo manter uma relação mais distensa com o fato comentado, já que não pode ou não quer asseverar o que diz. No exemplo acima citado, o uso do FP expressa uma suspeita que se baseia em certos indícios – o que, de certa forma, limita a veracidade da notícia, como já dissemos. No entanto, tal limitação não invalida o que está sendo dito, pois, quando a metáfora temporal ocorre, o tempo verbal carrega consigo características do grupo ao qual pertence originalmente. Em outras palavras, o FP nesse caso, mesmo limitando a veracidade da notícia, ainda conserva seu caráter de tempo narrativo, já que relata um fato. É o que Weinrich chama de “discurso precavido” (1968:145). 28 No capítulo em que procederemos à análise do corpus de nossa pesquisa, consideraremos as contribuições de Weinrich, Koch e Gouvêa. 3.2- Texto, contexto e co-texto Visto que estamos considerando na análise de nossos dados o papel textualdiscursivo do verbo, faz-se necessário abordar alguns conceitos pertinentes, como texto, contexto e co-texto. Se virmos a língua sob uma ótica interacional, em que os sujeitos apresentam um caráter ativo, construindo e reconstruindo o processo de comunicação, o texto passa a ser visto como o fruto de uma interação entre esses sujeitos. Esta visão é a que nos interessa, pois objetivamos que nosso aluno vivencie a língua alvo, seja um interlocutor ativo e participe na construção e reconstrução do sentido do texto. O conceito de texto proposto por Travaglia (1991), que adotaremos para nosso estudo, leva em conta a interação no processo de construção do texto: O Texto será entendido como uma unidade lingüística concreta (perceptível pela visão ou audição), que é tomada pelos usuários da língua em uma situação de interação comunicativa específica, como uma unidade de sentido e como preenchendo uma função / interação comunicativa reconhecível e reconhecida, independentemente da sua extensão. (idem, ibidem: 22) A Lingüística Textual tem se ocupado do estudo do texto desde os anos 60, na Europa, e ganhou projeção a partir dos anos 70. No início, foram estudados os fenômenos sintático-semânticos que ocorrem entre enunciados ou seqüências deles. Nessa época, os fenômenos relacionados à coesão e à coerência não eram levados em conta para o estudo do texto. A partir de 1980, surgiram teorias que tinham em comum pressupostos básicos em relação ao estudo do texto, mas que apresentavam enfoques diferentes. Dois representantes dessas teorias são citados ao longo de nosso estudo: Givón e Weinrich. O primeiro, junto a outros estudiosos ligados à linha americana da Análise do Discurso, preocupa-se com a forma pela qual se dá a construção lingüística do texto, 29 considerado como uma seqüência de frases. Interessa-se também pelo estudo do processamento cognitivo do texto e pelos mecanismos que o envolvem. (Koch, 1992). Weinrich vê o texto como “uma seqüência linear de lexemas e morfemas que se condicionam reciprocamente e que, de modo recíproco, constituem o contexto.” (idem, ibidem: 13). A Lingüística Textual não se ocupa da palavra ou da frase isolada, pois considera que a comunicação ocorre através de textos e que há fenômenos que somente podemos entender dentro do texto. Travaglia (idem, ibidem: 22-23) apresenta as tarefas básicas da Lingüística Textual: a) verificar o que faz com que o um texto seja um texto, isto é, determinar os seus princípios de constituição, os fatores responsáveis pela sua coerência4, as condições em que se manifesta a textualidade; b) levantar critérios para a delimitação de textos, já que a completude5 é uma das características essenciais do texto; c) diferenciar as várias espécies de texto. Outro conceito relevante para nossa pesquisa é o que se refere ao termo cotexto – o “entorno verbal” (Koch, 2003: 23). Ele consiste em “uma seqüência ou combinação de frases, cuja unidade e coerência seriam obtidas através da reiteração dos mesmos referentes ou do uso de elementos de relação entre segmentos maiores ou menores no texto” (idem, ibidem). Tal conceito mostra-se importante para nosso estudo, pois, para analisarmos a intenção do entrevistado ao usar o FP ou o PI em seu lugar, podemos necessitar recorrer ao co-texto. O conceito de contexto que vamos adotar nesta pesquisa é o que abarca não somente co-texto, mas também a “situação de interação imediata, a situação mediata (entorno sociopolítico-cultural) e ainda o contexto sociocognitivo dos interlocutores” (Koch: ibidem) – este inclui os demais, pois se refere, por exemplo, ao conhecimento lingüístico e enciclopédico, à situação comunicativa, aos tipos e gêneros textuais adequados à situação, e também aos processos sociointeracionais. 4 Travaglia (idem, ibidem: 23) entende por coerência “um princípio de interpretabilidade e compreensão do texto, que rege não só sua recepção, mas também sua produção constituição.” 5 Para Travaglia (idem, ibidem: 23) a completude “deve ser entendida mais no sentido de unidade.” 30 Os conceitos acima são importantes para nossa pesquisa, visto que descrevemos o uso do PI pelo FP, considerando o comportamento desses tempos verbais no texto e não em frases isoladas. Nesse caso, o co-texto é elemento importante, pois nele podem-se encontrar informações que justifiquem o emprego de um tempo pelo outro. É através do contexto que observamos a interação entre entrevistador e entrevistado, durante o processo de construção de sentidos, bem como as circunstâncias sociopolítico-culturais em que ocorreu essa interação. Esses fatores, além dos lingüísticos, podem definir o porquê da utilização do FP ou do PI 3.3- O gênero entrevista Pode-se dizer que o gênero entrevista apresenta subgêneros variados, como por exemplo: a entrevista jornalística, a entrevista médica, a entrevista científica, a entrevista de emprego, entre outras (Levinson, 1979; apud Hoffnagel, 2005). Apesar de cada subgênero apresentar propósitos específicos todos têm algo em comum: o caráter interacional, pois se desenvolvem através de perguntas e respostas. No entanto, não podemos considerar um depoimento tomado na Justiça, um inquérito policial ou uma situação de uma prova oral, por exemplo, como uma entrevista, pois se diferenciam quanto ao objetivo e à natureza do que está sendo praticado (Marcuschi, 2000; apud Hoffnagel, 2005). Na entrevista há papéis a serem cumpridos: o entrevistador tem as rédeas da conversação, decidindo o tópico a ser tratado, a duração da conversa e a hora de parar o diálogo (é ele que abre e fecha a entrevista), sem, entretanto, impedir que o entrevistado mantenha seu turno de fala por um tempo maior, caso o deseje (Oliveira, 2002: 111). Uma entrevista é composta por, pelo menos, dois participantes: o entrevistador e o entrevistado; mas nada impede que haja mais entrevistadores e/ou mais entrevistados para que consideremos um evento como entrevista, já que continuamos a ter apenas dois papéis representados: o daquele que pergunta e o daquele que responde. Na revista Caros Amigos, da qual foi retirado o corpus de nossa pesquisa, praticamente todas as entrevistas têm mais de um entrevistador e, 31 em algumas delas, tem-se mais de um entrevistado (geralmente quando se quer confrontar opiniões distintas sobre um mesmo tema). Outra característica do gênero entrevista é o seu caráter oral, mesmo que tenha sido publicada em algum meio de comunicação escrito, em geral, ela foi feita oralmente, em um momento anterior à sua publicação. Ela se caracteriza pelo diálogo, isto é, pela troca de turnos. Antes de ser publicada, a entrevista é editada, considerando-se a pauta, o público a que se destina, o tipo de entrevista, o próprio entrevistado, o tipo de publicação através da qual ela será veiculada, por exemplo. Além disso, no processo de passagem da fala para a escrita, os editores podem escolher entre apagar ou não “as marcas de oralidade e do contexto situacional em que a entrevista foi produzida” (idem, ibidem:115). Em geral, as entrevistas da Caros Amigos, apresentam marcas da oralidade, como pala vrões, hesitações, interjeições, repetições, etc. Alguns tipos de entrevistas apresentam características da escrita, pois nelas vemos “menos sinais, pistas contextuais paralingüísticas como variações prosódicas (entonações variadas, mudanças de ritmo, etc.), recursos de fonética expressiva (onomatopéias, por exemplo)” (Preti, 1998: 78; apud Oliveira, 2005: 113). Quando a entrevista apresenta uma linguagem mais próxima da escrita formal, não quer dizer necessariamente que isso ocorra por causa do tipo de meio no qual está sendo publicada (uma revista destinada ao público adulto, por exemplo), mas sim, pelo comportamento do entrevistado e por sua conduta formal. Segundo Oliveira (idem, ibidem: 112), há quatro tipos de entrevistas jornalísticas: (a) noticiosa – procura fatos que possam se transformar em notícia e tem presente em seu texto a fala do entrevistado; (b) de opinião (ou conceitual) – “veicula opinião de experts sobre determinado assunto; (c) de depoimento - na qual se encontra o relato de experiência de uma determinada pessoa; (d) de perfil – tem como foco o entrevistado e pretende fazer com que o leitor o conheça de maneira completa, tendo a impressão de que já o conhecia antes de ler a entrevista. A revista Caros Amigos identifica-se mais com os tipos de entrevista (b), (c) e (d), visto que busca não só extrair de seus entrevistados suas opiniões sobre fatos em destaque no momento da entrevista (estejam eles envolvidos ou não com esses fatos), como também tornar o indivíduo entrevistado conhecido do público, através de perguntas sobre suas experiências de vida. 32 O público-alvo de uma entrevista pode variar: adolescentes, mulheres, homens, crianças, leitores interessados em ecologia, música, etc. O público da Caros Amigos é adulto, interessado nas opiniões de personalidades nacionais e internacionais sobre temas ligados à cultura, à política, à economia, às questões sociais. Em relação à estrutura da entrevista, a Caros Amigos quase sempre apresenta um texto inicial para apresentar o entrevistado e contextualizar a entrevista: Em 38 anos de carreira, o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães enfrentou os mais variados momentos da vida política brasileira sem perder a coragem nem trair suas convicções. Foi demitido no regime militar da direção da Sudene por resistir à interferência do USAID (United States Agency for International Development) no governo Castelo Branco – e deixou a vice-presidência da Embrafilme no governo Figueiredo durante a crise gerada pelo filme Pra frente Brasil, uma crítica contundente à ditadura. (...) (CA51_jun_2001) O gênero entrevista apresenta-se como uma eficiente ferramenta para o estudo do uso do PI pelo FP, pois, através da interação entre o entrevistador e o entrevistado, podemos ver, por exemplo, como a relação de poder entre esses indivíduos pode influenciar na forma de expressão do falante e na escolha de um tempo pelo outro, no intuito de expressar certeza, dúvida, desejo, polidez, etc. 3.4- O futuro do pretérito e seu uso textual Em seu estudo, Travaglia (1999) enfoca o FP, tratando do seu uso textual e das normas que estabelecem seu emprego na construção de um texto. Para o autor, se considerarmos o funcionamento textual-discursivo deste tempo verbal, poderemos estabelecer seu valor básico, isto é, “marcar posterioridade de uma situação em relação a outra ou a um momento dentro do texto” (idem, ibidem: 679), assim ele exerce o papel de um seqüenciador. A partir deste valor teremos outros valores expressos pelo futuro do pretérito. A posterioridade deste tempo verbal pode se diferenciar da posterioridade do futuro do presente, por exemplo. Este representa um evento que ocorre depois do momento da fala. A posterioridade do futuro do pretérito refere-se não 33 necessariamente a um momento que pode ser subseqüente ao instante da fala. A sua realização é virtual, isto é, sempre é considerado como não realizado na ocasião X – o que lhe dá um valor de “irrealidade” na referida ocasião. Além disso, a posterioridade do FP apresenta duas naturezas que se distinguem: uma temporal e outra nocional. A posterioridade temporal do FP apresenta dois valores: o cronológico e o polifônico. Já a posterioridade nocional pode ser subdividida em quatro valores: condição, possibilidade, polidez e desejo. Assim, de acordo com Travaglia (1999) temos a seguinte sistematização: Quadro 1 – Classificação do uso do FP, proposto por Travaglia (1999) CRONOLÓGICO TEMPORAL POLIFÔNICO POSTERIORIDADE NOCIONAL O valor de posterioridade temporal CONDIÇÃO POSSIBILIDADE POLIDEZ DESEJO cronológico se manifesta especialmente em textos narrativos sobre eventos que ocorrem no passado. A situação expressa pelo FP é posterior a um momento que está expresso no co-texto ou que pode ser deduzido (Eu prometi que levaria vocês à praia.). O valor de posterioridade temporal polifônico é próprio do relato de fala em que alguém conta o que o outro disse, sem asseverar que o discurso relatado realmente ocorreu (O deputado afirma que o dinheiro TERIA SIDO ESCONDIDO na cueca.). Este valor do FP revela que o falante não quer comprometer-se com a verdade, e isto é possível, devido ao caráter virtual da realização de uma situação expressa por este tempo verbal. O valor de posterioridade nocional mostra uma situação no FP, que é posterior a um momento determinado, mas não em relação ao tempo, e sim à lógica. Este valor envolve noções de causa e conseqüência, condição e condicionado, onde o FP sempre será a conseqüência e o condicionado, e a ocasião X a que a situação no FP é posterior será a causa e a condição (Travaglia, 1999: 683). Esta ocasião X pode ser representada de diferentes formas, das quais se originarão outros valores 34 como condição, possibilidade, polidez, dúvida, hipótese, desejo, etc – são os chamados usos modais do FP. O valor de posterioridade nocional condição ocorre quando o FP é posterior a uma condição explícita ou não no co-texto (Se eu pudesse, COMPRARIA um apartamento na praia.). O valor de posterioridade nocional possibilidade quase se confunde com o valor anteriormente citado, mas Travaglia o diferencia, dizendo que a condição que representa não pode ser inferida do co-texto, mas de um conhecimento de mundo referente à situação comentada: “faz uma análise de todo o potencial que existe na, superfície, na superfície da terra (que se usado) DARIA pra alimenta(r) trinta bilhões” (Travaglia, 1999: 688). Não encontramos em nosso corpus nenhum exemplo que se encaixasse nessa descrição, por isso descartamos o grupo nocional possibilidade de nossa pesquisa. No valor de posterioridade nocional polidez, o FP ocorre em perguntas polidas que não necessariamente exigem resposta. Por exemplo, é como se o falante estivesse dizendo: Se posso perguntar, como o senhor DESCREVERIA a atual situação política brasileira? O FP com valor de polidez também está presente em solicitações ou pedidos: Você me DIRIA as horas? A função deste valor de posterioridade é principalmente a de preservar a face do falante durante a interação. Neste caso, o foco está na pessoa com quem se fala ou no fato enunciado, e não no desejo do sujeito enunciador. Neste estudo, consideramos que o valor de posterioridade nocional polidez do FP também pode estar expresso em perguntas em tese – freqüentes em nosso corpus – como também nas respostas a essas perguntas. Ao fazer esse tipo de pergunta o entrevistador tem a intenção de também afirmar algo de que suspeita ou tem certeza, mas, prefere fazê -lo de maneira mais “precavida”, também com o intuito de salvar a sua face: O senhor DIRIA que o presidente realmente não sabe do esquema de corrupção? Tais perguntas são praticamente uma afirmação polida que se faz através de um questionamento, mas de forma cautelosa porque o falante quer expressar o que pensa de maneira mais indireta: Você ESTARIA afirmando que há corrupção no Governo atual? 35 O valor de posterioridade nocional polidez também vai estar presente nas respostas às perguntas em tese ou nas quais o entrevistado faz seu comentário de forma tímida e/ou cuidadosa, querendo “atenuar” o seu ponto de vista. Desta forma, ele evita responder de maneira muito categórica e decisiva: Eu DIRIA que é precipitado afirmar isso. Já no valor de posterioridade nocional desejo, o foco está na aspiração do sujeito enunciador, pois se realiza em textos injuntivos. Diferentemente do valor polidez, aqui o sujeito quer solicitar alguma coisa e, por isso, toda a atenção da interação se volta para o seu desejo (Eu QUERIA... Eu GOSTARIA...). A intenção de preservação da face também se faz presente aqui, pois, dependendo da situação comunicativa, podemos solicitar algo através de diferentes graus de polidez. 3.5- Teoria da polidez e conceito de face De acordo com o que apresentamos no item anterior, o futuro do pretérito pode apresentar valores de posterioridade nocional vinculados à idéia de polidez e de desejo. Ao valor de desejo ainda se podem atribuir graus de polidez, tendo o FP como o tempo verbal que expressa um nível mais alto de polidez do que o PI. O valor de posterioridade temporal polifônico pode revelar uma preocupação com a preservação da face do falante, uma vez que este faz um relato, de forma precavida. Faz-se, assim, necessário que discutamos alguns conceitos pertinentes a estes usos do FP e do PI. Numa situação comunicativa, estabelecemos um contato mediado ou face a face com nosso interlocutor. De acordo com Goffman (1967), neste processo de interação, podemos tomar determinadas orientações: uma defensiva, no intuito de salvar a própria face, outra protetora, com a intenção de salvar a face do outro. Em geral, fazemos uso das duas orientações durante uma interação comunicativa, ou seja, tentamos salvar a nossa própria face e preservar a do outro também, utilizando-nos de estratégias de polidez padronizadas em cada cultura. Para Goffman (1967: 76-77), o termo face consiste no valor social positivo que uma pessoa efetivamente reclama para si mesma, através daquilo que os outros presumem ser a linha por ela tomada durante um contato específico. “Face é uma imagem do self delineada em termos de atributos sociais aprovados.” (idem: ibidem). Quando criamos uma imagem de nós mesmos através de um processo de interação, 36 estamos elaborando o nosso self. Este processo de construção vai depender da interpretação que o outro faz das minhas ações, ou seja, dependendo dos julgamentos que se manifestam neste jogo interacional, o sujeito vai “moldando” o seu self. Isto nos remete aos conceitos de face positiva e face negativa de Brown e Levinson (1987), que nasceram da teoria de Goffman. A face positiva relaciona-se à nossa imagem que quer ser valorizada e aceita na interação com o outro e a negativa, ao desejo de impormos as nossas ações e de não sermos impedidos de fazê-lo. Numa situação de interação, os atos de enunciação podem ser uma ameaça para as faces dos que dela participam. Por exemplo, reconhecer seus defeitos e limitações é um ato que ameaça a face positiva do locutor, pois ele estará expondo uma imagem sujeita à rejeição do outro. Comprometer-se em cumprir uma promessa ameaça a face negativa desse locutor, uma vez que, nessa situação, ele terá a sua liberdade de ação limitada. O interlocutor também pode ter a sua face positiva ameaçada. Por exemplo, quando um político sendo entrevistado recebe críticas negativas ao seu desempenho durante uma CPI. Nesse mesmo contexto, a face negativa do entrevistado pode ser ameaçada através de perguntas diretas e sem demonstração de cordialidade. O ensino do futuro de pretérito bem como do emprego do pretérito imperfeito por ele revelam-se pertinentes, pois consistem em um dos meios pelos quais interagimos polidamente na nossa cultura e negociamos as nossas faces. No caso do FP com valor de posterioridade temporal polifônico, fica claro que o falante não quer ter a sua face positiva ameaçada, comprometendo-se com a veracidade de um relato o qual não pode ou não quer asseverar. Utilizando o FP com valor de posterioridade polidez ou desejo, negociamos faces para conseguir o que desejamos. Manter um equilíbrio durante a negociação das faces é algo difícil, pois toda interação pressupõe relações de poder. No entanto, para evitar situações de ameaça às faces, locutor e interlocutor as negociam e também lançam mão de estratégias discursivas compartilhadas por eles – as estratégias de polidez. De acordo com Brown e Levinson (1987), as estratégias de polidez podem ser: (a) “bald on-record”; (b) positiva, (c) negativa ou (d) “off-record” (indiretas). 37 A estratégia “bald on-record” trata-se de um caso de não minimização de ameaça à face do outro, pois o locutor não se preocupa em negociar faces. Ao fazer uso dessa estratégia, o falante comunica-se de acordo com as Máximas de Grice (Grice, 1975 apud Brown e Levinson, 1987: 94). Segundo este autor, para que nos comuniquemos de forma eficiente, devemos seguir as seguintes orientações: (a) falar a verdade; (b) não dizer mais nem menos do que lhe for solicitado; (c) ser relevante; (d) não ser ambíguo. Através da estratégia “bald on-record”, fica claro que o falante não se preocupa em proteger a face do outro, pois o que importa é a máxima eficiência na comunicação. De uma maneira geral, essa estratégia pode ser utilizada, por exemplo, quando o falante tem urgência em comunicar algo ao seu interlocutor (Não come isso! É venenoso!); quando se quer dar instruções ou receitas (Adicione duas gemas à massa.); quando o falante tem a intenção de se expressar de forma grosseira (Cala a boca!). A estratégia de polidez positiva é utilizada, quando o falante busca minimizar a ameaça à face positiva de seu interlocutor, tentando mostrar que seu desejo apresenta pontos em comum com o desejo do outro. O locutor pode, por exemplo, manifesta r atenção a ele (Está quente, você não acha? Olha como você está suado! Coitado! Vou ligar o ar-condicionado, tá bom?); ser exageradamente simpático (Nossa! Que linda a sua cozinha! A reforma ficou ótima! Aliás, você me empresta a sua batedeira?); evitar discordância (- Que quadros horríveis, né?/ - Bom, a arte contemporânea muitas vezes surpreende as pessoas.). A estratégia de polidez negativa ocorre quando o locutor também reconhece que deve evitar a ameaça à face, no entanto ele mantém sua liberdade de ação (assim, deixa exposta sua face negativa). Em geral, a maioria das estratégias de minimização da ameaça à face em nossa cultura são de polidez negativa. Essa estratégia é também utilizada para marcar distância social (estabelecer formalidades, por exemplo) e mostrar que o locutor quer estabelecer certa distância social entre ele e seu interlocutor (Brown e Levinson, 1987: 130). Quando o falante lança mão dessa estratégia, pode, por exemplo, agir de forma evasiva, evitando estabelecer claramente imposições ao interlocutor. Pode ser convencionalmente indireto (Será que você poderia ligar o ar condicionado?); desculpar-se (Desculpe incomodar você mais uma vez, mas você podia ligar o ar 38 condicionado?) ou mostrar deferência (Você se importaria de ligar o ar condicionado, se não fosse muito incômodo para você?). A estratégia de polidez indireta – denominada “off record” pelos autores ocorre quando o falante utiliza atos de fala indiretos para expressar seus desejos, como, por exemplo, recorrer a metáforas; ser irônico; ser vago ou ambíguo. Nesse caso, o locutor pode ameaçar a face de seu interlocutor, sem contudo deixar clara a sua responsabilidade por isso (O verão está terrível esse ano, né?). Nesse último exemplo, o locutor espera que o outro entenda o seu desejo e ligue o ar condicionado ou abra a janela. O futuro do pretérito utilizado com valor nocional de desejo (GOSTARIA) ou o PI (QUERIA ) poderiam ser classificados como estratégias de polidez negativa, já que seu interlocutor, mesmo utilizando tais tempos verbais como estratégias de polidez, não deixa de expor o seu desejo. O FP com valor temporal polifônico também se revela como uma estratégia de polidez negativa, na medida em que o locutor busca, de forma evasiva, não nomear as fontes daquilo que ele está relatando, mas ainda assim relata o que pretende. Brown e Levinson (1987) sugerem que a distância social entre os indivíduos e a relação de poder entre eles podem influenciar na escolha de uma estratégia de polidez e, conseqüentemente, pode exercer papel importante na escolha do FP ou do PI. Um garçom de um restaurante formal pode, por exemplo, optar pelo FP ao indagar um cliente se ele deseja fazer seu pedido: GOSTARIA de fazer o pedido agora?. Nessa situação, temos uma relação de poder, na qual o cliente está em uma posição mais alta que o garçom, se considerarmos uma escala de hierarquia. A distância social marca o grau de proximidade entre os indivíduos que mantém uma convivência. Numa relação de poder entre um chefe de uma repartição pública e um funcionário do mesmo local, o primeiro se situa em uma posição mais alta que o segundo, na escala de poder, mas mantém uma relação de proximidade com seu funcionário, pois está em contato com ele diariamente. Considerando o contexto acima e levando em conta a cultura brasileira, o FP usado em uma solicitação do funcionário ao chefe, poderia soar muito formal (Carlos, eu PODERIA falar com você antes da reunião?). O PI com o verbo PODER poderia ser usado para marcar a proximidade entre os interlocutores. 39 Os conceitos relativos às regras de polidez, à noção de face e a relação de poder e distância entre os interlocutores tornam-se, então, relevantes para nossa pesquisa, uma vez que levam ao aprendiz do português do Brasil o conhecimento destas estratégias e, conseqüentemente, contribuem para seu melhor desempenho no nosso idioma. 3.6- O futuro do pretérito e o pretérito imperfeito nas orações condicionais O uso do PI pelo FP ocorre de forma freqüente no período composto por orações subordinadas adverbiais condicionais. Veremos a seguir o que diz a tradição gramatical a respeito desse tipo de período. Cunha e Cintra (1985: 572) afirmam que esse período é constituído de uma oração principal e de outra iniciada por uma conjunção subordinativa adverbial condicional (se, caso, contanto que, salvo se, sem que, a menos que, a não ser que, etc.). Os autores ainda atestam que a oração condicional “indica uma hipótese ou uma condição necessária para que seja realizado ou não o fato principal.” (idem, ibidem: 572). Encontra-se também a oração condicional como reduzida de infinitivo (“A NÃO SER ISTO, eu preferia ficar na sombra, e trabalhar como simples soldado”. (J. de Alencar, 1967 apud Cunha e Cintra, 1985: 598) e como reduzida de gerúndio (“PENSANDO BEM, tudo aquilo era muito estranho ”. (A. Meyer, 1949 apud Cunha e Cintra, 1985 : 600). Para Bechara (1999: 498), a oração condicional “exprime uma condição necessária para que se realize ou deixe de se realizar o que se declara na oração principal”. Também são mencionadas as possíveis idéias expressas por essa oração: hipótese, eventualidade, concessão, tempo. O autor acrescenta que tal tipo de oração pode demonstrar um fato que não se realizou ou que certamente não se realizará (“Se eu fosse aplicado, OBTERIA o prêmio”. / “Se eu tivesse sido aplicado, TERIA OBTIDO o prêmio”.) (idem, ibidem: 498). Em relação à composição do período formado por este tipo de oração, Bechara afirma que o pretérito imperfeito do subjuntivo participa da oração subordinada adverbial condicional e o futuro do pretérito encontra-se na oração 40 principal. Neste momento, autor não faz referência sobre a possibilidade do uso do PI pelo FP. Encontramos também na obra de Bechara as orações condicionais reduzidas: a) de infinitivo: (... “houve quem visse, ou fingisse ver, um notável reflexo que A SER VERDADEIRO devia nascer das muitas luzes que provavelmente estariam acesas”. [AH.2, 83]) (idem, ibidem: 520); b) de gerúndio: (“TENDO LIVRES AS MÃOS, poderia fugir do cativeiro”. [exemplo do autor] (idem, ibidem: 523); c) de particípio: (“Entramos em uma batalha, onde, VENCIDOS OS INIMIGOS, honraremos nosso país.”) [exemplo do autor] (idem, ibidem: 525). As orações condicionais reduzidas de gerúndio ocorreram no corpus utilizado em nossa pesquisa, como poderá ser visto na apresentação da análise dos nossos exemplos. O mesmo não aconteceu com as orações condicionais reduzidas de infinitivo e de particípio por serem de uso raro na oralidade. Como já mencionamos na descrição de nossos procedimentos metodológicos, a revista Caros Amigos conserva marcas de oralidade dos entrevistadores e entrevistados. Vemos ainda na obra de Bechara uma referência à construção das orações condicionais com o futuro do subjuntivo (“Se eu ESTUDAR, obterei o prêmio”.)[exemplo do autor] (idem, ibidem: 498), mas que não são relevantes para o presente estudo por não terem em sua estrutura o uso do FP ou do PI. Perini (2002) faz algumas considerações sobre as orações iniciadas pelo elemento se, no capítulo destinado à discussão sobre o uso do Indicativo e do Subjuntivo nas orações subordinadas (idem, ibidem: 193). O autor declara que as orações iniciadas por se merecem atenção especial e podem ser divididas em quatro tipos: (a) as que expressam condição para que se realize o evento da oração principal (“Se você pedir, ele certamente vai te ajudar”.); (b) as que são chamadas por ele de contrafactuais, pois o que denotam não expressa nem a verdade, nem o que possivelmente pode ser tido como verdadeiro. (“Se você fizesse esse tratamento, ficaria totalmente curado.”/”Se tivesse chovido ontem, o jogo teria sido adiado.”); (c) as que expressam um fato. (Se você resolveu todos os problemas, por que continua reclamando?”); 41 (d) as que representam uma pergunta indireta. (“Ninguém sabe se essa cerveja presta.) (idem, ibidem: 194-196). Dos quatro tipos apresentados por Perini, as denominadas por ele de contrafactuais são as que interessam ao nosso trabalho, pois nelas ocorre o uso do FP e do PI. No entanto, o autor não realizou um estudo detalhado desse tipo de oração condicional. Para Garcia (1988: 75), as orações condicionais podem expressar duas idéias: (1) um “fato de realização impossível (hipótese irrealizável)”. Nesse caso, os verbos do período expressam uma ação completa, terminada: “Se me tivessem convidado, teria ido.” Temos, então, no exemplo o pretérito mais-que-perfeito do subjuntivo (tivessem convidado) e o futuro do pretérito composto (teria ido). Outra idéia expressa pelas orações condicionais é a que se refere a (2) “um fato cuja realização é possível, provável ou desejável” (idem, ibidem: 75). Os verbos exprimem ação incompleta: “Se me convidassem, iria.” Garcia ainda cita exemplos em que a oração principal do período composto pela oração condicional fica subentendida (“Ah, se eu soubesse!” / “Se ele deixasse!” / “Se a gente não envelhecesse!”). No entanto, essas orações não nos interessam, pois, em sua composição, a ocorrência do FP ou do PI não se dá de forma explícita, o que impossibilita a análise do uso de um tempo pelo outro. Encontra-se também uma referência aos conectivos presentes nas orações condicionais, informação comum a todos os autores mencionados. Rocha Lima (1987: 250) faz referência às observações de Garcia e acrescenta exemplos de orações condicionais reduzidas de gerúndio, de particípio e de infinitivo, mas todas no futuro do subjuntivo. Moura Neves (2000) não segue exatamente a classificação das orações condicionais proposta pela Tradição (reais , irreais e eventuais). A autora propõe o termo factual em lugar do termo real e justifica: “real não é, nunca, o que está dito, mas aquilo que realmente ocorre, ou seja, os estados das coisas.” (idem, ibidem: 836). Ela, então, divide as construções condicionais em três tipos, utilizando a seguinte nomenclatura: factuais , contrafactuais e eventuais . Abaixo relacionaremos alguns exemplos de construções condicionais factuais fornecidos pela autora (idem, ibidem: 837-848): (1) “Se meus antepassados vieram, é claro que os dele vieram também. (AC)” – aqui a oração principal tem valor conclusivo. 42 (2) “Se o senhor não recebeu, eu então vou apurar quem engoliu o telegrama. (AM)” – a factualidade é realçada pelo elemento então. (3) “Se ela não fala contigo é porque não soubeste dialogar com ela. (BOC)” o elemento porque encabeça um enunciado com valor de causa. A seguir alguns exemplos das contrafactuais: (1) “Se a pergunta partisse de Irmã Flora, a resposta teria sido outra. (CP)” - a contrafactualidade é garantida pelo FP composto da oração principal, pois deixa claro que não foi dada a resposta que corresponderia à possível pergunta de Irmã Flora. Está descartada a possibilidade de a outra resposta ter sido dada. (2) “Se eu estivesse livre – repisou Raul – não tenho dúvida de que me casaria com ela, ainda que mamãe se zangasse. (FR)” – representa uma contrafactualidade possível, pois só o conhecimento do contexto poderia assegurar a contrafactualidade da proposição (se ele se casou ou não). (3) “Se Gil não tivesse feito as fotos, seria a minha palavra contra a deles. (ORA)” – nesse caso, o pretérito mais-que-perfeito do subjuntivo (tivesse feito) garante a contrafactualidade do evento. O falante revela que tem certeza quanto ao fato de que não precisou provar nada, pois as fotos funcionaram como prova. As construções condicionais eventuais apresentam na oração condicional a eventualidade. O que é dito na oração principal só é considerado como certo, se a condição for realizada. Abaixo alguns exemplos da autora: (1) “Se seu Raul deixar eu mostro. (FR)” (2) “Uma vez que essa premissa seja absorvida, a política degenera numa função correlativa à administração empresarial. (IS)” (3) “A intervenção federal pode ser processada a qualquer instante, desde que o Catete resolva. (DZ)” Em relação à ordem das orações nos períodos com orações condicionais, Neves (idem) afirma que, na sua maioria, a oração subordinada vem antes da oração principal. Segundo à autora, no discurso, geralmente: (1) “enuncia-se primeiro o tópico, isto é, aquela porção do discurso sobre a qual se vai dizer alguma coisa”; (2) “em subseqüência, enuncia-se o que se diz sobre esse tópico.” (idem, ibidem: 836). A hipótese de Costa (1997) é que a inversão dessa ordem (oração condicional + oração principal) favoreceria o uso do FP na oração principal, para se evitar qualquer tipo de ambigüidade. Isso porque, se na oração principal houvesse 43 um PI, este poderia ser visto inicialmente como a expressão de um hábito no passado ou expressar contrafactualidade. Verificaremos na análise de nosso corpus se essa hipótese se confirma. Neves (idem, ibidem: 850-852) também nos mostra o esquema modotemporal nas construções condicionais contrafactuais (essas são as que interessam à nossa pesquisa, já que podem apresentar em sua estrutura o FP e o PI). A autora afirma que, a construção contrafactual tem em sua estrutura a oração condicional no pretérito imperfeito do subjuntivo ou no pretérito mais-que-perfeito do subjuntivo (sempre verbos de passado). Na oração principal encontram-se também verbos de passado, incluindo o futuro do pretérito composto. O presente com o valor de passado também pode ocorrer nesse tipo de construção condicional contrafactual (“Se eu não CHEGO a tempo, o senhor BEBIA todo o rio Paraíba (OSA)”). Apresentaremos alguns exemplos fornecidos pela autora (a letra C indica as oração condicional e a letra P, a principal). (1) (C= imperfeito do subj. + P = imperfeito do ind.) – “Se eu não CUIDASSE de mim, hoje ESTAVA na rua da amargura. (AB)” (2) (C=imperf. do subj. + P= mais-que-perf. do ind.) – “Se eu SOUBESSE, não TINHA DITO nada. (RE)” (3) (C= imperf. do subj. + P= futuro do Pretérito) – “Vocês acham que eu PODERIA DIZER isso se não ESTIVESSE autorizado por ele?”(TF) (4) (C= imperf. do subj. + P= futuro do pretérito comp. – “Se eu não SEGURASSE as pontas isto aqui já TERIA ACABADO há muito tempo! (RE)” (5) (C=mais-que-perf. do subj. + P= imperf. do ind. – “Se TIVESSE ME OUVIDO nada disso ACONTECERIA . (AS)” (6) (C=mais-que-perf. do subj. + P= futuro do pretérito – “Se você TIVESSE NASCIDO no mesmo dia 22 de março, mas às 18horas, o seu ascendente FICARIA assim. (AST)” (7) (C= mais-que-perf. do subj. + P= futuro do pretérito composto indic. – “Se não TIVESSE IDO BUSCAR o advogado, não TERIA CAÍDO com a cara na pedra. (PE)” A autora ainda apresenta uma estrutura formada pelo pretérito perfeito do indicativo na oração condicional e o presente do subjuntivo na oração condicional - 44 “Eu MORRA se MANDEI matar esse novilho! (PL) – mas esse tipo de estrutura não interessa à nossa pesquisa. Monnerat (2003:155) afirma que “nem todas as orações condicionais com o verbo no imperfeito do subjuntivo exprimem contrafactualidade, podendo expressar, também, uma hipótese possível, apenas com um grau de probabilidade menor.” Exploraremos esse assunto de maneira mais detalhada, na seção seguinte. Neste estudo, então, entendemos por período hipotético não somente aquele formado por uma oração principal e uma oração subordinada adverbial condicional iniciada pelos conectivos se, caso, contanto que, salvo se, sem que, a menos que, a não ser que. Consideramos também os períodos em que ocorrem orações marcadas implicitamente no co-texto, as orações condicionais reduzidas e as que não apresentam a estrutura convencional do período composto por uma oração condicional (oração subordinada adverbial condicional + oração principal): (1) Em 1990 nosso pai faleceu. Nesse ano, ele FARIA 70 anos. (2) Sem se hidratar bem você não CONSEGUIRIA correr naquela maratona. (3) “SEM A SUA AJUDA estaria perdido.” (Travaglia, 1999: 677) No exemplo (1), uma oração condicional do tipo “Se estivesse vivo” pode ser inferida do seu co-texto (Em 1990 nosso pai faleceu). Em (2), a oração “Sem se hidratar bem” é reduzida de infinitivo e pode corresponder à oração desenvolvida “Se você não se hidratasse bem...”. No exemplo (3), não temos, nos componentes em negrito, uma oração, ou seja, um enunciado com verbo. Esse segmento destacado corresponde a “se você não me ajudasse...”. No que diz respeito à construção dos períodos compostos por orações condicionais, seguiremos a proposta de Travaglia (1999: 683): “a condição a que o futuro do pretérito é posterior pode estar marcada explicitamente no co-texto como uma condição ou vir no co-texto, mas não explicitamente como condição (como marca de condição) e ter que ser inferida como condição”. E também consideraremos a questão levantada por Monnerat (idem), a respeito dos valores expressos pelos enunciados compostos por orações condicionais: 45 contrafactualidade e “hipótese possível” – o que discutiremos de forma mais aprofundada na seção a seguir. 3.7- O futuro do pretérito e o pretérito imperfeito - a noção de modalidade Como citamos anteriormente , Garcia (1988) afirma que as orações condicionais podem expressar um “fato de realização impossível” ou “um fato cuja realização é possível, provável ou desejável”. Mas o quê determina a possibilidade ou não de realização desses fatos? Essa questão nos leva ao conceito de modalidade. De acordo com Travaglia (1991), a modalidade é “uma categoria verbal que reflete a atitude do falante em relação ao que é dito, bem como a atitude de outrem, mas que o falante insere, por alguma razão, no que diz” (idem, ibidem: 79). Adotaremos a definicão de modalidade proposta por Travaglia (idem), mas preferimos caracterizar a modalidade como uma categoria que extrapola o âmbito verbal, por abarcar variadas formas de manifestação além das puramente verbais, como por exemplo: os advérbios (talvez, provavelmente, certamente, necessariamente, etc) e a entonação (que pode distinguir uma ordem de um pedido, por exemplo.). Palmer (2001:1) ressalta que a modalidade se manifesta de distintas formas em diferentes línguas. O autor refere-se ao espanhol para mostrar que o falante pode distinguir o que ele acredita ser verdade do que ele duvida, utilizando os modos indicativo e subjuntivo. Julgamos que podemos transpor essas referências para o português, como podemos ver a seguir. Os exemplos são: (a) “Creo que aprende.” (Creio/Acredito que ele aprende.); (b) “Dudo que aprenda.” (Duvido que ele aprenda.). No Inglês, por exemplo, os verbos modais são utilizados para distinguir o status da proposição. Vejamos, a seguir, os exemplos propostos pelo autor (idem, ibidem: 2): (a) “Mary is at home.” (Mary está em casa.) / ausência de modalidade. (b) Mary may be at home. (Mary pode estar em casa.) / possibilidade. (c) “Mary must be at home.” (Mary deve estar em casa.) / obrigação. 46 A modalidade é um assunto abordado por diversos autores e podemos encontrar várias propostas de classificação, mas há dois principais tipos descritos pela maioria dos estudiosos: a modalidade epistêmica e a modalidade deôntica. Palmer (2001) descreve essas duas modalidades, definindo a modalidade epistêmica, do grego epistéme: “conhecimento” (Ferreira, 1999), como aquela que expressa o julgamento do falante sobre o estado factual do que ele declara, ou seja, através dessa modalidade podemos saber se o locutor crê ou não na verdade do que diz, no momento em que diz: “He can’t be in the office now” (Ele não pode estar no escritório agora) (idem, ibidem: 15). No caso desse exemplo, o falante expressa que não acredita que ele (he) possa estar no escritório, no momento em que está dizendo a sua proposição. A modalidade deôntica - do grego déontos: “aquilo que é obrigatório” (Ferreira,1999) - refere-se à atitude do falante em relação aos valores de dever (obrigação ou permissão). Esses valores de DEVER podem estar relacionados a: normas de conduta, moral, direitos e deveres, uma autoridade (pessoa ou instituição). De acordo com Palmer (idem, ibidem: 10), ainda que a modalidade deôntica venha de algum tipo de autoridade externa, como regras ou leis, tipicamente e freqüentemente a autoridade pode ser o próprio falante, que dá permissão ou obriga que se faça algo: John must come in now. (João deve entrar agora.) (Palmer, 2001: 10). Ao oferecer esse exemplo, o autor ressalta que o auxiliar dever, nesse caso, expressa obrigação. Dependendo do contexto, um mesmo auxiliar pode expressar um valor epistêmico ou deôntico: (a) João deve estar em casa agora. (O auxiliar DEVER significa: Eu suponho que João esteja em casa.); (b) João deve estar em casa agora. (O auxiliar DEVER significa: Eu exijo que João esteja em casa agora.) Givón (1995: 112) também apresenta dois principais tipos de modalidade, como faz Palmer (idem): a epistêmica e a deôntica. À primeira ele atribui valores de verdade, crença, probabilidade, certeza, evidência. À segunda modalidade, os valores de desejo, preferência, tentativa, habilidade, obrigação, manipulação. Costa (1997) também ressalta que o valor obrigação pode referir-se a uma imposição 47 social (relativa a normas, leis, regras, deveres) ou pode originar-se de uma exigência pessoal que deriva da opinião do próprio falante. Travaglia (1991: 79-84) propõe uma classificação das modalidades baseada no corpus de sua pesquisa de doutorado e nos objetivos por ele traçados para exercer o seu estudo. A seguir, apresentaremos sua proposta, de forma resumida. A primeira é a modalidade imperativa; o falante encara o que diz como algo cuja realização (ou não) ele pode determina r. Ele relaciona à modalidade imperativa os valores de obrigação (“Eu te OBRIGO a me ajudar.”), permissão (“Eu PERMITO que você o veja por cinco minutos.”), ordem positiva (“Joãozinho, VENHA aqui agora!”) ou ordem negativa (“Não PONHA isto aí! Já disse!”), proibição (“Eu te PROÍBO encontrar-se com esse rapaz.”) e prescrição (“Tome três comprimidos por dia.”). Nessa modalidade, a determinação da realização vem de uma fonte externa, como nos conselhos, nos manuais de instrução, nas receitas, etc. A segunda modalidade é a deôntica, que coincide com a definição de Palmer (idem), acima mencionada. Travaglia (idem) ressalta que na expressão dessa modalidade há a ênfase no “executar” e não no “executante”, quer dizer, a determinação da realização é inerente à situação, pois está ligada a normas de condutas e ao respeito a normas e leis, por exemplo. (idem, ibidem: 81). O autor atribui a essa modalidade os valores de obrigação (“É OBRIGATÓRIO O USO do crachá nas dependências da fábrica.”) e de permissibilidade (“É PEMITIDO fumar.”). Na seguinte modalidade, a volitiva, a realização de algo vem de uma determinação interna ao falante (de sua vontade, de seu desejo). Temos associados a essa modalidade o valor de volição (“QUERO muito ir a sua casa.”). A modalidade epistêmica, de acordo com Travaglia (idem: ibidem), relacionase com a crença do locutor em relação à verdade do que diz, no momento em que diz. O falante pode acreditar no que diz, revelando a certeza (“João VEIO aqui ontem e LEVOU seu livro.”) ou duvidar do que diz, revelando a probabilidade (“Ela TERIA uns 30 anos.”) – o que podemos ver em enunciados que expressam hipóteses e dúvidas. A modalidade alética (do grego “verdade”) se manifesta quando o falante acredita que a realização de algo é possível (“Infeli zmente não POSSO ajudá-lo neste caso.”) ou necessária a realização de algo (“Eu PRECISO falar com seu irmão.”), com base no julgamento da verdade ou falsidade do que se diz. 48 Esse tipo apresenta semelhanças com a modalidade epistêmica e a diferença entre elas pode ser muito sutil, pois ambas estão ligadas à noção de verdade. No entanto, recentemente, a modalidade epistêmica tem sido mais constantemente alvo de estudos lingüísticos do que a modalidade alética. Assim, optaremos por aplicar em nossa pesquisa as informações referentes às modalidades epistêmicas, deônticas e volitivas, que se adequam aos usos do FP e do PI no nosso corpus. Como já foi mencionado em 3.4, Travaglia (1999) refere-se ao valor de “irrealidade” que expressa o FP. O autor ressalta o caráter virtual de realização do FP, ou seja, esse tempo marca uma posterioridade de uma situação em relação a outra, mas que não se realiza na referida ocasião: Maria prometeu que FARIA um bolo para o lanche (mas não fez). Câmara Jr. (1967: 55), no capítulo “A condição e a Irrealidade”, parte do exemplo “Ele disse que VIRIA (e não apareceu).” para afirmar que o FP apresenta uma previsão que agora sabemos que foi equivocada. Por este motivo, esse tempo verbal carrega consigo uma noção de “irrealidade” que também tem característica modal, ou seja, o falante revela se crê ou não na verdade do que diz, no momento em que diz. De acordo com Givón (1995: 164), essa noção de “irrealidade” representada pelo FP e pelo PI (quando usado em seu lugar) apresenta graus em uma escala de certeza. Costa (1997: 26-27) propõe uma classificação simplificada em dois tipos: a não-factualidade e a contrafactualidade. Através do primeiro, o falante mostra que duvida da “irrealidade” da proposição e não elimina a sua possibilidade de realização. O segundo tipo mostra que o locutor tem certeza quanto à “irrealidade” do que diz e afasta qualquer possibilidade de realização. Esses tipos de “irrealidade” se opõem ao valor factual que o falante atribui ao que diz, ou seja, ele se compromete com a verdade do que diz, no momento em que diz. Costa (1997:127) nos oferece vários exemplos de proposições contrafactuais tanto no FP quanto no PI. Abaixo, dois deles: (a) “...eu não sei nem o porquê que eu não estudei mais. É, porque se nós quiséssemos o papai FARIA, sabe? Um sacrifício, para isso ele FARIA.” (b) “[Descrição de um colega que trabalhou com o informante numa fábrica de munição] ...É o tipo do camarada que se tivesse que mexer com uma pólvora, se uma pessoa duvidasse dele botar fogo ali, ele BOTAVA. Só que ninguém duvidava nunca, não é?...” 49 A seguir, apresentamos mais dois exemplos de Costa (idem, ibidem: 126). Agora, de proposições não-factuais: (a) “[Infomante descreve seu padrasto] ...fazia a minha mãe forrar a cama para os amigo, fazer comida para os amigo. Se minha mãe não fizesse, ele BATIA na minha mãe. Foi muito ruim,...” (b) “[Informante compara comportamento de jovens em diferentes gerações] ...Imagine! Nem um rapaz falar um palavrão perto de uma moça, não falava, não é? (...) Um rapaz não dizia nunca perto de uma moça, se falasse aquela moça nunca mais OLHARIA para a cara dele...” Voltando ao capítulo “A condição e a irrealidade” de Câmara (idem, ibidem: 55), no qual o autor fala sobre o “caráter modal da irrealidade” expresso pelo FP. Ele ressalta que esse caráter está no contexto em que se insere o FP e que não é intrínseco a essa forma verbal. Outra característica destacada é o fato de que um evento no FP depende de uma condição (explícita ou implícita) anterior a esse evento, para poder se realizar. A condição à qual está ligado o FP pertence a um passado já transcorrido e, se essa condição não se realizar, o evento passa a ser “irreal”. Câmara (idem, ibidem: 60) ainda ressalta que é possível se criar uma “condição imaginária” para que se apresente um fato como irreal. Nesse caso, o falante cria uma situação pretérita que não ocorreu (geralmente utilizando estruturas como Imaginemos que, Suponha que), para discutir possíveis conseqüências que, na realidade, não se realizam. No exemplo do autor, abaixo, o segmento “Imaginemos, porém, que o alferes tem podido galgar pela imaginação um século e despachar-se cirurgião-dentista” equivale a dizer “Se o alferes tivesse podido galgar pela imaginação um século e tivesse se despachado cirurgião-dentista”. “Imaginemos, porém, que o alferes” (isto é, Tiradentes) “tem podido galgar pela imaginação um século e despachar-se cirurgião-dentista. Era o mesmo herói e o ofício era o mesmo; mas traria outra dignidade.” (Assis, s/d: 3 apud Câmara, 1967: 60) Câmara (idem), nesse caso, atribui ao pretérito uma função metafórica; conseqüentemente, uma função modal de expressão da “irrealidade”. Ele destaca que, nas línguas nas quais o subjuntivo se tornou obsoleto, são os tempos do 50 pretérito do modo indicativo que exercem uma função modal de expressão de desejos e de hipóteses “irreais” (idem, ibidem: 61). O autor fornece três exemplos da língua inglesa, com a forma HAD (pretérito do verbo TER no modo indicativo), nos quais há três idéias distintas expressas por essa forma verbal (Jespersen, 1929; apud Câmara, 1967: 61): (1) uma afirmação no passado: “At that time he HAD money enough.” (Naquela época ele TINHA dinheiro suficiente.); (2) um desejo impossível: “I wish he HAD money enough.” (Eu GOSTARIA que ele tivesse dinheiro suficiente.); (3) uma condição irreal: “If he HAD money enough...” (Se ele TIVESSE dinheiro suficiente…). Câmara ainda se refere a Jespersen (apud Câmara, 1967: 62) na seguinte citação: “o uso não-temporal mais importante das formas pretéritas é assinalar irrealidade ou impossibilidade” – o que se pode ver em estruturas que expressam desejos e em orações condicionais. Segundo Câmara (idem), esse possível uso modal (ou metafórico) do pretérito justifica a presença, tão comum no português, do pretérito imperfeito do subjuntivo nas orações condicionais (Se eu GANHASSE na loteria, pararia de trabalhar.), atribuindo à forma verbal um caráter de irrealidade ou impossibilidade de um desejo. O modo subjuntivo reforça o caráter de irrealidade do verbo no passado. Câmara comenta que o uso do passado com caráter modal de “irrealidade”, no subjuntivo e até mesmo no indicativo , é natural do indo-europeu, sendo assim muito antigo. Então, não é raro vermos atualmente o PI em orações condicionais nas línguas indo-européias, como nos mostra o autor: (1) “Si J’AVAIS de l’argent, j’acheterais cette maison.” (francês) (2) “Si TENIA diners, compraria aquesta casa. (catalão) (Fabra, 1912; apud Câmara, 1967: 63) (3) “Si TENIA dinero, PAGABA la cuenta.” (espanhol) (Câmara, 1967: 63) 51 Nesse último exemplo, do espanhol, O PI ocorre tanto na oração condicional quanto na oração principal. Vale lembrar que a noção de modalidade não pode ser confundida com a de modo. Este é apenas umas das formas pelas quais algumas línguas expressam a modalidade (como no Português afirma-se, por via de regra, que o Indicativo é o modo da certeza e o Subjuntivo é o modo da dúvida.). O modo, juntamente com o tempo e o aspecto, é expresso pela morfologia verbal; já a modalidade, como vimos através de Travaglia (1991), pode se manifestar através de outros recursos lingüísticos diferentes dos verbais. Um falante pode escolher utilizar um determinado modo verbal com base mais em critérios gramaticais do que em critérios semânticos (determinadas conjunções obrigam o uso do subjuntivo, por exemplo: (a) “Vou ficar CONTANTO QUE você me implore.”; (b) “EMBORA fosse uma cantora de talento, era muito tímida para se apresentar para grandes platéias.”). 3.8- O futuro do pretérito e o pretérito imperfeito com os auxiliares modais De acordo com Bechara (1999: 232-233), combinados com o infinitivo ou gerúndio do verbo principal, os verbos auxiliares modais revelam o modo como a ação verbal se realiza ou deixa de se realizar. Tais verbos expressam idéias particulares como necessidade (ter de/que, haver de/que); obrigação ou dever (dever, precisar); possibilidade ou capacidade (poder); vontade ou desejo (querer, desejar, odiar, abominar); tentativa ou esforço (buscar, pretender, tentar, ousar, atrever-se a); consecução (conseguir, lograr); aparência, dúvida (parecer); movimento para realizar algo no futuro (ir+infinitivo); resultado (vir a, chegar a). Na opinião de Perini (2002: 286-290), o que caracteriza um verbo como modal é a impossibilidade de transformar o verbo que o acompanha (e que se encontra no infinitivo ou no gerúndio) em uma oração subordinativa no indicativo ou no subjuntivo (Você PODERIA chegar mais cedo amanhã?). Outra característica é que esse verbo principal não pode ter um sujeito diferente - nem claro, nem subtendido - do que se refere ao verbo modal: “POSSO devolver o livro amanhã.” – o sujeito do verbo PODER é o mesmo do verbo DEVOLVER, no exemplo oferecido pelo autor (idem, ibidem: 287). 52 Perini ressalta ainda que muitos modais podem ocorrer como verbos principais, mas sem manter o mesmo significado. O verbo DEVER como verbo principal, por exemplo, significa estar obrigado ao pagamento (“Roberto me DEVE mais de mil reais.”), mas, como verbo auxiliar modal, pode carregar uma idéia de possibilidade (“Roberto DEVE chegar bem atrasado hoje.”) (idem, ibidem: 287). No capítulo destinado ao estudo do infinitivo na língua portuguesa, Said Ali (1930) menciona o caso do infinitivo que ocorre com um verbo de “significação incompleta”, “sem existência própria”: o verbo auxiliar (idem, ibidem: 96-97). O autor divide o grupo dos verbos auxiliares em (a) modais, (b) causativos e (c) acurativos. De acordo com o autor, os verbos que funcionam como auxiliares modais no português são poder, saber (quando significa ‘ter aptidão’), dever, haver de, ter de, querer. Os causativos são representados pelos verbos fazer, mandar e deixar. Os acurativos expressam noções como, por exemplo, começo da ação (“COMEÇO a escrever”), duração da ação (“ESTOU escrevendo”), repetição da ação (“COSTUMO escrever”), continuação da ação (“CONTINUO a escrever”), término da ação (“ACABO de escrever”) (idem, ibidem: 100-101). Neves (2000: 61) classifica como “operadores gramaticais” os verbos que indicam modalidade, aspecto, tempo e voz. De acordo com a autora, “há verbos que se constroem com outros para modalizar os enunciados, especialmente para indicar modalidade epistêmica (ligada ao conhecimento) e deôntica (ligada ao dever), são os verbos modalizadores (idem, ibidem: 62). A autora oferece-nos exemplos com os verbos PODER, DEVER, TER QUE, SABER, PRECISAR. Com exceção do verbo SABER, todos esses verbos tiveram presença marcada no corpus de nossa pesquisa e nos interessam para a descrição da ocorrência do FP e do PI com os verbos auxiliares modais. Por isso, vamos descartar os verbos que indicam aspecto, tempo e voz por não se tratarem de verbos vinculados à noção de modalidade. Observemos, a seguir, a classificação dos verbos modalizadores, proposta por Neves e alguns dos seus exemplos (idem, ibidem: 62): (a) Necessidade epistêmica: “E você DEVERIA ser uma espécie de teólogo ou guru da nova doutrina. (ACM)”; 53 (b) Possibilidade epistêmica: “Não PODE ser eu que tenha feito isso – isso é muito ruim. (VEJ)” / “Era professor associado em Bologna e DEVERIA ter,como eu, uns 40 anos. (ACM)”; (c) Necessidade deôntica (obrigatoriedade): “E era ajuste que não podia demorar muito. (CA)” / “Bentinho, amanhã TENHO QUE romper as estradas para Piranhas. (CA)”; “PRECISAMOS ser gratos a DEUS pelo que recebemos. (MAR)”; (d) Possibilidade deôntica (permissão): “SE você é livre, PODE fazer o que quiser. (FSP)” / “Não se DEVE fumar na sala de necropsia. (TC)”. No capítulo 2 (seção 2.1), mencionamos que Cunha e Cintra afirmam que o FP é com freqüência substituído por estruturas compostas de verbos modais, como, por exemplo: poder e dever (1985: 452). E por que esta substituição é freqüente? Se tanto os verbos modais quanto o FP são utilizados para expressar modalidade (capacidade, obrigação, irrealidade, certeza/incerteza, etc), conclui-se que seria redundante fazer o uso desses tipos de verbos no FP. Assim o falante muitas vezes opta pelo uso do PI com os modais, como podemos ver nesse exemplo abaixo de Costa (1999: 177): “...Então ele se lembrou que eu estava bem resfriada, que PODIA pegar uma pneumonia, etc.” O verbo PODER já expressa por si só, nesse contexto, a noção de eventualidade (modalidade epistêmica), e a presença do FP viria a reforçar o valor modal desse verbo, com a idéia de “irrealidade” (caráter virtual de realização) que esse tempo expressa. Assim, o PI é utilizado no intuito de se evitar a redundância, no uso de dois elementos indicadores de modalidade. Vejamos agora que valores os verbos auxiliares modais podem exprimir. Preferimos adotar a proposta de Costa (1997) de descrição dos valores expressos pelos auxiliares modais, visto que se adequaram ao comportamento dos mesmos verbos em nossos dados. O auxiliar modal PODER apresenta as seguintes características: 54 (1) capacidade: Ele PODIA passar todo o dia sem comer absolutamente nada, se quisesse. (2) permissão: Eles não PODERIAM tocar naquele assunto, pois sua irmã tinha proibido. (3) possibilidade: Eu jamais PODERIA comer uma barata! Não consigo nem imaginar isso! (4) eventualidade: Como você saiu naquele frio sem um casaco? Você PODIA pegar uma gripe! (5) opinião: Eu acho que você PODERIA se esforçar mais, senão podem contratar alguém para o seu lugar, hein! O que diferencia a noção de possibilidade da de eventualidade é que esta corresponde a um TALVEZ, a um fato acidental ou imprevisto. A noção que chamamos de opinião – que Costa (idem, ibidem: 174) chama de conveniência – refere-se à expressão de “uma exigência pessoal, voltada mais para o bem-estar físico ou psíquico” do falante. O auxiliar exprime a opinião pessoal do interlocutor e, por conseguinte, uma visão subjetiva da situação. É comum que os auxiliares modais que expressam opinião pessoal venham acompanhados de expressões do tipo: “eu acho”, “eu considero”, “na minha opinião”, por exemplo (idem, ibidem: 178). Como já comentamos em 3.7, o valor opinião, expresso por alguns auxiliares modais, relaciona-se ao valor de obrigação. Este valor revela o que deve ser feito (tem que ser feito, pode ser feito) na opinião do falante, expressando uma exigência pessoal: Eu acho que a empresa DEVERIA INDENIZAR aqueles clientes.). Preferimos o termo opinião ao termo conveniência, proposto por Costa (idem, ibidem: 174), devido a este último transmitir uma idéia mais ligada à noção de proveito ou vantagem – o que nem sempre ocorria em nossos dados. Verbo DEVER: (1) necessidade: Ele DEVERIA comer melhor para agüentar aquela jornada de trabalho. (2) obrigação: Você DEVIA pagar uma taxa de 100 dólares, se quisesse pedir um visto para os EUA. 55 (3) opinião: Na minha opinião, você DEVIA processar aquele hospital pelo que fizeram com seu filho. (4) probabilidade: Ontem vi um homem no ônibus falando de uma forma muito estranha. Ele DEVIA ser estrangeiro. Verbo TER QUE / TER DE: (1) obrigação: Você TERIA QUE pagar a conta para que não cortassem a luz! (2) necessidade: Eu TINHA QUE ter mais tempo para estar com minha família, mas meu trabalho não deixa. Verbo PRECISAR: (1) necessidade: Eu PRECISAVA passar no supermercado antes de ir à sua casa. Tem problema se eu atrasar um pouquinho? (2) obrigação: Você PRECISARIA pagar a conta primeiro para depois pedir que religassem a luz. É o que diz a lei. (3) opinião: Paulo PRECISARIA pensar mais em si mesmo. Ele se sacrifica demais pelos outros. Os exemplos acima foram criados especialmente para ilustrar os valores que expressam os auxiliares modais PODER, DEVER, TER QUE / TER DE e PRECISAR. Através da análise de nossos dados no capítulo 5, poderemos ver como se deu o uso do FP e do PI nesses auxiliares modais. 3.9- O futuro do pretérito e o pretérito imperfeito – paralelismo O paralelismo se dá quando uma mesma forma lingüística ocorre em cadeia. Travaglia (1991) nomeia de fenômeno de continuidade a seqüência de elementos de mesma categoria em um texto como um todo ou em partes dele. Entre os tipos de continuidade que o autor apresenta está a continuidade de formas e categorias verbais, como aspecto, modo, pessoa, voz, tempo, considerando o texto como um todo e também levando em consideração a tipologia textual. O autor ressalta a correlação entre uma determinada categoria verbal e um tipo de texto. É sabido, por exemplo, que o presente do indicativo é freqüente na 56 descrição e na dissertação. Na narração, encontram-se o pretérito perfeito e o pretérito mais-que-perfeito e, na descrição, vemos com freqüência o pretérito imperfeito. Como já mencionamos no capítulo 3 (seção 3.1) deste estudo, Weinrich (1968) estabeleceu uma relação entre os tempos verbais e as situações comunicativas das quais participa o falante: o pedido de uma informação, a descrição de um fato, o relato de uma história, por exemplo. Além disso, o autor distribui os tempos verbais em dois grupos: o do mundo narrado (onde predominam o perfeito simples, o imperfeito , o mais-que-perfeito, o futuro do pretérito, bem como as locuções verbais constituídas por estes tempos) e o do mundo comentado (onde predominam o presente, o pretérito perfeito composto, o futuro do presente simples e composto, além das locuções verbais formadas por estes tempos). Weinrich refere-se, então, ao fenômeno de continuidade em relação ao gênero textual e ao tipo textual. Segundo Koch e Elias (2006), a ocorrência de um mesmo tempo verbal em seqüência pode indicar ao interlocutor se essa seqüência é um comentário ou um relato. De acordo com as autoras, o PI é o tempo da narrativa e que assinala o segundo plano, caracterizando o espaço e os personagens da narrativa (ao pretérito perfeito cabe o primeiro plano, onde as ações fazem a narrativa avançar). O FP também é descrito como um tempo da narrativa, mas que expressa uma visão “prospectiva”, ou seja, referentes a eventos “posteriores ao tempo base” (idem, ibidem: 157), No gênero entrevista podem ocorrer situações comunicativas diversas (descrições de um local, narrações de um fato, solicitação de informações, etc.) e, por isso, na análise de nossos dados, investigaremos a influência do fenômeno do paralelismo considerando partes do texto e não a entrevista como um todo. Costa (1997: 96) leva em conta o princípio do paralelismo ao analisar o uso do PI pelo FP. A autora afirma que a utilização do FP poderia levar a outra utilização do FP e que o uso do PI poderia motivar outro uso do mesmo tempo verbal. A seguir, um exemplo da autora (idem, ibidem: 102): “E – Depois que você viaja uma vez de avião, você não viaja mais de carro. 57 F – Eu acho que eu hoje em dia não FARIA – mesmo que eu fosse de, assim – eu IRIA de ônibus. Numa excursão de turismo, isso eu FARIA . Mas...” Esse fenômeno foi primeiramente pesquisado por Shana Poplack (1980 e 1980b) em um trabalho que investiga, sob o ponto de vista sincrônico, o apagamento e a retenção do S como marca de plural, no espanhol falado em Porto Rico. Poplack (1980b: 376) afirma que esse apagamento (ou retenção) vai ser influenciado por determinadas marcas que precedam esse S como marca de plural. Ainda com base em Costa (idem, ibidem), o paralelismo pode ocorrer em relação à fala do entrevistador, ou seja, em sua pergunta temos a utilização de um dos tempos em questão (FP ou PI), o que levaria o entrevistado a responder com o mesmo tempo da pergunta, como podemos observar no exemplo a seguir: “[Hipótese de o informante vir a ter um filho como o educaria.] E – E a sua participação SERIA no sentido de quê? F- SERIA igual a das outras pessoas- eu não sei como. (risos)” Há casos em que o uso em cadeia de um mesmo tempo verbal é quebrado, seja por razões estilísticas, seja pela expressão de uma determinada modalidade (atitude do falante em relação ao que diz), seja para evitar a utilização de formas verbais extensas. Vejamos, a seguir, um exemplo de Costa (idem, ibidem: 101): “E- Se você for na casa dele, toca o telefone e você atende, é uma mulher chamando por ele. Que que você FAZIA? F- Olha, vou te dizer a verdade. Eu PEGARIA o telefone e FALAVA assim...” Analisaremos os casos de paralelismo no capítulo 5, como também descreveremos os casos em que a continuidade de uso do FP ou do PI foi quebrada. 58 4- Procedimentos metodológicos. 4.1- Corpus – coleta e organização Nossos dados foram extraídos de 46 entrevistas publicadas, entre 2001 e 2006, na versão eletrônica da revista mensal Caros Amigos, através da visita ao endereço eletrônico http://carosamigos.terra.com.br. A revista Caros Amigos é uma revista mensal que traz a cada edição, entre outros textos, uma entrevista com uma personalidade que se destaca em um determinado setor, como o econômico, artístico, político, religioso, entre outros, e que é conduzida por vários entrevistadores ao mesmo tempo. A revista se autodenomina independente e seus leitores a caracterizam como objetiva e verdadeira, de acordo com uma pesquisa publicada em seu endereço eletrônico (http://carosamigos.terra.com.br). Ao contrário de muitas publicações já existentes no mercado editorial, a Caros Amigos conserva as marcas de oralidade, como também o contexto situacional, o que nos fez selecioná -la para nosso estudo, pois podemos então ter uma amostra mais autêntica do discurso de falantes nativos do português do Brasil. Vale lembrar aqui que obviamente descartamos as entrevistas realizadas com personalidades estrangeiras, pois, ainda que tenham sido publicadas em português, não registram o uso nativo e perderam a sua autenticidade ao serem traduzidas. 4.2- Procedimentos empregados na análise dos dados Nosso corpus, composto por 183 ocorrências, incluiu formas verbais, no PI e o FP, simples (FAZIA / FARIA), compostas (TINHA FEITO / TERIA FEITO), estruturas perisfrásticas com o verbo IR + infinitivo (IA / IRIA FAZER), construções com o verbo ESTAR + gerúndio (ESTAVA FAZENDO/ ESTARIA FAZENDO) e construções com os verbos auxiliares modais (PODER, DEVER, TER QUE / TER DE, PRECISAR e QUERER) + infinitivo. Distribuímos o corpus de nossa pesquisa com base na proposta de Travaglia (1999) para a classificação do emprego do FP, apresentada na seção 3.4. No entanto, não tivemos nenhuma ocorrência de valor nocional possibilidade, o que nos 59 levou a descartá-lo na descrição de nossos dados. A distribuição de nossos corpus foi feita por seis grupos: (1) grupo temporal cronológico (17 ocorrências), (2) grupo temporal polifônico (8 ocorrências), (3) grupo nocional condição (39 ocorrências), (4) grupo nocional polidez (36 ocorrências), (5) grupo nocional desejo (31 ocorrências) e (6) auxiliares modais (52 ocorrências). O sexto grupo não pertence à proposta de Travaglia (idem), mas acreditamos que ele tenha sido necessário, a fim de verificarmos se o comportamento do FP e do PI seria peculiar com os verbos auxiliares modais. Observamos todas as ocorrências de FP e de PI com valor de FP e descrevemos as mais significativas na seção 5. Remetemos ao anexo algumas outras ocorrências que reforçavam as características das que foram descritas. No grupo que teve menos de 10 ocorrências (grupo temporal polifônico), apresentamos e analisamos o número completo delas. A análise de nossos dados foi interpretativa e qualitativa. As ocorrências de uso do FP e do PI foram descritas, considerando o contexto lingüístico em que estavam inseridas, o contexto sociopolítico-cultural do momento em que se deu a entrevista, o comportamento lingüístico do entrevistador e do entrevistado. Ao final de cada exemplo apresentado durante a análise dos dados, encontram-se as informações sobre a edição da revista Caros Amigos de onde foram extraídos (CA61_abr_2002, p. 39). As letras CA são as iniciais de Caros Amigos, a seguir temos o mês e ano de publicação da revista, depois a página do anexo onde se encontra a ocorrência. O anexo apresenta uma numeração de páginas independente (de 1 a 151). No grupo Auxiliares modais (na seção 5.6), incluímos as formas PODER, DEVER, TER QUE / TER DE E PRECISAR, exceto a forma QUERER. Esta considerada modal por Bechara (1999) - foi analisada no capítulo 5 (seção 5.5, destinada ao grupo nocional desejo), pois, em nossos dados, expressa valor modal volitivo, que não está de acordo com as características dos auxiliares da seção 5.6. O verbo PODER também está presente no grupo nocional desejo, pois ocorre em enunciados que exprimem pedidos (Você PODIA /PODERIA ligar o ventilador?). Como no grupo nocional polidez foram encontradas ocorrências híbridas, ou seja, que apresentavam características também de outro grupo – no caso, do grupo nocional condição, sempre que isto aconteceu, o critério de classificação foi a predominância de determinadas características de um grupo sobre outro. 60 Algumas vezes, um segmento de entrevista trazido ao nosso texto para exemplificar determinada ocorrência apresentou mais de uma em seu interior. A que está destacada em letras maiúsculas e em negrito é aquela que está em foco naquele momento da análise, as demais não estão destacadas e se encontram analisadas em outro ponto do texto. Finalmente, com os dados obtidos, elaboramos um quadro de usos, direcionado ao professor de português para estrangeiros, que abarca os casos em que FP pode ser substituído pelo PI. 61 5- Análise dos dados O nosso objetivo nesta pesquisa é elaborar um quadro de usos do FP, que compreenda os casos em que este tempo verbal possa ser substituído pelo PI. Identificaremos, então, o valor do FP nas ocorrências do nosso corpus, verificando se o PI pode ou não ser utilizado em seu lugar. Em grupos muito numerosos, depois de apresentar e descrever suas ocorrências, indicaremos onde se encontram outras de mesmo valor em nosso anexo. 5.1- Grupo temporal cronológico De acordo com Travaglia (1999), o FP com valor temporal cronológico se manifesta principalmente em textos narrativos, sobre eventos que se dão no passado. Para a descrição dos dados do grupo temporal cronológico, que teve 17 ocorrências em nosso corpus, levaremos em conta as contribuições de Weinrich (1968) apresentadas na seção 3.1, a respeito das afinidades entre grupos de tempos verbais e determinadas situações comunicativas, como: o relato de uma história, a descrição de uma cena, a exposição de um argumento. Consideraremos também: se a extensão da forma verbal conjugada no FP ou no PI interfere na escolha de um tempo pelo outro; a ocorrência ou não em cadeia desses tempos verbais; o caráter formal ou informal da fala dos entrevistados; as noções de modalidade, não-factualidade e de contrafactualidade, discutidas na seção 3.7. Analisaremos também nesse grupo alguns casos do uso do FP e do PI com as perífrases (IR + infinitivo) e com os auxiliares modais, mesmo que tenham sido analisados em seções específicas, mas considerando aqui sua utilização com valor temporal cronológico. No grupo temporal cronológico tivemos poucas ocorrências, se compararmos com o número de dados dos outros grupos. Isso pode ser explicado pela própria característica das entrevistas da revista Caros Amigos, como descrevemos na seção 3.3: elas são de opinião, de depoimento e de perfil. Apesar de haver momentos em que o entrevistado relata suas experiências e a dos que fazem ou fizeram parte de 62 sua trajetória de vida, na maior parte das entrevistas ele expõe opiniões e argumenta sobre temas diversos, o que leva a uma baixa ocorrência de trechos narrativos. Observemos os segmentos de entrevista a seguir: (1) Ele foi justamente fazer um acerto porque os caras queriam matar o irmão mais novo. Então ele foi lá, conversou e fez um acordo com eles, marcando que no outro dia LEVARIA o dinheiro. (CA60_mar_2002, p. 28) (2) “A ‘ocupação’ do aeroporto tem um bom motivo: recepcionar a chegada do dirigente nacional do MST, Mário Lill, após sua permanência de três semanas como "escudo humano" de Yasser Arafat no quartel-general da Autoridade Palestina, em Ramalah, em companhia de outros trinta ativistas internacionais. Quando Lill desembarca, aplausos e uma pequena perseguição de câmeras e fotógrafos ao agricultor. Que SE REPETIRIA minutos depois em frente à sede estadual da Via Campesina, num ato que interrompeu o trânsito em uma das principais vias de acesso ao centro da cidade.” (CA61_abr_2002, p. 43). Nos casos acima, o FP é usado pelo entrevistado para fazer o relato de um futuro referente ao passado. De acordo com Weinrich (idem), o FP é um tempo verbal que pertence ao mundo narrado, no qual predominam situações comunicativas como a dos segmentos acima: o relato de um acontecimento real ou de um fato histórico. Nesses casos, o falante distancia-se de sua fala, não se compromete com o que relata e mantém uma atitude distensa. Em (1), o uso do PI (LEVAVA) pelo FP (LEVARIA) revelaria uma maior possibilidade de concretização do que se narra. Além disso, o segmento “no outro dia” garante a idéia de futuro em relação ao passado, que o falante quer expressar. Em (2), o uso da forma REPETIA ainda manteria a idéia de futuro em relação a um passado também pela presença da expressão “minutos depois”. O PI também pertence ao grupo dos tempos verbais do mundo comentado, como afirma Weinrich (idem). Vejamos os segmentos abaixo: (3) Conceição Paganele - Já era muito difícil a questão da droga, mas, quando ele foi preso, alguém me falou que IA para a Febem – até então, eu não tinha conhecimento do que era a Febem. (CA60_mar_2002, p. 29) (4) Fomos falar com o prefeito” – o prefeito de Águas Belas, ali perto – “e ele disse que não PODIA FAZER nada porque não tinha recursos, não tinha verba, não tinha coisa nenhuma. Nós pedimos pão...”. Fiquei sentimentalizado, parece uma coisa do Oriente” (CA53_ago_2001, p. 10) 63 Apesar de os verbos estarem no PI nos casos acima, o que temos é a expressão de um futuro em relação ao passado. Em (3), a forma do verbo IR no FP possui três sílabas e no PI, apenas duas, o que favorece o uso desse último tempo verbal. Em (4), a forma PODIA também apresenta um número menor de sílabas do que a forma PODERIA, o que nos leva à hipótese de Costa (1997), descrita na seção 2.3, de que há uma preferência, no português do Brasil, pelo uso de formas mais curtas. Outra constatação de Costa (idem), que apresentamos na seção 3.8, é a de que os auxiliares já apresentam um valor modal, o que tornaria desnecessário que houvesse outro elemento indicando mais um valor modal (o FP, indicando “irrealidade”). Assim, em (4), o auxiliar PODIA já apresenta o valor modal de possibilidade e o FP representaria a presença de mais um valor modal (o de “irrealidade”) em um mesmo enunciado. Outra ocorrência com as mesmas características quanto à extensão da forma verbal encontra-se em nosso anexo: IA TER (CA53_ago_2001, p. 9). Observemos o segmento seguinte: (5) Aí o ministro, acho que da Indústria e Comércio, Fábio Yassuda, que havia promovido aquilo tudo, pôs o cargo à disposição do governo, criou um caso interno, ninguém soube, jornal não publicou. Então disseram: está bem, eu IRIA ao Japão, FAZIA o pavilhão e VOLTAVA, porque era uma relação internacional já estabelecida. (CA61_abr_2002, p. 39) Acima, a primeira ocorrência do verbo IR no FP expressa um futuro em relação ao passado. Os verbos no PI (FAZIA e VOLTAVA) expressam futuro mais provável em contraposição à forma no FP (IRIA) que expressa mais incerteza em relação ao futuro, se comparado ao uso do PI. Passemos para os segmentos de entrevista a seguir: (6) Neste mês, Henfil faria aniversário, nasceu em 5 de fevereiro de 1944. MORRERIA de Aids, como dois de seus oito irmãos, Mário e o Betinho. Hemofílicos, receberam na obrigatória transfusão a que se submetiam sangue contaminado. Um quase homicídio de cada um. Henfil morreu aos 43 anos, em 1988. Esta entrevista foi feita em 1983 por Neusa Pinheiro e ficou guardada até agora com a intelectual e socióloga paranaense. Uma entrevista confessional, instigante e,muitas vezes, arrepiante. (CA59_fev_2002, p. 22) 64 (7) “Quando?” “Amanhã... (eu mal respirava)... pode ser amanhã às 9?” “Tudo bem”, ele disse. Anotei o endereço, consultei o guia. Era próximo ao HC. O amanhã SERIA no dia 26 de outubro de 1983. Manhã limpa, ensolarada. Fui a pé, andando rápido, respirando forte (havia me instalado em Pinheiros, na Capote Valente). Pronto. Havia chegado. O dedo indicador mal tocou a campainha. Ele abriu a porta. Não me lembro do teor do cumprimento. Mas havia muito silêncio. Como aquelas igrejas sozinhas, perto de alguma cidade interiorana. (CA59_fev_2002, p. 23) (8) A época de Getúlio é também um momento de uma preocupação muito grande com a construção da economia, se percebe que é necessário industrializar o país, que essa necessidade está ligada à construção de infraestrutura nas áreas da siderurgia, da energia elétrica, da indústria. E é uma época de diversificação até de relações econômicas em direção à Alemanha, por exemplo, que depois PERMITIRIA, com a guerra, que o Brasil conseguisse muito habilmente extrair os financiamentos para a construção de Volta Redonda, um fato político extraordinário para a época. (CA51_jun_2001, p. 3) As ocorrências acima mostram o FP mais uma vez fazendo parte do mundo narrado, como afirma Weinrich (idem). Antes de analisar mais detalhadamente os casos acima, vejamos a observação dos autores, a seguir. De acordo com Cunha e Cintra (1985: 442), o PI “sendo um tempo relativo, o seu valor temporal é comandando pelos verbos com os quais se relaciona ou pelas expressões temporais que o acompanham. Nos casos em que a época ou a data em que ocorre a ação vem claramente mencionada, ele pode indicar até um só fato preciso.” E exemplifica: a) “Em um momento do século XVII colocava-se o autor da Ulisséia acima do Camões!” (J. Ribeiro, 1905: 8 apud Cunha e Cintra, 1985: 442); b) “Às 6 horas em ponto batia à sua porta.” (M. de Sá Carneiro, 1956: 230 apud Cunha e Cintra, 1985: 442). Voltando aos segmentos acima, podemos observar que os verbos no FP (MORRERIA e SERIA) apresentam o mesmo comportamento das ocorrências mostradas por Cunha e Cintra (idem: ibidem) e que também vêm acompanhados por expressões temporais. Podemos concluir que o FP, em (6), (7) e (8), foi utilizado como um recurso estilístico, já que o texto onde se inserem essas ocorrências apresenta características de texto literário. Outra ocorrência com a mesma característica de (6), (7) e (8) encontra-se em nosso anexo: SERIA FECHADO (CA_on-line_fev_2006, p. 137). Passemos para o segmento seguinte: 65 (9) Eles fumavam muita maconha. Achava que, estando ali próxima, até do próprio traficante, ESTAVA GARANTINDO a vida do meu filho, e de certa forma estava. (CA60_mar_2002, p. 28) Em (9), o PI está sendo usado no lugar do FP – ESTARIA GARANTINDO – e carrega um valor de “irrealidade”, visto que, a entrevistada fala de um momento no passado, no qual ela não tinha certeza se o que estava fazendo garantiria a vida de seu filho. O segmento ACHAVA QUE funciona como uma marca de subjetividade, que é uma expressão de modalidade, pois revela a atitude do falante a respeito do que é enunciado. (10) Conceição Paganele - Quando procurei saber o que era Febem, a Fundação do Bem-Estar do Menor, pensei: “Graças a Deus. Ele vai para um local onde será tratado. Vai ter apoio, vai ter tudo aquilo que eu não tive condições e não encontrei nem na comunidade, nem no município, nem no Estado”. Achava que lá dentro ele IA TER assistência, IA ESTAR CONTIDO, IA TER psicólogos, trabalhos profissionalizantes, tudo. (CA60_mar_2002, p. 29) Em (10), temos a mesma marca de subjetividade que leva ao uso do PI (com perífrase) pelo FP, como discutimos acima. Além disso, a perífrase IA TER levou à ocorrência em cadeia de outras perífrases de mesma estrutura, como descrevemos em 3.9. Abaixo, em (11), ocorre outra seqüência de perífrases, mas desta vez com o verbo IR no FP. Podemos notar que a perífrase IRIA ACONTECER está substituindo a forma ACONTECERIA, que apresenta seis sílabas, o que nos remete mais uma vez à hipótese de Costa (1997), apresentada na seção 2.3, de que, no português do Brasil, os falantes dão preferência ao uso de formas mais curtas. Ao ser usada a forma IRIA ACONTECER, há uma distribuição em dois vocábulos do peso de uma estrutura longa. A forma no PI (IA ACONTECER) poderia ser utilizada e atribuiria uma característica mais informal à fala do entrevistado. (11) Mas eu não tinha medo, pois achava que alguma coisa IRIA ACONTECER e que NÃO IRIA PRESA, porque eu estava ali zelando, procurando, esperando o meu filho. (CA60_mar_2002, p. 28) 66 É importante ressaltar que a mesma idéia de futuro em relação ao passado expressa em (10) ocorre com o verbo ACONTECER acima. Então, o PI (ACONTECIA) não manteria o sentido que o enunciado expressa. O mesmo ocorre com a seguinte ocorrência encontrada em nosso anexo: IA SER e IRIA SUPLANTAR (CA50_mai_2001, p. 2). Nos segmentos seguintes, o FP também ocorre apesar da presença de marcas de subjetividade. Como na ocorrência (11), o uso desse tempo verbal pode refletir a intenção do falante em reforçar o caráter modal de seu enunciado ou pode revelar que o discurso usado por ele é próximo do registro formal. (12) Juca Kfouri - Quando fui depor na CPI, com o José Trajano, com o Tostão, vi que tinha lá, pra minha felicidade, uma larga entrevista que dei à Caros Amigos, número 1, que muita gente achou um exagero, que só uma mente doentia SERIA capaz de dizer as coisas que estavam ditas ali. (CA52_jul_2001, p. 7) (13) Juca Kfouri - De todo jeito, o que se imaginava, assim que a CPI foi instalada, é que ela TERMINARIA em pizza, dada a composição da própria CPI, integrada pelo pessoal da "bancada da bola". Que, ao fim, não conseguiu impedir o essencial, a investigação, não conseguiu impedir que viesse à luz esse relatório que está aí. (CA52_jul_2001, p.6) Em (12), se o PI (ERA) fosse usado, expressaria um fato certo no passado (a mente doentia ERA capaz de dizer as coisas.), mas esse não é o caso, pois o que se quer expressar é uma hipótese. Em (13), o verbo TERMINAR expressa um futuro em relação à forma IMAGINAVA, então o PI (TERMINAVA) não manteria esse valor de futuro. Tentando determinar em que casos o FP e o PI são intercambiáveis, nas 17 ocorrências desse grupo, observamos que em 12 delas isso é possível. Concluímos que há uma série de fatores que devem ser considerados, como: a interpretação do contexto em que se insere a forma verbal; o valor temporal expresso pelo enunciado (passado, presente, futuro), extensão do verbo a ser conjugado; o tipo de discurso escolhido pelo falante; a expressão de valores modais. 67 5.2- Grupo temporal polifônico Como já definimos na seção 3.4, este grupo, com 8 ocorrências, caracterizase pelo relato de algo que foi dito por outra pessoa, mas com a preocupação de não se comprometer com a veracidade do que se relata. Quando o FP é utilizado com este valor, não pode ser substituído pelo PI, pois o falante passaria a asseverar que o relato é verdadeiro e isto seria fugir da sua intenção. De acordo com Weinrich (1968:145) - como já foi discutido anteriormente na seção 3.1 - ainda que esteja sendo usado para narrar/relatar, o FP converte-se em uma metáfora temporal, funciona ndo como um recurso estilístico que revela a precaução do falante na validação do relato. Ao fazer uso deste discurso precavido, o falante tem uma preocupação em preservar a sua face positiva, isto é, ele procura não ser reprovado pelo seu interlocutor: ser chamado de mentiroso; ser acusado de algo que não fez; não se comprometer com alguma coisa que possa prejudicar a sua imagem perante o outro, etc. Vamos à análise das ocorrências do FP de nosso corpus, com valor de posterioridade temporal polifônico. (1) Carlos Castelo Branco - Dizem que, na China, as pessoas que vão lá podem fazer crítica ao governo desde que no âmbito privado, se for para a imprensa as retaliações são muito fortes. Imaginando um governo do PC do B, como seria a relação com a imprensa? Aldo Rebelo - Eu sinto dificuldade em comparar a experiência de democracia. Vou muito a Cuba e gosto muito do país. Sou do grupo parlamentar Casa de Cuba e sempre sou cobrado porque lá HAVERIA uma ditadura. Eu digo: "Tudo bem. No dia em que construirmos um modelo de democracia, que pudermos oferecer aos cubanos melhor do que o que eles têm, acho até que você tem autoridade para isso. (CA_52_jul_2001, p. 6) Nesta entrevista, Aldo Rebelo – então presidente da CPI CBF-Nike (2001) – começa a sua resposta, falando da sua dificuldade em comparar experiências de democracia, o que já revela uma intenção do entrevistado em não ser direto ou categórico ao fazer comentários sobre esse regime político. A seguir, ele diz: “e sempre sou cobrado porque lá HAVERIA uma ditadura.” – o uso do verbo haver no FP revela que Aldo Rebelo não quer asseverar a presença de uma ditadura em Cuba. Como membro do grupo parlamentar Casa de Cuba, o entrevistado procura 68 salvar a sua face, fazendo suas observações de forma mais indireta, pois, se Aldo Rebelo usasse a forma HAVIA em lugar de HAVERIA , estaria confirmando a existência de um regime ditatorial cubano – o que iria de encontro ao seu discurso de membro da Casa de Cuba. No segmento a seguir, a entrevistadora pergunta ao sociólogo Octavio Ianni o que poderíamos esperar para os anos 2002 e 2003, depois do ataque terrorista de 11 de setembro nos EUA. A seguir, um trecho de sua resposta: (2) Octavio Ianni: Os governantes europeus e norte-americano (...) optaram por uma guerra mundial. Uma operação de guerra batizada inicialmente com uma denominação evidentemente fundamentalista: “Justiça Infinita”. Alguém que conhece o mundo islâmico TERIA ACONSELHADO o governo americano a maneirar, que isso de justiça infinita podia ser extremamente ridículo, absurdo ou inaceitável em termos dos desdobramentos possíveis, e daí passou a ser denominada “Operação Liberdade Duradoura”, que é também de um ridículo total. (CA_58_jan_2002. p. 20) O sociólogo faz uso do FP composto para relatar o suposto conselho de um personagem não identificado, que teria aconselhado o governo americano a tomar outros caminhos, na reação ao ataque terrorista. Nesse caso o entrevistado não sabe, não quer ou não pode dizer o nome de quem havia dado o conselho. Possivelmente, Octavio Ianni conseguiu essa informação de outra pessoa e não quer se comprometer com a sua validade, salvando assim a sua face. A seguir, temos uma pergunta para o entrevistado José Louzeiro, escritor e repórter de polícia. (3) Verena Glass - O Comando Vermelho TERIA uma origem mais política, digamos assim. O PCC se apropria um pouco do discurso, direitos, liberdade, paz etc. Vê-se o Fernandinho Beira-Mar com as FARC. Como você vê essa onda aí? (CA_65_ago_2002, p. 48) Antes de fazer a sua pergunta, a entrevistadora dá uma série de informações que servirão de base para ela. Na primeira informação, “O Comando Vermelho TERIA uma origem mais política...”, Verena Glass preferiu utilizar o FP seguramente com o intuito de afirmar, de forma indireta, que não tinha muita segurança em relação à origem dessa facção. Se fosse usada a forma TINHA, a entrevistadora diria que o Comando Vermelho não existe mais – o que é uma inverdade, além de 69 também se responsabilizar pela veracidade de algo que ela não pode garantir. O segmento “O PCC se APROPRIA um pouco do discurso, direitos, liberdade, paz etc.” contém um verbo no presente do indicativo, o que impediria o uso da forma TINHA no segmento anterior, pois causaria um conflito em relação à idéia de tempo. Observemos outra ocorrência: (4) Nicodemus Pessoa - Queria colocar o problema das hidrovias. De um lado há pessoas, e principalmente ONGs, que são contra o uso das hidrovias. E, de outro, pessoas que questionam o papel dessas ONGs. A Folha de S. Paulo publicou um artigo do empresário Antônio Ermírio de Moraes colocando essas ONGs sob suspeição. E há quem afirme que eles ESTARIAM a favor de interesses internacionais, que não querem que produtos, grãos, soja tenham poder de competição no mercado externo. Quem estaria com a razão? (CA_66_set_2002, p.51) Nesse segmento , não só o FP, como metáfora temporal, imprime ao comentário de Nicodemos Pessoa, o desejo de não revelar a identidade do autor da informação. A expressão “há quem afirme” também reforça essa intenção. Seguem-se mais duas ocorrências: (5) Marco Bahé - O senhor falou da figura mítica que SERIA seu pai. Essa relação com ele como foi, o que ficou no final? (CA_75_ jun_2003, p. 74) Nesse caso, entrevistador repete uma informação dada pelo entrevistado, o escritor Ariano Suassuna, mas prefere utilizar o verbo da afirmação no FP (SERIA ), com o intuito de reforçar que não era sua a autoria do comentário. Substitui ndo a forma SERIA pela forma ERA, o entrevistador deixaria de imprimir à sua fala a nuance do “discurso cauteloso”. (6) Acho que durante muito tempo as pessoas não elegeram o Lula por ojeriza ao tipo brasileiro. Essa coisa herdada de que EXISTIRIA um tipo mais nobre, essa discussão racial que vem desde Aristóteles, essa coisa dos tipos de homem, das qualidades de homem, essa coisa ficou arraigada... E acho que agora já é possível a gente olhar pra um homem mestiço, caboclo, mameluco, e achá-lo interessante, possível. Acho que isso vem se dando nesta última década. (CA_79_out_2003, p.83) 70 Aqui, o entrevistado utiliza o FP para ratificar que a herança da ojeriza ao tipo brasileiro não vinha dele. O contexto do diálogo era o seguinte: entrevistador e entrevistado, o ator Matheus Nachtergaele , vinham conversando sobre o padrão de galã do cinema nacional em oposição ao homem típico brasileiro. Comentavam que, hoje em dia, esse padrão havia mudado e que o próprio ator representava esse novo tipo do cinema. Supunham que estava havendo uma aceitação do povo em relação ao tipo nordestino e que isso poderia ter incentivado a população a eleger Lula para a presidência do Brasil. O FP com valor polifônico enfatiza a intenção de Matheus em afirmar que não compartilhava desse tipo de discriminação. Na ocorrência a seguir, o entrevistador cita alguns fatos que gostaria que fossem esclarecidos por Ricardo Kotscho, então secretário de imprensa do presidente Lula. (7) Mylton Severiano - É bem notório, mas houve na eleição do Lula dois fatos que ficaram meio mal explicados e eu gostaria que você, que estava lá dentro, desse a sua versão. Um foi uma entrevista que o Boris fez, e duas ou três perguntas iniciais não vieram para o grande público, e a outra foi que o Lula levantou de um almoço na Folha de S. Paulo porque o Otavinho (Otávio Frias Filho, o diretor de redação) TERIA PERGUNTADO não sei o quê atravessado pra ele. Gostaria que você esclarecesse porque isso pode estar na gênese dessa má vontade deles. (CA_91_out_2004, p. 110) Um dos fatos refere-se ao episódio em que Lula havia se aborrecido com uma pergunta feita por Otávio Frias Filho, durante um almoço. O uso do FP com valor polifônico (“... porque o Otavinho... TERIA PERGUNTADO não sei o quê atravessado pra ele.”) marca que o entrevistador provavelmente conseguiu essa informação de uma determinada fonte e não quer se arriscar a afirmar categoricamente que o fato realmente teria acontecido. Se Mylton Severiano, o entrevistador, dissesse... porque o Otavinho PERGUNTOU não sei o quê atravessado pra ele, estaria se envolvendo muito mais, até mesmo deixando soar como uma espécie de acusação. Abaixo, em (8), Apolônio de Carvalho narra alguns episódios dos quais participou, quando militava no Partido Comunista Brasileiro. 71 (8) Em 1947, a União da Juventude Comunista foi fechada com menos de um mês de existência. O Partido Comunista entendeu mal esse gesto de arbítrio dos governantes. Prestes TERIA DITO: “Fecharam a União da Juventude Comunista porque não têm força para fechar o Partido Comunista”. Na realidade a Juventude Comunista foi fechada no fim de abril com quase um mês de existência, mas o Partido Comunista seria fechado uma semana depois, a 7 de maio, pelo próprio governo do General Dutra. (CA_online_fev_2006, p. 137) Quando utiliza o FP – TERIA DITO – para revelar uma afirmação de Prestes, Apolônio preferiu usar esse tempo verbal provavelmente porque não sabia as palavras exatas do autor daquela declaração. Se Apolônio utilizasse o PI – TINHA DITO – estaria mostrando uma certeza maior acerca das palavras exatas utilizadas por Prestes. Conclui-se que o FP utilizado com valor polifônico não pode ser substituído pelo PI ou PP, pois implicará, no texto, uma alteração da intenção do falante. Tal intenção consiste em não asseverar a informação fornecida pelo outro; ratificar que não se compartilha de uma idéia com a qual não se concorda; comentar algum fato com certa timidez por não querer afirmar algo de que não se está certo; mostrar cautela em se apropriar do que o outro disse, por exemplo. Além disso, o intuito de preservação da face do falante seria prejudicado e a metáfora temporal perderia seu efeito de imprimir ao que se comunica uma determinada nuance. 5.3- Grupo nocional condição Para analisar as 39 ocorrências do FP e do PI nos períodos compostos por orações condicionais, consideraremos o papel da modalidade na escolha de um tempo verbal ou de outro; a extensão da forma verbal do verbo que será conjugado no FP ou no PI; a ocorrência ou não do FP ou do PI em seqüência; a ordem das orações no período composto por orações condicionais e o caráter formal ou informal das entrevistas analisadas. Vejamos os segmentos de entrevista a seguir: (1) Ora, se você está numa dessa daí, você não pode ir lá para o morro assim, o morro tem dono. Não é dono como eles chamam, tem uma pessoa que cuida de todo mundo ali, quando a mulher vai ter um filho no morro, quem paga o parto, mesmo que seja mulher de um policial, e o policial esteja não se sabe por onde ou não tem dinheiro, é o chefe do tráfico que manda a mulher para a maternidade. E, se o 72 motorista do táxi não quiser subir, vai subir de qualquer jeito. Sobe, a mulher vai, o tal chefe paga o parto bonitinho, e não cobra do policial. É uma chantagem? É! Mas a mulher teve o filho? Teve! E, se não fosse feito em tempo, ela IA MORRER ou o filho IA NASCER -- como muitas crianças no morro ainda nascem -- em mão de parteira, que é um negócio primitivo. Ou seja, o Estado não oferece para o morro nada! E estamos no século 21, no terceiro milênio. (CA65_ago_2002, p. 48) Em (1), temos duas perífrases com o verbo IR no Pretérito Imperfeito + verbos de duas sílabas no infinitivo. Caso os verbos morrer e nascer fossem utilizados no FP, teríamos verbos de 4 sílabas: MORRERIA e NASCERIA ; então, as formas perifrásticas IA MORRER e IA NASCER distribuem o peso das estruturas longas em dois vocábulos. Podemos notar também o tom informal da fala do entrevistado, o escritor e repórter de polícia José Louzeiro, através de algumas marcas, como: presença do diminutivo com valor afetivo (“bonitinho”) como um recurso estilístico. Fávero (2000: 83) destaca a repetição de palavras como outra característica da língua falada e é o que vemos também na fala de Louzeiro: (“E, se o motorista do táxi não quiser SUBIR, vai SUBIR de qualquer jeito.”), (“Ora, se você está numa dessa daí, você não pode ir lá para o MORRO assim, o MORRO tem DONO. Não é DONO como eles chamam...”). Além disso, o seu discurso não é construído por períodos tão complexos e tão estruturados como os da escrita formal. De acordo com Moraes (1999: 187), no discurso oral o falante tem que simultaneamente planejar e produzir seu texto, o que deixa marcas na sintaxe como as que vimos em (1). Constatamos que a perífrase IA+infinitivo foi preferivelmente utilizada em entrevistas que revelavam informalidade nas falas dos entrevistados e dos entrevistadores. As formas MORRIA e NASCIA, do PI, são possíveis em (1), pois revelariam que o falante expressa uma crença maior na realização do fato. Vejamos outras ocorrências: (2) Sérgio de Souza - Você disse que foi ganhar um terço do que ganhava. E tem trabalho pra caramba, até 10 da noite. Sem a família. Por que você foi pro governo, então? É a continuação de uma história. Na primeira campanha do Lula, já fui ganhando muito menos do que ganhava no Jornal do Brasil e até aconteceu um negócio engraçado, porque eu falei: “Não quero ser assessor de imprensa, não gosto, não sei fazer”. Ele falou: “Não enche o saco, eu também nunca fui candidato a presidente da República”. E 73 as coisas foram acontecendo, as campanhas, aí o teu amigo ganha a eleição e você vira e fala: “Bom, agora...”. Até brinquei, queria lançar um movimento “Vai com Deus, Lula. Fizemos a nossa parte, seja feliz”. Não dá pra fazer isso. Eu não sei explicar por que estou lá, mas tenho certeza de que, se não estivesse, não IA ESTAR legal. (CA91_out_2004, p. 111) No caso acima, no qual o jornalista e o então secretário de imprensa do presidente Lula, Ricardo Kotschom, responde a pergunta de Sérgio de Souza, podem-se verificar mais marcas de oralidade da fala informal tanto do entrevistado quanto do entrevistador: elementos freqüentes no discurso informal (“pra caramba”, “não enche o saco”, “negócio”); uso do pronome possessivo TEU em lugar de SEU; a presença da construção “e você VIRA e fala...”. Como nas ocorrências de (1), há em (2) a opção pelo uso da perífrase IA+ESTAR em lugar da forma ESTARIA , que também teria 4 sílabas no FP. Nos casos a seguir, os verbos em questão também apresentariam um número maior de sílabas, se utilizados no FP - o que favorece o uso da perífrase IA+infinitivo. O uso do PI (ESTAVA) seria possível e expressaria uma certeza mais clara do falante, a respeito de seu estado de espírito como secretário de imprensa do presidente Lula. Abaixo, o segmento de entrevista (3) revela um tom informal do discurso do entrevistado, o rapper MV Bill. (3) O que eu vi de perto é a falta de chance. Quando a gente faz nosso trabalho com a Cufa... quando a gente passa o conhecimento cultural, a gente não impõe: você vai ter que fazer isso daqui! Não, cada um faz juízo do que é bom e do que é ruim. Agora, quando a gente nega essa chance às pessoas, a chance de trazer alguém pro lado de cá, estamos ajudando a confirmar que ela tem que morrer e confirmando suas futuras vítimas. O jovem que mora na comunidade não consegue se sentir visível dentro da vida. Só consegue se sentir visível quando está cometendo algum delito, aí já com uma arma na mão. Estou dizendo que, se todas as pessoas tivessem uma oportunidade, nem todas IAM SER DIFERENTES, mas algumas IAM SE MODIFICAR . Não sou defensor deles, mas não consigo colocá-los como monstros. Porque quando eu começava a conversar a máscara de monstro caía, eles voltavam a ser seres humanos. (CA99_jun_2005, p. 122) Podemos observar o uso da expressão “a gente” em lugar de “nós” e a utilização da contração “pro”, como marcas de informalidade na fala de MV Bill. Em relação à extensão lexical, não haveria uma diferença tão grande entre as formas 74 IAM + SER E SERIAM, pois nesta última temos um verbo de uma sílaba no infinitivo que passa a ter três sílabas no FP. No entanto, como citamos no capítulo 3 (seção 3.9), dedicado à fundamentação teórica, ocorre nesse caso o paralelismo das perífrases IAM SER DIFERENTES e IAM SE MODIFICAR. Em outras palavras, o uso da primeira perífrase leva ao uso da segunda, dando-se assim um uso em cadeia desses elementos. MV Bill fala de seu envolvimento com a Cufa (Central Única das Favelas): um pólo de produção cultural que oferece perspectivas de inclusão social para jovens das favelas. Com base nesse contexto, podemos concluir, quando o rapper diz “... se todas as pessoas tivessem uma oportunidade, nem todas IAM SER DIFERENTES, mas algumas IAM SE MODIFICAR.”, ele está levantando uma hipótese possível – uma proposição “irreal” não-factual. Pelo mesmo motivo, as formas ERAM e MODIFICAVAM também seriam possíveis, pois revelariam a crença do falante na possível realização do que enuncia. Além disso, como participante desse projeto social, seria contraditório que ele não tivesse esperança de que as pessoas se modificassem. O PI nas perífrases (IR + SER / IR + MODIFIC AR) substitui o FP (SERIAM / SE MODIFICARIAM) e tem valor epistêmico de probabilidade. Voltando à questão da extensão da forma verbal, destacamos que o verbo MODIFICAR, na segunda ocorrência do segmento (3), que já se apresenta como um verbo extenso no infinitivo – 4 sílabas – passa a ter 6 sílabas no FP, o que favorece o uso da estrutura IA + modificar. No anexo de nosso trabalho, encontra-se uma ocorrência similar a (3): IA PRECISAR (CA100_jul_2005, p. 124) Os segmentos de entrevista, a seguir, foram extraídos da entrevista do cantor Seu Jorge. O texto apresenta muitas marcas de oralidade e a entrevista transcorre em um tom bastante informal, que se evidencia, por exemplo, pela presença de termos como: “porra”; “cara” (no lugar da palavra “homem”); a interjeição “pô”; as reduções do tipo “tá”. (4) Andrea Dip - Mas já tocava? Porra nenhuma, menti geral. Aí ele falou: “ Você tocou onde?”, falei: “Toquei na banda marcial do meu colégio ”. A única coisa que era verdade era que o meu colégio tinha uma banda marcial e se ele fosse averiguar ninguém IA LEMBRAR se eu toquei ou não toquei naquela porra. (CA_on-line_maio_2006, p. 142) 75 (5) Marcos Zibordi - Mas em que tipo de lugar você tocava? Naquela época, se você me cruzasse, IA ME VER com o violão, um maluco que você IA FALAR: “Pô, esse cara não tá bem ! Será que esse maluco toca mesmo?” (CA_on-line_maio_2006, p. 144) Em (4), ocorre a forma IA+LEMBRAR em lugar de LEMBRARIA , que, no infinitivo, possui duas sílabas e que, no FP, passa a ter quatro sílabas. Em (5) temos duas ocorrências de perífrase: IA ME VER e IA FALAR. Nessa última, o verbo FALAR, que possui duas sílabas no infinitivo, passa a ter quatro sílabas no FP. A perífrase vem então distribuir em dois vocábulos o peso de uma estrutura longa. Já a perífrase IA ME VER do segmento (5) assemelha-se ao caso do verbo SER em (3), pois, a forma VERIA – com três sílabas - não é tão extensa em relação a seu infinitivo VER – com uma sílaba. É, portanto, mais um caso de paralelismo de perífrases: IA ME VER e IA FALAR, isto é, uma perífrase leva ao uso de outra perífrase de mesma estrutura. Em (4) e em (5), as formas no PI (LEMBRAVA, VIA, FALAVA) não seriam possíveis, pois expressariam um fato no passado e se chocariam com o valor de hipótese, expresso pelas orações condicionais existentes na fala dos entrevistados. Analisemos, a seguir, a ocorrência (6): (6) Nicodemus Pessoa - Queria colocar o problema das hidrovias. De um lado há pessoas, e principalmente ONGs, que são contra o uso das hidrovias. E, de outro, pessoas que questionam o papel dessas ONGs. A Folha de S. Paulo publicou um artigo do empresário Antônio Ermírio de Moraes colocando essas ONGs sob suspeição. E há quem afirme que eles estariam a favor de interesses internacionais, que não querem que produtos, grãos, soja tenham poder de competição no mercado externo. Quem estaria com a razão? - Na questão das hidrovias, o Brasil chegou um século atrasado. A hidrovia foi uma grande proposta no século 19, por aí. No caso das hidrovias brasileiras há vários fatores a considerar. Existe a proposta da hidrovia Araguaia-Tocantins, a da hidrovia do Pantanal, que é a Paraguai-Paraná... Vamos começar por esta: em 1994 foi feito sobre ela um estudo muito interessante, por uma ONG de Brasília. Mostrava o seguinte: se fosse aplicada em infra-estrutura de turismo a metade dos investimentos previstos para a hidrovia, SERIAM gerados três ou quatro vezes mais empregos, com um rendimento médio de no mínimo 50 por cento mais lucros do que os gerados pela hidrovia. A hidrovia, por sua vez, IRIA ESTIMULAR o plantio de grãos em regiões absolutamente inadequadas, como é o Pantanal. (CA66_set_2002, p. 52) 76 Em (6), temos uma resposta do jornalista Washington Novaes sobre questões ambientais. Sua fala não apresenta marcas do discurso informal como vimos nos segmentos em que foi utilizada a perífrase IA+INFINITIVO, ou seja, na fala tanto do entrevistador como do entrevistado podemos notar uma aproximação da linguagem escrita formal. As duas orações subordinadas à oração condicional (destacada em itálico) estão no FP: (a) o verbo SER no FP ganha somente duas sílabas; (b) o verbo ESTIMULAR é um verbo extenso – de 4 sílabas – e no FP passa a ter 6 sílabas, o que pode ter estimulado o falante a optar pela perífrase com o verbo IRIA . Em (6), o uso do PI (ERAM GERADOS e ESTIMULAVA) poderiam revelar uma crença por parte do falante na possibilidade de realização desses eventos. Entretanto, por estarem localizadas, na frase, distantes da oração condicional, o PI poderia levar esses verbos a expressarem um fato no passado. O mesmo ocorre na seguinte ocorrência que se encontra no anexo: IRÍAMOS PARAR E DIZER (CA61_abr_2002, p. 34). Notamos que houve maior freqüência do uso do FP com o verbo SER. Como já mencionamos nessa seção, o número de sílabas do verbo SER conjugado no FP não é maior que a sua forma no infinitivo: SER (uma sílaba) e SERIA (três sílabas). O mesmo acontece com o verbo TER (uma sílaba), que passa a apresentar três sílabas no FP (TERIA). O uso do PI poderá ou não ser possível, com base na análise do contexto em que ocorrerem as formas verbais. Observemos os segmentos a seguir: (7) Marina Amaral - Como foi a sua experiência como professor? Antonio Abujamra - Não foi questão de preferência. Eu jogo em cavalos, perco dinheiro, entendeu? Minha mulher me agüenta há 45 anos, é uma santa. Deve a mim, se não fosse eu, ela não SERIA uma santa, na classe teatral todo mundo gosta muito mais dela do que de mim. (CA54_set_2001, p. 15) (8) A Graúna é meio sacana às vezes. Mas a gente se apaixona por ela... a Graúna tem alguma coisa a ver com o seu lado mulher? (...) Ah, sim, a parte mulher, então esse homem se transforma, se embrutece, é morto como ser humano e é capaz inclusive de virar um Fleury, vira um cara esquadrão da morte. Devido a esse treinamento, mataram o menino que ele vai ser até o fim... se deixassem, a gente TERIA um bando de homens meninos por aí e as mulheres cuidando de tudo. (CA59_fev_2002, p. 26) 77 (9) Marina Amaral - Se tivesse acontecido o que aconteceu com seu filho hoje, SERIA diferente? A sua luta mudou alguma coisa? (CA60_mar_2002, p. 32) O FP é preferivelmente utilizado nos casos acima porque os falantes expressam uma impossibilidade epistêmica, ou seja, os locutores não acreditam na possibilidade de realização de suas proposições. Em (7), o trecho “se não fosse eu, ela não SERIA uma santa” (dentro do contexto do comentário do fala nte) mostra que Abujamra mostra certeza quanto à “irrealidade” do que afirma. A “irrealidade” incide no fato de ela não ser uma santa. A oração condicional “se deixassem”, de (8), já deixa claro que o falante revela a impossibilidade de realização do evento marcado pelo verbo TERIA. O FP do verbo TER vem reforçar o caráter contrafactual dessa construção condicional tanto nessa ocorrência. Em (7) e em (8), o uso do PI (ERA e TINHA) seria possível, revelando a crença do falante na possibilidade de realização do que enuncia. Em nosso anexo, encontra-se outra ocorrência com as mesmas características de (8): SERIA (CA_96_maio_2005, p. 116). Em (9), a contrafactualidade do evento já é garantida pela forma TIVESSE ACONTECIDO e reforçada pelo FP, que também expressa “irrealidade”. O falante deixa evidente que está apenas especulando a respeito de uma situação que não aconteceu, pois, hoje, o filho da entrevistada (Conceição Paganele) está preso e não pode mais usar drogas livremente pelas ruas de São Paulo. Em (9), a forma ERA (no PI) também seria possível, revelando uma intenção do entrevistador: enfatizar a crença em uma possibilidade maior de realização do que enuncia. Vejamos, a seguir, mais um segmento : (10) Angeli - Na verdade, charge política eu faço mais por raiva do que por prazer, os quadrinhos eu faço por prazer. Na charge utilizo a visão que estou tendo da coisa como cidadão comum, para passar um recado. Se pudesse, PARARIA de fazer charge, é que sou bem pago. (CA50_mai_2001, p. 1) Através do FP, do verbo no subjuntivo e do próprio contexto, no caso acima, o falante fala da impossibilidade de parar de fazer charge. Note que essa 78 impossibilidade só fica clara através do contexto, pois, sem ele, poderia ser interpretada como possível. A forma PARAVA (no PI) poderia ser usada no lugar do FP, pois a certeza quanto à “irrealidade” da proposição está garantida pelo segmento “é que sou bem pago”, ou seja, o falante não vai parar de fazer charge porque recebe um bom salário por isso. Observemos o segmento a seguir: (11) Claudius - Você é um otimista. - Sou um otimista estrutural, acredito no homem, acredito que vamos fazer uma civilização. Mas respeito quem for pessimista. O que eu quero dizer é que, do ponto de vista político, Lula é um patrimônio nosso, mesmo fazendo os erros. Aliás, acho que é nisso que ele tem uma quantidade ainda grande de apoios. Se nesse momento houvesse uma eleição, eu VOTARIA no Lula para presidente. (CA93_dez_2004, p. 114) No caso acima, Carlos Lessa (ex-presidente do BNDES) sabe que, no momento em que fala, não há possibilidade de haver uma eleição para presidente, pois era dezembro de 2004 e as últimas eleições tinham ocorrido em 2002. A escolha do falante pelo uso do verbo VOTAR no FP transmite a certeza quanto à “irrealidade” da proposição. O PI poderia também ser usado como um recurso estilístico, para convencer o interlocutor de sua convicção a respeito do que diz. Outros casos semelhantes que se encontram em nosso anexo: MORARIA (CA106_jan_2006, p. 125), PROCESSARIA (CA50_mai_2001, p. 3), ESCOLHERIA (CA106_jan_2006, p.127). Nos segmentos de entrevista a seguir, a contrafactualidade do que expressam os falantes é garantida pela presença do FP composto na oração principal. (12) Marina Amaral - Como você vê a postura da imprensa em relação à cobertura do movimento sindical? Luiz Marinho - A imprensa está despreparada para cobrir as ações sindicais. Às vezes, você faz coisas fantásticas, a imprensa nem toma conhecimento, mas, uma má notícia, ela está toda lá. Tenho a felicidade de presidir um sindicato forte, grande, que consegue fazer coisas e atrair a atenção da mídia, então, até parece injustiça eu falar mal da imprensa na medida em que, se não fossem os meios de comunicação, não fosse a imprensa no caso da Ford, não TERÍAMOS CONSEGUIDO reverter aquela situação. (CA57_dez_2001, p. 20) 79 (13) Givanildo Silva - A quem interessa que a Febem continue na ilegalidade, a quem a senhora atribui esse desejo perverso de os meninos continuarem nesse modelo, sendo que a sociedade deu resposta, os conselhos já deram resposta e o ordenamento jurídico diz que esse modelo não deve continuar como está há doze anos? - Conceição Paganele - O que a gente tem analisado, nós da AMAR, mães, é que não interessa aos governos investir muito nos jovens da periferia – porque quem está hoje na Febem é classe popular. Se fosse o filho da classe média, com certeza já TERIA MUDADO essa questão toda, mas não é o filho do senhor Alckmin, do seu Mário Covas, que foi quem ficou aí durante toda essa questão de piora da Febem. (CA60_mar_2002, p. 31) Em todos os casos acima, fica claro (através do FP composto) que o evento expresso pela oração principal das construções condicionais não ocorreu, o que assevera o caráter “irreal” das proposições. A substituição da forma TERIA do tempo composto pela forma TINHA poderia ocorrer, pois não há uma grande diferença, quanto ao número de sílabas, entre as formas TERIA e TINHA. O contexto impediria que o uso do pretérito mais-queperfeito do indicativo fosse interpretado como um tempo de relato. Encontram-se, no anexo , mais ocorrências como as apresentadas acima: TERÍAMOS MANDADO (CA67_out_2002, p. 53), TERIA PRONTAMENTE RECUSADO (CA93_dez_2004, p. 113), TERIA PERDIDO (CA_97_abril_2005, p. 119). Observemos abaixo, dois segmentos de texto com casos de paralelismo (ocorrência em seqüência) do FP: (14) (...) Além do mais, o espectro de questões em que o BNDES atua é o mais amplo que vocês possam imaginar. O meu vice-presidente brincava, dizendo que nós vamos do alfinete ao foguete. Significa dizer o seguinte: se eu estivesse subordinado substantivamente a um ministro, esse ministro não SERIA ministro, SERIA na verdade um vice-rei em relação aos outros ministros, porque de todos os assuntos com que lida o BNDES – agricultura, comércio exterior, energia, transporte, saúde, educação, cidades, integração, Ministério da Defesa – SAIRIAM sub judice decisões tomadas por esse ministro. (CA93_dez_2004, p. 113) (15) Cláudio Júlio Tognolli - Se você tivesse que fazer uma reportagem sobre o Comando Vermelho, Terceiro Comando etc., você sobe o morro, qual contato pessoal vai fazer? José Louzeiro - Se eu telefonar pro Escadinha, por exemplo, é claro que subo. Agora, essa reportagem vai ser publicada onde? Cláudio Júlio Tognolli - E como ela SERIA? 80 José Louzeiro - Eu CONTARIA o que estou dizendo aqui. O que é o Comando Vermelho, o que é o Terceiro Comando. (CA65_ago_2002, p.48) Em (14), a primeira ocorrência de SERIA desencadeia as demais (SERIA e SAIRIAM), talvez porque o entrevistado estivesse reforçando o fato de que todos os três eventos manteriam ligação com a idéia exposta pela oração condicional: “... se eu estivesse subordinado substantivamente a um ministro...”. Em (15), a utilização da forma CONTARIA foi “provocada” pela pergunta do entrevistador, também com o FP (SERIA). Em ambos os casos, os entrevistados descartam qualquer possibilidade de realização do que dizem, atribuindo às suas proposições um valor de impossibilidade epistêmica. Em (14), a primeira forma SERIA poderia ser substituída por ERA (no PI), revelando uma crença maior do falante, em relação à possibilidade de realização do que enuncia. As outras formas de (14), estão, no enunciado, mais distantes da oração condicional, destacada em itálico. Isso pode atribuir a essas formas verbais o valor de passado. Em (15), o PI (ERA e CONTARIA) não seria possível, pois expressaria um fato habitual no passado. É importante observar também que as formas verbais SERIA e CONTARIA estão distantes da oração condicional destacada em itá lico. Em alguns casos, o falante opta pelo uso do PI no lugar do FP, por querer expressar uma hipótese que ele crê como provável. Observemos os casos abaixo: (16) Cazu - Se tivesse gravado a sua irmã, você TINHA música na novela, né? - A Maria Rita não precisou de música em novela, quando ela foi para a novela já tinha vendido 750.000 cópias. (CA106_jan_2006, p. 132) Acima, aparentemente, a forma TINHA da oração principal (usada no lugar do FP) expressa uma hipótese possível, mas a contrafactualidade do evento (não realização) é garantida pela forma composta “TIVESSE GRAVADO” da oração condicional. Em outras palavras, a opção por esse tempo verbal revela que Bôscoli não gravou sua irmã e ele não teve música na novela, como produtor. Ainda assim, 81 a forma TINHA aproxima mais o evento da possibilidade (caso Bôscoli tivesse gravado a irmã) do que a forma TERIA. Vejamos o caso a seguir: (17) José Louzeiro - O Comando Vermelho é completamente diferente das FARC. O Comando Vermelho surgiu de uma necessidade de a população carcerária se livrar das perversões que a polícia praticava em cima das famílias dos presos. O policial tinha uma relação na mão pra tomar o dinheiro que a mulher do preso ganhava. Tomava de uma, da outra, da outra. Se não desse, o preso ERA espancado. (CA65_ago_2002, p. 48) Em (17), na estrutura “Se não desse, o preso ERA espancado”, o entrevistado utiliza o PI no lugar do FP, para descrever um passado não-factual (aquele que revela um evento cuja realização, nesse caso, pode ter se dado ou não, de acordo com o falante). O entrevistado não assevera se a família do preso deu ou não o dinheiro à polícia, por isso o caráter não-factual (hipótese possível) da proposição. O FP também pode expressar não-factualidade, como podemos ver abaixo: (18) O senhor sabe uma coisa, o narcotráfico se desenvolve muito entre as crianças da periferia porque as mães não estão próximas. “Se houvesse um jeito de aproximar as mães do lugar onde as crianças estão brincando, jogando, ATRAPALHARIA aqueles que estão querendo encontrar passadores de crack, de droga. E as mães, inclusive, poderiam falar na segurança sem ser juradas de morte”. (CA53_ago_2001, p. 11) No caso acima, o professor Aziz Ab’Saber (professor da USP, que então trabalhava em um projeto de educação e lazer na periferia de São Paulo) conta o que lhe disse um motorista de táxi a respeito da necessidade de espaços para esporte e lazer, nas comunidades de baixa renda. Na fala do motorista, vemos que ele tem conhecimento da inexistência de espaços onde as crianças possam brincar com suas mães por perto, pois ele usa o FP, que revela a “irrealidade” da situação: não existe o jeito a que ele se refere de atrapalhar a ação dos traficantes. Só com base no contexto, podemos detectar que o falante não descarta a possibilidade de que aquilo se torne real. Seu enunciado funciona como uma sugestão ao professor, que está ali como um elemento que poderia resolver aquele problema. Temos, nesse caso, a expressão de uma “irrealidade” não-factual e da modalidade epistêmica, pois o falante revela se crê ou não na verdade do que diz. 82 Em (18), o PI (ATRAPALHAVA) seria possível, revelando a crença do falante na possibilidade de atrapalhar os traficantes. Passemos para o segmento de entrevista seguinte: (19) Quer dizer, havia esse espírito de irmandade? A guerra ainda não tinha dado aquele tom de ódio? Nós jovens não aceitávamos isso. As espanholas eram muito bonitas! As feições das espanholas, aquelas morenas, aquelas bugras, filhas de índios, – os Guaranis. Na minha adolescência, se você quisesse fazer a corte a uma morena paraguaia poderia falar no espanhol com certa medida, TERIA só um pedacinho do coração dela, mas se falasse em guarani, VENCIA a parada né? [risos]. Nós todos aprendíamos a falar o guarani cedo! (CA_fev_2006, p. 140) Acima, o falante utiliza o FP nas duas formas verbais (PODERIA FALAR e TERIA) vinculadas à subordinada “se você quisesse fazer a corte a uma morena paraguaia”, para expressar uma menor possibilidade de conquista de uma morena paraguaia. Mas, quando o falante se refere à outra oração subordinada (“se falasse em guarani”), ele quebra o paralelismo da forma FP e muda para o PI (VENCIA), pois sua intenção é enfatizar a maior possibilidade de conquistar a mulher, caso se falasse guarani com ela. Em nosso anexo, pode-se verificar um caso semelhante a esse: MORRERIA/MORRIA (CA_88_jul_2004, p.106). Na seqüência, temos um caso aparentemente não-factual com o PI: (20) A revolução ganhou e Getúlio assumiu, mas o Getúlio que assumiu era o que estava naquele Brasil que ele representava. Não tinha nada de diferente. O que quero dizer é o seguinte: o Getúlio não era que nem o Pasqualini. Se tivesse sido, já TINHA toda uma doutrina social, toda uma filosofia, mas não, Getúlio estava dentro do movimento e naquele movimento surgiu uma brecha e ele entrou e ganhou. Começou governando desse jeito. Depois, dentro do contexto mundial, nazismo de um lado, fascismo do outro lado, comunismo do outro, aqui no Brasil, os comunistas com o Prestes e os integralistas com o Plínio Salgado, ele começou a forjar as grandes transformações. Pegou um Brasil colônia, porque o Brasil de 1930 não tinha nada que ver com o Brasil de 1945. Ele pensou na Federação, na União. Foi o grande homem da história do Brasil, não há como deixar de reconhecer. (CA_90_set_2004, p. 108) Nesse caso, a forma TINHA dá a impressão de não-factualidade, porque o falante estaria dando como possível a existência de uma “doutrina social” por parte 83 de Getúlio Vargas. No entanto, no co-texto, temos uma oração condicional com um tempo composto, marcando contrafactualidade (Getúlio não foi igual a Pasqualini) e também o segmento “mas não”, que reforça o caráter irreal da proposição (Getúlio não tinha toda uma doutrina social). Pela existência desses elementos característicos da expressão do contrafactual, o falante evitou a redundância, através do uso de mais uma marca do “irreal”: o FP (TERIA). O PI se comporta da mesma maneira na seguinte ocorrência de nosso anexo: GANHÁVAMOS / RETIRAVA (CA_90_set_2004,p.108). Vejamos três segmentos de entrevista nos quais a hipótese não se apresenta como uma oração condicional desenvolvida: (21) Neste mês, Henfil FARIA aniversário, nasceu em 5 de fevereiro de 1944. Morreria de Aids, como dois de seus oito irmãos, Mário e o Betinho. (CA59_fev_2002, p. 22) (22) Palmério Dória - A iniciativa de ele ir para a Febem foi da senhora? Conceição Paganele - Não. Ele roubou. Roubou para esses próprios traficantes. Estava devendo uma quantia e eles o convidaram pra roubar. Era de um carro que eles precisavam. Conseguindo roubar aquele carro, ele PAGARIA a dívida, mas foi preso. (CA60_mar_2002, p.29) (23) Acho que recebo isso de vocês, dos amigos, dos companheiros, sozinho eu ESTARIA ilhado numa melancolia fria e vazia, mas não é somente isso, há muito tempo que eu sou um otimista incorrigível. (CA_on-line_fev_2006, p.141) Em (21), a oração condicional “Se estivesse vivo” está implícita no primeiro período do texto e pode ser inferida através do co-texto “Morreria de Aids”. Em (22), a oração “Conseguindo roubar aquele carro” é a reduzida de gerúndio correspondente à oração desenvolvida “Se conseguisse roubar aquele carro”. Em (23), podemos notar a ausência de uma oração iniciada por uma conjunção adverbial condicional. Ao invés disso, há um adjetivo (“sozinho”) que ocorre no lugar da suposta oração “Se estivesse sozinho”. O PI seria aceitável em (22), pois, através dele, o falante expressaria uma crença maior na ação de pagar a dívida. O mesmo não acontece em (21) e em (23), pois a ausência de uma estrutura hipotética explícita ou, pelo menos, em forma de oração reduzida, possibilita que o enunciado seja visto como o relato de um evento no passado. A seguir, o uso do PI pelo FP também não seria adequado: 84 (24) Eu não SABERIA concluir o que escrevo agora. Na despedida, levei o Diário de um Cucaracha como presente. Na dedicatória, o desenho, em caneta Bic, de uma barata imensa e abusada. Voltei pra casa sem saber muito bem o que sentia. Sabia apenas que era uma vez. Uma só. E eu era outra coisa. (CA59_fev_2002, p.23) (25) Eu não aceito esse negócio de milênio. De repente, nós aqui, a partir do nascimento de Cristo, comemorando o ano 2000 depois de Cristo. Ora, ora, ora, os orientais estão comemorando o ano 20000, os judeus comemoram não sei se o ano 4000, por aí. Os índios comemoram o quê? Um milhão? As pedras comemoram o quê? O ano 1 trilhão? As águas, que ano estão comemorando? Ora, ora, ora, DIRIA o Teotônio Vilela quando fica irritado, não há milênio coisa nenhuma! (CA59_fev_2002, p. 27) Nos casos acima, também não há nenhuma estrutura condicional explícita, reduzida ou representada por algum elemento; embora, em (24), possamos imaginar, junto à oração com FP, uma hipótese do tipo “Se tivesse que concluir”, e, em (25), “Se fosse comentar...”. Como nas ocorrências (21) e (23), o PI não apresentaria o mesmo valor das formas verbais no FP. Abaixo, podemos comprovar mais uma vez que a presença de algum elemento ou segmento que remeta a uma construção condicional possibilita o uso do PI pelo FP: em (26), temos o elemento “senão” e, em (27), o segmento “sem a existência das centrais”: (26) E há algo muito importante que hoje é pouco lembrado: os americanos queriam ficar permanentemente na base aérea de Natal e o governo brasileiro recusou essa autorização. Senão TERÍAMOS hoje o que os cubanos têm na sua ilha, uma situação complicada e que os europeus também têm a "felicidade" de ter, que são as bases americanas em seu continente e que eles, progressivamente, gradualmente, vão "empurrando" para fora. Todo o esforço europeu é esse: terminar a ocupação militar americana que se iniciou com a Segunda Guerra. (CA51_jun_2001, p. 3) (27) Marina Amaral - Dezoito por cento no Grande ABC, não é isso? Em São Paulo... Luiz Marinho - Na Grande São Paulo, beirando 19 por cento; no ABC, 18,7 por cento. Esse elemento desemprego puxa os sindicatos pra baixo, não tem dúvida nenhuma, e os sindicatos que não tiverem uma boa estrutura organizacional têm dificuldades de mobilizar e de enfrentar as demandas que são colocados. É um problema, mas os sindicatos evoluíram no processo de intervenção política através da criação das centrais, sem a existência das centrais praticamente DESAPARECERIA o movimento sindical. (CA57_dez_2001, p. 19) 85 As ocorrências com PI em lugar do FP ocorreram em menor número nesse grupo analisado: foram 7 com formas simples e 9 com perífrases (IA + infinitivo). Isso, provavelmente, deve-se ao fato de que a maioria das entrevistas que compuseram nosso corpus apresentou um discurso mais próximo do formal. Grande parte dos entrevistados era de indivíduos com instrução e, algumas vezes, devido à sua situação (intelectuais, políticos, funcionários de instituições governamentais, etc), preocuparam-se com o uso da linguagem padrão, na qual a utilização do PI pelo FP ocorre de forma menos freqüente. Observamos que, quando não há nenhum segmento ou elemento que expresse um valor hipotético, a utilização do PI pode levar o interlocutor a interpretar o enunciado como um relato no passado. Quando a forma verbal encontra-se distante da oração condicional a que é subordinada, há preferência pelo uso do FP. Em sua pesquisa, Costa (1997) verificou que a inversão da ordem mais freqüente das construções condicionais (oração subordinada + oração principal) favoreceria o uso do FP. Em nosso corpus, todas as ocorrências obedeceram essa ordem, por isso não pudemos verificar se a inversão alteraria na escolha entre o PI ou o FP. Constatamos que tanto o FP quanto o PI podem expressar proposições contrafactuais e não-factuais, sendo o contexto elemento importante na interpretação dos enunciados em que esses tempos verbais atuam, para que se possa decidir entre o emprego de um tempo verbal ou de outro. 5.4- Grupo nocional polidez Neste grupo, registraram-se 36 ocorrências em nosso em nosso corpus. O FP com valor nocional polidez ocorreu: (a) nas perguntas polidas, que revelavam a intenção do entrevistador de salvar a sua face e/ou a do entrevistado (Qual SERIA mesmo o seu nome?); (b) nas perguntas em tese, que apresentavam opiniões do entrevistador sobre a sua própria pergunta (Este problema não se RESOLVERIA com um pouco mais de esforço?); (c) em repostas às perguntas em tese (Eu DIRIA que o problema da seca talvez possa ser resolvido rapidamente.), (d) em respostas em geral que refletiam precaução ou timidez em opinar ou afirmar alguma coisa (Eu 86 não SABERIA determinar exatamente a causa da seca.) Vejamos os segmentos abaixo: (1) Sérgio de Souza - Como são esses lugares infernais? Como a senhora os DESCREVERIA? (CA60_mar_2002, p. 28) Nesta primeira ocorrência, o entrevistador faz a sua pergunta, utilizando uma estratégia de polidez negativa (Brown e Levinson: 1987), pois, como entrevistador, sabe que deve retirar informações do entrevistado. No entanto, ele não deixa de se preocupar em evitar um ambiente de ameaça à face da entrevistada (de outra forma, a entrevistada poderia se recusar a responder, por exemplo), assim utiliza uma forma de tratamento respeitosa, acompanhada do FP, que reforça o tom de cordialidade da sua pergunta. Vale também notar que o PI não pode ser utilizado em lugar do FP, uma vez que atribuiria um valor de ação continuada no passado (Como a senhora os DESCREVIA?) e não de polidez. Outros casos semelhantes encontram-se em nosso anexo: RECOMENDARIA (CA71_fev_2003, p. 64), FARIA (CA59_fev_2002, p. 27). Apresentamos em seguida mais uma ocorrência deste grupo: (2) Nicodemus Pessoa - +Queria colocar o problema das hidrovias. De um lado há pessoas, e principalmente ONGs, que são contra o uso das hidrovias. E, de outro, pessoas que questionam o papel dessas ONGs. A Folha de S. Paulo publicou um artigo do empresário Antônio Ermírio de Moraes colocando essas ONGs sob suspeição. E há quem afirme que eles estariam a favor de interesses internacionais, que não querem que produtos, grãos, soja tenham poder de competição no mercado externo. Quem ESTARIA com a razão? (CA66_set_2002, p.51) Em (2), o entrevistador, Nicodemos Pessoa, revela, desde o texto que precede a sua pergunta, uma preocupação em não ameaçar diretamente a face de seu entrevistado – o jornalista Washington Novaes, conhecedor das questões ambientais que envolvem nosso planeta. O texto que serviu de base para a pergunta começou por uma forma de valor nocional de desejo (representada pelo verbo QUERER no PI), o que já revela uma 87 estratégia de polidez negativa, pois, mesmo expressando seu desejo de forma cordial, através da forma QUERIA , o entrevistador impõe o seu desejo de resposta. Logo, a seguir, temos a forma ESTARIAM (com valor temporal polifônico), representando a segunda estratégia de polidez negativa. O caráter evasivo de seu relato sugere que Nicodemos procura salvar a sua face positiva, não se responsabilizando pela autoria da informação (“há quem afirme...”). A pergunta do entrevistador – “Quem ESTARIA com a razão? – vem a ser a terceira estratégia de polidez negativa, pois reforça a intenção de minimizar a ameaça à face de seu entrevistado, através do uso do FP com valor nocional de polidez. Essa intenção do entrevistador pode se dever ao conteúdo da entrevista (questões ambientais e política) e também à relação de certa formalidade que estava sendo mantida entre os participantes – o que não necessariamente ocorre em todas as entrevistas da revista Caros Amigos. A substituição pelo PI mais uma vez não pode ocorrer nessa pergunta (Quem ESTAVA com a razão?), pois lhe conferiria o valor de uma descrição no passado. Outras ocorrências do mesmo tipo podem ser vistas em nosso anexo: HAVERIA (CA51_jun_2001, p. 5), SERIAM (CA88_jul_2004, p. 105). No segmento de entrevista que se segue, o uso do PI pelo FP também implicaria em uma mudança total de sentido da pergunta, já que o verbo fazer no PI (Como vocês FAZIAM um balanço entre essa participação maior da sociedade...) teria um va lor de hábito no passado e não de polidez. (3) Maria Luísa Mendonça - Como vocês FARIAM um balanço entre essa participação maior da sociedade, por conta de alguns casos emblemáticos, e ao mesmo tempo sofrer uma retaliação, como no caso da "Lei da Mordaça"? (CA.70.jan.2003/p.106) Outras duas ocorrências com as mesmas características de (3) encontram-se em nosso anexo: COBRIRIA (CA65_ago_2002, p. 47), DARIA (CA69_dez_2002, p. 56). Abaixo, em (4), a mesma substituição é inviável porque também expressaria uma descrição de algo ocorrido no passado e apagaria a intenção do entrevistador em ser polido. (4) Sérgio de Souza - Qual SERIA a diferença entre o morro e a nossa periferia? (CA74_mai_2003, p. 71) 88 Outro caso semelhante encontra-se no anexo: SERIA (CA52_jul_2001, p. 6). Observemos o segmento, a seguir: (5) Aldo Rebelo: ... Eu acho que isso, o volume de dinheiro, a falta de pudor, de limite daqueles que mexem com os negócios do futebol, fabricou escândalos dos quais a CPI só descobriu uma parte, e a outra parte ainda está para ser investigada. Sérgio de Souza - E por que o Pelé está contra a CPI declaradamente na imprensa? O que se TERIA DESCOBERTO? (CA52_jul_2001, p. 7) Agora o entrevistador suspeita ou tem certeza da descoberta de algo que não foi revelado, mas, em lugar de perguntar diretamente (O que se descobriu?), Sérgio de Sousa utiliza o FP para atenuar a sua pergunta. Se usasse o verbo descobrir no pretérito perfeito, o entrevistador estaria afirmando ou até mesmo acusando o entrevistado de saber de um fato novo da CPI e o estar escondendo. Com o FP, ele está protegendo a sua face, mantendo um clima de menor tensão na entrevista e não asseverando a sua “acusação”. Este caso apresenta todas as características do grupo temporal polifônico, no entanto, se lembrarmos a definição do grupo nocional polidez (item 2.7), podemos constatar que se trata de uma pergunta polida. Não queremos afirmar que uma ocorrência de FP sempre vai expressar o valor de apenas um tipo de posterioridade, contudo um dos valores sempre vai preponderar sobre o outro. Em (5), mais uma vez a substituição pelo PI não é bem-vinda, pois não provocaria o efeito desejado pelo entrevistador, isto é, evitar a ameaça direta à face do interlocutor e também insinuar que algo havia sido descoberto. Como já foi dito, consideramos que o valor polidez do FP também está presente em perguntas em tese, através das quais o entrevistador “encosta na parede” o entrevistado, “sugerindo” possíveis explicações para o seu questionamento. Na verdade, é uma estratégia de polidez negativa, já que o entrevistador está claramente pressionando o seu interlocutor a lhe dar uma explicação, mas ameniza essa imposição através de um discurso mais polido, representado pelo verbo no FP. Vejamos os segmentos de entrevista abaixo: 89 (6) Juca Kfouri - Quando fui depor na CPI, com o José Trajano, com o Tostão, vi que tinha lá, pra minha felicidade, uma larga entrevista que dei à Caros Amigos, número 1, que muita gente achou um exagero, que só uma mente doentia seria capaz de dizer as coisas que estavam ditas ali. Hoje, você DIRIA que as pessoas que denunciavam ou denunciam as sujeiras no futebol brasileiro só conhecem ou conheciam a ponta do iceberg? Sabiam muito menos do que hoje se sabe? (CA52_jul_2001, p. 7) Temos em (6), um outro momento da entrevista de Juca Kfouri ao então presidente da CPI CBF-Nike (2001), Aldo Rebelo. Na sua pergunta, Juca já “sugere” uma resposta ao entrevistado, limitando a sua liberdade de expressão. Para suavizar tal imposição, o FP é utilizado, atribuindo um caráter de polidez à indagação do entrevistador. Vejamos a ocorrência seguinte: (7) José Arbex Jr. - Professor, deixa-me fazer uma pequena provocação teórica aí. A literatura marxista ortodoxa é repleta de afirmações segundo as quais qualquer ato terrorista deve ser condenado porque conduz a massa à passividade, ela fica espectadora de uma ação feita por um grupo, não ganha um novo grau de consciência porque não participa organizadamente do atentado. Ao contrário, o atentado permite que os governos lancem ofensivas contra o movimento de massas a pretexto de combater o terrorismo. Quando o senhor diz que esse ato teve uma conotação também revolucionária pelos seus efeitos, o senhor ESTARIA polemizando com essa afirmação do marxismo? (CA58_jan_2002, p. 21) Em (7), numa entrevista ao já falecido sociólogo Octavio Ianni, professor emérito da Universidade de São Paulo e da Unicamp, o entrevistador inicia sua fala já avisando ao entrevistado que o vai provocar (“Professor, deixa-me fazer uma pequena provocação teórica aí.”). Amenizando a declarada ameaça à face, a forma no FP (ESTARIA ) da pergunta em tese se encarrega de suavizar a quase acusação que é direcionada ao sociólogo. Em nosso anexo, encontra-se outro caso com a mesma caracterís tica de (7): DARIA (CA52_jul_2001, p. 8). Abaixo, mais segmentos nos quais encontramos a mesma intenção do entrevistado de “sugerir” uma resposta para seu entrevistado, mas com o cuidado de se evitar a ameaça de faces. Podemos notar que, nas perguntas em tese, a utilização do PI em lugar do FP provocaria uma mudança na intenção do locutor, pois expressaria hábito no passado ou descrição no passado. 90 Em (8), o uso da forma DIZIAM tem o valor de passado habitual e, portanto, não representaria uma pergunta em tese. No caso da ocorrência (9), o uso de ERA é possível, mas também interfere na intenção do entrevistador em evitar a ameaça de faces – no caso, usando o PI, ele mostra mais claramente a sua opinião, sem se preocupar em preservar a sua própria face: Mas a ALCA não ERA um bom estímulo para a modernização da economia brasileira? (8) Renato Pompeu - Mas os senhores DIRIAM que essa "Lei da Mordaça" não foi propriamente feita para defender o Elias Maluco e o PCC, e sim para defender pessoas de importância na sociedade? (CA70_jan_2003, p. 59) (9) José Arbex Jr. - Mas a ALCA não SERIA um bom estímulo para a modernização da economia brasileira? (CA71_fev_2003, p. 63) Em nosso anexo há casos semelhantes a (8) e (9): DIRIA (CA51_jun_2001, p. 3), DIRIA (CA60_mar_2002, p.32), DIRIAM (CA71_fev_2003, p.66), SERIA (CA81_dez_2003, p. 92), DIRIA (CA97_abr_2005, p. 119). Observermos, abaixo, o FP com valor polidez sendo utilizado pelo próprio entrevistado: (10) José Louzeiro - Eu contaria o que estou dizendo aqui. O que é o Comando Vermelho, o que é o Terceiro Comando. Repare que você nunca leu em jornal nenhum que o Terceiro Comando é uma organização que tem muita influência da polícia. E o que eles querem? Em vez de receber uma comissão do jogo do bicho, eles querem receber o grosso do dinheiro. Aí, você me pergunta, e isso eu não vou saber responder e é uma das minhas indagações: eles, organizadores do Terceiro Comando, ESTARIAM surpreendendo os grandes chefões da droga? Que estão aqui entre nós, e devem estar em postos muito bons? Ou eles estão fazendo um negócio subliminar, só pra eles? (CA65_ago_2002, p. 49) Em (10), José Loureiro, escritor e repórter de polícia, desenvolve seu raciocínio sobre as organizações criminosas Comando Vermelho e Terceiro Comando, afirmando, a seguir, que não teria explicações para a sua dúvida (“Aí, você me pergunta, e isso eu não vou saber responder e é uma das minhas indagações...”). Mas, mesmo assim, através de uma pergunta em tese, o entrevistado lança a sua suposição (“... eles, organizadores do Terceiro Comando, ESTARIAM surpreendendo os grandes chefões da droga?”). 91 Através de uma pergunta polida que não necessariamente exige uma resposta, José Loureiro utiliza o FP como uma forma de proteção à sua própria face positiva, já que não quer ser categórico em sua afirmação de que o Terceiro Comando estaria surpreendendo os chefões da droga. Observemos, abaixo, as ocorrências do FP com valor polidez nas respostas que expressam a intenção do entrevistado em preservar a sua própria face. (11) Verena Glass - Como é a relação de vocês com as CPIs? José Carlos Blat - Eu DIRIA que é um tanto quanto conturbada em alguns momentos, porque na CPI o foco de investigação é o foco político. A intenção não é alcançar um resultado criminal ou de improbidade, mas uma punição política. É fundamental a existência das CPIs, mas às vezes elas acabam extrapolando. (CA70_jan_2003, p.59) Acima, vemos o promotor de justiça José Carlos Blat sendo inquirido sobre a relação entre as CPIs e os promotores, e a sua resposta inicia de uma maneira um tanto quanto tímida devido à seriedade do tema. Este tipo de resposta é uma forma de proteção da própria face positiva, em momentos nos quais se é levado a comentar temas delicados, polêmicos, comprometedores, etc. O FP não pode ser substituído pelo PI, pois tornaria o enunciado incoerente, atribuindo-lhe um valor de hábito no passado. Vejamos outros segmentos de entrevista : (12) Marina Amaral - Mexer com polícia é mais perigoso, ter a polícia atrás de você é mais desconfortável, não é? Caco Barcelos - Eu DIRIA que ainda é muito cedo pra saber. Até porque o livro é muito grande, até chegar lá, para quem não tem hábito de leitura... E realmente teve um momento em que eu parei de dizer - sabe aquela coisa do compromisso ético consigo mesmo, até um pouco hipócrita de minha parte? Porque eu estava percebendo que eles falavam coisas que os prejudicam. Acho que eles não têm noção de que esse negócio fica no papel para sempre. (CA76_jul_2003, p. 78) No caso acima, vemos o jornalista Caco Barcelos respondendo com cautela uma pergunta delicada, pois ele tinha acabado de escrever o livro Abusado, que trata da vida de um grupo organizado de traficantes de drogas de um morro. 92 Fica muito claro nesta ocorrência de FP com valor polidez que o entrevistado procura ser precavido em sua resposta, já que se falava da polícia como uma ameaça maior que a do traficante. O PI (DIZIA) não poderia ser usado pelo FP (DIRIA), visto que expressaria o valor de hábito no passado. Abaixo, o senador Eduardo Suplicy fala do seu projeto que garantiria uma renda mínima a todos os brasileiros. Com o uso do FP com valor polidez, o senador mostra certa modéstia ao destacar a beleza de sua proposta. (13) Então, quando qualquer empresário alerta para uma coisa como essa, é preciso que leve em consideração que, desde quando dom Manuel distribuiu a alguns amigos e pessoas que ele quis homenagear as capitanias hereditárias, temos uma história de transferir grandes riquezas a alguns para promover desenvolvimento, mas a alguns que já detinham grandes recursos, e essa é uma das razões pelas quais o Brasil é um dos campeões mundiais de desigualdade. E ainda não tomamos as providências para reverter essa história. E o interessante dessa proposição, eu DIRIA até a beleza da proposição de pagar igualmente a todos - portanto, até ao Antônio Ermírio de Moraes, ao Pelé, ao Ronaldinho, à Xuxa, a nós aqui, a todos que não estão precisando - é que estaremos garantindo à Maria, ao José, ao Antônio, ao Bruno, a quem quer que seja, o direito de receber um modesto rendimento. (CA80_nov_2003, p. 87) No caso abaixo , temos mais uma vez o FP na pergunta, funcionando como uma estratégia de polidez negativa. Mesmo sofrendo a imposição da pergunta, o economista Celso Furtado não se propõe a aprofundar a sua recomendação para os militantes sociais, pois já inicia as suas considerações com “De uma maneira geral”. O valor polidez do FP reforça o desejo do entrevistado de não ser explicitamente decisivo em sua resposta – é o que podemos chamar de uma resposta em tese. A forma DIRIA da ocorrência acima não pode ser substituída pelo PI (DIZIA), pois expressaria o valor de hábito no passado. (14) João Pedro Stedile – Para encerrar: o senhor falou durante toda a entrevista que o fundamental agora é a política e não a economia. E que na política é essencial a participação popular, então qual SERIA a sua recomendação para os militantes sociais? Celso Furtado - De uma maneira geral, eu DIRIA que valorizem as instituições de base popular e que se organizem no país movimentos de opinião, que deixemos de ser uma massa amorfa explorada pelos aventureiros. A sociedade brasileira tem de se organizar de modo mais consistente para exercer o seu poder real, que foi demonstrado agora, nessas eleições, 93 quando teve acesso a ele e ficou um pouco surpreendida, claro, mas teve acesso. A verdade é essa. (CA71_fev_2003, p. 65) A pergunta do segmento abaixo pertence à entrevista com professor Dalmo Dallari e o ministro Tarso Genro. Os entrevistadores se propunham a promover um debate sobre o governo Lula: Dallari expunha suas críticas ao governo e a Genro cabia exercer o papel de defensor. (15) Marina Amaral - Começo perguntando ao professor Dallari, como pessoa que faz parte até da alma do PT, qual SERIA a sua maior crítica ao governo Lula. (CA_81_dez_2003, p. 89) Na pergunta de Marina Amaral, podemos ver outra vez o FP funcionando como uma estratégia de polidez negativa, ou seja, o interlocutor expressa seu desejo de retirar do entrevistado uma informação, mas se preocupando em proteger sua face. Nessa pergunta, o FP revela certa cordialidade e respeito em relação ao professor Dallari, como podemos confirmar no texto introdutório da entrevista: “Para dar início à série de debates sobre o governo Lula, trouxemos à redação de Caros Amigos duas das mais expressivas figuras da inteligência brasileira, o professor Dalmo Dallari e o ministro Tarso Genro.” (CAROS AMIGOS, São Paulo, dez 2003. Disponível em: http://carosamigos.terra.com.br/.). Esse tom de cordialidade vai se repetir na pergunta seguinte: (16) Marina Amaral - E qual SERIA sua principal crítica ao governo Lula desde o momento em que foi eleito até agora? (CA_81_dez_2003, p. 89) Tanto em (15) quanto em (16) o FP não poderia ser substituído pelo PI, pois se transformariam em perguntas a respeito de uma crítica do passado e não do presente: ... qual ERA a sua maior crítica ao governo Lula? / E qual ERA sua principal crítica ao governo Lula...? Outros casos com a forma SERIA , com o mesmo valor das ocorrências (15) e (16), estão no anexo: (CA71_fev_2003, p. 64), (CA88_jul_2004, p. 106), (CA88_jul_2004, p. 107), (CA106_jan_2006, p. 134). 94 O segmento de entrevista a seguir mostra uma pergunta ao diretor de teatro José Celso Martinez Corrêa sobre o interesse no apoio do grupo Silvio Santos ao projeto de construção de um espaço cultural chamado Oficina. (17) Izaías Almada - Não SERIA mais inteligente o grupo Silvio Santos abraçar o projeto Oficina? O que falta ao grupo? José Celso - Claro. Falta compreensão. Inclusive, no dia 25 de janeiro, dia de São Paulo, a cidade toda em festa e eles trabalhando, demolindo todas as casas, inclusive algumas tombadas. (CA_85_abr_2004, p. 100) Outro caso com as mesmas características de (17) encontra-se em nosso anexo: SERIAM (CA81_dez_2003, p. 92). A pergunta em tese de Izaías Almada revela a opinião do entrevistador e mostra um cuidado em proteger a face do entrevistado, através do uso do FP. Izaías sugere uma idéia, mas sem ser agressivo, pois poderia dizer: Você não acha uma ignorância que o grupo Silvio Santos não abrace o projeto? Assim, o FP ajuda o entrevistado a conseguir uma resposta de José Celso, mas sem agredir as partes que envolvem o apoio ao projeto. Nesse caso, o FP (SERIA) poderia ser substituído pelo PI (ERA), mas não se teria mais o tom cordial e cuidadoso da pergunta original: Não ERA mais inteligente o grupo Silvio Santos abraçar o projeto Oficina? É como se o entrevistador se envolvesse mais claramente com o assunto discutido e não mostrasse preocupação em proteger a sua própria face. O segmento a seguir pertence à entrevista realizada com o ex-senador João Capiberibe, que teve seu mandato e o de sua esposa - a deputada federal Janete Capiberibe – cassados pelo TSE, em 2004. (18) José Arbex Jr. - E, no seu caso específico, como a mídia está se comportando? Senador Capiberibe - Eu DIRIA com uma compreensão muito grande, com exceção de São Paulo, em que teve pouca repercussão. José Arbex Jr. - Por quê? Senador Capiberibe - Acho que há um preconceito paulista em relação a um agente político lá da margem esquerda do rio Amazonas. (CA_87_jun_2004, p. 105) Acima, o uso do FP (DIRIA) mostra que o Senador Capiberibe começa a falar da mídia com certo cuidado (preservando sua face), mas, na continuação a sua 95 resposta, não esconde a sua crítica a imprensa paulista. Mais uma vez, lembramos que a forma DIZIA atribuiria ao enunciado a idéia de passado habitual – que não corresponde à intenção do interlocutor ao responder a pergunta do entrevistador. Em relação ao grupo nocional polidez, fica evidente que a substituição pelo PI anularia a intenção do locutor em fazer uso de estratégias de polidez no jogo de negociação de faces, já que imprimiria na forma verbal um valor de hábito ou descrição no passado. 5.5- Grupo nocional desejo Este grupo, no qual se incluem 31 ocorrências, caracteriza-se pelo valor injuntivo das ocorrências de FP e também de PI. O desejo do falante está em evidência e pode ser expresso de maneira polida e formal, marcando um distanciamento entre os interlocutores (através do FP) ou de uma forma menos distante e cerimoniosa (PI), dependendo da maneira que o falante quiser negociar a sua face. Em todas as ocorrências, temos a manifestação da modalidade volitiva descrita por Travaglia (1999: 81) – e descrita na seção 3.6. Observemos os segmentos abaixo: (1) Mylton Severiano - GOSTARIA de te ouvir porque não te conheço direito. Como você veio parar nas artes? (CA54_set_2001, p. 12) (2) Sérgio de Souza - GOSTARIA de ver você fazer uma consideração sobre os shopping centers. (CA61_abr_2002, p. 40) (3) Paulo Mendes da Rocha - Sobre essas questões básicas acho que não, ao contrário, não tive tempo de fazer nada ainda do que poderia ter feito, GOSTARIA muito que não tivessem feito. GOSTARIA que tivessem verticalizado aqui áreas em que seria o caso de revitalizar ou transformar dentro da rede de metrô. Mesmo este bairro, o metrô vai passar aqui, os intelectuais estão apaixonados por essas casinhas, todo mundo quer morar na Vila Madalena, vai ter que verticalizar isso daqui, porque o metrô vem pra cá e a turma quer morar aqui, não vamos ficar de casinha em casinha, porque gostamos do verde, nem que seja vertical no muro, não resolve nada! (CA61_abr_2002, p. 43) Quando utilizado nas solicitações, o verbo GOSTAR no FP, em geral, expressa uma maior formalidade e cerimônia. Em (1) e (2), o entrevistador mantém certo distanciamento do entrevistado através dessa forma do FP com valor de 96 desejo, mas, ao mesmo tempo, estabelece uma relação de maior proximidade, utilizando formas de tratamento como VOCÊ e referindo-se ao seu interlocutor através do pronome TE – elementos que imprimem informalidade ao discurso. A posição de Mylton Severiano e de Sérgio de Souza como entrevistadores da revista Caros Amigos justifica a escolha de uma das formas de solicitação polida do português do Brasil. Como entrevistadores de uma revista direcionada a adultos que se interessam por Arte, Política, Religião, etc, espera-se que seja utilizada, no mínimo, uma forma de linguagem mais cuidada. Em (1), o entrevistado é Antonio Abujamra, que teve da própria revista uma caracterização que justifica a liberdade de Mylton Severiano de referir-se a ele com o pronome TE: “Abu merece, sua entrevista é um show de berros, coices, pausas, frases cortantes e lembranças ternas, julgamentos assustadores (até dele próprio) e declarações generosas” (Caros Amigos: 2001). Em (2), o entrevistado estabelece a mesma atmosfera de informalidade do anterior, justificando assim a co-ocorrência das formas GOSTARIA e VOCÊ. Vejamos o que diz a Caros Amigos de seu entrevistado: “Paulo Mendes da Rocha é o retrato do arquiteto, o artista, aquele que une à técnica uma visão cósmica, espiritual, política do homem. E ele consegue expor esse pensamento com outra virtude humana indispensável: o humor, e colocações desconcertantes – como a do título abaixo (...) A natureza é um trambolho .” (Caros Amigos: 2002) No segmento (3), o mesmo arquiteto, Paulo Mendes da Rocha, utiliza a forma GOSTARIA com valor nocional de desejo, expressando-se polidamente . Tal escolha pode ser justificada pelo contexto em que se encontrava o entrevistado – uma entrevista a ser publicada em uma revista de repercussão nacional - e também por sua própria posição social como arquiteto. Outras ocorrências de GOSTARIA, com o mesmo valor das anteriores, encontram-se no anexo: (CA55_out_2001, p. 16), (CA70_jan_2003, p. 61), (CA79_out_2003, p. 83), (CA79_OUT_2003, P. 85), (CA80_nov_2003, p.88), (CA81_dez_2003, p. 91), (CA82_jan_2004, p. 95), (CA83_fev_2004, p. 96), (CA91_out_2004, p. 110), (CA_on-line_fev_2006, p.140). Em (4) e (5), encontramos o FP com valor nocional de desejo expresso através de outras formas verbais, como os verbos PEDIR e PODER. Em (5), o valor de desejo expresso pelo FP ocorre de forma mais indireta, pois Marina Amaral não 97 utiliza a estrutura que vem se repetindo até agora, isto é, o foco no entrevistador: GOSTARIA QUE e PEDIRIA QUE – o seu pedido é quase uma “ordem polida”. (4) Sérgio de Souza - Dizem que o senhor gosta de ser chamado de Paulinho, então, aproveitando o diminutivo carinhoso, PEDIRIA que falasse da sua infância porque sempre procuramos começar pela história do entrevistado. (CA61_abr_2002, p. 33) (5) Marina Amaral - Depois dessa introdução, o Duarte PODERIA fazer a primeira pergunta ao Genoino e já podemos começar o debate. (CA83_fev_2004, p. 96) Vale lembrar que no português do Brasil, a forma GOSTAVA não é utilizada pela forma GOSTARIA com valor nocional de desejo (diferentemente de Portugal), pois não atribuiria ao pedido nenhum grau de polidez, mas expressaria um hábito no passado, causando estranhamento em qualquer interlocutor. Nos segmentos abaixo, todas as ocorrências do verbo QUERER são no PI e nunca no FP (QUERERIA ). De acordo com Bezerra (1993: 217), “há uma dificuldade por parte do falante em pronunciar estes verbos na forma em {-ria}”, referindo-se aos verbos QUERER e PREFERIR. A dificuldade estaria na repetição das consoantes vibrantes alveolares sonoras [ r ], nesses verbos cujas raízes também terminariam pela mesma consoante: <prefer> e <querer>. A forma QUERIA marca um distanciamento menor entre os interlocutores e não expressa a mesma polidez que a forma GOSTARIA . Com a forma QUERIA, o falante faz uma solicitação de forma polida, mas sem ser tão cerimonioso ou formal e sem mostrar uma preocupação tão intensa em salvar a sua face. Vejamos os segmentos abaixo: (6) Márcio Carvalho - Eu QUERIA retomar a questão da droga, não o governo Fernando Henrique, mas a droga em si. Te ajuda a trabalhar? Você usa pra se inspirar? (CA50_mai_2001, p. 1) (7) Juca Kfouri - Falando em lato sensu, QUERIA que você falasse do seu projeto em defesa da língua portuguesa, que te custa, por exemplo, ser ridicularizado pela revista Veja. (CA52_jul_2001, p. 8) (8) José Arbex Jr. - Professor, QUERIA que o senhor fizesse um balanço da Universidade de São Paulo hoje, à luz da política do governo Fernando Henrique para a educação. (CA53_ago_2001, p. 11) 98 (9) Givanildo Silva - QUERIA emendar outra pergunta. Podemos dizer que os evangélicos, do ponto de vista da conduta, são muito conservadores. Qual era o seu olhar em relação aos meninos de rua, ou aos que estavam na Febem antes de o seu filho ir para lá? (CA60_mar_2002, p. 29) (10) Guilherme Azevedo - Eu QUERIA perguntar, não saindo dessa parte que você está colocando, qual a sua relação, na realização de uma obra, com os operários? (CA61_abr_2002, p. 41) Outras ocorrências de QUERIA, com o mesmo valor de (10), podem ser vistas no anexo: (CA66_set_2002, p. 50), (CA77_ago_2003, p. 79), (CA81_dez_2003,p. 89), (CA86_mai_2004, p. 101), (CA106_jan_2006, p. 130), (CA_on-line_mai_2006, p. 141). A forma QUERIA é tão utilizada e tão familiar no português do Brasil, que muitas vezes é utilizada sem a carga estilística da solicitação polida. Weinrich (1968: 141) afirma que, quando isso ocorre, a metáfora temporal pode empalidecer e deixar de funcionar como um recurso estilístico. Em (11), a forma QUERIA utilizada pelo entrevistado, Abujamra, não demonstra nenhuma intenção de expressar seu desejo com polidez e isso pode ser comprovado por sua maneira irritada e impaciente de terminar a sua fala e até mesmo de pedir o término da entrevista. (11) Aí eu digo: "Nós sabemos que todo governo é filho da puta!" Aí entram dois atores e dizem: "Você tem razão, Abujamra, todo governo é filho da puta". "E vocês aí? Vocês também acham?" "Também." "E desse lado aqui?" "Também." E fica um negócio que parece que eles vão fazer a revolução. Aí eu digo: "Chega, chega, chega! Senão eles saem daqui e derrubam o Fernando Henrique. Calma!". E aí eles se aplaudem, entendeu? Não é que me aplaudam, eles se aplaudem. Eu fazer a minha vida não quer dizer nada. QUERIA, sei lá. Não me enche o saco! Não me enche o saco! Que mais? Acabou! (CA54_set_2001, p. 15) Na visão de Weinrich (idem: 168), a metáfora temporal representada pelo PI deve ser chamada de metáfora temporal de modéstia porque imprime ao que se fala nuances que vão desde a discrição à timidez. De acordo com o autor, o PI de modéstia geralmente ocorre como auxiliar de um verbo no infinitivo, como vemos nas ocorrências (6), (9,) (10) acima e (12) e (13) abaixo . (12) Felipe Lagnado Cremonese - Você projetou uma capela belíssima em Campos do Jordão. Eu QUERIA entender a visão do ateu fazendo uma coisa 99 tão bonita, que leva as pessoas a olhar para a religião. (CA61_abr_2002, p. 39) (13) Palmério Dória - O assédio sexual como se manifesta? Vocês tiveram alguma conversa sobre isso? Eu QUERIA ir além também, tortura e tudo mais. (CA60_mar_2002, p. 31) Outra ocorrência de QUERIA, com as mesmas características de (12) e (13), encontra-se no anexo: (CA55_out_2001, p. 15). Mas essa não é única estrutura possível com o PI, como podemos ver no segmento abaixo, o verbo PODER no PI: (14) Cláudio Júlio Tognolli - Você sabe por que o Marcelo Rezende saiu da Globo, não sabe? José Louzeiro - Sei. Cláudio Júlio Tognolli - Você PODIA contar pra nós? (CA65_ago_2002, p. 47) Podemos concluir que, no grupo nocional desejo, preponderam as formas do verbo GOSTAR no FP e do verbo QUERER no PI, o que não impede que outras formas possam apresentar o valor de desejo expresso pelo FP, como os verbos PODER e PEDIR. O verbo PODER foi o único que apresentou a possibilidade de alternância entre o FP e o PI. Com o FP, expressando polidez, maior formalidade e maior distanciamento entre os interlocutores. Com o PI revelando um distanciamento menor entre os participantes da interação e uma menor preocupação com a polidez e a formalidade. 5.6- Auxiliares Modais Decidimos descrever separadamente o uso do FP e do PI com os verbos auxiliares modais, a fim de verificar se essa utilização apresenta um comportamento peculiar. No corpus, com 49 ocorrências nesse grupo, ocorreram os auxiliares modais PODER, DEVER, TER QUE / TER DE e PRECISAR (este último com apenas duas ocorrências). O verbo QUERER - considerado modal por Bechara (idem) - foi analisado no capítulo 5 (seção 5.5, destinada ao grupo nocional desejo), pois, em nossos dados, expressa valor modal volitivo, que não interessa para a aná lise dos 100 auxiliares dessa seção. O verbo PODER também está presente no grupo nocional desejo, pois pode ocorrer em enunciados que exprimem pedidos (Você PODIA/PODERIA ligar o ventilador?). Para a descrição de nossos dados, levaremos em conta a relação entre os auxiliares modais e as modalidades (descritas na seção 3.7); a extensão da forma verbal conjugada no FP ou no PI; a ocorrência ou não em seqüência desses tempos verbais; o caráter formal ou informal do discurso dos participantes das entrevistas analisadas. Os auxiliares modais que descreveremos aqui podem expressar valores como necessidade, obrigação, opinião (em relação a uma exigência pessoal), permissão, preferência, que são atribuídos à modalidade deôntica. Outro valor também expresso é o de possibilidade, que se refere à modalidade epistêmica. Começaremos pelas ocorrências relacionadas ao valor permissão da modalidade deôntica e observaremos o comportamento do FP e do PI: (1) Não é possível que um procurador não saiba que meu filho tinha direito até a acompanhante e que eu era mãe dele, e o juiz assinou uma autorização de vê-lo somente nos horários de visita, NÃO PODERIA PERMANECER nem um minuto antes, nem um minuto depois dessa visita. (CA60_mar_2002, p. 30) (2) E veio aquela burocracia, que não podiam deixar eu entrar. Mas, depois de dizer que era a mãe e não estava sabendo do ocorrido, me liberaram quinze minutos pra ficar com ele. E eu era tão leiga no assunto, tão ingênua, que não sabia que PODERIA FICAR acompanhando o meu filho, porque isso é garantido pela lei. (CA60_mar_2002, p. 30) Acima, temos casos de expressão da modalidade deôntica, pois o auxiliar PODER no FP expressa permissão (ou proibição) nesses contextos. As duas ocorrências pertencem a uma mesma entrevista (com Conceição Paganeli, que sofreu durante anos por causa do envolvimento de seu filho com as drogas e com traficantes). Nessa parte da entrevista, Conceição fala sobre a sua luta para acompanhar seu filho durante o tempo em que ele esteve num hospital. Na primeira ocorrência, a falante, fala de sua certeza quanto à impossibilidade de permanecer com seu filho fora dos horários de visita ou simplesmente vê-lo, com base em uma regra imposta por um juiz (representante de uma autoridade externa 101 que age de acordo com regras e e l is). Na segunda ocorrência, também ocorre a expressão da modalidade deôntica, pois remete ao valor de permissão, dada por outrem, para que ela ficasse com seu filho. Nessas duas ocorrências temos um passado contrafactual, pois nenhuma delas se realizou: a entrevistada não pôde permancer com seu filho, não ficou com ele e nem o viu quando ele estava no hospital. Outros casos com o FP expressando os valores relacionados à permissão e à contrafactualidade podem ser encontrados em nosso anexo: PODERIA VÊ-LO (CA60_mar_2002, p. 30), PODERIA IR (CA61_abr_2002, p. 39). Vejamos outro segmento, a seguir: (3) O Brasil não tem obrigação de participar de nenhuma negociação nem de assinar nenhum acordo, não tem obrigação nenhuma, a não ser aquelas que já assumiu. Mesmo essas o Brasil PODERIA DENUNCIAR , é um procedimento normal, de modo que não há motivo nenhum para os Estados Unidos adotarem represálias contra as exportações brasileiras. (CA51_jun_2001, p. 5) O entrevistado, o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, comenta sobre a possibilidade de o Brasil ter uma política independente dos Estados Unidos e, em sua opinião, o Brasil não tem nenhuma obrigação com o governo americano. O auxiliar PODER expressa o valor deôntico de permissão, já que não é obrigado a negociar. O verbo no FP (PODERIA) expressa um futuro não-factual: o falante se refere a um futuro em relação ao momento em que ele fala e esse futuro é não-factual, pois não se sabe se o Brasil já fez alguma denúncia dessa espécie. Então, o FP apresenta uma situação que poderia se realizar ou não. A seguir, observemos o auxiliar no PI, expressando o valor deôntico permissão. (4) E viemos morar em pensão, imagina você. A primeira, muito mambembe, na Liberdade, na rua da Liberdade, depois ele melhorou – se eu quisesse contar de outra maneira, PODIA DIZER: “Vim morar na avenida Paulista” –, fomos para uma pensão da avenida Paulista de umas senhoras espanholas que tinham fugido da Espanha. (CA61_abr_2002 – p. 33) Na entrevista de onde foi extraíd a a ocorrência acima, o entrevistado (o arquiteto Paulo Mendes da Rocha) fala de sua infância rica que, com a prisão do pai 102 por motivos políticos, veio a se tornar muito difícil. O arquiteto narra sobre sua mudança com a família para São Paulo e sobre um difícil recomeço. Com base na visão do falante, podemos afirmar que o verbo PODER no PI (PODIA DIZER) revela que o arquiteto teria toda a liberdade e permissão (estabelecida por ele mesmo) para ocultar que havia morado em um lugar tão humilde, comparado aos locais onde morou durante a sua infância abastada - isso porque só ele saberia da verdade. O verbo PODER já expressa por si só, nesse contexto, a noção de permissão (modalidade deôntica), e a presença do FP viria a reforçar o valor modal desse verbo, com a idéia de “irrealidade” (caráter virtual de realização) que esse tempo expressa. Assim, o PI é utilizado no intuito de se evitar a redundância, no uso de dois elementos indicadores de modalidade. O valor do PI nesse enunciado é nãofactual, visto que não sabemos se algum dia o falante disse que tinha ido morar na Avenida Paulista, logo na sua chegada a São Paulo. Tivemos quatro ocorrências em que o FP foi utilizado para expressar o valor permissão da modalidade deôntica e para referir-se a um evento de caráter contrafactual. Nos casos em que a não-factualidade era expressa, o auxiliar foi usado no PI. Observemos agora segmentos que mostram o FP e o PI expressando necessidade – outro valor deôntico: (5) Tem parques metropolitanos, parques distritais, jardins e parques de bairros, parques geriátricos, parques para adolescentes, parques para crianças, todo um rol feito por Garret Eckbo, um dos maiores paisagistas da América. Resolvi entender o que PRECISARIA EXISTIR como parque em lugares onde não há nada, e comecei a estudar a geografia dos pequenos espaços onde as crianças não têm água limpa para beber, não se alimentam direito, não têm roupas, mas jogam bola da manhã à noite. (CA53_ago_2001, p. 11) Acima, o entrevistado quer saber o que um espaço de uma comunidade carente requer (quais são suas necessidades) para que se crie um parque nele. Esse espaço para o parque funciona como uma autoridade externa que conduz a forma como as coisas necessariamente devem ser feitas, revelando assim um valor deôntico de necessidade. 103 O verbo no FP expressa um futuro não-factual, pois, apesar de estar falando de uma situação “irreal” (que não se realizou), através desse tempo verbal, o falante não descarta a possibilidade de realização do que diz. Nessa ocorrência, a forma PRECISARIA pode ser substituída por PRECISAVA, o que mostraria um envolvimento maior do falante com o seu desejo. Outras cinco ocorrências com valor não-factual encontram-se em nosso anexo: TERIA QUE SER FEITO, PODERIAM PASSAR, NÃO PODERIAM SER (CA60_mar_2002, p. 29), TINHA DE IR, TINHA DE ESTAR (CA106_jan_2006, p. 125) (6) No Amarelo Manga também tem uma cena longa, com travelling-in, em que o personagem faz uma mandinga em voz alta, uma coisa enorme e sem corte, a gente fez de uma vez só. Tinha muito pouca película, então TINHA QUE FAZER pouco ficar bom. Uma das cenas do Amarelo Manga, não vou dizer qual, a gente TINHA QUE TER FEITO de novo, nela eu estou péssimo, mas não tinha película. (CA_79_out_2003, p. 83) Em (6), o fato de haver pouca película criou a necessidade de não se usar muito material, para que a cena ficasse boa. Nessa ocorrência, temos o PI em lugar do FP por alguns motivos prováveis: (a) o valor modal de necessidade já está expresso pelo auxiliar TER QUE, então seria redundante o uso do FP para também expressar outro valor modal (“irrealidade”); (b) a informalidade do discurso do entrevistado (o ator Matheus Nachtergaele ): uso do verbo TER no lugar do verbo HAVER (“tem uma cena longa”, “Tinha muito pouca película”), uso da expressão “a gente”; (c) o paralelismo (ocorrência em seqüência) da forma TINHA na fala do entrevistado (“TINHA muito pouca película, então TINHA QUE fazer pouco ficar bom. Uma das cenas do Amarelo Manga, não vou dizer qual, a gente TINHA QUE TER FEITO de novo, nela eu estou péssimo, mas não tinha película.”). A primeira ocorrência da forma TINHA expressa um evento “real” no passado e não pode ser substituída pelo FP. As duas formas seguintes (TINHA QUE FAZER e TINHA QUE TER FEITO) poderiam ser substituídas por TERIA QUE, pois expressam um futuro em relação a um passado (um dos valores típicos do FP). Em outras palavras, em um futuro próximo ao momento em que a equipe de filmagem 104 descobriu que tinha pouca película, teria que fazer a cena bem e teria que repetir a que não ficou boa. O primeiro auxiliar TINHA QUE expressa um futuro em relação ao passado. Já a ocorrência TINHA QUE TER FEITO expressa um passado contrafactual, pois, pelo contexto “mas não tinha película”, é provado que não houve repetição da cena. Outra ocorrência com valor contrafactual pode ser vista em nosso anexo: PODERIA FICAR (CA51_jun_2001, p. 4). Pudemos constatar que o uso do PI foi o preferido pelos entrevistados que mantiveram uma linguagem mais próxima da oralidade, durante suas entrevistas: o ator Matheus Nachte rgaele, em (6), e o produtor musical Marcelo Bôscoli, na ocorrência indicada no anexo (CA106_jan_2006, p. 124). A entrevista (5), do professor Aziz Ab’Saber, apresentou uma linguagem mais próxima da escrita formal, havendo mais ocorrências no FP no discurso desse entrevistado. Passaremos agora para a expressão do valor obrigação, da modalidade deôntica, através do FP e do PI com os auxiliares modais. Esse valor de obrigação refere-se a normas, regras, leis impostas por uma convenção social. (7) Givanildo Silva - Tem doze anos o Estatuto da Criança e do Adolescente. No artigo 259, ele diz que, noventa dias contados a partir de sua entrada em vigor, Estados, União e municípios DEVERIAM REORDENAR o seu atendimento à criança e ao adolescente. (...) Por último, o Conselho Estadual da Criança e do Adolescente, em 1999, depois dessas rebeliões, principalmente na Imigrantes, estabeleceu como DEVERIA SER o atendimento da Febem aqui de São Paulo. (CA60_mar_2002, p. 31) Nesse segmento de entrevista, os agentes que obrigam a dar qualidade ao atendimento à criança e ao adolescente são o artigo do Estatuto e o Conselho Estadual. O emprego do FP com o auxiliar DEVER imprime um caráter contrafactual à situação, que pode ser constatado através do contexto da entrevista. Nele, a mãe de um adolescente da Febem, Conceição Paganeli, revela que nem o Estatuto, nem o Conselho foram obedecidos: “O que a gente tem analisado, nós da AMAR, mães, é que não interessa aos governos investir muito nos jovens da periferia – porque quem está hoje na Febem é classe popular.” (página 31 do anexo). O PI poderia ser usado, pois os auxiliares já carregam um valor modal definido, tornando possível descartar o FP, no intuito de se evitar redundância quanto ao uso de valores modais. Outras ocorrências de valor contrafactual podem 105 ser observados em nosso anexo: DEVERIA PRODUZIR, TERIA QUE FAZER (CA_70_jan_2003, p. 58). No segmento que se segue, Marta Suplicy pergunta ao entrevistador se a sua própria condição de psicóloga e ex-mulher do atual senador Eduardo Suplicy a obrigaria a ter controle (8) Marcos Zibordi - Mas você é psicóloga, trabalhou na televisão, foi esposa de político e, quando diz assim “fico irritada”, tenho uma certa dificuldade pra aceitar essa justificativa... Marta Suplicy - Tá, você quer que eu seja perfeita, eu não sou. Desculpe te decepcionar. Marcos Zibordi - Mas eu acho que... Marta Suplicy - Por ser psicóloga, por ser ex-mulher do Eduardo, por isso e aquilo, eu DEVIA TER o controle? (CA_97_abr_2005, p. 119) O valor deôntico de obrigação é expresso pelo auxiliar DEVER. O PI, nessa ocorrência, evita o uso redundante de outra marca modalizadora: o FP, tempo verbal que pode expressar “irrealidade”. O PI, nesse contexto, expressa um presente contrafactual, pois, ao fazer a sua pergunta, Marta Suplicy já declara que não possui controle. A seguir, apresentaremos ocorrências nas quais o valor opinião, da modalidade deôntica, está expresso. Ele deriva do valor obrigação, mas o agente que exerce a força dessa exigência é o próprio enunciador. (9) Vai pôr o Pelé nessa confusão sem você ter certeza disso? Então eu disse: "A providência que tem que ser adotada é: primeiro, a empresa dele vai ser investigada; e, segundo, o responsável pela empresa vai ser ouvido e vai responder por aquilo que for encontrado de irregular na empresa e, se necessário, vai ser indiciado". E achei que esse foi o procedimento mais adequado, porque não deixamos de investigar a empresa dele, não deixamos de investigar o responsável pelas empresas, que é o sócio dele, e acho que isso é o que deve ter posto o Pelé contra a CPI, feito um certo acordo ali com o Ricardo Teixeira e com o governo para encontrar outros caminhos, mas acho que a CPI, do meu ponto de vista, fez o que DEVERIA TER FEITO. (CA52_jul_2001, p. 8) Acima, a expressão “do meu ponto de vista” é uma marca de subjetividade, que deixa claro que o entrevistado, Aldo Rebelo, está expondo sua opinião sobre o trabalho da CPI que ele presidiu. O auxiliar DEVER expressa um valor de obrigação que está relacionado à opinião do entrevistado. 106 O auxiliar no FP representa um futuro em relação ao passado, pois o falante revela que algo deveria ser feito num momento futuro, em relação à ocasião em que decidiram investigar as empresas de Pelé. A seguir, vejamos mais um segmento de entrevista : (10) Acho também que seria importante intensificarmos o envio de delegações para a região. E essas delegações DEVERIAM, além de ENVIAR pessoas, AJUDAR na reconstrução da Palestina, pois tem muita coisa faltando lá, remédios, sementes... (CA62_mai_2002, p. 44) Acima, o segmento “Acho também que” deixa claro que é a opinião do entrevistado que está sendo revelada. O auxiliar DEVER revela a exigência pessoal do falante, isto é, o que ele acha que deveria ser feito, por exemplo. Em (10), o FP expressa um futuro não-factual. É futuro porque se trata de uma expectativa de que algo se realize num momento posterior ao da fala. É nãofactual, porque não temos a informação no contexto da entrevista, nem no contexto da história de nossa sociedade, de que as exigências do falante tenham sido concretizadas ou não. O PI (DEVIAM) poderia ser usado pelo FP, como uma forma de se evitar uma forma verbal longa (DEVERIAM tem 4 sílabas) e também para evitar uma redundância de elementos indicadores de modalidade (auxiliar modal + FP). A ocorrência seguinte mostra o auxiliar DEVER com comportamento semelhante ao da anterior, mas o FP tem valor contrafactual, pois os entrevistados têm certeza quanto à inexistência do que enunciam. (11) No caso de Inês Etiene Romeu, fiquei muito comovido com a posição dela e, como tenho formação cristã, me lembrei – e disse isso ao juiz – de um trecho do Evangelho de São João, quando diz: "Queiram a verdade porque a verdade vos tornará livres". Ela vivia numa situação de depressão moral porque a verdade sobre o que ela passou não tinha sido exposta com clareza. Acho que a verdade sobre o regime militar DEVERIA SER de algum modo dada como uma espécie de purificação da alma brasileira. Os jovens a quem leciono na Faculdade de Direito não têm a menor idéia do que aconteceu durante o regime militar. E isso é uma mancha, uma nódoa moral que não foi tratada e está infeccionando a alma brasileira. (CA_72_mar_2003, p. 66) Em (11), o falante está certo de que o regime militar não é uma “espécie de purificação da alma brasileira” e deseja que isso se torne “real” um dia. Como na ocorrência (10), o PI (DEVIA) pode ser usado pelo FP. 107 Outros casos com valor contrafactual podem ser verificados no anexo: DEVERIA TER (CA_79_out_2003, p. 84), TERÍAMOS DE PENSAR, DEVERIAM TER (CA_72_mar_2003, p. 67), NÃO SE TERIA (CA_80_nov_2003, p. 87). Nos segmentos abaixo, temos a expressão do valor opinião, através do PI: (12) Conceição Paganele - O momento mais difícil foi quando meu filho, no começo da rebelião, tentou fuga e quebrou os dois calcanhares. Ele não tem calcanhar, tem platina, então tem uma deficiência hoje, infelizmente. E a minha maior mágoa da Febem, e aí realmente achei que algo TINHA QUE SER FEITO, foi quando ele ficou jogado por três dias num PS do Hospital do Tatuapé e ninguém me comunicou; na minha casa tinha telefone e eu era uma mãe presente. (CA60_mar_2002, p. 30) Em (12), o auxiliar no PI vem precedido de uma marca de subjetividade do discurso da entrevistada: ACHEI QUE. A presença dessa marca já representa a expressão de uma modalidade, ou seja, algo que, na opinião do falante, teria que ser feito. O auxiliar modal TER QUE carrega o valor de opinião em relação a uma necessidade, ligado à modalidade deôntica. Se o FP fosse empregado no lugar do PI, seria mais uma marca modalizadora (a expressão do “irreal”) e, conseqüentemente, sobrecarregaria a modalização do enunciado. O auxiliar no PI (TINHA) expressa um futuro não-factual: um futuro em relação ao passado e que não sabemos se foi realizado ou não. Em nosso anexo, encontram-se mais ocorr6encias com valor não-factual: DEVIA SE LIVRAR (CA_79_out_2003, p. 83), DEVIA FICAR (CA_99_jun_2005, p. 122), DEVIA ESTUDAR (CA_85_abr_2004, p. 99), DEVIA SER (CA_90_set_2004, p. 108). Tivemos alguns segmentos de entrevista que não apresentavam elementos que marcassem de forma explícita a expressão da subjetividade do entrevistado. Vejamos abaixo: (13) Desmanche é outra coisa que me deixa indignado. Em São Paulo existem 1.200 desmanches, aí me pergunto: será que tem tanta batida a justificar esse número tão grande de desmanches? A indústria do roubo e do furto de veículos acaba nessa ponta, o Estado DEVERIA TER uma legislação, inclusive, contrariando o interesse de seguradoras. (CA_70_jan_2003, p. 60) Acima, podemos verificar que o valor opinião está sendo expresso através do contexto: o entrevistado fala de sua indignação e lança uma pergunta para si mesmo 108 para, a seguir, sugerir uma solução para o problema do desmanche. Nesse segmento, o FP (DEVERIA) marca o caráter “irreal” de sua proposição, visto que expressa um futuro não-factual (não se sabe, através do contexto, se a legislação foi criada ou não). O auxiliar poderia ser usado no PI, já que ele próprio expressa modalidade, como já dissemos anteriormente nessa seção. Vejamos outro segmento: (14) João Pedro Stedile - Voltando ao Brasil: o senhor recomendaria ao Lula reabrir a Sudene? Celso Furtado - Ah, sim. Já recomendei. João Pedro Stedile - E qual seria o papel da Sudene num governo Lula? Celso Furtado - Primeiramente, ela TERIA DE VOLTAR A SER o que era originalmente, e não essa caricatura em que se transformou. A Sudene era um órgão que permitia uma articulação melhor, de outro estilo, entre a administração federal e as estaduais. (CA_71_fev_2003, p. 64) Acima, a escolha do adjetivo CARICATURA pelo entrevistado revela uma marca de subjetividade de seu discurso, pois esse termo mostra uma visão pessoal (e não uma visão universal) do papel da Sudene. O verbo no FP apresenta o mesmo comportamento da ocorrência anterior. Considerando o valor opinião, da modalidade deôntica, observamos que o FP (com 9 ocorrências) foi mais freqüente no discurso de entrevistados que se expressaram mais formalmente, ou por estarem em uma situação mais tensa, devido à entrevista, ou pelo teor do que se discutia ou porque utilizaram uma linguagem mais próxima da escrita, durante toda a entrevista. O PI foi o tempo preferido por entrevistados que mantiveram um comportamento mais descontraído durante toda a entrevista (um ator, em CA79, p. 81; um produtor teatral, CA85, p. 98; um rapper, CA99, p. 121) em ou nos momentos em que alguns entrevistados se sentiram mais relaxados. Constatamos em nosso corpus algumas ocorrências do valor opinião relacionadas à modalidade epistêmica. Após a ocorrência de uma marca de subjetividade, apresentou-se um auxiliar modal que expressava possibilidade. (15) Então eles erraram ao acreditar que iriam ter condições de controlar a comissão, subestimaram alguma coisa também. Sei que o desespero ficou mais para o fim. Achavam que não haveria condições de produzir o relatório, ou que PODERIAM EMENDAR o relatório. Espalharam: "Vamos emendar o relatório". E eu: "Só vai ter emenda naquilo que o relator aceitar e o que não 109 aceitar não vai ter emenda. Vocês não vão mutilar o relatório". (CA52_jul_2001, p. 7) (16) José Arbex Jr - Sim, mas eles são gênios musicais. Eles sabem que estão embotando o gênio por causa do mercado? Não sei. Eles criaram um outro tipo de dinâmica na carreira deles, fazem uma coisa que tem características diferentes daquelas do início e estão satisfeitos com isso. Sobretudo estão ganhando muito dinheiro. Do nosso ponto de vista, como somos pessoas inquietas, achávamos que esse potencial PODIA SER USADO de forma muito mais rica e crítica na música brasileira. Mas... (CA_67_out_2002, p. 54) Tanto o FP quanto o PI, acima, expressam contrafactualidade, pois, em (15) o entrevistado revela que não teria emenda, e, em (16), a conjunção MAS, seguida de reticências, dá a entender que ocorreu o oposto do que foi enunciado anteriormente. Como dissemos anteriormente nessa seção, a presença de uma marca de subjetividade, como ACHAR QUE nas ocorrências acima, poderia le var ao emprego do PI pelo FP, visto que evitaria a redundância de elementos que expressam modalidade (achar que + verbo auxiliar modal + FP). O falante também pode utilizar o FP nesse tipo de situação, para expressar formalidade ou para reforçar o valor modal do que enuncia. Outras ocorrências com as mesmas características das que se encontram acima podem ser vistas no anexo desse estudo: POD IA FAZER (CA_97_abr_2005, p. 118) e PODIA ACHAR (CA_106_jan_2006, p. 131), PODERIA DIZER (CA59_fev_2002, p. 24). A seguir, apresentaremos mais exemplos de auxiliares modais com valor epistêmico. (17) E há também uma nova geração, depois da minha, que vem aí com muita firmeza. O esforço todo, meu e dos militantes da minha geração, não conseguiu criar o que PODERÍAMOS CHAMAR de um movimento mais organizado, por isso nunca falamos em movimento negro – porque são vários, que no conjunto você PODERIA CHAMAR de o grande movimento negro. (CA_69_dez_2002, p. 54) (18) Paulo Mendes da Rocha - A história do gênero humano é indizível, claro, mas, se quiséssemos conversar, PODERÍAMOS PENSAR, por exemplo, num dilema da nossa condição humana, entre tantos. (CA61_abr_2002, p. 35) Acima, o auxiliar PODER expressa um valor epistêmico, ou seja, revela o julgamento do falante a respeito do estado factual do que diz. O FP em ambos os 110 casos expressa um presente contrafactual, pois mostra eventos referentes ao momento da enunciação e considerados “irreais” pelo entrevistado. Em (17), não foi criado um movimento que poderia ser chamado de “mais organizado” e nem de “o grande movimento negro”. Em (18), não há no contexto alguma informação que comprove que houve alguma conversa sobre a “condição humana”. Mais encontrados exemplos no do anexo, FP nas expressando seguintes contrafactualidade páginas: PODERIAM podem ser ENCARNAR (CA59_fev_2002, p. 23), PODERÍAMOS DAR (CA59_fev_2002, p. 25), PODERIA SER ENCURTADO (CA_70_jan_2003, p. 58), PODERIA LEVAR (CA_70_jan_2003, p. 60), PODERIA SER (CA_80_nov_2003, p. 85). O FP ocorreu em entrevistas nas quais os participantes utilizaram uma linguagem mais próxima da escrita formal. O auxiliar no FP poderia ser substituído pelo PI, nas ocorrências acima, evitando o uso de formas verbais extensas, como PODERÍAMOS (com 5 sílabas) em oposição a PODÍAMOS (com 4 sílabas), por exemplo. Além disso, a linguagem utilizada ganharia um tom mais próximo da fala informal. Observemos, a seguir, exemplos do PI com valor epistêmico: (19) Alguém que conhece o mundo islâmico teria aconselhado o governo americano a maneirar, que isso de justiça infinita PODIA SER extremamente ridículo, absurdo ou inaceitável em termos dos desdobramentos possíveis, e daí passou a ser denominada “Operação Liberdade Duradoura”, que é também de um ridículo total. (CA58_jan_2002, p. 20) (20) Acho que ganha quem tem propostas, por exemplo, o Serra tinha propostas: ampliar e melhorar o que eu estava fazendo. Perdemos a eleição, mas perdemos com 49 por cento de ótimo e bom, e ele sabia desse dado, não PODIA PROPOR nada muito diferente do que estávamos propondo. (CA_97_abr_2005, p. 119) Em (19), o auxiliar no PI expressa um passado não-factual, pois o falante deixa em aberto se a atitude do governo americano foi ou não considerada ridícula. O uso da forma TERIA ACONSELHADO (com valor temporal polifônico – vide seção 5.2) reforça que o falante não assevera o que enuncia, mas que também não nega o que disse. Em (20), o PI apresenta um valor contrafactual, o que pode ser comprovado pelo próprio co-texto “Ele sabia desse dado” e não podia fazer nada diferente do que estava sendo feito. 111 O uso do auxiliar no PI pelo FP é uma forma de se evitar o uso redundante de um elemento com valor modal, em um mesmo enunciado, isto é: o auxiliar PODER expressa um valor epistêmico (revela se o falante crê ou não no que diz) e o FP adicionaria mais um valor modal, o de “irrealidade”. Outro exemplo do PI com valor contrafactual pode ser visto no anexo: PODIA TER IDO FAZER (CA_on-line_mai_2006, p. 145) e com valor não-factual: PODIA também SER MOSTRADA (CA_82_jan_2004, p. 95), DEVIA TER (CA_82_jan_2004, p. 92). Na seção 2.1, vimos que Cunha e Cintra (1985) afirmam que o PI é freqüentemente usado pelo FP, em estruturas nas quais ocorrem verbos auxiliares modais. Na seção 3.8, mostramos que Costa (1999) afirma que o uso do FP com os auxiliares modais pode ser redundante, devido à presença de mais de um elemento que expressa modalidade: o verbo auxiliar e o FP. Através da análise do comportamento do FP e do PI nessa seção, constatamos que , no caso dos auxiliares modais, o FP teve um número maior de ocorrências (33) em comparação com o PI (17). Nem a expressão da contrafactualidade e da não-factualidade, nem o papel da modalidade foram decisivos na escolha de um tempo pelo outro, de acordo com nosso corpus. Constatamos que houve um maior emprego do PI pelo FP na fala dos entrevistados que mantiveram um tom informal durante toda a entrevista. Nas entrevistas em que houve uma preocupação com o uso de uma linguagem mais formal, o emprego do PI pelo FP ocorreu em momentos de descontração dos falantes. 112 6- Conclusão Com base no corpus pesquisado, apresentamos algumas conclusões sobre o uso do PI pelo FP e um quadro de usos do FP que abarca os casos em que esse tempo verbal pode ser substituído pelo PI. Considerando as hipóteses levantadas no capítulo 1, podemos dizer que o emprego do PI pelo FP não ocorre de forma aleatória, havendo fatores contextuais e lingüísticos que possibilitam ou impossibilitam o uso de uma forma pela outra. As situações de interlocução nas quais o entrevistado, devido ao seu papel social (político, professor universitário, funcionário de alto escalão governamental...), procura usar deliberadamente o registro formal implicam a predominância do FP, mesmo quando seria intercambiável com o PI. Nas situações de interlocução simétricas, em que os entrevistados se expressam de maneira espontânea e descontraída (atores, músicos, produtores teatrais...), é freqüente a opção pelo PI. Considerando as ocorrências analisadas, no quadro dos seis grupos pelos quais foram distribuídas em nossa pesquisa, podemos dizer: No grupo temporal cronológico, o FP e o PI ocorrem em textos narrativos e se referem a eventos que se dão em um passado. Esse grupo não apresentou um número grande de ocorrências (17), porque as entrevistas são mais argumentativas do que narrativas. Apesar de, inicialmente, o entrevistado narrar fatos de sua vida e descrever-se para que os leitores o conheçam, ele é convidado com freqüência a expor sua opinião e a argumentar sobre temas ligados à sociedade, à política, à economia, à cultura, por exemplo. Isso desfavoreceu o aparecimento de ocorrências que se adequassem às características do grupo temporal cronológico. Com base nos dados encontrados, chegamos a algumas conclusões quanto ao uso do PI pelo FP no grupo temporal cronológico: a) quando o FP expressa futuro em relação ao passado, o PI não pode ser utilizado em seu lugar. No entanto, se houver, no enunciado, alguma expressão de tempo que marque essa idéia de futuro, o PI pode ser empregado. 113 b) as perífrases IRIA / IA + infiniti vo sempre podem ser usadas no lugar do FP. Elas também são utilizadas para substituir formas verbais extensas no FP. A forma IRIA + infinitivo é mais formal que a forma IA + infinitivo. c) Em um mesmo enunciado, pode ocorrer um verbo no FP e outro no PI, para marcar uma oposição entre o que o falante considera como um evento mais incerto e outro como mais provável. d) Marcas de subjetividade, como ACHAR QUE, IMAGINAR QUE, EM MINHA OPINIÃO, podem levar ao uso do PI. Essas marcas já expressam a opinião do falante sobre o que diz - o que é uma expressão de modalidade. O uso do FP, que também expressa um valor modal (o de “irrealidade”) imprimiria no enunciado mais um valor modal, acarretando redundância. No entanto, o PI só poderá substituir o FP, se o verbo conjugado nesse tempo não expressar futuro em relação a um passado. e) o FP pode ser usado em textos narrativos com características literárias. Nesse caso, é o FP que substitui o PI. Esse uso é menos corrente que os demais. O grupo temporal polifônico apresentou 8 ocorrências: o número mais baixo, pois apresenta estruturas com o FP que não são usadas tão freqüentemente quanto outras de outros grupos. Esse grupo tem como característica o relato de algo que foi dito por outra pessoa, mas com a preocupação de não asseverar a veracidade do que se relata. Podemos afirmar que a utilização do PI pelo FP com os verbos que apresentam características desse grupo provocaria o efeito contrário à intenção do falante, ou seja, atribuiria ao locutor a responsabilidade do que ele estaria informando. Com base no corpus pesquisado, podemos concluir que as formas do grupo temporal polifônico nunca podem ser substituídas pelo PI. O grupo nocional condição foi o mais numeroso de todos, com 39 ocorrências. O caráter argumentativo das entrevistas pesquisadas favoreceu o aparecimento de estruturas condicionais, pois elas são utilizadas para especular, fazer comentários hipotéticos, refletir, comentar. O uso do PI pelo FP nesse grupo pode ser guiado pela intenção do interlocutor de expressar proposições não-factuais ou contrafactuais. As estruturas 114 condicionais com valor não-factual expressam uma hipótese possível, o que favoreceria o uso do PI. As contrafactuais, por expressarem a certeza do enunciador quanto à “irrealidade” do que se enuncia, favoreceriam o uso do FP. No entanto, constatamos que os fatores não-factualidade e contrafactualidade não foram determinantes, quando o entrevistado tinha a intenção de expressar-se formalmente. A escolha pelo uso da variante culta da língua favoreceu o uso do FP mais uma vez. É importante considerar alguns fatores (situação formal ou informal de interação; desejo de expressar não-factualidade ou contrafactualidade) para que o falante faça uma escolha consciente entre o FP ou o PI. Constatamos que as perífrases (IRIA+infintivo e IA+infinitivo) e o PI com as formas verbais simples foram freqüentemente usados com os verbos que, no FP, apresentariam um número extenso de sílabas. Quando a forma verbal se localizava distante da oração condicional a que era subordinada, o FP era preferencialmente usado. O grupo nocional polidez apresentou 36 ocorrências. Os elementos desse grupo revela m a intenção do falante em ser polido ao perguntar, ao elaborar perguntas e respostas em tese e também demonstrar cautela e/ou timidez em seus comentários. Caso o falante use o PI em lugar do FP, imprimirá em seus enunciados outros valores, como de ação continuada no passado ou descrição no passado. Então, não convém que a substituição do FP pelo PI ocorra nesses casos em que se quer expressar polidez em perguntas, respostas ou comentários. O grupo nocional desejo apresentou 31 ocorrências. Nesse grupo, há a preponderância das formas GOSTARIA e QUERIA. A primeira sempre utilizada no FP, e a segunda, no PI, não havendo alternância entre esses tempos verbais. O uso do verbo GOSTAR no FP pode marcar distância entre os interlocutores e estabelecer relações de poder entre eles. O verbo QUERER no PI pode encurtar essa distância, mesmo usado em solicitações polidas, sendo menos formal. Também encontramos casos em que os verbos PODER e PEDIR expressam o desejo do falante e permitem que o PI seja utilizado pelo FP. A alternância entre 115 esses dois tempos verbais vai marcar relações de poder e de distância entre os interlocutores. O grupo Auxiliares Modais foi formado por 52 ocorrências. Em nosso corpus ocorreram os auxiliares modais PODER, DEVER, TER QUE / TER DE e PRECISAR. O número grande de elementos veio comprovar a constatação de Cunha e Cintra (1985) a respeito da freqüente substituição do FP por construções constituídas por verbos modais. De acordo com a hipótese de Costa (1999) mostrada na seção 3.8, o uso do FP nos auxiliares modais pode ser redundante, devido à presença de mais de um elemento que expressa modalidade: o verbo auxiliar (que pode expressar obrigação, possibilidade, opinião, entre outros valores) e o FP (que, na maioria das vezes, expressa “irrealidade”). Essa hipótese foi confirmada através da análise de nossos dados, mas não foi determinante para a escolha do FP ou PI pelos entrevistados da revista Caros Amigos. Mais uma vez, o caráter formal do discurso dos entrevistados fez com eles optassem muitas vezes pelo FP, apesar de estarem usando mais de um elemento modalizador em um mesmo enunciado. Resumindo, com base no corpus analisado em nossa pesquisa, nos grupos temporal polifônico e nocional polidez não há possibilidade de as formas de FP e PI serem intercambiáveis. Nos grupos restantes, o uso de uma forma pela outra está sujeito a fatores lingüísticos e culturais. Abaixo, apresentamos um quadro de usos, com base na nossa pesquisa, do PI pelo FP. Esse quadro é direcionado ao professor de português para estrangeiros, que, de preferência, deverá fornecer essas informações a seu aprendiz, paulatinamente, a partir de textos autênticos e na medida de suas necessidades e solicitações. Uso do PI pelo FP I- Grupo temporal cronológico a) quando o FP expressa futuro em relação passado, o PI não pode ser utilizado em seu lugar. No entanto, se houver, no enunciado, alguma expressão de tempo que marque essa idéia de futuro, o PI pode ser empregado. a) Ele foi justamente fazer um acerto porque os caras queriam matar o irmão mais novo. Então ele foi lá, conversou e fez um acordo com eles, marcando que no outro dia LEVARI A [LEVAVA] o dinheiro. (CA60_mar_2002, p. 28) 116 Obs.: A forma entre colchetes não pertence ao segmento da entrevista CA60. Ela foi inserida para mostrar a possibilidade de uso do PI (LEVAVA) pelo FP (LEVARIA). b) as perífrases IRIA / IA + infinitivo sempre podem ser usadas no lugar do FP. Elas também são utilizadas para substituir formas verbais extensas no FP. A forma IRIA + infinitivo é mais formal que a forma IA + infinitivo. b) Conceição Paganele - Quando procurei saber o que era Febem, a Fundação do Bem-Estar do Menor, pensei: “Graças a Deus. Ele vai para um local onde será tratado. Vai ter apoio, vai ter tudo aquilo que eu não tive condições e não encontrei nem na comunidade, nem no município, nem no Estado”. Achava que lá dentro ele IA TER assistência, IA ESTAR CONTIDO, IA TER psicólogos, trabalhos profissionalizantes, tudo. (CA60_mar_2002, p. 29) c) Em um mesmo enunciado, pode ocorrer um verbo no FP e outro no PI, para marcar uma oposição entre o que o falante considera como um evento mais incerto e outro como mais provável. c) Aí o ministro, acho que da Indústria e Comércio, Fábio Yassuda, que havia promovido aquilo tudo, pôs o cargo à disposição do governo, criou um caso interno, ninguém soube, jornal não publicou. Então disseram: está bem, eu IRIA ao Japão, FAZIA o pavilhão e VOLTAVA, porque era uma relação internacional já estabelecida. (CA61_abr_2002, p. 39) d) Marcas de subjetividade, como ACHAR QUE, IMAGINAR QUE, EM MINHA OPINIÃO, podem levar ao uso do PI. Essas marcas já expressam a opinião do falante sobre o que diz - o que é uma expressão de modalidade. O uso do FP, que também expressa um valor modal (o de “irrealidade”) imprimiria ao enunciado mais um valor modal, acarretando redundância. No entanto, o PI só poderá substituir o FP, se o verbo conjugado neste tempo não expressar futuro em relação a um passado. d1) Eles fumavam muita maconha. Achava que, estando ali próxima, até do próprio traficante, ESTAVA GARANTINDO a vida do meu filho, e de certa forma estava. (CA60_mar_2002, p. 28) – (presente) e) o FP pode ser usado em textos narrativos com características literárias. Nesse caso, é o FP que substitui o PI. Esse uso é menos corrente que os demais. e) Neste mês, Henfil faria aniversário, nasceu em 5 de fevereiro de 1944. MORRERIA de Aids, como dois de seus oito irmãos, Mário e o Betinho. Hemofílicos, receberam na obrigatória transfusão a que se submetiam sangue contaminado. Um quase homicídio de cada um. Henfil morreu aos 43 anos, em 1988. Esta entrevista foi feita em 1983 por Neusa Pinheiro e ficou guardada até agora com a intelectual e socióloga paranaense. (CA59_fev_2002, p. 22) d2) Conceição Paganele - Quando procurei saber o que era Febem, a Fundação do Bem-Estar do Menor, pensei: “Graças a Deus. Ele vai para um local onde será tratado. Vai ter apoio, vai ter tudo aquilo que eu não tive condições e não encontrei nem na comunidade, nem no município, nem no Estado”. Achava que lá dentro ele IA TER assistência, IA ESTAR CONTIDO, ia ter psicólogos, trabalhos profissionalizantes, tudo. (CA60_mar_2002, p. 29) – (futuro) II- Grupo temporal polifônico a) A utilização do PI pelo FP com os verbos que a) Octavio Ianni: Os governantes europeus e 117 apresentam características desse grupo provocaria o efeito contrário à intenção do falante, ou seja, atribuiria ao locutor a responsabilidade do que ele estaria informando. O FP não deve ser substituído pelo PI. norte-americano (...) optaram por uma guerra mundial. Uma operação de guerra batizada inicialmente com uma denominação evidentemente fundamentalista: “Justiça Infinita”. Alguém que conhece o mundo islâmico TERIA ACONSELHADO o governo americano a maneirar, que isso de justiça infinita podia ser extremamente ridículo, absurdo ou inaceitável em termos dos desdobramentos possíveis, e daí passou a ser denominada “Operação Liberdade Duradoura”, que é também de um ridículo total. (CA_58_jan_2002. p. 20) III- Grupo nocional condição a) O uso do PI pelo FP nesse grupo pode ser guiado pela intenção do interlocutor de expressar proposições não-factuais ou contrafactuais. As estruturas condicionais com valor não-factual podem expressar uma hipótese possível, o que favoreceria o uso do PI. As contrafactuais, por expressarem certeza quanto à “irrealidade” do que se enuncia, favoreceriam o uso do FP. b) as perífrases IRIA / IA + infinitivo sempre podem ser usadas no lugar do FP. Elas também são utilizadas para substituir formas verbais extensas no FP. A forma IRIA + infinitivo é mais formal que a forma IA + infinitivo. Obs.: Se o falante quiser utilizar a variante culta da língua, sempre optará pelo FP. a) Quer dizer, havia esse espírito de irmandade? A guerra ainda não tinha dado aquele tom de ódio? Nós jovens não aceitávamos isso. As espanholas eram muito bonitas! As feições das espanholas, aquelas morenas, aquelas bugras, filhas de índios, – os Guaranis. Na minha adolescência, se você quisesse fazer a corte a uma morena paraguaia PODERIA FALAR no espanhol com certa medida, TERIA só um pedacinho do coração dela, mas se falasse em guarani, VENCIA a parada né? [risos]. Nós todos aprendíamos a falar o guarani cedo! (CA_fev_2006, p. 141) b) O jovem que mora na comunidade não consegue se sentir visível dentro da vida. Só consegue se sentir visível quando está cometendo algum delito, aí já com uma arma na mão. Estou dizendo que, se todas as pessoas tivessem uma oportunidade, nem todas IAM SER DIFERENTES, mas algumas IAM SE MODIFICAR. Não sou defensor deles, mas não consigo colocá-los como monstros. Porque quando eu começava a conversar a máscara de monstro caía, eles voltavam a ser seres humanos. (CA99_jun_2005, p. 122) IV- Grupo nocional polidez a) Os elementos desse grupo revelam a intenção do falante em ser polido ao perguntar, ao elaborar perguntas e respostas em tese e também demonstrar cautela e/ou timidez em seus comentários. a) Sérgio de Souza - Como são esses lugares infernais? Como a senhora os DESCREVERIA? (CA60_mar_2002, p. 28) Obs.: Caso o falante use o PI em lugar do FP, imprimirá em seus enunciados outros valores, como de ação continuada no passado ou descrição no passado. O uso do PI pelo FP não é possível. V- Grupo nocional desejo a) Nesse grupo, há a preponderância das formas GOSTARIA e QUERIA. A primeira sempre utilizada no FP, e a segunda, no PI, não havendo alternância entre esses tempos verbais. a1) Mylton Severiano - GOSTARIA de te ouvir porque não te conheço direito. Como você veio parar nas artes? (CA54_set_2001, p. 12) 118 O uso do verbo GOSTAR no FP pode marcar distância entre os interlocutores e estabelecer relações de poder entre eles. O verbo QUERER no PI pode encurtar essa distância e ser usado em solicitações polidas, mas menos formais. a2) Falando em lato sensu, QUERIA que você falasse do seu projeto em defesa da língua portuguesa, que te custa, por exemplo, ser ridicularizado pela revista Veja. (CA52_jul_2001, p. 8) b) Também podemos encontrar casos em que os verbos PODER e PEDIR expressam o desejo do falante. Nesse caso, O PI pode ser empregado pelo FP com o verbo PODER, mas o mesmo não ocorre com o verbo PEDIR. A alternância entre o FP e o PI com o verbo PODER vai diferenciar relações de poder e de distância entre os interlocutores. b1) Sérgio de Souza - Dizem que o senhor gosta de ser chamado de Paulinho, então, aproveitando o diminutivo carinhoso, P EDIRIA que falasse da sua infância porque sempre procuramos começar pela história do entrevistado. (CA61_abr_2002, p. 33) b2) Marina Amaral - Depois dessa introdução, o Duarte PODERIA fazer a primeira pergunta ao Genoino e já podemos começar o debate. (CA83_fev_2004, p. 96) VI- Grupo Auxiliares Modais a) No corpus ocorreram os auxiliares modais PODER, DEVER, TER QUE / TER DE E PRECISAR. O uso do FP com os auxiliares modais pode ser redundante, devido à presença de mais de um elemento que expressa modalidade: o verbo auxiliar (que pode expressar obrigação, possibilidade, opinião, entre outros valores) e o FP (que, na maioria das vezes, expressa “irrealidade”). O uso do PI pelo FP, nesse grupo, é freqüente. Obs.: Se o falante quiser utilizar a variante culta da língua, sempre optará pelo FP. a1) E viemos morar em pensão, imagina você. A primeira, muito mambembe, na Liberdade, na rua da Liberdade, depois ele melhorou – se eu quisesse contar de outra maneira, PODIA DIZER: “Vim morar na avenida Paulista” –, fomos para uma pensão da avenida Paulista de umas senhoras espanholas que tinham fugido da Espanha. (CA61_abr_2002 – p. 1) a2) No Amarelo Manga também tem uma cena longa, com travelling-in, em que o personagem faz uma mandinga em voz alta, uma coisa enorme e sem corte, a gente fez de uma vez só. Tinha muito pouca película, então TINHA QUE FAZER pouco ficar bom. Uma das cenas do Amarelo Manga, não vou dizer qual, a gente TINHA QUE TER FEITO de novo, nela eu estou péssimo, mas não tinha película. (CA_79_out_2003, p. 84) a3) Marcos Zibordi - Mas você é psicóloga, trabalhou na televisão, foi esposa de político e, quando diz assim “fico irritada”, tenho uma certa dificuldade pra aceitar essa justificativa... Marta Suplicy - Tá, você quer que eu seja perfeita, eu não sou. Desculpe te decepcionar. Marcos Zibordi - Mas eu acho que... Marta Suplicy - Por ser psicóloga, por ser exmulher do Eduardo, por isso e aquilo, eu DEVIA TER o controle? (CA_97_abr_2005, p. 119) a4) Tem parques metropolitanos, parques distritais, jardins e parques de bairros, parques geriátricos, parques para adolescentes, parques para crianças, todo um rol feito por Garret Eckbo, um dos maiores paisagistas da América. Resolvi entender o que PRECISARIA EXISTIR como parque em lugares onde não há nada, e comecei a estudar a geografia dos pequenos espaços 119 onde as crianças não têm água limpa para beber, não se alimentam direito, não têm roupas, mas jogam bola da manhã à noite. (CA53_ago_2001, p. 11) Os resultados dessa pesquisa podem contribuir para o ensino do português para estrangeiros, devido à escassez de meios disponíveis, para orientar o professor a ensinar como e quando usar o PI pelo FP, no português do Brasil. Vale ressaltar que a nomenclatura referente à classificação de nossos dados deve ser dispensada pelo professor em sala de aula e que as informações aqui apresentadas devem ser diluídas ao longo de um curso de português para estrangeiros, sendo sempre trabalhadas a partir de dúvidas dos aprendizes diante do uso desses tempos verbais. Acreditamos que nossos resultados podem contribuir para o desenvolvimento de outras pesquisas que analisem diferentes gêneros textuais e/ou situações comunicativas diversas, a fim de verificar o uso do PI pelo FP, no português do Brasil, dando alguns subsídios para o estudo desse mesmo fenômeno no português de outras nações lusófonas. 120 7- Referências bibliográficas BARBOSA, Tatiane A. M. A variação entre futuro do pretérito e pretérito imperfeito do indicativo em orações condicionais iniciadas por “se” na fala uberlandense. Dissertação de Mestrado – Instituto de Letras e Lingüística, Universidade Federal de Uberlândia, 2005. BECHARA, Evanildo. 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Angeli - Não, nada que eu possa classificar como censura. Márcio Carvalho - Eu QUERIA RETOMAR a questão da droga, não o governo Fernando Henrique, mas a droga em si. Te ajuda a trabalhar? Você usa pra se inspirar? Angeli - Nos anos 70 era muito legal a gente mitificar tudo isso, era legal achar que a marginália era o máximo. E, hoje, isso virou uma industria, você vê o narcotráfico, ligado a isso, a corrupção, o comprometimento de políticos, juízes, congressistas… A máquina do Estado também. Os traficantes tomam conta do morro, são líderes da comunidade deles, mas o que eles querem é que as coisas continuem do jeito que estão pra poderem existir. Então, mitificar isso acho um perigo. É andar pra trás. Ao mesmo tempo, a história está repleta de escritores, desenhistas, músicos que usaram drogas como elementos criativos. Depende da pessoa. Sei de gente que toma qualquer coisa e fica babando, e tem outros que utilizam aquilo a favor. Por exemplo, praticamente durante quinze anos eu fui cocainômano. O meu trabalho era uma merda durante esse tempo, ele decaiu e decaiu. Eu entrava na redação, fazia a charge em quinze minutos e saía correndo porque tinha de cheirar com alguém. Julianne do Carmo - Você estava trabalhando onde? Angeli - Na Folha. Estou há 27 anos na Folha. Bom, parei de cheirar, foi ótimo parar, meu trabalho cresceu, encorpou, ele tem um discurso formado, coisa que não tinha porque eu não tinha paciência, não tinha vontade. Eu queria mais era estar na balada. Fernando Valle - E a maconha? Angeli - Maconha, até tua vovó fuma, né? Sérgio de Souza - Você teve uma ajuda nessa sua parada? Angeli - O que me impulsionou a parar foi o seguinte: varando duas, três, quatro noites ali, deitado que nem uma caveira na cama, e o meu filho com 2, 3 anos, acordava com toda a vontade de viver. Passear na pracinha, tomar sorvete e tal. E eu, feito um zumbi cadavérico levando o moleque para passear. Ele corria e falava: “Vamos, papai, vamos, papai!!” E eu: “Hãããã...”. Decidi parar. Comecei a ter problemas de relacionamento social, profissional e familiar, então resolvi parar. Agora, a maconha, com 12 anos fumei o meu primeiro baseado, e isso me acompanha até hoje. Mas utilizo como um fator criativo. Por exemplo, a tira tem três tempos: começo, meio e fim. Às vezes paro no meio e não tenho o final. Falta algo pra chegar e pumba! Sair a piada. Fico andando pra lá e pra cá, sem um final pra piada. Falta uma palavra que descontraia. Trecho II Ricardo Vespucci - Você dedica a mesma raiva a todos os políticos ou para alguns é um pouco mais, um pouco menos? Angeli - Outro dia vi uma frase do Plínio Marcos que era mais ou menos assim: “Esse negócio de ideologia é pra quem estudou, eu não estudei, eu não tenho ideologia”. Acho que o chargista, o humorista, quando assume um lado e fala “com aquele eu não mexo...”, ou então coloca o trabalho a serviço de uma ideologia, ele deixa de fazer humor e passa a fazer propaganda, que não é o meu talento. Gosto de atirar para todos os lados. Mediocridade tem em qualquer lado. Se bem que alguns políticos dão menos motivos do que outros. Guto Lacaz - Quem você admira como político? Angeli - Político é difícil você admirar. A política é a arte das segundas intenções, ou é o poder, ou é viabilizar algum projeto, ou idéia política, sempre tem um discursinho embutido em outro. Por exemplo, acho o Genoino um cara legal, mas também está sujeito a tomar uma bifa na orelha. Guto Lacaz - Você votou na Marta? Angeli - Votei na Marta. Não gosto de falar em quem votei, você perguntou tão “na lata”, que acabei falando. (risos) Acho um cara legal o Genoino, mas aí é aquela coisa, tem um teatro na política, como tem teatro em tudo, no sexo, no amor e tal. Aquela coisa do Genoino dando a mão para o Antônio Carlos Magalhães, que chorava pelo filho, aquilo é meio banana. Guto Lacaz - E o Gabeira? Angeli - Gosto do Gabeira, não sei se como político, mas gosto do Gabeira. Márcio Carvalho - E o Fernando Henrique? Angeli - Esperava que o governo fosse mais atuante e mais condizente com a história de quem está no governo, não só a do Fernando Henrique, como a do Serra, do Aloysio e de outros. São pessoas que participaram da resistência, foram exiladas, pessoas que desenvolveram todo um pensamento de esquerda. Acho que o Fernando Henrique, a partir do momento em que buscou apoio da direita glutona, do Antônio Carlos Magalhães, 2 do Maluf, pra poder se eleger, já começou errado, comprometido com tudo aquilo que o Brasil não queria mais. Não dá pra ser progressista ao lado do Antônio Carlos Magalhães e com apoio do PPB do Maluf. Ricardo Vespucci - Marco Maciel... Angeli - Marco Maciel, pessoas que tiveram participação no governo do Collor, que vieram da antiga Arena, impossível achar que vai ter uma renovação aí. O Fernando Henrique foi muito egocêntrico... Fernando do Valle - Ele subestimou essa direita aí, não? Angeli - Subestimou, achou que IA SER mais poderoso que tudo isso, que o nome dele IRIA SUPLANTAR qualquer acordo, e não suplantou, não. Porque direita é um verme, é que nem cupim, eles se enfronham. E, é incrível, a direita parece que tem mais capacidade de se locomover entre vários ambientes do que a esquerda. E um problema do Fernando Henrique é que ele quer fazer as coisas sem causar problemas: “Não queremos problemas com os militares; é melhor a gente fazer tudo certinho, como bons moços, que se cumprimentam aqui, se cumprimentam ali”. É impossível, tem aquela frase: “Não se faz revolução sem derramamento de sangue”. Na verdade, Fernando Henrique precisava era derramar um pouco de água pra fora da bacia e não se ligar às forças que estão aí desde os tempos dos dinossauros. Trecho III Rogério Nunes - Você tem projeto de lançar outra revista como a Chiclete com Banana? Angeli - Tenho mais vontade do que um projeto. Mas a revista, o Toninho Mendes editava comigo, somos amigos desde os 13 anos de idade, colecionávamos gibis. Era uma paixão por gibi. Mais tarde, ele começou a trabalhar na imprensa, eu já estava na Folha, houve um afastamento. No começo dos anos 80, quando ele viu minhas tiras, me ligou: “Vamos editar um livro, fazer uma editora...”. O livro vendeu que nem água, era uma coletânea do Bob Cuspe, chegando à 15» edição, cada edição 3.000, 4.000 exemplares, uma coisa absurda, eu me assustava. Aí lançamos o segundo livrinho, com a Rê Bordosa, que chegou à vigésima edição. Então pensamos assim: “Com tudo isso que estamos vendendo em livraria, se colocarmos uma revista na banca, a gente dobra, vamos conseguir manter uma revista”. No primeiro número da Chiclete com Banana tiraramos 20.000 exemplares. “Nossa, 20.000 é muito, cara.” Vendemos os 20.000 exemplares. Aí, o Toninho, no segundo número, aumentou para 40.000, vendeu os 40.000. Chegamos a 110.000 exemplares. A Chiclete serviu como balão de ensaio para as outras editoras, tanto para as pequenas como para as grandes Globo, Abril… Mas a Chiclete começou como revista de quadrinhos de um autor só e, com o tempo, fui vendo que gosto de editar, de pensar uma revista, de fazer o espelho, decidir quem escreve o que… E daí fui descobrindo que também não dava para fazer uma revista só de quadrinhos, então convidamos o Cláudio Willer, por exemplo, poeta e tradutor dos beats aqui no Brasil, para escrever sobre a geração beatnik. Ele escreveu três capítulos que mostravam pra molecada que lia a revista que rebeldia e comportamento marginal têm história, não começaram ontem… acho que o Guto lembra disso. Guto Lacaz - Claro. Eu, o Piva... Angeli - O Roberto Piva, escrevendo lá também. Começamos a agregar pessoas que sempre admirei e que eram grandes autores, mas estavam fora da mídia. Roberto Piva é considerado o maior poeta beat brasileiro, Cláudio Willer, Glauco Matoso, um grande escritor que agora está cego, infelizmente. Guto Lacaz - Ele está cego? Angeli - Completamente. E faz humor com ele mesmo. O nome dele é Pedro Ferreira e sofria de glaucoma e, como quem sofre da doença é um glaucomatoso, ele tirou daí o seu nome. Homossexual, pedólatra… a revista abria todo espaço e ele fazia o que queria na sua coluna. A revista começou a ter personalidade, era impossível falar que era editada de qualquer jeito, era tudo muito coeso. E a Chiclete deixou de ser uma revista de quadrinhos para se tornar uma revista de comportamento e idéias incômodas. E um dia acabou porque cansou, era uma revista sem equipe, sem anúncio, não era informatizada, tudo feito na mão, artesanal, na colinha, no estilete… Guto Lacaz - O Toninho me falou que a economia da época também debilitava, comprar o papel... Angeli - É. Enfrentamos alguns planos econômicos, estávamos vendendo 60.000 antes do Plano Collor. Depois, o número seguinte vendeu 8.000 exemplares. E quem não tem uma receita de anunciantes quebra. Chiclete com Banana era um grande guarda-chuva que, com dinheiro que entrava, abrigava a Circo do Luis Gê, o Geraldão do Glauco, o Piratas do Tietê do Laerte, o Níquel Náusea do Fernando Gonsales... Mas me cansou. Antes de tudo, porque é um defeito meu ser centralizador demais, não quero deixar outras pessoas fazerem aquilo que gosto de fazer. Eu escolhia as fotos, escrevia as legendas, diagramava, roteirizava fotonovelas, copidescava textos e, acima de tudo, era o autor âncora da revista. Márcio Carvalho - E o nome Chiclete com Banana? Angeli - Foi em homenagem ao Jackson do Pandeiro e àquela música maravilhosa Chiclete com Banana, que tem tudo a ver com o conceito da revista, a música fala de misturar bebop com samba, rock tocado com zabumba e tamborim… quer dizer, é uma cultura rock, universal, sem deixar de ser uma coisa tipicamente brasileira. Trecho IV Márcio Carvalho - Você é favorável ao MST? Nunca vi muitas charges suas em relação ao MST? Angeli - Já fiz algumas coisinhas. Mas acho um movimento justo. Dos sem-teto, sem-terra, acho justo, é uma reivindicação legal a deles. Só que tem na cúpula do MST um moralismo que não bate com o que eu penso do mundo. Por exemplo, o episódio da menina do MST que posou para a Playboy, o Stedile no Roda Viva falou que posar nua era coisa de prostituta. Eu, se fosse uma das atrizes, cantoras ou modelos que um dia posaram para a 3 Playboy, PROCESSARIA o cara. Isso é difamação, um moralismo dos mais tacanhos. Essa coisa meio stalinista dele me incomoda profundamente, dentro daquele cara mora um ditador. Acho também que alguns métodos do MST chegam ao pedantismo. Invadiram fazendas produtivas. Em alguns momentos, eles perdem as rédeas, a noção de como é fazer esse tipo de ação política. Quando houve a greve da PM, não lembro de qual Estado, eles programaram uma manifestação em conjunto, MST e PM. Então fiz uma charge que era um grupo de manifestantes, formando tipo um cordão de isolamente, um dando o braço pro outro: um sem-terra, um PM, um sem-terra, um PM. Um sem-terra olha pro PM do lado: “Ei, não foi você que me deu uma cacetada ontem?” Então, tem coisas que me incomodam um pouco, mas eu apóio, acho que é justo. Todos os movimentos de excluídos, tanto os urbanos como os do campo, acho que precisam ser levados em consideração. Não pode ter num país deste tamanho uma concentração de renda e de terras nas mãos de poucos coronéis. Tem um monte de gente sofrendo de fome crônica. Agora, o episódio da porta da fazenda dos filhos do Fernando Henrique, quando integrantes do MST colocaram crianças, com pedaços de pau, malhando um boneco do FHC diante das câmaras de televisão, dando porrada até destruir o boneco, acho que isso não é educação política. CA51_jun_2001 Em 38 anos de carreira, o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães enfrentou os mais variados momentos da vida política brasileira sem perder a coragem nem trair suas convicções. Foi demitido no regime militar da direção da Sudene por resistir à interferência do USAID (United States Agency for International Development) no governo Castelo Branco – e deixou a vice-presidência da Embrafilme no governo Figueiredo durante a crise gerada pelo filme Pra frente Brasil, uma crítica contundente à ditadura. No governo Collor, com a política de abertura de mercados, também preferiu se afastar, servindo cinco anos na França. Este ano, o embaixador deu mais uma demonstração de independência ao criticar publicamente a entrada do Brasil na Alca. Como punição, foi exonerado em abril do cargo de diretor do Instituto de Pesquisas em Relações Internacionais (IPRI) do Itamarati. Com mestrado em economia nos Estados Unidos – onde serviu seis anos como cônsul em Boston e depois como conselheiro da missão brasileira junto à ONU – e autor do livro Quinhentos Anos de Periferia, que analisa em profundidade a situação do Brasil no mundo, Samuel Pinheiro incomoda porque sabe o que diz. E faz questão de advertir a sociedade brasileira para a armadilha que representa para o país a criação da Área Livre de Comércio das Américas, a Alca. Trecho I Marina Amaral - Como é essa relação entre o diplomata e a linha do governo? Samuel Pinheiro Guimarães - Há uma variação muito grande, em especial entre os diplomatas jovens que não exercem cargos de direção. Na época de 1964, um grande número tinha simpatia pela política externa de Jânio e de Jango. Havia um sentimento bem presente entre os jovens diplomatas, um movimento crescente por democracia, pelo fim do autoritarismo, embora houvesse também pessoas conservadoras, como em todo agrupamento humano. Em um grupo qualquer de indivíduos, de qualquer profissão, há uma gama política: pessoas à esquerda; um predomínio do centro, de pessoas que ficam ali flutuando, de pessoas conservadoras, isso é natural. Wagner Nabuco - O senhor DIRIA que, do ponto de vista da política externa brasileira, desde a independência, 1822, o governo Getúlio ou a influência do Getúlio de 1930 a 1950 são um espaço diferenciado, em que se afirmaram um projeto nacional e uma política externa que representassem esse projeto nacional? Samuel Pinheiro Guimarães - Não sou historiador da política externa. A sensação que tenho, porém, é de que em 1929 ocorre uma ruptura muito grande na sociedade brasileira, provocada por um fator externo que é a Grande Depressão, que vai permitir — e mesmo exigir — uma transformação não só da economia como da sociedade. Assim como a vitória da Revolução de 1930 é um desenvolvimento das revoltas tenentistas, tanto que Getúlio é cercado de tenentes. É um processo de transformação social do Brasil, econômica e política também. E aquele período de grandes dificuldades econômicas ao mesmo tempo permitiu a consolidação de um proletariado industrial nos principais centros urbanos. A própria dificuldade de importações levou a um esforço para sua substituição, impulsionando a constituição desse proletariado, que serve também de base para um novo processo político. Do ponto de vista externo, ocorre um movimento interessante de afirmação de política externa, mas não é o primeiro, porque já havia ocorrido outro, fundamental, no Império. Uma grande vitória do período imperial é a não renovação dos tratados preferenciais com a Inglaterra. Aquilo foi uma luta histórica, e a distância do poder entre a Inglaterra e o Brasil naquela época talvez fosse maior do que a distância entre o Brasil e os Estados Unidos hoje. A época de Getúlio é também um momento de uma preocupação muito grande com a construção da economia, se percebe que é necessário industrializar o país, que essa necessidade está ligada à construção de infra-estrutura nas áreas da siderurgia, da energia elétrica, da indústria. E é uma época de diversificação até de relações econômicas em direção à Alemanha, por exemplo, que depois PERMITIRIA, com a guerra, que o Brasil conseguisse muito habilmente extrair os financiamentos para a construção de Volta Redonda, uma fato político extraordinário para a época. E há algo muito importante que hoje é pouco lembrado: os americanos queriam ficar permanentemente na base aérea de Natal e o governo brasileiro recusou essa autorização. Senão TERÍAMOS hoje o que os cubanos têm na sua ilha, uma situação complicada e que os europeus também têm a "felicidade" de ter, que são as bases americanas em seu continente e que eles, progressivamente, gradualmente, vão "empurrando" para fora. Todo o esforço europeu é esse: terminar a ocupação militar americana que se iniciou com a Segunda Guerra. José Arbex Jr. - Mas o Plano Colômbia agora vai instalar as bases americanas... 4 Samuel Pinheiro Guimarães - O Plano Colômbia faz parte de uma estratégia americana muito mais ampla. Em relação às Américas, essa estratégia tem aspectos econômicos, militares, ideológicos, políticos, tecnológicos — e o Plano Colômbia, entre outras coisas, visa instalar bases permanentes na América do Sul. No Equador, já existe a base de Manta, um contrato leonino com o governo equatoriano que aparentemente não ganha grande coisa com isso. Parece haver bases no Peru, não tenho cert eza, mas acho que com a presença de militares americanos. Trecho II João De Barros - E a política externa brasileira como fica diante desse quadro de dominação econômica e política? Samuel Pinheiro Guimarães - A impressão que tenho é a de um estado de grande perplexidade e de dificuldade operacional. Porque, para atuar, é necessário um conjunto de hipóteses sobre o que é o mundo, qual é a evolução do mundo, o que é a sociedade brasileira, qual é a evolução da sociedade brasileira. E o que está acontecendo com esse conjunto de hipóteses no caso da política externa brasileira? Está desmoronando. Quais eram essas hipóteses? A América do Sul é um continente pacífico, temos relações de grande amizade com nossos vizinhos, nas fronteiras não há nenhuma ameaça externa, logo, podemos nos desarmar. Em termos mundiais, com a derrota da União Soviética e sua entrada no sistema capitalista, as grandes potências vão se desarmar e haverá o que se chamava nos anos 80 de "dividendos da paz", um processo de reconversão das estruturas militares para financiar programas de desenvolvimento. Então não há nenhum problema, podemos reduzir nosso orçamento militar, investir mais em outras áreas. Os grandes países do Ocidente são países benevolentes, países de uma magnanimidade extraordinária e que jamais desobedecerão as regras do direito internacional, jamais infringirão a Carta das Nações Unidas ou pressionarão qualquer país e nós, países que obedecemos às normas do direito internacional, estamos a salvo. Então, agora que está tudo em paz, vamos resolver a questão do meio ambiente. É o que dizem aqui essas convenções, os grandes países poluidores vão assiná-las e vão nos ajudar a resolver os desafios do meio ambiente. E temos aqui o Mercosul, um esquema extraordinário, porque aqui vamos construir um bloco poderoso — na época, havia essas declarações, comparações mirabolantes do Mercosul com a União Européia. E o comércio começou a crescer muito, foram derrubadas as barreiras e foram feitas projeções lineares: está crescendo a 10 por cento, então vai indo, vai indo, bate no teto, se torna um gigante. E isso vai nos permitir uma participação mais forte no cenário político internacional. Na tecnologia, se adotarmos uma lei de propriedade intelectual "moderna", vamos impulsionar o desenvolvimento da tecnologia no Brasil. Os inventores farão grandes descobertas, haverá modernização. Essas eram as hipóteses, a visão que estava por trás de nossa política externa. E como se via o Brasil nesse contexto? O Brasil é um país atrasado, um país autárquico, dominado pelo Estado que não libera as forças produtivas, que persegue os estrangeiros, que discrimina os capitais estrangeiros e impede que o país participe do processo de globalização. Então, devíamos fazer o quê? Vamos abrir nossa economia, desregulamentá-la, acolher os capitais, sem pedir nada em troca. Depois eles nos darão. Ouvimos isso de vários ministros, mais tarde perplexos porque não estávamos recebendo nada em troca. E o que aconteceu? Abre-se bem a economia brasileira, desregulamenta-se, controla-se a inflação, adota-se a âncora cambial, reduzimos o Estado, privatizamos e esperamos os capitais estrangeiros que iriam desenvolver o país por nós, modernizar, exportar. Vamos transformar o país em quê? Em uma plataforma de exportação! Vamos diminuir o Estado porque a própria sociedade, através das meritórias ONGs, vai resolver os problemas sociais. Todas essas versões foram contrariadas pela realidade! E qual era a grande diretriz da política externa? "O Brasil precisa se tornar um país normal". Um país normal!" Como se antes fosse anormal. Quer dizer, a questão tem uma parte psicológica interessante. As pessoas incorporaram a inferioridade. Quem são os superiores? Os deuses que habitam o Olimpo eurocêntrico. E nós aqui, uma população mestiça, triste, ineficiente, atrofiada, pacata... Mas tudo isso vai se transformar quando controlarmos a inflação, privatizarmos tudo e tratarmos os estrangeiros como os astecas trataram os espanhóis, como deuses! É uma visão do Brasil como se o país tivesse contrariado as regras do convívio internacional. Ser um país normal é, de certa forma, ter comportamento de país desenvolvido. O PSDB publicou um documento muito interessante, chamado Mãos à Obra, o programa de governo de 1994. Há nele uma primeira frase, assustadora: "O Brasil não é mais um país subdesenvolvido, o Brasil é um país injusto". A leitura dessa frase é dramática, porque ela desconhece a realidade do subdesenvolvimento e confronta subdesenvolvimento com injustiça, quando a injustiça faz parte do subdesenvolvimento. Quais as consequências dessa visão na área econômica? Adotar políticas de país desenvolvido, como a França, a Alemanha. Se o país desenvolvido tem um banco central independente — o que não é verdade na França, por exemplo, mas faz parte da mitologia do que seria um país desenvolvido —, temos de querer isso também. Se os países desenvolvidos não interferem na economia — o que também não é verdade, o governo dos Estados Unidos têm uma interferência extraordinária na economia —, vamos fazer o mesmo. Tivemos a possibilidade de desestatizar estatizando. Por exemplo, transferimos algumas de nossas estatais para empresas estatais estrangeiras. E há um sério problema de alinhamento da política externa que decorre dessa visão. Por exemplo: todos os países "normais"assinaram o TNP, o Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares. O Brasil não PODERIA FICAR na contramão, na má companhia de países "suspeitos" como Israel, Índia, Paquistão, nenhum deles países realmente brancos... O Brasil iria ficar nessa má companhia? Não, tínhamos que nos juntar às boas companhias. Nossos mentores nos diziam: "Assinem aqui, é bom para vocês". "Mas nós não vamos obter nada em troca?" "É bom para vocês, vocês devem fazer isso não em um espírito de negociação, de obter algo em troca, devem assinar voluntariamente." É a chamada adesão unilateral. A perplexidade de hoje é porque a Índia não assinou, explodiu suas armas atômicas, recebeu a visita do presidente Clinton que a tratou com muito respeito, se tornou 5 uma potência nuclear. "Desassinar" é complicado, os compromissos jurídicos vão progressivamente restringindo a liberdade de ação dos países periféricos. estão amarrando tudo, não é verdade? No fundo, a estratégia, vista por outro ângulo, é a de fixar a imagem de um mundo "feliz", que ainda está antes de 1914, na Belle Époque. Um mundo "feliz" comandado pelos países centrais, Europa, os Estados Unidos, e tem até os japoneses, que são meio amarelos, mas tudo bem. E havia toda a periferia dominada, colonial, tranqüila, servindo aos desígnios do centro. O processo que vemos hoje em dia é um processo de recolonização da periferia, de forma indireta. Quais são as características da colônia? Não pode ter armas, não pode ter política externa, não pode ter políticas econômicas internas, não deve ter moeda — isso que se advoga às vezes, a dolarização, é coisa de colônia. Mas agora na periferia há nações como a Índia, a China, a visão mitológica não funciona mais, é necessário segurar, controlar. Então se abandonou o sonho do desenvolvimento e decidiram segurar pela força. Não há mais a idéia do desenvolvimento, de trazer os países pobres até o nível dos ricos. Aqueles que conseguiram, conseguiram. Quem não conseguiu... É essa a perplexidade, porque o Mercosul, que era para ser o "grande bloco", está numa situação difícil, não se tornou um grande bloco. Os países que se dizam não arbitrários rasgam a carta da Onu quando querem — os Estados Unidos bombardeiam o Iraque toda semana. Escreveu, não leu, bombardeiam o Iraque. Israel, com todo o apoio americano não cumpre as resoluções da ONU e os conflitos se multiplicam com enorme violência. Esse negócio de lei, de direito internacional, "ah! se nós fizermos todo o dever de casa"... E os países armados continuam se armando, estão cada vez mais poderosos. Os capitais estrangeiros que iam resolver todos os nossos problemas, evidentemente, não aumentaram nossas exportações, modernizaram desempregando, só o consumo foi modernizado. Criaram uma crise na balança de pagamentos que pode explodir a qualquer momento, o nível de recursos externos é tão elevado que, de repente... "Ah, tem o Fundo Monetário" — mas aí o país já quebrou! E de repente o continente de paz tem o Plano Colômbia, tem tropa americana, tem uma coisa totalmente diferente. As organizações internacionais, imagine! Basta lembrar o caso da Embraer, da vaca louca, os subsídios agrícolas... Os Estados Unidos acabaram de aprovar uma lei agrícola que vale até 2011! É a ALCA que vai abrir todos os mercados? Os subsídios agrícolas americanos não estão na mesa de negociações, a lei antidumping americana não está na mesa... O que está na mesa é o que interessa aos Estados Unidos, o que temos para dar, não o que eles têm para nos dar. Trecho III Marina Amaral - Mas HAVERIA espaço para construir uma política independente? Todas as propostas no sentido de sair da subserviência, desde a questão da dívida externa até a questão de acordos como a ALCA, são combatidas com o argumento de que o Brasil sofreria represálias internacionais. Samuel Pinheiro Guimarães - Não acho que sofreria represálias. Justamente quando se acena com essa possibilidade é como se utilizasse um espantalho para assustar a sociedade. O Brasil não tem obrigação de participar de nenhuma negociação nem de assinar nenhum acordo, não tem obrigação nenhuma, a não ser aquelas que já assumiu. Mesmo essas o Brasil PODERIA DENUNCIAR, é um procedimento normal, de modo que não há motivo nenhum para os Estados Unidos adotarem represálias contra as exportações brasileiras. Isso é contrário à Organização Mundial do Comércio. Só porque o Brasil não quer assinar um acordo desigual pelo livre comércio? Quer dizer, os países que se respeitam agem sem espetáculos, com tranqüilidade, sem arrogância, com moderação, mas também com a firmeza que convém. O caso mais expressivo é o da Índia, como já citei, que não assinou o TNP (Tratado de Não-Proliferação), explodiu as armas atômicas e, depois da reação inicial dos poderosos, o seu direito de ter armas nucleares foi implicitamente reconhecido. Não há represálias. Sérgio de Souza - Até que ponto, até que round o Brasil está comprometido com a ALCA? Samuel Pinheiro Guimarães - Que eu saiba, não há nenhum acordo assinado. Há declarações ministeriais, declarações presidenciais e tudo, mas são manifestações de intenção, não são compromisso. Sérgio de Souza - Mas dentro do processo...? Samuel Pinheiro Guimarães - Na medida em que se participa de um processo de negociação há um certo engajamento. Mas acho que nenhum processo de negociação é inexorável, porque participar ou não depende da consciência sobre a conveniência para os interesses do país de participar ou não dessa negociação. Sérgio de Souza - Depende até das eleições para presidente. Samuel Pinheiro Guimarães - Das eleições, de convicção do próprio governo. Enfim... Sérgio de Souza - O governo está convicto, o senhor tem dúvida? Samuel Pinheiro Guimarães - Não respondo pelo governo. Não posso interpretar o que o governo pensa. CA52_jul_2001 A CPI criada pela Câmara Federal para levantar o tapete sobre o qual circula o mais alto escalão do futebol brasileiro acabou encontrando sujeiras que envolvem desde o presidente da CBF, Ricardo Teixeira, até Pelé, levando-a a propor o indiciamento de 31 personagens, dentre eles os presidentes de federação de 21 Estados brasileiros. Isso só foi possível porque para presidi-la — por mérito da Constituição do país, como ele próprio diz — foi escolhido um deputado histórico, não apenas pela postura mostrada nesse episódio, mas por sua trajetória, idéias e propostas, como se verá nesta entrevista. 6 Trecho I Juca Kfouri - O Fernando Henrique disse que a seleção brasileira precisava de um sonho para vencer, mas ele não foi capaz de vender um sonho para o Brasil. Quem é capaz de vender esse sonho para o Brasil hoje, quais forças políticas? Aldo Rebelo - Uma só força política não tem condições para isso, e nem só os partidos políticos. É preciso organizar um movimento nacional de reconstrução, não é nem de reconstrução material, é até de reconstrução espiritual. Uma nação precisa de moeda estável, orgulho nacional e esperança coletiva. E não temos nenhuma das três coisas hoje: nosso orgulho nacional está virando um pouco o complexo de vira-lata do Nelson Rodrigues; a moeda, coitada, até o Cavallo anda chutando, ele falou: "Não pus o real na cesta de moedas do plano argentino porque essa moeda não existe". E a esperança não é propriamente um traço dos atuais governantes, e acho que isso está em partidos e em pessoas. O Celso Furtado é uma pessoa que acredita no país. Você tem intelectuais latu sensu na imprensa, na universidade, que têm uma confiança na capacidade do Brasil em encontrar um outro caminho, e acho que essas forças podem e têm condições de governar o Brasil com um espírito de unidade, e a esquerda também precisa ser melhor compreendida, até porque na história do Brasil não houve um movimento que tenha levado o país à frente e que fosse de uma só corrente. Carlos Castelo Branco - Dizem que, na China, as pessoas que vão lá podem fazer crítica ao governo desde que no âmbito privado, se for para a imprensa as retaliações são muito fortes. Imaginando um governo do PC do B, como SERIA a relação com a imprensa? Aldo Rebelo - Eu sinto dificuldade em comparar a experiência de democracia. Vou muito a Cuba e gosto muito do país. Sou do grupo parlamentar Casa de Cuba e sempre sou cobrado porque lá HAVERIA uma ditadura. Eu digo: "Tudo bem. No dia em que construirmos um modelo de democracia, que pudermos oferecer aos cubanos melhor do que o que eles têm, acho até que você tem autoridade para isso. Você acha que Cuba deve ter um presidente do parlamento como o Jader, é isso? Leva o PFL para Cuba, leva o PSDB, é isso que vocês tem a oferecer?" Aí digo: "Então deixa o pessoal lá com a experiência própria". A China também. Qual foi a experiência de democracia que a China conheceu? Mesma coisa em relação ao Iraque, eu digo: "Olha, aquilo ali foi dominado quatrocentos anos pelos turcos, vai ver lá qual foi a experiência democrática que os turcos ensinaram aos árabes. Depois chegaram os ingleses e os franceses, a partir do início do século, vá ver a experiência de democracia, quantas universidades foram construídas, qual o sistema de saúde que foi construído, qual a infraestrutura, quantas eleições aconteceram durante a dominação inglesa e francesa no Oriente Médio". Em relação à China, é do mesmo jeito. O que os chineses aprenderam com os ingleses? Com os russos, com os franceses? Cada um tinha um porto ali, a Inglaterra fez uma guerra para obrigar o chinês a usar o ópio. Era a antiguerra do narcotráfico, o chinês não queria, eles impuseram pela guerra. Eu digo: "Que experiência o Ocidente ou a democracia que aqui conhecemos vai ensinar a esses povos?" Não me sinto autorizado, portanto, a discutir ou dar lições; a nossa experiência é diferente, é outra sociedade. Não somos tão ocidentais como alguns imaginam, mas também não somos orientais, e já consagramos a invenção dos franceses, dos três poderes, e isso deve ser preservado e democratizado. O risco — se há — de autoritarismo não é o risco do autoritarismo dentro da fronteira de um país, é um autoritarismo mais globalizado, você governar os povos por cima dos governos nacionais. Se você domina os satélites, tem uma moeda que é mundial, uma língua que é mundial, você tem o domínio da cultura no mundo, de cada cem filmes exibidos no mundo, 88 são americanos, 80 por cento da informação que circula no planeta é produzida num único país, então você tem a versão do que acontece no mundo e não o que acontece no mundo. Se o americano bombardeia um campo de futebol no Iraque, isso vira um acidente de guerra; se um iraquiano mata uma criança americana, isso vira uma tragédia no planeta. E isso é, de certa forma, uma ameaça a um processo de democratização. Trecho II Sérgio Pinto de Almeida - E como é a escolha dos membros da CPI? Aldo Rebelo - O partido escolhe os membros na proporcionalidade das suas bancadas. O PC do B tem direito a um, porque é uma bancada pequena; o PFL tem direito a quatro; o PSDB tem direito a cinco; o PT tem direito a três... E é a bancada que escolhe, mas geralmente ela delega ao líder escolher. É a forma mais democrática. E o maior partido indica o presidente, o segundo maior indica o relator. A minha indicação foi do PFL, mas houve uma rebelião na bancada, meu nome iria ser derrubado na própria comissão, houve uma articulação nesse sentido, que depois conseguimos superar porque o PT ameaçou retirar os membros da comissão se isso acontecesse. Juca Kfouri - De todo jeito, o que se imaginava, assim que a CPI foi instalada, é que ela TERMINARIA em pizza, dada a composição da própria CPI, integrada pelo pessoal da "bancada da bola". Que, ao fim, não conseguiu impedir o essencial, a investigação, não conseguiu impedir que viesse à luz esse relatório que está aí. Aldo Rebelo - Foi um parto. Juca Kfouri - E tinha um dado da bandidagem que era a favor da CPI: ao Eurico Miranda, para se cacifar junto à superestrutura, interessava votar a favor da quebra de sigilo do Ricardo Teixeira, que era a maneira de ter o Ricardo Teixeira na mão para fazer o acordo adiante, como fez. Agora, onde você avalia que eles erraram, como deixaram que viesse à luz esse documento que entrega todos eles? Aldo Rebelo - Eles não esperavam que propuséssemos o requerimento de quebra de sigilo logo no início da investigação. Foi um lance de risco, muitos companheiros disseram: "Retira, porque vai perder". Eu disse: "É melhor perder agora, porque encerra agora, e não cria nenhuma expectativa. Ou aprova isso e a Comissão ganha força e prestígio para investigar mais, ou encerra logo agora. Se não tiver quebra de sigilo do Ricardo Teixeira, do J. Háwila, da Traffic, da CBF, e das federações, isso aqui não vai pra frente". E conseguimos aprovar 7 por essa diferença pequena, 14 a 11. Aí ganhamos força, e eles ficaram num certo desalento. Num determinado momento pensaram apresentar um requerimento para encerrar os trabalhos da CPI. Recebemos um "aviso" da CBF: "Olha, vocês se preparem porque vamos encerrar os trabalhos com requerimento. O Aldo vai protestar, o Eduardo Campos vai protestar, mas o requerimento vai entrar e vai encerrar os trabalhos". Mas eles mesmos perceberam que nós também fomos beneficiados por uma coisa que eles criaram para eles e que acabou nos ajudando, que é o poder do presidente da CPI e do relator. O presidente da comissão pode fazer um monte de coisas, pode impedir requerimento de ser votado, pode nunca colocar em pauta o requerimento, por exemplo. Então eles erraram ao acreditar que iriam ter condições de controlar a comissão, subestimaram alguma coisa também. Sei que o desespero ficou mais para o fim. Achavam que não haveria condições de produzir o relatório, ou que PODERIAM EMENDAR o relatório. Espalharam: "Vamos emendar o relatório". E eu: "Só vai ter emenda naquilo que o relator aceitar e o que não aceitar não vai ter emenda. Vocês não vão mutilar o relatório". Sérgio Pinto de Almeida - Deputado, lendo os jornais, soube que o Ricardo Teixeira teve treze indiciamentos, mas não vi a lista das acusações detalhada. Imagino que esse relatório seja um manancial de pautas sem fim, um jornal com poder econômico poderia botar repórteres em campo, deve ter ali um festival de caminhos, de denúncias e, no entanto, pela cobertura da imprensa não senti isso. Aldo Rebelo - Concordo, acho que se perdeu do ponto de vista do noticiário, não do documento que está aí, que tem muita coisa importante. A CPI fez uma investigação profunda no caso da CBF. Contamos com a colaboração não apenas dos técnicos da Câmara — contamos com o apoio voluntário do Conselho Nacional de Contabilidade. Pedi para registrar nas folhas funcionais desses contadores um elogio da CPI, pois trabalharam de graça, fizeram um trabalho com profissionalismo exemplar. Mesmo os técnicos da Receita, do Banco Central, do Tribunal de Contas. Sérgio Pinto de Almeida - E por que a imprensa não se interessou? Aldo Rebelo - Talvez porque o relatório seja muito grande. Mas fica na idiossincrasia de um ou outro jornalista achar que aquilo não foi importante. Acho que os que leram o relatório puderam perceber — sei que o Juca leu no primeiro momento, mandei para outros editores também, dizendo: "Dá uma olhada, pelo menos no roteiro". Interrogamos 27 presidentes de federações! Ouvimos coisas absurdas. O presidente da federação de Minas comprou uma fazenda! Na declaração de renda dele tinha uma fazenda no Mato Grosso. Quando vimos a movimentação financeira da federação, tinha sido paga com dinheiro da federação! Juca Kfouri - Que tinha sido emprestado pela Federação Paulista... Aldo Rebelo - Sim. Ninguém sabia disso. As federações não sabiam o que acontecia na CBF. Os presidentes de federação me falaram: "Somos convidados uma vez por ano, recebemos a passagem, o nome do hotel. Chegamos lá, ficamos no hotel, tomamos o café da manhã, 2 horas da tarde tem a reunião da CBF. Chega lá, em cada mesa tem um calhamaço, o cara lá lê: "Em votação as contas da CBF ‘aprovado’. Ninguém tem coragem nem de abrir. Aí, vemos na CPI a conta da CBF: gasta, por ano, 14 milhões de reais em passagens aéreas. A Câmara, 513 deputados, viajando toda semana, todo esse pessoal que depõe, em todas as CPIs, viagens para o exterior, tem Mercosul, tem ALCA, tem isso, tem aquilo, tudo isso junto dá 20 milhões. A CBF gasta 14, pagando tarifa cheia. Se você atravessar a rua e disser "quero uma passagem para Maceió, qual é a promoção que tem?", o sujeito vai dizer: "Tem 20 por cento, tem 30 por cento, 40 por cento". E você compra 14 milhões em passagem em tarifa cheia, é evidente que isso é um alto escândalo. Trecho III Juca Kfouri - Quando fui depor na CPI, com o José Trajano, com o Tostão, vi que tinha lá, pra minha felicidade, uma larga entrevista que dei à Caros Amigos, número 1, que muita gente achou um exagero, que só uma mente doentia SERIA capaz de dizer as coisas que estavam ditas ali. Hoje, você DIRIA que as pessoas que denunciavam ou denunciam as sujeiras no futebol brasileiro só conhecem ou conheciam a ponta do iceberg? Sabiam muito menos do que hoje se sabe? Aldo Rebelo - Com certeza, as pessoas muito mais desconfiavam do que tinham informações disponíveis, embora já circulassem informações. Mas acho que o que a CPI investigou, e o que ela descobriu, não só deu razão de sobra às denúncias como enseja uma investigação ainda maior que pode ser feita pelo Ministério Público. Viu-se que há ausência de qualquer tipo de regra num universo — o do futebol — que movimenta 16 bilhões de dólares por ano. O Ricardo Teixeira usou como argumento que é coisa privada, que não devia ser investigada porque é empresa, mas não é, não tem como ser, não tem como haver três CBFs concorrendo uma com a outra, nem três federações paulistas. Eu acho que isso, o volume de dinheiro, a falta de pudor, de limite daqueles que mexem com os negócios do futebol, fabricou escândalos dos quais a CPI só descobriu uma parte, e a outra parte ainda está para ser investigada. Sérgio de Souza - E por que o Pelé está contra a CPI declaradamente na imprensa? O que se TERIA DESCOBERTO? Aldo Rebelo - Na empresa do Pelé, e em outras que investigamos, encontramos muitas irregularidades, e é por essa razão que se produziu o indiciamento do responsável jurídico da empresa, que é o Hélio Viana, que é sócio do Pelé. Agora, o Pelé tem o direito de se manifestar, de dizer o que acha. Até contra a vontade de alguns membros da CPI, e de um setor da imprensa, fiz pessoalmente um esforço — em certa medida, posso ter de pagar um preço por isso — para deixar o Pelé fora dessa investigação. Se o Pelé quer entrar de qualquer jeito nessa confusão, ele entra. Ninguém pode impedir. Márcio Carvalho - Por que você quis excluir o Pelé? Ele está acima do bem e do mal? Aldo Rebelo - Por uma atitude política, queria separar o Pelé, o jogador... Marina Vergueiro - O mito... 8 Aldo Rebelo - O mito. O mito. Acho que as pessoas, os países, as nações precisam disso, precisam de ter referências. É uma opinião pessoal. Não tem nenhum ídolo santo. Quem é santo, o Beckenbauer, o Maradona? Pelé é o nosso futebol. O futebol deve muito a ele, não só o brasileiro, o futebol do mundo inteiro deve muito ao Pelé. Não tem nem como pagar esse tributo, essa dívida ao Pelé. Sérgio de Souza - Mas aí lhe DARIA o direito de ser desonesto nessa altura da vida, depois de ser o Pelé? Aldo Rebelo - Não. Então, o seguinte, depois do futebol, ele criou empresas e foi ganhar dinheiro com essas empresas, e arranjou um responsável por isso. Qualquer pessoa que conversar com Pelé saberá que ele não tem jeito de empresário, não tem vocação, arranjou alguém para fazer isso. Nunca tive certeza se ele sabia de tudo que era feito nas empresas dele, em nome dele. Desconfio que não. Então, arrastar o Pelé para essa confusão vai criar muito nome para a CPI, uma polêmica grande, mas o resultado vai ser o quê? Vai pôr o Pelé nessa confusão sem você ter certeza disso? Então eu disse: "A providência que tem que ser adotada é: primeiro, a empresa dele vai ser investigada; e, segundo, o responsável pela empresa vai ser ouvido e vai responder por aquilo que for encontrado de irregular na empresa e, se necessário, vai ser indiciado". E achei que esse foi o procedimento mais adequado, porque não deixamos de investigar a empresa dele, não deixamos de investigar o responsável pelas empresas, que é o sócio dele, e acho que isso é o que deve ter posto o Pelé contra a CPI, feito um certo acordo ali com o Ricardo Teixeira e com o governo para encontrar outros caminhos, mas acho que a CPI, do meu ponto de visto, fez o que DEVERIA TER FEITO. Trecho IV Juca Kfouri - Falando em lato sensu, QUERIA que você falasse do seu projeto em defesa da língua portuguesa, que te custa, por exemplo, ser ridicularizado pela revista Veja. Aldo Rebelo - Semanalmente. É a única revista americana escrita em português. Mas, só voltando à mandioca, antes de falar do idioma, é que o milagre do cultivo da mandioca é que você não precisa colhê-la imediatamente. Se você não colher o milho, ele apodrece, se não colher o feijão, ele apodrece, a mandioca você pode deixar um, dois, três anos, que ela passa pela seca. Nenhuma lavoura passa pela seca, a mandioca você planta, ela cresce, absorve a água de maneira muito particular, vem a seca, ela continua lá e depois você colhe. Por essa razão, ela serve como alimento até nas terras mais pobres. O idioma é parte também da nossa identidade. O idioma sempre foi instrumento de guerra, aquilo que o dominador usava para implantar o seu modelo de sociedade, a sua economia, a sua cultura... Mylton Severiano - Os romanos diziam: "Onde estiver a língua latina, ali estará Roma". Há 2.000 anos. Aldo Rebelo - Exatamente. Somos resultado disso, a língua latina na península Ibérica, não se falava o latim por ali? O português é um pouco resultado desse processo também, porque havia centenas de línguas e de dialetos indígenas e, com a presença dos africanos, também eram dezenas. Antes do português tinha o nheengatu, a língua geral, a língua boa, que na Amazônia até hoje ainda falam os índios, os caboclos. Porque assim podem se comunicar entre eles. Um tucano não se comunica com o outro porque são línguas diferentes, então às vezes eles aprendem essa língua geral para se comunicar. E hoje o inglês é uma espécie de língua geral do império, é considerado um ativo estratégico da hegemonia americana, não só a hegemonia comercial e financeira, é a cultural, é a política, é a ideológica, para vender de tudo, dos valores até os McDonald’s, e ao mesmo tempo o idioma está se transformando numa espécie de retaguarda defensiva dos povos e das nações que enfrentam a pressão globalizante. Então pensam que é uma coisa nossa, do Brasil, um projeto de um ou outro que se preocupa com isso. A China, a França, a Rússia têm medidas parecidas, para falar de gigantes, e pequenos como a Islândia e a Lituânia. Na Lituânia houve uma certa russificação da língua durante o período da União Soviética, hoje estão rebatizando tudo, encontrando os fonemas do lituano para batizar as coisas que são deles; na Islândia, que é um país de 250.000 habitantes, todos falam inglês, mas não usam uma palavra em inglês que não seja quando conversam em inglês. Tudo o que aparece de novo em inglês eles procuram no islandês as palavras, os fonemas, que denominem o fenômeno da vida econômica, comercial e cultural. Mylton Severiano - É o caso do Timor Leste também. Aldo Rebelo - O que aconteceu com o Timor? Quando a Indonésia invadiu, em 1975, proibiu a fala, o ensino e a aprendizagem, proibiu tudo. Wagner Nabuco - Tem gente saindo daqui pra lá para voltar a ensinar o português. Aldo Rebelo - Quando o Timor restaurou a independência, a primeira providência foi restaurar o ensino e a fala do português. E a primeira ajuda que o Brasil deu não foi de medicamentos, máquinas, equipamentos, foi material didático e professores de português. Então, o projeto é para defender e preservar a língua portuguesa, o que coíbe de estrangeirismos é quase insignificante, porque você tem de permitir o uso do inglês e, no que diz respeito à liberdade de expressão artística, cultural, essa é a nossa tradição. A restrição é ao abuso, substituir palavras já existentes em português, como é o caso de delivery é evidente que é um abuso. Que me permitam os jornalistas esportivos, o play off é um abuso. E é evidente que essa coisa funciona como forma de diferenciação, de exclusão, você tem a exclusão pela renda, pelo nível cultural e, agora, também porque um sabe falar um português cheio de expressões em inglês e o outro não sabe. Sérgio de Souza - Agora, o que determina exatamente o seu projeto? Aldo Rebelo - O artigo 2o, que é a essência do projeto, determina medidas do governo, junto com a imprensa, com a universidade, para fortalecer e melhorar o ensino e aprendizagem da língua portuguesa. Vou dar só um exemplo: a carga curricular do ensino do português, nos cursos de comunicação, é de dois semestres, em que resulta isso? No apresentador de televisão que vai anunciar a descoberta de uma nova estrela na constelação de Órion e diz que a descoberta foi na constelação de "Oráion". Ele esqueceu que tem uma palavra grega, 9 latinizada, que veio para o português há não sei quantos séculos, e ele pronuncia "Oráion". Então, o estudo do português é a melhor forma de defender, de melhorar o ensino, tem de ter uma carga horária maior. O bioquímico ou o físico pode até ter dois semestres de língua portuguesa no curso, agora, o comunicador não pode. E, além do mais, tiraram o ensino de língua portuguesa do 2º grau, praticamente. Da universidade também, você tem de aprender tudo no 1º grau. O ensino da língua portuguesa, não sei se já mudou, virou de "comunicação e expressão", que é uma coisa também muito diluída na época do regime militar. Então, melhorar o ensino e a aprendizagem, criar um conselho nacional da língua, como a França criou, pode ser uma saída, não deixar só na mão da academia, que não tem tempo, não tem meios, e não pode ser uma coisa só do governo, tem de chamar a imprensa, os meios de comunicação, os jornais já não criaram seus consultores de manuais de redação, de não sei quê? Esse pessoal precisa participar também, da televisão, da universidade, o lingüista, mas, principalmente, o filólogo. Se o filólogo tivesse dito "aí não use delete", porque no Aurélio tem lá um verbinho meio arcaico, já meio aposentado — como diria o Monteiro Lobato, que as palavras se aposentam e saem de circulação —, mas na hora da emergência ele pode voltar, que é o "delir", que é o delere do latim, que dá em "delete", mas o sujeito não conhece isso e não tem obrigação de conhecer. CA53_ago_2001 Pergunte ao professor Aziz Ab’Saber qual é o seu currículo. A resposta vem curta e imediata: "Sou professor da Universidade de São Paulo há 36 anos e meio". Isso, para ele, é mais importante do que mencionar todos os títulos acadêmicos – da graduação em geografia na USP a titular do Departamento de Geografia, além de professor honorário do Instituto de Estudos Avançados e professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, sempre na USP. Mas a profunda preocupação com o mundo em que vivemos levou o cientista humanista a circular por espaços que transcendem a universidade: presidiu o Condephaat – Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arquitetônico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo, atuou como conselheiro de Lula durante as caravanas de cidadania da campanha presidencial de 1989 e trabalha agora em um projeto de educação e lazer na periferia de São Paulo. Sua maior ambição: ver o conhecimento a serviço do homem e do planeta. Trecho I José Arbex - O senhor é grande amigo do Lula, não é Aziz Ab’Saber - Na realidade sou um amigo fiel do Lula, vocês sabem disso. Encontrei-me com ele um dia numa reunião, há muitos anos, e na época ele não gostou da idéia de desenvolver estudos ambientais. E eu digo: “Olha, Lula, pelo contrário, a temática do meio ambiente é fundamental para este país. Há muitas coisas sérias que vão envolver o prestígio dos políticos de esquerda na questão ambiental”. Ele ficou quieto. Aí, alguém virou para ele e disse: “Lula, estou achando esquisito você não ter ouvido isso que o Aziz disse. É fundamental a questão ambiental num país como o nosso, cheio de problemas”. E o Lula foi para casa e guardou esse entrevero. Eu já sabia que o PT não dava muita atenção, quando ajudei a fundar, em 1973 parece, a Comissão de Defesa do Patrimônio da Comunidade. Eu, algumas pessoas da USP, o Flávio Bierrenbach, professores, advogados, agrônomos, profissionais da área pública. Desde aquela época eu documento o desenvolvimento das questões ambientais em São Paulo e no Brasil. Então, eu sabia do que estava falando. E o Lula ficou quieto. Tempos depois, me encontrei com ele e disse: “Ô, Lula, posso te dar um conselho? Você tem que visitar sua família lá em Garanhuns”. Eu sabia que ele era de lá. Ele disse: “É, preciso, mas se eu for lá agora vão dizer que estou fazendo campanha eleitoreira. Depois das eleições eu vou”. Ficou nisso. De repente, estou lá em casa, com a agenda totalmente cheia, palestra aqui, conferência ali, é Manaus, Fortaleza, Salvador, aí ele telefona para casa e diz: “Aziz, estou indo para o Nordeste e quero a sua companhia”. Eu falei com a minha família. Minha mulher é dez mil vezes mais política que eu, gaúcha, não é? Ela virou e disse: “Não, senhor, desmarca todas essas coisas e vai com o Lula”. E eu tive que desmarcar tudo e fui. Verena Glass - Já era a caravana, professor? Aziz Ab’Saber - Uma das primeiras caravanas. Foi o Vicentinho, o Suplicy, o Lula, a Marta, eu, e mais os secretários dele. Foi uma excursão fantástica. Das minhas excursões de geógrafo, essa foi a melhor. Porque eu não ia como político. Como vocês sabem, nunca disputei qualquer lugar na política. Eu queria era aproveitar da viagem, porque conhecia o Nordeste desde 1952 e queria saber como é que estava em 1987. Foi ótimo, porque vi como a burguesia de Recife comprou propriedades na zona do agreste e transformou em fazendas de gado, um gado melhorado, e tal. E depois fui indo, até que cheguei no sertão. E Garanhuns, que também conheci mocinho, estava quase irreconhecível. Na época em que estive lá havia plantação de café em clareiras nas matinhas biodiversas. Agora, esses lugares eram favelas. Para mim, foi sendo um motivo de conhecimento. Aliás, não escrevi ainda sobre essas viagens porque não consegui os roteiros com a toponímia dos lugares visitados. Estou pelejando para isso. Mas então fomos para Garanhuns, dormimos lá e no outro dia, para minha surpresa, o Lula disse: “Vamos para o sertão”. Era bem lá embaixo, bem longe. E em pleno sertão tinha uma planiciezinha aluvial, um pouco alongada, e por lá estava Vargem Grande, onde Lula nasceu. Quando o pessoal chegou lá, foi uma festa. Estava vivo ainda um irmão dele, muito velhinho, e as tias, e as primas. Muita gente de todos os arredores. Uma fazendinha simples. Mas, para vocês verem, é difícil a gente tratar como cientista em relação aos assessores de políticos. Eu não conseguia que um fotógrafo fotografasse as coisas geográficas que eu precisava. Ficavam fotografando outras coisas, entende? Pela primeira vez senti que IA TER dificuldade nas viagens porque não tinha colaboradores sensíveis. Verena Glass - O papel do senhor nessa caravana era assessorar o Lula? 10 Aziz Ab’Saber - Quando fosse possível, porque ele é super-solicitado. Então, não dava para falar muito, mas eu ia falando na medida em que estava no ônibus. Um dia eu disse: “Olha, Lula, vocês estão vendo aqui uma coisa – era um ano muito seco – fantástica. Isso aqui se chama agreste, região de pequenas propriedades, sítios, mas agora, como está na seca, o sertão chegou ao agreste”. Foi a primeira observação que eu fiz, num ano seco. Aliás, na hora em que for falar da energia, vou falar dos anos padrões, os secos e os chuvosos. Aí saímos de lá, subimos de novo a Borborema e descemos para Alagoas. Então é que eu vi o alto sertão. O alto sertão é o que está longe, porém em situação baixa. Quer dizer, a palavra alto é no sentido de distante. Descemos lá de Garanhuns para as cidadezinhas do sopé sul da Borborema, que é um maciço de rochas antigas, e aí iniciou o alto sertão em colinas baixas. Na primeira cidadezinha tinha uma fila de quinhentas latas com as pessoas sentadas, com paciência, esperando. Passavam os caminhões com água, mas era para vender barato para os fazendeiros, para o gado. O povo é tratado pior que gado. Não tinha água. A fila era curiosa. Eles põem na ordem de tamanho: desde a maior até chegar a uma latinha lá no fim. Isso está se repetindo este ano, pelo que eu soube. Aí fui num bar, estava com uma sede desesperadora. Pedi uma garrafinha de água mineral e o homem disse: “Não tem. Não vale a pena comprar água mineral porque ninguém tem dinheiro para adquiri-las e eu não vou até Garanhuns para comprar água mineral”. Era assim, até pra gente dava reflexo. E depois foram acontecendo coisas. Uma hora encontramos um grupo de pessoas no meio da estrada – um dos componentes do grupo escreveu sobre isso, acho que no Jornal do Brasil – e uma senhora, uma cabocla muito enérgica, parou os dois ônibus e mais alguns carros, subiu num barranquinho de terra na beira da estrada e começou a perorar: “Isto aqui é um absurdo! Imagine o senhor que nós estamos passando fome. Fomos falar com o prefeito” – o prefeito de Águas Belas, ali perto – “e ele disse que não PODIA FAZER nada porque não tinha recursos, não tinha verba, não tinha coisa nenhuma. Nós pedimos pão...”. Fiquei sentimentalizado, parece uma coisa do Oriente “...Pedimos pão porque nós e nossos filhos estamos passando fome. Eles ficaram lá na rocinha e nós estamos aqui para protestar”. Aí, um velhinho virou-se com um pedaço de palma e disse: “Esta é a única comida que nós temos pra fazer o chá da tristeza e da fome, que não tem gosto de nada. A gente torra os espinhos, depois esmaga e faz um chá”. Aí o Lula virou e disse: “Suplicy” – e mais um outro lá –, “vocês dois vão falar com o prefeito”. E lá foi o Suplicy falar com o prefeito, com aquele ar muito simples, muito lento. Verena Glass - O Suplicy tinha algum cargo naquela época? Aziz Ab’Saber - Senador. Que é o cargo que ele deve pensar nele sempre... É um dos melhores senadores que o Brasil já teve, a meu ver. Aí, ele chegou lá no prefeito e disse: “Vim aqui porque aquele pessoal está passando fome e eu quero levar pães para eles”. O prefeito disse: “Só se o senhor comprar”. O Suplicy: “Pago metade e o senhor paga metade”. Pediu duzentos pãezinhos e o prefeito pagou cem. Aí, o prefeito vira cinicamente para o chefe de gabinete e diz: “A sua padaria hoje vai ter bom faturamento”. Eta país! Trecho II Sérgio de Souza - Voltando à seca: existe uma viabilização técnica para o problema da seca no Nordeste? Aziz Ab’Saber - Esse é o assunto principal. Vou ser rápido, porque já escrevi recentemente na revista número 36 do Instituto de Estudos Avançados; forcei a entrada de um dossiê Nordeste-Seca, e escrevi um trabalho de umas quarenta e tantas páginas e uma bibliografia de umas vinte páginas sobre a seca no Nordeste, porque conhecemos mal a literatura acumulada, infelizmente. Primeiro lugar: o Nordeste semi-árido é a região mais povoada do mundo, isso é um problema muito sério. Tem gente demais, e enquadrada por uma estrutura agrária extremamente rígida e antidemocrática. Marina Amaral - Região mais povoada do mundo de zonas semi-áridas? Aziz Ab’Saber - De zonas semi-áridas. Deixa eu explicar como é, isso não é meu. Nessa revista, coloquei uns fragmentos de leitura depois do meu artigo e contei como vim a saber disso. Estávamos fazendo uma excursão, em 1956, com geógrafos do mundo inteiro, pelos sertões. E, às tantas, o professor Jean Dreisch, que era um gigante estudioso do Saara, chegou para o Mário Lacerda de Melo, da Universidade do Recife naquela época, e disse: “Faz três dias que estou andando por isso que vocês chamam de sertões e estou vendo uma região quente, seca, com caatingas, vegetação rústica, rios que perdem correnteza durante seis meses, correm os outros seis, e vi gente por toda parte. Os desertos não são assim, tem gente num oásis e, centenas de quilômetros depois, um outro agrupamento de pessoas. O que transita são as caravanas, para vender artesanato e alimentos. Então, no deserto verdadeiro, a situação da população é trágica, porque é pouca gente concentrada e não querendo que tenha mais gente porque não há recursos para todos. E aqui não. Estou vendo gente por toda parte, na beira dos rios, na beira dos riachos e ao longo das estradas abertas por vocês nos últimos trinta anos, e nos cruzamentos etc. E vou lhes dizer: conheço as regiões semi-áridas do mundo inteiro, não existe nenhuma mais povoada que a do Nordeste. Por isso, vocês vão ter os maiores problemas possíveis no futuro, porque o crescimento demográfico aqui é muito grande e vocês mesmos estão me ensinando que as famílias de pessoas pobres têm de cinco a treze filhos no sertão”. É a realidade: como alimentar todas essas pessoas se durante o período de seca os fazendeiros que têm propriedades grandes deixam de empregá-las? Eles empregam por dias. Na viagem a Águas Belas, duas ou três senhoras sertanejas que entrevistei diziam: “A gente arranja serviço por três a quatro dias, sofridamente, pedindo, implorando. E isso não dá para comprar uma cesta básica”. Só para vocês terem idéia das cenas, nessa caravana, na terra lá da mulher do Collor... Trecho III José Arbex Jr. - Quando o senhor falou de mudança climática, não mencionou esse problema da Convenção de Kyoto, não tem nenhuma relação com isso? Aziz Ab’Saber - Tem. Mas a Convenção de Kyoto cuidou mais da poluição e do buraco de ozônio... 11 Marina Vergueiro - Emissão de gases... Aziz Ab’Saber - Emissão de gases e outras coisas mais. Desde o começo da era industrial, foi progressiva a emissão de gases atmosféricos, até que chegou num quadro muito dramático neste fim de século 20. Então, têm surgido várias fórmulas para ou compensar essa emissão, através de uma captação, esse é o Projeto Floran, depois eu falo para vocês, ou para penalizar – mais ou menos como nesse nosso racionamento forçado – os que poluem, Kyoto foi nessa fase. Desde algum tempo alguém quer lucrar com a poluição, há especulação com todos os espaços e todas as coisas. Todo espaço virou mercadoria, foi a melhor descoberta que os geógrafos jovens do Brasil fizeram, eles dizem a toda hora: “Hoje, todo espaço é mercadoria, se eu puder tirar dinheiro da pedra, eu tiro”. Aliás, há coisa de pouco tempo houve um projeto de duas pessoas para instalar, na Pedra Grande de Atibaia, lá em cima, um hotel. Alguém foi chamado para planejar etc., um cidadão queria vender lotes na base da Pedra Grande. Das coisas da minha vida, foi a mais extraordinária, eu compareci a uma reunião em que os ambientalistas, que naquele tempo não eram tão “ONGs” como são agora – porque ONG tem de todo tipo, algumas até muito boas –, mas, naquele tempo, comparecíamos em blocos na Câmara Municipal. Então, entramos. Primeiro, a mocidade que sempre nos acompanhava, depois as pessoas que iam falar, os professores – eu e mais outros –, depois entraram os vereadores, e, por último, as duas pessoas que queriam tirar dinheiro da Pedra Grande e suas encostas. As duas já estremeceram, porque todo aquele aparato ali, a mocidade aguerrida... aí falou um, falou outro etc. Aí falei, expliquei como é que se formou a Pedra Grande, que era um Pão de Açúcar deitado, e que não devíamos repetir o caso do Pão de Açúcar em Atibaia, e que poucas pessoas iriam para aquele hotel, que seria um hotel paradoxal e bizarro, que, por outro lado, lá em cima havia cactos e bromélias relictos de uma vegetação mais ampla que havia entre 23.000 e 12.000 anos atrás, que não podia ser eliminado, e pau, pau, pau. “Agora, se vocês quiserem, na base da Pedra, fazer chacrinhas, que elas fiquem sob o controle dessa mocidade que tá aí e se conservarem a transição entre o pedrão e a mata, o máximo possível da cobertura vegetal”. Virou-se um dos dois interessados, a que ia fazer o hotel, famosa empresária teatral, e disse: “Ah, depois disso que o professor Aziz acaba de falar, vou ser sincera: a Pedra Grande é da gente de Atibaia e eu retiro o meu projeto”. O outro a acompanhou: “Eu também retiro”. Foi a cena mais dramática da minha vida em termos de defender algo, ecológica e ambientalmente. Atibaia deve isso a muitos de nós. Trecho IV José Arbex Jr. - Professor, QUERIA que o senhor fizesse um balanço da Universidade de São Paulo hoje, à luz da política do governo Fernando Henrique para a educação. Aziz Ab’Saber - Quando falo que há uma dicotomia entre o poder e o conhecimento, estou pensando no conhecimento seletivo, da melhor qualidade, que é produzido nas universidades. Mas a universidade tem um grande problema, ela não é uma máquina de produção em nível de qualidade sempre elevado. Tem gente que produz razoavelmente, sincopadamente, tem outros que se dedicam mais ao ensino, recorrendo à recuperação do conhecimento, e tem outros que estão preocupados apenas com sua carreira e projeção de seu próprio nome. Mas as universidades todas têm uma mocidade fantástica. Quando falo com o pessoal da Faculdade de Direito, fico boquiaberto com a reação deles. Um dia desses, a turma do Centro Acadêmico XI de Agosto foi lá em casa para conversar sobre o problema em que estou trabalhando – populações da periferia, para entender comparativamente os espaços públicos abertos de São Paulo. Tem parques metropolitanos, parques distritais, jardins e parques de bairros, parques geriátricos, parques para adolescentes, parques para crianças, todo um rol feito por Garret Eckbo, um dos maiores paisagistas da América. Resolvi entender o que PRECISARIA EXISTIR como parque em lugares onde não há nada, e comecei a estudar a geografia dos pequenos espaços onde as crianças não têm água limpa para beber, não se alimentam direito, não têm roupas, mas jogam bola da manhã à noite. E estou propondo um projeto de minivilas olímpicas/Clube da Comunidade, mas com muitas estratégias. A estratégia principal aprendi com o motorista que me levou num desses bairros e me disse: “O senhor sabe uma coisa, o narcotráfico se desenvolve muito entre as crianças da periferia porque as mães não estão próximas. Se houvesse um jeito de aproximar as mães do lugar onde as crianças estão brincando, jogando, ATRAPALHARIA aqueles que estão querendo encontrar passadores de crack, de droga. E as mães, inclusive, PODERIAM FALAR na segurança sem ser juradas de morte”. Sérgio de Souza - O senhor está percorrendo todas as periferias? Aziz Ab’Saber - Primeiro, propus um projeto piloto na chamada Cohab adventista. Em segundo lugar, a gente tem feito incursões na zona leste, Itapevi, Carapicuíba etc., falando disso. Não entrei ainda na favela. A favela eu considero o próximo passo para ter minivilas olímpicas desse tipo, mas é um desafio pelos problemas sociais e pela exigüidade do espaço. Nos bairros carentes, a resposta é muito boa. Consegui descobrir as líderes da Cohab adventista que falam melhor e pensam melhor que presidente e governador. A educação é uma preocupação antiga para mim e, através de minhas viagens e reflexões, consegui estabelecer um sistema de educação no Brasil. Considero a educação a recuperação do conhecimento acumulado em todos os espaços culturais do mundo. Mas é preciso ser seletivo e aí entra o segundo ponto: dadas as características do território brasileiro, é essencial conhecer a regiona-lidade das crianças, adolescentes e de suas famílias. Eles já conhecem muito, mas a escola tem de trabalhar para integrar e organizar esse conhecimento. É isso que vai evitar soluções cômodas para os que não querem resolver os problemas como a imigração ou a rotina improdutiva nas cidades, campos e florestas. Por fim, o terceiro bloco, indispensável, é o da criação de oficinas, para integrar também na tecnologia o conhecimento regional e o universal, convidando especialistas quando possível. Então, por exemplo, na beira do Amazonas, se aprenderiam as várias maneiras de construir embarcações, consertar motores. E poderia haver algumas atividades específicas para as meninas, ao lado dessas que são para todos, como a recuperação do artesanato, da medicina tradicional. Esse sistema 12 educacional desmonta a idéia de que a educação tem de ser igual no mundo inteiro, sendo útil para todas as comunidades em que esses jovens estão integrados. José Arbex Jr. - Mas e a USP, professor, o senhor estava falando... Aziz Ab’Saber - Pois é, a USP tem seus problemas. O último surgido é a proliferação de fundações. Os professores não concordam com os ordenados que têm e isso levou a alguns da área econômica a fazer fundações que concentram dinheiro e depois o distribuem, não para muitos. Mas os alunos descobriram que eles aplicam dinheiro e cobram. Greve geral. Invadiram o Conselho Universitário. E os alunos estão sofrendo um processo tremendo, mas são inteligentíssimos. Eles quebraram a porta do Conselho Universitário e pagaram. Se cotizaram e pagaram o conserto. O que mostra que o Brasil tem umas coisas aí... A polícia de Salvador me impressionou. Aquilo foi um motim fantástico. Minha mulher, que eu digo que é muito política, outro dia me disse: “No tempo da escravidão tinha os feitores. Os feitores do capitalismo selvagem são os policiais, controlando toda a situação dessa pirâmide disforme que temos. E eles resolveram dizer não: ‘Se vocês querem que a gente seja feitor, têm que pagar mais’ ”. Sérgio de Souza - Para encerrar, é hora de almoçar, dizem que o senhor gosta de cozinhar, é verdade? Aziz Ab’Saber - Não, eu não sou cozinheiro, sou incentivador da cozinha. Nessas minhas tarefas na periferia aos sábados e domingos, às vezes incentivei as líderes a fazer um sopão. Eu brinco com elas: “Mas um sopão de rico, o mais gostoso possível para todos vocês”. Depois incentivei a fazer a feijoada, só que os meninos que conhecem feijoada diziam: “Professor, tá muito pobre, tem pouca carne, é uma feijoada muito light, mas é gostosa, nós comemos”. Em outra ocasião, ensinei a fazer o arroz de carreteiro, lá do Rio Grande do Sul, e aí comecei a explicar por que surgiu essa diversificação de culinárias, e um dia estava explicando para meninos e mocinhas, virou-se uma delas e disse: “Professor, eu quero fazer nutrição na faculdade e o senhor já me deu a primeira aula”. Achei engraçadíssimo isso, mas observei que tem uns efeitos. Tratei culturalmente da culinária tradicional, e agora, quando estive em Portugal, vi o arroz ao tomate, e é muito fácil de fazer, vamos ensinar o arroz ao tomate. Um dia, a líder de lá disse: “Pois é, o senhor ensinou uma porção de coisas, mas não ensinou da minha terra, eu sou mineira, e o tutu de feijão não foi feito ainda”. Eu digo: “Agora é bom pra vocês inventar isso, porque aí fica quase completo. Sopão, arroz de carreteiro, feijoada, arroz ao tomate, e tutu à mineira”. Voltando ao sopão, vocês sabem como eu idealizei o sopão? Eu era menino de 4, 5 anos, meu pai, em São Luís do Paraitinga, me levou até o largo, perto da igreja matriz, num dia de eleição, e estavam enormes caldeirões – do tipo das fazendas de escravo – na praça, alinhados, com uma sopa desde a manhã, aquela água enorme, meia dúzia de pedacinhos de carne de terceira, sem um condimento, sem uma salsinha, sem um coentro, nada, e sem uma coisa para engrossar a água, aguado demais. Perguntei ao meu pai: “O que é isso, pai?” Ele disse: “Filho, isso é coisa muito séria, eles chamam isso de afogado. E o que é afogado? É a sopa que eles dão em dia de eleição pro pessoal que vem da roça votar neles”. Foi a primeira vez em que vi o problema da discriminação feita pelas elites políticas da cidade. CA54_set_2001 Entrevista editada, leia a íntegra na revista nas bancas. Não faltariam adjetivos para definir esse artista. Mas ele exercita, no palco e fora do palco, o mais consagrador de todos: fingidor (com licença de Fernando Pessoa, que atribui aos poetas tal adjetivo: "O poeta é um fingidor/Finge tão completamente/Que chega a fingir que é dor/ A dor que deveras sente"). Abu merece, sua entrevista é um show de berros, coices, pausas, frases cortantes e lembranças ternas, julgamentos assustadores (até dele próprio) e declarações generosas. Tudo fingimento? Trecho I Marina Amaral - Vamos começar pelo que você estava falando agora. Por que você odeia dar entrevistas e por que odeia ainda mais dar entrevista para a Caros Amigos? Antonio Abujamra - Não é uma pergunta boa! É uma pergunta medíocre e eu detesto perguntas medíocres. "Por que você não gosta de dar o rabo? Por que você não gosta de dar isso? Por que não gosta de dar aquilo?" Não é uma boa pergunta. Dar entrevistas? Não sou bom para dar entrevistas. Não sou uma Marilena Chauí, que sabe responder bem. Não sei fazer entrevistas boas, sei fazer entrevistas pensadas, organizadas, principalmente porque durante 51 anos dando entrevistas só me foderam nas entrevistas. Eu falo uma coisa, sai outra. Depois: "Ah, não, conosco não, conosco não". É tudo mentira, é tudo igual. Os gutemberguianos... Eu odeio esses gutemberguianos. Veio a eletrônica e acabou Gutemberg, acabou... Vocês não existem mais. Dar entrevista? Eu não quero saber de dar entrevista. Vou responder aqui de má vontade, irritado. Odeio dar entrevistas, principalmente para a Caros Amigos. Mylton Severiano - Então, posso fazer uma pergunta ou não? Antonio Abujamra - "Posso fazer?" Primeiro não pergunta, faz! "Posso fazer?" Seja macho! Mylton Severiano - Eu não fiz uma afirmação, fiz uma pergunta. Antonio Abujamra - Mas "posso perguntar" parece coisa de garotinho. Você já é um senhor idoso. Mylton Severiano - GOSTARIA de te ouvir porque não te conheço direito. Como você veio parar nas artes? Antonio Abujamra - Aonde? Mylton Severiano - Nas artes. Antonio Abujamra - Porque tentei britar pedras e não agüentei, era muito difícil. Aí, passei para as artes, para o teatro. 13 Mylton Severiano - Sem brincadeira... A primeira entrevista que me mandaram fazer, por coincidência, foi com você. Faz quarenta anos. E você estava começando a sua carreira no teatro, com Sorocaba, Senhor, não sei se você lembra. Como você veio parar ali? Antonio Abujamra - Por náusea. Por nojo. Por ódio. Eu morava em Porto Alegre... Mylton Severiano - Você nasceu em Porto Alegre? Antonio Abujamra - Não, nasci em Ourinhos, Estado de São Paulo. Educado por uma cunhada, em Porto Alegre, que me deu um certo amor pelas leituras clássicas. Estou morando em Porto Alegre, fugido de casa – porque tinha feito umas barbaridades, fugi de casa, tinha um irmão em Porto Alegre e ele disse: "Vem pra cá". Aí passei pelo Rio, vi a Copa do Mundo de 50 no Rio. Era um meninote. Aí chego em Porto Alegre e começo a estudar. Tentaram que eu fosse militar ou padre. Mylton Severiano - Coisa horrorosa. Antonio Abujamra - Aí escrevi um poema em Porto Alegre e diziam que eu era melhor que o Manuel Bandeira. Eu sabia que não era. Escrevia outro e diziam que eu era melhor que o Drummond de Andrade. Eu sabia que não era. Dirigia uma peça no teatro universitário e diziam: "Você é gênio". Eu sabia que não era. Então, achei o Brasil uma merda igual a mim e falei: "Quero sair deste país". Aliás, acho até agora uma merda. Queria sair deste país. Aí, cheguei na faculdade e disse: "Qual é o curso mais rápido que tem?" "Filosofia e curso de jornalismo." Eu tenho esse curso de jornalismo abominável que vocês têm. E fiquei três anos lá e três anos fiquei preparando a minha saída do Brasil. Tem gente que não precisa sair do Brasil. Carlos Drummond de Andrade não precisou sair. Walmir Ayala não precisou sair. Tem milhões de brasileiros geniais que não precisaram sair. Eu precisei sair. Consegui uma bolsa para a Espanha e lá fui eu. Cheguei em Madri e comecei a perceber que a minha cabeça estava igual. Por mais que estudasse lá literatura e arte, por mais que estudasse poesia, por mais que estudasse teatro, por mais que fizesse espetáculos de poesias brasileiras, percebia que a minha cabeça continuava igual, não conseguia descobrir como aumentar o volume da minha cabeça, era sempre aquilo, eu não evoluía. Aí comecei a tentar me mexer um pouquinho mais. Jovem, furiosamente delicado, falei: "Vou sair de Madri, vou botar a mochila". Porque carona, naquela época, era cultura. Então, peguei carona, com um pouquinho de dinheiro no bolso, uma miséria, desci pelo sul da Espanha todo, Granada, Sevilha, até lá embaixo, Cádiz. Claro que, levando debaixo do braço Rafael Alberti, levando Miguel Hernández, Antonio Machado, Pablo Neruda e um pouquinho de Lorca, que não me interessa muito. Uma infelicidade terem matado esse cara, poderia ter feito coisas maravilhosas. Mas, como poeta, realmente, os outros me interessam mais. Aí, eu estava lá, mas minha cabeça continuava igual, apesar das leituras. Falei: "Vou fazer o norte da África por terra, carona". Chego no Marrocos, numa cidade chamada Fez, aquelas mulheres com aquele negócio tapando o rosto: "Que cidade é essa? O que é isso? O que essas mulheres querem? Isso é machismo? Isso é capitalismo? Isso é política? Isso é cultura?" Mesmo as putas estavam com aquilo lá, mas com a bolsinha assim, tal... Não entendia direito, não conseguia entender. Ficava maravilhado com aquilo e disse: "Vou continuar assim, vou seguir pela África". Passo pela Argélia... Você perguntou como cheguei até aqui, estou contando a minha vida... Trecho II Mylton Severiano - Você disse que televisão é rascunho, é isso? Antonio Abujamra - Quando eu disse essa frase, por exemplo, para o meu amigo que está quase morrendo agora, o Walter Avancini, ele falou: "Não é, não". E tal. As pessoas que tratam a televisão como obra de arte estão perdidas; a televisão é rascunho, tem que experimentar muito, tem que ver o que quer dizer isso, ninguém sabe fazer televisão direito. Aliás, quatro ou cinco sabem fazer televisão direito, mas só dois ou três sabem ver televisão direito. Mas não tem importância, quanto pior, melhor, as coisas vão piorando... Como é que é a nossa frase aqui? "Não é uma janela aberta para o mundo, mas o nosso programa é, pelo menos, um periscópio sobre o oceano do social." Que frase mais kitsch, maravilhosa. A televisão é o que você quer que seja, já fiz tudo em televisão. Quando veio o ato institucional, virei uma puta. "O que vocês querem que eu faça? O Zé do Caixão?" Eu fazia, não queria perder o meu métier, a minha capacidade de fazer e fiz de tudo, novela, Zé do Caixão, aula de comércio exterior, um negócio assim, maravilhoso, comércio exterior! Aula de filosofia, fazíamos coisas fantásticas aqui. Não queriam dizer nada! Marina Amaral - Li em algum lugar que você ficou dezessete anos querendo fazer esse programa, o Provocações. Antonio Abujamra - É maravilhosa a história desse programa: eu era muito amigo do João Saad, trabalhei naquela emissora, cinco... não sei quanto tempo. Trabalhei na Cultura uns dezoito anos, lá um tempão, fui despedido cinco vezes da Bandeirantes, com ou sem razão, mas lembro de uma despedida que foi divertida – eu queria fazer o aniversário de São Paulo e o João falou: "Vamos fazer, 25 de janeiro". Eu disse: "Então vamos colocar Paulicéia Dilacerada, lembrando a Paulicéia Desvairada do Mário de Andrade". Ele disse: "Como? É aniversário, Abujamra, é aniversário, tem que ser festa", Eu falei: "Paulicéia Dilacerada de Amor...". Aí ele aceitou. Fizemos Paulicéia Dilacerada de Amor. E, quando terminou o programa, telefonaram e disseram: "Você está despedido". Eu botava gente sem dente na praça da Sé dizendo: "São Paulo é bonito, São Paulo é bom...". O cara no trem: "Eu tenho esperança em São Paulo...". Eu era muito amigo do João, gostava muito dele e ele gostava muito de mim, só que profissionalmente eu fazia outra coisa. Bom, esse programa (Provocações): fui no velório do João, e vi aquelas pessoas todas, que eu achava que me odiavam, me abraçar com um prazer enorme, com comoção mesmo de me ver ali. Claro que todos com terno Armani último tipo, gravata, e eu turco de mercado, assim, todo fodido. Fui lá me despedir do João, e o Ivã Magalhães falou assim: "Vai falar comigo na televisão". Eu disse: "Não vou". "Vai, quero falar com você." "Você não gostava nunca de mim." "Vai falar comigo." Aí fui e ele disse: "O que você quer fazer aqui?" Eu falei: "Você me odeia, já me botou pra fora tanto, 14 por que quer que eu faça alguma coisa?" "Você está enganado. Pra mim, você é o cara mais importante, mais inteligente da televisão brasileira, o problema é que foi muito mal assessorado." "Como?" "É. Walter Clark, Zé Otávio Castro Neves, Walter Avancini..." Pensei: "Caralho... mas tudo bem". E ele: "O que você quer fazer?" "Eu quero mudar o mundo." "Te dou o estúdio B pra você fazer um programa." Aí chamei o Gregório Bacic, o Henrique Martins e o Antonino Seabra. Gravamos o Mário Chamie, gravamos a Tiazinha, uma porção de gente. E o Ivã falou nesse dia: "Quero te apresentar o novo diretor". E me apresentou o Antônio Athayde. Vocês vejam como sou velho, eu era amigo do Austregésilo, do pai dele, que ia ver meus espetáculos no Rio. Bom, fomos para a rua, começamos a entrevistar e depois editar foi uma tragédia, não acabava mais aquela edição, até que ficou pronta. Telefonei para o Ivã Magalhães: "Tá pronto, vou te mostrar". Ele falou: "Tudo bem, então você faz o seguinte, Abu, hoje é quarta, vem amanhã porque na sexta-feira eu não trabalho mais aqui, fui despedido". Quer dizer, fui mais uma vez mal assessorado. Aí telefonei para o Athayde. "O que você quer, Abujamra?" "Estou querendo dizer que está pronto o programa." "Ah, então marca aí com a minha secretária." Caralho... Telefonei para a secretária, marquei, ela desmarcou, marcou, desmarcou, marcou. Fui lá. Perco o emprego mas não perco a frase, isso sempre na minha vida, por isso estou na sarjeta sempre. Falei para ele: "Olha aqui, você me tratou mal ao telefone". "Não, é que tinha gente perto, tinha oito pessoas na mesa..." "Não dá para tratar mal uma pessoa, eu sou um velho, você não pode me tratar mal. Seu pai era um cara maravilhoso, seu irmão eu adoro." Ele odeia o irmão porque o irmão é bicha, é o Roberto Athayde, um ator teatral maravilhoso. Bom, o que aconteceu? Essa foi sensacional. Eu aqui, ele aí, botamos o teipe. Começou o programa, tocou o telefone, ele atendeu e ficou falando oito minutos sem olhar para o teipe, e eu, imbecilmente, quando ele terminou o telefonema, falei assim: "Você quer que eu volte a fita?" "Não, não, não precisa." Assistiu a dois minutos, olhou um Ibope ali do lado. "Eu disse a vocês que o Ibope de tarde não ia funcionar..." Mais uns sete minutos. Quer dizer, não viu o programa. Terminou, ele disse assim: "Acho uma merda, só gosto de você, o resto é um lixo, não me interessa esse programa". Falei: "Tudo bem, é tua opinião, não tem problema. Não vou ler os seus poemas, fique com os seus poemas". "Ah, eu realmente tenho um livro de poemas, vou mandar pra você." "Não vai mandar livro nenhum. Tchau! Você tem a tua televisão, eu tenho a minha." Fui embora. Aí fui fazer um espetáculo em Curitiba, e fui lá na CNT, o cara adorou, mas não saiu. Falamos com o irmão do Boni, o Guga, que adorou, tentou colocar com o Lafond no SBT, não conseguiu, e o que é a vida: quando eu era professor na USP – odeio ser professor, acho que professor não ajuda nada, ninguém, falo para os professores dizerem assim: "A pior coisa para um artista é o gosto artístico de um professor" –, quando eu era professor, tinha onze alunos que não faltavam, aqueles filhos da puta, eu dizia: "Não precisa vir todo mundo sempre!". Aí eu peguei três que eu queria mexer na cabeça: Tadeu Jungle, que virou um gênio da publicidade, Carlos Lombardi, que ficou gênio, e mexi na cabeça de um outro chamado Walter Silveira, que de repente é diretor de programação da TV Cultura, que vai à minha casa e diz: "Mestre!...". Aí demos o programa pra ele, ele deu para o Jorginho, adoraram, ficaram para fazer treze semanas, só. Falei: "Quero o efêmero na televisão, quero mudar". Está há um ano! O fracasso é terrível, o efêmero ficou eterno. Por que estou contando isso? Ah, por que apareceu esse programa. Então apareceu assim e a gente está querendo mudar, dar uma arrumada, porque é inacreditável, os e-mails que a gente recebe – este país é uma merda mesmo – são de gênio pra cima, 99 por cento. Aí eu respondo: "Você já leu Shakespeare?"... Trecho III Marina Amaral - O que você gosta na televisão? Tem algum programa? Antonio Abujamra - Odeio tudo. Não é só televisão, eu odeio tudo, o ar, o mar, a mim mesmo, odeio tudo, só gosto do meu neto, o único homem que mexe na minha cabeça, como diz a minha mulher para ele. Eu não gosto de nada. Mylton Severiano - Que idade tem esse seu neto? Antonio Abujamra - Seis anos, vai fazer 7 em janeiro. Maravilhoso. O resto... Eu não gosto de nada. Eu faço porque viver deve ser fazer, né? Não tenho nada. Eu quero, realmente, se puder, ser aquele cara na rodoviária de sandália, bermuda, vendendo tíquete restaurante, ficha de telefone... Marina Amaral - Você diz que o Brasil é uma merda. Você acha que sempre foi uma merda ou piorou? Como você vê esses últimos anos? Antonio Abujamra - Desde que me conheço, só piora, cultura e educação só pioram. Aí dizem que o mundo vai assim, é mentira. Estive agora em Berlim, em Paris, em Lisboa, as coisas lá são realmente muito melhores. Fiz uma entrevista lá arrebentando com o Brasil, quase me mataram, dizendo que o Brasil é maravilhoso, é florido e tal, mas não é. Vocês, que são gutemberguianos, dão manchetes: "Cinqüenta milhões de indigentes". Vou procurar no Aurélio o que é "indigência", é pior do que pobreza, todos os jornais publicam isso e não acontece nada. Mylton Severiano - Você não acha que isso pode ser um episódio? Porque a nossa vida é muito curta, Abujamra. Antonio Abujamra - Pois é, na minha vida, eu odeio tudo. Mylton Severiano - Você mencionou a ditadura militar, essa ditadura, pra mim, não acabou ainda... Antonio Abujamra - Você é provocador mais que eu, hein? Mylton Severiano - ...ela não acabou ainda, né? Para uma vida, você não acha que é muito cedo pra falar que o Brasil é uma merda? Antonio Abujamra - Você não está entendendo. O que eu quero dizer é o seguinte: para a minha vida, tudo piorou. Pode ser que para o filho do meu neto, para o bisneto, pode ser que não. Para mim, as coisas só 15 pioraram, não vi melhora cultural, não vi melhora educacional, vi somente esse neoliberalismo abrindo faculdades de fundo de quintal, a educação só piorando, eu não estou entendendo o que acontece. Mylton Severiano - Mas você está cumprindo o seu papel. Antonio Abujamra - Ah! Mas eu não sou padre, cumprir meu papel! Que é isso? Eu faço meu teatro, falo mal. O meu espetáculo agora lá no Rio... a crítica arrebentou, mas o público aplaude de pé e grita "bravos". Faço o público todo gritar. Falo sobre a democracia, digo que a democracia é fashion, tecnológica, maravilhosa, que só numa democracia ocidental fantástica como essa podemos falar como são asquerosos, sujos, canalhas os nossos políticos. E vou arrebentando. Temos que falar qualquer coisa. Temos que falar assim: "Senhores, isso aqui não é Kosovo, este país não é a Bósnia, não é o Paquistão". Será que não é? Mas digo que não é. "Vocês comeram a comida do povo, vocês comeram a música brasileira maravilhosa." Não entendo por que ainda não aconteceu o desastre de uma guerra civil! É porque Deus ainda não nos entendeu. Aí eu digo: "Nós sabemos que todo governo é filho da puta!" Aí entram dois atores e dizem: "Você tem razão, Abujamra, todo governo é filho da puta". "E vocês aí? Vocês também acham?" "Também." "E desse lado aqui?" "Também." E fica um negócio que parece que eles vão fazer a revolução. Aí eu digo: "Chega, chega, chega! Senão eles saem daqui e derrubam o Fernando Henrique. Calma!". E aí eles se aplaudem, entendeu? Não é que me aplaudam, eles se aplaudem. Eu fazer a minha vida não quer dizer nada. QUERIA, sei lá. Não me enche o saco! Não me enche o saco! Que mais? Acabou! Marina Amaral - Não. Antonio Abujamra - O que é isso? Caralho! Tenho que almoçar. Comer primeiro, depois a moral. De quem é? Brecht. Senhores que pretendem nos moralizar: "Você é bom, Abujamra, você faz bem". Nos dêem primeiro o que comer. Comer primeiro, depois a moral. Marina Amaral - Como foi a sua experiência como professor? Antonio Abujamra - Não foi questão de preferência. Eu jogo em cavalos, perco dinheiro, entendeu? Minha mulher me agüenta há 45 anos, é uma santa. Deve a mim, se não fosse eu ela não SERIA uma santa, na classe teatral todo mundo gosta muito mais dela do que de mim. Ah, tenho dois filhos, um é maravilhoso, que é o mais velho, faz economia e trabalha no Senai; e um é artista, que faz música, um gênio. Não é porque é meu filho! Não é porque é meu filho! O outro filho: "Não fala de mim, pai, quero ser low profile...". Entendeu? Então eu tô aí... O que você perguntou? Ah, então eu trabalhava e, "onde vou ganhar um dinheirinho?" "Professor." "Onde é que vou ganhar um dinheirinho?" "Televisão." Eu busco trabalho. CA55_out_2001 Entrevista editada, leia a íntegra na revista nas bancas. Os trangênicos podem ser um desastre para o organismo humano, para a agricultura e para o meio ambiente – é a partir dessa probabilidade que se discute aqui a liberação, pelo Brasil, dos OGMs (organismos geneticamente modificados), até hoje proibidos por lei. O entrevistado é um dos maiores especialistas no assunto e, além de abordar o aspecto científico dos OGMs, mostra todo o interesse econômico envolvido, principalmente o da poderosa multinacional Monsanto (David Hathaway). Parte 1 Verena Glass - Eu QUERIA entender uma coisa: a gente sabe que o mercado europeu e o japonês prometem até preços diferenciados para a soja não-transgênica, existem empresas especializadas em detectar se a sua soja é ou não transgênica. Então, para exportar, apesar de ser proibida no Brasil, se você tiver um selo que diz "100 por cento de certeza que não é transgênica", sua soja terá um melhor mercado lá. Isso de um lado. E o outro lado: quais as vantagens econômicas de ter a soja da Monsanto no Brasil para que o governo realmente avalie "vamos liberar ou não"? David Hathaway - Em termos da perspectiva de mercado com a entrada legal — ou a ilegal que temos hoje no Brasil — da soja transgênica da Monsanto, é uma ironia muito grande você ter um prêmio para a não-transgênica e ter de pagar, investir forte na certificação, na administração desde a compra da semente, a garantia de origem, o plantio todo, a colheita, o manuseio, o transporte para a cerealista e de lá para o porto, caminhões, você garantir que não tem nenhuma mistura com transgênico. Isso termina absorvendo mais ou menos o que os europeus estão oferecendo como prêmio. Então, dá muito trabalho para lucrar muito pouco. Sérgio de Souza - Qual é a dimensão dessa cultura de transgênicos clandestinos no Brasil? David Hathaway - Há muitas estimativas. A maior parte delas tem o interesse das empresas, para forçar a barra e dizer que é inevitável, que o país já está inundado. Alguns dizem que é 30 por cento do Rio Grande do Sul; outros, da Abrasem (Associação Brasileira dos Produtores de Sementes), que são citados por jornalistas em grandes jornais, dizem que 30 por cento da soja do Brasil inteiro é transgênica. Isso é impossível até porque a soja argentina que vem de contrabando só pode ser plantada mais longe do equador, para o sul, por questão de adaptação climática. Outra coisa: no Rio Grande do Sul há um esforço do governo do Estado, em termos técnicos, em termos de polícia, em termos políticos, para coibir os transgênicos, mas não há nenhuma ação por parte da indústria de sementes e da própria Monsanto, cuja semente, por notícias da Monsanto mesmo, está sendo contrabandeada e pirateada em grande escala. Acontece que a empresa lucra com isso, porque a semente é engenheirada para receber grandes doses do herbicida da Monsanto, o Roundup. Wagner Nabuco - O negócio é vender o Roundup. 16 David Hathaway - Estão aumentando muito as vendas de Roundup no Brasil por conta da soja transgênica. O Roundup é um herbicida de amplo espectro, que mata tudo, você não pode jogar em cima de uma planta de soja convencional porque ela morre. Verega Glass - É muito mais barato plantar soja transgênica, na ponta do lápis? David Hathaway - Alguns estudos feitos nos Estados Unidos nos últimos dois, três anos mostram que, na ponta do lápis, não é exatamente mais lucrativo em termos de rentabilidade direta para o agricultor. Marina Amaral - E isso tudo é independente do tamanho da propriedade? Estamos falando de grandes ou pequenos agricultores? David Hathaway - Lembro de uma palestra no Paraná em que um dos executivos da Monsanto no Brasil — uns dois anos atrás, eles ainda apareciam para debater em público essas questões —, o Geraldo Berger, em Guarapuava, disse que francamente a empresa não tem nenhuma intenção de vender sua soja transgênica para agricultor que esteja plantando menos de 100 hectares. No Brasil, isso é médio. Mas o alvo realmente é de 500, 1.000, milhares para cima, porque é preciso haver investimento em tecnologia e em manejo para poder aproveitar bem. Parte 2 Sérgio de Souza - Até que ponto está comprovado que um OGM traz prejuízo à saúde ou ao meio ambiente? David Hathaway - Existem estudos que indicam várias dimensões de problemas para a saúde humana, para a saúde de outros animais e para o ambiente, mas a ciência é muito nova nessa área. Há indícios de que deve fazer mal. José Arbex Jr. - GOSTARIA que você explicasse melhor o exemplo do peixe com o tomate. Você fez um comentário no sentido de que, quando se introduz um gene na cadeia genética do tomate, sabe-se estar expulsando um gene da cadeia genética do tomate e substituindo por outro, mas não se sabe o efeito global que isso vai causar sobre o tomate. David Hathaway - As duas coisas. Você não sabe onde estará o novo gene, porque é totalmente aleatório o posicionamento, e você não sabe qual o gene que está sendo substituído. José Arbex Jr. - Por isso não se consegue determinar finalmente o efeito? David Hathaway - Não sou biólogo, mas o que a gente sabe, por tudo o que consegue ler, é que a biologia molecular genética ainda não tem o fundamento teórico, e muito menos prático, para lidar com esse nível do problema. Estão surgindo novas técnicas com as quais talvez em cinco, dez anos, seja possível manipular um gene com certo grau de precisão, coisa que hoje não existe. Quando o defensor do transgênico fala em precisão da transgenia, ele está se referindo à troca de um gene: "Eu estou colocando só esse gene, estou sendo preciso com esse gene que estou colocando". Mas ele não tem nenhum grau de previsibilidade quanto à colocação, o efeito e o impacto daquele gene. Não sabe nem como colocar onde ele quer, como tirar uma coisa e botar outra no lugar, sabendo de antemão qual vai ser o impacto. É tudo ensaio e erro. Ele não sabe qual vai ser o resultado, só vai ver quando a planta crescer. Mas, entre os indivíduos, isto é, as plantas que vão crescer com aquele gene transgênico, ele vai ter de ver quais se expressam de maneira estável, quais passam para a próxima geração, se não há outras conseqüências inesperadas. E, quando aparentemente tudo deu certo, aí então ele pega um indivíduo, uma planta, e começa a reproduzir: "A partir desse eu vou fazer o resto, porque esse gene está estável, está funcionando, fazendo tudo o que eu quero". Agora, o que mais estará fazendo, ele não tem nem como pensar nisso. José Arbex Jr. - Quer dizer, quem come transgênico vira cobaia? David Hathaway - Eu discordo, mas ironizando. Generosamente, é uma discordância, porque cobaia é um bicho que faz parte de uma experiência científica controlada. Essa experiência não está sendo controlada. Quando os defensores e autoridades do governo vêm dizer em nome da ciência que não existe registro de caso de malefício causado à saúde humana depois de cinco anos de centenas de milhões de pessoas pelo mundo comendo transgênicos, eles estão sendo muito levianos ou burros. É verdade que não existe registro. Não há registro porque não há estudo, não há controle. Nos Estados Unidos seria até ilegal você criar as condições para esse tipo de estudo, porque não é permitida a rotulagem. É até desestimulada a rotulagem em produtos nãotransgênicos. Ninguém nos Estados Unidos poderia fazer parte de um estudo epidemiológico comparando quem come com quem não come transgênico, porque ninguém sabe se está comendo ou não. Esse tipo de estudo é impossível. Então, quem diz que não há registro de malefícios está sendo cínico. Isso é cinismo e uma atitude profundamente anticientífica. Parte3 José Arbex Jr. - Como está a questão dos transgênicos da Monsanto nos Estados Unidos? O consumidor americano não se manifesta? David Hathaway - O consumidor americano não compra a semente, quem compra é o agricultor, são dois espaços diferentes de decisão. O consumidor americano mostra cada vez mais, em todas as pesquisas — de 80 por cento, 90 por cento, e o número vai subindo —, que deseja a rotulagem, e mais da metade da população não comeria transgênicos se tivesse a opção. Wagner Nabuco - Mas não tem a rotulagem lá? David Hathaway - Não, o governo é contra a rotulagem. Julianne do Carmo - Eles estão comendo sem saber? David Hathaway - Estão comendo sem saber. Verena Glass - No Brasil, a legislação se contradiz, é proibido ter transgênico mas é obrigatório rotular... 17 David Hathaway - Essa coisa de rotulagem é uma confusão na opinião pública, tem gente, talvez de boa-fé, achando que rotulagem resolve a questão. No ano passado, depois que o Idec (Instituto de Defesa do Consumidor) e o Greenpeace denunciaram aquela lista de vinte e tantos produtos com conteúdo transgênico, dezenas que deveriam ser proibidos, houve supermercados que acharam que, se não podiam rotular, botavam esses produtos numa prateleira à parte, para o consumidor saber. Wagner Nabuco - Você sabe se caíram as vendas desses produtos? David Hathaway - Não tenho essa informação, sei que alguns foram retirados pelas próprias empresas, que depois passaram a controlar mais a origem do conteúdo, mas isso não fica claro. As secretarias de Saúde, municipais, estaduais, a Anvisa, a federal, deveriam estar fazendo estudos, em vez de ter ONG bancando as pesquisas caras de laboratório para verificar isso, pois é obrigação do poder público ver se está havendo crime ou não. Alimento transgênico é ilegal no Brasil, é crime, não adianta rotular. Senão eu poderia rotular a maconha, a cocaína, qualquer coisa. O rótulo não legaliza. Sérgio de Souza - Qual é a posição da OMS em relação aos transgênicos? David Hathaway - A Organização Mundial da Saúde e a Organização de Alimentos e Agricultura, a FAO, os dois do sistema da ONU, têm uma comissão em conjunto, o Codex Alimentarius, que há mais de um ano está no processo de elaborar normas sobre a segurança de alimentos que contenham transgênico, e há mais tempo ainda trabalhando um processo ainda em curso para criar normas internacionais para a rotulagem de alimentos transgênicos, mas por enquanto não se chegou a um acordo. É um processo diplomático de negociações de todos os governos do mundo para chegar a um consenso sobre a norma, sujeito a lobby de todos os lados possíveis, e dura anos. Está tudo em jogo dentro do processo diplomático de negociação do Codex Alimentarius. Sérgio de Souza - E, em termos econômicos, de exportação, o Brasil não teria prejuízos se adotasse os transgênicos, porque países asiáticos e europeus consomem apenas os orgânicos? David Hathaway - O Brasil está numa posição de vantagem absoluta na exportação de soja hoje, e também no caso do milho, porque os principais países exportadores de milho no mundo, Estados Unidos e Argentina, têm o milho todo malhado com transgênico, e só o Brasil tem o milho não-transgênico. Neste ano de 2001, pela primeira vez em mais de 21 anos, o Brasil está exportando e não é pouco, é muito milho, para a Europa e para a Ásia, com perspectivas de aumentar mais. Tanto que acho que o governo está começando a perceber isso, no caso do milho, e estão aumentando as exportações brasileiras de soja, ocupando o mercado na Europa, na Ásia, que preferem a soja não-transgênica. Alguns lugares, não todo esse mercado, pagam prêmio pelo nãotransgênico. Mas mesmo os que não pagam prêmio compram aqui em vez de comprar no concorrente. Sérgio de Souza - Quais são os países asiáticos? David Hathaway - Principalmente Japão e China. Wagner Nabuco - A China também não produz transgênicos, é isso? David Hathaway - A China tem algodão transgênico, e já fez trabalhos em arroz, em outras culturas transgênicas, mas só tem aprovado o algodão, nenhum alimento. Há poucos meses anunciou novas regras para a rotulagem de transgênicos e o controle das importações de alimentos para identificar se são transgênicos ou não. Então, a China não está escancarando as portas, ela está abrindo aos poucos, sim, para a introdução de transgênicos no plantio, mas por enquanto não de alimentos. CA57_dez_2001 Entrevista editada, leia a íntegra na revista nas bancas. Luiz Marinho Presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC Para chegar à presidência do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC é preciso ter muitos predicados, além de garra e capacidade de liderança. Luiz Marinho deixa claro nesta entrevista por que chegou lá. Seguro de suas convicções, ele não só critica o governo (“incompetente”) de FHC como aponta os caminhos que o trabalhador deve seguir para o país ter um movimento sindical cada vez mais consciente e, por isso, cada vez mais forte. Trecho I Verena Glass - Dentro da sua família havia discussão política? Luiz Marinho - Nunca existiu isso. O meu pai brigava nas épocas de eleições, e tinha uma posição muito dura contra os militares, era um eleitor do MDB. Ele falava: “Os militares estão destruindo o Brasil”. Mas sem consciência nenhuma, até hoje. Nem sei em quem ele vota hoje. Marina Amaral - Mas quando, por exemplo, havia greves no sindicato, ele acompanhava? Luiz Marinho - Eu fui um pouco influenciado por um irmão que é quatro anos mais velho, que inclusive é diretor do nosso sindicato hoje, e na greve de 1979, quando nós dois íamos para os piquetes, meu pai ficava “pê” da vida: “Vocês estão malucos!”, ele não era contra a greve, era contra que fôssemos para os piquetes. “Os militares vão acabar... vocês vão ver, não quero um filho pisoteado por um cavalo...” Guilherme Azevedo - E houve violência mesmo? Luiz Marinho - A greve de 1979 e 80 foi um belo enfrentamento com a polícia, ele via na televisão e ficava apavorado: “Vou ter meu filho morto a qualquer hora, deixa os outros brigarem, pra que vocês vão lá?” João de Barros - É tão importante e pouca gente sabe como nasceu esse movimento de 1979, lembro que foi uma surpresa para a imprensa a “Greve dos Braços Cruzados”... Luiz Marinho - Se levar mesmo à risca, nasceu antes de 1979, nasceu a partir do grande achatamento salarial do Delfim Netto, do Milagre Brasileiro. O sindicato, a partir de um trabalho do DIEESE, começa a trabalhar e mostrar para a categoria o tamanho do achatamento. Em 1976, o Lula resolve romper com a Federação dos 18 Metalúrgicos e mostrar que as negociações eram uma farsa, não tinha uma análise política atrás desse rompimento, mas foi um rompimento acertado porque construiu toda a nossa história. João de Barros - Como se dá seu crescimento na história sindical? Luiz Marinho - Um pouco, acho que porque tive várias oportunidades, vários cursos de formação, isso ajuda muito no embasamento político. Marina Amaral - Cursos oferecidos pelo próprio sindicato? Luiz Marinho - Pelo sindicato, pela CUT, por tantas entidades não-governamentais que existem no meio. Também a quantidade de viagens que se tem, isso também ajuda a formar, a criar uma visão. Verena Glass - Para o exterior? Quantos países você conhece? Luiz Marinho - Fora as centenas de viagens no Brasil conheci alguns países ao longo desses 20 anos. Mas acho que o aprendizado se dá especialmente no dia-a-dia, no enfrentamento, no embate das negociações. Quanto aos países, deixa eu ver: fui pra Alemanha, Inglaterra, Estados Unidos, Espanha, Argentina, Uruguai, Holanda, Itália. Verena Glass - Todas as viagens nesse processo de formação ou também para negociação como diretor do sindicato? Luiz Marinho - É um processo de conhecer o mundo, como se dá o movimento sindical nesses países, como são as empresas, as diferenças, a tecnologia, como se organizam os trabalhadores. Em uma viagem de intercâmbio, a possibilidade de você se formar está dada a partir do próprio conhecimento que ela proporciona. Essas viagens são feitas pelo sindicato mesmo. Verena Glass - O capital de uma multinacional é um só, independentemente de a fábrica do Brasil dar mais lucro ou a das Filipinas; as decisões da empresa sobre demissões, por exemplo, são da matriz? Luiz Marinho - Claro. O cidadão está lá olhando para o todo, onde está dando mais lucro e onde está a sua melhor possibilidade de investimento ou, ao contrário, qual unidade está parada, sem dar lucro. Trecho II João de Barros - Qual será a relação do sindicato caso o Lula seja eleito presidente, uma vez que vocês fazem parte, dentro do movimento sindical, de um grupo que convive com diversas facções? Luiz Marinho - Acho que o Lula tem que se preparar para as turbulências do movimento sindical, e os sindicatos, especialmente da CUT, também precisam se preparar para um governo Lula. Da mesma forma, o Lula não pode esperar dos sindicatos cutistas uma complacência, porque senão, na próxima eleição, ganha a Força Sindical, ganha sei lá quem. O movimento sindical tem que cumprir o seu papel. Evidentemente não podemos dar um tratamento ao Lula diferente do que demos ao Fernando Henrique. O sindicato não pode ser oportunista porque é um governo Lula, porque é um governo do PT, do PC do B, qualquer governo de esquerda que seja, e se aproveitar dessa relação. Da mesma forma que o governo de esquerda não pode querer que o movi mento sindical seja complacente com ele. É essa a relação de maturidade que tem que existir entre o movimento sindical e um eventual governo Lula. Evidente que da Força Sindical você pode esperar o mesmo comportamento que a Força está tendo em relação à Marta Suplicy. É correia de transmissão do governo Fernando Henrique. Wagner Nabuco - Você acha que a maior parte dos militantes do PT tem claro isso de que os sindicatos não são correia de transmissão, que têm um posicionamento que é de defesa da categoria, que é muito diferente de um posicionamento de um partido político? Luiz Marinho - Isso já foi mais complicado. Depois de um acúmulo de debates, de discussão, de experiência e de administração do movimento sindical, essas coisas estão mais resolvidas hoje. Mesmo na nossa região, a gente observa que a opinião pública às vezes dá o mesmo tratamento ao sindicato e ao PT, uma confusão danada, mas eu percebo que as coisas vêm mudando e as pessoas conseguem diferenciar a administração do PT – de Santo André, de Diadema, de Mauá – do papel que o sindicato desenvolve por lá. Wagner Nabuco - Como diretor do sindicato, você está representando também trabalhadores que são malufistas. Numa assembléia de 10.000 pessoas existem malufistas, peessedebistas, peemedebistas, anarquistas... Luiz Marinho - Tem poucos malufistas, felizmente... Mas tem. Wagner Nabuco - No caso de vocês, pode ser. Mas isso é uma coisa que hoje está mais clara pra você? Que você está representando um conjunto? Luiz Marinho - Sim, sim. No começo era um problema. Não é mais. Não é porque o cidadão tem uma coloração partidária que ali no sindicato vai ter um tratamento de hostilidade. Vai existir hostilidade se ele não comprar as brigas e as demandas que estão sendo tocadas no movimento sindical. João de Barros - E a questão espiritual, o crescimento do número de trabalhadores evangélicos alterou a relação do sindicato de alguma forma? Porque esse crescimento, principalmente no ABC, parece que foi um dos maiores no Estado de São Paulo. Luiz Marinho - De fato, no ABC cresceu muito, hoje temos muito mais evangélicos na categoria, mas já tivemos dirigentes evangélicos, aliás, temos dirigentes evangélicos. E esse fato ajudou a quebrar o gelo e a criar uma relação que depende muito da postura que o sindicato adota, porque tivemos momentos de cobranças: “Escuta, espera um pouquinho, a categoria não é toda católica, não. Tem ateu, evangélico, e tal”. E buscamos construir essa sensibilidade, porque precisamos respeitar, trabalhar com a diversidade total. Da mesma forma que você precisa trabalhar olhando para a questão feminina, as demandas das companheiras, os problemas eventuais com racismo, a questão do negro, a questão da juventude. A juventude hoje é um tema importantíssimo para o movimento sindical – para o nosso, com certeza é, não sei se no geral também é. 19 Trecho III Marina Amaral - Acho que a gente tem que retomar a questão da CLT. O que pode acontecer para os trabalhadores, se essa tal flexibilização passar no Congresso? (A votação estava prevista para 4 de dezembro, quando do fechamento desta edição.) Luiz Marinho - Será um grande retrocesso, olhando para o momento que o Brasil vive. Procurei aqui focar bem a necessidade de mexer na estrutura sindical e não na CLT. Por exemplo, tem coisas na CLT que queremos aperfeiçoar, mas ela não proíbe nenhum sindicato, nenhuma empresa de negociar além dela – quando querem mudar é porque querem que seja aquém dela. Então, é claramente o objetivo de destruir conquistas, destruir direitos, isso é muito claro. O que a gente estranha é que uma central sindical possa estar apoiando isso. Marina Amaral - E por que interessa ao governo trazer isso nesse momento? Luiz Marinho - Sinceramente, não entendo. Verena Glass - É uma pressão do empresariado, em primeira instância, ou não? Luiz Marinho - Nem isso consigo enxergar, sinceramente não entendo. O governo botou na cabeça, os vários ministros que por lá passaram, o Eduardo Amadeo em particular fez vários trabalhos, e José Pastore foi um dos grandes colaboradores, onde tentou mostrar que a rigidez da legislação é um problema para os investimentos, um problema para o trabalho informal, que a rigidez da legislação impede o emprego, e compraram esse discurso. O Eduardo tentou encaminhar, veio o Dornelles, e de forma muito mais pragmática está tentando empurrar, talvez a influência de um segmento empresarial, mas não se vê pressão do empresariado para mudança da CLT. Verena Glass - Pode ser em função da ALCA? Luiz Marinho - Isso eventualmente pode estar colocado, mas o que não entendo é o momento. Estamos prestes a ir para a eleição, como o governo insiste nisso? Isso, para a sociedade, na minha avaliação, é extremamente prejudicial porque, por exemplo, na Mercedes, temos o abono de férias, que constitucionalmente é um terço, negociamos pra metade, então, pode negociar, não tem problema. Mas, em determinadas situações, a CLT meio que engessa, por exemplo, as férias. O cidadão tem o direito de vender um terço das férias – acho isso o fim da picada, férias são pra ser gozadas, não pra ser vendidas, negociadas. E os patrões insistem, compram um terço, o trabalhador muitas vezes toma a iniciativa de querer vender. Fizemos um acordo na Volkswagen, que o trabalhador não pode vender as férias, ele tem que gozá-las integralmente, e não existe nenhum processo de trabalhador reclamando disso, é questão de costume, temos que implementar outro costume. Então, tem coisas em que, eventualmente, a negociação coletiva poderia avançar, mas não posso olhar para a situação do sindicato que presido – que está organizado dentro das fábricas – e esquecer a realidade do restante do país. O espírito da legislação trabalhista do Judiciário Trabalhista é exatamente o de você buscar equilibrar o empresário e o trabalhador, porque o empresário é muito mais forte. Imagine no Pará, onde muitas coisas ainda se resolvem na base da carabina, com a lei você não consegue impor nada em muitos lugares, porque o braço do Estado não chega para criar a condição de equilíbrio, você dizer agora “não tem mais o braço do Estado, vocês se virem”? Trecho IV Marina Amaral - Muita gente diz que o sindicalismo perdeu força com esse mundo globalizado, quem está tendo força agora são, de um lado, as ONGs, de outro, os movimentos antiglobalização. Luiz Marinho - Tenho um pouco de dúvida em relação a isso. O movimento sindical intervém muito na conjuntura, mas existe um elemento hoje que difere das décadas de 70 e 80, que se chama desemprego. Se você olhar a década de 70 e o início dos anos 80, aquela crise grande em 1981/1982, houve muitas demissões, mas não se compara com o nível de desemprego que você tem hoje. Marina Amaral - Dezoito por cento no Grande ABC, não é isso? Em São Paulo... Luiz Marinho - Na Grande São Paulo, beirando 19 por cento; no ABC, 18,7 por cento. Esse elemento desemprego puxa os sindicatos pra baixo, não tem dúvida nenhuma, e os sindicatos que não tiverem uma boa estrutura organizacional têm dificuldades de mobilizar e de enfrentar as demandas que são colocados. É um problema, mas os sindicatos evoluíram no processo de intervenção política através da criação das centrais, sem a existência das centrais praticamente DESAPARECERIA o movimento sindical. Marina Amaral - O sindicato já teve uma importância política muito grande quando se acreditava que a partir dele eram discutidos a propriedade, os meios de produção, onde havia um modelo de esquerda etc. Hoje não virou um pouco a luta corporativista, cada um com sua luta, não fica difícil ter uma visão política maior? Por isso perguntei dos movimentos antiglobalização. Luiz Marinho - É um equívoco pensar que o sindicato é o principal agente transformador da sociedade. Ele é uma parte da transformação. Essencialmente, o sindicato tem uma obrigação e não pode fugir dela, que é responder aos seus representados a demanda existente naquele exato momento. Tem o momento que é brigar por aumento real e tem o momento que é brigar por manter emprego, precisa combinar as duas coisas, mas, olhando para o Brasil, o papel é combinar a inserção na fábrica, na empresa, com a cidade, com a sociedade, fazer as pessoas compreenderem que, participando de forma organizada naquela região, podem contribuir de forma decisiva no desenvolvimento da região. Combate à corrupção na política pública, exigência de que o serviço público receba com naturalidade a intervenção da sociedade através dos orçamentos, a sociedade decidir onde tem que fazer investimento, onde o Estado e a federação estão falhando nesse processo. Assim você consegue construir uma consciência coletiva. Se o sindicato fizer isso, estará fazendo uma intervenção revolucionária, cumprindo seu papel de criar consciência, isso acaba interferindo na visão do empresário, na 20 visão da sociedade. Se ele não está inserido na sociedade e só olha para as demandas trabalhistas, vai ser um sindicato meramente corporativo. Por mais discurso revolucionário que tenha, por mais grevista que seja, por mais duro que seja na relação com o empregador, ele não está dando a contribuição para a qual o sindicato está sendo chamado hoje, que é construir uma visão de cidadania. O trabalhador tem que ir para o bairro e observar: lá tem segurança? Tem luz? Tem água? Tem esgoto? Tem saúde? Tem escola? Tem condição de vida para o entorno? Esse é o papel do sindicato hoje. Marina Amaral - Como você vê a postura da imprensa em relação à cobertura do movimento sindical? Luiz Marinho - A imprensa está despreparada para cobrir as ações sindicais. Às vezes, você faz coisas fantásticas, a imprensa nem toma conhecimento, mas, uma má notícia, ela está toda lá. Tenho a felicidade de presidir um sindicato forte, grande, que consegue fazer coisas e atrair a atenção da mídia, então, até parece injustiça eu falar mal da imprensa na medida em que, se não fossem os meios de comunicação, não fosse a imprensa no caso da Ford, não TERÍAMOS CONSEGUIDO reverter aquela situação. Mesmo agora na Volkswagen, apesar de eles virem atrás da dramaticidade das demissões, mas, se não é esse sentimento que se cria a partir de um meio de comunicação, você não consegue uma pressão pra cima da empresa. Então eu tenho essa felicidade, mas, para o restante do movimento sindical, quase como um todo... Olha a situação do Banespa: o Vaccari ontem me relatava que tentou discutir essa questão do Banespa nos meios de comunicação e não conseguiu uma linha! Um minuto no rádio, um segundo na televisão, ele não entendia, ele achava o acordo interessante. Depois, ele descobriu no próprio banco, um cidadão falou assim: “Nós chamamos a nossa agência de propaganda e falamos que não queremos notícias disso”. Wagner Nabuco - O Banespa é um grande anunciante, não é? Luiz Marinho - É. As agências de publicidade cercaram todos os meios de comunicação, às vezes o sindicalista falava com alguém da imprensa e a resposta era: “Ah, interessante, vamos marcar...”. Marcava, dali a pouco: “Olha, sabe, pintou aqui outra pauta, tivemos que derrubar essa matéria...”. E não se conseguiu botar nada na imprensa. Esse é o comportamento da nossa imprensa. CA58_jan_2002 Entrevista editada, leia a íntegra na revista nas bancas. Trecho I O sociólogo Octavio Ianni é um dos maiores intelectuais brasileiros e certamente um dos mais fiéis às suas convicções. Pioneiro no uso do método dialético para investigar os enigmas da formação histórica de nosso país, escreveu pelo menos quatro obras fundamentais sobre o Brasil – Metamorfoses do Escravo, O Colapso do Populismo, Estado e Planejamento Econômico e A Ditadura do Grande Capital. A partir dos anos 80, estendeu a reflexão à análise dos processos de globalização, sem romper com seus métodos e seus temas – a compreensão do papel do Brasil, até o momento subalterno e passivo na atual etapa do capitalismo. Entre os livros que escreveu neste período estão Teorias da Globalização, A Sociedade Global e o mais recente Enigmas da Modernidade-Mundo – premiado pela Academia Brasileira de Letras em 2000, quando também ele conquistou o troféu Juca Pato, apontado como o intelectual do ano. Professor emérito da Universidade de São Paulo e da Unicamp, apaixonado pelos mais diversos ramos do conhecimento humano, Octavio Ianni continua, aos 75 anos, contribuindo com a formação de novos intelectuais no país e fascinando as novas gerações com sua inabalável crença na construção de um mundo melhor. Marina Amaral - Professor, a partir desse grande acontecimento que foi o 11 de setembro, o que a gente pode esperar para 2002, 2003, enfim, daqui pra frente? Octavio Ianni - Vocês estão pedindo para eu começar com orquestra, coro e zabumba! Estou convencido de que o 11 de setembro é um marco excepcional na história do mundo contemporâneo. Primeiro, considero que o que ocorreu no dia 11, sim, pode ser classificado como um ataque terrorista, seja pelas intenções não se sabe de quem, não se sabe vindo de onde, como e por quê. Nesse sentido, o acontecimento tem uma conotação evidente de ataque terrorista, mas as reações adotadas pelo governo norte-americano, pelas elites e pelas classes dominantes nos Estados Unidos, em conjugação com elites e classes dominantes européias, e portanto governos etc. – além de adesões mais ou menos oportunísticas de diferentes governos em outras partes do mundo – logo revelam que foi um ato político excepcional, portanto mudou de figura. Os governantes europeus e norte-americano, em lugar de buscar a ONU, de negociar com as organizações multilaterais que poderiam colaborar para o esclarecimento dos acontecimentos e eventualmente caminhar para operações diplomáticas – mais ou menos complexas, mas perfeitamente viáveis para encaminhar soluções em face do acontecido – optaram por uma guerra mundial. Uma operação de guerra batizada inicialmente com uma denominação evidentemente fundamentalista: “Justiça Infinita”. Alguém que conhece o mundo islâmico TERIA ACONSELHADO o governo americano a maneirar, que isso de justiça infinita PODIA SER extremamente ridículo, absurdo ou inaceitável em termos dos desdobramentos possíveis, e daí passou a ser denominada “Operação Liberdade Duradoura”, que é também de um ridículo total. Mas, examinando os desdobramentos do acontecimento, examinando as reações de várias elites e classes dominantes no mundo, principalmente européias e norte-americanas, e tendo em conta as implicações do acontecimento em escala mundial, envolvendo reações internas nos Estados Unidos, até mesmo no sentido de redução de direitos civis, algo que em outra escala ocorre também na Europa e, provavelmente, em outras partes do mundo, e reconhecendo algo que, ao meu ver, é extremamente importante, o ato do dia 11 de setembro revelou para as elites e classes dominantes norte-americanas que os Estados Unidos são uma nação vulnerável. Mais do que isso, revelou para o mundo, gregos e troianos, principalmente para as populações sofridas, que a maior potência mundial é 21 vulnerável. Portanto, não se trata apenas de um ataque terrorista e não se trata apenas de um ato político, trata-se de uma ação revolucionária. Por que revolucionária? Porque a maior potência mundial está posta em causa, seja por quem for. A mutilação daqueles que atuaram pode até ter sido simplesmente uma intenção terrorista, de dar um “susto”, de provocar um impacto, mas os desdobramentos sociais, políticos, militares e a significação do acontecido em termos da opinião pública mundial e em termos do tipo de supremacia que os Estados Unidos têm exercido no mundo, significa que realmente estamos em face de um ato que tem também uma significação excepcional como ação revolucionária. José Arbex Jr. - Professor, deixa-me fazer uma pequena provocação teórica aí. A literatura marxista ortodoxa é repleta de afirmações segundo as quais qualquer ato terrorista deve ser condenado porque conduz a massa à passividade, ela fica espectadora de uma ação feita por um grupo, não ganha um novo grau de consciência porque não participa organizadamente do atentado. Ao contrário, o atentado permite que os governos lancem ofensivas contra o movimento de massas a pretexto de combater o terrorismo. Quando o senhor diz que esse ato teve uma conotação também revolucionária pelos seus efeitos, o senhor ESTARIA POLEMIZANDO com essa afirmação do marxismo? Octavio Ianni - O problema é que nenhum ato é acompanhado apenas por significado e muito menos apenas pelo significado conferido por aquele que o praticou. Se se trata de um ato social, ele ganha necessariamente várias significações e as significações que ele ganha podem ultrapassar, às vezes de longe e até negar as razões daqueles que o praticaram. Quem é que derrubou a Bastilha? Eu não sei. Será que a Bastilha foi derrubada porque alguém que queria derrubar a monarquia francesa? Também não sei, provavelmente os pesquisadores já esclareceram esse aspecto, mas na verdade a queda da Bastilha não é simplesmente um problema de arquitetura, é um momento excepcional da história da humanidade. O acontecido ganhou significações numa escala crescente, quer dizer, os desdobramentos havidos conferem a ele significações excepcionais, daí porque acho interessante a hipótese de haver acontecimentos que são reveladores. Eles são “heurísticos”, eles revelam, funcionam como se fossem experimentos científicos, e é o que aconteceu. Não foi um experimento científico a queda do muro de Berlim? Claro. Não foi experimento científico a queda da Bastilha? Foi, claro. A queda das torres gêmeas também foi um experimento científico, isto é, altamente revelador. Tanto pelos desdobramentos seguintes, minuto a minuto, hora a hora, dia a dia, semana a semana e agora já estamos em meses, como pelo que revela de antecedentes. José Arbex Jr. - Professor, continuando com a provocação, procurando me contrapor a isso – o que o ato permitiu foi que Bush restringisse os direitos civis nos Estados Unidos e impusesse uma disciplina à União Européia, no sentido de restringir também a liberdade democrática, forçou o governo brasileiro a admitir, por exemplo, a abertura do escritório da CIA no Brasil e impôs um certo refluxo ao movimento organizado das massas, tanto que, no dia 29 de setembro, eram esperadas 300 000 pessoas em Washington contra o FMI, a OMC etc. e foram 15 000 pessoas. O senhor não está substituindo a sua vontade de haver reação popular pelo fato? Quer dizer, não está permitindo que a sua exposição subjetiva substitua a análise concreta dos fatos? Octavio Ianni - Não, estou evitando colocar as minhas opções, os meus ideais, estou refletindo friamente sobre o que aconteceu. O que aconteceu foi um ataque terrorista, que ganhou imediatamente o significado de um ato político excepcional, e que por seus desdobramentos e por seus antecedentes adquiriu o significado de uma ação revolucionária. Isto não está nas intenções dos autores e, ao meu ver, não está nas minhas eventuais opções ou meus ideais; isso é uma maneira de refletir sobre o que realmente aconteceu. As reações que estão ocorrendo, inclusive no sentido de direitização da recomposição da supremacia norte-americana no mundo capitalista e no mundo como um todo, são reações que, evidentemente, são fatos, mas tais reações não significam que a história vai terminar nessa direitização. Volto à queda da Bastilha. Foi um momento de um processo de transformação social da França, da Europa, e do mundo. Mesmo porque as guerras napoleônicas resultaram na independência das colônias do Novo Mundo, e isso não estava nas intenções daqueles que foram derrubar o portão da Bastilha. Eles nem estavam pensando nisso, mas os desdobramentos fogem dos horizontes e das intenções daqueles que estão atuando, assim como atos de Bush, assim como de outros, têm desdobramentos que são, às vezes, extremamente contraditórios com as suas intenções. O que os americanos estão fazendo com essa orquestração mundial da mídia, a propósito do Taleban e de Bin Laden? Transformaram o Bin Laden num ícone universal, não era essa a intenção, aliás, agora eles estão fazendo o possível e o impossível para ver como desmontar a imagem desse ícone. Quer dizer, é interessante esse processo, que nenhum fato social leva consigo apenas um significado, sempre leva vários significados que vão se desdobrando na medida em que os indivíduos, as coletividades, as nações vão reagindo. Nesse sentido, dá para acrescentar mais um elemento, como especulação, não se trata de uma subjetividade, trata-se de uma análise do que aconteceu. Será que o 11 de setembro não é, primeiro: um ataque terrorista; segundo: um ato político; terceiro: uma ação revolucionária; quarto: um marco da decadência da maior potência mundial? A decadência não vai acontecer da noite para o dia, não vai ser como as torres, não, é um processo complicado. O declínio da supremacia britânica foi longo, o declínio da supremacia holandesa foi longo, a história demonstra que o declínio de nações ou impérios é um processo complicado, contraditório, inclusive com surtos de recuperação, mas pode ser que ele venha a se tornar futuramente um marco excepcional daquilo que alguns já chamaram, até mesmo antes do dia 11, de declínio da supremacia norte-americana no mundo. Trecho II Carlos Azevedo – Mas, no plano político e no plano mais profundo, dentro da sociedade, nas grandes correntes, é possível perceber algum movimento de forças se aglutinando, ou há um processo de degradação contínua do tecido social, o que predomina, na opinião do senhor, que é um estudioso? 22 Octavio Ianni - Não dá para fazer previsões, mas dá para dizer que simultaneamente está ocorrendo um fenômeno que é realmente sério, e vocês já o estão discutindo, que é o seguinte: o espaço público ninguém mais sabe onde está. Estou convencido de que as novas gerações não têm a menor idéia de que a praça da Sé fosse um espaço público notável, simbólico; que o Vale do Anhangabaú pudesse ter sido em algum momento o “Vale do Povo”, como expressões literais e metafóricas do espaço público – o comício, o debate, a controvérsia, o partido como agente fundamental do espaço público. Então, está havendo uma mudança radical. Primeiro, a maneira pela qual vêm se desenvolvendo os meios de comunicação, os empreendimentos comerciais, os shoppings centers etc. está levando as novas gerações a confundir o shopping center, ou certos outros espaços como a própria televisão, como sendo espaço público. Na verdade, a televisão é um meio de comunicação notável, tem muita importância, mas cria uma imensa multidão de solitários porque são muitos, em todo o mundo, os que são postos diante da telinha, sós, sem um intercâmbio com os seus. Na verdade está havendo um esgarçamento do tecido social, e isso significa simultaneamente uma ênfase no privado, uma ênfase no comportamento, na auto-ajuda, na busca de soluções individuais e uma perda do sentido de história, de sociedade. O convívio entre as pessoas está se modificando e empobrecendo, está se formando um tipo de sociabilidade que é muito mais abstrata, muito mais virtual, que é a relação das pessoas com os programas de televisão, o noticiário da mídia eletrônica ou então o uso da Internet, que é um meio muito eficaz, cabível etc. Mas não dá conta daquilo que é, vamos dizer, a comunhão entre as pessoas. José Arbex Jr. - Professor, me impressiona muito a Argentina, porque lá o nível de desmonte já atingiu uma proporção de destruição do país – em 1991 eram 9 por cento de miseráveis, hoje são 45 por cento, num país que tem grande tradição de luta política. Então, apesar de já terem feito 5 ou 6 greves gerais de um dia, dois dias, estou espantado com o fato de a gente não estar vendo ainda grandes quebradeiras, e que a coisa não explodiu (esta entrevista foi concedida no dia 10 de dezembro). Parece existir uma fragmentação da sociedade civil em grau tão elevado que impede uma articulação mais efetiva pra derrubar o De La Rúa, o Cavallo etc. O senhor já pensou sobre a situação da Argentina? Octavio Ianni - A Argentina foi um país muito forte, com um nível de desenvolvimento comparativamente excepcional nos anos 20, 30 e 40, inclusive começo dos anos 50, foi o país mais avançado em termos de desenvolvimento político-cultural. Agora, o que houve foi um bloqueio crescente, primeiro com a ditadura militar, que teve outro desenvolvimento na Argentina e que tem a ver com a geopolítica da Guerra Fria, mesmo porque o movimento social e político na Argentina era poderoso e havia um questionamento no sentido de caminhar para transformações sociais mais drásticas, mais radicais. Mas a geopolítica do imperialismo, associada com alguns setores sociais nacionais, bloqueou totalmente esse processo de transformação social e conferiu poder aos militares, que fizeram o que fizeram, destroçaram grande parte da sociedade. Esse processo de desmonte continuou, desmonte das bases econômicas, do projeto nacional, desmonte das bases políticas, inclusive o sindicalismo foi bastante bloqueado, modificado, e a Argentina hoje está num estado que talvez se possa dizer de anomia – o Estado está batalhando para conformar sua economia e finanças às exigências do Fundo Monetário Internacional e isso sem nenhuma sensibilidade, sequer capacidade, ainda que quisesse, para atender às inquietações da sociedade civil, então, é uma situação totalmente anômala. É um caso avançado de divórcio entre Estado e sociedade civil, processo que se acentua no Brasil e em outros países, só que na Argentina alcançou um nível de aprofundamento muito grande. As greves e manifestações de protesto estão se multiplicando, as inquietações não têm condições de extrapolar esse cenário porque os aparelhos de controle da sociedade montados pela ditadura militar continuam presentes, continuam ativos, sem esquecer que, provavelmente, outras estejam presentes no cenário; então é uma situação de total anomia porque as inquietações sequer podem se expressar, é um caso em que se pode dizer que a sociedade está em processo de desagregação. Estou convencido, pelos dados que conheço, que a Argentina é o caso mais trágico da história da América Latina. Se deixarmos de lado Nicarágua, Chile, países onde houve experimentos socialistas, Cuba, Granada, não há dúvida de que a Argentina é o caso mais trágico, porque era um país que estava lá em cima em termos de desenvolvimento e foi jogado lá pra baixo. Mas não foi jogado só pelos erros da ditadura militar, pela geopolítica da Guerra Fria. Estou convencido de que também houve a seguinte operação: as corporações transnacionais decidiram usar o Brasil como base de operações e abandonaram a Argentina. José Arbex Jr. - Essa é a lógica da Alca hoje? Octavio Ianni - É a impressão que dá, só que a Alca tem a ver com um intento das corporações norteamericanas de recomporem a sua presença na América Latina usando, tanto quanto possível, México, Brasil e algumas outras nações, já que a participação de corporações asiáticas e européias na América Latina tem crescido. Então a Alca seria uma fórmula para realinhar esses países e esses mercados nos quadros de uma nova geoeconomia e geopolítica norte-americana. Daí porque a operação Colômbia, ao meu ver, faz parte da operação Alca, quer dizer, como se fosse uma espécie de cortina de fumaça através da qual se criam as condições para que esses governos se ajustem às diretrizes da Alca, parece. CA59_fev_ 2002 Neste mês, Henfil FARIA aniversário, nasceu em 5 de fevereiro de 1944. MORRERIA de Aids, como dois de seus oito irmãos, Mário e o Betinho. Hemofílicos, receberam na obrigatória transfusão a que se submetiam sangue contaminado. Um quase homicídio de cada um. Henfil morreu aos 43 anos, em 1988. Esta entrevista foi feita em 1983 por Neusa Pinheiro e ficou guardada até agora com a intelectual e socióloga paranaense. Uma entrevista confessional, instigante e,muitas vezes, arrepiante. 23 Ano: 1983. Sertaneja pé-vermelho, bicho do Paraná, resolvi me aventurar: Sampa, o centro nervoso espasmódico desta América. Talvez quisesse me diluir, me dissolver um pouco. Saber mais sobre o desamparo. Comecei chorando sobre o viaduto do Chá, com a chuva fina. Depois fui caminhando até escorrer bem devagar pela grandeza da avenida Paulista. Mundo pequeno. Cruzei um amigo, Ademir Assunção, jornalista, poeta. Sugeriu algumas estratégias de sobrevivência. Escrever, por exemplo. Entrevistar pessoas, ora. De cara, me passou o número do telefone de Henfil. “Henfil? Mas ele mora no Rio...” “Não, não, chegou aqui há poucas semanas, saúde precária, complicações da hemofilia, tratamento no Hospital das Clínicas etc.” Eu jamais havia entrevistado alguém. E agora? Logo o Henfil... Não podia ser o telefone da Rita Lee? Ou quem sabe o do Itamar Assunção, lá na Penha. Já conhecia o “nêgo Dito”, desde Londrina, era mais acessível... Era? Bom, e a Rita... loveLee Rita, como disse a Ná. Mas Henfil, Henfil era um mago desequilibrista. Na década de 70, num Brasil repressivo, desbancava consciências com seus cartuns – tanto o aspirante a uns poucos dias de clandestinidade, com planos cinematográficos de fuga, como o mais atuante e engajado dos democratas. Tanto os normais como os patogênicos, enfim... nem o torturador mais cruel (se lesse, às escondidas, uma tira que fosse, das sacadas “henfilianas”) seria o mesmo no dia seguinte. A partir do Nordeste (zona de refinada alquimia, onde miséria sempre se transmuta em arte), Henfil criou personagens extraordinárias para retratar, com uma riqueza e um humor sem precedentes, a história surreal de um país inteiro. Henfil. Mineiro nascido Henrique de Sousa Filho, na Vila n¼ 21 de Neves, região metropolitana de Belo Horizonte. Henrique, mesmo nome do pai, também pai do Betinho. Betinho, quase substância do sonho brasileiro, o “sociólogo esquálido”, segundo o gordo Delfim Netto; o primeiro santo ímpio brasileiro, segundo alguns amigos. Aquele que mandou às favas o academicismo estéril com a sua Ação da Cidadania contra a Miséria e pela Vida, mobilizando este bruta Brasil. Bom... Henfil. Como discar o número? Dizer não sei que lá? Certo, eu diria que na faculdade a turma da pesada reproduzia, conforme o assunto, algumas tiras da revista O Fradim, no nosso boletim, Bóia Fria. Depois, diria que, na época, revirava a imprensa alternativa em busca das charges, das histórias da Graúna, a pássara magrinha e pretinha, síntese magistral de todas as mulheres, de todos os tempos. Amava a Graúna, ela me humanizava, eu me sentia menos culpada de existir. E ria. Mas também chorava junto. contaria ainda sobre as cartas que ele escrevia de Nova York pra mãe, dona Maria da Conceição, cartas publicadas pela imprensa daqui. Me ensinaram muito sobre o meu país, me aproximaram mais de minha própria mãe e de minhas filhas. Acabei por não dizer nada disso. Aguardei alguns dias, noites de insônia. E, num repente, liguei. Ele, ele próprio atendeu. Não sei como, nem sei de onde, fui incisiva, direta: meu nome é fulana, peguei seu telefone com beltrano e quero entrevistá-lo com tal objetivo. Alguns segundos de silêncio. Então, ouvi apenas: “Quando?” “Amanhã... (eu mal respirava)... pode ser amanhã às 9?” “Tudo bem”, ele disse. Anotei o endereço, consultei o guia. Era próximo ao HC. O amanhã SERIA no dia 26 de outubro de 1983. Manhã limpa, ensolarada. Fui a pé, andando rápido, respirando forte (havia me instalado em Pinheiros, na Capote Valente). Pronto. Havia chegado. O dedo indicador mal tocou a campainha. Ele abriu a porta. Não me lembro do teor do cumprimento. Mas havia muito silêncio. Como aquelas igrejas sozinhas, perto de alguma cidade interiorana. Caminhei pé ante pé, a uma distância mínima dele, talvez um palmo aquém, sentidos a mil. Henfil ia vagaroso pelo corredor; andava com dificuldade (um tigre/quando caminha pelas pedras/vai/como pisando pétalas – o poema saiu de algum lugar dentro de mim, bem ali). Entramos num compartimento claro, sol batendo na janela. “Com licença.” (A voz dele soou como minidecreto lapidar e, num gesto simultâneo, quase imperceptível, retirou do meu rosto os óculos escuros. Até aquele momento, sem me dar conta, eu me escondia.) Imóvel, fixou o olhar no meu, um olhar percussor, operação atômica ligando fios, compondo algum novo sistema de reconhecimento. Claro, não se pode penetrar na natureza do outro sem que a nossa própria se dê a conhecer. Teoria quântica, visão mística, intuitiva... não importa. A entrevista se perdia como significante e entrava em cena uma outra dimensão, um estado inusitado de sincronismo, a certeza de um encontro com jeito de predestinação. Ele se sentou com certo desconforto, inchaço, dores fortes num dos joelhos. Mas o rosto era sereno, desarmado, os olhos já antecipando revelações. Liguei o gravador. E teve início uma estranha viagem. Henfil, o criador, o visionário, fez o retorno e veio trazendo a si mesmo. Desde quando? Me veio um sentimento imperioso de responsabilidade, como uma prova. “Atenção, e toma antes o caminho da direita, no qual está, para te ajudar, o lago da memória.” Com sua brancura quas e transparente, poderoso na voz e nas palavras, Henfil me lembrou o mito de Orfeu, que, a bordo da “branca nave” (Argo), partiu em busca de uma consciência mais elevada e ampliada, passando por duras provas. Com seus companheiros (heróis e filhos de heróis, semideuses – que, numa rápida transposição, bem PODERIAM ENCARNAR a nós próprios, esses argonautas, personagens da arte de Henfil), Orfeu foi à procura do Velocino de Ouro, a essência da alma. Mas esta é uma longa história. Henfil, um alquimista. No seu trabalho, o mágico e o fantástico eram aliados do real, revelações desse sentido plural da alma brasileira, que carnavaliza as próprias penas, que paga a peso de plumas o chumbo que leva. Cada movimento negado a si por conta da hemofilia, ele o forjou e modulou em figuras resplandecentes e ilimitadas, figuras completamente apaixonadas pela vida . Eu não SABERIA concluir o que escrevo agora. Na despedida, levei o Diário de um Cucaracha como presente. Na dedicatória, o desenho, em caneta Bic, de uma barata imensa e abusada. Voltei pra casa sem saber muito bem o que sentia. Sabia apenas que era uma vez. Uma só. E eu era outra coisa. Ao me aproximar da minha rua, ouvi uma gargalhada endoidecida e fui me aproximando. Era Teresa, uma negra imensa de voz trovejante (cantava o tempo todo) que morava ali, numas caixas de papelão. Teresa estava sentada sobre uma caixa de maçã ao lado de uma banca de revistas. Tinha nas mãos um velho Fradim e, quando cheguei perto, vi. Era a Graúna. 24 Como você chegou até aqui? É difícil ser Henfil? O por que fazer, o que fiz... como aconteceu... a palavra que vem é morte, é a palavra-chave; na maioria das pessoas, a consciência da morte vem aos poucos. Tem a morte de alguém, evita-se falar de morte; para crianças, tem os simbolismos: “foi pro céu”, “vovô foi prum país muito distante”, a morte não é uma coisa presente para as crianças em geral, se bem que criança pobre tem essa consciência muito rápido. Pra mim, apesar de não ter nascido na favela, não ter nascido no Nordeste, a consciência da morte era muito precisa porque todo mundo olhava aquela criança que nascia e dizia: “Coitadinha, vai morrer, nossa, que sofrimento vem aí”. Quer dizer, mesmo que não entendesse, eu sentia a barra e a barra era: “Vai morrer por causa da hemofilia”. Naquela época, em 1944, ninguém sabia direito o que era isso nem que o nome era esse; era apenas uma criança que nascia com uma deficiência no sangue, qualquer tipo de machucado o sangue ia saindo até a pessoa morrer. O fruto disso foi que peguei uma consciência de morte, ou seja, de urgência. Viver é uma tarefa urgente porque amanhã é uma coisa que não dá pra pensar, não dá pra fazer planos, hoje é urgente, o amanhã é a morte, ontem, graças a Deus teve ontem! Claro que isso desenvolve um comportamento que nas universidades eles chamam de psicologia: de sensibilidade e de vigilância total. Andar é uma tarefa para profissionais, o mesmo preparo que o Nelson Piquet tem pra pilotar eu tinha que ter pra andar, não podia falhar. A convivência também era uma tarefa pra profissional, equivalente à de qualquer pessoa que participe de uma batalha, na guerra; então, eu tinha que saber rastejar, tinha que parar de respirar, tinha que perder meu cheiro às vezes para não me denunciar e sofrer represália e a morte. Tudo isso fazia parte de uma criança; a sensibilidade vem daí. Se na nossa sociedade a perda dos sentidos – audição, olfato, visão – é uma coisa que “não prejudica” (todo mundo perde isso em função da civilização), se a pessoa continua sua vida normalmente, adquire erudição, vive através dos livros, do cinema, da orientação de um líder, de um pai/mãe, de uma religião, pra mim isso não bastava, eu tinha que ter o controle manual nas minhas mãos e não deixar nunca no piloto automático da orientação externa, porque minha orientação era especial, logo, eu tinha que ter o meu próprio controle. Por isso eu desenvolvi uma visão maior que o normal, uma visão de índio, um olfato de índio, uma audição de índio. Vamos exemplificar melhor: se você ouve um barulho atrás de você, você simplesmente vira o rosto e olha pra constatar o que é. Eu pulo. Me coloco primeiro fora do alcance daquele barulho e depois olho. Um dia eu estava sentado na banheira, lá no Rio, fazendo a barba, quando senti o início de um chiado que prenunciava uma explosão, pulei e atrás de mim explodiu o aquecedor, que não me atingiu. Outra vez, tô dirigindo e tem uma lombada e, sem que eu perceba, jogo o carro no acostamento e atravesso a lombada no acostamento, quando chego em cima do acostamento vem vindo um ônibus na contramão... Os meus sentidos são mais desenvolvidos que o normal. Se você sai comigo de carro vai levar um susto, tomo determinadas atitudes bruscas no volante que pra você são atitudes inexplicáveis, mas logo depois você vê que alguém fez alguma coisa ali na frente que nem eu nem você vimos, mas o corpo sente, que é a coisa de precisar dar o pulo antes. Observo as pessoas, interpreto as pessoas e procuro computar todos os dados rapidíssimo, para prever o comportamento delas, porque, se houver alguma coisa agressiva, eu já tô na defesa há muito tempo, já tô fora do alcance do ataque. Então, essa é a infância, essa é a adolescência e, quando você chega a adulto e que, óbvio, não há tantas ameaças e você tem o conhecimento do teu lado e você vai trabalhar, isso tudo passa pro teu trabalho. Então, quando vou desenhar, vou criar, a minha percepção das pessoas me parece mais disciplinada que a de qualquer outro artista. Quando vou escrever é a mesma coisa, as palavras pra mim não são gratuitas, não consigo usar nenhuma palavra de forma gratuita. Estamos conversando aqui, eu vou escolhendo. É como se eu estivesse lá na frente puxando as palavras. Claro que isso vem dessa deformação de alguém que foi treinado pra andar no meio da selva e de repente anda na cidade e fica feito aquele vovô Fracolino, do Bolinha/Luluzinha, que está sempre cercado pelos índios, quer dizer, eu tô mais ou menos desse jeito. E aí, todo um trabalho, que no caso foi escrever, desenhar, fazer televisão, ele é muito é exato, é muito rápido, é muito sensitivo, é como se eu tivesse me transformado num radar; inclusive acho que não existo como a maioria das pessoas PODERIA DIZER: “Eu sou isso, aquilo etc. e tal” – eu não sei o que é que eu sou. Nesse exato momento, por exemplo, tô tranqüilo porque há exatos dois anos atrás senti as emissões de conturbações até na área política internacional, fico detectando o que os Estados Unidos vão ou não fazer, se houve uma invasão ontem eu já sabia, já estava previsto pelas emissões que eu havia captado. E, se por um acaso o general Newton Cruz se comporta dessa ou daquela maneira no estado de emergência em Brasília, eu já captava porque já sigo as emissões do general Cruz há muitos anos. Se vem uma onda boa, eu também já estou mais ou menos preparado pra ela. Daí se explica por que a maioria das coisas que eu faço está com dez anos na frente, não na frente em termos de vanguarda, não na frente do que aconteceu, mas quase como profecia. Por exemplo, fui pros Estados Unidos entre 1973 e 1975. Senti uma série de coisas lá, todas em relação ao Brasil. Volto, dez anos depois sai Diário de um Cucaracha, um livro que está vendendo paca. Lista dos mais vendidos, primeiro lugar na lista da Veja, mas acho interessantíssimo como as pessoas só agora descobrem algo como o que está escrito no Diário que pra mim já tem dez anos, já passou. Só hoje elas estão tomando conhecimento de como nós somos tratados pelos Estados Unidos, pelas multinacionais, de como somos baratas, de como somos cucarachas, de como eles não nos respeitam. Então, hoje, qualquer brasileiro sabe o que é ser cucaracha, mas isso foi uma vivência minha anos atrás, e o livro fica atualíssimo. Outro dia me escreveu um cara, um adolescente. Tinha uns 15 anos, morava no Rio de Janeiro, logo, era um adulto, e ele lia o Fradinho, adorava, achava muito engraçado mas não entendia nada, e guardava, e hoje, dez anos depois, ele resolve ler e fala: meu Deus do Céu, tudo que falava lá agora eu tô entendendo: o que está acontecendo, inclusive a mudança de atitude das oposições no Brasil, as táticas diferentes mais abertas para uma ação, vamos dizer, dialética ou mais contraditória, mais imprevisível, as oposições hoje no Brasil não têm mais aquela previsibilidade de antigamente e o Fradinho propunha isso dez 25 anos atrás. Foi como quando bolei um filme em 1973 em Nova York, que se chamava Deu no New York Times e que contava o papel da imprensa na criação de fatos que não existiam mas que passavam a existir porque ela publicou; e só hoje, dez anos depois, tenho condições de realizar esse filme porque os produtores estão vendo que o filme é atualíssimo. Essas campanhas que eles vão criando sobre fatos que não existem, mobilizam a opinião pública pra cantar determinada coisa que nem passava pela cabeça do povo cantar, mas aí a imprensa diz que é o que o povo está cantando e o povo passa a cantar. Então acho que qualquer outra explicação sobre por que saí por onde saí e faço o que faço da maneira que faço tem que passar por entender isto: a morte, o sentimento de urgência e a sensibilidade ultradesenvolvida para se proteger da morte. Você se salvou fazendo o que sempre quis. E as pessoas de que você fala, as pessoas da sua geração, como estão? Olha, cada vez mais percebo que, na realidade, eu não estava fugindo da escola, não, eu estava fugindo da idade, talvez por isso tenha tomado tantas bombas, pra ficar junto dos que estavam vindo ainda e não tinham feito nenhuma opção. Eu me sentia muito bem com 17 anos, convivendo com a turma de 11, 12 anos, não lembro de me tratarem como mais velho, era igualzinho. E hoje, por exemplo, não consigo conviver com os da minha idade, com os de 39 anos. Ou convivo com os de 70. Meu maior diálogo no momento é com Teotônio Vilela, que está com sessenta e poucos anos, mas PODERÍAMOS DAR duzentos, porque de cabeça ele tem uns duzentos anos. Tem muitos amigos assim. Agora, só consigo conviver com a turma de 20, 22. Minhas relações acabam sendo fáceis mesmo com a turma entre 16 e 20 anos. Então tem um outro mistério nesse negócio: de novo tô eu na 3» série ginasial, apesar de o meu grupo já estar na universidade! Eles, pra mim, estão mortos, chego lá, nem entro na casa, já sei como é a casa dele, a relação com a mulher, com o filho, com a profissão... ficam vendo televisão como se fosse informação de alta precisão e importância, lêem jornal com cuidado como se estivessem lendo documentos egípcios, decifrando pedras como Champolion, e não percebem o ridículo das suas roupas, dos seus hábitos, das suas casas, dos seus carros, cargos. Eles me constrangem muito e me fazem adoecer. Tenho muitos amigos que eu gosto deles, eles gostam de mim, mas as nossas relações estão cortadas por essa situação. Eles ameaçam a minha saúde, fico muito constrangido. Se a Graúna, quando fica constrangida, tem desarranjo intestinal, eu fico doente também. Não com desarranjo intestinal, mas me dá dores, eu fico com artrite! A Graúna é meio sacana às vezes. Mas a gente se apaixona por ela... a Graúna tem alguma coisa a ver com o seu lado mulher? Não. Inclusive, outra coisa em que não embarquei foi esse negócio do lado mulher. Descobri que realmente existem homem e mulher, duas coisas, completamente distintas. Os homens que se fazem mulheres, no caso dos travestis, são bem diferentes delas, são como homens vestidos de mulher, tomam a forma de mulher mas são homens, não adianta, isso faz parte de uma coisa que a natureza nos dá a todos, mas com muita diferença. Por exemplo, esse comportamento infantil é típico do homem... é... a criancice é típica do homem. A mulher nunca foi criança, nunca será criança. Ela vem preparada pra ser algo especial no mundo, que, no caso, é uma coisa irreversível, não há nada que possa evitar isso que é o gerar filhos. Ela é mais preparada numa série de coisas. O filho do homem é a bomba atômica, é o plástico, quer dizer, ele tem que arrumar uma outra forma. Tanto que Deus, que é homem, arrumou barro pra brincar de fazer a Terra, os seres humanos, deu o sopro, aquelas coisas... Nossa Senhora não precisou fazer nada disso. Simplesmente gerou Jesus Cristo, só isso e já fez tudo. O fato de ter um filho torna a mulher um ser adulto desde que nasceu, inclusive ela está pronta pra ter o filho, as meninas desde criança são especiais, você nota. Uma menina é muito mais viva, muito mais rápida, muito mais agressiva, muito mais inteligente do que um menino. Depois, como a disparidade é muita, o que a sociedade faz através das mães, da mulher? Ela paralisa o desenvolvimento da menina. Como? Desviando pra tarefas menores, como cozinhar, lavar, varrer chão, que é uma coisa obrigatória pra qualquer menina, ou desenvolver uma outra sensibilidade, mas fora da convivência social, como balé, piano, violino, quer dizer, paralisam a menina. O menino, por outro lado, é superativado porque em geral ele é muito bobo, é muito devagar, é mais burrinho; ele não é agressivo, é chorão, é superdevagar. Então, o que fazem? Esporte pra que ele fique mais rápido porque, se deixar, o homem fica mais fraco do que a mulher. O homem não tem estrutura física nenhuma; só tem osso, mas é através do esporte que ele fica mais forte, tanto que o intelectual, aquele que não teve uma atividade física, é muito frágil, magrinho, aquela coisa desprotegida, qualquer mulher com um tapa derruba ele. Então, o homem vai desenvolvendo, através do esporte, através do jogo, através do exército, agressividade que não tem. Ele é treinado tanto, que os primeiros dias no exército são um terror pra qualquer homem, mas depois ele é condicionado. À escola, só o homem ia, só o homem tinha conhecimento, lia pra que, quando chegasse aos 30 anos, fosse igual a uma menina de 15. Tanto que, antigamente, homens de 30 se casavam com mulher de 15, porque, se casassem com mulher de 30, eles estavam esmagados. Quando eles chegavam nos 50 anos, a mulher estava chegando nos 30, e eles estavam iguais, o homem era capaz de perceber. É por isso que os casamentos davam mais certo, porque não havia tanta distância de inteligência entre o homem e a mulher. No entanto, ainda assim a mulher efetivamente é mais adulta. O homem endurece o corpo à força dos exercícios físicos, através de um comportamento que a mãe influencia; se vê ele brincando de boneca, de casinha, vai dizer “mariquinha” – a mãe é que fala, o pai nem passa isso pela cabeça, o pai é o meninão que está no bar dando cuspe na parede, bebendo, se exibindo feito qualquer criancinha. Todos os pais são meninos, vão pra campo de futebol, ficam torcendo, gritando e, na hora do gol, carregam os jogadores... isso é o pai. Mas a mãe está ali vigilante, endurece o jogo com o menino, então esse menino vira o que eles chamam de homem, esse homem cumpre as suas funções, mas jamais deixará de ser menino... Ah, sim, a parte mulher, 26 então esse homem se transforma, se embrutece, é morto como ser humano e é capaz inclusive de virar um Fleury, vira um cara esquadrão da morte. Devido a esse treinamento, mataram o menino que ele vai ser até o fim... se deixassem, a gente TERIA um bando de homens meninos por aí e as mulheres cuidando de tudo. Bem, quando você disse que existe a parte mulher, não é justamente essa coisa a parte menino, essa parte que dizem feminina só existe naqueles meninos que não viraram homem, que não foram transformados, torneados, exercitados para serem homens, homens fortes, homens soldados, homens músculos, homens atletas, homens massa. Só terão essa parte chamada mulher ou chamada menino os homens que escaparam do treinamento. E as mulheres permanecem nas suas funções normais, que é menina que vai ter criança e que, portanto, vai continuar convivendo com os meninos e meninas dentro dessa convivência de sensibilidade, de ter de perceber tudo pra saber se vai chorar ou não vai chorar. O homem que permanece menino, dizem que isso é a parte feminina, não tem nada a ver, apenas eles se salvaram. Agora, os homens estão sendo dispensados gradativamente dessa tarefa de lutar, porque as armas estão substituindo os homens, o soldado não está com nada; hoje, o míssil substitui milhões de soldados, então não precisa preparar o homem pra ser soldado, e com a entrada, por fatores econômicos, da mulher no mercado de trabalho produzindo riquezas etc., essas mulheres começam a deixar de ser infantis, a deixar de ter sensibilidade e, apesar de estarem preparadas biologicamente pra ser mulheres, elas se transformam violentamente, elas se transformam em seres que têm a mesma brutalidade dos chamados homens. Por exemplo, Golda Meir em Israel fez todas as guerras; Indira Ghandi fez todas as guerras e continua com o poder na Índia; guerras, massacres incríveis em cima daquelas tribos. A mulher mais perigosa na política internacional, hoje, é a Margaret Thatcher na Inglaterra, que invadiu as Malvinas, que invade o que for, que tem uma política agressivíssima, está rearmando a Inglaterra internamente, leis de exceção etc. E temos no Brasil uma série de mulheres muito mais perigosas, em todas as áreas, do que os homens; e os homens, como foram dispensados disso, tem muitos homens meninos aí. Então, o homem que está surgindo, o novo homem, é muito mais frágil fisicamente do que o homem de dez anos atrás, e temos aí uma série de mulheres fortes fazendo cooper, musculação; a dança é praticamente um treinamento físico, talvez mais rigoroso que o exército. São mulheres fortíssimas fisicamente e vão virando aquilo que o povo na sua ignorância e sabedoria diz, a mulher está virando homem e é neste sentido: endurecimento, embrutecimento, rigidez, está tendo enfarte, vão ficar carecas, está tendo todos os problemas que o homem tinha quando passava por isso. E diz o povo, na sua sabedoria, que os homens estão virando mulher e, então, sim, aquilo que se chamava mulher, que é menina, a sensibilidade, a brincadeira, você pega qualquer grupo de rapazes, parecem meninos indefesos. Eu vou fazer conferências e descubro que 99 por cento da platéia são mulheres; lançamento de livros, mulheres; quem lê os livros, mulheres; quem está no comando médio das empresas hoje, mulheres; daqui a pouco elas estão no comando total. E veja como esse negócio de lado feminino é uma brincadeira dos meninos cantores que inventaram isso pra serem mais agradáveis à platéia musical, que é constituída de mulheres. São elas que compram discos, então eles ficam paparicando as mulheres com isso “ser menino e menina”, “o meu lado feminino”, e vem o Gil, o Caetano, todas essas pessoas que são fisicamente frágeis são meninos brincalhões, daí as mulheres fortes musculadas ficam adorando e até incentivando isso, porque o homem vai ser desarmado. A mulher percebeu – a mulher especial chamada mãe – que aquele menino que era inofensivo e brincalhão e que ela ajudou a transformar em soldado perigoso, esse homem ameaçava a vida das mulheres, então parece que elas resolveram desativar isso e só vamos ter homens frágeis, pianistas. Os homens ficam estudando estrelas e as mulheres vão trabalhar, vão dominar o esquema financeiro, econômico e vão à guerra, inclusive porque vão estar mais preparadas fisicamente. Quer dizer, há uma questão aí, que falo em termos caricaturais, mas isso que é muito próximo do real e que não há condições de existir no homem o lado feminino. Henfil, como é que você imagina, hoje, o encontro entre um punk e um hippie da década de 60? Um encontro entre o shopping e o MacDonald’s. Os dois são produtos fabricados, fabricações de laboratório. Não vejo o menor conteúdo político, social ou econômico nesses dois fenômenos. Eles só existiram porque são inofensivos e portanto interessam, podem ser veiculados pela imprensa, pela televisão... eu já tenho algum tempo de vida pra ter assistido a fenômeno semelhante, como o ator James Dean, de Juventude Transviada – surge um comportamento padrão para que determinados tipos de pessoas possam se enquadrar. Você veja que, de um lado, aqueles que se enquadram como punks usam roupas iguais às de seus idealizadores americanos porque qual é o punk brasileiro, por exemplo? É o trombadinha. Então, o produto estrangeiro veio, os caras adaptam. Agora, nós temos a grande massa que se identifica com um outro modelo que é o do corredor que usa Adidas, esportista, aquelas coisas. Enfim, o que nós temos são fábricas, os criadores se sentam em volta de uma mesa, e a partir do zero criam alguma coisa, fazem o produto e as pessoas vão lá e se enquadram no produto, consomem o produto até que uma nova fábrica tenha no seu departamento de criação uma nova idéia... as pessoas largam aquela e passam a adotar essa. É mais ou menos como se a indústria farmacêutica fizesse o seguinte, e faz: cria o remédio, depois cria a doença. Até fiz um cartum que é assim: um cientista chegando pro dono do laboratório, falando: “O seu remédio foi aprovado, agora o nosso departamento de marketing está estudando a criação da doença”. É isso que a gente vê por aí. Meu filme Deu no New York Times é exatamente sobre isso, como é que você cria alguma coisa que não existe e as pessoas passam a se comportar a partir daquilo. No caso, vou criar uma notícia sobre um fato político, uma nação inteira passa a adotar o que é dito. Você veja como de repente a Sony lança o walkman e todo mundo passa a usar o walkman. Bem, resolveram criar a discothèque. Bolaram todo um plano, depois criaram alguns filmes. Aqui no Brasil juntaram alguns compositores, pegaram As Frenéticas e criaram o Dance, Dance sem Parar... veio a Rita Lee e entrou, veio Gil e entrou, veio Caetano e entrou, todo mundo entrou, 27 prepararam e todo mundo saiu dançando, e pra isso precisava um tipo de sapato que era meio de saltinho alto, meia colorida comprida, um tipo de saia, um tipo de bustiê, um tipo de coisa amarrada na cabeça, óculos multicoloridos; e os homens, a camiseta, com os braços de fora, um cintão, um botinão, uma calça superjusta e colorida, enfim, como o Travolta aparecia no filme. E aí todo mundo saiu consumindo isso. E muito dinheiro foi ganho pelos produtores dessa cultura dita universal. Você pode, inclusive, comprar ações dessa cultura, você vai na bolsa de valores e pede: “Eu quero ações dessa nova cultura que vem aí”. Então eles falam: “A nova cultura é Rhodia”. Você compra ações da Rodhia e aí você vê grandes nomes da música, da literatura e do cinema que passam a ser empregados dessa Sociedade Anônima Cultural. Com tudo isso, fala-se em final dos tempos, final de milênio... como é que você FARIA um cartum sobre isso? Eu não aceito esse negócio de milênio. De repente, nós aqui, a partir do nascimento de Cristo, comemorando o ano 2000 depois de Cristo. Ora, ora, ora, os orientais estão comemorando o ano 20000, os judeus comemoram não sei se o ano 4000, por aí. Os índios comemoram o quê? Um milhão? As pedras comemoram o quê? O ano 1 trilhão? As águas, que ano estão comemorando? Ora, ora, ora, DIRIA o Teotônio Vilela quando fica irritado, não há milênio coisa nenhuma! Como é que há milênio se neste exato momento nós temos um satélite, maravilha da tecnologia, girando em torno da Terra, que possibilita as comunicações por telefone a distância, o DDI, o DDD; pois bem, vamos pegar um telefone desses, vamos levar esse telefone, como já está sendo levado, como a maravilha da tecnologia, e vamos ao sertão do Piauí e colocamos na boca do sertanejo pra que ele dê testemunho dessa maravilha, dessa tecnologia. O que é que ele vai falar? Ele vai falar: “Socorro!” É pra isso que serve a tecnologia, pra aproximar do primarismo que a gente está vivendo. Então não existe ano 2000, não adianta computador, se ele vai computar quantas pessoas, quantas crianças morrem em mil de fome, de sede, quer dizer, nós não temos água garantida pra todo mundo, apesar de ter água. Então, isso de milênio é mais uma promoção do departamento de marketing da Sociedade Anônima Cultural, é uma farsa. Não entro nessa sociedade anônima, não compro ações do shopping center, não pertenço ao shopping center; as pessoas entram, eu saio. Tem esse negócio chamado década, década de 60, década de 70... que década o cacete! Não existe isso. E eu não tenho 39 anos. Eu tenho milhões de anos, já tenho conhecimento mínimo suficiente hoje pra saber que sou fruto genético de uma ameba. Não sou filho de dona Maria da Conceição. Sou filho de uma ameba há trilhões de anos. Não tenho 39 anos, tenho trilhões de anos. E tem planos? Quais são seus planos? Planos? Tenho. Esticar a minha vida o máximo possível – e é possível – desde que eu viva intensamente os meus segundos, então tenho urgência. Meu plano é: se vou morrer, não tenho tempo a perder. E, como sou herdeiro de uma simpática ameba há trilhões de anos, tenho que dar seguimento a isso rapidinho porque não quero ser como a gente vê no Fantástico, aqueles milhões de células, milhões de espermatozóides querendo fecundar alguma coisa; e uns vão parando no meio do caminho, se distraem, não prestam atenção, se perdem e aí não fecundam! Eu quero fecundar alguma coisa, então tô com muita pressa e tô prestando muita atenção porque a minha morte vai se dar no dia em que eu fecundar alguma coisa. Você tem medo da morte? Não. Eu tenho medo é de avião. CA60_mar_2002 Conceição Paganele é mãe de muitos filhos. São cinco de sangue, um de adoção e milhares de outros – os internados da Febem. Ela é presidente da AMAR – Associação de Mães e Amigos de Crianças e Adolescentes em Risco. Sua luta é contra a ilegalidade e a arbitrariedade da Fundação do Bem-Estar do Menor do Estado de São Paulo – responsável pela guarda de 4.700 crianças e jovens de 12 a 21 anos de idade em 57 unidades de internação. Viúva, criou os filhos sozinha e fez de tudo para proteger o caçula, dependente químico há seis anos, sem conseguir qualquer tipo de amparo social ou médico. Aos 16 anos, já viciado em crack, Cássio foi preso e internado na unidade do Tatuapé. Conceição enxugou as lágrimas e foi para o front: munida do Estatuto da Criança e do Adolescente e de seus direitos maternos, passou noites na Febem, mediou rebeliões, denunciou torturas e maus tratos e se uniu a outras mães para fundar a AMAR, que em 2001 ganhou do governo federal o Prêmio Nacional de Direitos Humanos. Nem por isso a luta se tornou mais fácil: a Febem fechou as portas para as visitas da associação e de outras entidades de direitos humanos. Agora, o telefone da AMAR não pára de tocar: as mães querem saber por que seus filhos trancados, humilhados e sem escola decente não podem ser transferidos para aquela unidade com piscina e computador que aparece nas propagandas do governo pela televisão. TRECHO 1 Marina Amaral - Vamos começar com a senhora contando como se tornou presidente da AMAR, como foi a sua história como mãe da Febem? Conceição Paganele - A minha história acho que é igual à de quase todas as mães que vieram a ser mães da Febem, as mães que tiveram seus filhos internos na Febem. Infelizmente, meu filho passou a ter envolvimento com drogas e busquei na comunidade – no Fórum da Vara da Infância mais próximo da minha casa – ajuda, de alguma forma, para que pudesse tratar o envolvimento dele com as drogas. Não encontrei porque não existe. O Estado, o município e a comunidade não estão preparados para receber, tratar ou dar atenção a esses jovens 28 que, infelizmente, se envolvem com o mundo das drogas. No início, fui pagando ao traficante para que meu filho não morresse. Eu o tirei várias vezes das mãos do traficante. Nós entramos muitas vezes no meio do tráfico, no meio de lugares horríveis – eu e meu filho mais velho costumávamos falar que íamos ao inferno e conseguíamos sair. Porque entrávamos altas horas da noite em locais assim... Mylton Severiano - Em que bairro era isso? Conceição Paganele - Cidade Tiradentes, zona leste de São Paulo. Marina Amaral - E o seu menino tinha que idade nessa época? Conceição Paganele - Na época, ele tinha 15 para 16 anos. Isso, quando descobrimos. Desconfiei do envolvimento com as drogas quando ele não recusava ir à escola, tinha muita vontade de ir à escola. Ele estudava de manhã e, quando eu o acordava, ele rapidinho levantava e ia. E antes ele não era tão disposto, tinha sempre aquela manha, aquele pouco de preguiça. Palmério Dória - Perdão, que tipo de droga? Conceição Paganele - No início foi a maconha, mas depois vieram outras mais fortes, como a cocaína, o crack. José Arbex Jr. - A senhora disse que pagava o traficante. Como é isso? Conceição Paganele - Pra que ele não matasse o meu filho, pois ele estava devendo para o traficante. Houve ocasiões de o traficante ir na minha porta para puxar a arma e tirar a vida do meu filho. Palmério Dória - Por quanto ele mataria o seu filho? Conceição Paganele - Por 5 reais. Por 1 real que se deva no tráfico, se mata. Não se pode dever no tráfico, de jeito nenhum. Palmério Dória - Tem data marcada para pagar? Conceição Paganele - Tem, e não pode ultrapassar. Se eles derem um prazo de dois ou três dias, tem de ser em cima daquela data, senão paga com a vida mesmo. E a da família também. Sérgio de Souza - Como são esses lugares infernais? Como a senhora os DESCREVERIA? Conceição Paganele - Numa época da vida, quase me tornei uma indigente de uma praça lá na Cidade Tiradentes, porque saía depois que meus outros filhos dormiam e ia atrás desse, que é o caçula, naquela praça que eu sabia que era um local de tráfico. Eu ficava no meio dos usuários de drogas e até dos próprios traficantes. Eles fumavam muita maconha. Achava que, estando ali próxima, até do próprio traficante, ESTAVA GARANTINDO a vida do meu filho, e de certa forma estava. Chegou um momento em que vizinhos chamaram a minha filha e falaram: “Tira a sua mãe de lá, porque vai chegar um momento em que ela será presa. Na hora em que a polícia abordar, vai achar que ela está no meio do tráfico”. Graças a Deus, quando houve essas abordagens, eu não estava lá. Mas eu não tinha medo, pois achava que alguma coisa IRIA ACONTECER e que NÃO IRIA PRESA, porque eu estava ali zelando, procurando, esperando o meu filho. E um dia ele me avistou, mas, como não queria me ver, ficou longe e seguiu para outro lugar. Aí veio uma moça que era namorada de um dos rapazes e me falou que sabia onde estava o meu filho – isso era mais ou menos umas 2 horas da manhã, no mês de junho, aquele sereno, aquela garoa bem gelada. Eu falei: “Me leva lá”. E ela disse: “Levo”. E fui com duas mocinhas. É numa escadaria – em que passo quase todo dia –, lá em cima ficam os bandidos, uma quadrilha bem organizada... Guilherme Azevedo - É na Cohab? Conceição Paganele - É. E lá estava o meu filho com 15 anos. Era uma noite escura, estava esquisito mesmo o tempo. Então vieram aqueles homens todos com armas nas mãos. Um falou assim: “Aí, tia, ainda bem que você está de saia” – pois eu estava com uma saia longa, já toda molhada pela garoa – “e a gente percebeu que era mulher. Nós estamos à caça de...”. Ele disse alguma coisa que não entendi o que era e falei: “Eu estou procurando o Cássio, sou a mãe do Cássio”. Eles falaram: ”Cássio? A gente não conhece nenhum Cássio”. “Mas me falaram que ele está por aqui, no final de uma escada”. Daí um falou: “Ah, o Cau”. Eu falei: “É”. “Ah, está bom. Vamos lá, que ele está lá.” E lá encontrei o meu filho cercado por outros jovens, até adolescentes e outros maiores. Nessa época, ele era usado como “aviãozinho”. Por exemplo, o bandido precisava de uma arma para fazer determinado serviço, ou precisava das coisas deles lá, e o mesmo era usado para isso, então ia correndo pegar aquela arma, buscar droga, sei lá. E ele já estava usando drogas. Nesse dia, em que me vi naquele lugar horrível, tão escuro, tão frio, com aqueles homens altos, mal-encarados, nesse dia eu considero que fui ao inferno e voltei. Teve um outro episódio com o meu filho mais velho em que ele entrou também numa bocada terrível e, quando chegou em casa, as roupas dele fediam a drogas. Ele foi justamente fazer um acerto porque os caras queriam matar o irmão mais novo. Então ele foi lá, conversou e fez um acordo com eles, marcando que no outro dia LEVARIA o dinheiro. Esse dinheiro, a gente pegava emprestado, com agiota, empréstimos... Fomos perdendo. Acabei perdendo cartão de crédito, talão de cheque. A gente foi se envolvendo bastante com os pagamentos. Mas a droga é um saco sem fundo, não adianta, não temos condições de suprir a necessidade das drogas, principalmente gente pobre. Mas não queríamos, de nenhuma forma, que meu filho morresse nas mãos dos traficantes. Um dia, eu estava com uma banquinha de pastel num evento que aconteceu na comunidade, e a minha filha foi me buscar, foi correndo atrás de mim, porque o meu filho tinha sido ameaçado na esquina por um rapaz que passava drogas, por causa de 5 reais. Minha filha dialogou com ele: “Espera só um minutinho, que a mãe vai chegar e vai te dar esse dinheiro”. Tirou o meu filho do meio deles e levou para dentro, e o cara ficou me esperando na porta. Palmério Dória - Como o seu filho se comportava dentro de casa? Era agressivo? Conceição Paganele - Não, no começo ele era tranqüilo, porque a maconha deixa tranqüilo. Quando ele estava só na maconha, só dormia e comia. Só que ele queria comer a casa inteira. Palmério Dória - A maior larica, né? 29 Conceição Paganele - É, ele consumia tudo. Mas, aí, como ele era adolescente, eu não sabia se era droga ou se era da própria adolescência aquela coisa estranha de dormir e de comer. Foi quando começou. Depois, na cocaína, ele ficava agressivo. Durante o uso, enquanto estava drogado, ele não era agressivo, mas depois ficava assim. José Arbex Jr. - Era cocaína ou crack? Conceição Paganele - Crack. José Arbex Jr. - Depois da cocaína? Conceição Paganele - Aí veio o crack. Mylton Severiano - E aí ele foi parar na Febem? Conceição Paganele - Chegou um momento em que não tínhamos mais condições de pagar. Fui no Conselho Tutelar, mas não tem uma clínica, não tem nada para onde eu pudesse encaminhar esse jovem. Procurei a imprensa, procurei os gabinetes de deputados, procurei muita gente, para alguém conter o meu filho de qualquer forma, porque ele ia matar algum amigo, porque a situação dele era muito grave. Mas não encontrei apoio nenhum. Palmério Dória - A iniciativa de ele ir para a Febem foi da senhora? Conceição Paganele - Não. Ele roubou. Roubou para esses próprios traficantes. Estava devendo uma quantia e eles o convidaram pra roubar. Era de um carro que eles precisavam. Conseguindo roubar aquele carro, ele PAGARIA a dívida, mas foi preso. Sérgio de Souza - Quantos filhos a senhora tem? Conceição Paganele - Tenho cinco, aliás, seis, porque tenho um filho adotivo de 8 anos. Sérgio de Souza - Esse foi o único que deu problema? Conceição Paganele - É. Só o meu caçula. Palmério Dória - E aí esse inferno começou na Febem? Conceição Paganele - Já era muito difícil a questão da droga, mas, quando ele foi preso, alguém me falou que IA para a Febem – até então, eu não tinha conhecimento do que era a Febem. Givanildo Silva - Qual era a idéia que a senhora tinha da Febem? Conceição Paganele - Quando procurei saber o que era Febem, a Fundação do Bem-Estar do Menor, pensei: “Graças a Deus. Ele vai para um local onde será tratado. Vai ter apoio, vai ter tudo aquilo que eu não tive condições e não encontrei nem na comunidade, nem no município, nem no Estado”. Achava que lá dentro ele IA TER assistência, IA ESTAR CONTIDO, IA TER psicólogos, trabalhos profissionalizantes, tudo. E fiquei feliz quando aconteceu isso. Triste era quando meu filho estava preso dentro de uma delegacia, algemado. Foi muito difícil para nós, principalmente quando a polícia chegou na minha porta com o carro da Rota, foi engatilhando aquelas armas pesadas no meu portão e falou assim: “A senhora tem mais filhos? Eles trabalham ou são todos bandidos?” Foi dessa forma que eles nos abordaram na minha casa, aí falaram que na minha casa tinha armas. Minha filha abriu os portões e falou assim: “Entre e procure a arma e a droga que tenha dentro da minha casa”. TRECHO 2 Givanildo Silva - Dona Conceição, uma curiosidade minha: os evangélicos têm um rigor em conduta e tudo o mais. Sendo evangélica, como viu seus valores quando a polícia chega e diz que seu filho é bandido e, de repente, é preso numa delegacia? Conceição Paganele - É uma vergonha geral, né? É uma coisa muito triste. Depois de ir na Imigrantes e encontrar meu filho naquele estado, cheguei em casa – minha irmã era conselheira tutelar – e fui correndo falar com ela que algo TERIA QUE SER FEITO, porque as mães, os pais de família não PODERIAM PASSAR por tamanha humilhação, NÃO PODERIAM SER maltratadas pessoas decentes, porque ali não estavam só os traficantes ou a quadrilha organizada – que se organizou justamente porque não tiveram outro meio, porque não lhes foi dada melhor oportunidade de vida, por isso se organizaram no mundo do crime, no mundo do tráfico, como aconteceu com o meu jovem, que com 14 anos pegou a carteira profissional dele e foi procurar serviço. Bateu em muitas portas, o sonho dele era ser office-boy, ganhar os três primeiros salários e comprar tudo de roupa no shopping. E, como ele morava na Cidade Tiradentes, que é longe, e a escolaridade era 5a série, ninguém lhe deu oportunidade, e aí veio a decepção das drogas, de ele ingressar nesse mundo. Devido a isso, tudo acontece terminando na Febem. Mas acho que nenhum ser humano, nenhum pai de família deve passar por isso. Eu falava para a minha irmã: “Algo tem que ser feito, porque não é possível”. E ela dizia: “Você acha que outras pessoas já não tentaram? Você pensa que é fácil? Você não vai conseguir, porque é uma instituição muito fechada, não adianta”. Eu falava: “Não. Alguma coisa precisa ser feita”. Givanildo Silva - QUERIA EMENDAR outra pergunta. Podemos dizer que os evangélicos, do ponto de vista da conduta, são muito conservadores. Qual era o seu olhar em relação aos meninos de rua, ou aos que estavam na Febem antes de o seu filho ir para lá? Conceição Paganele - Eu nunca me incomodei muito, não me preocupava com essa questão. Via muito meu lado pessoal: eu, viúva, cinco filhos, tive que trabalhar muito duro e achei que tinha dado o melhor de mim na educação, na criação dos meus filhos. Um dia, me vendo muito triste, o mais velho falou: ”Mãe, não fique triste. As coisas ruins não acontecem só na casa do vizinho, acontecem na casa da gente também”. Ele disse isso no dia em que o irmão foi preso. Então comecei a perceber que aqueles meninos que estavam no tráfico ou na rua tinham também uma história de família e, infelizmente, por algum motivos tiveram aquele destino. Palmério Dória - Numa hora, a barra pesou. Qual foi o momento em que a senhora ficou totalmente alarmada? Conceição Paganele - O momento mais difícil foi quando meu filho, no começo da rebelião, tentou fuga e quebrou os dois calcanhares. Ele não tem calcanhar, tem platina, então tem uma deficiência hoje, infelizmente. E 30 a minha maior mágoa da Febem, e aí realmente achei que algo TINHA QUE SER FEITO, foi quando ele ficou jogado por três dias num PS do Hospital do Tatuapé e ninguém me comunicou; na minha casa tinha telefone e eu era uma mãe presente. Fui avisada por uma senhora da Igreja da Graça. Ela passando, evangelizando o hospital, e ele implorou que ela ligasse para minha casa, pedindo que eu fosse para o hospital, que ele estava morrendo. E essa senhora me ligou por volta das 5 horas da tarde, já no terceiro dia, eu liguei na unidade e a assistente social, a Andréa, falou: “Não se preocupe, dona Conceição, porque ele está bem. Inclusive, já tentou outra fuga”. Eu falei: “Andréa, não acredito. Meu filho tem as duas pernas quebradas”. “Ah, mas a senhora não vai poder visitar hoje, porque tem que fazer uma autorização”. E eu falei: “Se vira, faça a autorização, porque estou saindo da minha casa agora e vou ver o meu filho”. “Mas vai chegar depois das 7.” “Não importa. Às 10 que eu chegue, estou indo ver o meu filho.” Aí, quando cheguei – ele é clarinho, eu sou mais morena –, as pernas dele estavam muito inchadas, pretas igual carvão, havia bolhas de água muito grandes, parecia queimadura, e ele urrava naquele PS, naquele corredor. Fui entrando e já ouvia os gritos dele. E veio aquela burocracia, que não podiam deixar eu entrar. Mas, depois de dizer que era a mãe e não estava sabendo do ocorrido, me liberaram quinze minutos pra ficar com ele. E eu era tão leiga no assunto, tão ingênua, que não sabia que PODERIA FICAR acompanhando o meu filho, porque isso é garantido pela lei. Ele tinha direito a um acompanhante, mas ninguém, nem da unidade, nem os procuradores do Estado da Vara da Infância, liberou essa informação. Marina Amaral - E nem o próprio hospital? Conceição Paganele - Não. O hospital me discriminou porque o meu filho era da Febem e tinha uma escolta, e eu não PODERIA VÊ-LO, nem estar presente, porque ele era infrator. Eu falei: “E daí? Para o Estado, ele é infrator; para mim, não, sou a mãe; e para vocês ele é paciente – está aqui porque está doente”. E aí comecei uma briga muito grande dentro desse hospital, mas sozinha, porque não conhecia nada da lei, não conhecia o Estatuto da Criança e do Adolescente, não conhecia ninguém que pudesse me orientar. Aí, no outro dia, busquei o Conselho Tutelar, não foi nem a minha irmã, foi a Conceição, uma conselheira, quem me orientou e fui ao Fórum. Lá, o doutor Flávio, procurador, fez um documento, o juiz assinou, me dando autorização de ver meu filho nos dias de visita, mas só no horário de visita. Até nisso, o Estado me deve, porque também me discriminou. Não é possível que um procurador não saiba que meu filho tinha direito até a acompanhante e que eu era mãe dele, e o juiz assinou uma autorização de vê-lo somente nos horários de visita, NÃO PODERIA PERMANECER nem um minuto antes, nem um minuto depois dessa visita. Sérgio de Souza - Em que ano foi isso? Conceição Paganele - Em 1998. José Arbex Jr. - Dona Conceição, uma coisa me despertou curiosidade. Quando um alcoólatra não consegue mais álcool, ele entra em síndrome de abstinência, a mesma coisa no caso de crack, ou de cocaína. Quando o seu filho foi levado à Febem, ele conseguiu ou não drogas lá dentro? Conceição Paganele - Conseguiu. José Arbex Jr. - Como funciona isso lá dentro? Conceição Paganele - O que a gente sabia é que alguns funcionários mantinham os dependentes com a droga mais leve, a maconha. Era preciso manter para não haver essas reações, por exemplo, de fuga, de se exaltar mais. Depois foi analisado, pelo menos a equipe técnica falou que a questão de ele tentar fuga era justamente o momento de abstinência, ele tinha muita ansiedade. José Arbex Jr. - Mas os funcionários mantinham o abastecimento de drogas legalmente, com assistência médica? Ou era por fora, eles ganhavam dinheiro com isso? Conceição Paganele - Não, com meu jovem, não. O meu, pelo menos... Houve casos de tráfico dentro da Febem, teve meninos nossos que foram usados lá dentro para fazer o próprio tráfico. Tem uma mãe nossa da AMAR que contou isso. Givanildo Silva - Mas aí a questão é outra, porque existe a possibilidade de usar drogas de forma medicinal. Era usada dessa forma dentro da Febem? Conceição Paganele - Não de forma medicinal, mas assim: um determinado funcionário entrava com uma pouca quantidade de... Givanildo Silva - Mas ele fazia o tráfico? Conceição Paganele - Não, porque ele não vendia. Sérgio de Souza - Era de graça? Conceição Paganele - Nessa unidade em que Cássio ficou era, mas a gente teve conhecimento de outra unidade em que era vendida. José Arbex Jr. - Agora, essa droga que não é vendida, que é dada para evitar a síndrome de abstinência, ela é dada com cuidados médicos? Conceição Paganele - Não tem nada de cuidados médicos, não. Os meninos mesmo pediam: “O seu fulano aí é legal, esse monitor é legal”. Ele trazia... Givanildo Silva - É o “paga-pau”. Conceição Paganele - É o “paga-pau”, ele trazia. A gente teve conhecimento – isso não aconteceu comigo – de um caso em que o monitor foi até a comunidade onde um menino morava e lá tinha um determinado cara que IA MANDAR a droga para ele. Sérgio de Souza - O que é “paga-pau”? Conceição Paganele - É aquele monitor que faz mais ou menos o jogo dos meninos. Givanildo Silva - Tem o “paga-pau” e tem o “bate-pau”. 31 Palmério Dória - O assédio sexual como se manifesta? Vocês tiveram alguma conversa sobre isso? Eu QUERIA IR além também, tortura e tudo mais. Conceição Paganele - De torturas, eram muitos casos. O Cássio só apanhou uma vez dentro da unidade, de monitores. Não sei se é porque a minha irmã era conselheira e eu fui uma mãe muito insistente também, fiquei naquela porta da Imigrantes, montei ali uma vigília. E chorava muito, então fui uma mãe que chamou a atenção lá dentro: “Por que é que essa mãe vem quase todos os dias na porta e chora?” E aí a minha irmã, vendo meu sofrimento, acionou os Conselhos Tutelares e, quase todos os dias, duas vezes por semana, o Conselho Tutelar ia até lá. Foi a época em que vi mais Conselho Tutelar na Febem, que eu enchi o saco mesmo. Eu exigia, pedia, movimentava coisas, e aí o Conselho Tutelar chegava e já tirava ele de lá, abraçavam, beijavam, a minha irmã chegava, abraçava, ia lá e entrava mesmo: “Olha, é do Conselho Tutelar, vamos ter problemas”. Então, meu filho foi, de certa forma, poupado de tortura física, mas a psicológica continuou. Julianne M. do Carmo - Quanto tempo ele ficou lá? Conceição Paganele - Na Imigrantes, ele ficou dois meses. TRECHO3 Givanildo Silva - Tem doze anos o Estatuto da Criança e do Adolescente. No artigo 259, ele diz que, noventa dias contados a partir de sua entrada em vigor, Estados, União e municípios DEVERIAM REORDENAR o seu atendimento à criança e ao adolescente. Aqui em São Paulo, o Conselho Municipal, o órgão que delibera e controla as políticas de direitos da criança e do adolescente, negou todos os registros da Febem, nenhum programa dela tem registro, logo, a Febem está na ilegalidade. O Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente tem uma resolução de 1966, a 46/96, que diz que o número máximo de adolescentes por unidade de internação não pode ultrapassar o total de quarenta, e essas crianças e adolescentes têm que estar próximos de suas casas e a comunidade envolvida no processo pedagógico das unidades. Por último, o Conselho Estadual da Criança e do Adolescente, em 1999, depois dessas rebeliões, principalmente na Imigrantes, estabeleceu como DEVERIA SER o atendimento da Febem aqui de São Paulo. A quem interessa continuar esse modelo Febem? O governo do Estado tem dito várias vezes que não existe proposta para a Febem, mas quem administra a área da infância sabe que já fizemos oito propostas de reordenamento institucional, inclusive com a presença do governo. A quem interessa que a Febem continue na ilegalidade, a quem a senhora atribui esse desejo perverso de os meninos continuarem nesse modelo, sendo que a sociedade deu resposta, os conselhos já deram resposta e o ordenamento jurídico diz que esse modelo não deve continuar como está há doze anos? Conceição Paganele - O que a gente tem analisado, nós da AMAR, mães, é que não interessa aos governos investir muito nos jovens da periferia – porque quem está hoje na Febem é classe popular. Se fosse o filho da classe média, com certeza já TERIA MUDADO essa questão toda, mas não é o filho do senhor Alckmin, do seu Mário Covas, que foi quem ficou aí durante toda essa questão de piora da Febem. Palmério Dória - Algum deles já chamou a senhora para conversar? Conceição Paganele - De jeito nenhum. E nos conhecem. Nós fomos ao palácio, na época do Mário Covas, levar nossas reivindicações lá e pressionar pelas mudanças. Mas o governo não está preocupado com a pobreza, com a miséria, o que vejo é assim: quanto mais cesta básica e tíquete de leite, mais votos garantidos. Quanto pior parece que é melhor para os políticos. Dão tíquete de leite, cesta básica, bloco, cimento. Eles querem investir nisso e não nas políticas sociais de atendimento a esses jovens. Por exemplo, agora na Febem: “Estamos investindo, tem cursos...”. Tem cursos, sim, acabei de pegar a semana passada uma medalhinha com o diploma de mérito de um menino que se tornou pintor. Ele nem sabia o que era aquilo, ele falou: “Eu não sei pra que me deram isso, eu nem sei o que é isso”. “Como, você não sabe?” Eu fui na unidade, entrei junto com a igreja, distribuí sorvetes na festa do sorvete, porque queria saber dessa história. Fui até esse jovem. Ele falou: “Eu nem sabia!” Eu falei: “Mas o que é que você pintou? Que profissão você aprendeu aí? Você fez vinte horas de um curso profissionalizante que está te preparando para enfrentar a vida lá fora”. Ele falou: “O que é isso? A senhora tá louca? Eu não fiz nada disso”. “Menino, como? Você recebeu um diploma.” Ele disse: “Acho que ajudei a pintar as paredes da escola técnica, da escola profissionalizante”. E já é um profissional, tem um diploma da Febem de profissional, era só isso que eu queria saber. Marina Amaral - Durante o tempo que seu filho ficou na Febem ele estudou? Tinha aulas normalmente? Como era? Conceição Paganele - Tem uma escola dentro da própria unidade, ele estava na 5» série, então ficava numa sala de aula onde tinha 5», 6», 7» e 8», todos ali juntos. Em dois dias, da 5», ele passou pra a 6», e passou pra 7» e pra a 8» rapidinho. Ele tem um histórico de 8» série, só que é semi-analfabeto de 5» série. A escola aqui fora já é essa qualidade “maravilhosa” que a gente tem, e dentro da Febem é muito pior. Ele hoje não encontra colocação na escola, não estudou mais na comunidade, não aceita continuar uma 8» série porque não tem capacidade, ele se acha 5» série. Ele brigou na escola porque queria uma vaga de 5» e a escola não podia dar porque ele tinha uma declaração de 8». Então, “tem escola”, eles falam: “A gente está investindo”. Mas tem curso assim: o menino vai lá, pinta a parede com alguém e é um profissional. São esses os cursos profissiona-lizantes. A escola profissionalizante da Febem do Tatuapé é bem equipada. Eu visitei a funilaria, a pintura, a mecânica, a de lapidação de vidros, que achei muito bonita, a tapeçaria... Johnny - Mas os meninos utilizam? Conceição Paganele - Não, é muito pouco o que eles utilizam; o curso é de vinte horas. Profissionaliza alguém pra que possa enfrentar a comunidade lá fora? Não, ele não sai profissionalizado de lá, de jeito nenhum, é um passatempo, quando alguns conseguem desfrutar dele, pois nem todos conseguem. Eles vão mais pra sair dos muros fechados, pra andar ali fora um pouquinho. 32 Palmério Dória - E as meninas infratoras, existe na periferia caso de meninas enquadradas? Conceição Paganele - Sim, há meninas. O número é bem menor, mas tem. Geralmente, o negócio de tráfico, pra ganhar dinheiro. Na Cidade Tiradentes temos uns casos bem sérios, que eu nem sei como resolver e para os quais tenho buscado ajuda. Temos várias meninas, mas uma me chama a atenção – ela tem um filhinho e hoje passa droga no centro da cidade, pra sobreviver. Essa menina vai pra Febem porque será pega com uma quantidade enorme de drogas. TRECHO 4 Cuca - No que consiste o trabalho efetivo de vocês hoje? Conceição Paganele - É dar apoio a essas famílias que se encontram em desespero. Porque hoje a AMAR é uma grande família, uma mãe se apoiando na outra. Nós não temos vergonha de abrir, falar das drogas do meu filho ou do roubo que ele praticou, porque sabemos ter o mesmo problema, que só nós vamos nos entender e nos apoiar. Aí, ninguém vai discriminar... José Arbex Jr. - Qual a situação do seu filho agora? Conceição Paganele - Meu filho não se livrou do vício das drogas, que eu encaro hoje como doença, meu filho é doente e precisa de tratamento, de ajuda e não de discriminação. Infelizmente, ele entrou num mundo que eu creio que tenha saída, porque acredito que todo ser humano é recuperável. Sérgio de Souza - Ele está solto? Conceição Paganele - Não, está preso. Guilherme Azevedo - Ele saiu direto da Febem e foi preso? Conceição Paganele - Ele saiu, se envolveu novamente com drogas e foi preso. Cometeu um roubo novamente, para comprar drogas. Julianne M. do Carmo - Quantas pessoas tem a AMAR hoje? Conceição Paganele - Na direção da AMAR temos dez pessoas, mas as mães que a gente atende é uma coisa muito oscilante: depende dos problemas que ela tem, ela vem, resolve e vai embora. Julianne M. do Carmo - Aquelas 32 que começaram continuam? Conceição Paganele - Ah, não. Daquelas 32, nós somos três, as outras estão cada uma cuidando de sua vida. Sérgio de Souza - Existe uma preocupação com as mães de outros Estados, existe um trabalho desse tipo? Conceição Paganele - Quando foi feita uma matéria na revista Sem Fronteiras, houve muitas cartas de pessoas de comunidades de outros Estados nos procurando, pedindo um histórico da AMAR, como começou etc., porque elas gostariam de começar um movimento lá em seus Estados. Mandei, pra todos que me pediram, um histórico, um release até mostrando da necessidade de AMAR. José Arbex Jr. - E seus outros filhos, como vêem a sua luta? Conceição Paganele - No começo, achavam que eu era louca, principalmente quando ifcava uma semana dentro da Febem. Era entrar em um momento de rebelião, eles ficavam em casa se descabelando. Denunciar, pra eles, é uma loucura que eu cometo. Uma época, eles achavam que tinham que me prender em casa, porque eu podia ser morta a qualquer momento. É que denunciei também a polícia. José Arbex Jr. - Agora, seus filhos se acostumaram com a idéia? Conceição Paganele - Agora, eles acham interessante. Quando vai passar alguma matéria no jornal, na televisão, todo mundo lá da comunidade pára num barzinho e fica assistindo. Marina Amaral - Se tivesse acontecido o que aconteceu com seu filho hoje, SERIA diferente? A sua luta mudou alguma coisa? Conceição Paganele - Mudou, pra mim, porque aprendi bastante, ganhei experiência que eu não tinha, e já mudou pra muitas mães também, porque a gente vai se conscientizando, formando para exigir tudo aquilo a que tem direito. Marina Amaral - E a estrutura em si? A Febem como a senhora encontrou antes e agora, as possibilidades de tratar um filho dependente químico, houve alguma evolução? Conceição Paganele - Não. Até hoje não existe uma unidade nem no município, nem no Estado, nem na Febem, ninguém está interessado no usuário de droga. Cheguei a ir numa clínica muito chique, conversar lá com um doutor, através de uma amizade, e ele me recebeu e lá tinha pessoas de classes altas. Quem está numa crise igual à que eu estive com o meu filho, a família liga pro hospital, uma ambulância vai lá, leva, interna, faz a desintoxicação, vai depois abrindo aos poucos para o tratamento ambulatorial, vai reconduzindo aos poucos à sociedade. Julianne M. do Carmo - E o que a senhora sentiu quando foi nesse lugar? Conceição Paganele - Eu senti que é horrível ser pobre. É terrível. José Arbex Jr. - A senhora DIRIA que, da molecada que está na Febem, a grande maioria é por causa da droga? Conceição Paganele - Sim. Para a maioria, a porta de entrada foram as drogas. CA61_abr_2002 A conversa foi longa, e podia ser muito mais. A platéia, quer dizer, os entrevistadores, ficou – para usar o adjetivo justo – embevecida. Paulo Mendes da Rocha é o retrato do arquiteto, o artista, aquele que une à técnica uma visão cósmica, espiritual, política do homem. E ele consegue expor esse pensamento com outra virtude humana indispensável: o humor, e colocações desconcertantes – como a do título abaixo.A natureza é um trambolho 33 Sérgio de Souza - Dizem que o senhor gosta de ser chamado de Paulinho, então, aproveitando o diminutivo carinhoso, PEDIRIA que falasse da sua infância porque sempre procuramos começar pela história do entrevistado. Paulo Mendes da Rocha - A minha infância sempre foi muito rica, devo a ela a minha formação. Hoje sei disso, mas é uma coisa da qual você não tem consciência logo, pouco a pouco a infância surge com muita força na vida da gente. Nasci lá no Espírito Santo, na cidade de Vitória, que é um porto de mar, na casa da minha avó, mãe da minha mãe, casa do meu avô Serafim Derenzi, um construtor de estradas. Era uma família de dois homens e oito mulheres. Essas irmãs da minha mãe casaram e a família expandiu de aventuras, digamos assim, de notícias. Havia fazendeiros de cacau e havia um tio médico que teve uma importância muito grande na minha vida, um homem notável, um verdadeiro cientista. Só pra você ter idéia, ele ensinava a gente a empalhar. Uma vez, peguei um peixe extraordinário, um baiacu de espinho, aquele maiorzão, de dois palmos, que tem uns espinhos que só aparecem quando ele é ameaçado, como o porco-espinho. Trouxemos pra casa e esse tio explicou uma série de coisas sobre aquele fenômeno biológico incrível, aquele peixe meio monstro, e nos fez empalhar o peixe, ensinava como fazer aquilo. E meu pai era um grande engenheiro, de família baiana, formado no Rio de Janeiro. Portanto, fui criado vendo a engenhosidade do mundo, a possibilidade de transformação das coisas de uma maneira – hoje eu compreendo – que alimentou a minha visão sobre a idéia de projeção, a relação entre idéia e coisa, “você pode fazer coisas extraordinárias, um porto, um navio”. Isso, em poucas palavras, foi a minha infância. E vivi coisas extraordinárias. Inclusive vivi coisas da história do Brasil necessariamente, porque nasci em 1928 – a crise de 1929, a revolução em São Paulo em 1932. Meu pai foi preso aqui em 1932, estivemos afastados quase cinco anos... Mylton Severiano - Que posição ele tinha em 1932 para ser preso? Paulo Mendes da Rocha - Em Vitória, ele ganhou um dinheirinho com obras que foi fazendo, arranjou um sócio e fez uma empresa exportadora de café, que na época era o grande produto de exportação, mas perdeu tudo em 1929. Então foi para o Rio de Janeiro com a minha mãe, eu e uma irmãzinha, para a casa do pai dele, que era, sabe onde? Na ilha de Paquetá, na chamada Chácara das Rosas, na frente da pedra da Moreninha, casa do meu avô, Francisco Mendes da Rocha, militar, proclamou a República, foi diretor da Biblioteca Nacional. Há ainda umas fotos antigas, incríveis, de nós lá. Bom, a vida piorou mais ainda e a minha mãe acho que não agüentou essa família do meu pai com oito mulheres também, voltou pra casa do pai dela e ele foi, como se diz em história, “correr mundo”, e veio pra São Paulo, se enfiou na revolução com os engenheiros colegas dele no IPT, que eles inventaram coisas, até granadas. Meu pai inventou uma autoclave de campanha. Acabou preso. Depois de 1932 ficamos anos sem nos ver, minha mãe foi presa em Vitória. Mylton Severiano - Então ele estava contra o Getúlio? Paulo Mendes da Rocha - É. Minha mãe foi presa lá em Vitória pra dizer onde ele estava, mas ela mesmo não sabia. Depois, o Getúlio venceu, pôs interventores nos Estados, lá pôs um capitão do Exército, capitão Bley – até me lembro porque uma tia minha costurava para a madame Bley, que era a primeira-dama do Espírito Santo. Não sei se não levei uns vestidinhos embrulhados em papel de seda com alfinete, que os meninos faziam isso para as tias, né? Então vivi muito assim. Meu pai enfrentou aquelas dificuldades todas, até que um dia mandou nos chamar porque arranjou aqui alguma coisa e viemos, nem foi buscar. Chegamos num trem da Central do Brasil, na estação o trem entrava devagarinho e minha mãe, eu e minha irmã, assim, na janela, eu vi um cidadão com um chapeuzinho, minha mãe falou: “Ó lá seu pai”. E viemos morar em pensão, imagina você. A primeira, muito mambembe, na Liberdade, na rua da Liberdade, depois ele melhorou – se eu quisesse contar de outra maneira, PODIA DIZER: “Vim morar na avenida Paulista” –, fomos para uma pensão da avenida Paulista de umas senhoras espanholas que tinham fugido da Espanha. Lembrei delas porque elas assinavam uma revista espanhola e eu acompanhei, como menino de – o que eu teria aí? – 6 anos, a Revolução de 1934 ou o preâmbulo daquilo na Espanha, lendo uma revista que esqueci o nome, mas uma revista reacionária. E aí entrei em colégios aqui em São Paulo e nunca mais saímos daqui, meu pai fez concurso para a Escola Politécnica, tornou-se professor da Escola Politécnica, muito querido, muito ilustre, sempre trabalhou no serviço público. Na Secretaria de Viação e Obras Públicas, construiu o aeroporto de Congonhas, comandou todo o processo da bacia Paraná-Uruguai, Urubupungá, Ilha Solteira, grandes barragens no Brasil, no governo paulista de Lucas Nogueira Garcez, que também era professor, da cadeira de hidráulica, na Politécnica. Era a “turma das águas”, que foi a especialidade do meu pai, ele tinha uma cadeira que não existe mais, mas vale a pena dizer o nome da época porque é uma maravilha, chamava-se navegação interior, portos, rios e canais. Ele recebia material da França e eu via aquilo tudo, aquelas gravuras com paixão; ele tinha relações com a Holanda, com a Inglaterra, com o pessoal das águas no mundo, e a minha formação devo muito a isso. Quer dizer, sou um arquiteto que acredita na técnica, na capacidade do homem de transformar a natureza, essa é a memória de infância que tenho. Sérgio de Souza - E o seu pai era comunista? Paulo Mendes da Rocha - Acredito que não, nunca foi do Partido Comunista. Eu é que fui cassado pelo AI-5 enquanto uma pessoa de esquerda, porque, como todo estudante dessa época e com toda a generosidade da nossa presença no universo, tinha de ser de esquerda, digamos, desde o tempo de estudante. Depois me formei no Mackenzie, não sei se tinha uma certa prevenção contra a posição mais impostada do ensino universitário, esses homens usavam beca. Inclusive, estudei no Mackenzie por razões de colegas, coisas assim, sempre fui um pouco relaxado, era muito atento, mas não era muito estudioso. Bom, mas isso não interessa, estou falando demais, você perguntou sobre a minha infância, estou exagerando, aí já sou adolescente... Mylton Severiano - Quando você entrou no Mackenzie já existia esse tipo de posicionamento político dos estudantes, existia a UNE, um diretório que protestava? 34 Paulo Mendes da Rocha - Sem dúvida. A minha esquerda, que é pública, num certo sentido foi muito bem estruturada como pensamento e visão. Dois anos depois de formado, 1959, 1960, fui convidado pelo João Batista Villanova Artigas, um dos maiores arquitetos do país – Afonso Eduardo Reis, Oscar Niemeyer e Artigas são os três arquitetos responsáveis pela formação de nós todos, pelo menos até hoje... Guto Lacaz - Por que que o Rino Levi não entra nesse grupo? Paulo Mendes da Rocha - Porque concentrei, digamos assim, nas minhas emoções mais fortes. Nunca me emocionei com as coisas do Rino Levi, a não ser mais tarde, quando comecei a compreender em mais profundidade certos valores que estão um pouco mais escondidos do que nas resoluções mais evidentes de problemas de arquitetura. Mas, para não perder o fio do que eu vinha dizendo – depois vamos falar do Rino Levi –, o Artigas era uma liderança do Partido Comunista, um grande intelectual e um magnífico professor, portanto uma abertura com clareza para a questão crítica, principalmente para quem fazia arquitetura, e eu já ganhava a vida com isso, era a minha profissão. A dimensão crítica materialista, dialética, marxista, sobre a nossa existência é um esclarecimento absolutamente extraordinário quanto à visão de deslocar do plano do mistério aquilo que é fruto da observação e do trabalho. Ou seja, nós somos a natureza, somos responsáveis pela nossa existência. Somos, os vivos, ao mesmo tempo a totalidade da história e do conhecimento. Imagine isso como uma espécie de aula final logo depois de formado. Então, vi de perto coisas, não que eu tenha aprendido, essa é que é a dimensão magnífica de ver a vida. Você vê com uma limpidez emocionante, monumental, o que você já sabia, porque o espanto não serve para nada. Não sei se não é por isso que me detive tanto em alguns aspectos da minha infância sobre a questão do porto, da engenharia, de confiar na transformação – é porque eis que um raciocínio límpido e claro confirma tudo isso, como quem diz: “São coisas da nossa mente”. A formação da consciência e da linguagem, eis a razão da nossa existência, essa concomitância, eu sei e te aviso, você fala com o outro: invenção da linguagem. Portanto, arquitetura passou a ser para mim, mais uma vez – não pela primeira vez –, algo que compreendi porque ela tinha esse poder de comunicação. A arquitetura como discurso não é uma coisa que você pode aprender e repetir. Ela é, em si, uma das formas mais comoventes do discurso humano, porque se refere às instalações humanas no planeta. A arquitetura como fato isolado, aquele ou esse edifício, não tem a importância que se costuma dar a ela no âmbito da propaganda. Que é o produto para vender, então o produto onde estiver é bom. Não. Um prédio mal colocado, apesar de ser o prédio em si uma maravilha, o prédio vertical, a mecânica do solo, a mecânica do comportamento dos materiais, os elevadores, a mecânica dos fluidos – abrir uma torneira e lavar a roupa no vigésimo andar – é uma suprema maravilha. Entretanto essa maravilha pode se tornar instrumento de destruição da cidade se você faz dela um estafermo isolado, tido como ideal, e a põe indevidamente no meio do caminho de passagem. Carolina Arantes - Nesse sentido, São Paulo é caótica ou não? Paulo Mendes da Rocha - São Paulo é e não tem nada de fenômeno urbano, ela metodicamente se torna horrível pela especulação imobiliária, pela exploração de tudo isso como mercadoria. Tudo isso o quê? As virtudes da natureza. Você quer ver uma evidente virtude da natureza destruída pelo mercado e tida entre nós como supremo bem? O que a Light fez em São Paulo. Construir uma barragem hidrelétrica de 700 metros sobre o mar, sugar a água do Tietê através do Pinheiros, inverter tudo, jogar essa água lá pra baixo para produzir 800.000 quilowatts é uma besteira que não tem tamanho. Nós nunca faríamos isso. Não se produz 1 quilowatt com uma água que não seja para beber depois, porque senão é perder a virtude da água. A graça é dizer que essa água que você está bebendo já foi a luzinha ou vai ser a luzinha de amanhã – e a mesma se joga no mar! Depois, essa Light botou um bonde, fez a linha ir para os arrabaldes, que não valiam nada, comprou tudo, loteou e vendeu esses bairros horríveis que se dizem exclusivamente residenciais. Como se você pudesse exclusivamente residir. “O senhor está fazendo o quê?” “Estou residindo...” Não tem sentido nenhum. E a Light ainda foi vendida para nós e disse que devemos a ela o desenvolvimento de São Paulo. Urubupungá tem 6 milhões de quilowatts, uma barragem de 800.000 quilowatts é o mínimo que se pode fazer, jogando água fora, ainda por cima! Isso eles não fazem no país deles, os canadenses, os americanos, os ingleses. Portanto, somos uma conseqüência dessa visão predadora do nosso território, que vem desde a mentalidade colonial, e devíamos ser a suprema crítica contemporânea sobre essas questões. Mylton Severiano - Os arquitetos? Paulo Mendes da Rocha - Nós, os americanos, porque temos a peculiar experiência. É engraçada a história dos americanos. Sou italiano por parte de mãe, sou baiano por parte de pai, sou negro possivelmente, portanto não é uma raça brasileira, somos um grupo que tem a obrigação de ter uma reflexão peculiar, uma experiência peculiar de inaugurar a questão do hábitat humano num território em que estava uma população pequena que foi destruída pelo colonialismo. Essa visão crítica entre nós é indispensável. Uma revisão crítica capaz de criar expectativas de esperança e futuro, existir um peculiar traço de uma experiência interessante quanto à ocupação de território. O que se diz é o seguinte: uma cidade existe antes que a construam, é um desejo nosso, e ela é vista antes como se nós aqui, um grupo, estivéssemos procurando um lugar – aconteceu tantas vezes em grupos humanos –, e suponha que chegássemos por terra, não sei de que modo, no Outeiro da Glória, no Rio de Janeiro. Com certeza, IRÍAMOS PARAR E DIZER assim: “Vamos ficar por aqui. Ali faremos o porto; lá embaixo tem muita inundação, muito pernilongo, vamos morar um pouquinho nesse outeiro, aqui as casas etc. etc.”. Inclusive, você enfrenta uma adversidade que não havia, que você cria. Os problemas nós é que criamos. Se é boa a baía porque abriga os navios, entretanto a terra ali não serve para habitar, porque são baixios, mangues, vou ter que fazer uma muralha de cais, aterrar esse baixio, construir novos territórios e uma nova conformação geográfica. O Rio de Janeiro é uma cidade que descreve com muita clareza as virtudes dessa transformação, por exemplo, depois que abriram a avenida Rio Branco. Sobrou um morrinho lá, que é o famoso morro do Castelo, raro no Rio de Janeiro por não conter granito, era só terra, e ele dividia ou tolhia a visão da entrada da baía. Pra frente, era aquilo que já estava lá, a baía do 35 Flamengo e, logo adiante, a ilha de Villegaignon, a 1 quilômetro, 800 metros, onde já estava instalada a Escola Naval. Fizeram uma obra notável no Rio de Janeiro: o desmonte hidráulico do morro, quer dizer, a jato de água, como você desmantela um formigueiro com a mangueira de jardim. A engenharia faz isso. Estabelece a tubulação toda e desmonta o morro de terra a jato de água, transforma em lama. Essa lama é conduzida nessa tubulação e vai ser depositada num certo lugar. Que lugar? Um retângulo perfeito, um tanque construído com pedras adequadas para enfrentar o mar, dentro da água, inundado de água, um enrocamento de pedras arrebentadas a dinamite das pedreiras e adequadamente depositadas no mar. Essa lama jogada lá dentro decanta, sedimenta a terra e aquilo que ficou é o aeroporto Santos Dumont. Você transforma o território, isso é que é arquitetura, para mim, e não pequenas coisas, uma varandinha, nada disso e os edifícios são instrumentos de realização dessa cidade onde todos querem morar. Wagner Nabuco - Dessa sua visão sobre pensar o território brasileiro, quanto tem da visão do Darcy Ribeiro, no sentido de que podemos construir aqui uma quase civilização tropical, e quanto também da produção e do pensamento do professor Milton Santos, no caso do território? Paulo Mendes da Rocha - A história do gênero humano é indizível, claro, mas, se quiséssemos conversar, PODERÍAMOS PENSAR, por exemplo, num dilema da nossa condição humana, entre tantos. Um deles é a questão de uma separação, que pode ser convocada para refletir, entre ciências naturais – que é toda ciência, física, astronomia, mecânica celeste – e essa preocupação com nossas origens, que se estabeleceu que chamamos de ciências humanas. Justamente o que fica para as realizações de caráter político, o que vamos fazer, o modo humano de existir, obrigatoriamente esses âmbitos de conhecimento têm de andar juntos, você só pode realmente avançar quando raciocina com uma totalidade. Isso é da nossa época, vivemos isso, que foi posto pelos artistas, os supremos inventores de como pensarmos. No caso, um homem de teatro, Durrenmatt, escreveu Os Físicos, a questão da descoberta da energia, do átomo, da constituição da matéria e a bomba atômica. Ora, tínhamos que dizer que nenhum cientista inventou uma bomba, eles morreram todos de desgosto, digamos assim, é o que está decantado em Galileu Galilei, do Brecht, em Os Físicos, do Durrenmatt. A idéia não é fazer uma bomba, a idéia é não resistir a especular e acabar sabendo que certos códigos revelam que são partes, partículas materiais, que a luz é pedaço de coisas, e que tudo isso se equilibra por força desse certo universo, ou seja, que somos feitos da mesma matéria da qual é feita a luz das estrelas, não existe outra matéria no universo, quarks, elétrons, nêutrons, ela produz um fígado ou uma fagulha de estrelas. Portanto, não é que sejam verdades, são códigos que vão dando certo, códigos matemáticos, você reproduz e vê que aquilo é isso. Mas a idéia é realizar a nossa existência no universo. Márcio Carvalho - Isso não é uma visão de Deus? Paulo Mendes da Rocha – Eu não sei qual é a visão de Deus, quem me dera. Márcio Carvalho - Se luz cria gente... Paulo Mendes da Rocha - Se fosse, nós não saberíamos. Só faltava uma mesa como essa, dez amigos se reunirem e falarem: “Ah! Essa é a visão de Deus!” Deus não existe, não pode existir. Você pode chamar de Deus qualquer coisa que você queira, aí que entram o Milton Santos e o Darcy Ribeiro, principalmente o Milton Santos enquanto geógrafo, um cientista, o que ele disse da geografia é de uma dimensão humana incrível. E o Darcy, um humanista mas com uma visão de ciência, enquanto antropólogo, enorme, e tanto um como outro mostraram a possibilidade de fazermos alguma coisa no sentido de corrigir a rota do desastre, porque ela está aí. Nós trabalhamos com erros e acertos, naturalmente com a esperança de que é possível corrigir a rota do desastre. Portanto, a arquitetura, o território, o lugar onde estamos é muito importante, é fabricar o lugar de morar. O que é uma disposição espacial e por que a vontade disso tudo? Você não pode dizer que aquela turma de Copacabana, aqueles meninos de praia foram obrigados a morar ali. Aquilo é realização de um desejo que se tornou um mercado fértil e os prédios foram feitos daquela maneira horrível – não há planejamento. Principalmente, um erro fácil de compreender: que virtude é você pôr todo mundo ali? Os meninos todos querem tomar banho de mar, aquelas casinhas não resolvem nada, então vamos juntar a turma toda ali. Cada edifício desse, tido em princípio como uma maravilha em si, se você coloca cada um em cima da casinha que havia antes, ou seja, na matriz original daquele loteamento, só pode acontecer um desastre. Já numa superquadra de Brasília é melhor, porque, se você pega dez casinhas, mais dez... põe tudo em dez andares, quatro apartamentos por andar, um predinho de 20 por 20, 400 metros quadrados, dividido por quatro, 100 metros para cada um. O que representam de território quarenta casinhas? E o que é nesse território um predinho só, com as mangueiras etc. etc.? Se você fizer casinhas com jardim, nunca mais teremos uma mangueira, ou os jardins do Burle Marx. Então, essa imaginação toda aparentemente é só figurativa, formal e inconseqüente, de um esteticismo que pode ser corrompido e deturpado como mercadoria: “Compre uma casa com jardim”. Mas é um jardim que só dá espada-de-são-jorge, se possível enfileirada junto ao muro. Não dá uma mangueira. Minhas jaqueiras, sapotizeiros, cajueiros da infância – que você perguntou –, nunca mais. João de Barros - Mas essa estética não é incompatível com o mercado? Paulo Mendes da Rocha - Não, o mercado é que é incompatível com essa estética. O mercado como única razão é que não presta. Se você tem confiança no homem, pode dizer que o mercado não existe por si. Podemos fazer um pacto: “Do que nós gostaríamos?” De uma new left, quem sabe. A esperança suprema é a consciência dos homens, o mercado não pode construir o mundo. Rafic Farah - Você não acha que a gente está correndo o risco de ficar com saudade dos prédios de Copacabana de hoje, do jeito que a gente tem saudade de quando o Rio de Janeiro era horizontal, e plano e só tinham casas? Estamos correndo risco de que essa rota do desastre continue avançando? 36 Paulo Mendes da Rocha - Se você tiver tempo pra ter saudade, pode ser, mas acho que não vamos ter tempo pra ter saudade. Eu nunca tive tempo pra ter saudade. Memória não é saudade. A vida é curta. Márcio Carvalho - Você falou que era de esquerda, continua sendo? Paulo Mendes da Rocha - Não sei se sou de esquerda, porque essas presunções não adiantam muito. Prefiro não ter um pensamento fechado sobre tudo isso, porque na idéia de perspectiva, dessas indagações sobre o futuro, é melhor não pensar só no Brasil – não vamos poder fazer nada sozinhos, muito menos os arquitetos. Primeiro, você tem que procurar ter esperança, senão não vive. E a esperança surge de uma situação concreta: a formação de uma consciência sobre essas questão de que somos a natureza, de que tudo isso é um pequeno planeta que gira no universo, que não vai ser sempre assim, é mutável, e de que somos a população do planeta – quando falo em Brasil, como já falei América, não é nenhuma idéia nacionalista, é o território que conheço, mas o meu interesse é o planeta e o gênero humano. Portanto, o que mais me interessa é a solidariedade universal, ou seja, a universalização dos problemas que parecem que só afligem a nós, por exemplo, a miséria, ou o crescimento das cidades como uma necessidade desejada. Você só consegue explorar desejos autênticos da humanidade, por isso se explora o edifício como mercadoria. Você não consegue explorar nada que não seja realmente virtuoso. Essa idéia de exploração, de especulação predatória da condição humana feita a partir de virtudes é que podíamos questionar de modo político para inverter a rota do desastre. Quer ver uma coisa simples? Quem nega a virtude de um avião? O avião levanta vôo do Galeão para chegar em Londres, e lá dentro tem passageiros de primeira classe e de segunda, como é possível? Um sucesso entre categorias, todos chegamos em Londres... Eu cheguei de primeira... E, se o avião cair, eu morri de primeira. O que quero dizer é que freqüentamos já o supra-sumo da ciência, deve ser cada vez mais fácil, para nós, corrigir o que é desastre. Por exemplo, o transporte individual, o automóvel na cidade. O automóvel já não faz parte do desejo da cidade, engasga tudo. Outro dia fizeram um cálculo estruturado do ponto de vista da técnica: avaliar o prejuízo dos congestionamentos na cidade de São Paulo. Dá mais de 2 bilhões de reais por ano de prejuízo, contando o desperdício de combustível, o tempo das pessoas, a ineficiência delas prisioneiras desse troço etc. Ou seja, equivale a 150 quilômetros de construção de metrô por ano. Voltando à idéia de ciências humanas e ciências naturais, não fica nem aqui nem ali, a formação da consciência é uma totalidade, é a formação de uma mentalidade – educação é a questão fundamental. Acho que nossas crianças têm um regime escolar extremamente atrasado, que mistifica o conhecimento e cria para o conhecimento uma idéia de barreiras que você tem que transpor, quando o conhecimento é virtude pura. É tudo malfeito, as escolas não possuem laboratórios. Ninguém resiste a uma demonstração de fenômenos de hidrologia, mecânica dos fluidos, coisas assim tão simples... Rafic Farah - Que são maravilhosos e despertam uma curiosidade incrível. Paulo Mendes da Rocha - Fiz uma escolinha, é pré-escola, em São Bernardo do Campo. Entre outras coisas, metade do edifício é todo em rampa – porque serve para teatro, e as águas pluviais da cobertura caem na parte mais alta e descem por essa rampa, dentro da escola, num córrego, e quando chove você pode fazer um moinho, ou botar um barco que corre, ou uma roda que gira. Com essa visão fenomenológica do mundo, você vê que o mundo não é um dado dado, é um dado transformado. A natureza é uma droga, não serve para nada, é um trambolho. Ela só serve transformada pelas nossas mãos. Somos muito engenhosos e temos que ter consciência dessa engenhosidade, não achar que tudo está feito, que é assim mesmo, que eu vou desfrutar e vou ter saudades da casinha. Não pode ter saudades de nada. A experiência não deixa saudades. Dá um ímpeto desgraçado para o futuro. Você só pode ter saudades do futuro, o que não há feito por nós é muito mais do que o feito, portanto precisa ser muito tolo pra ter saudades do que já viu. Rafic Farah - Mas você vê alguma chance imediata de a gente reverter o processo das cidades brasileiras? Paulo Mendes da Rocha - Chance imediata? Não existe essa figura. Wagner Nabuco - Mas isso não significa vontade política? Paulo Mendes da Rocha - Vontade política não é propriamente uma chance imediata. Wagner Nabuco - Na vontade política, pra que lado o país vai? Vai pra Roseana? Vai pra onde? Paulo Mendes da Rocha - Não sei se é oportuno falar da eleição brasileira em termos de candidatos, porque está sendo engendrado um processo que depende da votação do povo e é melhor que se engendre esse processo. O que podemos dizer desde já, com toda segurança, é que vamos fazer tudo para não voltarem certas figuras que estão ainda ou estavam até pouco tempo atrás no apogeu da política brasileira: senadores, deputados, figuras herdeiras da parte recente mais miserável pela qual já passamos, que foi a ditadura militar. Se quiser dizer nomes, pode dizer. Um homem posto pelo governo militar e está aí mamando nas nossas tetas, nos nosso impostos, como senador. Entretanto, o que se vê por aí é que isso está desmoronando pouco a pouco, uma ação do povo brasileiro. De modo democrático, queira ou não, essas personalidades e os seus feitos, as suas mumunhas, muvucas e matrocas têm que desmoronar de algum jeito diante da opinião pública. A questão é tornar a opinião instrumento público. Não adianta termos opiniões fechadas, e não adianta berrar, não é isso que torna nada público, esse carro enjoado amarelo-claro que passa vendendo pamonha não está formando uma opinião pública, portanto gritar asneira também não adianta nada. Formar opinião pública é formar uma força política, lá pelas tantas, capaz de influir nos destinos do próximo governo. Estamos nos encaminhando para uma eleição, portanto uma opinião interessa se ela for frutificar. E, para deixar que ela frutifique, às vezes é preciso regar, esperar um pouco. Temos que construir isso, mesmo porque os movimentos que têm uma origem mais comovente, mais legítima podem degenerar também. Para mim, o grande perigo que corremos – nós, os brasileiros e latino-americanos – é a quebra da expectativa de construirmos a paz na América Latina. O ingrediente fundamental para a nossa existência é a paz, porque a desavença, a guerra, não só como extermínio, mas como desajuste, fazem o território passível de dominação e colocar isso na América Latina é 37 facílimo – com o pretexto da Amazônia, da mineração, da droga na Colômbia, você intriga esse troço aqui, jogando um país contra o outro. Estou convencido de que a droga na Colômbia é mais ou menos posta lá dentro para que possa haver essa dominação. Tentaram isso em Cuba, dizendo que era passagem, houve episódios terríveis recentes, mas Cuba se livrou disso. Mylton Severiano - Eu gostei daquela história “não é nacionalismo, é o lugar onde eu moro, meu país”. Mas hoje ainda são Estados nacionais com governos que têm as suas políticas. Então, retomando a pergunta sobre para onde vai a política do Brasil... Paulo Mendes da Rocha - Tenho a impressão de que o mundo inteiro se interessa pela política do Brasil porque ela é um “por exemplo”. A idéia de ações exemplares interessa o mundo inteiro. Hoje, no quadro das nossas cidades, por exemplo, esse crescimento que não é feito por uma população que nasce e se desenvolve nas cidades, mas que é uma espécie de realização de um movimento – no sentido da palavra moving – de populações que elegem a cidade como seu hábitat de preferência, o possível, o único. O comércio, hospitais, as escolas... Rafic Farah - Diversão. Paulo Mendes da Rocha - Diversão? Você quer diversão maior do que estar vivo? Se você vê a cara de quem dança certas danças populares que hoje são muito filmadas, o bumba-meu-boi etc. – o pessoal da televisão descobriu isso –, pequenos grupos não sei onde, a cara deles não é de diversão. Tem um homem que tem um boné, uma farda maluca azul e branca... Rafic Farah - É um ritual. Paulo Mendes da Rocha - Suam. Dançam aquilo. É indispensável, mas não é só uma diversão. Mesmo a gargalhada não sei se é diversão, é um espasmo necessário. Você não pode dizer que está se divertindo. Já vi gente muito alegre chorar compulsivamente de prazer, de emoção, beija o outro e chora e chora. E já vi outro dar facada e rir, porque é um insano. Não sou a favor da Disneylândia, em tese. Sérgio de Souza - Acho que o Farah estava falando de parques e espaços públicos. Rafic Farah - Espaços de convivência mesmo. Paulo Mendes da Rocha - A cidade por si é o lugar absoluto para conviver. Havendo a cidade, você não precisa destacar muito o que é praça, o que é parque. O povo com sua ação inaugura o lugar. Rafic Farah - Eu lembro muito aquela frase do Arnaldo Antunes: “A gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte”. Paulo Mendes da Rocha - Só serve de instrumento de opressão aquilo que era desejável e agora degenerado. Agora pegou o “verde”. Se plantarem uma árvore no meio da rua atrapalhando tudo, você não tira a árvore porque depois vem um idiota qualquer e diz que não pode tirar a árvore. É evidente que pode tirar a árvore, deve plantar outra. Então, você perde a serra do Mar, perde a Mata Atlântica, perde a Amazônia, mas não perde o abacateiro que plantaram na esquina. Wagner Nabuco - Você não acha polêmica essa cultura? A Rede Globo vive fazendo campanhas de preservação e ecologia. Nunca vi a Rede Globo entrar e falar: “Vamos aumentar o salário mínimo: apoio, Rede Globo”. Por que faz da ecologia e tal e não faz a do salário mínimo? Paulo Mendes da Rocha – Porque, se você faz degenerar, serve de instrumento de opressão. Praças enormes e não sei o que, aí o pessoal fica lá na praça e não sabe o que fazer, não é? A minha idéia de dizer que a praça é do povo, como o céu é do condor, é que ele ocupa a praça quando quiser. Você não pode fazer uma praça e dizer ao povo: a praça está à sua disposição. Aí, ele passa três dias sem aparecer na praça, você diz que o povo é bobo. Os movimentos populares de São Paulo se deslocaram para a avenida Paulista. O negócio é interromper o trânsito ao fazer uma demonstração, não é? É deixar o povo fazer. Como quem diz: pergunte ao povo que ele sabe. Mas isso não quer dizer que você tenha que perguntar com o microfone na mão. É outra insídia. Você diz assim para o povo que não tem casa: “Você prefere morar num prédio de apartamento ou numa casinha?” Ele fala: “Numa casinha”. Porque a mulher vai lavar roupa para fora, tem um tanque, o marido é descendente de espanhol, monta lá umas vinte gaiolas e cria coelhos. Ele está querendo sobreviver. Ele não conhece as virtudes da cidade como um desenho possível no sentido de desejo humano realizado plenamente, uma maravilha. Então, essas coisas podem se tornar instrumentos de propaganda malignos se não são discutidas. Você dizer que faz bem cultivar o corpo porque é saúde, isso e aquilo, você alimenta muito isso; quando perceber, está enfiado num novo tipo de racismo nazista. O corpo pertence a nós individualmente. Se não fizer mal ao outro, desde que não seja moléstia transmissível ninguém tem nada que ver com isso. Confiamos na consciência, ninguém é bobo. É claro que sabemos da tragédia biológica que somos – carregar a mente num corpo que é um repolho. A formação de uma consciência sobre isso, possível, equilibrada, é difícil, não nascemos humanos, nos tornamos humanos com grande dificuldade. A idéia de escola é muito interessante de desenvolver, o ensino deverá sofrer grandes transformações. Mas eis que você tranca o ensino público, desfavorece de verbas etc., procura torná-lo miserável e incompetente, e incentiva o ensino pago, que virou um negócio da China. Você aluga qualquer casa velha, pinta quatro listas, amarelo, azul, vermelho e preto, na fachada, põe uma Mônica ou um Pato Donald de isopor, escreve “Centro de Educação Infantil”, diz para as crianças não gritarem, para não incomodar os vizinhos, e enche a rua de automóvel, porque as crianças são levadas em automóveis particulares que param, engasga tudo, enfim, você está educando um imbecil. Uma criança que vai para a escola de automóvel só pode vir a ser um imbecil, porque a grande escola é o caminho da escola. É o encontro com os amigos. É transar figurinha na esquina no jogo do abafa. A grande escola é a dimensão pública da idéia de escola. É você sair da miséria de uma pequena casa e ver, pela primeira vez, como se fazem, engendram as coisas, as idéias em conjunto, em grupo entre seus pares. Todo educador sabe disso e estamos nessa de desenvolver ensino como negócio. 38 Guilherme Azevedo - gostaria que você exemplificasse, na sua experiência de arquiteto, a preocupação com o público e o privado no espaço mesmo, que por essência é público. Paulo Mendes da Rocha - Eu podia dizer uma coisa que me põe em perigo, que é o seguinte: o privado não existe. Se é desejável, existirá, podemos fazer o que quisermos, mas nem desejável é o estritamente privado. Veja se não é verdade que o mais privado que um de nós possa ter, e já tem de nascença, é o próprio pensamento. E as palavras são códigos humanos para exprimir o pensamento. E que coisa eu vou fazer com essas idéias? E eis a questão política, ideológica, o conjunto de idéias que deve alimentar o nosso pensamento. No fundo, isso é uma ideologia, que não é feita para ser cristalizada, ela se transforma no tempo, a partir de um centro de idéias que, entre outras coisas, daria no seguinte: todo conhecimento é patrimônio universal. Ou podese tirar patente de uma descoberta? Isso é uma estupidez. Portanto, a estupidez da especulação, de modo geral, vai se mostrar na prática, vai se tornar inviável, e acho que o mundo vai se esclarecer, o homem vai pouco a pouco arrebentar essa estrutura, os conglomerados que dominam o conhecimento, compram patentes, não faz sentido. Rafic Farah - E o público e o privado? Paulo Mendes da Rocha - Essa é uma questão mais particular, porque tudo é público. A idéia de espaço já envolve o público. Não há espaço privado. O conceito de espaço contém a dimensão pública, uma dimensão pública de seja o que for. Você vê a casa da dona Zica, da Mangueira, que fazia a feijoada. A casa dela se tornou pública. Não há espaço privado, é público se é espaço. Rafic Farah - Esse negócio do público e privado, não tem empresas que já são tão grandes... Paulo Mendes da Rocha – Tem, sim, todo mundo sabe, tem empresas incríveis. Estamos falando contra elas. Os grandes monopólios. Rafic Farah - A coisa pública se deteriorou no Brasil porque o Estado se tornou incompetente ou ele foi desmantelado para as empresas tomarem conta da coisa pública? Paulo Mendes da Rocha - O Estado não pode se tornar incompetente, definitivamente, nunca. É mais fácil corrigir o Estado do que corrigir uma massa de interesses comerciais predadores. Como é que você vai controlar o lucro e a ganância? É melhor controlar o Estado, nós elegemos nossos representantes etc. O Estado é possível. O caos não é possível. O Estado democrático é uma construção, representantes, eleições. Não havia órgãos internacionais. Hoje há uma ONU, uma UNESCO, que pouco a pouco vão adquirindo importância. A impressão é de que poderão terminar sendo os órgãos mandantes, digamos assim, principais do desenvolvimento do futuro, das decisões sobre as águas, sobre o território e tudo isso. No fundo, é o combate à miséria. Temos que combater a miséria. Wagner Nabuco - O Fórum Social, por exemplo, esse de Porto Alegre, como você vê isso, e o movimento dos jovens na Europa? Paulo Mendes da Rocha - São novas dimensões públicas de pensamento e de grupos que se unem para fazer ouvir sua opinião. Parece muito sadio isso, mas devem repercutir em órgãos capazes de agir. O problema é ampliar a possibilidade de influência objetiva desses movimentos, dessas organizações, nas decisões. Wagner Nabuco - Mas vamos ficar esperando que a ONU, a OEA venham a resolver questões mais candentes? Paulo Mendes da Rocha - Não se pode ficar esperando. Se você estabelece um plenário, que não pode ser incomensurável, seus representantes, os representantes dos países têm que amparar legítimas aspirações que fiquem configuradas publicamente. Mylton Severiano – Voltando à arquitetura: o que você acha das críticas que fazem ao Niemeyer de que os prédios dele não são funcionais, principalmente Brasília? Paulo Mendes da Rocha - A idéia de funcionalidade em arquitetura é a maior besteira que você pode imaginar. É mais um desses enganos que, tidos como verdades aparentemente indiscutíveis, podem se tornar instrumentos de degenerescência. A arquitetura não tem que ser funcional porque não conhecemos bem nem as funções que queremos. Que função? É como o outro que perguntou ao Niemeyer: “Como é que o senhor fez esse Senado sem janela?” Ele demorou um pouco e respondeu: “Só de sacanagem”. Não há a idéia de funcionalidade em arquitetura. Ela muito menos se tornará estritamente funcional, e na sua disfunção pode se tornar belíssima como discurso, lá pelas tantas, no prazer da vida e tudo isso. Bom, uma coisa eu quero dizer quanto a isso da funcionalidade – para construir, você tem que usar, inevitavelmente, uma instrumentação de rigor, que advém da técnica, senão aquilo cai. Para colocar um prédio num certo lugar, suponhamos na avenida Paulista, você tem que considerar a carga do edifício, quanto pesa aquilo sobre o território. Tem que examinar o território com uma ciência bastante recente – chamada mecânica dos solos –, especificamente por causa das fundações. Você faz um furo no terreno e examina o estrato da terra, para ver ao que ela resiste. O prédio tem tantas toneladas. Avalia o peso do prédio, também é uma novidade poder avaliar quanto pesa um prédio, distribui em tantos pilares e redistribui na terra etc. etc., você tem que construir o próprio prédio com máquinas. Hoje há bombas de concreto armado. O elevador, que é um instrumento absolutamente mecânico no sentido da palavra, da máquina, só se move bem se o prumo for perfeito. Você tem que construir um prumo perfeito, e assim por diante. Portanto, tudo está enquadrado aparentemente de tal sorte que a arquitetura não teria graça nenhuma. Aquilo é uma coisa que obriga. Veja que interessante, eu recorro a esses estritos e restritos códigos que conheço, os únicos para construir aquilo, na presunção de que estou aparando justamente a imprevisibilidade da vida de cada um. Porque, uma vez você tomando um elevador nesse edifício, ninguém pode saber o que você vai fazer. No quinto andar é moda. No oitavo é o instituto de ginástica. No primeiro é o escritório da Máfia, e assim por diante. Quando você desce, ninguém pode dizer o que você vai fazer. A graça do prédio, por exemplo, é que lá você instala o que quiser. Quando se vende um edifício comercial, não se diz que é 39 especialmente para isso ou para aquilo; pode ser o que você quiser lá dentro, mas cada vez mais se pretende um prédio em que as instalações possam ser adaptadas para múltiplas atividades, isso ou aquilo. Guilherme Azevedo - E as habitações populares como Cohab, Cingapura? Paulo Mendes da Rocha - É a questão do popular no Brasil, a casa do pobre é muito malcuidada, muito malfeita. Mas a grande questão da casa você podia dizer que é o endereço, não a casa em si. Em São Paulo, morar ao lado do metrô, no centro da cidade, é você, primeiro, não gastar roupa, ir trabalhar a pé, as meninas trabalham no comércio, o outro vai para a escola, o outro vai de metrô, portanto é o endereço que interessa. Se você não aceita e quer construir a casa dos mais pobres de modo que marque a pobreza deles na periferia, aí vale tudo. E é engraçado que mesmo quando você, inexoravelmente, por razões políticas chega lá e faz a casa popular em edifício vertical, dá a ele um ar de estafermo, pinta de cor de abóbora, põe meio escanteado, como diz o outro, não é?, fora de regra para parecer bem uma porcaria. E constrói o apartamento do térreo, o que é uma infâmia. Você não pode ter alguém no terceiro andar e um no térreo. Ele abre a janela, tá frito. Então, o que acontece, porque o povo não é besta? Quem mora no térreo abre a janela e vende empadinha, coxinha, fica comércio no térreo, porque, se é na cidade, os rés-do-chão têm que ser público. O prédio exemplar, para você não pensar que são quimeras, feito em São Paulo, SERIA o Conjunto Nacional, que realiza o espaço do pedestre, livrarias, cinemas, teatros, cafés etc. O Copan é habitação popular e também embaixo é comércio, cinema, teatro etc., senão você não realiza a cidade. Márcio Carvalho - O Copan tem igreja embaixo. Guto Lacaz - Era um grande cinema. Paulo Mendes da Rocha - Tem igreja agora, já como sintoma de decadência, porque era um belo cinema, e a igreja é outro grande perigo da nossa época, esse ressurgimento por estupor ou pavor diante dessa abertura que está aí da natureza e tudo isso, então é fácil, pelo pavor, alimentar religiões. Você funda uma igreja da noite para o dia e fica milionário. É uma questão muito delicada. Sei que a França proibiu a compra de um certo edifício para fazer uma igreja de um bispo brasileiro, não há de ser à toa, e o Chile proibiu também que uma dessas igrejas entrasse lá. Porque são instrumentos de engodo, de engano do povo e hoje, com televisão e tudo isso, é muito perigoso. Porque pode levar o povo, os indivíduos a se constituírem numa massa de destino dirigido, de vontades dirigidas. Felipe Lagnado Cremonese - Você projetou uma capela belíssima em Campos do Jordão. Eu QUERIA ENTENDER a visão do ateu fazendo uma coisa tão bonita, que leva as pessoas a olhar para a religião. Paulo Mendes da Rocha - Você quer ver uma história que considero engraçada? O Fernando Henrique Cardoso é um sociólogo. Ele foi perguntado na televisão por um jornalista se acreditava em Deus. A intenção era expor a honestidade de um candidato que ele sabia e que ia dizer que não, o que não é bom na véspera de uma eleição, tanto que o Fernando Henrique perdeu. Há um diálogo de personagens do Guimarães Rosa, que é um magnífico exemplo para isso: dois caboclos conversando e um diz para o outro: “E Deus existe?” E o outro responde: “Deus existe, mesmo quando não há”. Que é uma visão sábia. Porque historicamente existe. Se você está numa população que adora um certo deus e perguntarem “você adora esse deus?”, você diz “adoro”, é claro, senão te comem. Mylton Severiano - Os comunistas estão chegando ao poder, finalmente? Li na Folha de S. Paulo ontem que todo o staff do Serra é egresso do PCB. Paulo Mendes da Rocha - Não vi essa notícia. Wagner Nabuco - O senhor chegou a militar no partido? Paulo Mendes da Rocha - Não, nunca tive carteira do partido. Wagner Nabuco - Porque o Vilanova Artigas era homem do partido. Paulo Mendes da Rocha - Era. Fui a muita reunião do PCB porque tinha e defendia idéias comuns às de alguns amigos ilustres do partido, mas nunca tive carteira nem fui militante, porque nunca quis. Mas passei mal também, fui cassado duas vezes. Primeiro, numa lista, demitido, da USP, aposentado pelo AI-5. E quinze dias depois fui cassado de novo, quer dizer, saiu publicado no Diário Oficial, pelo AI-5, com praticamente a mesma lista. Que dizia simplesmente o seguinte: estaríamos “proibidos de trabalhar para o governo da República, de forma direta ou indireta, empregatícia ou não”. Era para ir embora do país, porque, se você fosse arranjar emprego numa empresa e ela fosse trabalhar para o governo, seria de forma empregatícia indireta. Entre outras coisas, eu tinha cinco filhos, o que ia fazer, dar aula em escolinha da França? Fiquei. Conversei com fulanos e beltranos e meus amigos me protegeram, eu não assinava, fui trabalhando, não sei como passei esse tempo todo até a anistia, 1979. Houve vários episódios estranhos. Fui cassado, publicado nos jornais, no mesmo dia em que ganhei o concurso para fazer o Pavilhão do Brasil em Osaka, numa feira internacional. Então, não PODERIA IR. Aí o ministro, acho que da Indústria e Comércio, Fábio Yassuda, que havia promovido aquilo tudo, pôs o cargo à disposição do governo, criou um caso interno, ninguém soube, jornal não publicou. Então disseram: está bem, eu IRIA ao Japão, FAZIA o pavilhão e VOLTAVA, porque era uma relação internacional já estabelecida. E eu fui. Passei mal porque, imagina, me vieram com um passaporte comum e eu disse para o Itamaraty: “De jeito nenhum, vou rasgar esse passaporte, só saio daqui com passaporte oficial, porque senão eles me matam lá fora”. E me deram o passaporte azul, de missão oficial. E fui. Não fizeram direito o pavilhão, que projetei com o Flávio Mota, uma coisa lindíssima que falava da questão da ocupação do território na América. Aí me fizeram vir embora, deram para uma empresa qualquer dessas que põem rede, cristal de rocha, tamanduá empalhado, esse tipo de besteira. Não adianta enfeitar a cidade. A cidade são eventos efetivos da população: teatros, cinemas freqüentados... Wagner Nabuco - Falando nisso, nesta Bienal, você viu essa coisa de cinqüenta mulheres nuas, o que você acha? 40 Paulo Mendes da Rocha - A minha primeira impressão é horrível. Você vem para país atrasado e paga essas coitadas para ficarem ali peladas. Não faz sentido nenhum. Achei com ar nazista também. Não gostei. Depois, não acho que seja obra de arte, porque é o tal negócio da degenerescência, a partir de um argumento que parece legítimo, o corpo. Sérgio de Souza - Essa Bienal tem a ver com cidade, não é isso? Paulo Mendes da Rocha - É uma questão muito interessante, vocês estão vendo? Não se faz mais nada cujo tema não seja a cidade. A cidade virou mercadoria. Carolina Arantes - Em arquitetura, você tem visto alguma coisa, alguma corrente interessante surgindo? Paulo Mendes da Rocha - A corrente interessante que há na arquitetura é mesmo advinda dessa consciência de que o espaço da cidade é a questão. Que o edifício como coisa isolada em si pode destruir a cidade. Sérgio de Souza - Ano passado, o Congresso aprovou o Estatuto da Cidade, que diz o que vem a ser uma política urbana. Vai funcionar? Paulo Mendes da Rocha - Acredito que se devia olhar as razões da cidade e principalmente a evidência dos malefícios que produzem o seu desastre, por exemplo, a questão do tráfego. E essa desorganização de bairros “exclusivamente residenciais” que só revelam justamente o que acho que é a manifestação do horror. Assim que a liberdade e o espaço democrático se estabelecem na cidade, a classe dominante foge. São Paulo tem um exemplo muito claro na rua São Luís, que é só prédio habitacional. Foi um pequeno surto de civilização, que não durou cinco, dez anos, porque os teatros e tudo isso esmoreceram da noite para o dia. Quando o metrô entrou, o pessoal abandonou aquilo. Portanto, a idéia de que a cidade degenera é porque ela é abandonada, rejeitada. Você não constrói uma cidade com “arquiteturas”... Não adianta enfeitar a cidade. A cidade são eventos efetivos da população: teatros, cinemas freqüentados etc. Quem não conhece ou não aceita como virtude descer do elevador – suponhamos, para imaginar um espaço fisicamente configurado, a rua São Luís – e a pé vai ao teatro da Aliança Francesa ou aos teatros do Bexiga ou ao teatro do Edifício Itália, dez, vinte teatros a pé, depois escolhe o restaurante onde quer jantar? Ou desce domingo e vai comprar o jornal na banca? Ou você prefere ir morar num bairro estritamente residencial, cercado de uma trupe de polícia particular armada até os dentes e cachorros amestrados, para ficar tomando banho na sua piscina particular, é uma coisa meio idiota do ponto de vista do que seja civilização contemporânea, você não estar com os outros? Guilherme Azevedo - Parece que a própria elite não tem nem noção de beleza, não é? Paulo Mendes da Rocha – A elite do dinheiro não tem critério de beleza. É um raciocínio, inclusive, que vi numa frase do Artigas: eles não têm critérios de beleza. Ou você diz pela propaganda que isso é ótimo e ele paga ou ele por si não sabe dizer. A idéia de propaganda é muito perigosa, porque ela forma opinião, mesmo com mentiras, se quiser. Propaganda é algo acumulativo, repete, repete, acho que o campeão da propaganda é o regime totalitário. Sérgio de Souza - GOSTARIA de ver você fazer uma consideração sobre os shopping centers. Paulo Mendes da Rocha - É um desmantelamento. É outro instrumento contra a cidade. Você tirar da cidade a novidade do comércio. Você vê esses bairros exclusivamente residenciais e a idéia de liberdade da cidade. Se você se puser na esquina da avenida Ipiranga com a rua São Luís e ficar o dia inteiro lá, depois mesmo se sentar na sarjeta e ler um livro, não acontece nada. Se você for lá para esses bairros tidos como exclusivamente residenciais, no Morumbi e coisa assim e ficar em pé na esquina dez minutos, vêm quatro jagunços armados perguntar o que você está fazendo ali. E, se você disser que não está fazendo nada, o cara já pega um celular e acha que é um perigo ao vivo o cara não estar fazendo nada... Parece bobagem, mas é um absurdo incrível. A cidade é, por si, ao se fazer, democrática. Ela não tem desenho a não ser sendo democrática. Ela é de todos, inclusive, numa desgraça sem dúvida nenhuma, você vê que se pode dormir no meio da rua. Sérgio de Souza - Já vi mesmo muita gente dormindo no meio da rua, ali na Ipiranga com a São Luís. Paulo Mendes da Rocha - E é engraçado você considerar, aliás, não é nada engraçado, mas, se você considerar que grande parte de quem dorme na rua não é porque não tem necessariamente nenhum outro lugar para dormir, não é bem assim sempre. Muitas vezes, é uma escolha como o melhor lugar, porque de manhã já tem o que fazer. Dorme na cidade. Fiz um cenário no Teatro Municipal e o meu escritório é a 300, 400 metros do Municipal, e meu carro fica numa garagem ao lado do escritório – então, voltava do teatro a pé para pegar o carro às 3 da manhã. E passava ali na rua 7 de Abril. Na frente de um prédio que tem um pequeno recuo e umas colunas, havia uma cordinha de proteção e trinta pessoas dormindo. Às vezes, dois conversando, mas os outros estavam dormindo. Um dia caí na asneira de tirar um cigarro ali, e surgiu das sombras uma cara: “Ô, meu, tem um cigarro aí?” Dei o cigarro, apareceram mais uns três, acendi o deles, acendi o meu, boa noite e fui embora. Aí que prestei atenção: aqueles camaradas estão ali porque trabalham naquele comércio dito informal, que é abastecido por magnatas, por gente que tem o truste daquilo, distribui a mercadoria com peruas, e os camaradas trabalham ali. Então ficam ali mesmo. Não voltam, não sei para onde, porque moram onde? Não têm nem dinheiro, nem condição de pegar três horas de condução – depois de passar o dia vendendo bagulho na cidade – para ir dormir na favela e voltar cedo amanhã, porque às 7 horas já tem movimento que interessa a eles. Têm que acordar às 5 da manhã, então dormem ali. Portanto, a cidade expulsa a possibilidade de trabalho. Não há nada que seja acessível para você alugar e montar uma pequena birosca. Portanto, essa malignidade toda é construída. Não existe fenômeno urbano. É um engendramento objetivo que acarreta esses quadros desastrados. E, naturalmente, é uma miséria imensa no Brasil, em São Paulo, na América Latina. Por alguma idiotice há questões, por outro lado, apavorantes, se você pensar numa superpopulação da qual o mundo não dá conta. Então, você vê que não adianta também falar as coisas assim como se fossem histórias da carochinha. Quero dizer que a miséria não é só a falta de comida. Temos uma condição miserável, se não houver a hipótese de nos tornarmos humanos de um modo que imaginamos que seja o modo humano desejado. Temos que 41 enfrentar essas questões e só podemos fazer isso num espaço público, na dimensão pública do discurso que adquire força política. Realizar sonhos antigos é o que o homem tem a fazer, e a cidade é um dos mais antigos sonhos do gênero humano. Guilherme Azevedo - Eu QUERIA perguntar, não saindo dessa parte que você está colocando, qual a sua relação, na realização de uma obra, com os operários? Paulo Mendes da Rocha - Bem, nós todos necessariamente freqüentamos essa divisão bastante sórdida até do ponto de uma extrema pobreza. Esse operário da construção civil que chega às 7 horas da manhã para trabalhar, você não sabe de onde ele vem, porque construções estão em toda parte. Onde está a obra, ele tem que se deslocar para lá. É outra condição terrível da indústria da construção. Mas não há de ser só com medidas de caráter social que você resolverá esse problema. Você também tem técnica, máquinas, e vai melhorando pouco a pouco a condição do operário. Até outro dia, você construía carregando concreto, em rampa de tábua, com carrinho de mão, hoje você bombeia concreto etc. É uma condição que está aí, mas o que dá lucro para a especulação imobiliária, em grande parte, é o quanto é barata a mão-de-obra, porque o operário da construção civil não ganha nada. Então, a especulação de tudo isso, no fundo, é uma prevalência da exploração do homem pelo homem. Márcio Carvalho - A arquitetura sobrevive às empreiteiras? Paulo Mendes da Rocha - Do modo que as coisas estão hoje, você podia dizer que não, porque a maioria das empreiteiras visa só o lucro. Assim não dá. O empreendimento humano tem que ser feito de forma solidária. Você tem que imaginar que, quando se fez uma ponte como a Golden Gate, queria-se fazer a mais bela ponte do mundo. Ali não entram orçamento e concorrência. Para realizar esse feito tecnológico que é uma maravilha, um cabo de aço suspenso de forma adequada, com aqueles pendurais todos que, na bruma, parece até não haver estrutura. Você vê 1 quilômetro e tanto de tráfego passando com luzes naquele vazio. É uma realização extraordinária. Deve ter sido feita por algumas empreiteiras, mas é um trabalho ideal. Essa idealização dos feitos humanos é indispensável que se ponha na frente dos empreendimentos. No caso de uma cidade como São Paulo, viadutos, pontes, túneis, você vê que eles não têm nenhuma vontade de beleza. É uma estratégia puramente funcional, o tráfego passa mais depressa e são obras mal projetadas, malfeitas, não rendem nada. Túneis absurdos, porque é melhor entupir tudo de automóvel, que eles não andem, do que fazer um túnel. Era melhor fazer mais redes de metrô. Incentivar o tráfego de automóvel, transformar a cidade num autorama fantástico, não adianta nada. Depois, quanto mais você imaginar o tráfego de automóvel de modo expedito, por cima de construções de estruturas urbanas antigas, mais você tem que pensar que o que fica por baixo é um vazio, um desastre. Rafic Farah - É um crime, não é? Paulo Mendes da Rocha - Um crime. E quem passa deve ter destinos longínquos, porque no meio do caminho não dá para fazer nada. Portanto, diante do impasse do automóvel, da regurgitação do tráfego, a pior coisa que se pode fazer é duplicar as faixas carroçáveis de automóvel com túneis e estruturas suspensas. O melhor é constatar que o automóvel não é o transporte adequado e arrumar outro tipo de transporte, e também tentar não espalhar a cidade dessa maneira idios-sincrática e tola de que a casa do pobre tem que ficar no subúrbio, no arrabalde. Aparecem contradições terríveis, que é a tal história do bom que se transforma em mau. Você vê a idéia de autoconstrução. Se o nosso objetivo é construir a cidade, é impossível a autoconstrução. Não vou construir uma cidade com a autoconstrução. São episódios carregados de demagogia, de engodos para o povo, vai o pobre desgraçado com a sogra e mais não sei quem fazer mutirão, o diabo do tijolo cai no pé, e quem é que paga o seguro? Não é para isso que a inteligência humana foi feita, não vai dar certo. Você constrói hoje com pré-fabricação, há usinas que fabricam peças excelentes, um edifício em quatro, cinco dias. É que essa casa tem que estar nas áreas centrais, que já têm rede de esgoto, águas pluviais, telefonia, iluminação, escolas, hospitais, transportes e trabalho. No mundo inteiro há essa preocupação e algumas iniciativas nessa direção: recuperar prédios abandonados e velhos para habitação moderna, porque toda habitação nós devíamos dizer que é popular. Mais ou menos, todos moramos em habitação popular. Porque precisa pensar o seguinte: não é possível fazer uma água potável popular, mais ou menos potável. Não é possível fazer um quilowatt popular, já imaginou um quilowatt meio mambembe, que pisca pra lá e pra cá, dá curto-circuito... Não é possível fazer um avião mambembe, um avião de segunda. Você consegue é comprimir todo mundo doze horas amarrado, mas o avião é um só. Portanto, o êxito do empreendimento é que dá a qualidade do empreendimento. E, no caso da casa, ela é necessariamente popular. Nem se imagina uma rede de esgoto popular. É impossível. Então, é tão grotesca essa diferenciação tola que você acaba descobrindo que não é possível distinguir desse modo as virtudes da técnica. Wagner Nabuco - Você já construiu algum prédio que tenha elevador social e elevador de serviço? Paulo Mendes da Rocha - Todos os que eu fiz têm entrada de serviço e entrada social separadas, é uma norma. Mas não é lei, ao contrário, a lei obriga você a não discriminar – quem quer que seja pode entrar em qualquer elevador. Quer dizer, essa coisa está mudando. Portanto, acredito – para voltar mais ou menos ao fulcro da nossa conversa – nessas transformações que vão ser sempre mais na direção do desejo do gênero humano do que contra, porque senão vamos ser extintos. O que não é de prever. Há quantos milhões de anos estamos aqui? Será que agora é que vamos desaparecer? Não acredito. Agora, vai ser complicado, inclusive não será nada para ver numa geração, mas nós já vimos, a última geração do século 20, transformações incríveis. O Niemeyer vai fazer 100 anos, está com 94, 95 anos. Viu um século todo. Olha quanta coisa. E esse artista, a dimensão dessa visão artística não começou de um modo para acabar de outro. As obras dele estão aí. Realiza velhos e antigos sonhos. Realizar sonhos antigos é o que o homem tem a fazer, e a cidade é um dos mais 42 antigos sonhos do gênero humano, um lugar para todos morarem de modo igual, porque as águas, tudo isso não dá para dividir em categorias. Mesmo elevador, tendo o de primeira e de segunda, o pessoal começa a fazer besteira. É engraçado ver a degenerescência dessa exigência: você a f z um elevador sem revestimento, de chapa de ferro, um elevador de segunda, de serviço, pega o elevador, que é uma máquina de suspender, calculando doze passageiros, 70 quilos por média, tantas toneladas, aí o cara diz assim: “Não, mas, no meu, o piso vai ser de granito”. Então, você constrói o elevador para levar pedra de granito pra baixo e pra cima, para dizer que o piso é de granito, mas é o mesmo elevador, porque o feito que se pretende é subir e descer e parar em cada andar direitinho, apertando o botão. Estamos mal acostumados a contrapor arte e técnica. Amâncio Chiodi - O elevador do Banco Safra é assim, só que é mármore. Paulo Mendes da Rocha – Agora, você vê outra coisa muito curiosa quanto a essa tolice, vamos dizer assim, com todo o carinho, apesar de tudo, do povo, como nós somos frágeis. Agora mesmo saiu nos jornais que um excelente botânico, contratado pela prefeitura, transformou a rua Vieira de Carvalho, cortou umas árvores, replantou outras, como se faz nas cidades civilizadas do mundo. Houve uma grita, chegaram a dizer em entrevista de jornal: “Não, nessa árvore que ele tirou morava um sabiá...”. Como se o sabiá não tivesse voado para outra árvore na praça da República, porque ele não é besta – e demitiram o homem. Uma árvore. Mas, se você fatiar, como se diz em linguagem de churrascaria, um maciço cristalino rochoso, maravilhoso, para fazer placas de granito, a turma não se importa, o granito pode. Pergunta se o carioca vai deixar cortar o morro dos Dois Irmãos, ou a Pedra da Gávea, ou a Pedra da Panela. João de Barros - O morro do Elefante, da sua terra, foi fatiado, lá no Espírito Santo. Paulo Mendes da Rocha - É, granito que se vende por uma fortuna, corta. Hoje se corta com jato de água, sabia? Antigamente, pra pôr um piso de granito, tinha que ter uma placa espessa, hoje se cortam 8 milímetros. Jato de água, uma força terrível, vai fatiando mesmo a montanha, não fica mais como as pedreiras antigas, aqueles escombros que tiravam os grandes pedaços com dinamite, depois cortavam com serra. Uma coisa incrível como se vai atrás de técnicas e tecnologias para produzir uma besteira, pôr granito fatiado no piso de shopping center, um horror. Aí vem sapato de borracha pra não escorregar, aqueles que guincham, podíamos ficar ricos inventando sapatos que não derrapam e não guincham... Você tem que admitir que a alegria da rua, inclusive, são as surpresas do mercado. O shopping, o confinamento de qualquer tipo de atividade, do ponto de vista da idéia da cidade, é negativo. Ele pressupõe, favorece a discriminação, é fácil você dizer quem entra e quem não entra num centro de compras herme-ticamente fechado, com ar-condicionado e tudo aquilo. Ao passo que a rua é do povo. A cidade do centro de compras fechado é uma aberração. Outra coisa que acho negativa, que atinge diretamente a própria idéia de mercado, é a estupidez de que todas as lojas se repetem, todos os shopping centers têm as mesmas filiais das mesmas lojas. Vão acabar fazendo cidadelas de mentira e você não precisa comprar, é leasing, você aluga a roupa, passeia naquele lugar, todos fingem que se cumprimentam, devolvem, entram em outro shopping, tudo de mentira. E praça de alimentação? Se você dissesse isso há tempos, o cara ia dizer: “Mas eu não sou gado...”. Aí, o cara pega dois pedaços de um pão que parece isopor, faz várias prateleiras de coisas, oito prateleiras, cheeseburguer, chicken salad and “frango”, e te dá umas garrafas de plástico, uma vermelha e outra amarela, você enche aquilo, segura, aperta, escorre tudo, entra na camisa e o cara tem que comer de lado, porque a mandíbula já não agüenta. E a turma tá na praça da alimentação, tudo tranqüilo ali, só falta cacarejar. Nós somos muito bobos. Wagner Nabuco - Você não acha que isso é sintoma de uma doença das cidades, essa coisa de Alphaville, shoppings, que isso vai dar errado? Paulo Mendes da Rocha - Já deu errado. Em relação à Castelo Branco, acabaram com a estrada, aí fizeram um caminho lateral, mas que tem pedágio. Então, o que a turma faz? “Não vou pagar pedágio”, entra na outra. É uma coisa idiota, custa muito caro essa vida, tem que pagar guarda, segurança, condomínio, uma coisa idiota, e desmantela com a idéia da cidade, mas principalmente produz gerações de imbecis. Acho que os meninos que vivem, estudam, se formam e crescem nesses lugares vão acabar comendo em praça de alimentação distribuída por caminhões com favos de aveia, de sucrilhos, granola... Rafic Farah - Favos de granola... Paulo Mendes da Rocha - E cadê o bar? A alegria dos homens... A grande questão que também está envolvida em tudo isso, nessa má disposição espacial, é reproduzir e manter a aflição da população, porque é mais fácil dominar, submeter uma população aflita. O camarada que sabe que vai levar duas horas para voltar pra casa sai do trabalho como um cachorro correndo pra entrar nas filas, é diferente do camarada que desce e diz: “Bom, de cinco em cinco minutos, passa o metrô, vou até a esquina encontrar com meus amigos, e tomo um chope”. E conversa, troca idéias, a cidade é o lugar da serenidade da troca de idéias, que é a dimensão pública justamente da experiência tornada projeto. Ele não volta pra casa, telefona, chama a mulher pra jantar ali e, depois, vão ao cinema, voltam no último metrô, coisas assim. Você fica dono do seu espaço, cria novos espaços porque é dono do seu tempo. Sérgio de Souza - Mas ele vai perder a Casa dos Artistas... Paulo Mendes da Rocha - É, espiar como se comportam quatro panacas trancados, é uma coisa bem maluca isso aí. Eu tinha um amigo que dizia: “Não se preocupe com louco, louco às vezes é interessante. O problema é se a sociedade toda ficar louca”. E está mais ou menos acontecendo isso, o desespero. Tudo isso deve ter sido tirado de experiência fascista. Rafic Farah - Ou seja, o cara vem até o shopping, compra no shopping, volta pra Alphaville, de carro com vidro blindado. Paulo Mendes da Rocha - Quem faz isso? 43 Rafic Farah - Esse povo que vive assim, em ambientes fechados, apavorado, atravessa a faixa no sinal de trânsito e vê aquelas pessoas que estão no carro, eles fecham o vi dro, é um mundo de terror, eles vivem em cápsulas, parece coisa de filme de ficção científica. Paulo Mendes da Rocha - Já é ficção. Felipe Lagnado Cremonese - Você acredita que a sua formação, desde que começou a atuar, mudou a ponto de mudar a sua arquitetura, as suas convicções? Paulo Mendes da Rocha - Sobre essas questões básicas acho que não, ao contrário, não tive tempo de fazer nada ainda do que poderia ter feito, GOSTARIA muito que não tivessem feito. GOSTARIA que tivessem verticalizado aqui áreas em que seria o caso de revitalizar ou transformar dentro da rede de metrô. Mesmo este bairro, o metrô vai passar aqui, os intelectuais estão apaixonados por essas casinhas, todo mundo quer morar na Vila Madalena, vai ter que verticalizar isso daqui, porque o metrô vem pra cá e a turma quer morar aqui, não vamos ficar de casinha em casinha, porque gostamos do verde, nem que seja vertical no muro, não resolve nada! Rafic Farah - E isso é considerado área verde. Se você falar em área verde, é um gramadinho assim. Paulo Mendes da Rocha - Então temos que ser coerentes, a saudade é com o futuro, que é um desejo, e não fizemos nada, o tanto que podíamos fazer vamos fazer agora? Então é assim, derruba tudo, acaba. Veja a área asfaltada que essa companhia City fez no Alto de Pinheiros, dá várias vezes a volta ao mundo. Só a praça PanAmericana, pôxa, cabe o prédio das Nações Unidas ali, e parece um autorama, os carros engasgam tudo para ir para a USP. A própria USP se chama Cidade Universitária, olha as contradições. Por que diabo foram lá pro meio do mato fazer aqueles pavilhões, botar os estudantes como se estivessem na invernada, completamente afastados da vida pública, nunca mais estudante pôde fazer movimento político nem coisa nenhuma, e se chamou Cidade Universitária. Que contradição, mas sabem os que tem que ser na cidade, que não se vai estudar no mato. Agora teremos enormes problemas para abrir estes espaços para a verdadeira cidade.? Rafic Farah - Uma degenerescência é a transformação da cultura e do indivíduo também, porque Alphaville é fruto do medo, o shopping é fruto do medo e da individualidade, uma coisa de nenhuma solidariedade, é só pensando no indivíduo. Paulo Mendes da Rocha - Vê o seguinte: o dia em que o metrô passou na porta da escola Caetano de Campos, o que o governo fez? Desativou a escola, transformou num centro burocrático. Tirou as crianças do centro da cidade agora, que você podia ir para uma escola exemplar, que era uma escola modelo, de formação de professores inclusive. Nesse instante que o metrô passou na porta, tirou as crianças, por quê? Quanto mais tivermos que tomar conta das crianças, melhor, não é? E uma escola modelo incentiva as outras. Já havia muitas, até ali no largo Coração de Jesus, nos Campos Elísios, tinha uma escola belíssima, a Escola de Comércio Álvares Penteado. A Faculdade de Direito. A Faculdade de Medicina. Então, você faz essas coisas por desejo. Quais as razões para você fazer as coisas que faz, no sentido de fabricá-las e engendrá-las? São desejos. Pode-se discutir se está correto ou não, se vai render esses ou aqueles frutos, porque a grande escola que se pretende é a cidade, ela é a grande escola. Agora, você põe os meninos lá no mato, eles estão dissociados de tudo, já vão para a invernada deles, não tem bar, não tem nada; comem na lanchonete, porque geralmente a universidade não quer se responsabilizar... Mylton Severiano - Terceiriza. Paulo Mendes da Rocha - Exatamente, eu ia dizer isso. Não vai para a escola de higiene, ou alimentação, e lá podia ter nutriccionistas, pra ver qual é a refeição ideal para os estudantes, sucos, isso ou aquilo. Nada, entrega para concessionários que ficam vendendo essas porcarias podres, e depois diz que a escola paga, a particular, é que pode ser a escola brilhante do futuro. Nunca deviam ter feito isso, mudar para a Cidade Universitária. Porque antigamente era o contrário, você fundava as cidades em torno das universidades. Agora, você vê bibliotecas, microscópios eletrônicos, instrumentos de laboratórios, isso tudo não é pra enfiar debaixo de barracão. A escola tem que exprimir a beleza de tudo isso, não adianta fazer escola barracão, isso o jesuíta já fez para o índio e produziu o desastre que produziu, porque é o que o jesuíta queria: conquistar e dominar. A nossa política é muito frágil, a gente sempre fala como se fosse o outro, mas somos nós mesmos, uma intelectualidade que se considera privilegiada, que arrota grandes idéias, mas espera que o povo saia na rua, morrer com bandeira. E é a sopa no mel pra quem quer futricar a América Latina e transformar tudo isso em movimentos de guerrilhas ou coisa que o valha. É o que quem está por cima deseja – que isso aqui se transforme em um campo de batalha de desencontros, de desarmonia. O continente vazio. CA62_mai_2002 Quarta- feira, 16 horas. O saguão do Aeroporto Internacional Salgado Filho, em Porto Alegre, está praticamente interditado. Do portão de desembarque à entrada do aeroporto, se estendem duas colunas de trabalhadores sem-terra e integrantes da comunidade palestina no Rio Grande do Sul. Nas mãos, bandeiras do Movimento dos Sem-Terra, da Via Campesina e rosas. A "ocupação" do aeroporto tem um bom motivo: recepcionar a chegada do dirigente nacional do MST, Mário Lill, após sua permanência de três semanas como "escudo humano" de Yasser Arafat no quartel-general da Autoridade Palestina, em Ramalah, em companhia de outros trinta ativistas internacionais. Quando Lill desembarca, aplausos e uma pequena perseguição de câmeras e fotógrafos ao agricultor. Que SE REPETIRIA minutos depois em frente à sede estadual da Via Campesina, num ato que interrompeu o trânsito em uma das principais vias de acesso ao centro da cidade. No dia seguinte, Lill recebeu a Caros Amigos para esta entrevista. 44 A imagem da entrega da bandeira do MST ao presi dente Arafat correu o mundo, mas a presença do MST no Oriente Médio também surpreendeu a muitos. Alguns veículos de comunicação chegaram a falar em golpe publicitário. Qual era a natureza de sua viagem à Palestina? Foi uma missão internacional organizada por entidades de solidariedade ao povo palestino e contou com uma delegação da Via Campesina, a articulação mundial dos camponeses. Nós temos por cultura a solidariedade. Chegamos à Palestina na quarta-feira de cinzas, 27 de março. No dia 28, visitamos Jerusalém, e depois fomos até Ramalah, para uma primeira reunião com organizações camponesas palestinas. Ao chegar, fizemos um ato breve e tivemos uma reunião com os camponeses. Já estava caindo o dia quando nos disseram que era impossível retornarmos a Jerus além. E no dia seguinte, de madrugada, estourou a guerra. À 1h45, os canhões explodiam suas bombas, e Ramalah era tomada por um exército cruel, que entrava nos hospitais para matar feridos, que destruía o que via pela frente. E a partir de que momento a missão assumiu esse caráter maior, de romper o isolamento e entrar no quartel? Na sexta-feira, ficamos o dia inteiro no hotel, cercados pelos tanques. No sábado, conseguimos sair, fomos até o hospital, doamos sangue, e vimos os primeiros efeitos concretos dessa guerra: centenas de feridos chegando, os corredores tomados de feridos, muitos mortos. Ajudamos no serviço de carregar e descarregar feridos, descarregar mortos, as ambulâncias sendo atacadas pelo exército israelense. Ainda no sábado, fomos até o palácio, e entrou uma equipe de três. Decidimos que iríamos trabalhar para que todo o grupo entrasse. No domingo de Páscoa, antes de irmos ao palácio, fomos novamente ao hospital de Ramalah. Naquele momento, o exército israelense estava tentando invadir o hospital para fazer o que já tinha feito nos hospitais da redondeza: matar os feridos, porque para os israelenses quem resiste à opressão deve ser morto. Impedimos esse massacre. Um grupo ficou no hospital, e fomos até o palácio. Passamos por várias barreiras, ignoramos tanques, canhões, metralhadoras, fuzis. Tudo apontado para nós, em meio à ordem de soldados para que não avançássemos. E fomos entrando. Os israelenses iniciaram os disparos sobre nós, e nós seguimos. Entramos no quartel-general e fomos muito bem recebidos pelas autoridades palestinas, pelos soldados. Nesse momento, fomos recebidos pelo presidente Arafat, e eu entreguei a ele a bandeira do Movimento Sem-Terra como símbolo da solidariedade camponesa à causa palestina. "Nós, camponeses do mundo, sabemos ser solidários, e entregamos esta bandeira em nome do nosso povo e em nome da causa que o senhor defende", foram as palavras que eu disse a Arafat. Ele agradeceu muito e mostrou a bandeira, que foi a imagem que correu o mundo. Como era a relação dos ativistas internacionais no quartel com Arafat? A figura de Arafat é o símbolo da resistência, mas não é "a" resistência. A resistência está no povo, que ele lidera. Todos os dias conversávamos com ele. E ele nos falava sobre a paz, dizendo assim: "Estamos dispostos a sentar a qualquer momento, a qualquer mesa, com qualquer autoridade do mundo, até com os israelenses, para negociar a paz. Agora, queremos condições para a paz. Queremos a nossa Palestina livre". Em vários momentos vi Arafat relatando a repercussão pelo mundo, e se animando e acreditando na possibilidade da paz. Mas também vi ele chorar em muitos momentos. Chorava porque seu povo estava sendo massacrado. Em Jenin, o exército israelense, não satisfeito em matar as suas vítimas, estendeu os corpos no asfalto e colocou os tanques em posição para esmagá-los. Não há exagero, então, em comparar os crimes de Sharon com o nazismo. O ódio, a covardia, a crueldade do exército israelense é algo que não tenho palavras para descrever. O que vi na Palestina jamais pensei que um dia iria testemunhar: aquilo que o exército israelense está fazendo com o povo palestino. Esse exército é monitorado, armado, pelos Estados Unidos, que fornecem as armas mais modernas para Israel usar e testar. Os soldados, os camponeses palestinos, lutam com um fuzil velho, com o seu corpo, com a sua dignidade, com a sua moral. Esse exército é comandado pelo general Ariel Sharon, que pessoalmente comandou o massacre de Sabra e Shatila anos atrás, e agora está comandando a maior ofensiva militar desde 1967. A postura de Israel em relação à Palestina e a surdez diante das pressões internacionais lembram exatamente a frase de Bush após o 11 de setembro: "Ou estão conosco ou estão contra nós". É a mesma ambição expansionista dos Estados Unidos. Israel acusa o povo palestino de ser terrorista. Os Estados Unidos apóiam essa política e fazem as mesmas acusações. A pergunta que fazemos é: quem é terrorista? Quem está ocupando o território palestino ou quem está se defendendo da invasão? Eu não reconheço no Estado de Israel nenhum direito nem moral de questionar a resistência do povo palestino. Enquanto Israel estiver ocupando o território palestino, os terroristas são os israelenses. E esse terrorismo de Estado é patrocinado pelos Estados Unidos, os mesmos que querem nos impor a ALCA, para amanhä ou depois invadirem nosso território e nos submeterem às mesmas humilhações a que o povo palestino está sendo submetido. E o governo brasileiro já está entregando a base de Alcântara, no Maranhão, para os Estados Unidos colocarem em território brasileiro uma base militar. Será o começo da instalação do exército americano aqui. Depois, qualquer coisa será pretexto para se meter no que nós fizermos. De que forma a missão prossegue, agora que você retornou ao Brasil? Temos várias tarefas importantes. A paz não se consegue com discursos, mas com ações concretas. E neste momento o que deve haver são sanções econômicas contra Israel, que o nosso governo rompa relações políticas, econômicas e diplomáticas com o Estado de Israel. A política israelense só irá mudar quando sentir na carne que os outros povos são solidários com a Palestina. Acho também que seria importante intensificarmos o envio de delegações para a região. E essas delegações DEVERIAM, além de ENVIAR pessoas, AJUDAR na reconstrução da Palestina, pois tem muita coisa faltando lá, remédios, sementes... 45 A maior parte dos palestinos é camponesa. De que forma específica o exército israelense tem reprimido os agricultores? Esses camponeses me relatavam que o exército israelense estava destruindo as plantações de oliva para obrigar os palestinos a ir embora. Assim como os EUA usaram no Vietnã produtos químicos para matar as florestas, a fim de facilitar a localização dos vietcongues, hoje Israel utiliza os venenos fornecidos pelos americanos para pulverizar as lavouras do povo palestino. O exército israelense, não satisfeito com isso, é capaz de fazer uma coisa que para nós é difícil de compreender: eles roubam a terra! Com caminhões e máquinas carregadeiras, eles vão aonde existem lavouras dos camponeses palestinos, carregam as terras férteis, botam em cima dos caminhões e transportam essa terra para as colônias judaicas. Quem é capaz de roubar terra, do que não será capaz? A terra é para produzir alimento e não para produzir ganância. Israel rouba a terra, mata a produção agrícola, destrói a alimentação e, não satisfeito com isso, mata as pessoas. Mas não mata a dignidade dessas pessoas, não mata a grandeza de um povo. Enquanto houver uma Palestina ocupada, haverá um palestino para reclamar a libertação de sua pátria. (Miguel Stedile é estudante de jornalismo. ) ________________________________________________________________________ CA65_ago_2002 Entre romances, novelas e contos, ele publicou mais de trinta livros, dos quais 3 consagrariam sua assinatura: Aracelli, Meu Amor; Lúcio Flávio, Passageiro da Agonia; e Pixote, a Lei do Mais Forte, estes dois úlitmos levados para o cinema por Hector Babenco. Escritor e repórter de polícia, Louzeiro fala aqui de seu trabalho, uma larga e profunda experiência no meio de defensores e contraventores da lei no Brasil. Experiência tão profunda que ele declara com convicção firmada: "Neste país, não sei quem é o bandido. Continuo sem saber". Trecho 01 Verena Glass - Então vamos começar com a sua história... seus primórdios profissionais? José Louzeiro - Bom, tudo o que aconteceu na minha vida e tem acontecido é por acaso. Jamais imaginei que pudesse ser jornalista, era um péssimo aluno, dava muito trabalho para os professores, principalmente um deles que já esta no céu, que é o Luís Rego. Para se livrar de mim, me arranjou um emprego num jornal, e foi assim que comecei, fui ser "ajudante", nesse tempo não existia ou não se usava a expressão "estagiário". Fui ser ajudante de revisor num jornal no Maranhão que tem um nome interessante, chama-se O Imparcial... Verena Glass - Existe ainda? José Louzeiro - Existe. Aí passei a acompanhar um amigo nosso chamado Moacir de Barros, nas reportagens de polícia, e achava uma delícia, ele ia entrando pelos lugares e eu ia atrás... Verena Glass - Quantos anos você tinha nessa época? José Louzeiro - Uns 16 anos. Andava com o Moacir pra baixo e pra cima, e o delegado deixava a gente conversar com os presos. Eu achava isso muito interessante e aí me tornei repórter, não do Imparcial, mas de outro jornal de nome curioso – esse acabou –, O Globo, Pacotilha. Nunca entendi por que o Pacotilha... O jornal era dirigido por um grande amigo chamado Nonato Maçom, que depois foi para o Rio de Janeiro e durante um tempão foi um grande colunista esportivo, junto com Armando Nogueira e outros. Aí fui chamado pelo O Combate, um jornal político. Mas, como de quando em quando algum político mandava matar alguém, passei a ser repórter político-policial. Fiquei trabalhando nesse jornal, até que um dia fui fazer uma reportagem no município de Rosário, onde capangas de um político delinqüente chamado Vitorino Freire tinham surrado um trabalhador, que ficou entre a vida e a morte, retalharam suas costas com fi o elétrico, uma coisa muito chocante. Escrevi a matéria. E ela foi totalmente desmentida pelo pessoal de Vitorino Freire. Wagner Nabuco - O clã anterior ao Sarney era o clã Vitorino Freire, não é? José Louzeiro - Exatamente, o Sarney subiu com a proposta de acabar com Vitorino. Os capangas de Vitorino viviam matando pessoas, inclusive jornalistas, e eu entrei para a lista do Vitorino, para ser liquidado. Éramos cinco e, quando chegou no terceiro, o jornal me arranjou um dinheiro e perguntou: "Vai pra Recife ou vai pro Rio?" Fui para o Rio com a promessa de que iria trabalhar no O Jornal, levando uma carta para um jornalista chamado Humberto Maranhão. O Jornal se intitulava o órgão líder da cadeia Associada, do Assis Chateubriand. Aí fui conversar com o Maranhão. Ele leu a carta, não teve a menor emoção, e disse: "O senhor quer o quê?" Eu disse: "Bom... a carta...". E ele disse: "O problema é o seguinte: vaga de repórter nem pensar, o senhor conhece a cidade?" E eu: "Não, senhor". Ele: "Então... enquanto o senhor não conhecer a cidade!..." Isso, entre uma matéria aqui, um papel assinando ali. Aí eu digo: "O que é que faço?" E ele: "Fica por aí... aprendendo as coisas, e um dia a gente conversa". Eu pergunto: "E o salário?" Ele: "Salário? Não tem nada de salário, o senhor fica por aí, um sanduíche, um negócio qualquer aí na cantina...". Vi que não era o meu dia, nem minha semana, estava tudo errado, mas fiquei por lá. Um dia peguei nos jornais os classificados, eu era bom datilógrafo, me inscrevi em várias empresas e fui aprovado em três, aí fui numa delas, que se chamava Oscar Flues, que aliás está no livro do Fernando Moraes sobre Chateaubriand. Esse Oscar Flues foi um alemão que se instalou no Brasil e tinha contato com os colegas dele das artes gráficas na Alemanha, então ele vendia no Brasil máquinas novas e recondicionadas, muitas para O Jornal, principalmente a impressora, e o pior é que Chatô nunca pagou. Então, nessa empresa, eu fazia o papel de escriturário, fui me relacionando e de repente fui parar na Revista da Semana, já como redator no departamento de publicidade. Fiquei lá um ano, depois arrumei uma vaga no jornal de Tenório Cavalcanti, A Luta Democrática, voltei a ser repórter de policia, aí passei para o Diário Carioca, como redator, e depois para o Última Hora. Mas era muito difícil ser repórter no Rio, porque eles preferiam que eu fosse redator, então, quando vim para a Folha de S. Paulo, botei no contrato: "Tenho que ser repórter e redator". 46 Uma hora repórter, outra hora redator, e acabei só como repórter na Folha. Fiz muitas matérias aqui em São Paulo, fui o primeiro repórter a chegar em Camanducaia quando houve a questão dos cem meninos que foram jogados lá e daí surgiu meu livro chamado Pixote. Os meninos foram salvos por uma prostituta chamada Elisana, que ficou muito amiga minha... Verena Glass - Como, "jogaram fora"? José Louzeiro - Ia chegar não sei quem em São Paulo e não podia ver menino de rua, então mandaram pegar os meninos de rua, botaram num ônibus, "gentilmente cedido" pela Breda Turismo, cachorros dentro do ônibus, fora os cachorros fardados, e foram na direção de Camanducaia, que é serra! Tinha chovido, estava fazendo um frio parecido com o de hoje, e eram 2 horas da madrugada quando o ônibus chegou lá. Abriram as portas, soltaram os cachorros em cima dos meninos, e cada menino que ia saindo ia levando um tapa ou um pontapé e voava num abismo, que eu calculo tivesse uns 30 metros de profundidade, em encosta. No dia seguinte encontramos uma quantidade de chinelinhos de garotos e 52 meninos. Eu perguntava para o delegado: "E os outros?" E ele: "Bom, pergunte para a polícia de São Paulo, só respondo pelos que chegaram aqui!" E os meninos saíram nus ali da delegacia, porque tiraram as roupas deles todos, e no primeiro bar que encontraram, aqueles bares-restaurantes de beira de estrada, eles arrancaram as toalhas das mesas, bateram nos garçons, se armaram de pedaços de ferro, se enrolaram naqueles panos, mas estava passando um cara num caminhão que foi dedurar na polícia, e aí os meninos ficaram lá. De olho furado, costela quebrada, estropiados, apenas alguns em bom estado. Fiz três reportagens para começar a série, Cláudio Abramo ficou fascinado, aí a Censura reduziu a trinta linhas! Sérgio de Souza - Que ano era mesmo? José Louzeiro - Foi em 1973, por aí, fiquei furioso, voltei para o Rio... Trecho 02 Nivaldo Manzano - Quanto à questão da violência, é bem maior hoje do que em 1980, não? José Louzeiro - Não sei se é só maior. Ela tem ficado mais perversa, a violência e os seus adeptos. Os adeptos, hoje, são extremamente escolados. Eu me lembro quando trabalhava nos jornais, sempre repórter de polícia, o próprio Correio da Manhã cansou de gozar os bandidos que entraram no apartamento de não sei quem e não roubaram os quadros do Portinari da parede, nem do Di Cavalcanti: "São criminosos primários". Como quem diz: "Bons criminosos são os da máfia de Nova York". E chegamos nestes há muito tempo. Nivaldo Manzano - A violência é intrínseca ao sistema capitalista, embora possa ser atenuada ou intensificada, dependendo das condições democráticas de cada país. Londres é extremamente violenta, sempre foi. Paris e as cidades européias, as grandes cidades do século 19. Como você vê isso? José Louzeiro - No Brasil, o salário mínimo sempre foi um crachá da violência. E a nossa Constituição, que considero uma obra de ficção muito grande, diz que com o salário mínimo você tem que manter a família, tem que pagar escola... quer dizer, essa é a primeira prova de violência. Segundo, cidadania. A gente começou a falar de cidadania, graças à imprensa, outro dia. Ninguém sabe o que é cidadania. Vou dizer aqui um negócio que muita gente não sabe que existe, ou sabe, mas não quer dizer: todo morro tem um negócio chamado "vila miséria". A vila miséria é formada por mendigos que pedem esmola para o miserável! Fora aquelas senhoras que já têm erisipela, têm ferida na perna, têm não sei o que; que não conseguem descer o morro e que morrem de fome se não tiver ninguém dali que as socorra. As pessoas velhas não podem descer o morro, senão não sobem de volta. Então, essa violência somada a outras, e daí para o garoto ser violento com o geral, não custa, perfeito? Se você me perguntar como são os violentos que conheci, respondo que conheci uns quinhentos bandidos. Talvez cinco deles não fossem, mas quatrocentos e noventa e cinco eram pessoas sensíveis. O Lúcio Flávio tinha tudo para ser um grande pintor. Ele queria ser pintor, político ou padre. Só para vocês terem idéia, quando ele morreu, me deixou um livro do Fernando Pessoa todo anotado. Chegou a pintar uns cinqüenta quadros. O Bloch comprou uns vinte, que estão não sei por onde. Com muita influência do Modigliani. Adorava pintar mulheres. Uma pessoa doce transformada num bicho. E como foi que o Lúcio Flávio se transformou num bicho? Na ditadura, numa festa de casamento que a família dele estava comemorando, os policiais do DOPS entraram, pegaram a cara do seu Oswaldo, pai dele, meteram dentro do bolo e espancaram a mãe dele, que se chamava dona Selma. Aí espancaram todo mundo. O menino, que estava com uns 15 anos, foi espancado também e virou para o policial e disse: "Um dia eu vou te pegar". Levou outro tapa na cara. Isso era a ditadura e acontecia porque seu Oswaldo Lírio era cabo eleitoral de Juscelino e não queria dizer onde estava Juscelino. E aí o Lúcio Flávio, com 18 anos, virou bandido e pegou esse policial e passou cinco horas matando ele. Eram três, pegou os três. Aí, dizem assim: "Esse cara é um monstro". Mas quem é o monstro nessa história? Por isso que nas minhas matérias dificilmente chamei um rapaz desses de bandido. Neste país, eu não sei quem é o bandido. Continuo sem saber. Verena Glass - Hoje, a reportagem policial é meio sensacionalista, não entra no questionamento da violência. Na sua época, vocês faziam denúncias políticas através do jornalismo policial? José Louzeiro - Claro que no começo eu era um repórter como outro qualquer, estava pouco ligando, enfim, era sensacionalista. Depois, como sou de família muito pobre, fui descobrindo que a polícia só invadia casa de operário, em casa de rico eu nem ia. Ia só conversar com o advogado do cara. Isso, cinco dias depois do crime, mas operário a polícia chegava e chega, mete o pé na porta do barraco, violenta as meninas, quebra tudo, se o cara tiver um rádio, rouba e leva. Comecei a ver que aquele pessoal roubado é a minha turma, e eu sou do lado deles. E comecei a fazer matérias por esse lado. Comecei a ver que a nossa literatura – que vive num sobe e desce brabo – é assim porque não é feita por pessoas que sentiram o problema. Por exemplo, José Lins do 47 Rego foi um grande escritor? Foi. Mas ele cortava cana ou o pai dele era o fazendeiro? Ele era filho de fazendeiro. Queria ver ele cortar cana, que dá uma coceira que não acaba mais, e escrever um livro. Nivaldo Manzano - Oswald de Andrade... José Louzeiro - São todos pequeno-burgueses, fazendo uma literatura que até o povo lê. O que se aproximou mais foi Jorge Amado, mas era filho do dono do cacau. O próprio Graciliano Ramos era de família aristocrática, e foi prefeito. Temos um que se aproxima muito, que é o Lima Barreto. Aí procurei ver o seguinte: "Bom, não que eu queira ser assim, mas só sei fazer assim". E aí minhas reportagens começaram a ser rejeitadas em muitos jornais, inclusive aqui na Folha. Então, quando encerrava minha carreira, uns quatro anos atrás, O Dia, no Rio, me convidou para fazer matérias sobre os bairros. Mas era mentira: eles só queriam o meu compromisso para, entre uma matéria e outra, fazer uma com o pessoal de Bangu I. Porque ninguém estava conseguindo entrar e eu era amigo do secretário de Segurança, que era o Nilo Batista, e podia entrar lá. Resultado: fiz uma matéria a favor dos caras que estão lá. Aí, o Ary Carvalho (o dono do jornal) ficou louco e: "Isso não pode!" "Não pode, como? Esses caras estão sendo monstruosamente liquidados lá. Essa é uma prisão para enlouquecer as pessoas." São seis celas de cada lado, o teto coberto por uma grade de ferro eletrificada, e embaixo tem um espaço como daqui para essa parede. Eles nunca vão sair dali. Vão tomar banho de sol ali, não vão jogar futebol nunca, então vão enlouquecendo de um ver o outro. Tanto é assim que um deles, o Escadinha -- que é de uma sensibilidade muito grande, agora está tentando ser compositor –, tinha um irmão chamado Paulo Maluco, que estava numa dessas celas. Era um desenhista extraordinário. Mas era tomado por uma neura braba, não parava de falar, gritava, falava alto com ele mesmo, com os desenhos dele, desenhava personagens para conversar com o personagem. Veja a angústia, a solidão desse cara. Aí, um belo dia, de tanto ele falar, falar, falar – que o objetivo da prisão é esse –, os onze presos... dez, o Escadinha ficou de fora, combinaram de liquidar com Paulo Maluco, porque ninguém conseguia mais dormir. O Escadinha foi voto vencido e o irmão foi morto. Cláudio Júlio Tognolli - Louzeiro, se a gente tratar só da forma tirando o conteúdo, você vê a Rede Globo e todas as televisões mostrando os cemitérios com as ossadas por causa do caso Tim Lopes. As pessoas, olhando o lado imaginário, são levadas a ter um regresso às ossadas de Perus, às ossadas dos guerrilheiros etc. Ou seja: o que se operava contra a ditadura, hoje, se opera contra o povo. José Louzeiro - "Democraticamente"... Cláudio Júlio Tognolli - Como você COBRIRIA a morte do Tim Lopes? José Louzeiro – Olha, até acabei de fazer um artigo para o Jornal do Brasil sobre isso. Acho o seguinte: conheci muito o Tim Lopes, trabalhou uns tempos comigo na Folha, virou um grande repórter. Claro que ele queria fazer um jornalismo social também, mas a Globo não está interessada nisso. E o que acontece? Nessa semana em que acabou sendo martirizado, porque foi realmente uma morte horrível, ele havia ido quatro vezes nesse morro. Ora, isso ninguém faz. Você não vai quatro vezes no morro, doutor. A não ser que tenha uma relação muito boa com o pessoal de lá. Não tinha. Chegava com aquela roupa "discreta" de Zona Sul, cheia de bolsos, como se fosse um gringo baixando no meio deles. E o que ele foi fazer é uma coisa que a Globo mostra pra todo mundo: rapazes trepando na televisão, no Big Brother, não sei mais onde, essa imoralidade, perfeito? E ele foi fazer no baile funk a dança sexual dos caras e a droga e tal. Mas a televisão já faz isso, ele estava sendo redundante. Então, por causa de uma matéria sem nenhuma importância – eu estou lá interessado se o jovem, a essa altura, está tendo relações sexuais? Que tenha. É até bom. Só que na cabeça de muita gente a relação sexual ainda é uma coisa imoral. Mas, quando a criança nasce, a Igreja quer batizar, não é assim? Então, essa coisa toda é muito cínica. E o Tim tinha um defeito, do qual na reportagem sempre procurei fugir: nunca me deixei influenciar por orientações de patrões. O patrão está pouco ligando pra você. Eu saía pra fazer a minha matéria para o jornal dele. Se serve eu não sei. Tenho um montão de matéria que nunca foi publicado. Então, o Tim se deixou levar um pouco pelo status, empresa que é famosa. Só que, quando a empresa famosa acabar, você acaba junto com ela. O Tim errou nisso tudo. Era uma belíssima pessoa, uma pessoa preocupada com os outros, mas deu uma mancada. E no submundo, doutor, você não pode dar mancada. Cláudio Júlio Tognolli - Você sabe por que o Marcelo Rezende saiu da Globo, não sabe? José Louzeiro - Sei. Cláudio Júlio Tognolli - Você PODIA CONTAR pra nós? José Louzeiro - O que eu sei é o seguinte: um repórter naquele programa, Linha Direta, se expõe totalmente. E um belo dia a família dele começou a receber cartas. Eu às vezes, quando fazia matéria perigosa, tinha que mudar de casa. Usava óculos, de repente tirava os óculos. Quando escrevia uma matéria violenta, passava tempos sem ir a lugares onde tem muitas pessoas, você tem que se cuidar, eu não consigo sentar de costas para a rua ainda, nem tomar cafezinho em qualquer lugar. Outro dia eu estava andando na avenida Rio Branco e, de repente, senti que tinha um cara andando atrás de mim. Só que tinha quinhentos caras andando atrás de mim. Mas eu parei e o cara passou. Isso é uma loucura. Agora, no Incor, fui internado num quarto onde estava um detetive com problema cardíaco. Quando entrei, ele se encolheu todo na cama, e mais tarde ia me dizer assim: "Aqui tem um problema sério! As pessoas entram por essa porta. A porta não fecha". E eu disse: "Qual o problema de não fechar?" E ele: "Essa porta aberta não me deixa dormir". Ele não dormia de noite, dormia de dia. Wagner Nabuco - Ficava cuidando da porta. José Louzeiro - Sim. Então, essa profissão deixa a gente neurótico. Ora, se você está numa dessa daí, você não pode ir lá para o morro assim, o morro tem dono. Não é dono como eles chamam, tem uma pessoa que cuida de todo mundo ali, quando a mulher vai ter um filho no morro, quem paga o parto, mesmo que seja mulher de um policial, e o policial esteja não se sabe por onde ou não tem dinheiro, é o chefe do tráfico que manda a mulher para a maternidade. E, se o motorista do táxi não quiser subir, vai subir de qualquer jeito. Sobe, a mulher 48 vai, o tal chefe paga o parto bonitinho, e não cobra do policial. É uma chantagem? É! Mas a mulher teve o filho? Teve! E, se não fosse feito em tempo, ela IA MORRER ou o filho IA NASCER -- como muitas crianças no morro ainda nascem -- em mão de parteira, que é um negócio primitivo. Ou seja, o Estado não oferece para o morro nada! E estamos no século 21, no terceiro milênio. Wagner Nabuco - Voltando à questão do Tim. Você acha que a chefia dele agiu corretamente no sentido de deixar ou mandar que ele voltasse ao morro pra refazer a reportagem? José Louzeiro - Vou dizer um negócio surpreendente aqui. Acho que o chefe da redação, de reportagem não tem nada a ver com isso. A matéria de polícia foge ao espírito de qualquer pauta. A única coisa que a pauta pode dizer é o seguinte: está havendo um quebra-pau em tal lugar entre bandidos, o senhor vai pra lá. Ao chegar lá, eu não quero saber da pauta, porque vão surgir tantas coisas que, se eu não for esperto, vou ficar ali. Tem uma hora que você tem que ficar a favor do bandido, ouvindo o que ele está lhe dizendo, e depois você vai ouvir o policial. Agora, o negócio é na hora de escrever. Se você achar que o bandido, esse bandidinho, é responsável por todas as desgraças deste país, aí ele vai te dar um tiro quando te pegar. Porque ele sabe, embora não tenha estudado, que não é responsável por tudo. Sabe que é uma porcariazinha no meio desse caos dos milhões desaparecendo. Sérgio de Souza - Você falou que não sabe "quem é o bandido neste país". No caso do narcotráfico, não é possível que as lideranças, os chefões, estejam no morro. Então, onde estão? O que se sabe na imprensa? José Louzeiro - Um repórter chamado Ricardo Garcia, que por sinal é do Globo, descobriu uma vez um contrabando de armas no porto do Rio de Janeiro. É claro que não aprofundou muito isso, por motivos óbvios, não é? Até porque foi por ele que surgiu o escândalo dos colecionadores de armas. Eu ensino dramaturgia, que, aliás, é bem coerente com o que eu faço, e aí uma menina, um dia, chamada Diana, chegou muito revoltada, com o jornal na mão: "Estão insultando meu tio, esses jornalistas, tal, tal, tal". Ela só não foi mais fundo porque sabia que eu era também jornalista. O tio dela, colecionador de armas, sabe quantas metralhadoras ele tinha? Três mil!... E a droga? É o Elias Maluco que tem cacife pra encomendar essa droga? Ele não tem. Quem tem cacife pra encomendar as drogas? São as pessoas de boa posição na sociedade. Outro dia, o secretário de Segurança do Rio de Janeiro disse uma coisa muito interessante: que o Elias Maluco ainda não apareceu porque a polícia está dando cobertura pra ele, perfeito? Trecho 03 Verena Glass - O Comando Vermelho TERIA uma origem mais política, digamos assim. O PCC se apropria um pouco do discurso, direitos, liberdade, paz etc. Vê-se o Fernandinho Beira-Mar com as FARC. Como você vê essa onda aí? José Louzeiro - O Comando Vermelho é completamente diferente das FARC. O Comando Vermelho surgiu de uma necessidade de a população carcerária se livrar das perversões que a polícia praticava em cima das famílias dos presos. O policial tinha uma relação na mão pra tomar o dinheiro que a mulher do preso ganhava. Tomava de uma, da outra, da outra. Se não desse, o preso ERA espancado. Então, o Comando Vermelho foi organizado para liquidar policiais que sacaneavam com as famílias deles. E começaram a liquidar dentro da prisão, fora da prisão e foram agenciando aqueles ex-apenados, que ganhavam um dinheiro pra fazer esse papel. Ao ponto em que a polícia começou a ficar em pânico. A ordem era: não encontrou policial, mata a família dele toda, o cachorro, a galinha, todo mundo. Isso cansou de acontecer. Só que a imprensa não dá. Nossa imprensa não é tão liberal assim. E aí os policiais foram ficando apavorados, perfeito? Aí criaram um negócio chamado Comando Jacaré. Esse Comando Jacaré tinha muita influência da polícia. Pra poder atirar contra os caras do Comando Vermelho e a imprensa dizer que era guerra entre facções. O Comando Vermelho liquidou o Comando Jacaré. Aí surgiu o Terceiro Comando, do qual nunca a reportagem se ocupa. Esse foi um dos erros do nosso Tim Lopes, não ter mostrado a isenção dele em relação tanto ao que chamam de sociedade livre quanto à "sociedade encarcerada". O Tim não percebeu, ou nunca quis dizer, que o Terceiro Comando tem muita influência da polícia. Parece com a Guerra do Ópio e a Inglaterra, a Inglaterra foi para a China pra proteger os chineses do consumo de ópio e, quando chegou lá, viu que o negócio era tão bom que ficou negociando. Então, o que é que ocorreu com o Tim, ele ficou sempre do lado da imprensa que interessa ao governo, ao sistema, sem dar nenhuma colher de chá para os caras até quando eles estão certinhos. Se você pega um bandido, não pode achar que só ele seja o delinqüente. E o Tim ficou nessa acomodação. Então, pra voltar: o Comando Vermelho está em luta permanente contra o Terceiro Comando. Aí, você vê no jornal assim: "Houve uma guerra no morro". Não é o morro, não. É o Comando Vermelho atirando no Terceiro Comando e o Terceiro Comando atirando no Comando Vermelho. No meio está a população que não tem nada a ver com isso, em pânico. E a polícia se prevalecendo para estabelecer sistemas antidemocráticos de hora de recolher. Tem morro que, pra você entrar, tem que mostrar documento. E, se mostrar muito dinheiro, eles te tomam. Então, o morro vive numa ditadura. Ora a ditadura do bandido, ora a do policial. Ele prefere a ditadura do bandido. Cláudio Júlio Tognolli - Se você tivesse que fazer uma reportagem sobre o Comando Vermelho, Terceiro Comando etc., você sobe o morro, qual contato pessoal vai fazer? José Louzeiro - Se eu telefonar pro Escadinha, por exemplo, é claro que subo. Agora, essa reportagem vai ser publicada onde? Cláudio Júlio Tognolli - E como ela SERIA? José Louzeiro - Eu CONTARIA o que estou dizendo aqui. O que é o Comando Vermelho, o que é o Terceiro Comando. Repare que você nunca leu em jornal nenhum que o Terceiro Comando é uma organização que tem muita influência da polícia. E o que eles querem? Em vez de receber uma comissão do jogo do bicho, eles querem receber o grosso do dinheiro. Aí, você me pergunta, e isso eu não vou saber responder e é uma das 49 minhas indagações: eles, organizadores do Terceiro Comando, ESTARIAM SURPREENDENDO os grandes chefões da droga? Que estão aqui entre nós, e devem estar em postos muito bons? Ou eles estão fazendo um negócio subliminar, só pra eles? Nivaldo T. Manzano - Para falar de seus livros, de onde vem esse prazer pelo texto? Filho de pedreiro... José Louzeiro - Meu pai era uma pessoa comum e que bebia e fumava, e casou com a minha mãe, que era filha de um tabelião de um lugar do Maranhão chamado Pinheiro – aliás, a terra onde nasceu Sarney –, e a minha mãe não fazia nada disso e era católica, né? Quando casou com ela, meu pai deixou de beber, de fumar e virou protestante. Aí ficou radical. E depois cresceu na igreja, se tornou diácono, foi destacado para fazer aqueles cultos que os protestante fazem até hoje, principalmente às quartas-feiras, ao ar livre, pra poder atrair as pessoas. Mas ele quase não sabia ler, então, quem lia a Bíblia pra ele era eu. E comecei a achar a Bíblia interessante, fui um grande leitor da Bíblia, e daí vem meu gosto pela leitura, somado com as histórias que a minha avó Dorotéia contava. Ela tinha dois tipos de história: uma pra divertir e outra pra fazer dormir, de terror. "Vai chegar o bandido que vem da floresta" – o bandido vinha sempre da floresta – "e vem matando todo mundo" – eu dormia antes de ele chegar. Essa era a psicologia da minha avó, bem dentro dos padrões de hoje, não é? Sempre que escrevo uma história mais perigosa me lembro dela. Depois, em função da minha atividade, vi coisas que eu não desejo que ninguém veja. Sérgio de Souza - Por exemplo... José Louzeiro - Por exemplo: uma vez, cheguei num distrito policial no Rio de Janeiro, 1¼ DP, e tinha um rapaz na ponta de uma mesa, em pé com as mãos pra trás – claro que o rapaz era negro –, abaixado sobre a mesa. Perguntei a um detetive: "O que esse rapaz está fazendo ali?" Ele disse: "Falava demais, olha aí o resultado – de repente, deixou de falar". Perguntei: "Posso ir lá olhar?" Ele disse: "Pode". Cheguei lá, o rapaz estava com isto aqui puxado, meteram um prego, ele estava preso pelo beiço, e o sangue pingando. A hora em que ele desmaiou, o beiço rasgou. Ele estava ali havia horas. E isso pra eles é quase uma brincadeira, não acham ser perversão. Trecho 04 Wagner Nabuco - Na sua experiência de conviver também com a polícia, você acha que a Civil e a Militar são a mesma coisa, ou uma é piorzinha que a outra? José Louzeiro - A Civil é pior. Porque tem um salariozinho um pouco melhor e pratica coisas horrorosas. E o PM, coitado, ganha um negocinho e, se morre, tem cinqüenta pra entrar no lugar dele. O problema é o seguinte: a Polícia Militar é pra correr atrás de bandido. A Civil é para raciocinar e saber onde está o bandido e como foi o crime. Então, de repente, estão todos correndo e dando tiros e morrendo por qual interesse? Pegar grana. Tem muita gente hoje que faz concurso pra entrar na Polícia para ganhar na corrupção e não em cima do dinheirinho que vai receber lá. Sérgio de Souza - De onde pinta mais corrupção? Em que classe? José Louzeiro - Na classe média alta. A classe média média não tem mais dinheiro pra nada. Vou dizer uma forma como a polícia toma muito dinheiro. Chega num carro na zona sul, está o garoto com a namorada dentro, o policial joga ali uns três saquinhos de cocaína, e diz: "Está preso. Cocaína". O garoto e a namorada vão dizer o quê? São levados pra delegacia. "Está aqui, ó, pegamos com ele." "Vamos abrir um inquérito ou não? Telefona pro pai." Aí começa. "Seu filho foi pego com isso aqui, três papelotes." Uma vez pegaram o Ênio Silveira numa dessas. O filho dele não podia ter nada com droga porque sofria do coração. E o Ênio Silveira correu para a delegacia – é uma pena que já morreu, não está aqui pra confirmar o que eu vou dizer, mas é uma homenagem a ele: como era de esquerda, do Partido Comunista, ele teve que pagar uma grana pesada pra não abrirem um inquérito contra o filho. O saquinho está ali, é uma prova provada. Se tem problema do coração, o que ele disse, nada vale. É um inquérito. E aquele inquérito que parece uma bobagem vai originar um processo que vai rolar a tua vida toda. Nivaldo Manzano - A polícia do mundo todo é susceptível a esse tipo de corrupção. José Louzeiro - Mas não como a nossa. Porque a nossa pobreza é muito maior. Como vamos comparar o policial brasileiro com o policial inglês? Como querer que o nosso policial seja decente ganhando o que ganha e morando junto com o bandido? E o da Polícia Civil é vizinho, não mora muito longe, não. Verena Glass - O que você acha dessa tendência internacional da sociedade civil fazendo barulho em Seattle, em Gênova, fazendo os Fóruns Sociais Mundiais, se organizando sem partido, "não quero nem saber, agora somos nós, vamos mudar, um outro mundo é possível"?... José Louzeiro - É uma forma de anarquismo. Isso, o Kropotkin já dizia. Mas, se a democracia é difícil – quer dizer, a democracia é uma flor que tem que ser muito bem cuidada –, o anarquismo exige muito mais cuidado. Muita gente pensa que anarquismo é anarquia, esculhambação. Agora, é preciso muita civilidade, muita cidadania para existir o anarquismo. Estamos longe disso. Sérgio de Souza - Voltando ao nosso miserê, tem uma perguntinha sobre uma coisa que sempre me intrigou. Como você conhece todas as prisões, deve conhecer também um monte de delegacias. Por que as delegacias são tão porcas, tão sujas? José Louzeiro - Isso é uma especialidade da Justiça brasileira. Toda dependência da Justiça é porca e suja. Tem que tirar a venda dos olhos daquela Justiça pra ver se ela enxerga o que está acontecendo. Agora, no Rio, estão pintando as delegacias, mas toda dependência do Judiciário é imunda. Talvez seja um carma. Wagner Nabuco - Será que não é assim: "Aqui, só vem pobre mesmo, senzala e delegacia suja, é tudo a mesma coisa"... 50 José Louzeiro - Também. Imagina se rico vai num negócio daquele. Eu não sei por que a Justiça é assim, está bom? É isso no Brasil inteiro. Não tem uma dependência decente, você pode levar o lenço pra passar na cadeira em que vai sentar. É lamentável, e não é falta de dinheiro, é falta de vergonha. Natalia Viana - A literatura e o cinema que você produz acabam sendo consumidos pela classe média. Quer dizer, os seus personagens não têm acesso a esse trabalho. Como você vê isso? José Louzeiro - Os editores, no geral, não gostam de mim, porque o que eu distribuo de livro não está escrito. Se pudesse, distribuía todos. E, quando você dá o livro para o operário, ele vai ler; se ele não entender, manda alguém ler pra ele. Mas o preço do livro já censura, não é? Como o operário vai comprar livro de 20 reais? E livro de 20 reais é baratinho. Estão custando 30, 40, 50. Natalia Viana - Isso não impossibilita o poder transformador de que você fala? José Louzeiro - Totalmente. É a censura econômica. O operário está fora disso, muitos deles nem sabem que existe um negócio chamado sebo. Se ele estivesse orientado pra isso, ia lá e comprava, porque muitos querem ler e não lêem porque não têm condição. E a classe média é muito generosa comigo, porque fica lendo livros sobre os caras que estão embaixo. Talvez até pensando o seguinte: "Bom, ainda bem que não estou lá embaixo... é... vou ficar por aqui... danem-se eles". Mas tem gente muito boa também que se emociona e quer fazer alguma coisa. CA66_set_2002 Na imprensa, alguém pode até empatar com ele no que diz respeito ao conhecimento das questões ambientais, mas certamente ninguém é mais informado do que WASHINGTON NOVAES. Nesta entrevista concedida no final de agosto, à véspera de seu embarque para a Rio + 10, em Joanesburgo, o jornalista falou um pouco sobre o tema que promete imantar a década. "Um pouco", porque nem mesmo uma edição inteira comportaria o tanto de informação que Novaes tem condições de transmitir ao leitor sobre o assunto. Se bem que esse pouco vale muito, principalmente como um alerta. Trecho 01 Maria Luísa Mendonça - Como você avalia as propostas dessa conferência, Rio + 10, que está sendo chamada de Rio - 10, em relação à anterior, de 1992? Washington Novaes - Até aqui, o panorama é de um grande impasse. Em 1992 havia muita esperança, se reuniram jornalistas do mundo inteiro, jogaram os holofotes sobre essas questões dramáticas todas, foi feito um diagnóstico dos grandes problemas: mudanças climáticas, perda da biodiversidade, pobreza e meio ambiente... E foram assinadas aquelas duas grandes convenções: sobre mudanças climáticas e proteção da biodiversidade. Mais a Agenda 21, que pretendia ser não só um diagnóstico dos grandes problemas a enfrentar na relação pobreza/meio ambiente, mas também uma forma de destinação de recursos. Na Agenda 21, os países industrializados assumiram o compromisso de aumentar a ajuda aos países mais pobres, de 0,36 por cento do seu PIB, que significava 57 bilhões de dólares anuais, para 0,70, que significaria 120 bilhões de dólares anuais. E se calculava que os países em desenvolvimento, os países pobres, entrassem com recursos próprios no valor de 480 bilhões de dólares anuais para resolver os problemas de saneamento, abastecimento de água, educação, saúde, todas essas coisas. Verena Glass - Isso tudo seria um empréstimo? Não, seria ajuda mesmo. Passados dez anos, o que temos de fato é o seguinte: a ajuda externa dos países industrializados recuou de 0,36 para 0,22 por cento do PIB. Na área de mudanças climáticas, depois de cinco anos e meio de negociação, se chegou ao Protocolo de Kyoto, no qual os países industrializados assumem o compromisso de reduzir em 5,2 por cento as emissões de gases sobre os níveis de 1990, e é bom lembrar que quase todos eles aumentaram as suas emissões depois de 1990, sendo que os Estados Unidos – principal poluidor – aumentaram em 13 por cento. De qualquer forma, o Protocolo não consegue ser ratificado. Ele precisa de pelo menos 55 países com um mínimo de 55 por cento das emissões de gases que agravam o efeito estufa, e não se consegue. Até agora, tem 30 e poucos por cento, os Estados Unidos já disseram que não ratificam. A Austrália não ratifica por razões bastante claras, é o maior vendedor de carvão mineral no mundo, que é uma das principais causas da poluição. E o Canadá também não ratifica, por questão de petróleo. Então, a esperança hoje é que a Rússia, a Polônia e mais alguns países da Europa Oriental ratifiquem e se chegue aos 55 por cento. Mas, mesmo assim, não significa que as emissões vão ser reduzidas, porque os Estados Unidos estarão fora, outros estarão fora e isso pode resultar até em aumento de emissões. Num momento em que o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas, que reúne cientistas de todos os países, recomenda que, por prudência, as emissões deveriam ser reduzidas em 60 por cento, pois o quadro é que se elas continuarem no ritmo atual poderemos chegar ao fim deste século com um aumento da temperatura entre 1,4 e 5,8 graus centígrados. Sérgio de Souza - Isso significa o quê? Catástrofes de que tipo? Significa secas terríveis, inundações terríveis, uma elevação do nível dos oceanos em até 1 metro e vai significar a inundação de todas as áreas costeiras, onde vive hoje 40 por cento da população mundial. Mais de trinta países—ilhas podem desaparecer do mapa. A progressão dos chamados desastres naturais ou desastres climáticos já é dramática, os prejuízos materiais já ultrapassam 100 bilhões de dólares por ano. Neste exato momento, a Ásia está com 10 milhões de desabrigados, na Europa é a situação que se vê no noticiário destes 51 dias. E o Painel afirma com certeza o seguinte: as ações humanas já contribuíram com pelo menos 0,6 grau centígrado no aumento da temperatura. A temperatura da Terra já subiu 0,8 grau, e 75 por cento disso devido às ações humanas, mas as pessoas dizem: "0,6 é tão pouco...". Basta lembrar o que acontece no corpo humano quando a temperatura sobe 1 grau — você entra num processo de febre e de problemas que podem ser terríveis. E, na área da biodiversidade, as perdas continuam em proporções inaceitáveis. O Brasil é um dos grandes contribuintes, com o desma-tamento na Amazônia, com as mudanças no uso da terra, no cerrado, na Mata Atlântica, em uma porção de lugares. Não se consegue avançar. Em maio houve uma reunião da Convenção das Partes, na Holanda, quando se estabeleceram 131 metas para a conservação da biodiversidade, mas elas não são mandatórias – como diz a linguagem diplomática –, cada país cumpre se puder, se quiser, se decidir assim. Então acho que a gente vive um momento de impasse, dramático, vários relatórios chamando a atenção para o fato de já estarmos consumindo mais do que a capacidade de reposição da biosfera. Há relatórios que falam em 20 e poucos por cento, outros falam em 40 por cento, considerando energia, alimentos, recursos naturais, e não se consegue encontrar um caminho para mudar esse quadro. Já está bastante claro que é preciso mudar padrões de produção e consumo no mundo. A humanidade levou milhões de anos para chegar ao primeiro bilhão em 1830. Para o segundo bilhão foi menos de um século, foi 1927. Pro terceiro bilhão foram 33 anos, 1960. Pro quarto bilhão foram 14 anos, 1974. Pro quinto foram 13 anos, 1987, e pro sexto 12 anos, 1999. As estimativas mais conservadoras da ONU dizem que até 2050 vamos chegar pelo menos a 8 milhões e meio ou 9 bilhões. Que que vai fazer, né? E ainda com esse nível de miséria, agora imagina com todos os habitantes tendo um nível de consumo de americanos ou europeus. Explode tudo. Trecho 02 Sérgio de Souza - Fala-se muito em agroindústria como um dos caminhos para a solução dos nossos problemas internos e para a exportação. A agroindústria nossa também é uma coisa precária? A agroindústria pode agregar, incorporar valor de mais uma etapa da produção. O que acho é que o Brasil precisa rever tudo, começar a rever a sua matriz energética. É absurdo um país como o Brasil desperdiçar uma porção de possibilidades que tem, a energia da biomassa, a energia eólica, a energia solar, e ficar amarrado, em grande parte, numa fonte problemática e que se esgotará com o tempo, que é o petróleo. O Brasil já podia estar fazendo uma inversão, uma inflexão diferente nessa área. Vocês fizeram uma entrevista com uma pessoa que fala muito isso, o Bautista Vidal, as possibilidades do Brasil em matéria de energia, porque na verdade tudo vem do Sol, então é por aí que se deveria caminhar. A discussão nessa área está muito atrasada, é uma coisa desesperadora. Aliás, essas coisas nem estão em discussão, vocês já viram discussão sobre o assunto agora na campanha da sucessão? Verena Glass - E a questão da água? Já se discute a possibilidade de o Brasil se tornar um grande vendedor de água. Como você vê isso? O Brasil é um país relativamente privilegiado em matéria de água. As estatísticas divergem um pouco, mas, se você ficar com os números que estão em um estudo maravilhoso do Instituto de Estudos Avançados da USP, chamado "Águas Doces do Brasil", verá que temos 12 por cento da água superficial do mercado, isso é muita água. E temos 3 por cento da população. Essa água está distribuída desigualmente, a maior parte, acho que 80 por cento, se encontra na Bacia Amazônica, onde fica a menor parcela da população brasileira. Ainda assim, diz esse livro, só existe um Estado em situação crítica, Pernambuco, porque consome mais de 20 por cento da água superficial. O que você tem é uma gigantesca crise de gestão, de incompetência de gestão no Brasil. As redes públicas desperdiçam de 40 a 50 por cento da água que sai das suas estações de tratamento, de seus reservatórios, porque não se investe em conservação de rede, não se investe na manutenção. Enquanto isso, só 50 por cento da população tem rede de esgoto, mais ou menos. Desses esgotos que são coletados, só 10 por cento são tratados, então, 5 por cento dos esgotos totais. O resto vai para a fossa – e você não sabe o que está acontecendo no lençol aqüífero – ou vai ser despejado nos rios, nos córregos, e o resultado é o seguinte: agora, há dois ou três meses, a Agência Nacional de Águas publicou o primeiro estudo mostrando que todas as grandes bacias hidrográficas brasileiras da Bahia até o Rio Grande do Sul estão altamente comprometidas, assim como o litoral, onde uma grande parte disso vai desaguar. Então, não sei se existe possibilidade de exportar água. Por enquanto, isso me parece um pouco fantasioso, pelo menos em volumes consideráveis. Em que se está começando a investir em certos lugares mais pesadamente é na dessalinização da água. Verena Glass - Aqui no Brasil? Não, no Brasil quase nada, mas os Estados Unidos estão investindo bastante, Israel também e, ali pelo Oriente Médio, em vários países. Nicodemus Pessoa - Na Universidade Federal da Paraíba tem uma experiência de dessalinização... Mas até aqui, você tem um custo muito alto para dessalinizar, o custo é quase proibitivo. Trecho 03 Nicodemus Pessoa - QUERIA colocar o problema das hidrovias. De um lado há pessoas, e principalmente ONGs, que são contra o uso das hidrovias. E, de outro, pessoas que questionam o papel dessas ONGs. A Folha de S. Paulo publicou um artigo do empresário Antônio Ermírio de Moraes colocando essas ONGs sob suspeição. E há quem afirme que eles ESTARIAM a favor de interesses internacionais, que não querem que produtos, grãos, soja tenham poder de competição no mercado externo. Quem ESTARIA com a razão? Na questão das hidrovias, o Brasil chegou um século atrasado. A hidrovia foi uma grande proposta no século 19, por aí. No caso das hidrovias brasileiras há vários fatores a considerar. Existe a proposta da hidrovia AraguaiaTocantins, a da hidrovia do Pantanal, que é a Paraguai-Paraná... Vamos começar por esta: em 1994 foi feito 52 sobre ela um estudo muito interessante, por uma ONG de Brasília. Mostrava o seguinte: se fosse aplicada em infra-estrutura de turismo a metade dos investimentos previstos para a hidrovia, SERIAM gerados três ou quatro vezes mais empregos, com um rendimento médio de no mínimo 50 por cento mais lucros do que os gerados pela hidrovia. A hidrovia, por sua vez, IRIA ESTIMULAR o plantio de grãos em regiões absolutamente inadequadas, como é o Pantanal. E para exportação. Quer dizer, de novo aquela história, ficar com os custos aqui dentro e exportar os benefícios. No caso da hidrovia Araguaia-Tocantins não é diferente, tenho até me envolvido muito nessa discussão. Em 1995, quando foi apresentada a primeira proposta da hidrovia, escrevi um artigo em um jornal de Goiás chamado "O Canto de Sereia da Hidrovia". Pegava estudos que mostravam que a ferrovia NorteSul era muito mais vantajosa do ponto de vista ambiental e econômico, considerando todos os custos. Aí veio o primeiro estudo de impacto ambiental da hidrovia, para pedir licenciamento, e era uma calamidade, de uma incompetência, de uma desfaçatez! Então houve uma mobilização e a Comissão de Meio Ambiente da Câmara dos Deputados fez uma audiência pública, na qual eu fui, e outras pessoas foram, e o projeto foi bombardeado por tantos ângulos, que durante a audiência o Ibama e os órgãos ambientais de Goiás e de Mato Grosso já anunciaram que não aprovariam o projeto. Aí fizeram, em silêncio, outro estudo de impacto ambiental a cargo da mesma instituição, que é a Fabesp, ligada à Universidade Federal do Pará. E esse novo estudo já tem dois pareceres técnicos mostrando incompetência e desonestidade. Por exemplo, tem pontos falando que a dragagem de sedimentos do rio Araguaia vai ser de 2 milhões de toneladas, tem pontos que falam que serão 5 milhões de toneladas. Provavelmente seria bem mais e fazer isso no rio Araguaia é um escândalo, é um rio ainda em formação. Ele não tem um leito definitivo, o leito navegável dele muda de ano para ano e você tem uma movimentação gigantesca de areia e outros sedimentos. Então, fazer uma hidrovia ali, criar um canal navegável permanente é o sonho das empreiteiras. seria trabalho para 10.000 anos cavando esse canal, retirando sedimentos. E aí você pergunta: onde vão botar esses sedimentos? O estudo não diz. E seria pra quê? De novo, para expandir a produção de soja, de milho, de carne e tudo o que o Primeiro Mundo não pode produzir. Nicodemus Pessoa - Você falou momentos atrás sobre o Brasil não investir em energia alternativa... Agora tem um projeto que cria o Programa de Estímulo a Energias Alternativas, que prevê a instalação de 3.000 megawatts divididos entre energia eólica, energia de biomassa e pequenas centrais hidrelétricas. Esse programa está começando a ser desenvolvido. Mas o Brasil investe muito pouco. Por exemplo, na área da cana-de-açúcar, já está aí, não precisa implantar. A capacidade de co-geração de energia a partir do bagaço da cana é uma coisa enorme. Agora, isso precisa ser regulamentado, e nessa história tem uma culpa do governo, mas tem também uma culpa dos produtores de álcool, que no final da década de 70 liquidaram com o mercado do carro a álcool no Brasil, que naquela época representava acho que mais de 80 por cento dos carros produzidos. Chegou um momento no qual o mercado de açúcar explodiu, e era muito mais vantajoso produzir açúcar do que produzir álcool, e eles pararam de produzir álcool e deixaram todo mundo sem combustível. seria vantajoso para o Brasil retornar para o carro a álcool por várias razões. Primeiro, porque a poluição que ele gera ele mesmo compensa no período de crescimento da cana, que absorve carbono e absorve outros elementos. Mas o mercado precisa ter garantia, e isso os produtores não querem dar, não querem assumir essa responsabilidade. No caso da cogeração de energia, que tem um potencial enorme, é preciso também resolver a questão do preço. Porque dizem: "Ah, mas vai ter de subsidiar a energia do bagaço de cana". E a energia do petróleo não é subsidiada? Quem contabiliza os custos gerados pela utilização do petróleo, os custos de saúde, de implantação de infraestruturas urbanas, rodoviárias, de combate à poluição? Isso não é contabilizado. CA67_out_2002 Polemista, brigador, nacionalista sem ser nacionalóide, como gosta de dizer, JÚLIO MEDAGLIA é o maestro mais agitado e agitador do meio musical brasileiro. Sem meias palavras, arrasa com a indústria cultural, as gravadoras grandes, o rádio e a televisão, o trabalho dos últimos muitos anos de Caetano, Gil, Chico e outras celebridades da MPB com as quais conviveu e criou, sem perdoar também o rock e a qualidade sonora do rap. Músico italianamente apaixonado, confessa que reger uma orquestra afinada é o mesmo que manter uma relação sexual com a mulher amada. Trecho 01 Marina Amaral - Como começou a sua história com a música, como se deu esse encontro? Júlio Medaglia - Por mero acaso. Não havia ninguém musical nem músico na família. Minha mãe, uma costureira semi-alfabetizada, contratou uma empregada vinda do interior de Minas, que morava no porão de nossa casa, na Vila Pompéia, aqui em São Paulo, e ela tinha um violininho com uma corda só. Brincando com o instrumento, consegui tirar Noite Feliz. Aí minha mãe lembrou-se de uma prima que havia tocado violino no cine Avenida, nos tempos do cinema mudo, a tia Julieta, e então, aos 12 anos de idade, tive as primeiras aulas com ela. Um tio médico me deu um violino bom de presente, que me entusiasmou ainda mais, mas desencadeou um alvoroço na família inteira, pois ninguém queria que eu fosse músico e sim um doutor como ele. Ricardo Vespucci - O violino foi o seu instrumento? Foi. Quando mudamos para a Lapa, lá havia um conservatório e então comecei a estudar seriamente. Depois toquei em muitas orquestras amadoras que existiam em São Paulo. Eu freqüentava o Palmeiras, queria jogar futebol, como toda criança, mas acabei tocando violino na sinfônica de amadores do clube. As pessoas não lembram, mas o Palmeiras já teve um departamento cultural e uma orquestra sinfônica. Aliás, tinha duas afinadas orquestras, a outra atuava no campo... Áureos tempos de Oberdan Catani, Waldemar Fiume, Junqueira, 53 Del Nero, Ademir da Guia, Jair Rosa Pinto... O Corinthians teve um grande goleiro, Alfredo Medaglia, que era irmão do meu pai; foi campeão paulista, jogou na seleção e teve um dos mais baixos saldos de gols sofridos da história do clube: menos de um gol por partida. Olha o meu drama futebolístico: eu morava perto do Palmeiras, tocava violino na orquestra e jogava um pouco naqueles infantis; meu tio tinha sido goleiro de sucesso do Corinthians, e o meu padrinho de batismo, Tomas Mauri, era o diretor comercial do São Paulo – cada um me puxava para um lado, mas enfim o Parmera ganhou... Nivaldo Manzano - Essa multiplicidade de orquestras, de facilidades que existiam na época para quem quisesse estudar música, teve origem no programa proposto pelo Villa-Lobos ao Getúlio, o que deu início ao canto orfeônico no ensino. Podemos dizer que sim, pois isso é que o que pretendia Villa-Lobos. Nos anos 30 ele disse: "Está começando a ‘música da repetição’ – a hoje chamada indústria cultural – e é preciso fazer-se algo urgentemente". Começava o rádio, o disco, a industrialização do entretenimento, enfim, e, "se a sensibilidade musical do brasileiro" – dizia – "ficar na mão dessa gente, é um perigo, pois o afã mercadológico nem sempre vai optar pelo melhor e mais honesto a ser divulgado e sim por aquilo que trouxer o maior e mais rápido resultado comercial". Não me lembro exatamente das palavras, mas o sentido era esse. Empreendeu, então, uma viagem de estudos pelo interior de São Paulo, com um grupo de músicos muito bons, Souza Lima, inclusive, e fizeram uma primeira experiência no sentido de levar a música de alto repertório a outros ouvidos. Na época existia o Anísio Teixeira, grande educador, que tinha um alto cargo público, o qual tratou das relações do Villa com Getúlio, conseguindo, assim, a implantação do ensino musical nas escolas. Esse ensino, mais a programação radiofônica, da maior dignidade à época, criava um circuito de informação de música de elevada qualidade. As rádios brasileiras tinham orquestras sinfônicas e os melhores músicos eruditos brasileiros, como Radamés Gnatalli, Guerra Peixe, Cláudio Santoro, Leo Peracchi, Hekel Tavares e outros prestavam serviço à cultura popular, escrevendo arranjos diariamente para os artistas. Ouviam-se também grandes instrumentistas como Pixinguinha, Dilermando Reis, Abel Ferreira, Benedito Lacerda, Chiquinho do Acordeão, Altamiro Carrilho, Baden Powell, Bené Nunes, Carolina Cardoso de Meneses, que em nada ficavam a dever aos virtuoses das salas de concerto. Sem dúvida nenhuma, o ensino musical nas escolas ajudou bastante as pessoas a tomar conhecimento de nomes, biografias. informações etc. Infelizmente, no auge da ditadura, em 1972, o coronel Jarbas Passarinho, ministro da Educação, acabou com esse ensino. Estou agora numa luta muito grande, já falei com ministros, secretários de Educação e parece que vamos conseguir implantar, a partir do Estado de São Paulo, o ensino musical nas escolas, que hoje se tornou ainda mais importante. Naquela época havia responsabilidade nos meios de comunicação. Hoje existe o mais grosseiro mercantilismo. O negócio agora é faturar, seja lá como for. Trecho 02 Leo Gilson Ribeiro - A Alemanha e a Áustria talvez sejam os únicos países da Europa que têm 340 orquestras amadoras maravilhosas, não? Na Alemanha há 57 casas de ópera que tocam diariamente uma ópera diferente, ou seja, um know-how incomparável... eu mesmo toquei violino nas orquestras de ópera, para aprender. Sérgio de Souza - De que vive um maestro, dá pra viver de regência? Tem um aqui em São Paulo que vive melhor que qualquer marajá, não é?... Falei isso pros meus amigos da Filarmônica de Berlim, e disseram: "Poxa, o pessoal está ganhando isso aí no Brasil? Se soubéssemos, TERÍAMOS MANDADO Von Karajan pro Brasil...". Bom, mas felizmente pude fazer uma carreira de música sem precisar fazer concessão, fazer coisas contra os meus princípios, mesmo que às vezes tenha passado por momentos difíceis. Mas também porque aprendi a ser versátil, faço um programa de rádio, escrevo artigos, faço conferências... Na realidade, a sobrevivência de pessoas que atuam na área cultural de alto repertório é dura. São poucas orquestras no Brasil, desgraçadamente estão todas montadas dentro de máquinas públicas mal administradas – a Osesp de São Paulo é independente, administrada pela Fundação Padre Anchieta, e a de Manaus, que criei para o Teatro Amazonas, é uma sociedade civil de utilidade pública, sem fins lucrativos, que recebe uma subvenção estatal. Possuem a independência de uma empresa e por isso são as melhores do país. E é necessária essa liberdade, senão vira mais uma máquina pública e o músico, funcionário estatutário, adquire rapidinho os vícios do funcionalismo e não evolui mais. E a música exige extrema dedicação e constante progresso técnico e artístico. Trecho 03 José Arbex Jr. - Em 1966, o senhor foi fazer o quê? Me formei em 1965, voltei da Alemanha e comecei a reger concertos no Brasil, retomar a vida aqui e não podia escapar da cultura popular, porque na época a música popular brasileira tinha uma grande importância cultural, diferente de outros países, onde a música popular é uma coisa meramente de entretenimento, supérflua. Aqui não, a música popular brasileira tinha importância no bojo da movimentação cultural brasileira. A gente acompanhava com tanto interesse um disco do João Gilberto quanto um concerto de música de vanguarda. Na época iam surgindo na música brasileira artistas com idéias diferentes, e comecei também a escrever sobre isso, escrevi um longo artigo sobre a bossa nova que ocupou pela primeira vez o Suplemento Literário do Estadão inteirinho, foram seis páginas. Graças ao Décio de Almeida Prado, aquela figura nobre que era diretor do suplemento. Comecei a penetrar nessa área e a fazer naturalmente os primeiros links entre uma música e outra, porque uma das vantagens dos anos 60 foi que caiu um pouco aquele preconceito de origem européia de que o que é bom é o que vem de cima. Se o cara não estuda em universidade, não vai produzir "cultura". De fato, na Europa, o que é popular é ruim mesmo, porque lá não existem mais culturas populares fortes, vivas. Aquilo ou é 54 estratificado e visto como folclore já cristalizado e empacotado, ou o que se consome em termos de música popular urbana é muito ruim mesmo. Mas na maior parte dos países há manifestações culturais regionais populares da maior importância cultural. Isso na década de 60 foi muito valorizado e o Brasil sempre teve uma cultura popular espontânea, rica e forte, diversificada, aliás não há país com uma "biodiversidade" musical tão rica como o Brasil. Não sabemos é industrializar bem isso. Os Estados Unidos têm o rockinho deles, o countryzinho e um pouco da música de salão que virou jazz, e mais nada. Eles industrializam bem, ficam donos da música do mundo porque são donos do dinheiro, do satélite e sobretudo porque são profissionais. Leo Gilson Ribeiro - E donos das gravadoras também.Exatamente. Da máquina. José Arbex Jr. - O senhor situou o período de grande criatividade até 1973. O Chico Buarque disse que criou mesmo entre 64 e 68, que depois a coisa detonou e ele não conseguiu mais criar porque foi sufocado pelo AI-5, que é de 13 de dezembro de 68. Para o senhor... Ele disse isso? Que tristeza. Trecho 04 Oswaldo Colibri - O senhor acha que o Caetano e o Gil estão de acordo com o que está acontecendo, com esse governo, com o neoliberalismo? Está escrito nesse livro aí (A Música Impopular). Eles passaram a ser os beneficiados de um contexto político que eles contestaram. Está aí. Ricardo Vespucci - Nunca vou entender por que a Maria Bethânia, por exemplo, gravou um disco meloso do Roberto Carlos. O problema não é a Maria Bethânia. As cantoras brasileiras, com exceção de Santa Elis Regina, são todas desprotegidas de produção. A Maria Bethânia é uma Maria Callas. A Gal Costa é um Stradivarius. São cantoras maravilhosas. O que elas não têm são produtores que saibam utilizar o potencial delas para fazerem uma coisa melhor. Como não tem o Chico Buarque, que não sai da mesma coisa. A Gal Costa também. Os últimos discos dela são sempre iguais. A Elis Regina não. Essa tinha inteligência musical. Que tem também, hoje, a Marisa Monte. Cada disco dela é um projeto diferente. Aliás, cada faixa... José Arbex Jr. - Todos têm consciência de que estão fazendo o jogo do mercado? O Gil, o Caetano? Não sei. Parece que eles têm duas esposas que cuidam da vida mercadológica deles e eles não se preocupam com isso. José Arbex Jr. - Sim, mas eles são gênios musicais. Eles sabem que estão embotando o gênio por causa do mercado? Não sei. Eles criaram um outro tipo de dinâmica na carreira deles, fazem uma coisa que tem características diferentes daquelas do início e estão satisfeitos com isso. Sobretudo estão ganhando muito dinheiro. Do nosso ponto de vista, como somos pessoas inquietas, achávamos que esse potencial PODIA SER USADO de forma muito mais rica e crítica na música brasileira. Mas... CA69_dez_2002 Para o professor Hélio Santos, autor do livro A Busca de um Caminho para o Brasil – A Trilha do Círculo Vicioso, a resolução dos problemas do país ocorrerá assim que não houver mais desigualdades raciais, e não ao contrário, como se costuma pensar. Trecho 01 Marina Amaral – O senhor pode contar um pouco de sua infância e como acabou se engajando no movimento de militância negra? Hélio Santos – Na verdade, não fiz uma opção, fui optado. Nasci em 1945, em Belo Horizonte, uma região onde o racismo consegue ser mais cordial do que nos outros lugares do Brasil, ou seja, mais velado. Minha adolescência e minha graduação se iniciam lá, mas não há uma militância em Belo Horizonte, me colocaria como militante em São Paulo. Vim aqui para trabalhar em 1971 e a partir de 1974 me vejo no meio desse turbilhão da militância. E pude ver nesses 28 anos aquilo em que o movimento negro se tornou, o que costumamos chamar de movimento negro moderno, que propõe realmente um modelo para o Brasil e que passou o período do autoritarismo com muita força. Hoje, o movimento social negro é muito amplo – num passado recente, a gente conseguia identificar as pessoas mais importantes; hoje, isso já não é mais possível, o que é bom. E há também uma nova geração, depois da minha, que vem aí com muita firmeza. O esforço todo, meu e dos militantes da minha geração, não conseguiu criar o que PODERÍAMOS CHAMAR de um movimento mais organizado, por isso nunca falamos em movimento negro – porque são vários, que no conjunto você PODERIA CHAMAR de o grande movimento negro. Bem, em São Paulo eu faço mestrado, doutorado e, além de funcionário público aposentado, optei pelo magistério. Apesar de formado administrador, fugi da empresa como o diabo da cruz. Não fiz um mau negócio, mas isso não significa que como professor eu não tenha uma conexão com o mundo empresarial, só que achei que como cientista da administração ficaria muito melhor, onde pude pensar livremente, pude trabalhar com a questão racial... Há no Brasil vários intelectuais negros. O que é raro é um negro intelectual, ou seja, um intelectual que pensa a partir da sua realidade racial. Aí posso dizer: somos raros. Marina Amaral – Os seus pais tinham formação superior? Minha mãe era doméstica e meu pai motorista de táxi, então somos pobres. Hoje, usando a expressão "pobre", muitas vezes imaginam uma família miserável. O conceito de pobre no passado era para pessoas hoje classificadas como de classe média baixa. 55 Marina Amaral – Os dois eram negros? Sim. Meu pai era o que em Minas chamavam de caboclo, mas ele nunca se colocou como tal. Acredito que, apesar de ambos não serem militantes, isso me tocou muito. Naquela região do Serro tem aquele negro de pele clara e cabelo crespo mas não carapinha, então essas pessoas são classificadas como caboclas, mas rigorosamente não seriam caboclas. Renato Pompeu – Não seriam cafuzos? O cafuzo tem uma característica diferente, mas meu pai tem com certeza sangue indígena também. Nós todos no Brasil somos mestiços. Os brancos classificados como brancos são mestiços e os negros também o são. José Arbex Jr. – Quando você olhou pra você mesmo, você disse: eu sou negro? Ah, eu não precisei de olhar. A minha infância toda me colocou isso de maneira muito firme. Lembro que gostava muito de ouvir avós. Não eram avós de sangue, eram mulheres velhas, algumas delas centenárias, que, depois de trabalhar a vida inteira como domésticas – hoje ainda há muita dificuldade no trabalho doméstico –, no final da vida viviam de caridade. Eu adorava ouvir essas mulheres, porque havia muita sabedoria, isso é um material humano que está em extinção, e elas repetiam várias vezes ao longo daqueles casos que contavam: "Eu deixei de ser branca para ser franca". Com os meus 12, 13 anos, eu achava aquilo muito radical e muito agressivo. O que elas intuíam para mim é o seguinte: olha, os brancos não são francos. Muitos anos depois, já como militante, eu percebi: aquelas mulheres apontaram o tipo de camaleão que eu iria enfrentar como militante – o que chamamos de racismo velado, de racismo cordial. Pelo menos não foi por falta de aviso, não é? Talvez o camaleão mais sofisticado que tenhamos seja exatamente o racismo brasileiro, porque ele é ibérico, é dissimulado, é competente e eficaz para manter tudo como se fosse não o problema de quem discrimina, e sim sobretudo de quem é discriminado. De um lado há um grupo que finge que não discrimina. E no outro temos a própria população negra que finge que não é discriminada. Então estamos diante de uma situação complexa, não é fácil interpretar logo de cara isso. Wagner Nabuco – Você chegou a ter conhecimento de qual agrupamento africano vem a sua família? Essa é uma dificuldade que temos. Com o tempo, alguns militantes acabam conseguindo, sempre com risco de erro, trabalhando com uma visão de etnólogos do movimento negro que dizem, por exemplo, que pessoas com perfil assim do Gil, de sobrancelha escura, forte, são provavelmente hauçás. Eu sei que venho de um grupo provavelmente meio islâmico do norte da África, isso com base nos meus tios, no meu pai, mas não tenho como depurar isso, não sei se conseguiria fazer esse resgate. Não há como você voltar, como os italianos e espanhóis no Brasil, que podem buscar uma segunda cidadania. Qualquer brasileiro de ascendência italiana ou espanhola vai localizar seus tetravós indo à Espanha ou à Itália, e vai conseguir localizar a sua marca ancestral. Apesar de sabermos que aqui os documentos da escravidão não foram totalmente incinerados, quer dizer, num país em que as leis não se cumprem, não seria exatamente essa que seria cumprida, então os pesquisadores não teriam como localizar, seria muito difícil. José Arbex Jr. – E esses papéis são encontrados onde? Nos registros de casamento, nos registros das fazendas, nos registros contábeis, porque a população escravizada era ativo fixo. Trecho 02 José Arbex Jr. – Qual sua posição a respeito das cotas? Na verdade, as cotas são invenção de um setor da imprensa brasileira. Em 1995 foi criado no Ministério da Justiça um grupo para pensar políticas públicas para a população negra brasileira. Eu era o coordenador. Esse grupo trabalhou pelo menos três ou quatro anos propondo idéias para o governo e para a sociedade civil e nós falávamos em cotas, falávamos em política de flexibilização de acesso da população negra e falávamos em políticas de ação afirmativa, desenvolvendo até um conceito: políticas de ação afirmativa são políticas adotadas pelo setor público ou não, que buscam compensar, no caso a população negra, por perdas históricas significativas mediante a flexibilização do acesso, da capacitação, do emprego, e da auto-imagem no que diz respeito aos meios de comunicação, e não se falou em cotas. Mas, quando você pensa em metas, por exemplo, é necessário percentualizar, senão você não trabalha. Essa idéia de metas foi transformada em cotas. Eu quero dizer aqui, para a Caros Amigos, que sou contra a política de cotas. Sou a favor da redução da cota de 100 por cento dos brancos, como ocorre no Brasil. José Arbex Jr. – Mas aí não é um copo meio cheio e meio vazio? Estou devolvendo para você a bola, estou dizendo que já existem cotas na sociedade brasileira de 100 por cento para brancos e elas estão aí desde sempre. Estou propondo reduzi-las. Nesse sentido, é uma forma também dura de dizer o seguinte: a essência da cultura ibérica que desenvolvemos aqui é o privilégio. Primeiro, os meus, depois, os meus de novo. Ora, propomos uma redução. O Itamarati historicamente tem cotas de 100 por cento para diplomatas brancos. Que tal reduzir essa cota de brancos para 80 por cento só? As cotas já estão aí sem que ninguém tenha criado uma lei para elas. Mas isso das cotas sugere uma coisa odiosa. Primeira coisa, a percentagem; e outra coisa que ela sugere é a incapacidade. Como falou um empresário dito progressista: "Vocês querem cotas na marra!" Pois é, imagine colocar na escola de medicina da USP 20 por cento de alunos negros sem condições de desenvolver o curso. Ninguém promoveria um absurdo desses. O que se pede é uma flexibilização. Há pouco tempo, alguém me disse: "Você não acha que isso vai fazer com que a universidade brasileira perca qualidade?" Eu não penso assim, acho que a nossa universidade não tem qualidade precisamente por não dar conta desse país indecente que acabamos sendo, que é desenvolvido, consegue trabalhar com alta tecnologia e é um país miserável ao mesmo tempo. A universidade brasileira é moderna porque ensina a trabalhar com alta tecnologia, mas ela não tem nada a ver com a modernidade porque a 56 modernidade pede um desenvolvimento harmonioso. E não aceito a alegação de que tem de ter mérito. Qual é o mérito de uma pessoa que desde que nasceu tem todo o investimento, em relação a outra que também tenta chegar à universidade e não teve nenhum? E não aceito a idéia de que o problema está na escola pública. A escola pública realmente é muito ruim, mas isso é uma meia verdade, a escola privada é que é muito boa. Os alunos de classe média e ricos que fazem o colegial nelas vão para a Europa e os Estados Unidos e dão um banho nos alunos de lá. É a nossa conhecida assimetria: o muito bom e o péssimo. Então, quando dizem que a nossa escola pública é ruim, é verdade, mas é só uma parte da verdade por que como é que você coloca esses alunos para concorrer com os das escolas caras? É uma coisa muito desleal, e não há política de cotas para negros, a política de cotas é para negros que estão na escola pública. Os negros de classe média que podem bancar os estudos de seus filhos não têm de reivindicar cota alguma, eles vão ter de concorrer com aqueles que estão no mesmo patamar econômico. Mas no mercado de trabalho tem de existir política de cotas, sim, porque não adianta dar diploma para todos os negros se não vão ter acesso ao trabalho. Então, a política de cotas é um tipo de ação afirmativa que busca reduzir a distância entre os dois Brasis e, mesmo assim, durante algum tempo. As políticas de ação de afirmativa não duram para todo o sempre, aqui no Brasil calculo que elas não durem mais do que trinta anos, tempo de reduzir essas distâncias que não são sociais, no fundo são raciais. Sérgio de Souza – Como se DARIA, na prática, o processo das cotas na universidade? Não aceito falar apenas da universidade pública, que é o nosso foco, porque a maior parcela da população negra vai para a universidade privada, que é aquela onde ela já consegue chegar até por méritos próprios. Aliás, a população negra universitária está na universidade privada, então não abro mão da universidade privada, que tem obrigação de dar conta desse recado. Portanto, quando penso em política de cotas vale para a universidade como um todo. A flexibilização do acesso pode acontecer por diversos caminhos. Um deles é a própria preparação dos vestibulares. Uma segunda forma é você expandir os cursos noturnos, há cursos que não podem acontecer à noite, por exemplo o de medicina e o de odontologia, mas os de direito, administração e economia, de jornalismo podem muito bem. Uma terceira coisa é o curso de admissão a uma universidade. Havia um curso de admissão ao ginásio, estão lembrados? Então, a seleção da universidade ocorreria em dois momentos: esses alunos negros que vêm da escola pública, os mais aptos, entrariam na universidade e ficariam ali um ano, se capacitando naquelas disciplinas exigidas para um determinado tipo de curso. Se vou fazer medicina: biologia, física e química, por exemplo. Se vou fazer engenharia, preciso estar bem em física e matemática. Se em humanas faço outras disciplinas. A minha auto-estima de menino que veio lá da periferia já estará muito bem, porque estou na universidade pública como aluno do curso de admissão. E faço depois um exame interno. Outra idéia: a flexibilização da nota de corte. Quer dizer, não preciso tirar 9 em inglês para fazer um curso de direito, mas também não posso tirar uma nota abaixo de determinado nível em português, geografia e história. O que quero mostrar é que não posso entender a inteligência brasileira dizer: "Olha, não deve e não pode". E não tem resposta. Vocês não conhecem nenhum padeiro que não faça pão, nenhum jardineiro que não cuide de jardim, pois bem, temos no Brasil intelectuais que se negam a pensar. Sim, porque aquilo que é dever de ofício de qualquer intelectual é pensar o seguinte: não dá para colocar negros incapacitados dentro da universidade. Muito bem, o que é que os senhores propõem? Essas pessoas têm talento, o Brasil está perdendo talentos, o que é que os senhores propõem? De forma que, evidentemente, não se perca a qualidade dos cursos. Ninguém diz nada, é um silêncio de chumbo. Como, não se pensa? Isso revela o quê? Eu deixo a interrogação. Trecho 03 Amâncio Chiodi – E os descendentes de negros que têm a pele branca, como o Roberto Marinho, por exemplo, em que categoria entram? Olha, em 1985 houve aquela comissão de notáveis do Afonso Arinos. A única notabilidade que eu tenho é medir 1 metro e 87 e a distância qualquer um me percebe, mas eu estava ali no meio deles. Fui até o doutor Roberto Marinho contestá-lo, ele me recebeu por eu estar entre os notáveis. Era para falar comigo vinte minutos, fiquei quarenta minutos e ele foi muito simpático comigo, mas muito objetivo. Ele disse: "Olha, não entendo nada de televisão. Meu negócio é jornal. Isso aqui está entregue a especialistas". Me falou algumas coisas com as quais eu não concordava, mas ficou claro que a Rede Globo é a única que tem jornalistas negros. O movimento negro sempre reclamou da Globo, mas nunca do SBT, da antiga Manchete. Ele quis dizer o seguinte: novela não é comigo, publicidade não é comigo, agora, no jornalismo eu meto o dedo. Então, você tem Glória Maria, tem Heraldo Pereira, tem vários. Eu asseguro que, quando ele admite jornalistas, pensa na mãe dele que era mulata. O pai, não, o pai era descendente de português, era bem branco... Sérgio de Souza – Vou aproveitar a deixa e perguntar: como os meios grandes de comunicação se comportam quanto à discriminação racial? Todos os grandes são contra políticas de ação afirmativa. Folha de S. Paulo, Estadão, Globo... Os editoriais são freqüentes. Nesse sentido, eu não esperava mesmo, vou dizer por que: verifiquei a posição dos grandes jornais brasileiros nos anos que antecederam a abolição do escravismo. É impressionante a semelhança de argumentos. Hoje se diz o seguinte: "Como vai definir quem é negro? Resolve o problema da injustiça usando outra injustiça". Na época diziam: "É uma injustiça dilapidar o patrimônio dos fazendeiros". Ou seja, os argumentos são muito parecidos e também trouxe um conceito fantástico, um mito dentro do mito, que é o "racismo às avessas". Primeiro, a democracia racial, que é um mito. E agora inventou-se a idéia do racismo às avessas. Mas eu penso: vamos imaginar que há um negro muito racista por aí. Ele não tem nenhuma empresa para dizer: "Não quero recepcionistas brancas aqui". O saco de maldades desse negro é muito pequenino! Ele pode no máximo fazer uma careta para você, falar alguma bobagem, mas rigorosamente não impede sua vida! 57 Renato Pompeu – Não tem nenhuma escola de samba que não deixa branco entrar. Tem muito hotel que não deixa preto entrar. Ou que trata mal, não é? O negro foi o único brasileiro que acreditou no mito da democracia racial. Na escola de samba, ele tanto abriu que até entregou. Quando a escola de samba passa a dar status, e quando entra a televisão, passa a haver também uma movimentação de dinheiro, então o negro perde a direção e hoje, como diz a Lecy Brandão, a escola de samba é uma plataforma para lançar modelos e peruas. Brancas, evidentemente, porque no Salgueiro ou na Mangueira você aparece para milhões de pessoas e está vendendo a sua imagem. A mesma coisa acontece no candomblé e na umbanda. A umbanda é um exemplo que sempre dou de verdadeira democracia. Por que de todos os espíritos que baixam lá não há um branco. Nunca baixou num templo de umbanda uma freira, um coronel, um senador. É o preto velho, é a preta velha, é o caboclo, é o cacique... O que estou tentando dizer da umbanda é que o cavalo, o médium, pode ser branco, mas as entidades espirituais que vêm são todas mestiças e negras, ou seja, a umbanda é uma religião nossa. O candomblé não, ele é africano. Os puristas não gostam da umbanda, mas é uma invenção genuinamente brasileira que os escravos inventaram a partir de seus senhores e sinhás que eram católicos de carteirinha. Então, esse sincretismo é uma grande invenção que é um modelo, talvez, de democracia, no qual você tem liberdade para criar, e aqueles que são despossuídos acabam sendo os mais importantes, que é o preto velho, a preta velha, o cacique, o caboclo... Sérgio de Souza - Você é umbandista? Não, sou espiritualista. Trecho 04 Sérgio de Souza – E politicamente, como vai se dar isso? Há um conceito, provocador: o "socialismo de mercado". Que tem como estratégia a radicalização da democracia, a radicalização da igualdade de oportunidades, que é uma vertente definitivamente socialista. Não vamos ter mais o emprego como o conhecemos na nossa juventude, com carteira assinada e, do outro lado, um explorador capitalista, que vai nos explorar. Há um volume grande de pessoas querendo trabalhar, há, por outro lado, diversas pessoas querendo consumir bens, mercadorias e serviços que precisam ser produzidos. Só que aqueles que têm dinheiro num país como o Brasil, você diz que é explorador, ele responde: "Mentira, não quero explorar mais ninguém, só quero entesourar o que tenho, não vou gerar emprego para você, não te exploro, só quero ter o estoque de capital que desenvolvi". E aí um banco como o BNDES, em vez de financiar essas empresas terá de criar grandes associações, grandes cooperativas de trabalho, nas quais a renda do trabalhador com certeza superará a renda que ele teria se estivesse trabalhando numa fábrica, numa empresa. Um país como o Brasil terá de optar por isso, porque é tal o volume de pessoas desempregadas estruturalmente, que não há capitalismo que gerará emprego para elas, porque o empresariado brasileiro não tem nem sequer fôlego – é um capitalismo sem capital -- para gerar esse volume de emprego, para suprir essas necessidades. Então, o socialismo de mercado tem como vertente estratégica o socialismo, o ideal de desenvolvimento, de crescimento, mas vai ter de operar no mercado e radicalizar sempre na democracia e na liberdade. José Arbex Jr. – Você é gorbatchevista. Esse discurso é do Gorbatchev. Não, o Gorbatchev não criou uma cooperativa. O importante é partir de dois fatos concretos: o fim do emprego, da exploração do trabalho; e uma população que não é pequena demandando bens e serviços que precisam de ser produzidos. Estou colocando minhas idéias, gostaria muito de receber críticas por elas, jamais pela ausência delas. É uma teoria em aberto para que as pessoas possam pensar em como resolver esse problema concreto, não só do Brasil, de vários países com as características do nosso, um deles é o México, o outro é a Índia. Esse socialismo de mercado não pode ser implantado nem no Japão, muito menos no Canadá. É uma possibilidade para países onde há uma imensa capacidade ociosa, de terra, de gente, de recursos. Sérgio de Souza – E como o movimento negro aplica essa teoria? É um trabalho de convencimento da sociedade, de sedução aos partidos políticos, porque nenhum deles coloca isso nessa dimensão. Quando fui presidente do Conselho do Negro, enfrentei a CUT, a CGT em meados dos anos 80. Elas são diferentes, mas colocavam o início do trabalho no Brasil com o início da imigração. Tive de explicar que há três séculos e meio antes já havia trabalhadores escravizados. Hoje, as duas centrais trabalham com a questão racial com muita competência, estão quebrando o que chamo de invisibilidade racial, estamos seduzindo os setores, hoje, todos os sindicatos trabalham com a questão racial. Os partidos políticos dizem que sim, mas não conhecem, é um trabalho de sedução. A área mais refratária está exatamente nos meios de comunicação, mais conservadora que o meio empresarial brasileiro. Renato Pompeu – Quer dizer que os setores mais atrasados são os partidos políticos e a mídia? E também um certo setor da inteligentsia. A nossa inteligentsia é um pouco ornamentalista. Ainda não fez uma proposta para mudar o Brasil tendo como eixo a sua trajetória histórica, quer dizer, o verdadeiro Brasil, o Brasil de carne e osso. A inteligentsia brasileira deve ao movimento negro isso. Wagner Nabuco – Isso é uma coisa igual na USP e na Bahia, por exemplo? Minha intuição diz que na Bahia deve ser um pouco pior. Só quero dizer que a primeira associação eugenista brasileira não era em Porto Alegre, mas em Salvador, e é explicável. Hoje, (20/11) a Folha de S. Paulo revelou em uma pesquisa aquilo que desde 1984 sabemos. A população negra é mais maltratada no mercado de trabalho na Grande Salvador do que na Grande Porto Alegre. Há muito conservantismo. A Bahia é uma coisa muito igual e, por outro lado, tem brancos radicais trabalhando a favor da questão racial. Você tem lá alguns brancos que são mais radicais na questão e tem conservadores que operam muito bem. Agora, a nossa USP tem toda uma história hors concours, a USP é uma reserva literalmente branca, repare que a maior resistência a essa discussão parte da USP. Não aceito a idéia de um setor que, por dever. 58 CA 70.JAN.2003 Esses promotores deixaram o gabinete para combater nas ruas o crime organizado. Eles são do Gaeco - Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado. Descobriram que a maioria das organizações que perseguem não se abriga nos presídios nem nos pontos de venda de drogas. Estão no caixa 2 de bancos e instituições financeiras, em grandes lojas envolvidas com carga roubada, em órgãos da administração pública. E afirmam: "não há organização criminosa que sobreviva sem a participação do Estado". Ouçam as explosivas revelações de três do seis homens do Gaeco em São Paulo: José Carlos Blat, Roberto Porto e Márcio Sérgio Christino. Trecho 01 Marina Amaral - Como surgiu o grupo de combate ao crime organizado? Roberto Porto - O grupo existe desde 1995 e, até que fosse estruturado e começasse a atuar com maior eficácia, demorou um pouco. Em 1998 ganhou maior notoriedade, no caso da "Máfia dos Fiscais", e a partir daí tem atuado em casos que têm alcançado repercussão, como o do PCC, o de Jersey... José Carlos Blat - Máfia Chinesa, Cracolândia... Roberto Porto - Combustíveis... Enfim, uma série de casos. Agora, uma das características do grupo é que é formado por promotores "jovens", na faixa de 30 até 40 anos. E outra é especial: ele diverge um pouco do trabalho do dia-a-dia do promotor de Justiça, que é um trabalho mais de gabinete, onde o promotor recebe o processo já elaborado pela polícia para poder oferecer a acusação. Nós temos um perfil diferente, que é o de acompanhar a investigação lado a lado com a Polícia Civil. Havia toda uma resistência dizendo que o Ministério Público não se dá com a polícia. Foi quebrada essa resistência e acompanhamos até mandado de prisão. Entramos em favela junto com a polícia, acompanhando tudo o que é pedido, qualquer oitiva que a polícia realiza o Ministério Público está presente. Pouco ficamos no gabinete. José Carlos Blat - Essa aproximação com a polícia e outros órgãos diminui o entrave burocrático. Porque a grande dificuldade hoje é a condução de uma investigação, seja pela polícia, pelo Ministério Público ou qualquer outro órgão, em razão dos entraves burocráticos estabelecidos nos códigos, o de Processo Penal principalmente. Então, daquele inquérito policial instaurado hoje pelo delegado, o promotor só vai ter conhecimento dessa investigação daqui a trinta dias ou mais. Ou seja, tem um período que PODERIA SER ENCURTADO com a proximidade da polícia com o Ministério Público, este dizendo ao delegado: "Olha, preciso desta prova para poder propor ação penal contra fulano, então o senhor, por gentileza, corra atrás disso". Também mudamos na investigação excepcional, que o Ministério Público tem de fazer, porque muitas vezes a polícia está impedida, não formalmente, mas informalmente. Por exemplo, quando a investigação resvala em interesses de poderosos, pessoas que estão no poder, e o delegado de polícia não tem a mobilidade que tem o promotor de Justiça. Porque o delegado pode ser imediatamente removido por interesses políticos. Sérgio de Souza - Qual é a função exata de um promotor? José Carlos Blat - O promotor é o titular da ação penal, ele promove um interesse perante o Judiciário, para que essa providência administrativa policial, prova que é produzida na fase anterior se torne efetivamente aproveitável e resulte em uma sentença ou numa decisão judicial sobre aquela questão. Então, qual é o nosso papel? Primordialmente, a polícia DEVERIA PRODUZIR as provas, produzir os elementos que levariam a propor essa ação penal que resultaria numa sentença. O que fazemos, muitas vezes, é antecipar essa produção de prova que a polícia TERIA QUE FAZER e remeter para o promotor. De certa forma, queima uma fase, torna a coisa mais ágil e mais efetiva, porque, como colhemos a prova junto, vamos ter mais condição de defender a prova em um julgamento. Trecho 02 Sérgio de Souza - Quem é o Fernandinho Beira-Mar de São Paulo? Roberto Porto - O problema da droga em São Paulo é que ela não é concentrada na mão de poucos. Você não vê um sujeito que controla o tráfico em São Paulo, até a questão geográfica torna muito mais difícil o combate. Ela é disseminada, temos pequenos e grandes grupos atuando de formas distintas e autônomas, não há um grande grupo. Por exemplo, bloqueamos inúmeras contas do PCC na expectativa de que fôssemos achar grandes volumes de dinheiro decorrentes do tráfico de entorpecentes. Não foi o que aconteceu. É uma característica. Temos contatos com os promotores do Rio de Janeiro, que, por exemplo, atuam em Bangu. Gravamos o José Márcio Felício, o Geleião, que passou seis meses em Bangu. Ele disse que recebia uma mesada de 70.000 reais por mês do Comando Vermelho como forma de agrado. Lá, o dinheiro em decorrência do tráfico de drogas é muito maior. Aqui, não, aqui encontramos depósitos de 10.000, 20.000 na conta dessas pessoas. Georges Bourdoukan - E quem é o chefe do Fernandinho Beira-Mar? Márcio Christino - Não sei se existe essa relação de chefe e subordinado, não é uma coisa tão rígida. José Carlos Blat - Fernandinho Beira-Mar é um microempresário, perto dos narcotraficantes. Roberto Porto - Mas ele foi buscar esse apoio fora do Brasil. José Carlos Blat - Exatamente. E por que não sabemos quem é o grande narcotraficante de São Paulo e muitas regiões do Brasil? Porque não existe ainda uma estrutura de inteligência, banco de dados, a trocar informações com os vários Estados. Está se criando um Estado paralelo, que são essas organizações criminosas, e no Estado oficial a informação é mal tratada. Por exemplo, numa viatura de polícia tem dois parceiros trabalhando 59 juntos, mas muitas vezes aquela informação não é compartilhada entre os dois, e isso você leva para dentro da repartição policial. As equipes não se conversam, às vezes por problemas de vaidade ou de ordem operacional, porque precisam apresentar resultados no final do mês. Uma equipe não passa para a outra o que está efetivamente fazendo com a informação que detém. Transfira isso para dentro de um departamento de polícia ou dentro do próprio Ministério Publico – às vezes, o promotor de justiça que está atuando em um determinado inquérito policial, numa determinada ação, só tem uma visão daqueles que estão sendo processados, ele não troca informações com os promotores que estão no combate ao crime organizado. A mesma coisa acontece no Judiciário. Então, o grande problema nosso é que a matéria-prima, a informação, é mal tratada, mal administrada e acaba gerando várias distorções. Então, não há uma organização criminosa de grande potencial que tenha sido descoberta, porque as instituições não trocam informações, a polícia não troca informação com o Ministério Publico, a Receita Federal, a Secretaria da Segurança. Roberto Porto - O problema é que eles estão se comunicando. Temos relatórios dizendo das conversas diárias desse pessoal, eles estão monitorados 24 horas por dia, e nos surpreendeu a seguinte conversa dos líderes do PCC: "Olha, o PCC faliu, então vamos montar uma outra facção criminosa nos moldes do Rio de Janeiro". Ou seja, voltada só para o tráfico de entorpecentes. Há uma comunicação entre eles lá. O governo fez de forma totalmente errônea um rodízio de presos em diversos Estados. Isso propiciou contato, intercâmbio. Essas pessoas se falam, se conhecem, trocam informações. Márcio Christino - E criaram núcleos em vários Estados. Marina Amaral - Muita gente no Rio de Janeiro, como o Nilo Batista, diz que o Comando Vermelho e tudo isso são organizações quase simbólicas, não são estruturadas, não têm todo esse poder. Márcio Christino - Das grandes organizações que passamos a levantar as mais famosas são as facções. É um erro pensar que a facção nasceu assim, ela evoluiu, ela tem fases. Na primeira fase, o Comando Vermelho e as outras organizações tinham um componente político muito grande, que depois foi se transformando. O PCC também tinha um componente político grande, embora diferente do que tinha o Comando Vermelho, são realidades distintas, coisas distintas. Vamos dizer que o Comando Vermelho está numa fase um pouco mais adiantada, que é a fase da despolitização e do profissionalismo econômico, ou seja, voltado inteiramente para ganho material, lucro, tráfico, dinheiro. Ao passo que o PCC ainda tinha um resquício, talvez ainda tenha um pouco, mas a grande passagem dele está sendo realizada neste momento, acredito, e essa informação que o Porto deu é verdadeira. Eles estariam planejando limitar a opção política deles e se voltar exclusivamente para a opção econômica. Renato Pompeu - O que é esse lado político? Márcio Christino - O lado político no Comando Vermelho surgiu na época da repressão, já é uma out ra realidade, não é do meu tempo. Roberto Porto - Veio do contato dos presos políticos com os presos comuns. José Carlos Blat - Em São Paulo nasce o PCC por deficiência do próprio Estado – colocar cento e tantas pessoas dentro de um cubículo acaba gerando uma justa reivindicação, então existiu uma mobilização entre os presos comuns nesse sentido de querer melhores condições de habitabilidade, comida etc. Márcio Christino - Um componente inicial, mas tem que acrescer que aqui eles tiveram uma liderança muito bem preparada, todos eles eram pessoas de caráter diferenciado. Você falou da formação política deles. Da formação política, não, da formação pessoal, em dez pessoas, sempre umas se destacam e outras não. Tem um grupo de três ou quatro, talvez cinco, porque dos doze ou oito iniciais só três estão vivos, eles foram se matando uns aos outros, e os três que sobraram hoje acredito que são os mais inteligentes. Tivemos um contato longo com eles, são pessoas excepcionalmente bem preparadas, leram muito, tiveram não sei que tipo de orientação. A gente tem até uma idéia... Trecho 03 Renato Pompeu - Mas os senhores DIRIAM que essa "Lei da Mordaça" não foi propriamente feita para defender o Elias Maluco e o PCC, e sim para defender pessoas de importância na sociedade? José Carlos Blat - Com certeza, só para defender gente que está sendo investigada. Essa lei é a lei da vingança, me parece. O deputado lá em Brasília está vingando um vereador que foi investigado na sua cidadezinha, está vingando aquele prefeito que foi investigado, deputado estadual que foi eventualmente incomodado. Isso é um resultado não só destes últimos dois ou três anos, esse ambiente contra o Ministério Público já vem sendo criado há bastante tempo. Então, esses políticos, no afã de defender os interesses de determinadas pessoas que foram injustamente processadas ou injustamente atingidas na sua honra, ameaçam todo o Estado democrático de direito. Temos mecanismos para isso. Se eu falar uma bobagem, como o jornalista também, se falar uma bobagem, que seja processado criminalmente, seja processado civilmente. Roberto Porto - O problema é maior do que esse. O problema é da improbidade administrativa. José Carlos Blat - A Lei da Improbidade também... ou seja, criar o foro privilegiado, tirar da mão dos promotores e procuradores e concentrar nos procuradores gerais, em determinados Tribunais Superiores... Verena Glass - Como é a relação de vocês com as CPIs? José Carlos Blat - Eu DIRIA que é um tanto quanto conturbada em alguns momentos, porque na CPI o foco de investigação é o foco político. A intenção não é alcançar um resultado criminal ou de improbidade, mas uma punição política. É fundamental a existência das CPIs, mas às vezes elas acabam extrapolando. Na CPI desses federais que passaram por São Paulo tinha um cidadão depondo, quando deu 5 para as 8 tiraram correndo o cidadão e trouxeram um encapuzado, porque às 8 horas entrava o Jornal Nacional. Quer dizer, interromperam um depoimento para fazer jogo de cena. Nesse momento eu me levantei -- estava assistindo, acompanhava 60 colegas que faziam parte da CPI – e fui embora, enquanto acendiam aqueles holofotes e dois deputados começavam a berrar. Inacreditável. E muitas vezes as CPIs também seguem como um instrumento de fogo de encontro com a investigação. Você produz uma prova, aí chamam uma pessoa lá e fazem cair em varias contradições, porque ficam horas e horas questionando exatamente para desmoralizar a investigação que foi feita pela policia e pelo Ministério Publico. É uma faca de dois gumes. Maria Luísa Mendonça - Uma coisa que sempre me intrigou é a gente nunca ver contrabando de armas sendo apreendido... Márcio Christino - O tráfico de armas é muito mais seletivo do que o tráfico de entorpecentes. O consumidor de entorpecentes são X pessoas, o consumidor de armas é X menos mil. No caso das organizações criminosas é menos ainda, pois, apesar de serem grandes organizações, elas não têm um fluxo de armamento tão grande que possa ser detectado de maneira tão fácil, ou tão normal, como é a identificação do narcotráfico. Temos algumas gravações que mostravam certa forma de negociação entre organizações criminosas comprando arma no Paraguai e remetendo de São Paulo para o Rio de Janeiro. Agora, o que ajuda isso também é a nossa fronteira, a extensão territorial muito grande... José Carlos Blat - Mais do que o tráfico de armas, o comércio ilegal de armas é um negócio absurdo. A polícia apreende com alguém um 38 que seja, uma arma pequena, perto desse armamento pesado que existe hoje. Essa arma permanece depositada no Judiciário, na polícia, durante anos, e o próprio Estado muitas vezes perde o controle sobre ela. Falta também uma legislação eficiente: apreendeu arma ou até mesmo a droga etc., faz rapidamente a perícia e imediatamente destrói esse armamento, porque são milhares e milhares de armas, e quem me dá garantia de que todas que efetivamente foram apreendidas continuam apreendidas, de que não voltaram, de alguma maneira, para o mercado ilegal? Desmanche é outra coisa que me deixa indignado. Em São Paulo existem 1.200 desmanches, aí me pergunto: será que tem tanta batida a justificar esse número tão grande de desmanches? A indústria do roubo e do furto de veículos acaba nessa ponta, o Estado DEVERIA TER uma legislação, inclusive, contrariando o interesse de seguradoras. Encontrou um carro roubado, batido etc., em vez de colocar esses veículos no mercado, a imediata destruição deles, como se faz nos Estados Unidos. No ano passado ficamos na avenida Rio das Pedras durante 45 dias, fechamos três desmanches e, ao contrário da polícia, carregamos todas as peças, tiramos tudo de lá. Fizemos um levantamento na Secretaria da Fazenda e, num dos desmanches, eram mil carros importados, foram necessários 95 caminhões para levar as peças, mais de 25 milhões de reais em peças de Audi, Mercedes, Pajero, Cherokee e tudo o que você possa imaginar. E nossa permanência na avenida Rio das Pedras levou a um fenômeno muito interessante: os quarenta desmanches resolveram fechar nesse período. Aí fomos fazer um levantamento sobre se isso tinha repercutido de alguma maneira no roubo e furto de veículos, o sindicato das seguradoras informou o seguinte: no período que permanecemos na avenida Rio das Pedras caiu 25 por cento o número de roubos e furtos, ou seja, há uma relação direta. O roubo de carga hoje acontece de forma bem diferente do que as pessoas imaginam – normalmente, em horário comercial e coincidindo com o horário de abertura das grandes distribuidoras de São Paulo. Márcio Christino - E com o maior índice de corrupção de agente público. José Carlos Blat - Do roubo de carga que é noticiado, na verdade, 60 por cento são de desvio de carga, é a simulação do roubo. É a transportadora que realiza prejuízo, é a empresa que vendeu e quer o estorno do ICMS para se autocreditar, e ninguém fala nisso. O prejuízo é enorme e a mercadoria chega mais barata ao real comprador, ou seja, sem nota no meio de outras mercadorias com nota. Existe hoje toda uma rede funcionando. O sindicato das transportadoras de carga fez o levantamento: os horários de pico, por exemplo, de eletrodomésticos, de terça e quinta, coincidiu com várias lojas de grande potencial em São Paulo que estão recebendo a mercadoria. Márcio Christino - Então, na verdade, a loja recebe a mercadoria duas vezes, porque, quando ela perde a carga, o seguro dá outra. Ela recebe a carga supostamente roubada e reclama o roubo, então fica com uma carga verdadeira e uma carga roubada, e ainda se credita no ICMS. José Carlos Blat - O prejuízo é para as seguradoras e para o Fisco, porque, quando eu emito uma nota e tenho 17, 18 por cento de ICMS, e digo "olha, está aqui o boletim de ocorrência do roubo... esses 18 por cento daquela mercadoria eu me autocredito", isso está atingindo diretamente a sociedade. Em 1999 fizemos uma investigação, foi roubada uma carga de tênis, ia ter um lançamento mundial de uma marca, dia 10. Dia 5, numa cidade do interior, um desses grandes supermercados fez um lançamento num jornal, antecipado e com um preço muito menor daquele tênis, como é que pode? Trecho 04 Georges Bourdoukan - O resultado do trabalho de vocês é gratificante? José Carlos Blat - Os casos nos quais a gente atuou foram considerados emblemáticos e serviram de referencial, inclusive para a conscientização da sociedade. Em muitos casos não tivemos sucesso no processo, mas tivemos uma resposta imediata da sociedade. Fico absolutamente contente ao ver que, nas eleições para vereador em São Paulo, 51 por cento deles não foram reeleitos. Isso é um processo de conscientização e a demonstração à sociedade de quem eram as pessoas investigadas. Agora, no pleito para o governo do Estado de São Paulo fiquei atônito, porque as pesquisas indicavam que uma das pessoas por nós investigada há bastante tempo PODERIA LEVAR no primeiro turno. Mas, de repente, a sociedade deu uma resposta para que essa pessoa nem sequer fosse para o segundo turno. Sérgio de Souza - Aliás, como vai o caso Jersey? 61 José Carlos Blat - Hoje, o caso está desmembrado em duas áreas. A área criminal propriamente dita está com o Ministério Público federal, por conta de problemas de atribuição... Marina Amaral - Por ser um político? José Carlos Blat - Não, pelo STJ entender que eventualmente o processo de lavagem de dinheiro internacional envolve outro país. E a investigação de improbidade administrativa ficou na esfera estadual, com o meu colega Sílvio Marques, promotor da cidadania. E nós, do Gaeco, damos suporte, auxílio nas investigações, que continuam, as pessoas podem pensar que, passadas as eleições, os promotores se esqueceram do caso. Ao contrário, o caso está muito bem encaminhado, só que sob sigilo em decorrência de algumas investigações que ainda estão sendo realizadas. E teremos em breve algumas novidades. Marina Amaral - Vocês elegem os casos que vão investigar? José Carlos Blat - Não elegemos, muitas vezes somos incitados a participar de algum caso pela informação que nos chega: denúncia anônima... Márcio Christino - Alguém de fora, como um promotor do interior, "ó, tem uma central telefônica, estou te mandando protocolado"... José Carlos Blat - Representações de pessoas que têm interesse... Márcio Christino - A própria polícia... Ronye Quintieri - Se alguém quiser fazer uma denúncia, tem um telefone? José Carlos Blat - Existe um número que a gente passa para denúncias em geral de organizações criminosas, que é o 3017-7790, São Paulo. E também o e-mail [email protected]. O Gaeco virou um pára-raio da credibilidade, tudo cai lá. Quer dizer, as pessoas levam muitas vezes casos que não são de crime organizado, mas a gente procura encaminhar para outras promotorias ou para a corregedoria da polícia. Maria Luísa Mendonça - Como vocês FARIAM um balanço entre essa participação maior da sociedade, por conta de alguns casos emblemáticos, e ao mesmo tempo sofrer uma retaliação, como no caso da "Lei da Mordaça"? José Carlos Blat - É um antagonismo. A sociedade aplaude a iniciativa do Ministério Público, e ao mesmo tempo permanece silente quando se trata de uma retaliação aos órgãos do Ministério Público, que na verdade é uma retaliação à sociedade. Falta talvez o esclarecimento à população do que realmente significa essa "Lei da Mordaça". Porque as pessoas ainda não entenderam bem o que significa. Márcio Christino - Fica a noção de que o Ministério Público é incontrolável, que abusa. Então, fica "tem de haver algum tipo de controle", como se já não houvesse. Maria Luísa Mendonça - Que casos emblemáticos vocês acham que causaram essa retaliação? José Carlos Blat - De São Paulo, a gente pode falar com absoluta tranqüilidade, que foi o caso das máfias de fiscais, em que vários partidos tiveram vereadores investigados. Em Brasília, o caso de ACM, com a divulgação da história do painel eletrônico, também levou a uma retaliação. Aliás, está de volta o senador. O próprio caso do Eduardo Jorge, em Brasília, também levou a esse tipo de conseqüência. E, fundamentalmente, isso é uma resposta a todas as ações do Ministério Público no Brasil inteiro, porque tudo aquilo contra políticos nas bases menores de sustentação repercute em Brasília. Márcio Christino - A "Lei da Mordaça" tem a mesma pena de formação de quadrilha e de crime organizado: dois anos de reclusão. Formar um bando ou quadrilha, montar uma organização criminosa é crime igual ao promotor falar com a imprensa! Sérgio de Souza - Existem mesmo figurões do crime organizado que não são nem o Fernandinho Beira-Mar nem o pobrezinho da favela... José Carlos Blat - Os nomes que a gente tem estão sob investigação, se eu falar... Sérgio de Souza - Nome, não, GOSTARIA de saber pelo menos em que setores eles estão, que papel ocupam na sociedade. Maria Luísa Mendonça - Os que estão na Vieira Souto e não na favela. José Carlos Blat - Eles são até colunáveis, não é? Outro dia, fui a um Estado fazer uma palestra para promotores e havia lá umas mil e tantas pessoas, foi um evento aberto, e de repente anunciaram um cidadão que tinha um título nobiliárquico, conde não sei das quantas, foi aplaudido de pé ao entrar no salão. Comentei com um promotor: "Esse cidadão é importante, não?" E o promotor: "Ele não só tem um título nobiliárquico, como controla o jogo do bicho, o tráfico de entorpecentes e financia campanhas. Dá 1 milhão para o candidato A, 1 milhão para o candidato B, e 1 milhão para o candidato C. E recebe como contrapartida, no mínimo, três milhões em concessões, então nunca perde. É um cidadão respeitado...". CA71_fev_2003 O economista Celso Furtado, 82 anos, nascido em Pombal, no sertão paraibano, é muito mais do que um economista: trata-se do pensador de esquerda mais influente no país no último meio século. No campo prático, foi o criador da Sudene, a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste, nos anos 1950, e ministro da Cultura no governo Sarney, o primeiro após o fim do regime militar; no campo teórico, foi um dos principais pensadores da chamada corrente desenvolvimentista cepalina, ou seja, ligada à Comissão Econômica da ONU para a América Latina (Cepal), que desenvolveu o conceito de saída do subdesenvolvimento por meio da industrialização substituidora de importações, com destaque para as empresas de capital nacional e estatais. É autor de 32 livros, com 53 traduções no estrangeiro, dos quais o mais importante talvez seja Formação Econômica do Brasil, de 1959, que se tornou um clássico, de leitura obrigatória ainda hoje para os economistas e 62 interessados em economia brasileira e brasilianistas. Em 1998, lançou O Capitalismo Global. Outros livros: De Nápoles a Paris, sobre sua experiência como pracinha na Segunda Guerra Mundial, Teoria e Política do Desenvolvimento Econômico e O Longo Amanhecer. Teve os direitos políticos cassados pelo regime militar, que censurou suas obras; exilou-se na França e se tornou respeitado professor de economia e desenvolvimento, na Sorbonne, de 1965 a 1985, quando retornou ao país durante a redemocratização. Tem dois filhos e quatro netos e é membro da Academia Brasileira de Letras desde 1997. Mora num apartamento em Copacabana, onde concedeu entrevista, em dezembro, para o número zero do semanário Brasil de Fato, que será lançado em março próximo e a cedeu para publicação na íntegra em Caros Amigos. Ouçam esta voz Trecho 1 João Pedro Stedile - Na sua opinião, quais são os problemas fundamentais da sociedade brasileira atual? Celso Furtado - O primeiro desafio é dar prioridade ao problema social e não ao problema econômico. Os economistas dominaram completamente esse primeiro debate e, se você olha somente para o lado econômico, pode cair nesse círculo vicioso em que o governo anterior se meteu, porque no sistema mundial econômico a posição do Brasil é demasiado subordinada. Isso faz com que seja muito difícil propor uma estratégia, por exemplo, quando se diz "em qual direção vamos agora?" "Que espaço temos para agir?" – essa é a dúvida maior. O Brasil foi arrastado a uma situação de dependência que se consumará de vez se for levada adiante essa idéia esdrúxula de integrar este país à famosa ALCA. A ALCA é realmente o fim da soberania do Brasil e, se o Brasil perde a soberania, não tem mais política própria e, portanto, não tem mais destino próprio, será um joguete de forças maiores e, provavelmente, tenderá a se desmembrar. O que está em jogo é o futuro do Brasil. João Pedro Stedile - Por que o senhor diz que o problema social é maior do que o econômico? Então, no econômico não temos problema? Bem, os problemas econômicos são problemas que os economistas sabem formular mais ou menos, não é? Se bem que tropecem com essa idéia de que os problemas econômicos são macro ou micro, e eles raciocinam em termos de micro e aplicam em termos de macro, o que faz com que seja tão difícil depois sair das enrascadas em que nos metemos. Mas não creio que seja somente isso. É que o Brasil investiu muito e criou um sistema industrial dos mais poderosos do mundo, sendo hoje uma economia que pesa no sistema de decisões. Por outro lado, o Brasil tem graves limitações. A capacidade de se autodirigir, criar o seu próprio destino é muito limitada, e isso tem a ver com o social e não com o econômico. Se o Brasil partir da identificação dos problemas sociais, conseguirá criar um tipo de opinião pública como essa que se manifestou agora na eleição de Lula. De tudo isso, o mais importante é a diferença que há nesse movimento de hoje em dia, que é de raiz popular, de raiz social, partiu para a investigação dos problemas sociais e não dos problemas econômicos. Portanto, acho que se ganha uma parte da batalha se for priorizado o problema social. Isso eu compreendo que é um pouco a estratégia de Lula. Colocando o problema social, ele vai criar um tipo de opinião pública cada vez mais democrática, de raiz popular, e essa opinião pública de raiz democrática é que vai permitir consolidar esse próximo momento, e você vai ter finalmente a transformação do Brasil partindo do social e não do econômico. João Pedro Stedile - O senhor é considerado o mestre de todos os economistas e dos brasileiros que sonhavam com um projeto nacional. Hoje, um projeto nacional que contornos teria? Primeiramente teríamos de discutir, identificar o espaço que existe para um projeto nacional, nessa direção, porque não basta falar em projeto nacional, é preciso saber onde se quer chegar. Quando você olha o problema de perto e vê, por exemplo, que o problema do Banco Central é esse drama que estamos vivendo, que se entrega ao grande capital internacional, quando todo mundo sabe que isso é uma aventura que vai levar a vários impasses, percebe-se que ainda não está explícito o itinerário que o Brasil pretende seguir em seu projeto nacional. O problema brasileiro não é econômico. Se fosse, você ficaria amarrado para resolver o problema a partir do Banco Central. O problema é social, você deve partir da mobilização das forças sociais, da identificação dos problemas que afligem a população, em primeiro lugar o sofrimento enorme desses milhões de pessoas que passam fome. Esse é o maior drama da sociedade brasileira, que se tentou ocultar por tanto tempo, até o dia em que se descobriu que "Oh, são mais de 50 milhões que não ganham o suficiente para matar a fome". A verdade é que a gente vai vendo que o Brasil é um país de construção imperfeita, e hoje está desconchavado, desmantelado, porque a capacidade de comando que tínhamos sobre a economia, mesmo limitada, atualmente é muito menor. Você encontra qualquer economista estrangeiro que estuda o Brasil, ele quer saber sobre a balança de pagamentos. E você vai identificar o que de importante no caso? A imensa dívida externa, que tem de ser paga. Essa dívida, comparada com a de outros países, não é tão grande, ela é grande em relação à capacidade do Brasil de servi -la, que é muito limitada... João Pedro Stedile - Ela engessa nossa economia... Engessa, e a possibilidade de se autogovernar se reduz. Você só pode mudar esse quadro mudando o projeto social, o estilo de desenvolvimento do Brasil e isso é o que eu imagino que a geração nova fará. Creio que as pessoas já estão compreendendo. Essa eleição foi um alerta para mostrar que já tem muita gente convencida de que o Brasil tem de se reconstruir, ter um sistema de decisões, levar adiante uma estratégia política muito diferente da que teve no passado. Mas, para isso, o Brasil precisa de um governo que estabeleça outra relação com a sociedade. Eu fico pensando o que foi que levou o país a essa situação. Então, me recordo que, na época em que tive alguma importância no país, quando escrevia e era muito lido, particularmente nos anos 50, quando publiquei Formação Econômica do Brasil – e que muita gente "descobriu" o Brasil lendo aquilo –, tínhamos a idéia de que, se o país conseguisse atingir certo grau de desenvolvimento industrial, de desenvolvimento econômico propriamente dito, um certo nível de desenvolvimento, ganharia autonomia. daria um salto enorme que significa sair de uma economia de dependência econômica para uma autêntica independência. Era nada 63 menos do que isso que estava em jogo. E eu escrevi sobre isso, e disse que estávamos nas vésperas de dar esse salto. Foi nos anos 50, quando houve o debate sobre Brasília etc. Na verdade, houve uma tomada de consciência, de um lado e de outro, e o Brasil viveu o seu período mais intenso de construção política, de renovação do pensamento. Para mim, a história do Brasil tem um período extraordinariamente significativo, esse período que vai do fim do primeiro governo de Vargas até o começo da ditadura militar, cerca de 20 anos. Foi uma ebulição política na qual todas as idéias vieram a debate, descobrimos tudo, tudo veio à tona, e foi um entusiasmo muito grande. Pelo Brasil afora, fui paraninfo de dezenas de turmas de estudantes... Era uma coisa empolgante, o país se industrializando, se transformando, incorporando massas de população à sociedade moderna. E isso tudo veio abaixo. E não veio abaixo porque a economia brasileira deixou de crescer, ao contrário, houve anos em que o Brasil cresceu mais anda, mas veio abaixo porque mudou o estilo de desenvolvimento, e desapareceram as forças sociais que estavam presentes antes. Antes de 1964 houve uma enorme confrontação de forças sociais, era aquele caldeirão, que causou tanto medo na grande burguesia e nos americanos... Os Estados Unidos se apavoraram com o rumo que vínhamos tomando; essa fase se encerrou e entramos – como alguém disse – na paz dos cemitérios, foi a época da ditadura. Passaram-se trinta anos sem se poder pensar propriamente, ou sem poder participar de movimentos, a juventude mais agressiva e mais corajosa sendo perseguida. Desmantelou-se o processo de construção do Brasil. E aquele ganho formidável alcançado no período anterior se perdeu, porque o Brasil foi recomeçar uma vida política extremamente primitiva, o parlamento que foi eleito na ditadura era de uma mediocridade enorme. E o pior é que não foi possível abrir um debate sobre nada importante, porque toda a imprensa já estava controlada, tudo aferrolhado, a juventude estava desmobilizada, era outro país. Hoje eu me pergunto: o que fazer para tirar o Brasil desse marasmo? Ele começou a sair dele agora, com essa promessa de que haverá um país pensando nos seus problemas reais, nos seus problemas sociais. Trecho 2 Plínio Sampaio Jr. - Como criar emprego hoje na cidade?... Na verdade, trat a-se de saber que possibilidades existem de criar emprego. Porque a atual sociedade brasileira cria emprego de baixíssima produtividade e que não permite sobreviver, subsistir. Já trabalhei sobre isso, e penso o seguinte: o Brasil terá de pensar numa sociedade diferente, em empregos diferentes. Por exemplo, por que não fixar muito mais população no campo, e criar emprego industrial no campo? João Pedro Stedile - Criar agroindústria. Interiorizar a indústria... Tem de começar por isso. Se você interiorizar a indústria, reforça o sistema econômico do país, em vez de fragilizá-lo. Não é criar emprego por criar simplesmente, sem nenhum sentido econômico. Não se pode perder de vista que a economia tem suas exigências, e você, portanto, não pode pensar em criar emprego de qualquer forma, como muita gente pensa. Veja, por exemplo, lá no interior do Nordeste, onde hoje tem tanta gente desempregada, mas vivendo com uma pequena subvenção. Instala-se, assim, uma cultura da miséria, da mendicância, da semimiséria. E isso é um crime num país tão rico, com tanto potencial, com tanta terra, mas onde não se planta. E como transformar a agricultura numa agricultura viável para uma sociedade com uma demanda diferente? Esse é o desafio. Portanto, seria necessário que um movimento como o dos sem-terra gerasse uma força de transformação da economia rural – não é somente dizer "vou fazer isso e aquilo, fazer greve", mas ter um programa de transformação do mundo rural, porque o Brasil tem enorme potencial nessa área. Não é um país qualquer. Tem um potencial importante, se investir no campo com critério e habilidade pode criar manchas novas na economia moderna no Brasil, de um tipo novo. Eu vi muito em alguns países do norte da Europa como o mundo rural sobrevive. Não é propriamente uma economia "primária", pois ali se criam milhares de empregos nos setores secundário e terciário, como a agroindústria, o turismo rural etc. Nessa criação de empregos no campo, o Estado tem de estar muito presente. Agora, no Brasil, porque 30 e poucos por cento do setor de serviços são controlados pelo Estado, já se diz que é um mal muito grande. Não há mal nenhum. A televisão está aí, Boris Casoy fazendo discurso: "É um absurdo! Manter essa gente lutando por falsos empregos etc.; e o dinheiro que vai para essa gente sai de onde? Sai do meu bolso, do seu!" Não é nada disso. A verdade é que o PIB brasileiro tem um bloco importante administrado pelo Estado. Esse bloco dá lugar a muitas discussões, há muita gente pondo em dúvida a lisura da administração. O que até posso entender, pois o Estado não evoluiu no sentido de criar uma economia moderna. Ainda temos na verdade uma economia de subsídio, de ajuda. Isso funciona durante algum tempo, mas depois se degrada, e você vai ver que aquilo vai começar a definhar, o retorno do investimento no campo começa a definhar. José Arbex Jr. - Mas a ALCA não SERIA um bom estímulo para a modernização da economia brasileira? A ALCA é a renúncia à soberania nacional. É preciso entender isso. Se há uma coisa à qual você não pode renunciar é à soberania, porque, se você tem um pouco de soberania como tem o Brasil ainda, pode ter uma política econômica que responda às necessidades e aspirações do povo. Mas, se estiver enquadrado pela ALCA, as grandes empresas é que vão traçar a política econômica do Brasil. As grandes empresas que já são poderosíssimas no Brasil, e vão ficar ainda mais poderosas. É o seguinte: a gente tem hoje um setor muito importante de empresas internacionais, que pesam positivamente no PIB brasileiro, como a indústria de automóveis, a de equipamentos etc., mas essas empresas não atendem aos requisitos de prioridade nacional, não atuam a partir de uma visão global da economia brasileira, elas são comandadas pela racionalidade típica de qualquer empresa: o lucro. O que é racional para a Ford é que, se necessário, ela fecha a fábrica aqui e passa para outro país. Você tem de partir da seguinte questão: somos ou não um sistema econômico? Se somos um sistema econômico, temos uma lógica própria e essa lógica não combina com nenhuma racionalidade internacionalizada. Se você não tem essa autonomia e tiver de se subordinar – o que acontecerá se entrarmos 64 na ALCA –, não poderá evitar que as transnacionais decidam por conta própria o que deve ser feito, e qual a tecnologia a ser utilizada. A tecnologia do automóvel avançou enormemente, mas avançou de forma completamente negativa para o Brasil, porque engendrou o desemprego: o governo brasileiro ajudou, por exemplo, a Ford a se modernizar, a ficar mais eficiente, para exportar mais. Com isso, criou o desemprego. Trecho 3 José Arbex Jr. - Os Estados Unidos nunca foram tão arrogantes na prática de uma política imperialista, nunca foram tão ofensivos em relação à ONU e a todas as instâncias multilaterais e nunca impuseram tanto sua vontade sobre o resto do planeta. O que o senhor sente quando vê essa conjuntura mundial? O que pode acontecer? Sinto, primeiramente, que os Estados Unidos não estão preparados para exercer esse papel. É grotesco o comportamento deles, por exemplo, no caso do Iraque. É evidente que os americanos acumularam um poder enorme, mas é um poder meio falso. O país tem um enorme déficit na balança de pagamentos de conta corrente, e a cada ano que passa o governo se endivida numa escala descomunal, dependendo totalmente de capital externo. As empresas americanas, a sociedade americana só fazem se endividar. Acostumaram-se a viver endividados. Mas isso é precário. Quer dizer, tem de haver um entendimento mais amplo, uma reforma mais completa no quadro das relações internacionais. No âmbito comercial, seria uma reforma na OMC, quanto às relações financeiras, temos de marchar para uma nova conferência de Bretton Woods, como aconteceu depois da Segunda Guerra Mundial. Foi aí que se chegou à conclusão de que, para sair da enrascada do sistema econômico e financeiro internacional da época, era preciso criar instituições novas. Deu um trabalho enorme! Eu participei disso. Criou-se, por exemplo, o FMI, mas os Estados Unidos impuseram suas regras e se fez como os americanos queriam. Os próprios ingleses tinham um projeto diferente, concebido pelo lorde Keynes. Depois houve uma discussão muito maior com respeito ao comércio mundial, naquela conferência em Havana, em 1948, que não deu em nada, porque os americanos tinham um medo enorme de perder espaço. João Pedro Stedile - Mas o senhor acha que a era do dólar como moeda está chegando ao fim? Está ameaçada. É possível que os americanos se corrijam, compreendam isso e estabeleçam um outro sistema de relações internacionais. Eles têm muito poder para fazer isso. Se bem que tenham menos poder do que se imagina. O caso é que os americanos têm de reconhecer o fato de que quem cresce mesmo na economia internacional é a China. A China foi que mais cresceu nos últimos anos e hoje é de longe o maior centro de atração de capitais internacionais. Agora, a China se orienta por outras regras. Ela não entregou os pontos assim, não. Joga de acordo com seus próprios esquemas. Outro país que também tem muita importância é a Índia. E assim por diante. Então, o poder está se distribuindo, o que é um bom sinal. Há um caso que é um mistério: o Japão. O Japão é uma economia enorme, mas sem dinamismo. É que durante muito tempo se beneficiou, para crescer, de um espaço vazio que havia no sudeste da Ásia. Cresceu nesse espaço. Foi fácil para ele expandir enormemente seu comércio internacional nessa área do mundo. E hoje os países dessa região estão meio saturados de investimento japonês. O Japão não tem mais onde colocar o dinheiro. Está já há vários anos vegetando, crescendo muito pouquinho, nem parece mais a economia japonesa do passado. Portanto, a situação internacional, global não é simples e não é alvissareira para os Estados Unidos, porque os americanos não têm projeto, particularmente no que diz respeito às relações com o Terceiro Mundo. João Pedro Stedile - Voltando ao Brasil: o senhor RECOMENDARIA ao Lula reabrir a Sudene? Ah, sim. Já recomendei. João Pedro Stedile - E qual SERIA o papel da Sudene num governo Lula? Primeiramente, ela TERIA DE VOLTAR a ser o que era originalmente, e não essa caricatura em que se transformou. A Sudene era um órgão que permitia uma articulação melhor, de outro estilo, entre a administração federal e as estaduais. Por exemplo, o superintendente da Sudene tinha nível de ministro. Em segundo lugar, as decisões do conselho deliberativo eram de uma transparência total, não havia mistério lá. Dele participavam os nove governadores dos Estados do Nordeste. Esse órgão coletivo exercia o poder através dos governadores, que tomavam decisões conjuntamente com o governo federal, representado pelo superintendente. Tomavam uma decisão e o governo federal tinha de aceitar porque senão ficava em conflito com a Sudene e, portanto, havia a necessidade de uma cooperação fina, delicada, mas muito eficaz dos Estados com o governo federal, na qual se evitavam conflitos de jurisdições. Os Estados pequenos do Nordeste não têm expressão política, não pesam no Congresso Nacional, vivem barganhando pequenas coisas. E a Sudene representou no Nordeste a criação de um poder capaz de competir com o dos grandes Estados, como Minas Gerais ou São Paulo. Nos seis anos que passei na Sudene, nunca houve suspeita de desonestidade no uso de tantos recursos, tanto dinheiro que a Sudene usou, naquela época, e era muito mais do que hoje. Trecho 4 João Pedro Stedile - O senhor foi um homem de ação, durante cinqüenta anos teve atuação permanente na vida pública do país. Ou seja, não foi um acadêmico típico, foi duas vezes ministro, criou a Sudene, defendeu com paixão a necessidade da reforma agrária. O senhor DIRIA o que ao governo Lula? Que erros ele não pode cometer, ou de que perigos ele tem de se cuidar? Erros é difícil dizer, porque a imaginação dos homens para cometer erros não tem limites, não é? Mas tenho a impressão de que o grupo que está no comando do novo governo está disposto a dar uma briga forte contra uma situação muito ingrata, que é essa situação que se criou de você ter de se compor com esse mundo de gente que se vê nos comentários da imprensa: "Está tudo uma beleza, está melhor do que se pensava"... – a gente 65 sente que, para fazer esse jogo, se é que se quer chamar de jogo, para abrir esse front, precisa de muito topete, de muita coragem. João Pedro Stedile – Para encerrar: o senhor falou durante toda a entrevista que o fundamental agora é a política e não a economia. E que na política é essencial a participação popular, então qual SERIA a sua recomendação para os militantes sociais? De uma maneira geral, eu DIRIA que valorizem as instituições de base popular e que se organizem no país movimentos de opinião, que deixemos de ser uma massa amorfa explorada pelos aventureiros. A sociedade brasileira tem de se organizar de modo mais consistente para exercer o seu poder real, que foi demonstrado agora, nessas eleições, quando teve acesso a ele e ficou um pouco surpreendida, claro, mas teve acesso. A verdade é essa. CA72_mar_2003 Para o professor Fábio Konder Comparato, autor em 1985 de um anteprojeto de Constituição encomendado pelo PT, professor titular de direito comercial na USP e especialista em direito constitucional, o aprofundamento da democracia no Brasil depende de uma iluminação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Essa inspiração teria de ser semelhante à que o Mahatma Gandhi teve durante sua luta sem violência para a independência da Índia em relação ao domínio britânico. Então, Gandhi, depois de semanas de caminhada e meditação sobre o próximo passo a dar, chegou ao mar, pegou um punhado de sal, produto que era monopólio estatal britânico em toda a Índia, e proclamou que jamais os indianos pagariam de novo um tributo pelo sal, que passaria a ser de livre comercialização. Isso deu um motivo para as massas indianas se mobilizarem de maneira pacífica. Para Comparato, no cenário político brasileiro, está faltando uma inspiração semelhante do presidente Lula, que faça as massas do país se mobilizarem permanentemente, sem violência, em busca de um projeto concreto. Na sua opinião, por enquanto, "ao contrário daquilo que queremos, que imaginávamos e que ainda esperamos, não há uma modificação substancial da política brasileira, ou seja, o povo não passou a ser um sujeito ativo no cenário político" – esta a fagulha que falta ao governo Lula. Ele acha ainda que é possível processar os torturadores do regime militar, pois seus crimes não prescrevem. Esses processos seriam necessários para estirpar a nódoa do regime militar, que ainda pesa sobre o Brasil, de um modo desconhecido pelas gerações mais jovens, as quais assim se veriam frente a frente com o passado do país. Trecho 01 Nicodemus Pessoa - Sempre começamos pedindo ao entrevistado para contar um pouco da sua história. Por exemplo, o senhor é um paulista... Sou um pouco mais do que paulista. Sou santista. Nicodemus Pessoa - Torcedor do Santos inclusive? Não. Já me eduquei a não ser torcedor de nenhum time de futebol. Bom, formei-me em direito na USP, depois fiz o doutorado em direito na Universidade de Paris, vim para São Paulo, tornei-me livre-docente da Faculdade de Direito da USP e depois professor titular na cadeira de direito comercial. Ao mesmo tempo, advoguei na área de direito empresarial durante mais de trinta anos. Mas nos últimos anos só me dedicava a dar pareceres e não propriamente a representar clientes em ações judiciais. Acontece que em 1985 o PT me pediu que fizesse um anteprojeto de Constituição. Eu fiz e a partir daí fui aos poucos me voltando mais para o direito constitucional. E então para aquilo que é o cerne do direito constitucional, que é o sistema de direitos humanos. Fui abandonando a advocacia comercial, passei inclusive a dar pareceres de graça para o Ministério Público, e acabei encerrando a minha atividade profissional com um caso que me parece paradigmático, que me deu grande alegria, que foi a propositura de uma ação declaratória em nome de Inês Etiene Romeu, que foi barbaramente torturada em 1971 naquela casa de Petrópolis, ela foi estuprada três vezes e tentou duas vezes o suicídio. Ela não foi feliz na primeira ação, proposta pelo falecido doutor José Aguiar Dias, que foi ministro do Tribunal Federal de Recursos em pleno regime militar. Ela me procurou dizendo que queria unicamente que fosse restabelecida a verdade, porque no prontuário dela no Serviço de Informações constava que tinha sido terrorista e que se dizia presa política, mas ela não tinha sido presa política. Ricardo Vespucci - Em que ano ela o procurou? Acho que foi em 2000. Propus essa ação, ela me disse: "Doutor, não quero receber nenhum centavo, o senhor fica proibido de pedir qualquer indenização". Então pedi apenas que fosse reconhecida a relação de autoria dos atos praticados contra ela, ou seja, cárcere privado, sevícias e estupro pelos agentes da União Federal. E o juiz, em questão de três meses, acaba de dar uma sentença julgando procedente a ação e reconhecendo que foi realmente a União Federal que, por intermédio desses seus agentes, todos do Exército nacional, cometeram esses atos criminosos. Eu disse a Inês: "Olha, vou encerrar a minha atividade profissional com isso para me resgatar de eventuais pecados que tenha cometido durante trinta anos de exercício de advocacia empresarial". Nicodemus Pessoa - O senhor disse: "Eu sou mais do que paulista, sou santista". E me lembrou do Rubem Braga, que falava: "Eu, modéstia à parte, sou de Cachoeiro de Itapemirim". O senhor fala de Santos como se... Não, é que Santos é a terra do Patriarca, de modo que há uma ligação muito forte com a nacionalidade. O verdadeiro espírito santista é um espírito de brasilidade, sem nenhuma discriminação ou preconceito. José Arbex Jr. - Voltando à questão das indenizações, uma das coisas que causaram o racha no movimento das Mães da Praça de Maio foi o fato de parte das Mães aceitarem a indenização do Estado pelos filhos desaparecidos durante a ditadura argentina. A Hebe de Bonafini disse: "Não aceitamos dinheiro do Estado porque isso seria vender a memória dos nossos filhos e enterrar essa memória em troca de 250.000 dólares". 66 Como o senhor mencionou esse processo da recusa da indenização, eu queria saber a sua opinião a respeito, porque no Brasil tem-se a percepção de que, quando o Estado paga a indenização, isso é uma vitória. É uma questão de julgamento pessoal. Pessoalmente, eu não pediria indenização, porque o dinheiro do Estado sai do povo. Isso significaria o povo duplamente prejudicado: fisicamente e moralmente pelas torturas e pelo assassínio e patrimonialmente porque não é o Estado que inventa ou cria esse dinheiro, isso vem de impostos. E a estrutura tributária brasileira é tão injusta, que o pobre paga muito mais do que o rico, de modo que não se pode nem dizer que os ricos, que formam os grandes sustentáculos de um regime criminoso, como foi o regime militar, estariam agora indenizando indiretamente os prejudicados. Mas é uma questão de julgamento pessoal e eu não faria nenhuma restrição àqueles que pedem indenização. No caso de Inês Etiene Romeu, fiquei muito comovido com a posição dela e, como tenho formação cristã, me lembrei – e disse isso ao juiz – de um trecho do Evangelho de São João, quando diz: "Queiram a verdade porque a verdade vos tornará livres". Ela vivia numa situação de depressão moral porque a verdade sobre o que ela passou não tinha sido exposta com clareza. Acho que a verdade sobre o regime militar DEVERIA SER de algum modo dada como uma espécie de purificação da alma brasileira. Os jovens a quem leciono na Faculdade de Direito não têm a menor idéia do que aconteceu durante o regime militar. E isso é uma mancha, uma nódoa moral que não foi tratada e está infeccionando a alma brasileira. Em primeiro lugar, sob o aspecto jurídico, não temos nenhuma razão para impedir o julgamento desses homens, os que ainda sobrevivem, civis e militares – isso, no sistema de direitos humanos, no âmbito da Organização dos Estados Americanos, é pacífico, não há prescrição, a prescrição é inválida. E, por outro lado, isso é uma espécie de reeducação do povo. É preciso que o povo medite sobre o que aconteceu, sobre como nos comportaríamos hoje se estivéssemos na mesma situação de ontem, porque só aí nós nos tornaremos livres dessa covardia. O general De Gaulle, assim que assumiu o governo provisório, depois da libertação da França, na Segunda Guerra, disse: "A primeira medida é instituir tribunais regulares para julgar os colaboracionistas, porque a França jamais poderá encarar o futuro com simplicidade e com confiança em si se não liquidar essa conta do passado". Porque ele sabia perfeitamente que muitos dos colaboracionistas, e que até estavam próximos ao governo provisório, tinham escondido essa colaboração, e também sabia muito bem que, pelo menos no começo da ocupação nazista, a maioria absoluta do povo francês apoiava o colaboracionismo. João de Barros - Que tipo de resíduo o senhor acha que essa nódoa está deixando na sociedade brasileira? É o fato de que continua a haver uma certa imunidade, a concepção de imunidade do poder. E continua a haver tanto para isso quanto para outras questões, como, por exemplo, problemas econômicos, a depressão, inflação galopante, a aceitação de que os fins justificam os meios. E isso é desmoralizante, de certa maneira está prejudicando o governo Lula. O professor Boaventura de Souza Santos disse que a eleição de Lula foi uma vitória não da ideologia, e sim da ética. Espero que isso ainda aconteça, mas no momento estamos caminhando para um rumo divergente, e dou dois exemplos que me parecem muito graves. O primeiro é a aceitação do deputado Geddel Vieira Lima como primeiro-secretário da Câmara. É uma função importantíssima, porque é a que distribui todos os benefícios e subsídios aos deputados, de modo que o primeiro-secretário é sempre alguém que forma o seu eleitorado interno. Trecho 2 Ricardo Vespucci - O senhor fala que a não divulgação das boas medidas já tomadas pelo governo Lula reflete um vício da imprensa brasileira e da mundial. Que vício é esse? É que, na verdade, os grandes órgãos dos meios de comunicação de massa passaram a atuar de acordo com uma lógica típica das grandes organizações. O que interessa é a sobrevivência deles, e o mundo que se dane. Isso existe não só em organizações econômicas, como em organizações políticas e até mesmo em organizações religiosas. Essa sociologia da burocracia egoísta não é de hoje, ela data do começo do século 20, Ostrogorski, Michels mostram como as grandes organizações acabam fechadas dentro de si mesmas e procuram apenas sobreviver. E os grandes órgãos de comunicação de massa entendem que seria muito ruim para eles se fossem considerados órgãos "chapa branca", ou seja, subsidiários do governo. Acontece que, muitas vezes, esses mesmos grandes órgãos de imprensa ou grandes redes de televisão que procuram sobreviver contra tudo e contra todos e, portanto, não têm nenhuma ética, a não ser a do egoísmo e da auto-sobrevivência, acabam achando que, em determinadas situações, para sobreviver, é preciso, sim, defender o governo contra todas as evidências, como é o caso agora dos grandes órgãos de comunicação nos Estados Unidos. Nessa última manifestação mundial contra a guerra no Iraque, que, segundo as estimativas mais conservadoras, reuniu 5 milhões de pessoas nas ruas, em sessenta países, em seiscentas cidades do mundo inteiro, na televisão norteamericana havia poucos flashes, e logo depois apareciam os acadêmicos de plantão, pessoas evidentemente, como se sabe, "muito imparciais", "nenhum vínculo" com o governo e "nem defendem ideologias", para explicar que o que está acontecendo não é propriamente uma manifestação popular, mas uma manipulação de grupos bem conhecidos etc. Tenho procurado refletir muito sobre os meios de comunicação de massa, que têm um papel político decisivo, porque vivemos agora numa sociedade de massas, quer dizer, não há mais a comunicação face a face, somos privilegiados aqui porque estamos numa roda, estamos trocando idéias. Mas isso não terá a menor repercussão política, o menor efeito social se não for publicado. Daí porque, a meu ver, as constituições do futuro vão ter de tratar do setor de comunicação de massas necessariamente como órgão de poder, não oficial, mas como órgão de poder. Não se podem disciplinar as empresas de comunicação de massas como empresas iguais às outras. Não vamos confundir liberdade de imprensa com liberdade de empresa. São empresas diferentes, porque trabalham num setor de grande interesse público e, quando falo interesse público, é interesse do povo, publicus em latim significa "do povo". Não é interesse do Estado, é interesse do povo. Não 67 podemos mais nos comunicar a não ser por intermédio dos meios de comunicação de massa, salvo por meio da Internet, e essa é uma das coisas mais extraordinárias dos últimos tempos. Essa última manifestação que reuniu pelo menos 5 milhões de pessoas nas ruas do mundo inteiro foi possível em pouco tempo por causa da Internet, precisa ser agora explorada ao máximo. Por exemplo, o Acordo Multilateral de Investimentos, que foi negociado no âmbito da OCDE, a organização internacional que reúne os países supostamente mais industrializados do planeta, estava em preparação, o projeto já estava avançado e dava aos capitais estrangeiros muito mais proteção do que aos imigrantes. Os imigrantes podem ser presos e deportados sem maiores dificuldades, enquanto que, pelo projeto do Acordo Multilateral de Investimentos, os capitais estrangeiros gozavam de proteção absoluta, a tal ponto que os titulares do capital estrangeiro podiam recusar a jurisdição dos tribunais locais e exigir que o eventual conflito fosse julgado fora do país. Pois isso foi denunciado publicamente porque vazou pela Internet e aí o projeto abortou. Não se pode convocar 5 milhões de pessoas, em dois ou três dias, para se manifestar nas ruas a não ser pela Internet. Qual é o órgão de imprensa que vai fazer isso hoje? Renato Pompeu - Li um artigo seu em que o senhor fala que é necessário aumentar os poderes executivos, legislativos e judiciários da ONU. O senhor pensa em algo como um governo mundial? Eu penso e advogo ardentemente uma organização mundial. É esse o futuro. Hoje estamos assistindo a uma coisa maravilhosa que é o surgimento dos povos no cenário internacional como sujeitos ativos. Por que os Estados Unidos até hoje não conseguiram desencadear a guerra no Iraque? Porque estão perdendo a guerra de propaganda. Os povos já não aceitam mais essas explicações dadas sumariamente depois do 11 de setembro de 2001, de que tudo é culpa dos terroristas. E, veja, os dois países onde os povos se opõem mais veementemente à guerra no Iraque são, na Europa, a Espanha e o Reino Unido, países cujos Estados apóiam sem restrições o governo norte-americano. Aí temos essa realidade extraordinária, os povos contra os governos. É preciso, portanto, desmontar essa arquitetura dos Estados no cenário internacional e estabelecer a verdadeira democratização que põe os povos em linha de frente. Escrevi recentemente que TERÍAMOS DE PENSAR seriamente no quadro da reforma das Nações Unidas, numa mudança do critério de voto na Assembléia Geral, porque, na Assembléia Geral, cada Estado tem um voto. Mas isso significa reforçar abusivamente os Estados em detrimento dos povos, é preciso compensar com o peso das populações. Então as Ilhas Seichelles têm o mesmo peso de voto que a China? Isso não faz sentido na lógica democrática. E, mais, se a Carta das Nações Unidas, como diz o preâmbulo, quer favorecer a difusão dos direitos humanos e a defesa da dignidade humana no mundo todo, os membros das Nações Unidas têm de ter o mínimo padrão democrático. Portanto, não é possível admitir que votem na Assembléia Geral, por exemplo, lado a lado, países de governos autenticamente democráticos e ditaduras. Esses países que deixam o sistema democrático DEVERIAM TER o direito de voto suspenso na Assembléia Geral das Nações Unidas. Trecho 3 José Arbex Jr. - Conversando com lideranças legítimas e expressivas dos movimentos sociais – não vou citar nomes porque não fui autorizado –, há um certo consenso de que o senhor seria um nome ideal a ser lançado como presidente da República? Mas isso é uma piada de mau gosto. José Arbex Jr. - Se um dia toca o telefone e do outro lado da linha está o Luiz Inácio Lula da Silva e fala "professor, queria convidá-lo para compor o ministério", qual seria a sua resposta? Tenho muita dificuldade em aceitar, seria preciso saber em que ministério... mas em principio eu não aceitaria. José Arbex Jr. - Por quê? Porque cada pessoa tem o seu projeto de vida, eu já entrei na fase não digo a do "Jesus esta chamando", mas já estou me aproximando dos 70 anos, tenho 66 anos e o meu projeto de vida é ensinar e divulgar certas idéias. Renato Pompeu - Mas o senhor mesmo não disse que o político deve ser um educador? É verdade, agora um ministério... notem bem, coisa que no geral se desconhece, a palavra ministro vem de minus, quer dizer que ele é o menor, eu só aceitaria se tivesse uma posição de total e completo acordo com a política geral do presidente da República e me reconhecesse competente em alguma matéria, o que eu acho difícil. Trecho 4 Natalia Viana - O senhor acha que essa resistência à política dos EUA vem dos movimentos sociais, da população? Infelizmente, o povo ainda não foi, sobretudo no Brasil, suficientemente instruído sobre esses perigos. No caso da guerra ao Iraque, consideramos isso muito distante e durante muito tempo – e aí volto a criticar os meios de comunicação de massa – eles não alertaram o público leitor e os espectadores de televisão para o fato de uma guerra no Iraque trazer conseqüências imediatas no plano econômico para o Brasil. A mesma coisa com a guerra do Afeganistão. Quero salientar que um jornalista da Globo escreveu um livro muito interessante sobre o Afeganistão mostrando a cumplicidade vergonhosa dos grandes órgãos de comunicação de massa, não apenas nos Estados Unidos, mas também no Brasil. José Arbex Jr. - "Deus é inocente, a imprensa não." É, Carlos Domelles. É por isso que, por exemplo, nessas manifestações de rua contra a guerra do Iraque, o Brasil não brilhou muito, tivemos poucas manifestações. Nicodemus Pessoa - Professor, queria incluir um pouco da memória da sua atuação política nos anos da ditadura. poderia falar disso? 68 Olha, eu fiz muito pouco, e me reprovo muito por essa omissão. A única coisa que fiz, que tem um certo valor, foi ter atuado na Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, sob a orientação do dom Paulo Evaristo Arns. Na época éramos um dos poucos elos de comunicação com o governo, por intermédio de dom Paulo, e tínhamos contato direto com toda aquela tragédia. As pessoas vinham à Comissão Justiça e Paz contar não só aquilo que tinha acontecido a seus familiares e amigos, mas aquilo que eles pessoalmente tinham sofrido. E procurávamos divulgar essas informações, procurei divulgar essas informações na Europa, porque nenhum governo, mesmo o mais ditatorial, pode permanecer, pode funcionar apenas com base na força. Ele precisa sempre de uma base de legitimação moral. É essa a homenagem que o vício presta à virtude. Acho que dei uma pequena contribuição aí, mas não foi relevante. Quero aproveitar para manifestar minha admiração por todos aqueles que sofreram nas mãos dos verdugos do regime militar, e foram jovens, moços e moças como eu, e que tiveram a coragem que não tive de me levantar contra o regime. Mas, como eu estava dizendo, já falei muito e queria terminar lembrando o ministro Evandro Lins e Silva, que foi uma figura notável porque defendeu perante o Tribunal de Segurança Nacional, sem receber um centavo de honorários, mais de um milhar de presos de todo o espectro político, da extrema esquerda à extrema direita, e ao terminar seu livro de memórias, que é de grande relevância e interesse – O Salão dos Passos Perdidos –, ele lembrou aquele episódio que ocorreu no Nordeste, sua pátria. Havia lá um certo costume, quando o filho do coronel se formava, e geralmente se formava em direito, o coronel convidava todos os amigos e parentes para uma sessão solene no teatro da cidade onde o jovem diplomado ia fazer um discurso. Então, em uma dessas ocasiões, o coronel foi e estava com seu dileto amigo ao lado e muito emocionado, que ouviu o filho falar, e quando terminou o coronel se virou para o amigo e perguntou: "Que tal? Como foi meu menino?" E o amigo: "Muito bem, ele fala muito bem. O problema é que o assunto terminou e ele continua a falar". Ricardo Vespucci - Eu queria ouvi -lo sobre a sua relação com os alunos. Considero uma parte fundamental. Mas isso quem pode me dizer é você, que foi meu aluno! O que você vai me dizer é o que vai me envergonhar! Durante muitos anos fui tido como um professor cruel. Um professor que não admitia a menor falta. Mas foi pecado de juventude. Quando meus filhos cresceram e felizmente tiveram uma relação muito franca comigo, o que é muito bom para os pais, porque a gente aprende a se enxergar, passei a ver em todos aqueles moços e moças na minha frente outros tantos filhos e filhas, e fiquei muito mais descontraído. Hoje, o grande prazer meu é lecionar. Por isso eu dizia que não quero assumir nenhum cargo público, não só sem falsa modéstia, porque acho que não sou competente e porque tenho certos vícios de temperamento, sou siciliano, tenho estopim curto e certamente vou brigar no dia seguinte, mas também porque isso vai me afastar dos meus alunos. Ricardo Vespucci - Quantos filhos o senhor tem? Tenho três, mas tenho sobretudo uma neta. E essa neta é a doçura do meu crepúsculo. CA74_mai_2003 Ele se expõe com a convicção dos autênticos e é verdadeiro com a convicção dos corajosos. No morro ou no asfalto, é o mesmo sujeito, o mesmo negão, como gosta de se autodefinir. Nesta entrevista, faz afirmações chocantes, ao lado de colocações divertidas, e revela não só seu profundo senso ético e poético, como sua natural alegria de conviver. Paulo Lins parece levar a vida a sorrir. Trecho 1 Marina Amaral - Como foi o seu começo, como o menino Paulo Lins virou escritor? Vamos lá, vou fazer uma regressão... Na verdade, escrever, pra mim, era uma necessidade. Ao contrário das outras crianças, quando eu fazia uma coisa errada minha mãe falava: "Ó, então não vai escrever!" Depois que passava um tempo, quando eu já não estava mais nervoso, ela mandava eu escrever. Comecei escrevendo poemas, depois letras de músicas, depois samba-enredo, ganhei dois sambas-enredo na Cidade de Deus, num bloco que tinha lá... Andréa Dip - Isso, criança? Não, isso eu já tinha 17 anos. Mas a gente ganhava o samba, e o meu parceiro é que cantava o samba, porque minha mãe não deixava eu ir pro ensaio, que era perigoso e tal. Nem vi o desfile nem fui aos ensaios, porque minha mãe não deixou. Mas da minha casa dava pra escutar o samba cantado. E foi assim, eu sempre escrevi, aí, depois, fui pra faculdade, aí veio o movimento de poesia independente, nos anos 80, e fomos fazendo poesia, vendendo de mão em mão, fazia camiseta com poesia, cartão... foi o boom da poesia dos anos 80. O Paulo Leminski teve uma grande importância na minha vida, fui pra Curitiba com ele, que me incentivou muito, no Rio eu vendia os livros dele, Catatau, Agora É que São Elas. Quando ele ia dar palestras no Rio e eu sempre ia às palestras, aí ele falava? "Poxa, aqui no Rio esses negão careca ficam me dando dinheiro, vai pegar mal pra mim". Enfim, eu e a literatura é uma coisa que vem desde criança. Marina Amaral - Você nasceu na Cidade de Deus? Não, nasci no Estácio. Marina Amaral - É um hábito, no morro, criança que na favela escreve? Toda criança nasce artista, toda criança desenha, lembra? E depois vai perdendo essa coisa... agora, leitura é meio difícil. A relação com a leitura tem que vir antes de o cara começar a ler. Antigamente tinha os famosos casos, histórias de assombração, os mais velhos se reuniam na porta de casa e contavam história um pro outro, e eu peguei um pouco disso. Hoje não tem mais, tem televisão o tempo todo, as pessoas não se reúnem mais, ou então estão na birosca bebendo. Eu adorava histórias de assombração. Dormia com medo, mas no outro dia 69 estava lá de novo pra ouvir. E tinha também as fábulas, as histórias, mas isso se perdeu. Então fiquei ilhado, eu e algumas pessoas, porque só eu que lia, então isso dificulta um pouco a relação. Ferréz - E a relação com seus amigos, você era um garoto tido como normal ou tinha diferenças até de rolê, não sair junto por causa da literatura? Eu era meio otário! Sempre fui meio otário, não sei jogar bola, soltar pipa... o samba é que me salvou. Porque na favela tem a questão do respeito, o cara que bate uma bola é respeitado. Eu era otário, não sabia dançar! Aprendi a sambar depois, e aprendi a tocar instrumento de escola de samba. Toco todos os instrumentos de escola de samba, já desfilei em bateria, fiz letra de samba e aí eu peguei um conceito, com a rapaziada do conceito. Mas a escola, o estudo, a biblioteca foram me afastando um pouco, porque você não tinha referência pra levar uma idéia com o pessoal. Marina Amaral - Mas quem lia na sua casa, seu pai, sua mãe? Quem lia muito era minha tia Celestina, que lê até hoje. Ela falava pra gente ler, morou com a gente. Agora, também peguei uma escola boa. A expansão do ensino começou na Revolução de 30, mas no morro, na favela não tinha escola até 1950, 60... você tinha que descer, o pessoal do morro descia - e tinha uma relação difícil com o pessoal da classe média. Na minha escola, a Azevedo Sodré, tem uma foto dos alunos, da turma toda, e só tem eu de negão. É, porque vinha pouca gente do morro. Como a escola, quando teve a ditadura militar, deteriorou, aí nasceu o ensino privado. E o ensino privado, que era o contrário, era pra quem não passava na escola pública, ganhou força. Wagner Nabuco - Falando de educação, como você acompanhou no Rio a questão dos CIEPs do Darcy Ribeiro? A idéia do CIEP, de fazer uma escola onde a criança fica o dia todo, é interessante. Mas o CIEP é horroroso, me desculpe o Niemeyer, um projeto de cimento e ferro, cinza. E as salas não têm parede inteira! Dei aula no CIEP, foi meu pior momento como professor. Marina Amaral - Você deu aula bastante tempo? Dez anos. Português e literatura, da 5a à 8a, 2o grau, até a universidade. Universidade, dei aula aqui em São Paulo, em Mogi-Mirim. Marina Amaral - Então você é formado em letras? Sou formado em letras. Guto Lacaz - E o Cidade de Deus, você procurou uma editora ou foi procurado? Fui procurado. Na verdade, é o seguinte: eu militava na poesia, nunca tinha pensado em escrever um romance. Aí, conheci uma garota, hoje já é uma jovem senhora, que trabalhava com a Alba Zaluar, que desenvolvia um projeto chamado "Crime e Criminalidade nas Classes Populares". Então tinha que entrevistar bandido, daí o pessoal: "Chama o Paulo Lins". Universitário que conhece bandido, né? Eu já estava a fim da menina e entrei. Acabou que fiquei - e ela também - dez anos trabalhando com a Alba. Eu não pensava em escrever um romance, fui mais por amor à pesquisa. Para ajudar a Alba Zaluar a desenvolver um projeto de antropologia sobre a favela, porque eu tinha acesso ao pessoal da malandragem, eram todos meus amigos e da minha idade. E comecei a entrevistar e ela querendo que eu escrevesse antropologia, sociologia, isso eu não escrevo. Não sou sociólogo nem antropólogo. Eu disse: "Posso fazer um poema". E ela: "Ah, então faz um poema, escreve alguma coisa sobre a sua vida". Fiz um poema, demorei três meses para fazer, e ela mostrou ao Roberto Schwartz, aqui em São Paulo. Ele ligou pra mim, fiquei todo contente, "pô, o Roberto ligou pra mim", era um crítico, eu estava na faculdade, já tinha lido quase a obra toda dele, na faculdade você é obrigado a ler o Roberto. E ele perguntou: "Permite publicar o poema na revista do Cebrap? Publicou o poema e deu o aval pra eu escrever um romance. Aí, minha vida complicou. Escrever um romance não é brincadeira, não. Ferréz - Isso, você estava onde? Eu estava na Cidade de Deus. Ferréz - E o romance foi todo escrito lá? Não. Escrevi em Cabo Frio, fui para uma casa maluca, estava desesperado porque não conseguia acabar o romance. Era uma casa na beira da praia, sem luz nem água, um barraquinho da Ione de Ribeiro Nascimento, ela emprestou a casa e fui eu e meu filho morar lá. No começo era maravilhoso, a onda do mar batendo, dormia com a marola, acordava, corria na praia, nadava. Depois de um mês, aquela solidão, aquele barulho do mar me irritava, não tinha mulher naquele negócio, não comi ninguém, não tinha nada. Deu seis meses, voltei pro Rio. Guto Lacaz - O livro é mais autobiográfico? Não, é imaginativo. Romance é que nem tijolo, é um atrás do outro. Eu falava: "Vou escrever tantas páginas por dia". Comecei com cinco. Aí, caiu pra três, depois ficou uma. Sérgio de Souza - Levou quanto tempo? No processo levei de seis a sete anos, mas fiquei dez anos envolvido com o livro. Eu parava, voltava, reescrevia várias vezes. Datilografia! Depois que fui ter computador, eu sou velho! Marina Amaral - Quantos anos você tem? Eu tenho 44, calibre de revólver! Ferréz - E o que você usou da pesquisa da Alba? Na verdade, é o seguinte: se eu fosse contar a realidade como ela era, seria impublicável. Sérgio de Souza - Se fosse no livro? E aqui, você pode contar? Aqui eu posso contar. A realidade não cabe na literatura. Você não pode pegar a realidade e transformar em literatura, senão vira documento, vira reportagem. Se você contar a vida de cada personagem tal como ela é, no fim não vai. Então, tem coisas que estavam acontecendo na Cidade de Deus no momento em que eu estava vivendo ali, na década de 60, e eu fazia colagem, pegava o astral e inventava, tem muito mais criação do que 70 narrar tal como é. Eu estava a fim de fazer ficção. Já vinha da poesia, já estava envolvido com isso. Eu era poeta concreto, como todo mundo foi. Nos anos 80, todo mundo era concretista, a gente lia tudo do Augusto de Campos, Haroldo, Décio Pignatari, as traduções, as transcrições, vivia discutindo aquilo, aquela briga deles com o Affonso Romano Sant´Anna, com Ferreira Gullar, que foi a grande polêmica, em que o Roberto Schwartz se meteu também. Eu estava vivendo aquele momento, que era de uma efervescência cultural muito grande. Depois disso não teve mais uma polêmica grande na literatura, uma "briga" de intelectuais. Isso é muito do Brasil, o intelectual do Brasil é muito parado. Eu estava em Cuba agora, no prêmio Casa das Américas, daqui do Brasil fomos eu e o Moacyr Scliar, para julgar os brasileiros. Tinha uns sessenta intelectuais da América do Sul, da América Central, da do Norte, não. Tinha até uma americana, mas não estava representando o país, e você vê que os intelectuais latinos são muito ativos, têm uma participação política muito forte. E aqui no Brasil, o intelectual, a universidade, que é tão importante, ela fica meio de fora da discussão, do debate. Guto Lacaz - Cidade de Deus estigmatizou a sua vida? Agora, você vai ter de escrever só sobre esse assunto ou tem outros planos? Vamos botar Machado de Assis, Guimarães Rosa, José Lins do Rego... Às vezes, quero mudar, mas José Lins do Rego, por exemplo, vamos ver os romances dele, só com O Moleque Ricardo é que ele saiu do engenho; o Machado de Assis é Rio de Janeiro, aquela coisa da existência; o Guimarães Rosa é o sertão. Fiquei muito preocupado com isso, foram dez anos de pesquisa, escrever um livro só e jogar esses dez anos fora? Tem muita coisa para dizer ainda sobre esse universo. Mauro de Queiroz - O Estácio tem uma mística: "Se alguém quer matar-me de amor, que me mate no Estácio". Você não escreveu nada sobre o Estácio? O livro que eu vou escrever agora passa pelo Estácio, mas o Estácio está perigoso. No Estácio. o bicho pega. Mauro de Queiroz - Estou falando "daquele" Estácio. Vou escrever sobre "aquele" Estácio, vou passar por lá porque tem a zona do baixo meretrício, que era interessante - no livro do Sérgio Cabral, o pai, Escolas de Samba no Brasil, ele conta várias histórias que me interessaram, sobretudo que o Nelson Cavaquinho e o Cartola faziam show na zona. Sérgio de Souza - No Mangue? É, no Mangue, e também cantavam na rua Maia Lacerda. Eu morava na São Cláudio, passava com a minha mãe e via aqueles caboclos tocando no bar, ela mudava de rua porque dizia que eram todos bandidos, marginais, eu olhava aqueles caras tocando e bebendo e tinham mesmo um aspecto meio marginal, tocando violão de manhã, virando a noite, depois vim saber que esses bandidos eram Cartola, Nelson Cavaquinho, essa rapaziada, e pensei: "Vou escrever sobre isso". Porque isso foi quando eu estava com 4 anos, eram os anos 60, época do golpe de 64. Trecho 2 Flávia Castanheira - Mesmo com o sucesso, a polícia te pára, te dá dura? Uma vez estávamos eu, o Marcelo Yuca e o Macarrão do Planet Hemp - também, com essa "quadrilha"... Aí, quando o policial viu o Marcelo Yuca, a gente vinha do estúdio, o carro cheio de instrumentos, os caras ficaram uma hora com a gente. Um deles já tinha sido pegado fumando maconha por aquele mesmo policial, que perguntou: "Você fuma?" Ele disse: "Fumo". "O quê?" "Cigarro e maconha." Perguntou pra mim: "Você fuma?" Eu não, não fumo maconha, e o Marcelo Yuca também não. Também, só negão, né? Uma outra vez, eu estava saindo pra filmar Cidade dos Homens, 5 e meia da manhã, moro em Santa Teresa, desci pelo Cosme Velho, ali pela casa do Roberto Marinho, e vai o motorista me pegar, o Mantra, que também é negão, o assistente é negão e eu, diretor - com a Kátia Lund, negão. O cara parou o carro e o documento estava vencido, o motorista falou: "O Paulo Lins está aqui, o cara do Cidade de Deus". E o policial: "O que, ele está aí? Sai do carro todo mundo!" Multou, revistou todo o carro. Numa outra, o policial perguntou: "Você é o Paulo Lins, né? Meu amigo, sai do carro e fica bonitinho". Sérgio de Souza - Você está sujo com a polícia? Não estou sujo, não. Eles pegam, dão uma geral, mas nunca me molestaram. Tem policial que me cumprimenta também. Tem um em Santa Teresa que passa no bonde, me vê e grita: "Paulo Lins!" Natalia Viana - E a bandidagem? Com a bandidagem é tranqüilo, sempre foi. Ferréz - O Paulo se sai muito bem dessas situações. Uma vez, eu estava no Rio, no hotel, ele foi me buscar e sentou no sofá, tomando uma cervejinha, e o cara me falou: "Por favor, espera um pouco que estão chamando a polícia, tem um rapaz suspeito aqui no hotel". E eu: "Pô, é o Paulo Lins, cara, do Cidade de Deus". Também, do jeito que eu estava, não posso reclamar. Não gosto de loja, não sou consumista, roupa geralmente as pessoas me dão, também não tenho problema de andar mal arrumado, tem dia que eu saio com remela no olho, e naquela situação eu estava pedindo, estava com uma samba-canção. Marina Amaral - Você estava só com uma samba-canção? Cueca samba-canção e pulôver... Wagner Nabuco - Na infância, na adolescência, você percebia racismo na classe média em geral ou só da polícia. Tem certos lugares em que até hoje eu vou e me sinto meio acuado. Aqui em São Paulo tem lugares em que eu vou que tem muito segurança nas ruas e ficam te olhando, pegam naquele cinturão, aqui assim. E no Rio, Ipanema, Leblon, Barra, quando vou em certos lugares, não me sinto dali, me sinto mal, até hoje tenho isso, quando criança ainda mais. Sérgio de Souza - Você conhece a periferia daqui? 71 Conheço, o Ferréz me levou. Sérgio de Souza - Qual SERIA a diferença entre o morro e a nossa periferia? A periferia daqui parece a Baixada Fluminense, não tem morro, mas o clima é o mesmo, só que aqui é muito grande. Aqui tem mais nordestino e lá tem mais negro. O Brasil é a questão do mestiço, do índio e do negro, são trezentos anos de colonização, quatrocentos de escravidão, duas ditaduras e o Brasil é isso. Pela história do Brasil, está muito bom hoje, se for pensar que tem 503 anos e teve quatrocentos anos de escravidão. Guto Lacaz - Você é um otimista? Pelo andar da carruagem, pela sua história, acho que o Brasil até está indo bem. Trecho 3 Natalia Viana - Você escreve porque acredita em mudar a sociedade com os escritos? Na verdade, eu queria que o pessoal da favela lesse. Tem muitas pessoas lá, tanto potencial, tanta gente boa que, se tivesse um pouco mais de instrução, um pouco mais de acesso... Guto Lacaz - A fama não te deu esse instrumento? A Globo Filmes e o Sesc me chamaram para fazer um projeto na Cidade de Deus. Eu vou encaminhar esse projeto. Mas é muito pouco. É aquele negócio, é acabar com a fome. Se o presidente fala "vamos acabar com a fome", é porque é um país que passa fome. O resto é brincadeira. Como é que vai pedir dinheiro pra educação, como é que vou pensar em livro, em educação, se nego está passando fome? Agora, eu acho que um projeto de leitura no Brasil tem de ser implementado, não só pros pobres, pros ricos também, porque o livro forma cidadãos. Marina Amaral - Você acha que essa juventude seduzida pelo tráfico é seduzida só pelo dinheiro ou tem um potencial político, transformador, que não está sendo canalizado para outro lugar? Que de repente um PSTU subisse o morro e pegava a meninada pra uma coisa política, ou o negócio é a grana e o glamour do traficante sendo bandido? Ninguém vira bandido de uma hora pra outra, "vou ser bandido", isso não existe. Existe, Ferréz ? Ferréz - Não. Não é assim, não, o processo é lento, doloroso, cruel. É devagar e pega crianças na idade escolar. Ninguém quer ser bandido porque é duro ser bandido, não é fácil. Marina Amaral - Mas não tem um fascínio pelo Comando Vermelho, por exemplo? É lógico que tem um fascínio, porque é criança. Se o PSTU fosse na favela, e desse resultado... Um dia, um moleque falou pra mim: "Vou sair pra maladragem". Eu digo: "Por quê?" "Porque não vou carregar peso, não vou ser trocador, não vou ser porra nenhuma." "Vai estudar." "Vou estudar, como? Em casa não tem comida, como é que eu vou estudar?" Morreu, era meu camarada, conheço a família toda dele. Marina Amaral - Mas e se o PSTU subisse o morro e desse resultado? Se desse grana, se desse poder, mas isso não acontece. Agora, é lógico que depois, por osmose com os presos políticos, os bandidos comuns tiveram uma ideologia, a Falange Vermelha foi troço bonito, conseguiu acabar com a violência na cadeia, mandou carta pra a Anistia Internacional, a história do CV também é bonita. O Japonês fala isso no filme do João Moreira Sales, começaram a dividir as coisas e acabou com a violência na cadeia. Por exemplo, se você chega numa favela por um comando, tem leis mas você vive seguro. Se você não se meter - não estou defendendo bandido, não, estou falando o que é realidade -, em qualquer favela que você morar, se você não se meter com a malandragem ela não se mete com você. Vai quem quer. Marina Amaral - Mas não te obrigam a esconder bandido, armas, esse papo que a gente escuta? Isso é viagem. Vai quem quer. Rafic Farah - Eu queria chegar no fascínio pela bandidagem. Todo o adolescente tem fascínio. O Ed Rock fala isso na música dele, que o adolescente se espelha em quem está mais perto. Mas é o seguinte: não é muita gente, não, são poucas pessoas. O problema da favela é o álcool, não é a cocaína nem a maconha, e ninguém fala isso. As famílias ficam desorganizadas por causa do álcool. Quantas pessoas morrem de cirrose, quantos jovens que bebem. Marina Amaral - Mas você acha que existe um potencial revolucionário, por exemplo, o Marcinho VP com aquela tentativa política, você acha que é pura mentira? Não. O Marcinho é meu amigo. Marina Amaral - Então, você acha que aquele movimento dele era real? Acho. O Marcinho VP é uma pessoa que falava da sociedade com uma clareza muito grande, e existe muita revolta hoje em dia, muita gente revoltada. Atiraram agora em dois hotéis, no Glória e no Meridien, aí vi uma entrevista do chefe da rede hoteleira dizendo que o Rio de Janeiro perdeu 30 milhões porque ia ter um congresso da ONU aqui e perdeu 30 milhões. Pra onde ia esse dinheiro? Lá pro pessoal que atirou? ia pro favelado? Não ia, então, meu amigo, nego está revoltado, e acho que é de direito o sujeito pegar e seqüestrar, a situação que o sujeito vive, que passa fome, é de direito o cara dar tiro. No Rio tem menos, em São Paulo tem mais, muita gente que aparece com carrão importado, mas aqui a periferia está longe. Ferréz - Você acha que é de direito roubar quem tem? Acho. Natalia Viana - E matar? Acho. Estou falando uma coisa politicamente incorreta, vagabundo vai cair em cima de mim e eu sei disso. E não vou responder. Mas é assim. Vai no hospital! A minha mãe morreu por falta de atendimento médico, ela ia no hospital e marcavam para um, dois anos depois, morreu do coração. Eles davam aqueles remedião e ficava dois minutos e pronto. Não tem assistência médica, não tem comida, não tem dignidade nenhuma, não tem casa, não tem nada. 72 Natalia Viana - E você não ficou revoltado, não pensou em matar? Fiquei. Escrevi Cidade de Deus. Flávia Castanheira - Em algum momento da adolescência você se envolveu com a criminalidade? Tem um amigo meu que falava assim: "Pô, Paulo Lins, se tu não fosse favelado, tu ia ser viadinho, ia morar no Leme, no Leblon...". Mas, vem cá, é muito difícil a pessoa entrar na criminalidade, muito difícil. Trecho 4 Ligia Morresi - Mas volta ao filme, o que achou errado no Dadinho? O Dadinho é meio lombrosiano. Acho que o Lombroso baixou no Dadinho, acho que o Dadinho nasceu muito ruim. Não tinha motivo pra ele ser tão ruim assim. Isso no filme. No livro, não. Ferréz - Eu queria saber o que sobrou das amizades da Cidade de Deus hoje e o que é o Paulo Lins hoje, fora da Cidade de Deus. Eu sou isso que está aqui. O Paulo sou eu que você conhece. Na Cidade de Deus não sobrou amizade. As amizades são as mesmas. Quem é amigo, é amigo. Agora, são 200.000 pessoas. Não sou amigo de todo mundo. E tem amigo, como de todo mundo aqui, que passa pela sua vida e volta. Depois que eu fiquei famoso sou uma pessoa famosa, né? sou famoso! -, tem amigos de vinte anos que nunca mais vi e que querem ser meus amigos de novo, não dá! Agora, os amigos de verdade continuam sendo meus amigos. Ferréz - Continuam indo na sua casa, participando da sua vida, até onde abrir a mente pro mundo te distanciou? Não. As pessoas novas... no avião, por exemplo, entro no avião, todo mundo me reconhece e ficam olhando pra minha cara assim... mas é normal. Isso não me atrapalha. Não tenho problema de ser famoso, estou tranqüilo, vou à praia, ao supermercado. E também tem o seguinte: não sou superfamoso, não sou a Xuxa. Sérgio de Souza - Você é feliz? Não. Feliz é o papa, feliz é o Lula. Feliz é o Bush. Não, tô brincando. Acho que ninguém é feliz, nem triste, né? Ferréz - Nem com a realização do trabalho cem por cento, o reconhecimento do trabalho? Não, sofre muito, bicho. É muito ataque, processo, porrada, o Tom Jobim estava certo, sucesso no Brasil é uma merda. É assim: quando o livro saiu, tudo certo, rolou dinheiro, o livro bateu recorde, aí nego acha que eu tô rico. Eu não tenho grana pra pagar, eu tenho processo na Justiça, de várias pessoas. Imagina, são quinhentas personagens. Ferréz - Foi por isso que você mudou o livro na segunda edição? É. Porque não vai dar, não vou poder mais andar. Quando saiu o negócio do Oscar, rezei pra não entrar. Aí eu estava no carro, com minha mulher e minha filha, veio um sujeito bêbado: "Paulo Lins, eu sou parceiro, tu não ganhou o Oscar, mas tu é do coração. O Oscar brasileiro é meu. Você falou de mim...". Tem pessoas assim, que falam isso. Lá na favela acontece. Um cara foi preso. Fui criado junto com ele, aí ele mandou recado me pedindo: "Fala a verdade". Pediu pra eu falar a verdade. Aí fico assim pensando, o que eu faço?, não posso falar a verdade no livro. Marina Amaral - Mas que processos são esses? Processo, todo mundo fala: "eu sou fulano", "eu sou sicrano". Depois que surgiu o filme, antes não. Tem um caboclo que pediu 900.000 de direitos e não tem o nome no livro. Natalia Viana - Mas os nomes são os verdadeiros? Teve nome que eu botei o verdadeiro. Mas não são as pessoas, eu estava numa situação muito infantil. Sou apaixonado por livros, queria que o pessoal lesse. Aí tem um lá que chegou pra mim e falou: "Mas, então, Paulo Lins, tu vai fazer um livro, mas ninguém lê aqui". "E se eu botar o nome de algumas pessoas?" Aí ele disse: "É, bota o nome de algumas pessoas". Eu disse: "Mas não é a pessoa, eu criei, inventei esse personagem". "Bota os nomes, bota os nomes, que o pessoal vai ler." O cara é leitor, é escritor, advogado, acreditando nessa coisa que o pessoal vai ler... Não quero que o pessoal leia só Cidade de Deus, que leia só livros de esquerda, quero que leia Fernando Pessoa, Machado de Assis, Maiakóvski, Baudelaire, Heidegger... Ferréz - Então, você foi influenciado para pôr o nome real das pessoas? É, falaram pra mim: "Se você não botar os nomes, ninguém vai ler". Aí eu botei o nome. Mas não são esses personagens. Eu criei. Mas ninguém leu, não adiantou nada, só veio processo. Sérgio de Souza - Que autor ou atores fizeram a sua cabeça? Fiquei encantado com Balzac, Dostoievski, aí tem o Marçal Aquino, tem o Mauro Pinheiro, do Cemitério de Navios. Tem Guimarães Rosa, Lima Barreto, Machado de Assis. José Lins do Rego tem o Fogo Morto, esse livro é de uma poesia... É tripartido, eu fiz tripartido, são três histórias, eu copiei esse livro, roubei. Só que botei na versão urbana. Recomendo aqui assim: antes de ler o Cidade de Deus, leia Fogo Morto. Mauro de Queiroz - Graciliano? Graciliano também é outro. O Graciliano, rapaz! Vidas Secas, São Bernardo - é, roubei muito dali também. Roubei do Lima Barreto, do Dostoievski... ah, tem que roubar... Ferréz - Tem um amigo meu, o Ademir, que diz que o Marçal Aquino escreve o que a maioria das pessoas não reconhece, que só a gente que é xarope percebe. O Marçal escreve uma história e por baixo tem uma outra história que só a gente vê. Você acredita nisso? O Marçal é um grande escritor brasileiro. Tenho esse privilégio: até artigos de jornal eu mando pra ele corrigir, ele corrige na hora e manda de volta. Mas antes do Marçal tenho duas pessoas que são fundamentais na minha carreira. Eu só escrevi o livro por causa de duas pessoas. Não foi por causa do Roberto Schwartz, não foi por causa do Paulo Leminski e não foi por causa da Alba Zaluar. Foi por causa da Virgína de Oliveira Silva e por causa da Maria de Lourdes da Silva. A Maria de Lourdes foi a fundamental. Se eu não estivesse junto com ela, o 73 livro não sairia. O nome dela eu vou repetir: Maria de Lourdes da Silva, pernambucana, historiadora, mãe da Mariana, minha filha. Ela desenhou o livro na minha cabeça, falou "faz isso, isso, isso", corrigiu o livro. A Virgínia deu forma. Uma deu conteúdo, a outra deu forma. Eu daria co-autoria a Maria de Lourdes, mas ela não quis. Ela é co-autora do Cidade de Deus. É mulher, é por isso que eu gosto de mulher. Nordestinas, as duas. CA75_jun_2003 A entrevista começou com um não. “Com a revista Caras eu não falo, não. Que me respeitem!” Essa foi a resposta de Ariano Suassuna ao não entender bem o recado deixado pela Caros Amigos em sua secretária eletrônica. Desfeito o engano, o polêmico escritor recebeu os jornalistas em seu casarão, um verdadeiro monumento à cultura brasileira, no bairro de Casa Forte, às margens do rio Capiberibe. Assim como seu engraçado personagem Chicó, de O Auto da Compadecida, Ariano é um grande contador de histórias, entremeando suas opiniões com causos e contos populares. Apesar de toda a poesia nas entrelinhas, ele diz tudo na bucha. Até porque, como ele mesmo gosta de lembrar, não é “homem de ficar em cima do muro”. Trecho 1 Mariana Camarotti - A gente sempre pede que o entrevistado comece falando da sua infância, que faça assim um mergulho... Você quer ir perguntando? Eu agradeço. Pra eu disparar assim... Marco Bahé - Qual é a recordação mais antiga da sua infância? A recordação mais antiga é eu muito menino, dentro de uma rede e chorando, porque minha mãe, que estava me balançando, tinha saído e sido substituída por uma prima nossa, chamada Amélia. Eu era muito menino mesmo. A segunda coisa de que me lembro é eu quebrando o braço. E sei exatamente o dia, 19 de março de 1929, quer dizer, sou de 16 de junho de 1927, tinha 1 ano e poucos meses. Sei que era o dia de São José porque minha mãe me disse um dia. Então, ela ficou espantada e falou: "Só acredito que você se lembra se disser onde foi que consertaram seu braço". Aí eu disse: "Foi em cima de uma mesa amarela". Aí caiu o queixo dela mesmo. "E o que foi que você comeu?" "Uma banana." Porque, quando terminou, o médico mandou me dar uma banana pra ver se eu segurava e descascava a banana. E eu segurei e descasquei a banana. Então, as duas lembranças mais longínquas que tenho da infância são essas. Mariana Camarotti - E isso já foi em Taperoá? Não, foi na Paraíba, porque nasci na Paraíba (antigo nome da capital paraibana). Aliás... Inácio França - Você nasceu no palácio, não foi? Foi, nasci no palácio por um acaso, porque meu pai governava o Estado nesse ano. Estive lá recentemente. Uma irmã mais velha me levou no quarto. Mas foi uma desmoralização! Estava lá o quarto com uma mesa e um computador, no quarto onde eu nasci! Isso é uma falta de respeito... Inácio França - Soube que o senhor foi convidado pelo governo da Paraíba para receber uma homenagem lá em João Pessoa e... Já sei a história que você quer contar. É a história de que fui barrado... Inácio França - Isso. Não foi, não. Estava tendo um congresso de crítica literária. Fui, como convidado, e apresentei um comentário sobre José Lins do Rego, que era o tema central do congresso, uma homenagem a Zé Lins, na terra dele, não é? Bom, aí o governador da Paraíba, o doutor Pedro Gondim, convidou os participantes do congresso para um almoço no palácio. E eu fui. Aí quando fui entrando, o guarda me proibiu. Disse: "O senhor não pode entrar, não". Aí eu disse: "Por quê?" "Porque está sem gravata." Aí digo: "Veja como são as coisas. Esta é a segunda vez que estou entrando neste palácio. A primeira vez entrei nu e ninguém reclamou. E agora, só por causa de uma simples gravata...". Aí, o guarda ficou espantado, olhando pra mim. Então, o doutor Pedro Gondim disse: "Não, ele nasceu aqui, por isso está dizendo que entrou nu". E realmente entrei nu, porque todos nascemos nus, não é? Marco Bahé - A relação com a família como era? Você tem muitos irmãos, não é? Tenho. Sou o penúltimo de uma família de nove. Mas na família de meu pai não éramos considerados uma família grande, não, porque um irmão dele deixou dezesseis filhos e um outro deixou 25. A contagem nossa foi até modesta. E consegui para meus netos uma coisa que acho que eles vão me ser muito gratos. A mim e aos pais deles. Porque a minha casa, essa casa aqui, tinha um terreno muito grande, ia até a outra rua. Então, no quintal, três filhas construíram casas. De maneira que a minha casa ficou cheia de netos, aqui estão convivendo atualmente onze netos. Diana Moura - Isso não lhe atrapalha, não, para escrever o romance? Não atrapalha nada. Em primeiro lugar, quem atrapalha são os jornalistas. Não, não, estou brincando! Mas, viu, eles não atrapalham, não. Já se habituaram e respeitam a hora que trabalho. Eu mesmo já me habituei. Me incomodo com barulho. Se você ligar um rádio ou uma televisão não escrevo mais nada, mas barulho de menino não me incomodo, não. A não ser que seja briga, ou choro causado por queda, aí me incomodo, mas aí está no normal. Além de escritor, sou antes de tudo avô e pai. Diana Moura - Você costuma trabalhar ouvindo alguma música, que seja de sua escolha? Não gosto, não. Gosto muito de música, e a música me solicita. Não sei botar uma música pra ficar fazendo pano de fundo. Ou presto atenção à música ou presto atenção ao que estou escrevendo. Mariana Camarotti - E, pra escrever, você tem algum escritório? 74 Tenho, sim. É esse quarto aí. Mariana Camarotti - Se isola? É. Trecho 2 Marco Bahé - O senhor falou da figura mítica que SERIA seu pai. Essa relação com ele como foi, o que ficou no final? Diana Moura - Complementando, o que tem dessa história na sua literatura? Pensei por várias vezes fazer uma biografia do meu pai, mas não tive condições emocionais, me machucava tanto que deixei pra lá. Aí tentei fazer um longo poema sobre ele. Porque a poesia dá um distanciamento maior. Um longo poema sobre ele chamado "O Cantar do Potro Castanho". Mas também não consegui. Mexeu muito comigo. De novo abandonei. Aí deixei isso pra lá e em 1958 comecei a tomar as notas para o livro que depois foi o Romance da Pedra do Reino. Escrevi várias versões, como sempre faço. Tenho uma irmã, Germana, cujo gosto eu confio muito. Uma das versões que eu terminei levei pra ela. Eu não sei se alguém aqui já leu Pedra do Reino. Inácio França - Já procurei muito, mas não encontrei. É um pouco culpa minha. Lá existe uma cena, é o seguinte: Quaderna tem uma admiração muito grande pelo padrinho dele que se chama dom Pedro Sebastião Garcia Barreto. Quaderna é o narrador da Pedra do Reino. Aí, esse padrinho dele um dia se descobre que morreu dentro de um quarto. Assassinado. Dentro de um quarto onde ele entrou e trancou por dentro. Miguel Falcão - Olha o romance policial aí... Pronto, exatamente. Vocês sabem quem é um jovem, quer dizer, pra mim é jovem, não sei pra vocês, um jovem escritor paraibano chamado Bráulio Tavares? Gosto demais de Bráulio. É um entusiasta do romance policial. E escreveu um trabalho sobre a presença do romance policial na Pedra do Reino. E ele diz lá que a situação é uma situação emblemática do romance policial, que é a morte e crimes em quartos fechados. Tem uma parte do livro em que o juiz corregedor diz: "Mas não ficou nenhuma pista dos possíveis assassinos?" Aí Quaderna diz: "Ah, com pista é brincadeira!" Com pista só se parecia com romancezinhos estrangeiros bestas. Com o meu, as histórias não têm pistas. Aí, ele disse: "Não tem pista nenhuma. Nem vela dobrada, nem alfinete novo...". São dois livros de Edgar Wallace e eu prestei homenagem: a pista do alfinete novo e a pista da vela dobrada. A história foi a seguinte: o assassino entrou, depois fechou a porta por fora e deixou a trava de ferro com uma vela queimando, aí a vela foi queimando e a trava fechou. Então, a única pista era essa vela. Agora repare. O tio e padrinho de Quaderna, que é o narrador da Pedra do Reino, é encontrado nesse quarto fechado por dentro. Aí o camarada diz: "Mas não foi suicídio?" O juiz diz: "A natureza dos ferimentos afasta essa hipótese". Miguel Falcão - E o crime fica sem solução? Fica. Eu digo que vou decifrar, mas nunca terminei a Pedra do Reino. Bom, quando eu dei a essa irmã para ler, ela olhou pra mim e disse: "Ô, Ariano, você notou que isso é a morte de João Dantas?" João Dantas foi o assassino de João Pessoa, e morreu aqui na Detenção, onde hoje é a Casa da Cultura. E vi que foi pelo fato de João Dantas, primo legítimo da minha mãe, ter matado João Pessoa que assassinaram meu pai. Então veja, sem eu querer, foi uma coisa subconsciente, eu tinha colocado a morte de João Dantas na Pedra do Reino. Quer dizer, a Pedra do Reino era uma maneira ficcional de eu contar os acontecimentos de 1930. Trecho 3 Mariana Camarotti - Quando e como você começou a escrever? Comecei a escrever com 12 anos. Escrevi um conto. Um conto horroroso. Meus irmãos até brincavam comigo - e era verdade porque comecei mesmo no teatro a escrever tragédia, só passei a escrever comédia a partir de 1951 -, meus irmãos então diziam que no meu teatro morriam todas as personagens. Eu tinha escrito uma peça e só escapava um. E ele dizia: "Suicido-me por solidão!" Aí fui prestar atenção e até nas minhas comédias, na mais conhecida, o Auto da Compadecida, morre todo mundo. Mariana Camarotti - Metade da peça se passa no céu. Eles diziam que era quando eu não sabia o que fazer... Marco Bahé - Quando você se sentiu escritor? Escrevi esse primeiro conto, depois escrevi poemas. Aos 17 anos tentei escrever uma peça. Havia um médico de Taperoá, muito culto, chamado Abdias Campos, e ele tinha as peças de Ibsen. Me emprestou e me impressionei profundamente com as peças de Ibsen. Tentei escrever aos 17 anos uma peça sob influência de Ibsen. Mas, como você bem pode imaginar, havia uma diferença muito grande do menino sertanejo... porque o sertão tem muito pouca coisa em comum com a Noruega, não é? Então, não sei se por causa disso, não consegui terminar a peça. Diana Moura - Não matou ninguém... Não matei ninguém. Aí, continuei a escrever poemas e, aos 18 anos, no colégio, tive um professor de geografia que era interessado em literatura. Quando foi um dia, ele passou uma prova lá e eu não estava preparado... aí taquei literatura. Era uma prova sobre aspectos do relevo brasileiro. Eu falei sobre Drummond, Aleijadinho, falei o diabo, só não falei do relevo. Me lembro que tinha alguns nomes como o rio São Francisco, o rio Amazonas, Planalto Central e as coxilhas do Rio Grande do Sul... Então ele foi entregando as provas e disse: "Essa aqui eu deixei pro fim porque quero conhecer o autor, que pode não ser bom em geografia, mas gosta de literatura". Eu disse: "Fui eu". Aí ele pergunta se eu gosto de literatura e se escrevo. Aí eu digo: "Escrevo". "Escreve o quê?" 75 "Escrevo poesia." Ele disse: "Me traga um poema". Aí, na aula seguinte eu levei. Ele pegou e disse: "Você pode me emprestar?" Eu digo: "Posso". Rapaz, ele me fez uma surpresa... que alegria! Quando foi no domingo, abri o Jornal do Commercio, estava publicado. Foi em 7 de outubro de 1945. A partir daí, passei a publicar lá. Aos 19 anos entrei para a Faculdade de Direito e conheci Hermilo Borba Filho, que exerceu uma influência muito grande em mim na parte de teatro. Ele leu meus poemas, que já eram ligados ao romanceiro popular do Nordeste, e disse: "Você precisa conhecer o teatro de García Lorca". E me colocou nas mãos o teatro de García Lorca. E esse, sim, desempenhou um papel muito importante na minha formação de escritor, porque a região que ele descrevia parecia com a minha, não é? Tinha cavalo, tinha boi, tinha cigano do mesmo jeito que Taperoá. Muito diferente da Noruega... Diana Moura - Qual o seu conceito de identidade cultural brasileira? Uma vez, eu discutindo com um professor aqui da universidade, eu era professor de história da cultura brasileira e ele queria mudar o nome da matéria que eu ensinava, porque dizia que não existia cultura brasileira. Ele dizia: "A cultura brasileira é apenas um episódio da cultura ocidental, deveria ser história da cultura no Brasil". Aí eu disse: "Olhe, que a cultura brasileira é um episódio da cultura ocidental eu sei, estou de acordo. Mas isso não quer dizer que não exista a cultura brasileira. E vou lhe provar. Do mesmo jeito, a cultura espanhola é um episódio da cultura ocidental, mas existe cultura espanhola. Você ouve uma música espanhola e sabe imediatamente que é espanhola. Quanto mais García Lorca ou Cervantes, não é?" Quer dizer, o romanceiro cigano, de García Lorca, só poderia ser escrito na Espanha. Toda obra, para ser internacional, é local. Mais do que nacional, ela é local, queira a pessoa ou não queira, porque ela vai ter a marca da sua terra, o seu lugar de origem. Então, quando García Lorca diz "Mi soledad sin descanso! Ojos chicos de mi cuerpo / y grandes de mi caballo / No se cierran por la noche/ Ni miran al otro lado/ donde se aleja tranquilo/ Un sueño de trece barcos...", isso só podia ser escrito na Espanha, em lugar mais nenhum. Então, quando você vê um poema meu, brasileiro que se criou no sertão e mora no Recife... Trecho 4 Mariana Camarotti - Não dá pra lhe entrevistar sem falar do Movimento Armorial, de onde surgiu essa linguagem escrita, pintada, cantada, dançada... Como esse universo é ligado muito ao universo do romanceiro, então fiz uma ligação com o universo do folheto tanto da parte literária quanto da parte pintada. É por isso que tem alguma coisa da gravura popular. Outro dado da minha paixão pelo Brasil literário e pelo Nordeste em particular é que comecei imediatamente a me rebelar porque li num cartaz numa exposição realizada em São Paulo que tinha assim: "Arte do Brasil". Eles são adeptos da mesma idéia daquele professor universitário, não existe arte brasileira, existe arte do Brasil. Então dizia: "Arte do Brasil, uma história de cinco séculos". Quer dizer, só começou a arte quando os portugueses chegaram. Aí eu digo, peraí, e a arte indígena, o teatro, a dança, a cultura indígena? E comecei a me interessar pela cultura rupestre. Se você olhar a Pedra do Reino, tem desenho baseado na pintura rupestre. E muitos desses desenhos que você vê aí são baseados na pintura rupestre. Quer dizer que comecei a integrar no universo brasileiro essa pintura de muitos anos antes de Cristo. As pessoas pensam que só me interesso pela cultura ibérica, hoje mesmo recebi um recorte do jornal Le Monde dizendo que só me interesso pela cultura ibérica. Falo da importância da cultura ibérica, mas falo também da japonesa. Gosto muito do cinema japonês, acho que tem muito a ver com a gente. Agora, então, o Movimento Armorial tinha duas preocupações. Em primeiro lugar, lutar contra o processo de descaracterização e vulgarização da cultura brasileira. Em segundo lugar, procurar uma arte erudita brasileira baseada nas raízes populares da nossa cultura. Era esse o programa do Movimento Armorial. Mariana Camarotti - E o Movimento cumpriu esse papel ou ainda falta muito? Oxente! E eu é que vou dizer, é? Eu sou suspeito. É melhor vocês dizerem. Acho que ajudei muito, que ajudou muito. Veja bem, não tenho mania de grandeza, não, mas isso que chamam a cena musical pernambucana moderna nasceu com o Quinteto Armorial, não foi? Então, não é à toa que Antônio Nóbrega tocava rabeca e Siba toca também. Siba é do Mestre Ambrósio, não é? Isso foi uma vitória do Movimento Armorial, chamar a atenção para esse tipo de música. A MPB brasileira era uma música feita não pelo povo, mas pela classe média, não é? Os grandes nomes da MPB são todos da classe média como nós. Agora, chamar a atenção para os tocadores de rabeca e de viola, quem chamou foi o Movimento Armorial. Diana Moura - É possível viver nas grandes cidades brasileiras e não se deixar influenciar por esse bombardeio de referências da cultura de massa, e esse esforço de não se influenciar pode gerar a cristalização de uma cultura que se chama assim, folclórica, tipo maracatu cristalizado, aquele caboclinho cristalizado, etc? Eu não quero cristalizar coisa nenhuma e nem que eu quisesse não se cristaliza não, porque a arte popular é profundamente dinâmica. Juro que não faço esforço nenhum para não ser influenciado, só deixo me influenciar o que eu quero. Tem uma frase de Thomas Mann que me tocou profundamente. Ele disse: ninguém pode sofrer influência daquilo que lhe é estranho, que lhe é alheio. Você só vai se influenciar por uma coisa que você já tem dentro de si e que talvez você não soubesse que ia se revelar. A arte popular é profundamente dinâmica, é formidável nela a capacidade de absorver elementos estranhos. Dou sempre esse exemplo: quando o homem chegou à Lua pela primeira vez eu não vi nada que se aproveitasse. Quando menino vi um seriado chamado Flash Gordon no Planeta Mongo, que me deu muito mais sensação de conquista do espaço do que aquela porcaria. É um negócio feio, rapaz, horrível, a roupa dos astronautas era horrorosa, uns sapatos de chumbo, e eles andando tudo assim, com medo da falta de gravidade... um negócio feio, desgraçado. Flash Gordon era 10 mil vezes melhor. E a literatura que saiu? Nunca vi coisa pior não, no mundo todo. Chegavam os jornais, aquela idiotice... Pois bem, a única coisa boa que eu vi foi de um folhetista chamado José Soares, que se assinava 76 poeta-repórter. Ele fez uma descrição - taí, isso é que é a lição que os nossos artistas de classe média deviam pegar, porque não há coisa mais feia do que uma roupa de astronauta. E a descrição dele da roupa era boa porque ele descreveu nos termos da cultura dele. Era como se estivesse descrevendo uma roupa de vaqueiro e de cangaceiro. Veja que coisa bonita, ele disse assim: "Os astronautas trajavam calça, culote e colete/ No guarda-peito de aço..." - guarda-peito é uma peça do vaqueiro, não é verdade? Então "Os astronautas trajavam calça, culote e colete/ No guarda-peito de aço/ desenhado um ramalhete/ E cada um com uma estrela de prata no capacete." A gente vê logo o chapéu do cangaceiro. Foi a única coisa boa que eu vi. Outro dia perguntaram a mim: "Mas você quer manter os cantadores numa redoma?" "Eu não disse isso não." "Mas você não acha que é bom pra eles ver televisão?" Eu digo: "É. Televisão eu vejo também. Agora, é preciso olhar com um olhar crítico. Filtrar, saber o que pega dali e o que não pega, porque se eles forem pegar eles se lascam, vão terminar é fazendo Robocop, não é?" Inácio França - Eu queria voltar à universidade. Como surgiu a idéia da aula-espetáculo? Quando fui seu aluno, era uma ampliação do seu universo de sala de aula e o senhor ganhou o Brasil todo com um público universitário como se fossem seus alunos. Quando completei 70 anos, o Jornal do Commercio fez um caderno e uma professora universitária chamada Nely Carvalho disse que eu, na universidade, já dava aula-espetáculo. Mas comecei a dar as aulas-espetáculo como programa quando me tornei secretário. Inácio França - E a aula-espetáculo virou uma marca sua, não é? Pela importância para a cultura brasileira. Inácio França - Em meio a um bombardeio de informações, o que leva os estudantes a lotarem as suas aulasespetáculo? É porque eu falo a verdade. E eles sabem que não estou mentindo. Eles podem até discordar, mas sabem que aquilo é aquilo. Acho que a primeira coisa que faz os estudantes não terem raiva de mim é isso. Eles já estão cansados de ver velho mentindo. Miguel Falcão - Qual o palpite para o jogo de hoje, Sport e Atlético? Ah, eu vou lhe contar uma história de Capiba. Capiba era torcedor do Santa Cruz e era meu amigo demais. E o único dia que a gente se estremeceu foi por causa de futebol. Foi uma coisa até engraçada porque o Santa Cruz tinha ganho o título chamado "supercampeonato" e de repente ele fez uma provocação. Os desenhos de Suassuna são inspirados no cancioneiro popular, na cultura do sertão. Eles ilustram um poema para sua mulher, Zélia. Porque era assim, ele me respeitava, eu respeitava a ele, nós éramos adversários, mas aí perdi a paciência e disse a ele que supercampeonato era um campeonato ganho apenas com mais dificuldade. E era mesmo. Aí não prestou, não. Ele zangou-se, saiu daqui de casa e foi pra casa dele. Aí eu disse, mas é danado, eu arengar com Capiba por causa de besteira de futebol... Aí peguei um táxi e fui parar na casa dele pra pedir desculpa. Quando cheguei lá, ele tinha vindo pra cá pra pedir desculpa. Mas ele tem uma história ótima. ia ter um grande jogo do Santa Cruz no domingo e, na sexta-feira, um repórter esportivo do jornal telefonou pra ele, entrevistou ele como torcedor, perguntou sobre o jogo, sobre isso e aquilo... aí perguntou: "Capiba, e qual vai ser o placar?" Aí ele disse: "Me telefone segunda-feira que eu lhe digo... "Samarone Lima - Uma vez, li no Diario de Pernambuco que surgiu uma grande obra de Brennand ali no Centro, sobre a Batalha dos Guararapes, e ele disse que a obra que ele queria que ficasse para a lembrança dele era aquela. Qual você gostaria que ficasse, qual seria a sua grande obra? A próxima... Estou brincando. Olhe, se eu tivesse que escolher, escolheria a Pedra do Reino, porque foi onde percebi uma definição mais aproximada do meu universo. Mas, se Deus quiser, vou acabar esse. E aí, se eu terminar, vai ser esse. Quero dar o máximo de mim e, pra isso, preciso de tempo. CA76_jul_2003 Ele foi a segunda entrevista de capa de Caros Amigos (a primeira foi Juca Kfouri), em maio de 1997. Volta agora para contar o que viu e sentiu esses anos todos ao mergulhar na vida de uma quadrilha de traficantes de drogas de um morro carioca e escrever o livro que acaba de lançar e já está em primeiro lugar nas listas de mais vendidos, Abusado. O personagem principal, o famoso chefe de quadrilha, hoje preso, é tratado pelo apelido de Juliano (no livro, como nesta entrevista, só têm nome real os personagens que já foram mortos), mas naquela rimeira, em 1997, Caco já falara de Marcinho VP. Trecho 01 Sérgio de Souza - Você é o segundo repeteco da Caros Amigos, o primeiro foi o Stedile e agora você, depois de seis anos. Caco Barcellos - Acho que esse tempo coincidiu com o começo da produção do livro (Abusado). Lembro que naquela entrevista falei do chefe dessa quadrilha da Santa Marta, dizendo que tinha ficado impressionado com as declarações que ele deu por conta do episódio da gravação do clipe do Michael Jackson no morro, que ele é que providenciou a segurança, houve aquela controvérsia toda, e na seqüência comecei a procurar não exatamente por ele, mas pela oportunidade de ter acesso a uma quadrilha no Rio de Janeiro - talvez o único lugar do Brasil onde há quadrilhas formadas exclusivamente por pessoas pobres e faveladas, com controle efetivo da comunidade, do comércio de drogas. Em nenhum outro lugar do país isso é tão claro, tão bem 77 definido, devido à proximidade entre os pobres e a classe média. Então coincide com esses seis anos, foi em 1996 que tive a primeira conversa com ele na Polinter, antes da entrevista em Caros Amigos. E na seqüência ele fugiu, até fiquei assustado porque a fuga aconteceu uns cinco dias depois da minha visita lá, que não foi formal, pedida na Justiça, eu bati lá na cela, os carcereiros falaram: "Você vem aqui denunciar a gente, o que é?" Eu disse: "Não, quero conversar com ele para pedir autorização para entrar no morro". Na verdade, eu queria falar com o Lambari, chefe do Jacarezinho, a favela do Romário, mas os dois estavam na mesma cela, e foi assim que eu o conheci. Ele estava com um laptop, o que me impressionou, digitando o que dizia ser um livro, pedi para olhar algum capítulo e percebi que era um "tratado de sociologia" sobre o universo do crime no Rio de Janeiro. Até brinquei dizendo que achava mais interessante ele escrever sobre a vida dele, que é bastante incomum, e não fazer sociologia, já tinha um presidente que era sociólogo, o Brasil estava cheio de sociólogos... Começamos a conversar assim. Mas cinco dias depois fiquei assustado, foi uma fuga espetacular, porque a Polinter - a central de polícia, não sei quantas unidades tem ali dentro - chegou a ser cercada pela PM, mas eles conseguiram romper o cerco, acertaram um tiro na boca de um policial. Como a minha visita tinha sido informal, pensei: "Será que os caras vão desconfiar que fui levar alguma informação?" Mas aí, clandestinamente, ele começou a fazer contato. O morro estava bem cercado, ele estava sendo caçado por conta da fuga e de outros episódios envolvendo uma guerra dentro do Comando Vermelho, havia muita violência, muitas mortes e prisões, nesse clima um dia o "Missionário" me telefona convidando para jantar, tarde da noite, porque tinha uma informação importante pra me passar... Marina Amaral – Então deixa eu perguntar já. No livro, você diz que optou por não colocar os nomes reais para não sacrificar as histórias... É,e minimizar danos também. Marina Amaral - E agora na entrevista também você não vai falar os nomes das pessoas? É, porque continuo com a mesma postura: vocês fiquem à vontade para identificar quem vocês quiserem. Marina Amaral - É fácil identificar. É muito fácil, eu sei. O Juliano, por exemplo, é muito fácil identificar, e eu vou continuar dizendo que ele é o Juliano. Marina Amaral - O que ACONTECERIA se você dissesse o nome real dele? Não quero que as informações do livro sejam usadas pelas pessoas que querem matá-los, por exemplo. No caso do Juliano, é mais ou menos seguro que isso é difícil acontecer, mas, para os outros na quadrilha, não. Então, o que penso é o seguinte: se quiser fazer isso com algum dos meus personagens, você vai ter que percorrer a minha trajetória. Porque no morro todo mundo sabe quem é quem, alguns nomes são da intimidade e são apelidos de mais próximos e, se você percorrer a minha trajetória, estabelecer uma relação de confiança no morro, tudo bem, acho que estou fora dessa no sentido de que não estou facilitando a sua vida. Verena Glass - Mas você não pode ser acusado pela polícia de acobertar crimes? Que se dane. Prefiro ser acusado disso do que saber que o meu trabalho levou à morte de uma pessoa, sobretudo quando tenho consciência de que isso pode acontecer. Trecho 02 Verena Glass - Quando você foi a primeira vez falar com o Juliano, ele estava fazendo um "tratado de sociologia". Como era a análise dele? Ele é muito interessado em leitura, mas é quase iletrado, o texto dele é muito primário. Ele ouve um discurso e tende a repetir, com grandes incoerências. Às vezes se acha um revolucionário; acha que vai fazer um movimento revolucionário nos morros, vai convencer o Comando Vermelho a ser um grupo guerrilheiro e não um grupo de traficantes. Na medida em que conversa muito com ele, você vê que é bastante utópico e irreal esse projeto. Mas é um cara muito inteligente. Verena Glass - E tem mesmo uma preocupação social? No discurso tem uma preocupação social. Na prática, muito longe do discurso. O que pega para ele, por exemplo, é quando é enganado na "endolação", quando alguém, em vez de levar o pó para o plástico, leva para a narina. Sérgio de Souza - O que é endolação? A "endolação" é o lugar onde se embala o pó. Aliás, é o único ponto não virtual da "boca". O resto todo é virtual. Você não vê boca. Esse ponto nem é "boca", é o esconderijo do pó, o depósito. Onde só os de extrema confiança têm acesso. E, se você está ali, tem um monte do pó sobre a mesa, embalando, e você consome um pouco... Wagner Nabuco - O Raimundinho, no livro, quebrou o braço do outro por causa disso. É, e o Juliano estava no trio de frente do morro nessa época. Quer queira ou não, ele está participando disso. A coisa nasce sempre a partir da grana. Então não é coerente com quem está com outros propósitos que não o de, enfim, reproduzir aquilo que a sociedade faz. André Bertoluci - O Juliano é um líder carismático? Ele é carismático sobretudo na organização. André Bertoluci - É aclamado como um "Charles Anjo 45"? Mais pelos intelectuais, não é? Agora, na organização, ele é visto como um grande guerreiro. Aquele que nos combates decisivos está sempre presente. Os grandes chefões que arrotam ter patrimônio não estão presentes nessa hora, e ele está. E isso fala alto na organização. 78 Trecho 03 Rodolfo Torres - Você vê alguma solução para o problema da violência no Rio de Janeiro? Vejo muito claramente, mas tenho até vergonha de dizer, porque é tão óbvio, tão repetido ao longo das décadas. Para mim, é muito claro que todo traficante, sem exagero, teve experiência com o mercado formal de trabalho, talvez só o Juliano não tenha tido. E, sem exagero e sem exceção, todos têm ou tiveram uma mãe empregada doméstica. Então, eles conhecem, muito melhor do que a própria classe média, a realidade da vida do Rio de Janeiro. No caso das próprias empregadas domésticas, conhecem a intimidade das famílias de classe média alta. E é muito claro que essas mães levam informação para os filhos em casa. E que sabem muito bem que os empregadores não falam a verdade quando dizem que não podem pagar um salário legal. Conhecem a intimidade e, se forem curiosas, têm o segredo da correspondência financeira da família. Vêem o excesso. O filho da classe média alta talvez gaste numa noite de balada o que a empregada ganha no mês. E é triste constatar que um filho que não quer reproduzir a trajetória do pai trabalhador - que se dedica oito, dez, doze horas por dia fora de casa, abandonando-o no barraco para ser educado e criado pelos irmãos -, quando esse filho deriva para o tráfico, ele é que começa a levar a prosperidade para o barraco. Nunca o pai e a mãe trabalhadores. Ele que leva o microondas, a primeira geladeira, o material de construção etc. E que moral têm pai e mãe, por mais que seja grande seu esforço do trabalho, se não conseguem competir com a renda do filho? Então, o caminho começa não com a oferta de trabalho, não com a simples ocupação, como as ONGs costumam falar, que "são desocupados, dá recreação para esses jovens...". O trabalho das ONGs é fantástico, pior se não existissem, as entidades assistencialistas fazem um papel muito importante como provedoras de necessidades básicas dessas comunidades, mas suspeito que muito mais importante que isso seja levar não o trabalho, porque eles já conhecem muito bem, mas um salário decente. Isso, nenhum deles conhece. Rodolfo Torres - seria utópico então, nesse caso de renda, a descriminalização das drogas para eles terem trabalho formal? Nada é eficaz se não começar pelo salário digno. A gente pode discutir a noite inteira pequenos detalhes que contribuiriam para o quadro não ser esse, um quadro que dá a sensação de que nunca pode ser pior e a cada dia consegue ser pior. Um deles é, não digo a descriminalização, mas a legalização de algumas drogas. Por exemplo, a maconha, um produto nacional. Vamos imaginar a legalização da maconha. Que ela passe a ser vendida nos botequins. Por que não, se botequim vende a cachaça? A cachaça, sem exagero, tenho relatos de muitos cientistas e médicos estudiosos do problema que me dizem e vivem dizendo pela imprensa que a cachaça mata muito mais que a maconha. Pela via da doença, mata nos homicídios, mata no trânsito, sobretudo leva a violência para dentro das casas. Nunca parei pra ver, mas certamente a maioria das famílias que têm traficantes em casa antes disso teve a violência, pai alcoólatra consumidor de cachaça. Então temos de trazer a indústria do álcool para essa discussão. Cobrar a responsabilidade dela, por levar para essas comunidades uma droga que é legal, mas pior que uma ilegal, se comparada com a maconha. Já com relação à cocaína é mais complicado, não é um produto nacional. Você tem um botequim legal, pagando imposto, como é que vai importar cocaína da Colômbia, que é ilegal? Mas a maconha representaria a tentativa de trazer o traficante para a legalização, para a sociedade organizada. E vai deixar impostos, vai diminuir o poder de barganha dos corruptos. Ronye Quintieri - Os traficantes permitem ao comprador usar a droga dentro da favela? Isso não traz problemas? Se não apronta, eles vão deixando. Mas muitos ficam ali mendigando pó. Quem mais faz isso é o próprio morador do morro, que fica ali pegando uma sobrinha, lambendo até o plástico quando acaba. Trecho 04 Diogo Moysés - Você vive algum resquício dos vespeiros que você mexeu, em algum momento entrou na paranóia do medo, ter de se esconder? Não, relativamente tranqüilo. Depois daquela onda toda lá do "Rota 66"... Marina Amaral - Mexer com polícia é mais perigoso, ter a polícia atrás de você é mais desconfortável, não é? Caco Barcelos - Eu DIRIA que ainda é muito cedo pra saber. Até porque o livro é muito grande, até chegar lá, para quem não tem hábito de leitura... E realmente teve um momento em que eu parei de dizer - sabe aquela coisa do compromisso ético consigo mesmo, até um pouco hipócrita de minha parte? Porque eu estava percebendo que eles falavam coisas que os prejudicam. Acho que eles não têm noção de que esse negócio fica no papel para sempre. Verena Glass - Por isso os pseudônimos? Pois é, eu queria evitar de usar tanto e disse, alertando que isso é muito grave: "Olha, se estou lá pra apurar e para ouvir a verdade e ela é essa, ela tem de ser contada". Fiquei sempre nessa dualidade, puxa, isso vai ferrar a vida desse cara, a namorada dele, mas, se eu não contar, por que é que estou aqui? Acabei adotando codinomes como medida de pelo menos evitar morte, e talvez algum processo judicial ferrado. Sérgio de Souza - Depois do livro, você esteve com o Juliano? Não, ele me ligou, pressionando pra ler o livro. Queria ler antes de ir para a gráfica. E eu disse: "Não posso te dar para ler porque o livro passa a ser seu. Você não vai concordar com muita coisa, vai querer mudar, e aí já não é mais meu o livro, é o seu livro. Eu acho que você deve fazer o seu livro, tem de ser assim". E ele: "Porra, mas não é a minha vida que tá aí?" Eu disse que era. "Mas é complicado, nós combinamos que eu FARIA um livro e você o seu." Depois ele ficou na boa. Sérgio de Souza - Foi a última conversa? Foi a última conversa, mas ele está querendo falar comigo. Wagner Nabuco - E essa informação de que parece que ele não gostou muito? 79 Pois é, preciso checar essa informação antes de falar com ele. Por isso estou com medo de ligar. É ilegal a comunicação de fora pra dentro da cadeia, inclusive é uma ilegalidade que pode prejudicá-lo, agora, também, se não ligo, pode parecer que estou fugindo da raia. Marina Amaral - E aquela foto da capa do livro é dele mesmo? Não, é do jornal O Dia, é um traficante simbólico. A foto é até antiga, eu tinha guardada faz uns três anos. Mas é a figura que eu via no morro todo o tempo. Sérgio de Souza - E o título é o apelido dele? Não, "abusado" é um apelido genérico para todo mundo que avança o sinal, que troca tiro com a polícia. Sérgio de Souza - Mas ele tinha apelido? Juliano. Sérgio de Souza - Foi você que deu? Não, ele era conhecido assim. Mas ele tem outros apelidos, que eu não vou revelar, cada época uma coisa. Um eu posso dizer, porque coloquei no livro, o "Gue", de Guevara. O pessoal do hip hop chama ele de "Che", alguns chamam de "Mao", que são as iniciais do nome dele, de Mao Tsé-tung. CA77_ago_2003 De todos os bairros do Rio, Santa Teresa talvez seja o que expresse melhor o entrelaçamento de condições sociais tão distintas: uma boa dúzia de favelas misturada a pequenos edifícios de classe média e a casarões espalhados pelos morros. Num desses casarões, funciona o escritório do professor e advogado Nilo Batista. Cenário propício para o tema da entrevista: ao lado da mulher, Vera, com quem desenvolve pesquisas no Instituto Carioca de Criminologia, Nilo apontou a necessidade de rejeitar as soluções repressivas para o drama social brasileiro, na contramão das campanhas que alardeiam o combate à impunidade. “Impunidade é um verbete do léxico da direita, porque no nosso país sobra punição”. Punição que, segundo ele, desempenha o papel político de criminalizar os pobres e todas as suas estratégias de sobrevivência, estigmatizando-os pela mídia através da temível figura do traficante exposta diariamente como inimigo público em horários nobres. Trecho1 Sylvia Moretzsohn - Para começar, QUERÍAMOS que falasse um pouco da sua trajetória. Nilo Batista - Nasci em Natal, durante a guerra, meu pai era militar. Fui com 3 anos pra Juiz de Fora, que é sede de uma região militar, e morei e estudei ali no primário, numa boa escola pública getulista, fiz ginásio, curso científico e a Universidade Federal de Juiz de Fora, curso de direito, vim para o Rio pensando em fazer uma pósgraduação aqui e voltar como professor na universidade onde tinha me formado. Cheguei até a passar em primeiro lugar num concurso para professor assistente de direito penal, mas não fui nomeado porque era advogado de presos políticos. Isso era 1971, 72, foi a única discriminação efetiva que sofri. Acabei ficando pelo Rio, fui do Conselho da Ordem, depois presidente da Ordem do Estado do Rio, depois secretário de Polícia Civil, de Justiça, vice-governador do Brizola, acabei o mandato pra ele em 1994, e, bom, sou professor titular na UERJ, na Universidade Cândido Mendes, e dirijo um programa de mestrado em direito na Cândido Mendes. Dirijo também o Instituto Carioca de Criminologia, onde editamos, com a Revan, Discursos Sediciosos - Crime, Direito e Sociedade. Sylvia Moretzsohn - Você teve experiência nos dois governos Brizola. Como vê essa idéia de que foi com o Brizola que todo esse descalabro começou, os traficantes mandando nos morros etc.? Isso foi uma peça publicitária, um professor não tem o direito de falar isso. São professores que falam isso do lugar político deles, encaixados que estão na direita, seja a direitona do César Maia, com seu projeto de “ou prisão ou vala”, seja um projeto político conservador, embora não saibam que o projeto é conservador. Em primeiro lugar, Brizola está quilômetros na frente desses professores na percepção das opressões criminais. Devo dizer que eu, de alguma forma, aprendi muito com ele. Tive o privilégio de acompanhar de perto essas intuições dele com relação ao conteúdo político das opressões penais. Muito PhD não se toca disso. Podemos ter dois discursos econômicos, ou três, ou quatro, mas discurso político criminal só existe um. Haja vista a identidade dessas propostas nos discursos eleitorais, eu não conseguia ver diferença entre o discurso do GenoÍno e o do Tuma, e isso é muito mais grave do que qualquer espécie de, como se dizia, cumplicidade minha e do Brizola com o tráfico. Porque realmente tentávamos impedir o conjunto de brutalidades que essa política norte-americana de drogas alavanca na aterrorização da pobreza urbana na periferia do videocapital financeiro, pra homenagear o Gilberto Felisberto Vasconcellos. Trecho 2 Sylvia Moretzsohn - Mas parece que esses projetos sugerem que se o cara tem 50 reais, ele não pode mais dizer que não teve a oportunidade. O que há é o seguinte: o Estado do bem-estar tinha um sistema penal que, como todo sistema penal, era uma coisa destrutiva, negativa, porque a pena é o pior modelo de decisão de conflitos. Quando você criminaliza um conflito, faz uma opção política. Não existe um crime natural. Todo crime é político. Nos anos 70, eu me lembro que o Augusto Thompson, que é uma grande figura, deu uma resposta maravilhosa numa conferência, a um aluno que perguntou: “Professor, qual é a diferença entre criminoso comum e criminoso político?” E o Thompson 80 falou: “A diferença é que o comum também é político, só que ele não sabe”. Então o sistema penal do Estado do bem-estar vivia de certas utopias, por exemplo, a pena deve redimir, ressocializar. Isso é uma coisa completamente indemonstrável, porque, sempre que essa hipótese chegou ao campo, foi-se checar, ela voltou desmentida. E bastariam as taxas de reincidência penitenciária, as pessoas que passam por uma experiência de encarceramento e voltam a reincidir. Mas embora seja ilusório, isso tem uma virtude política, você não pode se comprazer com o sepultamento do cara em vida, com uma pena de neutralização, você tem de buscar ali uma finalidade. Esse sistema penal, que fazia intervenção econômica, que entrava numa série de conflitos com penas brandas, que não fossava a intimidade das pessoas, tudo isso agora acabou, abriu-se em dois no capitalismo tardio: para os consumidores, mil soluções criativas para evitar a pena de prisão, e todo um discurso dizendo “nããão”, a prisão faz muito “maaaaal”, foram criados juizados especiais, composição, mil sortilégios, conversão de penas até quatro anos em penas restritivas de direito, prestação de serviços à comunidade, caridade penal, cesta básica que o juiz manda dar, tudo isso é metade desse sistema penal. A outra metade é para as obras criminais toscas da pobreza. Que não está atropelando ninguém com carro porque não tem carro, não está fazendo uma falsidade aqui, um estelionato ali. O que eles estão fazendo é pegar o meu Rolex, ver se podem ser consumidores, se podem ter um upgrade... porque no capitalismo industrial também era aquela coisa: penitenciária, fábrica, e uma praça no meio, com o exército industrial de reserva. Agora, você tem a reprodução do capital no shopping, então você deixa lá os consumidores, mas com os filhos da pobreza, os inúteis da nova economia, é outra coisa: crimes hediondos, nada de progressão de regime, quem disse que a prisão faz mal? Deixa o cara apodrecer lá. Delação premiada! Delator hoje é um herói. Choferes, secretárias, esposas, gente que foi cúmplice, compactuou, de repente gira e entrega aquilo de que se beneficiou o tempo todo e pega um estatuto moral positivo, reconhecimento público. E nego vasculha o lixo, a intimidade, as provas ilícitas, escuta telefônica... então é por aí que o Grande Irmão está entrando, com o aplauso geral de forças que pretendem ser de esquerda, e que adoram tudo isso. O novo herói é o policial. Carlitos agora é vilão. Trecho 3 Sylvia Moretzsohn - Você acha que somos pobres? Não. Somos ricos! Só que nosso sangue é sugado. E a gente aplaude! Sylvia Moretzsohn - O Lula acabou de repetir que somos pobres. E somos pobres com Silveirinha, com Nicolau, com Maluf... Soma Silveirinha, Nicolau e Maluf e compara com a dívida externa. Sem embargo de que o desvio criminoso de recursos públicos deva ser pontualmente investigado, a publicidade em torno desses casos é também estratégica. Um branco rico preso constitui elemento precioso para demonstrar que o sistema penal é igualitário, isonômico, e não seletivo. Pouco importa que ele seja o único branco rico preso naquele momento, a espiga de milho no cafezal da penitenciária. Só ele está aparecendo no Jornal Nacional, é a prova de que a justiça penal é igual para todos. Paralelamente, vai uma implícita lição de mobilidade social pelo avesso. Mas, principalmente, imola-se o bode expiatório: nossas dificuldades não são estruturais, não é o serviço da dívida que nos sangra, e sim aquele safado ali. Os piores sentimentos são mobilizados para entorpecer o raciocínio. Droga lícita. Sylvia Moretzsohn - Sempre se insiste em que somos pobres. Da mesma forma que o Lula fala nos “cidadãos de bem deste país”, nunca falou de “cidadãos”, simplesmente. Como todo mundo, e inclusive como o Brizola, tudo o que eu adoraria é que o Lula sinalizasse que existe um plano. Que isso aí é um grande show off para chegar em algum momento, para ganhar uma credibilidade que vai ser aproveitada para alguma coisa, uma virada de mesa... Porque, sinceramente, pra fazer isso que está sendo feito, talvez fosse melhor o Malan do que o Palocci, talvez melhor o Armínio Fraga do que o Meirelles. Compreendo as dificuldades colocadas pelo exercício do governo. Mas, sinceramente, se o PT se submete a ser pautado pela mídia, em vez de percebê-la como parte do problema, e acredita que essa entidade mística chamada mercado é algo além de um disfarce para exprimir os interesses do capital financeiro transnacional, aí o horizonte se turva. Se for isso, se tratar de aprofundar o modelo, nenhum avanço se poderá esperar no âmbito da questão criminal; mas para retrocessos sempre há espaço. Luciana Gondim - O senhor acredita no Sistema Único de Segurança Pública, já que falou que admira o Márcio Thomaz Bastos? O melhor futuro pra esse Sistema Único de Segurança, que é uma idéia funcionalista, de quem quer aprimorar e tal, é o bom sistema penal. É a boa penitenciária. Há quantos séculos estamos esperando por ela? Ela é uma invenção recente, uma invenção do capitalismo industrial, não existe como pena na Antiguidade nem na Idade Média. Ela começa ali, casas de pobres, controle da pobreza urbana na Inglaterra e na Holanda, os precursores na história desse processo. A melhor coisa que o Sistema Único de Segurança pode conseguir ser é alguma coisa parecida com o Sistema Único de Saúde. Se você acha que o SUS resolve... Primeiro foi o SUS, o segundo vai ser o SUSP, o terceiro vai ser o Susto. Trecho 4 Rodolfo Torres - O Garotinho está usando o cargo de secretário de Segurança como trampolim para as próximas eleições, quer usar o problema da criminalidade para se lançar? A secretaria foi um golpe político pra mexer num quadro que estava ficando meio paludoso, que era a questão do propinoduto. Então, ele fez esse movimento, como tudo o que ele faz, pensando publicitariamente, e do ponto de vista político foi um movimento brilhante. Claro que ali ele sabe que tem riscos. Mas conseguiu montar uma estrutura que, se alguma coisa der certo, o mérito é dele e o que der errado é culpa dos companheiros que estão ali. 81 Maurício Caleiro - Mas ele não está ensaiando um retorno pro PDT? Está. Eu sou meio suspeito... rompi com o Garotinho em 1994, logo depois de eu mesmo ter garantido a indicação dele como governador. Ele começou a fazer um trabalho político no norte do Estado, que era difícil, qualquer cara de esquerda que ganhasse a eleição lá e tivesse o apoio que o Brizola deu a ele ficaria uma liderança regional forte. Teve todo o apoio do governo estadual e era progressista, ainda mais se comparado às oligarquias de lá. E eu, como em 1994 estava como governador concluindo o mandato do Brizola, tinha uma certa força dentro do partido e consegui emplacar o nome dele. Vera Malaguti Batista - O Garotinho em 1994 foi responsável pela criminalização do Brizola. Porque era um pau em cima da gente e ele tinha tempo de televisão e dizia que o partido tinha banda podre. Nilo Batista - Banda podre, naturalmente nós, e banda limpa, naturalmente ele. Parei de falar com ele ali. Mas hoje compreendo o seguinte: estamos sendo maltratados pelo PT. Em relação ao Garotinho não tem nada fechado ainda, mas, num quadro desses, onde estamos sendo cortados, temos de fazer certas alianças para não emagrecermos a ponto de perder um pouco de nossa força negocial como partido político. Maurício Caleiro - Ocupar um lugar à esquerda do espectro político, que está vago? Na questão que discutimos hoje aqui, não vejo ninguém à nossa esquerda. “Precisamos acabar com a impunidade”, quer dizer, o mesmo veneno que vai nos botar a todos na cadeia, aí vamos explicar criminologia pra eles na cadeia. Todos nós. Nego alimenta a fera que vai comê-lo. Como partido político, a referência é essa, PSTU, PC do B, PDT, e vem aí toda uma grande dissidência do PT. Até brinquei com alguém recentemente e disse: “Vamos reservar um belo espaço pros petistas, vamos recebê-los bem à beça aqui”. Rodolfo Torres - A declaração do presidente do TST, Francisco Fausto, de que tinha sofrido estelionato eleitoral, o que o senhor achou? Tenho de falar disso como dirigente do PDT. Todos esses movimentos que têm decepcionado muitos militantes do PT, pra nós também têm representado muita decepção. Estamos no sétimo mês do governo Lula. Apesar de todo o menosprezo com que fomos tratados até aqui, apesar da intolerância ou da raiva para com as nossas divergências – que é um direito legítimo que temos, de nos expressar, e vamos continuar nos expressando –, não abrimos fogo. Aquele programa de televisão do PDT, fiquei tão comovido, aquilo é um conselho dum velho militante que pagou todos os preços, sofreu todas as privações, foi pro exílio, o Lula tinha de, terminado aquele programa, ligar pro Brizola e dizer: “Pô, Brizola, vamos estar juntos amanhã, me faz uma visita aqui que tu sabe como é essa porcaria aqui”. Era uma coisa fraternal, mas não houve isso. CA79_out_2003 Há uma opinião generalizada de que ele é a cara do cinema brasileiro destes novos tempos, um cinema que vem sendo recebido pelo público e pela crítica com o mesmo calor e aplauso. Um cinema que Matheus associa ao movimento que vem ocorrendo de valorização do brasileiro como o brasileiro é na sua maioria. Uma reviravolta nos padrões estéticos que sempre predominaram e cuja quebra Matheus liga à própria eleição de Lula: “Durante muito tempo as pessoas não elegeram o Lula por ojeriza ao tipo brasileiro”. Uma entrevista tão sincera como rompedora, de alguém que se projeta não só pelo talento artístico, mas pelo estofo moral de que é moldado o seu caráter. Marina Amaral - poderíamos começar com sua família, esse seu sobrenome difícil... Matheus Nachtergaele - Que herdei do meu pai belga, que tem nome de príncipe, Jean Pierre Henry Leon François Nachtergaele. Meus avós vieram para cá pouco depois da guerra, quando as coisas ficaram complicadas na Europa. Então, essas histórias da guerra, das pessoas que abandonaram seus países sempre foram um tema lá em casa. Acho que todo brasileiro tem um pouco essa nostalgia, que é uma das coisas mais bonitas que a gente tem. Talvez a gente seja doce demais um pouco por conta disso, dessa tendência a entender que todos estão, de alguma maneira, exilados aqui. E, com o tempo, isso vai lentamente se esboroando e a gente vai criando um sentimento nacionalista, né? Acho que todo mundo tem um pouco essa sensação de perdão com relação ao diferente. Marina Amaral - São quantos irmãos? Somos quatro. Eu sou do primeiro casamento do meu pai. Minha mãe morreu quando eu tinha 3 meses de idade, meu pai se casou de novo, formou uma nova família onde ganhei mais três irmãos. Palmério Dória - E isso de ator? Como foi? Tem artistas na família. Meu avô era cantor de ópera na Bélgica, cantava com a irmã. E a minha mãe era poetisa, e tocava violão. Existia arte dentro de casa. Meu pai, quando estava na USP fazendo engenharia, foi um dos fundadores da Traditional Jazz Band. Tocava banjo na primeira formação. Então tinha muita música em casa, mas não tinha atores de teatro. E a minha passagem para ser ator é um pouco parecida com a da maioria dos atores: uma família de classe média paulista, pai engenheiro, mãe dona de casa. Meu pai abandonou a Traditional Jazz Band para criar os iflhos. E eu desenhava muito bem desde criança, estava fazendo artes plásticas na FAAP e estava interessado em trabalhar com desenho animado, animação, eu tinha personagens, não pensava em fazer teatro. Acho que um pouco o acaso, se é que isso existe, me levou até o palco, e também uma necessidade terapêutica, eu estava muito embotado e comecei a fazer análise aos 16 anos. Ninguém me sugeriu que fizesse teatro, mas pouco depois de começar a análise aconteceu o teatro. Izaías Almada - E aconteceu como? Porque tem sempre uma coisa que desperta esse interesse... Eu tinha uma tendência a gostar do palco, mesmo na FAAP, quando tinha que apresentar trabalhos, normalmente eu optava por performance, algo assim. Era muito tímido, mas gostava de me expressar em cena. 82 Trecho 02 Palmério Dória - E o “batismo de fogo” foi qual? Em que peça você sentiu “agora sou ator”? No O Livro de Jó. Andréa DiP - Você já tinha largado a faculdade? Já tinha largado tudo. Minha casa estava um inferno, porque, apesar dos antepassados, da ópera e da música, quando você diz que vai ser ator, as pessoas ficam transtornadas: “Você vai ser pobre, veado, drogado, vai se arrepender...”. Palmério Dória - E depois? Eles nunca deixaram de assistir a nada. Viram tudo o que eu fiz, odiando no começo, mas, quando você faz algum sucesso, isso se reverte. O que não significa que a situação esteja resolvida. Não sei, há algum pedaço oculto de algumas pessoas esperando que eu me esborrache... Mas por enquanto está bom. Estou dentro da vocação, isso é o mais importante. Palmério Dória - E o Antunes, como é trabalhar com ele? Eu entrei muito em conexão com o pensamento dele. Entendi o teatro, li os livros que ele me deu para ler e me posicionei como ator no mundo a partir da visão dele. Posso dizer que sou um ator antuniano num certo sentido. Essa sensação de que o que eu faço tem uma função social, uma responsabilidade para com a comunidade, isso tudo quem me ensinou foi ele, de cara. Ele estava falando sempre muito sério ali. Acho que, um pouco, ele me tirou também a alegria durante um bom tempo. A alegria que pode ser você estar em cena, estar atuando. Tem um pedaço alegre disso tudo que ele tornou nebuloso durante um bom tempo por causa da seriedade excessiva com que as coisas eram levadas. A responsabilidade era muito grande, estar em cena era um ato de responsabilidade, uma atitude ao mesmo tempo política, ao mesmo tempo suicida, era uma entrega total, um abrir mão de tantas coisas para poder estar ali. Era preciso ser merecedor no CPT. Então fiquei muito velho muito rápido, por causa disso, como ator. Eu me sentia velho, e talvez só por isso tenha sido possível encarnar alguns personagens tão fortes, tão cedo. Porque, quando saí do CPT, eu já estava envelhecido de teatro. Em um ano eu tinha feito uma viagem grande ali dentro. E agradeço eternamente, acho Antunes um gênio, um cara totalmente misturado com o que está dizendo, com o que está fazendo, no sentido mais bonito que isso possa ter. Izaías Almada - Você disse que era um ator antuniano. Disse também que se inicia com ele e se revela com o Antônio Araújo, no O Livro de Jó. Você vê uma diferença muito grande entre os dois como orientadores, diretores, dramaturgos, homens de teatro? O Antônio Araújo se parece com o Antunes, em essência, em alguns pontos. A idéia de o teatro ter uma função na comunidade é uma das coisas mais importantes para o Antônio. Assim como a busca da catarse através do teatro. Acho que ambos conseguem, cada um ao seu modo, fazer isso. É claro que o Antônio já é um cara mais novo, mais poluído das tragédias que a gente vem vivendo. No teatro do Antônio já não faz sentido montar os clássicos como eles são, buscar o arquétipo puro no clássico puro, no teatro do Antônio já se está pegando a bíblia e mijando nela, já se está pós-Aids. Acho que o Antônio trabalha organizando as vísceras dos atores, e o Antunes faz um trabalho que se assemelha mais a um trabalho de coro, nos moldes mais clássicos. Marina Amaral - Ele é mais disciplinador? Mais disciplinador. Os atores me parecem menos exuberantes no Antunes nesse sentido, por conta disso. Quer dizer, conseguem-se lindos trabalhos, mas estão dentro de um guión, dentro de uma escolha estética para interpretação, para o espetáculo específico que se vai fazer. Já o Antônio trabalha mais num caos, no depoimento de seus atores. Apesar de ter a mesma obsessão que o Antunes, e o mesmo comprometimento. Acho que ele, o Zé Celso, e o Antunes são as pessoas que eu conheço que mais estão promiscuamente comprometidas com o seu teatro. Palmério Dória - Esse negócio de “pobre” não atrapalhou? Porque atrapalhou muito o cinema. O pobre sempre é bonzinho. E também você falou antes, sobre a participação, ter uma função social, isso não “enche o saco”, não? É muito esquisito, mas sem um certo grau de doação, e aí a pobreza se inclui, mas, tentando escapar da coisa religiosa, de que os pobres serão recompensados, a verdade é que, não sei exatamente por que, os trabalhos mais relevantes de teatro se dão em condições precárias de grana. Parece que a falta de grana, de alguma maneira, liberta esses artistas de algum comprometimento que eu não sei bem qual é. Fiz um espetáculo, que é o Woyzeck, dentro de um esquema de patrocínio. Quer dizer, fiz com algum dinheiro. E é uma aritmética complicada, a presença da grana no teatro, de alguma maneira, deforma o teatro. Acho que é porque a gente não está acostumado. Acho que vai melhorar, mas senti isso nos ensaios do Woyzeck, senti que seria mais fácil fazer a peça como nós acabamos fazendo se a gente estivesse sem grana. Com grana, por incrível que pareça, era mais difícil. Trecho 03 Palmério Dória - Antigamente, tanto na Atlântida quanto na Vera Cruz, o padrão de galã era o Anselmo Duarte, 1 metro e 90, bonitão etc. Agora, a cara dessa chamada retomada do cinema brasileiro é você. Que deve ter o tamanho do Humphrey Bogart! Menor. Palmério Dória - Como é que é isso? Eu estava assistindo Os Sertões, a parte do Homem, do Zé Celso, anteontem. E de repente o Marcelo Drummond perguntou: “Quem aqui se considera um brasileiro típico?” Porque era uma discussão sobre a mistura 83 das raças, os tipos brasileiros... E ele perguntava isso pra platéia, e ninguém levantou a mão. E eu, descaradamente, com esse sobrenome, sardas, branco desse jeito, levantei e falei: “Eu sou”. Acho que é por isso. Acho que a gente está entrando em contato com uma coisa nova. Acho que essa é a parte boa da brincadeira. Acho que a gente está... Natalia Viana - Entrando em contato com o Brasil? Acho. E o cinema é uma das formas como a gente vem fazendo isso, a televisão pode vir a ser mais ainda uma das formas como a gente venha a fazer isso... Essa estética de tipos, essa aceitação do tipo comum, se é que se possa dizer que algum tipo é comum, mas essa aceitação do tipo nordestino, do Macunaíma como herói está fazendo evoluções interiores no povo brasileiro. Marina Amaral - Você pensou no Lula também? Penso. Tudo tem uma coisa a ver, parece que é o mesmo movimento. Não sei se seria possível as pessoas elegerem o Lula se a gente não estivesse fazendo o que vem fazendo no cinema.. Acho que durante muito tempo as pessoas não elegeram o Lula por ojeriza ao tipo brasileiro. Essa coisa herdada de que EXISTIRIA um tipo mais nobre, essa discussão racial que vem desde Aristóteles, essa coisa dos tipos de homem, das qualidades de homem, essa coisa ficou arraigada... E acho que agora já é possível a gente olhar pra um homem mestiço, caboclo, mameluco, e achá-lo interessante, possível. Acho que isso vem se dando nesta última década. Antônio Martinelli Jr. - Como você vê o trabalho do ministro Gilberto Gil? Primeiro tive a sensação de que era importante ter um embaixador para as artes do porte do Gil, e entendi a escolha nesse sentido. Vejo que algumas questões que foram abertas não se abriam há muito tempo, e acho isso bom. Tenho sentido uma certa confusão entre as pessoas, principalmente no cinema. Achei saudável, pela primeira vez consegui ver que existem projetos diferentes para o nosso cinema dentro dessa mesma contemporaneidade, dentro desse nosso tempo, que existe um tipo de artista querendo estabelecer uma indústria para a nossa cultura, e existe um outro tipo de artista conectado com as necessidades mais primeiras que o povo possa ter. Isso pôde aparecer. Se é oriundo da figura do Gil, então isso significa que eu considero bom. Mas, como não sei se é realmente isso, então também estou aprendendo, como todo mundo, não sei. Palmério Dória - O ideal SERIA juntar a genialidade do Glauber Rocha com o espírito comercial do Bruno Barreto. E o Antônio Fagundes complementa: “Faltam feijão e arroz”. Aquilo que o pessoal quer ver mesmo. Um filme com começo, meio e fim; roteiro legal; papo coloquial. Ou não, fantasia mesmo, total. Pode ter um luxo, o diabo, mas que seja visto, que a fila dobre o quarteirão. A gente está dobrando o quarteirão já tendo superado o “arroz com feijão” da história bem contada, do som bem editado, da luz bem colocada. Isso a gente fez. O que a gente foi perdendo de vista um pouco, nestes últimos tempos, e que agora pode voltar a ser visto é a autoria, colhão. Teve um certo momento em que as pessoas estavam muito animadas com a retomada, mas eu não tava vendo colhão de ninguém mais. Estava bonito, estava bem contado, mas não tinha vômito, não tinha víscera, não tinha depoimento, e talvez por isso mesmo. Precisava aprender o “arroz com feijão” pra então poder vomitar... Natalia Viana - Que filme que quebra isso, na sua opinião? Talvez o Céu de Estrelas, da Tata Amaral. Mas posso estar errado, mas é o primeiro que me veio. Rodolfo Torres - GOSTARIA que falasse sobre essa obsessão, esse rancor que o cinema nacional tem de não ter ainda conseguido o Oscar, a questão do Central do Brasil, em que você atuou, e no quase indicado Cidade de Deus... E no O que É isso Companheiro?, que a gente esteve lá. Tenho até que tomar cuidado com o que vou dizer porque acho que a gente DEVIA SE LIVRAR do Oscar de uma vez por todas. Mas é perigoso dizer isso porque sei que, do ponto de vista da nossa visibilidade mundo afora, isso também é importante... Rodolfo Torres - O Oscar é idiota? Não é que seja idiota, é que não nos diz respeito. E aí a gente ganha um monte de prêmio bonito mundo afora, que acontece isso com a gente, e a gente não vê. Eu vejo, as pessoas que estão mais interessadas ficam sabendo disso, mas o público em geral, não. E eu acho que está na hora de a gente dar um coice no colonizador. Então, tenho tendência a negar a festa do Oscar, a estética da coisa. Sei que é importante... Andrea DiP - Pra quê? Pra nossa visibilidade, pra injeção de dinheiro bom no nosso cinema, que isso são temas com os quais a gente tem que lidar também. Eu era mais xiita do que isso, achava tudo um absurdo, mas sei que pode ser bom pra nós se grana de fora entra. Trecho 04 André Bertoluci - Mudando um pouco a conversa, como foi a relação com a comunidade do Dona Marta nas filmagens do O Primeiro Dia? Você subiu o morro, foi tranqüilo? Foi maravilhoso. Eu agora não bebo mais, mas, quando eu bebia, tinha muita coragem. E aí ficava lá. Nesse filme, acho que cometi um excesso como intérprete. Muita gente acha que é um supertrabalho meu, muita gente adora esse filme, mas eu acho que passei da dose, de tanto que eu queria ser o malandro do morro carioca, enchi demais de trejeitos o personagem. Izaías Almada - O Primeiro Dia é direção do Walter Salles ou da Daniela Thomas? Dos dois. Foi maravilhoso fazer, só acho que me excedi um pouco, mas tem a cena bonita da morte do personagem, uma cena de dez minutos quase toda feita numa bolada só, era um pouco como fazer teatro aquilo. No Amarelo Manga também tem uma cena longa, com travelling-in, em que o personagem faz uma mandinga em voz alta, uma coisa enorme e sem corte, a gente fez de uma vez só. Tinha muito pouca película, então TINHA QUE FAZER pouco ficar bom. Uma das cenas do Amarelo Manga, não vou dizer qual, a gente TINHA QUE TER 84 FEITO de novo, nela eu estou péssimo, mas não tinha película. Agora, tem uma cena no Amarelo Manga que é comprometedora e eu adoro... Eu nunca bebi trabalhando, nunca bebi antes de filmar. Mas teve um dia que eu tomei um porre e não dormi, e tinha que filmar, e achei melhor rebater do que eu ir naquele estado. E aí bebi pinga, e fui bebendo pinga, pinga, pinga... na maior culpa, aí liguei pro set pra dizer: “Cláudio, acho melhor não ir, tô muito bêbado. Acho melhor a gente não filmar”. Não dava, não tinha grana pra ficar fazendo isso. Ele disse: “Venha que a gente vai fazer assim mesmo”. E a gente fez. Natalia Viana - Qual a cena? É aquela quando o seu Bianor morreu e o meu personagem, o Dunga, está pelos corredores tentando achar alguém que o ajude. Quando estou na cena com a Conceição Camarotti tava normal. Mas, quando estou na cena com o Jonas Bloch, estou muito bêbado. Muito, muito, muito... Andrea DiP - E foi bom? Foi bom porque fiquei uma carne viva. Claro, cabia na situação. E a cena era profundamente violenta, o Amarelo Manga é o filme mais violento que eu já fiz, um filme sobre as pequenas violências que a gente vai cometendo sem perceber, uns com os outros. Foi a única vez que filmei bêbado. Marina Amaral - Por que você parou de beber? Porque já bebi a minha cota. Tô bem de álcool. Andrea DiP - Você fica um bêbado sentimental? Fico bêbado chorão. Bêbado carente. Aí parei. Marina Amaral - E como é no cinema esse problema do dinheiro. Tem essa questão da Embrafilme, a velha discussão do que é patrocinado pelas estatais, essa polêmica que teve há pouco tempo... Pela primeira vez vou passar e daqui a algum tempo poder falar melhor sobre isso tudo, porque estou começando um projeto meu. Trecho 05 Palmério Dória - Você desenha as suas cenas? Principalmente em teatro. Faço quase que um story board da “partitura baixa”, como costumo falar, do personagem. Fiz todo O Livro de Jó, e o Woyzeck quase todo. Vou fazer o story board da Menina Morta. Nas artes plásticas, as idéias voam, os conceitos, as coisas mais finas da sensibilidade podem ser experimentadas, eu adoro, fico amarradão na Bienal, feliz da vida de ver as coisas, e algumas me impressionam muito. A última que me impressionou demais vi em Londres, uma exposição chamada Sensation, de um cara que era um exmarionetista, se chama Ron Müeck. Ele trabalhou pra Disney, fez aquela família Dinossauro, é um bonequeiro dos nossos tempos. E uma obra dele se chamava Dead Dad, pai morto, né? Uma obra hiper-realista, uma escultura do pai dele morto, só que tinha no máximo 1 metro de comprimento. Realmente, a sensação que se tinha era que, se tocasse na escultura, você encontraria um cadáver. Todos os cravos estavam ali, todos os pêlos encravados numa figura de 1 metro, me lembro do pé, era o pé de um velho amassado pelos sapatos, e cada uma das rugas e as frieiras todas... tudo. Antônio Martinelli Jr. - A questão da morte te fascina muito? Muito. Tive que entrar em contato com isso muito cedo, é claro que todo mundo entra, mas no meu caso foi bem rápido. Nem sei o que dizer, porque a gente está neste projeto que é o projeto onde se morre, né? Não sou, não me sinto aliviado na idéia da morte, não acredito em coisas que aconteçam com você depois da morte, não acho que o seu ego se reúna com tal força depois da morte, que você possa transitar enquanto ego e o que alguns chamam de espírito, não acredito nisso. Nesse sentido acho que sou humilde, sei que sou uma das tentativas da vida na Terra, que sou uma boa tentativa da vida na Terra. Acho que é uma vida dura porque se morre, e acho que esse amor que a gente DEVERIA TER pelas outras pessoas vem principalmente porque a gente sabe que está irmanado nisso, e isso é quase insuportável para cada um de nós. Se nenhum outro argumento servir, pelo menos você saiba que o outro também sabe que vai morrer, portanto procure-o, olhe-o como igual, porque vocês estão juntos nesse pavor e nisso a gente está junto com todo mundo. E todo mundo tentando não morrer, só que a diferença é que a gente tem esse pecado da maçã do conhecimento, e isso é a nossa salvação e faz com que a gente chegue até as estrelas, ponha os pés na Lua, que a gente estique um DNA – outro dia me disseram que a gente esticando um DNA... Esticar DNA?! Mas tudo isso é porque a gente tem horror à morte, precisa tentar domar a morte, mesmo a idéia de qualquer alívio é também isso, esse horror de você saber que morre. A morte que gera o tempo, a morte que gera essa urgência das coisas. É uma coisa muito trágica saber da morte. A minha relação com a morte é a mais comum de todas, tenho horror e ao mesmo tempo, em alguns momentos, tenho um alívio enorme por saber que a vida vai acabar. Porque não tenho achado uma delícia... No Apocalipse tinha uma fala da Mariana Lima que foi a coisa que mais me tocou. O cara dizia pra ela, na cena do julgamento: “Você tem que se arrepender do que fez”. E ela dizia: “Eu não vou me arrepender. Você quer que eu me dobre, eu não vou me dobrar porque o meu inferno foi aqui”. Dava um tempo e dizia: “Delícia!” E gargalhava e chorava ao mesmo tempo. Aquilo parecia fala minha, eu via como pode também ser aliviante saber que não vou mais existir. Porque não é uma coisa fácil existir, acho que a vida é sempre sob pressão, eu vi o mundo assim, não consegui tirar essa sensação de mim, vejo que a vida é a vida sob pressão pra todos, e talvez por isso que muito urgentemente a gente gostaria de aliviar uns aos outros, porque já é daninho, já é penoso, já é uma coisa complicada. Se dentro da própria espécie a gente não se ajuda, aí vira um inferno, tem horas que realmente eu encaro a morte como um grande alívio, um breu sem pensamento nenhum. Não consigo conceber exatamente, mas a única palavra que me surge é alívio, o alívio do meu desaparecimento, da minha consciência dessas coisas. Não acho que ser humano tenha sido, até hoje, pra qualquer um de nós, uma coisa muito simples. _________________________________________________________________________________________ 85 CA80_nov_2003 Ele tem um sonho. E persegue-o há anos e anos com a tenacidade de um Martin Luther King, aliás um de seus ídolos. O sonho é que cada um dos 175 milhões de habitantes do país, do recém-nascido ao mais longevo, receba todo mês do governo uma renda que ele chama "de cidadania". Uma idéia fascinante, ainda que polêmica, mas é na polêmica que o senador Eduardo Suplicy navega, com uma elegância invejável, mesmo quando critica o seu partido, o PT, e os rumos do governo Lula. Trecho 1 Marina Amaral - A pergunta inicial que fazemos aos nossos entrevistados é sobre a infância deles, o ambiente em que cresceram, no seu caso berço de ouro, pai e mãe de famílias ricas... Eu sou Matarazzo de mãe e Suplicy de pai. Meu pai, Paulo Cochrane Suplicy, era um bem-sucedido corretor de commodities, portanto de mercadorias como café, algodão e outras. E minha mãe, Filomena Matarazzo Suplicy, era filha de Andrea Matarazzo e Amália Cintra Ferreira, neta - e eu portanto bisneto - de Francesco Matarazzo, pioneiro das Indústrias Reunidas F. Matarazzo. Mas não tenho, e minha mãe também não, qualquer parte acionária nas Indústrias Matarazzo. Pela seguinte razão: quando meu bisavô Francesco faleceu - eu não havia nascido ainda, nasci em 1941 -, viu-se que, seguindo a tradição italiana, ele havia deixado o controle do grupo industrial que criou - e chegou a ter mais de trezentas unidades - nas mãos de apenas um filho, era a concepção da época. Sérgio de Souza - É verdade que ele começou vendendo banana, ou é lenda? Acho que ele vendeu de tudo, provavelmente banana, banha, bens de primeira necessidade, nesse setor ele se desenvolveu bastante, e também na área têxtil... Bem, então o escolhido seria meu avô Andrea, mas meu bisavô resolveu escolher outro filho, o Ermelino, e deu de presente a ele um automóvel, um Fiat, que Ermelino foi buscar na Itália, teve um acidente e veio a falecer. Então, meu bisavô resolveu escolher o penúltimo dos treze filhos, Chiquinho, ou Francisco. Meu avô Andrea não gostou da decisão e se desentendeu com o pai e o próprio Chiquinho, vendendo a parte minoritária que possuía na empresa. Por essa razão, minha mãe e seus seis filhos com Andrea Matarazzo (meu pai tinha o mesmo nome de meu avô) não tiveram qualquer parte acionária nas Indústrias Reunidas F. Matarazzo. Mas, como Matarazzo era um nome muito forte e simbolizava quem tinha muito patrimônio, em cada lugar eu tinha que explicar: "Olha, sou Matarazzo, mas não sou o proprietário das indústrias". E isso me acompanhou até hoje, daí essa explicação. Ana Miranda - Em que momento você sentiu que tinha essa aptidão para economia, política, e essa sensibilidade social? Primeiro, dos próprios valores que meus pais me ensinaram, eles tiveram uma formação cristã, católica, que incutiram em todos os filhos. Sempre nos disseram como era importante nos mantermos unidos, os irmãos sempre ajudando um ao outro, mas pouco a pouco fui percebendo que, para além dos muros de casa, a sociedade era muito desigual. Muito da nossa formação vem desde quando jogávamos bola, no meu caso no parque Siqueira Campos (parque Trianon), para onde vinham meninos das mais diversas classes sociais, e eu percebia a diferença de classes por causa da diferença de atitude com quem, como eu, vinha de uma família que estava em melhor condição. Mas um episódio que conto no meu livro (Renda de Cidadania - A Saída É pela Porta) é que, quando eu tinha uns 10, 11 anos de idade, dormindo no meu quarto defronte ao parque Siqueira Campos, por vezes era acordado de noite por gritos de mulheres que estavam sendo espancadas e presas por policiais, e eu então abria a janela pra ver o que era e observava que, dois ou três dias depois, estavam elas lá de volta. E isso me fazia pensar por que aquelas mulheres se sujeitavam a tais humilhações. Sérgio de Souza - Você tinha sua turma, freqüentava uma turma? Dos 10, 12 a 16 anos, eu tinha turma, seja do Colégio São Luís, onde fiz o colegial, seja da Sociedade Harmonia de Tênis, que eu freqüentava, ou do Clube Atlético Paulistano, onde jogava bola e tinha amigos de festinhas na adolescência. Sérgio de Souza - Então, a política não veio daí? Nesse tempo ainda não, mas a partir dos 16 anos as coisas... Oswaldo Colibri Vitta - O Colégio São Luís tinha formação religiosa e também política? No Colégio São Luís houve um certo despertar de interesse. Eu tinha todo o apelo das festas, do grupo social a que eu pertencia, mas de vez em quando os professores e sacerdotes chamavam a atenção para algumas coisas muito sérias, alguns chamavam a atenção para certos valores que pra mim passaram a ser importantes. E resolvi levar mais a sério os estudos e comecei a ter amigos diferentes daqueles que eram mais preocupados com festas... Marina Amaral - Playboy? Essa PODERIA SER uma tendência, mas aí também comecei a levar mais a sério o esporte... Trecho 2 Ana Miranda - Como você conheceu o Lula? Em 1975, o Lula era presidente do Sindicato dos Metalúrgicos, começava a se destacar, e eu era editor de economia da revista Visão, e o sindicato dos jornalistas de São Paulo resolveu fazer uma campanha para que os meios de comunicação obedecessem à lei de regulamentação da profissão, segundo a qual só poderia escrever na imprensa aquele que tivesse diploma de jornalista. E o Lula deu uma declaração de apoio à posição do sindicato dos jornalistas. Então liguei pra ele e falei: "Lula, queria lhe fazer uma visita". Ele era um líder sindical importante, e dizia que eu não podia escrever, eu falei: "Lula, queria lhe explicar que na lei está escrito que 86 aquele que tiver já contribuído regularmente na imprensa tem direito. Em 1962 escrevi quinze artigos na Última Hora, em 1974 escrevi outra série de artigos, portanto sou o caso previsto na lei, posso continuar escrevendo". Esse foi meu primeiro contato com o Lula. Marina Amaral - Mas ele já era um líder sindical importante? Era. Estava começando a ter grande destaque. Bom, em 1976 passei a ser redator de assuntos econômicos da Folha de S. Paulo, convidado pelo Cláudio Abramo. Um dia recebi o convite para fazer uma palestra na Fundação Santo André. E o Lula foi, sentou-se num dos primeiros bancos. Aí terminei a palestra e falei: "Bom, agora, quem quiser fazer perguntas, pode fazer". O Lula levantou a mão e fez uma série de observações, e um professor lá atrás: "O que dirá o diretor da escola a hora em que souber que está aqui um perigoso líder sindical?" Então, o Lula ficou preocupado e resolveu sair da classe. Fui falar com ele, começamos a conversar e ele me disse: "Apareça mais lá no sindicato, vamos conversar mais". E eu realmente comecei a visitá-lo com freqüência e somos amigos até hoje. Sérgio de Souza - Então foi o Lula que o levou pra política? Bom... Nesse mesmo ano de 1976, quando chegaram as eleições, teve um grupo de jovens que resolveu ajudar um candidato progressista, o Flávio Bierrenbach, a ser eleito vereador. E ele foi eleito, e fomos todos comer uma pizza em Moema. E na pizzaria, a certa altura, vieram Eduardo Medeiros, Chopin Tavares de Lima, Plínio de Arruda Sampaio e outros até onde eu estava e disseram: "Olha, estávamos conversando sobre quem é que deveria ser candidato nas próximas eleições; e aí, como seus artigos têm sido muito lidos pelos jovens, e por todas as pessoas, queríamos sugerir que você viesse a defender as suas idéias como deputado". E foi aí que surgiu a idéia. Trecho 3 Sérgio de Souza - Mudou a qualidade dos políticos desde que você foi eleito deputado estadual até hoje no Senado, ou continua aquela minoria de sempre, com essas suas idéias, suas propostas e a maioria sempre sendo cooptada pelo establishment? Eu sou um otimista nesse aspecto. Acho que sempre há um grupo de deputados e senadores com os quais você pode dialogar da forma mais séria possível e, ainda que ocorram problemas no cotidiano, as idéias pouco a pouco acabam prevalecendo. Estou prestes a ver aprovada a idéia que apresentei em abril de 1991, se bem que um pouco modificada. Se vocês quiserem, eu conto essa história. Sérgio de Souza - Claro. Bom, logo que eleito senador, em 1990, transmiti a alguns amigos que, desde os anos 70/80, eu vinha pensando em como seria interessante se instituíssemos a garantia de uma renda para todas as pessoas. O Carlito Maia, que me estimulou muito na vida política, disse: "Eduardo, você tem de apresentar isso". Daí chamei o Antônio Maria da Silveira, com quem eu vinha conversando sobre isso desde 1974/1975, e colocamos no papel. E comecei a expor para o Lula e os dirigentes e os parlamentares eleitos. Quando achei que estava maduro, dei entrada ao projeto de lei, segundo o qual toda pessoa adulta de 25 anos ou mais, se a sua renda não alcançasse o equivalente a 500 reais, teria direito de receber metade da diferença entre 500 e a sua renda. Foi relator da proposta Maurício Correia, que era o líder do PDT. Ele falou: "Achei interessante a idéia, mas precisa flexibilizá-la um pouco". Então a alíquota ficou de 30 a 50 por cento da diferença entre 500 reais e a renda da pessoa. Sérgio de Souza - Mensal, não é? Mensalmente, e também que o projeto seja implantado ao longo de oito anos. Primeiramente, os de 60 anos ou mais, depois os de 55 anos ou mais, até que, no último ano, dos 25 anos ou mais. Em outubro de 1991, o relatório foi aprovado por unanimidade na Comissão de Assuntos Econômicos. Foi então para a Câmara dos Deputados, recebeu um parecer entusiasta e favorável do hoje governador Germano Rigotto, do PMDB. E está há onze anos pronto para ser votado na Comissão de Finanças da Câmara dos Deputados. Ana Miranda - As pessoas que tomam conhecimento do que é o Renda de Cidadania são favoráveis porque quem tem um mínimo de humanidade será favorável a um princípio desses. Mas a dúvida é sempre esta: de onde vem o dinheiro? O projeto previa introdução gradual e previa que o governo iria fazer os cancelamentos e transferências de despesas necessárias no orçamento para viabilizá-lo. Mas eu preciso voltar um pouco pra lhes dizer que ao longo dos anos 90 houve um grande debate sobre a proposição. Surgiu a idéia de relacionar o programa de Renda Mínima às oportunidades de educação, prover as famílias carentes de um complemento de renda para que suas crianças pudessem estar estudando, em vez de precocemente estar trabalhando. Era o Bolsa Escola. Por outro lado, mais e mais fui conhecendo o debate na Europa e nos Estados Unidos a respeito de uma renda básica de cidadania. Em 1986, um grupo de jovens filósofos e economistas formou a Rede Européia de Renda Básica, para batalhar para que em cada nação se instituísse uma renda básica incondicional, uma renda básica de cidadania, que é justamente o tema do meu livro. Ou seja, todas as pessoas, não importa a sua origem, raça, idade, sexo, condição civil ou mesmo socioeconômica, passarão a ter o direito de receber uma modesta renda. A ninguém será negado, não importa se com um mês ou 130 anos de idade, se homem ou mulher, se casado, solteiro, desquitado, viúvo, ou o que seja. Marina Amaral - Mesmo rico ou pobre? Mesmo rico ou pobre. O Antônio Ermírio de Moraes fez ontem uma observação bastante crítica sobre o programa Fome Zero e os programas de transferência de renda, dizendo que podem significar uma esmola às pessoas, e o importante é garantir que todos tenham o direito de trabalhar e ter a sua própria renda. Ora, será a garantia de uma renda algo que deva ser visto como esmola? Ou deve ser visto como um direito inalienável da pessoa humana? Pois bem, até com o maior respeito por aquele que considero um dos maiores empresários do 87 Brasil, o Antônio Ermírio de Moraes, é interessante observar que, desde o início da história do grupo Votorantin, como de quase todos os grandes grupos nacionais, os seus principais acionistas obtiveram, de instituições como o BNDES, o Banco do Brasil e outras, incentivos fiscais e empréstimos a taxas de juros muito mais baixas do que as de mercado, e que constituem transferências de renda extraordinárias de todo o povo brasileiro. Esse é um mecanismo que observo acontecer com freqüência no Senado - todas as semanas, há doze anos, na Comissão de Assuntos Econômicos, estamos ali votando créditos fiscais, incentivos fiscais e créditos subsidiados para tais e quais setores da economia. Então, quando qualquer empresário alerta para uma coisa como essa, é preciso que leve em consideração que, desde quando dom Manuel distribuiu a alguns amigos e pessoas que ele quis homenagear as capitanias hereditárias, temos uma história de transferir grandes riquezas a alguns para promover desenvolvimento, mas a alguns que já detinham grandes recursos, e essa é uma das razões pelas quais o Brasil é um dos campeões mundiais de desigualdade. E ainda não tomamos as providências para reverter essa história. E o interessante dessa proposição, eu DIRIA até a beleza da proposição de pagar igualmente a todos - portanto, até ao Antônio Ermírio de Moraes, ao Pelé, ao Ronaldinho, à Xuxa, a nós aqui, a todos que não estão precisando - é que estaremos garantindo à Maria, ao José, ao Antônio, ao Bruno, a quem quer que seja, o direito de receber um modesto rendimento. Só que os que detêm mais recursos vão contribuir proporcionalmente mais, através da arrecadação de impostos, para que todos venham a receber. E quais as grandes vantagens desse mecanismo? Primeiro, eliminaremos a burocracia envolvida em ter que saber quanto cada um ganha no mercado formal ou informal. Para poder receber a renda básica de cidadania, a pessoa não precisará declarar quanto ganha. Em segundo lugar, vamos eliminar qualquer sentimento de estigma ou de vergonha de a pessoa ter de dizer: "Eu só recebo tanto e por isso mereço tal complemento de renda". Então, estaremos efetivamente com muito mais agilidade, menos burocracia e eficiência, atingindo verdadeiramente todos os pobres, e não apenas alguns. E mais importante ainda, do ponto de vista da liberdade, da dignidade do ser humano: será muito melhor para cada um saber de antemão que nos doze meses de cada ano, e progressivamente mais com o desenvolvimento do país, todas as pessoas vão poder receber uma modesta renda, faça sol ou faça chuva, você doente ou são, empregado ou desempregado. Verena Glass - É um salário mínimo, mais ou menos? Não, é uma modesta quantia, mas, mesmo que paguemos 480 reais por ano, dá 40 reais por pessoa mensalmente. Numa família com seis pessoas, já são 240 reais por mês. Para uma família assim, que more em qualquer lugar do Brasil, mesmo aqui na periferia de São Paulo, já faria enorme diferença. Então, 480 reais vezes 175 milhões de brasileiros daria 83 bilhões de reais, uma quantia formidável, que o Antônio Palocci - como o Pedro Malan - vai dizer: "Não dá, imagina pagar a todo mundo 480 reais por ano, não dá, Eduardo". Ele já me disse: "Você não vai querer que eu comece com isso, né?" Falei: "Não, vamos gradualmente". Começar com toda a população seria equivalente a 5 por cento do PIB. Mas a Caros Amigos conhece o lugar do mundo onde existe uma renda básica de cidadania? A Caros Amigos quer mostrar didaticamente que isso é possível e existe? Então precisa ir ao Alasca. Querem que eu diga como funciona? Trecho 4 Marina Amaral - Outra coisa é que os movimentos sociais sempre disseram que a liberação dos trangênicos é danosa à agricultura. Como o senhor avalia esse episódio da liberação ou não dos trangênicos, essa discórdia entre a ministra Marina Silva e o ministro Roberto Rodrigues? Quase aconteceu de o ministro Roberto Rodrigues impor o seu ponto de vista, mas acho que a ministra Marina Silva, com a sua delicada assertividade, tem conseguido evitar que prevaleça apenas o ponto de vista dos que gostariam da liberdade para a produção e comercialização dos produtos transgênicos no Brasil. Em especial, alguns pontos da legislação estão sendo colocados em função da insistência do trabalho dela e, como não é ainda inteiramente conclusa - do ponto de vista científico e do conhecimento - qual é a repercussão dos trangênicos para a saúde dos seres humanos e para o meio ambiente, ela quer que haja um sentido de precaução e também que haja o direito de as pessoas saberem se a soja é transgênica ou não, e que isso seja uma exigência. Sérgio de Souza - A posição do senador qual é? Inteiramente ao lado da senadora Marina, confio no bom senso dela e na forma de ela agir também, eu não sou um especialista... Sérgio de Souza - Mas é uma discussão política, não só técnica. É uma discussão política, mas, o dia em que for comprovado que os produtos transgênicos não forem maléficos à saúde, aí é uma outra questão, mas isso não está ainda inteiramente comprovado e, ademais, há também considerações com respeito ao fato de que, na Europa, no Japão e na China, há aceitação da soja desde que não seja transgênica. Portanto, há também argumentos que do ponto de vista do comércio e econômico são positivos, o que favorece o que a ministra Marina está defendendo. Rose Nogueira - Eu QUERIA FAZER um comentário. O Brasil é o maior produtor de soja não transgênica do mundo, então está claro, é lógico que é isso que dá certo. São coisas ilógicas que existem e que às vezes basta colocar a lógica. A outra coisa: com esse plantio extensivo não só de soja, mas de algumas outras poucas culturas, com a tecnologia que expulsa o homem do campo, acabou acontecendo que 85 por cento da população brasileira está vivendo nas grandes cidades. Não é lógico que ela seja distribuída um pouco melhor em termos de planejamento? Para a formação do mercado interno, NÃO SE TERIA que falar na questão da lógica? Vem vindo há quinhentos anos essa falta de lógica... 88 A lógica de um desenvolvimento sensato aponta para uma real distribuição de renda, que precisa ser feita de maneira muito mais acelerada. E esse é o grande desafio que todos esperam seja resolvido pelo presidente Lula, pelo ministro Antônio Palocci. Bom, conseguimos, como disse o ministro Antônio Palocci, controlar a inflação. Isso é uma tranqüilidade, porque os efeitos da inflação na distribuição da renda para os mais pobres estão superados. Mas, para combater a inflação, foi necessário elevar bastante os juros, que felizmente agora começam a baixar. Ótimo, nesse aspecto. Mas pensemos um pouco: qual é o efeito na distribuição da renda de pagar tantos juros? Quais são os detentores de títulos, sejam os da dívida externa brasileira, sejam os da dívida pública interna? Se observarmos bem, os rendimentos de juros são pagos, relativamente, mais para as camadas de maior poder aquisitivo. Então, na medida em que conseguirmos fazer a economia ter taxas de juros bem mais baixas e possibilitarmos a economia estar crescendo mais aceleradamente e possibilitando oportunidades de investimento e crescimento de oportunidades de emprego muito mais aceleradamente, muito mais saudável será a nossa economia. Isso é o que diz a lógica que a Rose pede. Mas é preciso também que o governo e o ministro Palocci possam ser mais ousados do que às vezes têm sido, com tantos cuidados com a garantia de estar sempre assumindo o pagamento dos juros aos detentores de títulos da dívida interna e externa. Sérgio de Souza - A crítica só vai até aí, de levinho? Eu sempre me dei muito bem, pessoalmente, com o ministro Palocci, então vai ser bastante difícil você arrancar de mim uma palavra contundente a respeito. Trata-se de uma forma de agir com ele em que, pouco a pouco, não tão rapidamente, acho que vou conseguir chegar às coisas que considero relevantes. Pois a minha relação de amizade com ele começou há bastante tempo. Nos anos 80, eu era deputado estadual, depois federal, fui candidato ao governo do Estado de São Paulo em 1986. Quando eu era deputado federal, 1985, 86, ocorreram no interior de São Paulo movimentos dos trabalhadores rurais, sobretudo da cana-de-açúcar, e foram movimentos importantes em Guariba, no Pontal do Paranapanema, em Leme. E havia, então, um médico sanitarista... Trecho 5 Ana Miranda - Lula tem imensa sensibilidade política e sensibilidade humana; ele sabe com quem está tratando. Ele disse a um amigo, quando já era presidente, que você é uma das poucas pessoas em que se pode confiar. Porque você é transparente e sempre diz a verdade. Você se sente feliz, realizado, por ter cumprido seu compromisso com a busca da verdade? O que significa hoje a verdade pra você? É... (longa pausa) Olha, quero continuar assumindo esse compromisso de procurar sempre a verdade e procurar sempre dizer a verdade. É seguindo esse princípio que eu mais estarei podendo colaborar com o presidente Lula. E com quem estiver sendo presidente do Brasil. É muito difícil manter esse compromisso sempre. Às vezes ficamos sabendo de coisas que são difíceis de poder externar, para não estar magoando as pessoas, para manter o respeito às pessoas. Então acontece que há ocasiões em que não podemos dizer tudo o que sabemos. Mas é preferível então, às vezes, nos resguardamos e dizer o que for possível, mas evitando deixar de dizer a verdade. Marina Amaral - Que ginástica! É. Sérgio de Souza - GOSTARIA de dizer toda a verdade, não é? GOSTARIA sempre. GOSTARIA muito. Sérgio de Souza - Não é possível na política? Há ocasiões em que você não tem a certeza daquilo que chegou ao seu conhecimento e, nessas circunstâncias, às vezes é importante você transmitir a quem tem a decisão, à autoridade, o conhecimento daquilo que você está sabendo, não é? Mas o que posso lhes dizer é que, em tudo aquilo que eu considerar essencial e importante para a vida do país transmitir ao presidente e aos seus ministros, eu procurarei fazê-lo. Sérgio de Souza - E aos eleitores? Aí estarei sempre me lembrando daquilo que disse ao presidente Lula e aos diretores do sindicato em 1979: "O que vocês acham? Estou sabendo destes fatos, vocês acham que devo revelar à opinião pública?" E eles me disseram: "Olha, nós te elegemos exatamente pra que você fale todas essas coisas, como é que funcionam as coisas lá dentro". Então vou estar sempre lembrando disso. CA81_dez_2003 Para dar início à série de debates sobre o governo Lula, trouxemos à redação de Caros Amigos duas das mais expressivas figuras da inteligência brasileira, o professor Dalmo Dallari e o ministro Tarso Genro. Ataque e defesa. Dallari, jurista, professor de teoria do Estado, presidiu a Comissão Justiça e Paz nos anos da ditadura militar, foi preso então, depois seqüestrado e espancado, em 1980, por um grupo de paramilitares, caso que ganhou repercussão internacional. Faz parte do rol de intelectuais de esquerda insatisfeitos com os rumos do governo Lula. Tarso Genro é o ministro titular da Secretaria Especial do Conselho de Desenvolvimento Econômico, órgão ligado à presidência da República cuja função é articular governo e sociedade civil na busca de “formular um novo pacto social”. Advogado, fundador do PT, começou na política como vereador em Santa Maria, Rio Grande do Sul, seu Estado natal. Depois de ser duas vezes vice-prefeito de Porto Alegre, elegeu-se prefeito, em 1992. Intelectual respeitado à esquerda e à direita, Tarso Genro, assim como o professor Dallari, eleva o nível de qualquer discussão. 89 Vamos aos argumentos de parte a parte. Trecho 1 Marina Amaral - Começo perguntando ao professor Dallari, como pessoa que faz parte até da alma do PT, qual SERIA a sua maior crítica ao governo Lula. Dalmo Dallari - Antes de mais nada, faço uma observação: fui convidado para ser um dos fundadores do PT e não aceitei. Eu já era professor de teoria do Estado e um crítico muito forte dos partidos políticos. Ainda não acredito em partido político como verdadeira expressão da vontade do povo. Sabia que o partido iria significar a necessidade de fazer concessões, e por essa razão preferi ficar fora do partido e disse até, na ocasião: “Prefiro não entrar para não ter que sair”. Porque certamente iria haver discordâncias. Esse aspecto quero ressaltar porque, de certo modo, me dá muita independência. Venho acompanhando desde o começo o PT, sinto uma forte identificação com o PT, mas não tenho vinculação, e isso realmente me é muito conveniente, porque posso fazer críticas, e elogios inclusive, sem que isso seja interpretado como produto de uma vinculação. Tenho visto coisas boas, tenho tido momentos até de entusiasmo com o desempenho do PT, como tenho tido também momentos de decepção. Então, essa é a minha posição em relação ao PT e ao governo. Marina Amaral - E qual SERIA sua principal crítica ao governo Lula desde o momento em que foi eleito até agora? Dalmo Dallari - Tenho duas críticas, basicamente. Uma é a de que tem havido concessões excessivas aos padrões econômico-financeiros do FMI, uma preocupação excessiva com o equilíbrio nas contas, isso inclusive influenciando nos gastos. Recentemente se deu publicidade, embora muito restrita, a um relatório do Ministério da Fazenda – acabei tomando conhecimento disso através da crítica feita pelo ministro Cristovam Buarque – que diz que o gasto com universidade pública é favorecimento de elites, que é quase que um desperdício. Essa é uma atitude neoliberal, e que não corresponde à verdade. Sou professor da universidade desde 1962 e sei que na universidade há muitos estudantes que vêm das camadas mais modestas da sociedade. É o meu próprio caso: sou neto de imigrante, filho de um pequeno comerciante de loja de sapatos, fui office-boy em São Paulo, fiz sempre meus estudos em cursos noturnos, e dessa maneira me tornei aluno da universidade e depois professor da universidade. E ninguém poderá dizer que sou membro da elite brasileira. E, a par disso, outro aspecto muito importante de considerar é que nos últimos anos houve uma caminhada no sentido do favorecimento das universidades privadas. E a conseqüência é que o ensino superior se tornou um negócio. E um negócio muito lucrativo. A entrada e a manutenção na universidade são caríssimas, por isso a única saída para as camadas pobres, e até para as classes médias, é a universidade pública. E o que estamos vendo é o governo atual com o mesmo preconceito, a mesma interpretação do governo Fernando Henrique. Lembro que, no governo FHC, a Universidade Federal do Rio de Janeiro ficou durante uma semana sem energia elétrica, fechou inclusive o hospital universitário, porque não tinha dinheiro! E, no entanto, esse é o caminho para a ascensão social das camadas mais modestas, daqueles que só têm como arma para lutar contra as resistências sociais a sua inteligência, o seu intelecto, a sua cultura, e que dependem, portanto, do ensino superior. Tomo o exemplo dessa posição contra a universidade pública porque me parece muito relevante e é uma área que conheço bastante. Mas estou sentindo isso, que há mesmo um direcionamento no sentido de não contrariar os grandes interesses econômico-financeiros. Talvez até o temor das críticas que poderão vir, através da imprensa tradicional, se a linha seguida for outra. Então, essa é a minha primeira crítica, em relação à política econômico-financeira. E a segunda crítica, que é uma crítica até certo ponto forte, é relativa às alianças políticas... Marina Amaral - Vamos fazer o seguinte: o ministro responde a essa primeira crítica, e em seguida a gente entra na outra. Tarso Genro - Em primeiro lugar, um esclarecimento: esse documento referido é originário de um setor do Ministério da Fazenda e sobre o qual tenho o mesmo juízo do professor Dallari. Não concordo com o conteúdo do documento, foi feito por pessoas competentes na sua área, mas é um documento para ser debatido. Marina Amaral - Desculpe, qual é o setor, ministro? Tarso Genro - Pelo que estou informado, é da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda. Ele não traduz a posição do governo e, se eventualmente traduzir a posição do governo, não será a minha. Não tenho essa visão que está sintetizada no documento, aliás muito bem elaborado, respeitavelmente redigido, mas, na minha opinião, tecnicamente errado e politicamente inconveniente. Em relação à questão do modelo econômic o-financeiro propriamente dito, e os gastos públicos que atingem a universidade, o que ocorre é o seguinte: teríamos duas possibilidades de encaminhamento das questões macroeconômicas do governo quando assumimos, ambas com algum grau de risco. A primeira possibilidade seria fazer um afrontamento ao sistema financeiro mundial, em condições extremamente desfavoráveis para resistir a qualquer cerco que viesse desses fatores externos, que desequilibram economias como a nossa. A outra possibilidade é iniciar um processo de transição com determinados critérios, com determinada visão de evolução, e também assumir o risco de não sair do modelo anterior. Portanto, ambas as posições são extremamente arriscadas. Porque não só não existe uma teoria da transição de um modelo econômico para outro, de um modelo neoliberal para um modelo de desenvolvimento, inclusão e altas taxas de crescimento, como também não existe precedente. Depois do hegemonismo tatcherista que se refletiu de diversas maneiras nos países da periferia e semiperiferia, não se criou um caminho alternativo ainda. O governo brasileiro está experimentando a segunda possibilidade. Por que ele escolheu a segunda possibilidade? Por duas razões de fundo: a primeira é porque a correlação de forças na sociedade brasileira, no sistema de alianças que compusemos, não oferece base social e condições políticas para o exercício real de poder de um governo de esquerda, e sim de um governo de centro-esquerda. Portanto, é efetivamente um governo de composição, de conciliação com esses fatores internacionais. É um governo que se 90 propõe a adotar medidas macroeconômicas de estabilidade, acumulando politicamente no plano interno com essa estabilidade, e estabelecendo uma relação com a economia global de mais confiabilidade, porque, para funcionar, o Estado brasileiro precisa dos capitais de curto prazo, e gerar um processo de acumulação pública e privada – e estamos fazendo isso através desse esforço exportador – que nos permita transitar de um modelo para outro. O meu entendimento é que esse trânsito deve ocorrer durante o primeiro semestre do ano que vem. Porque a questão orçamentária deste ano, que é o que nos amarrou nessas limitações, é a seguinte: não houve efetivamente corte de investimentos. O que houve foi a declaração de dinheiro que não existia, um orçamento que era uma peça completamente artificial. Então, o governo Lula é um governo reformista moderado, com uma correlação de forças que permitiu a instalação de um governo de centro-esquerda, e que escolheu um caminho de evolução em direção ao outro modelo de desenvolvimento. Logo, muitas críticas feitas ao governo são corretas, só que elas não levam em consideração o que era possível efetivamente fazer para transitar para um outro modelo. Eu entendo que as condições macroeconômicas agora são favoráveis para transitar, e esse trânsito será feito para um outro modelo de desenvolvimento que tenha características vinculadas ao nosso programa originário, e que inclusive possa resgatar essa dívida que o Estado brasileiro tem com a universidade pública, que é um instrumento absolutamente incontornável como modelo de desenvolvimento que contemple os interesses populares. Trecho 2 Marina Amaral - Como desenvolver um mercado interno forte se há menos empregos, se a renda do trabalhador está caindo, como isso vai mudar no ano que vem? Porque todas essas coisas que o senhor falou me parece que não têm ainda força suficiente para alterar a realidade e que o país não pode esperar mais uma vez o bolo crescer. Tarso Genro - O crescimento econômico, por si só, não quer dizer nem justiça social nem emprego. Porque, principalmente hoje, a partir da terceira revolução científica e tecnológica, a substituição do trabalho vivo pela maquinária tem uma tendência muito grande de aumentar a produtividade, dispensar mão-de-obra, gerar um processo de acumulação forte, e aprofundar as injustiças sociais. Então, quando se fala de um certo modelo de desenvolvimento, ele tem que estar adequado à realidade brasileira. Da nossa desgraça, podemos tirar uma felicidade. Qual é? É que temos no Brasil necessidade de combinar dois tipos de desenvolvimento, portanto dois tipos de crescimento: um voltado, por exemplo, para a construção da infra-estrutura do país, planos habitacionais, hospitais, escolas, estradas, portos, e nisso precisamos investir bilhões e bilhões. E isso tem uma enorme capacidade de captar a mão-de-obra não-especializada. De outra parte, acumulamos uma larga experiência produtiva em setores de ponta, que nos permite ser um país também competitivo em escala global, à medida que formarmos aqui grandes grupos econômicos privados, ou públicos, ou público-privados que tenham capacidade de disputar o mercado mundial, particularmente nesses setores de ponta. E temos a possibilidade de combinar no campo dois processos extraordinariamente importantes: o desenvolvimento de uma propriedade familiar produtiva, voltada para o mercado interno, para a manutenção digna das famílias, com a grande capacidade exportadora que tem o setor agrícola capitalista do campo. Esse processo combinado é a magia do novo modelo, uma arquitetura que vem de decisões políticas, e ele não será induzido senão a partir do Estado. Isso significa recuperar a capacidade do Estado de desenvolver suas funções públicas. Vou dar, rapidamente, alguns argumentos que apontam que poderemos ter uma mudança o ano que vem. Primeiro, temos que ter, é fundamental, um orçamento não-contingenciado. Segundo, uma taxa de juros baixa, isso está em processo. Terceiro, uma boa parceria público-privada, com controle público, isso está colocado como possibilidade no projeto que foi para o Congresso. Quarto, aumentar o controle público do Estado. Nenhuma mudança significativa ocorrerá no Brasil se não for pressionada e controlada de fora para dentro, nisso acompanho o ceticismo do professor Dallari. Um governo como o nosso tem obrigação não só de suscitar, mas de compreender isso também. Em quinto lugar, uma inserção internacional soberana, que resgate o papel ativo do Brasil nas relações econômicas e políticas globais. Esses elementos estão começando a se configurar, foram arduamente trabalhados este ano. Portanto, tenho a convicção, não somente a esperança, de que vamos transitar. Mesmo porque, se não transitarmos no ano que vem, dificilmente isso ocorrerá no primeiro governo Lula. Dalmo Dallari - São sérios e ponderáveis os argumentos do ministro. Na minha avaliação, o setor mais eficiente do governo é o de política externa. Estou muito satisfeito, até entusiasmado, com a política externa do governo Lula. Acho o ministro Celso Amorim um homem extraordinariamente lúcido e equilibrado. Quer dizer, não faz basófias, não se exibe, muito tranqüilo, mas com uma argumentação extraordinariamente sólida. Que vai mostrando, e já por fatos, que o Brasil não precisa e não devia ter ficado numa atitude de submissão como ficou até agora. Até o governo Fernando Henrique, tudo se passava como se o Brasil fosse um coitadinho, que tinha que se dobrar ao que os outros exigissem. E o ministro Celso Amorim está demonstrando que não, que, sem romper com os outros, sem lançar desafios, sem agredir, podemos, sim, afirmar nossa soberania. E isso está muito evidente nas discussões da ALCA. O Brasil não está fazendo concessões, está colocando seus interesses como prioridade e nisso estamos caminhando muito bem. Mas vejo uma certa contradição entre isso e algumas coisas que acontecem na área econômica. Por exemplo, o ministro lembrou bem que uma das diretrizes da moderna economia – convencionou-se dizer que é da moderna economia, nem é tão moderna assim – é a redução da mão-de-obra. É grande empresário quem consegue produzir alguma coisa despedindo um grande número de trabalhadores. Quase que diariamente a gente tem notícias a respeito disso. Trecho 3 91 Marina Amaral - A ALCA é um tema debatido no Conselho, ministro? Tarso Genro - O tema ALCA já passou por dentro de diversos temas debatidos no Conselho. Tanto é verdade que, das quatro “cartas de concertação” que saíram das reuniões plenárias do Conselho, duas fazem menção à ALCA. O que o professor colocou é correto, mas quero dizer que, das primeiras cláusulas que estão sendo debatidas no novo contrato social, uma refere-se especificamente à ALCA. Ou seja, que a integração de forma cooperada entre os países americanos, nas suas relações comerciais, não deve transformar a América Latina num território comercial americano. Esse é o conteúdo da indicação dada pelo Conselho até agora. E a ALCA bate efetivamente de forma diferente nos vários setores. Tem setores com uma visão de que a ALCA vai nos enriquecer, outros setores de que vai nos arruinar. E, de fato, a questão é muito mais complexa, não está relacionada exclusivamente com interesses mercantis de tais e tais setores da produção, mas sim com um projeto nacional. Dalmo Dallari - Vou fazer uma colocação a respeito de uma certa estagnação em relação ao Mercosul, porque já se disse que é indispensável criar uma ordem jurídica supranacional, criar órgãos próprios do Mercosul, primeiro fixar normas, mas órgãos também para decidir conflitos. Assim como a Europa fez. A Europa criou um direito supranacional, e nós não criamos, o Mercosul até agora continua a ser um acordo entre presidentes da República. Porque, pelos documentos do Mercosul, os presidentes decidem tudo. Os próprios ministros, o chamado Conselho de Ministros do Mercosul é falso, porque na verdade eles são delegados do presidente. Então, não seria o momento de trabalharmos no sentido de criar esse direito supranacional do Mercosul? Tarso Genro - Sim, acho que é urgente. O Mercosul, na verdade, foi retomado praticamente do zero. A crise da Argentina e a crise do real, a desvalorização do real, anularam praticamente todos os esforços que foram feitos e que criaram uma situação de interesses comuns artificiais, de economias débeis, sem condições de resistir a ataques especulativos e com inserção não soberana na economia global. Um dos pressupostos do Mercosul é precisamente que haja um processo de integração jurídica para que essa relação interna se torne uma relação comum na economia globalizada. E que tenha um sentido de proteção, não protetivo nessa visão degradada que é colocada pelo neoliberalismo, mas que seja no mínimo tão protetivo como é a economia americana, em relação a seus interesses. Trecho 4 Marina Amaral - Bom, como o tempo que os senhores nos deram está acabando, GOSTARIA que falassem um pouco dessa transição de modelo, para encerrar. O ministro tem fé, acredita que dessa vez vamos sair do dilema histórico brasileiro da transição que nunca acaba sendo uma transição e os privilégios sempre ficam na mão das mesmas pessoas? E GOSTARIA que o professor Dallari acabasse dizendo o quê, na sua opinião, pode comprometer essa transição. Tarso Genro - Vou apenas fazer uma observação, digamos assim, estrutural sobre essa questão. Mais do que uma questão de fé e de necessidade histórica incontornável. Se não redirecionarmos a sociedade brasileira no sentido da retomada do processo de inclusão, de formalização da sociedade, de abrigo da ampla maioria da população nos seus direitos, de crescimento econômico, de distribuição de renda de maneira agressiva, a maior possibilidade para o próximo período é a barbárie. Significa o seguinte: que gradativamente o reino da anomia, da ausência de normas, vai se superpondo e engolindo o Estado e a sociedade formal. E isso significa a possibilidade de um enfrentamento de classes, um enfrentamento entre incluídos e excluídos, que iria manchar a história do Brasil por um largo período. A principal analogia que faço é sempre a Colômbia, lamentavelmente, porque, quando o crime organizado começa a usar uma linguagem política, como o PCC, Terceiro Comando etc., é porque há uma situação extremamente grave em andamento. Então temos que concertar um esforço para dar sustentação a uma transição de fundo no modelo, e isso significa retomar inclusive a identificação de um projeto nacional, que houve na década de 30, que houve na época do Juscelino em parte, que houve na época dos militares, com seu vezo autoritário e elitista, e desapareceu nos “tiros certeiros” do presidente Collor e foi mantido até agora. Temos que mudar isso para uma outra direção. Dalmo Dallari - Basicamente estou de acordo, apenas insistiria no ponto em que não podemos fazer concessões demais aos velhos vícios políticos, senão jamais haverá essa transição. Eu lembraria isso voltando um pouco na história do Brasil, que o Brasil em 1822 proclamou a Independência e continuou governado por portugueses. Depois proclamamos a República e vários ministros eram barões, condes e viscondes. Depois, em 1930, acaba a Primeira República e daí a pouco aparecem no governo, inclusive como interventores, vários membros da velha oligarquia paulista. E depois, mais recentemente, a gente derruba a ditadura militar e quem aparece na presidência da República é o líder dos militares no Congresso, o José Sarney. Então é um sistema recorrente, a gente não sai, não avança, e tenho medo de que isso se reproduza, mas, de qualquer maneira, há um aspecto extremamente importante que a gente tem que levar em conta: o Brasil está avançando em termos de participação do povo, tenho absoluta convicção de que no final do século 20 ocorreu a mudança mais importante de toda a história brasileira, que foi o aparecimento do povo. Porque, na verdade, tínhamos um ajuntamento de indivíduos, e depois de 1964, é até um paradoxo, porque exatamente durante a ditadura militar, foi que o povo se organizou, e costumo dar como exemplo disso a organização das mulheres, que foi extremamente importante e teve um peso enorme na Constituinte de 1988; pela primeira vez temos na Constituição a proibição de discriminação contra a mulher. Isso não ocorreu porque o homem brasileiro deixou de ser machista, mas porque as mulheres conquistaram, porque estavam organizadas. Então, no final do século 20 vamos encontrar muitas organizações, e há a questão do que significa Porto Alegre hoje nas análises políticas feitas fora do Brasil. Tenho um contato bastante íntimo e antigo com a França, fui até há pouco professor visitante da Universidade de Paris, minha mulher é professora visitante da Universidade de Nantes, e vários professores fizeram essa observação, 92 estão convencidos de que Porto Alegre está definindo um novo modelo político, um modelo que dá menos peso ao representante e maior peso à democracia direta. Acho que é um dado novo que não podemos perder de vista. Vamos trabalhar mais isso, o próprio governo deveria trabalhar, dar mais força para os movimentos populares, ouvir mais o povo diretamente, até para ficar menos dependente dos representantes no parlamento, no Legislativo. Mas, de qualquer maneira, acho que estamos avançando, só precisamos tomar cuidado para que não haja retrocesso, que a gente outra vez não entregue o governo àqueles que querem andar pra trás. Tarso Genro - Para minha felicidade, estou na raiz dessa experiência de Porto Alegre. No primeiro governo Olívio Dutra eu era vice-prefeito, secretário de governo, depois fui prefeito, depois voltei a ser prefeito, e o grande elemento simbólico de Porto Alegre é precisamente a destruição dessas barreiras burocráticas que separam o Estado do cidadão comum, e a instituição de controles públicos de natureza não estatal sobre os governantes e sobre a estrutura do Estado, e isso significa integrar representação e democracia direta sem que se perca a estabilidade institucional, a existência dos poderes constitucionalmente vigentes, e assim por diante. E o Conselho do Desenvolvimento Econômico e Social não é um orçamento participativo, mas é uma estrutura inicial de controle público não-estatal sobre políticas públicas, sobre macropolíticas públicas. O plano plurianual pela primeira vez foi discutido ainda ensaisticamente, mas foi discutido em todas as capitais do país para começar esse processo, e o governo dispõe hoje de um cinturão de conselhos, Conselho de Saúde, de Assistência Social e assim por diante, que têm que ser potencializados como estruturas de participação direta. Eu defendo uma posição de que temos que marchar para um orçamento participativo nacional. Não é verdadeiro que não é possível fazer isso porque viraria assembleísmo. É possível instituir mecanismos intermediários de participação, de representações de segundo grau da cidadania para trabalhar os reflexos do orçamento público em cada região. Isso inicia uma dinâmica democrática nova no país, o encarregado desse processo no governo é o ministro Luís Dulci, é uma pessoa muito capaz e que tem muita experiência, pois trabalhou no governo Patrus Ananias, que aplicou lá o orçamento participativo. Dalmo Dallari - Eu faria uma última observação em termos de comunicação. Há vários pontos aí. Primeiro, que nunca ouvi ninguém do governo lembrar que o Lula é presidente constitucional e não um ditador. Acho que seria muito importante, para que essas pessoas que estão fazendo cobranças agressivas, exageradas, lembrem que há limitações e que é melhor que existam, porque sem elas o que resta é a ditadura. E outro ponto que critico e já ouvi ser criticado também é que se enfatiza demais a questão econômica, e não se ouve o presidente falar sobre o que vai ser feito com a educação, o que vai ser feito com a saúde, como se tudo isso fosse secundário e não tivesse importância. Então, talvez fosse conveniente que se desse mais ênfase ao que se pretende fazer, ao que se está fazendo nessas áreas. Tarso Genro - Eu acho que a linguagem no primeiro ano foi uma linguagem muito economicista. Temos, evidentemente, as razões para tanto, mas isso efetivamente não pode se eternizar, é necessário que a própria linguagem, o discurso do governo nesse segundo período sejam um discurso que aponte diretamente para essas políticas sociais, educacionais, que são essenciais inclusive para caracterizar o novo modelo. Marina Amaral - E por que ficou essa linguagem economicista, o senhor disse que havia razões, quais SERIAM? Tarso Genro - É uma categoria política criada pela população, a força que vem da realidade e que obriga que as categorias econômicas se tornem essenciais para poder dirigir o Estado. Dalmo Dallari - Mas essa realidade não SERIA a grande imprensa? Porque o povo espera outras coisas e uma observação que já ouvi é que parece que o governo governa pensando nos empresários... Tarso Genro - Evidentemente que o governo também governa pensando nos empresários. Mas a medida dessa preocupação é a retomada do crescimento da economia, é a ativação do desenvolvimento econômico, e realmente acho que a imprensa tem uma influência muito grande. Isso não é só aqui no Brasil, a imprensa tem se tornado um elemento que faz a pauta política e com uma grande carga de economicismo, e não sei se sai desse universo pela vontade, mas por um conjunto de ações que permitam que o governo imponha a sua própria agenda, como é, na minha opinião, a agenda do crescimento e da distribuição de renda. CA82_jan_2004 Trecho 1 Sérgio de Souza - Começamos sempre perguntando da infância do entrevistado. Sou filho de médico e meus primeiros dez anos de vida se passaram no interior pernambucano, em várias cidades, porque meu pai era clínico-geral de uma entidade de saúde pública. Então, meus primeiros dez anos foram em cidades do interior pernambucano. Mas curiosamente não sou marcado por lembranças de uma infância povoada desse imaginário que meu trabalho expressa. Só uma vez, eu tinha uns 12 anos, viajando com meu pai, tivemos de passar uma noite na cidade de Patos, no sertão paraibano, e meu pai me levou pra passear na praça e lá tive a oportunidade de escutar um cantador. Por essa época eu já começava a demonstrar vocação pra música, tamborilava muito na mesa, principalmente nas horas das refeições, aí meu pai notou que eu DEVIA TER JEITO pra esse negócio de música. Ele também guardava dentro dele um pouco da vocação do músico, quando jovem era o seresteiro da turma. Então me botou pra estudar violino. Aliás, uma relação meio inusitada, né? O batuqueiro com o violino... Marina Amaral - Quantos irmãos são? Somos eu e três irmãs.Todos os quatro fomos colocados pra estudar música. Mas eu perseverei. O violino me seduzia, primeiro estudei com uma professora e depois com um professor catalão chamado Luis Soler, ao qual eu devo muito minha formação de violinista. Eu estudava na Escola de Belas-Artes, em Recife, e ao mesmo 93 tempo mantinha com minhas três irmãs um conjunto, vamos chamar assim, doméstico, pra contrabalançar um pouco a sisudez dos estudos acadêmicos. Então tocávamos músicas que ouvíamos no rádio e na televisão. Quer dizer, era um conjunto que tocava Roberto Carlos, Beatles... João de Barros - Isso é a década de 60... É, eu tinha 14, 15, 16 anos. Minhas irmãs tocavam violoncelo, escaleta, acordeão, piano, e revezávamos todos esses instrumentos. E cantávamos em festinhas, em centros de saúde, até na televisão de Recife, mas ao mesmo tempo eu tocava em orquestra de câmara, dando concertos. Eram dois universos musicais muito distintos e o professor de violino não gostava muito que eu fizesse aquilo. A música popular que eu fazia com minhas irmãs era toda referenciada na Jovem Guarda, um pouco da Tropicália, Alegria, Alegria, Domingo no Parque, Beatles. Era o que a gente ouvia, basicamente. Marina Amaral - E o violino entrava nessas músicas? Eu tocava também um pouco de violino, escondido do professor. E tocava em orquestra sinfônica. Foi precisamente assistindo uma vez eu tocando em orquestra de câmara em Recife, o Concerto em Mi Maior de Bach, na Igreja de São Pedro dos Clérigos, que Ariano Suassuna me convidou para integrar o jovem grupo que ele estava idealizando, o Quinteto Armorial. Eu já tinha 17 anos e deveria estar prestando naquele ano o vestibular de direito. Ariano contava uma história muito boa que se dizia antigamente – quem não tinha medo de ver sangue ia ser médico, quem tinha jeito pra matemática, engenheiro, quem não dava pra nada, direito. Era o meu caso. Topei o convite de Ariano no ato. Mas àquela altura eu nem sequer sabia o que era a rabeca, porque ele me convidou pra tocar violino e rabeca. Então, o primeiro passo que dei foi conhecer a rabeca, ou o rabequeiro. E a partir desse instante se instaurou dentro de mim um processo... Mylton Severiano - Você nunca tinha ouvido falar em rabeca? Não. Quer dizer, filho de classe média. A classe média brasileira, em todas as cidades de médio porte, é a mesma. A cultura popular fica na periferia, muitas vezes na periferia dessa periferia. E eu, como a maioria de nós, brasileiros, era órfão de conhecimento dessa cultura. Bem, então, Ariano me convidou para integrar o grupo. Os ensaios eram na casa dele. Éramos eu, o Antônio José Madureira, que era o coordenador, o Edílson, que tocava violão, José Generino, que tocava flauta... pronto, nasceu como um quarteto. Depois incorporamos um marimbau, que é uma espécie de berimbau tocado transversalmente, um instrumento muito tocado pelos músicos de feira. Pois bem, aquele universo me tomou completamente, era como se eu tivesse encontrado uma forma musical que me dava plenitude de uma maneira que eu não havia conseguido até ali. Sendo músico acadêmico e músico popular, eu não tinha conseguido juntar aquilo. Então comecei, a partir disso, a me interessar pelo universo da música em particular e da cultura popular em geral. Sérgio de Souza - Voltando a Recife, o que era exatamente o Movimento Armorial? Bem, é uma questão simples por um lado e complexa por outro. O lado mais simples, a primeira definição, é aquela que Ariano dá, que armorial é sinônimo de heráldica, e heráldica como coleção de brasões, de armas, de uma cultura, de um povo. Com isso, ele abriu a guarda para os críticos de plantão, no sentido de conceituar o Movimento Armorial como um movimento elitista: ora bolas, uma arte que tem nos brasões das famílias nobres a sua fonte de inspiração, isso sim é um movimento elitista. Mas Ariano tomava a palavra armorial, sinônimo de heráldica, para nomear aqueles emblemas, aqueles símbolos presentes na cultura do povo brasileiro, principalmente o Nordeste. Ou seja, a camisa de um time de futebol tinha sinais armoriais, era um emblema, quer dizer, antigamente, porque hoje mais não, hoje a camisa é Parmalat, Coca-Cola... mas antigamente a camisa do Santa Cruz, aquela camisa do Sport, o leão, o tricolor do Santa Cruz, o timbu do Náutico eram camisas muito bonitas dos times de futebol. Os estandartes das agremiações carnavalescas de Pernambuco... Na verdade, o que Ariano propunha era o seguinte: olhem pra cultura brasileira, porque, se a gente não olhar pra ela, ela vai acabar. Vejam como a cultura desse povo, os cantos, os toques podem ser material extraordinariamente rico para inspirar a nós artistas plásticos, poetas, músicos etc. Bem, é fato consumado que qualquer arte tem que ter fonte de inspiração, um ponto de partida. Não existe arte que nasce do nada. Por exemplo, eu como jovem, que levava dentro de mim a semente e a energia criadora da música, o que eu tinha pra abastecer isso, organizar essa energia criadora? A escola de música, de violino, aquilo não me bastava, eu procurava noutro canto – a música popular que eu escutava no rádio. Então, imagine, quem é que diz que ganhei um concurso em Recife cantando Calhambeque? Mylton Severiano - Mas você cantou no ritmo da Jovem Guarda ou adaptou? Cantei tentando imitar Roberto Carlos! Aos 15 anos de idade. Marina Amaral - É uma brasa, mora! Exatamente! Tirei o primeiro lugar. No ano seguinte tirei o primeiro lugar cantando Arrastão, de Elis Regina, e fazia toda a mise-en-scène de braço dela. Mas, então, eu tinha uma energia criadora como todos os artistas têm, como todos nós temos, que procurava se expandir, e as referências eram aquelas. Quando encontrei uma referência que pra mim representou um clarão, um farol, maior do que todas as outras, as outras apagaram. É isso que falta ao Brasil, que a gente veja, encontre essa luz, onde é que ela está apontando. Tanto isso é verdade que, por exemplo, na minha história pessoal, dando um salto de mais de trinta anos, quando já vivia em São Paulo, uma coisa que me incomodava muito era meus filhos não terem oportunidade de conviver com aquela cultura com a qual eu, embora somente aos 18 anos, passei a conviver. Não acreditava que eles não teriam aquilo dentro deles, e se na cidade de Recife era difícil encontrar, imagine na cidade de São Paulo! Nicodemus Pessoa - Você chegou em São Paulo em que ano? Eu cheguei em 1983. Então, a primeira coisa que fiz foi botar um pandeiro na mão dos meninos, para eles tocarem. Eu digo na brincadeira que acho que todo brasileiro devia carregar na sua pochete um pandeiro. Sérgio de Souza - Quantos filhos são? 94 São dois. E aí procurei, a partir disso, trazer um pouco esse Brasil pra eles. Hoje, meu filho me acompanha como músico, né? Os dois trabalham comigo. A certa altura, eles começaram a conviver conosco nas nossas jornadas, digo conosco porque minha mulher, que é curitibana, também começou a se interessar por esse universo e culturalmente ela é tão pernambucana quanto eu, e tão nordestina e tão brasileira quanto eu. E começamos a levar os nossos filhos nas nossas idas e vindas pelo interior, principalmente pernambucano. Eu passo geralmente do período de Natal até o Carnaval em Recife e adjacências. E quando chego por lá vou visitar os maracatus rurais, os cavalos-marinhos... No começo, os meninos não gostavam muito dessas coisas, não, “vamos embora, vamos embora”. Hoje, a coisa se inverteu de tal maneira que eu é que digo: “Rapaz, vamo embora. Tô cansado, vamo dormir”. Porque um samba de cavalo-marinho começa às 10 horas e vai até o sol raiar, 6 horas da manhã. Uma sambada de maracatu rural também vai até o outro dia. Chega esse período de 10 de dezembro até Carnaval, a pisada é essa, todo fim de semana. E eles querem ir, eu vou e já começo então a ... Sérgio de Souza - Querer ir embora? Exatamente. E hoje em dia não somente eles vão como levam os primos, os amigos e os amigos dos primos. O ano passado, a gente foi para uma sambada de maracatu, em Nazaré da Mata, que foi preciso alugar um ônibus porque foram mais de trinta amigos deles daqui de São Paulo. Andrea DiP - Quantos anos eles têm? Dezenove e dezessete. Luiz Guerreiro - Você não aparece muito nos meios de comunicação porque seu público é uma elite? Olha, vou refutar um pouco essa coisa. Não acho que o meu público seja elitista. Acho até o contrário. Não considero elitista o povo que vai assistir a um espetáculo no Tuca. Elitista mesmo, pela conformação social, é aquele que paga 50, 60, 70 reais, que freqüenta principalmente o Credicard Hall, o Alfa, o Tom Brasil. Não estou fazendo críticas, não. Esse é um público de poder aquisitivo maior. Um público que paga um ingresso de no máximo 20 ou 25 reais é um público médio brasileiro que consegue freqüentar casas de espetáculos. Ricardo Vespucci - Tem mais uma coisa que acho que se encaixa perfeitamente: a experiência do Moraes Moreira. O que você pensa sobre ela, quando ele traz a guitarra? Porque, no meu ponto de vista, ele não abre mão também do melódico. Moraes Moreira é um excelente melodista, gosto muito da música dele, no campo da música popular é um dos músicos que eu mais respeito. Eu respeito o Moraes Moreira na mesma dimensão que respeito Alceu Valença. São pessoas cujos trabalhos estiveram ligados a uma fase de muita influência da guitarra na música brasileira, mas que souberam dar a essa guitarra, na maioria de suas obras, um sotaque brasileiro. Acho o trabalho de ambos um trabalho de dois cançonetistas muito bons, e o Brasil deve muito a eles. Sérgio de Souza - E você acha que isso não aconteceu com o Chico Science? Olha, Chico Science teve uma vida musical muito pequena. Não posso dizer até onde ele. Acho que a representatividade maior de Chico Science foi ele ter conseguido juntar na música a chamada música pop, que eu conheço mal. Mas ele justapôs, coligou essa música com os ritmos da música pernambucana, principalmente a do maracatu-nação. Não acho formidável essa justaposição, mas não deixo de reconhecer que, por ele estar ligado a uma grande gravadora, que só o convidou porque ele tinha esse pé na música pop, ela trouxe, sem querer, até para camadas sociais maiores do Brasil, principalmente de Pernambuco, o conhecimento, quer dizer, a lembrança de que “olha, existe o maracatu, existe o coco”... É uma situação diferente da gente, que não fez a ligação com o pop, e acho que é por isso que o meu trabalho não tem o mesmo atrativo para a grande mídia, porque não faço essa conexão. O meu patamar de reconhecimento para criar uma música urbana brasileira é Jacó do Bandolim, é Pixinguinha, é Abel Ferreira, é também Moraes Moreira, é Alceu Valença, é por aí... mas essa composição não dá liga com o que a mídia quer. Eu, uma vez, estava dando uma aula-espetáculo a um grupo de jovens e disse: “Jacó do Bandolim é um solista da mesma estirpe, se não for superior, de Jimmy Hendrix”. Aí, o pessoal se retirou. Depois eu os procurei, perguntei: “Rapaz, por que vocês se retiraram?” “Como é que você vem dizer que Jacó do coisa...” Eu disse: “O que vocês já escutaram de Jacó?” Ele disse: “Eu nem sei quem é”. Aí eu disse: “Não dá nem pra gente começar uma conversa”. Se alguém já ouviu Jacó do Bandolim tocando Ingênua, a palhetada daquela Ingênua, já ouviu o frevo Sapeca, qualquer obra dele, sabe que aquilo é um músico de primeira linha, um virtuose do instrumento. Qualquer país se honraria de ter na sua história musical um músico como Jacó do Bandolim. E no entanto... Ricardo Vespucci - E não precisava usar distorcedor... Aí até que não sou contra, desde que isso venha enriquecer a música, mas o pessoal usa como macaco – “se usaram, então vamos usar...”. André Bertoluci - Acho que os jovens que fazem o rap não importam simplesmente um modelo e reproduzem, eles elaboram também e fazem da maneira brasileira, tem até o Marcelo D2 misturando com samba... Eu concordo que o povo brasileiro é tão rico que imprime a sua recriação, e acho que tem lugar pra todos, mas o que fico chateado é que o outro lado, que tem uma dimensão tão grande, tão superior, é moita. Sim, entre o nada e isso é melhor que exista isso. Mas, se esse pessoal tivesse outras referências e não apenas essa mão única de referência, seria diferente. E veja que na cantoria, no poeta popular, o espírito é o mesmo, ou seja: o objeto maior tanto no rap quanto no repente não é a música, mas o texto, é um texto que precisa ser dito. Então, quão mais belo ele possa dizer esse texto, mais é atuante. A sabedoria da poesia popular é tal, que o poeta popular, quando coloca uma toada em seus versos, é uma toada que não tem a complexidade melódica que tem, por exemplo, um samba. O samba seduz tanto pelo melodismo quanto pela letra. Um rap tem que seduzir pela letra, um repente, uma embolada também, mas com uma melodia que seja interessante, sendo que a gente tem uma melodia muito rica, com possibilidade de várias formas e modelos, por exemplo, o galope à beira-mar, a parcela, 95 o oitavo em quadrão, o martelo, o martelo alagoano, quer dizer, a gente tem essa diversidade que, na pior das hipóteses, PODIA TAMBÉM SER MOSTRADA. Quem aqui conhece um Geraldo Amâncio, um Ivanildo Vilanova, quem conhece um poeta formidável, Oliveira de Panelas, nem na história de literatura brasileira se dá um capítulo à poesia popular do Brasil, nem se ensina no colégio essa coisa maravilhosa. Há um desprezo muito grande por essa fatia de conhecimento. Sérgio de Souza - A que você atribui isso? A vários fatores. Primeiro, porque a gente nunca respeitou o povo, nunca respeitou o terceiro Estado. Depois, essa palavra folclore ganhou um significado de coisa exótica, coisa menor. A palavra foi cunhada dentro do universo positivista, folclore era uma coisa do fantasioso, do extranatural, do mito. A gente não via na cultura popular o seu papel dinâmico e vivo na cultura geral, principalmente em um país jovem como o Brasil, onde ela é muito diferente do que para a França, a Alemanha, os Estados Unidos nem tanto. São países que já têm um conhecimento cristalizado, até mesmo porque a cultura popular deles teve um papel muito grande. O que SERIA de Mondrian, de Rabelais, de Shakespeare se não existisse cultura popular na época. A história de Romeu e Julieta era um folhetim, Shakespeare foi apenas um entre vários que trataram daquela história. O que SERIA de Lorca, de Cervantes sem a cultura popular: o Quixote é uma figura nutrida, alicerçada nela. E o Brasil prova isso, o que seria de Guimarães Rosa, de Villa-Lobos, você pode dizer que os maiores criadores do Brasil têm um pé na cultura popular do país. A cultura popular carrega uma missão na cultura do mundo que a gente ainda não foi capaz de ver. Luiz Guerreiro - Você tem algum apoio para o seu trabalho hoje em dia? Não, atualmente não. Trecho 4 João de Barros - Por falar nisso, você acha que o Lula está tocando violino, ou seja, pegou o governo com a mão esquerda e toca com a direita? Eu acho que o Lula está indo muito bem. É complicado satisfazer a essa crosta brasileira, essa elite empedernida de visão distorcida de humanidade. Então, acho que ele está indo com muito cuidado. Veja os jornais, eu não entendo muito a imprensa. Rapaz, um homem que veio de uma formação totalmente diferente do que é a tradição política brasileira, que cria um partido completamente na contramão da história política brasileira, esse homem entra no poder, eu acho que todas, todas as classes do Brasil, pelo lado da consciência, deviam dar a mão a esse homem. Se a gente tem que extirpar a pobreza no Brasil, que é crônica, e supondo que os jornais são os vetores mais intelectualmente preparados pra isso – estou falando dos grandes jornais –, eles deveriam se colocar a serviço. O que a gente vê é um combate surdo, a corrente é contra. A dificuldade dessa crosta empedernida que não quer sair do poder, que não quer largar esse negócio. Mas a gente vai lutar, acho que vamos dar um passo pra frente, sem dúvida. Não há volta mais, não. Marina Amaral - Voltando à música, você vende mais CD em São Paulo ou no Nordeste? Eu tenho duas vendagens: as que a Trama faz, distribuindo, e que me dá uma salariozinho por mês, e as que eu faço durante os shows. Eu ganho mais nos shows, tenho uma vendagem elevada, às vezes de 20 a 30 por cento das pessoas que vão ao espetáculo compram o CD. E agora estou investindo também numa outra bitola, que é a do DVD. Porque ela traz de uma maneira mais integral o temperamento do meu trabalho. Estou lançando justamente agora, provavelmente quando sair a entrevista já lancei. E tive a sorte de trabalhar com o grande Válter Carvalho. Gravamos em Recife, fizemos em película, foi até uma coisa meio arrojada. Antônio Martinelli Jr. - GOSTARIA que você falasse um pouquinho do livro que deu nome ao DVD, Lunário Perpétuo... Eu ouvi falar pela primeira vez no Lunário Perpétuo quando li, muito jovem, meu primeiro livro sobre cultura popular, que foi Vaqueiros e Cantadores, de Câmara Cascudo. Ali tomei conhecimento de um livrinho chamado Lunário Perpétuo, que os cantadores usavam muito como ponto, como livro de referência para o seu universo intelectual. É um livro que traz um pouco de mitologia, vida de santos... Sérgio de Souza - Um almanaque, não é? É um misto de almanaque e enciclopédia. De uso ali para o povo sertanejo. Varia de edição para edição, mas fica entre quatrocentas e seiscentas páginas. E aqueles poetas que sabiam ler tinham o livro como ponto de referência. E achei o nome muito bonito. Eu tenho um livrinho chamado Ideário, em que vou anotando não só nomes para espetáculos como idéias várias, e tinha lá o Lunário Perpétuo. Na verdade, quem lembrou desse nome foi Rosane, minha mulher. Eu até no começo disse: “Será?” Mas depois vi que ela tinha razão. E eu concluo o espetáculo dizendo que, da mesma maneira que esse livro, através do que ele tem dentro, orienta o povo nordestino no seu dia-a-dia, da mesma forma os seus cantos, suas danças, sua maneira de representar orientam o meu fazer artístico. Aí, eu, até poetizando, escrevi num textozinho: “Foi através do conhecimento desses toques, dessas danças.....(silêncio emocionado).....foi através desses cantos, dessas danças.....(silêncio emocionado).... que me encontrei com meu povo e aprendi a amar esse povo. Poetizando, como eu digo, eles são as pedras do meu céu e as estrelas do meu chão. Eles são o meu Lunário Perpétuo”. Bem, há uma coisa negra aí que não consigo compreender, porque, toda vez que essa justaposição de povo se insinua dentro do meu trabalho, eu sinto alguma coisa, as entranhas deles estarem meladas com o que eu faço, aí eu me “desboroto”, eu quebro. Daí não posso prosseguir, mas acho que eu já falei demais. CA83_fev_2004 Eles participaram dos mesmos debates quando a questão era pegar ou não em armas para derrubar os militares e fazer a revolução. Dirigente de uma das mais importantes organizações de esquerda do Brasil, a Ação Popular 96 (AP), Duarte Brasil Lago Pacheco Pereira teve de cair na clandestinidade em 1967 antes que a promulgação do AI-5, em dezembro de 1968, conduzisse o jovem militante do PC do B, José Genoino Guimarães, ao mesmo destino. Em 1973, Duarte deixou a direção da AP por não concordar com a fusão da organização com o PC do B, que defendia a luta armada abraçada por Genoino - que já estava preso por participar da guerrilha do Araguaia. Genoino sofreu nove meses de tortura e cinco anos de prisão. Duarte amargou doze anos de clandestinidade. Ambos se reencontraram nas discussões travadas no combativo jornal "Movimento", do qual Duarte foi uma das principais figuras, no início do processo de abertura política. Novamente o debate sobre o país e as alternativas para a esquerda os colocou em campos opostos: Duarte viu com ceticismo a fundação do PT na qual Genoino se engajou e preferiu a independência que conserva até hoje. Mais de vinte anos depois, os dois voltaram a debater, agora sobre os rumos do governo Lula, na redação de Caros Amigos. O resultado do embate entre o intelectual e jornalista e o ex-guerrilheiro e ex-parlamentar que preside o PT vai mexer com corações e mentes de todos aqueles que querem mudar o país. Marina Amaral - GOSTARIA que vocês contassem para os leitores como se conheceram, porque aí já temos o começo de uma história política que mostra quem está debatendo. José Genoino - A gente se conheceu na clandestinidade, no final dos anos 70, e a nossa maior convivência política foi no jornal Movimento, quando conheci o Duarte diretamente nos debates dos quais a gente participou naquela época, no processo de discussão de uma alternativa de esquerda, no processo de formação do PT, nos debates sobre as derrotas da esquerda, particularmente sobre a guerrilha do Araguaia e depois nos primeiros mandatos parlamentares até a Constituinte. Depois que o Movimento encerrou as suas atividades, nosso contato tem sido mais esporádico. Duarte Pereira - Eu venho da Ação Popular, fui um de seus dirigentes até 1973, quando a maioria decidiu incorporar-se ao PC do B e eu não os acompanhei, então fiquei sem partido, independente como estou até hoje. Nesse período em que nos aproximamos, chegamos a participar de alguns debates, exatamente sobre isso. E na época o conjunto das forças da oposição ainda atuava legalmente através do PMDB, mas começou a surgir a discussão - porque o PT começava a se articular - se era o caso de ajudar o PT, se era o caso de dentro do PMDB formar uma chamada tendência popular. Afinal, o Genoino e outros companheiros decidiram filiar-se ao PT e eu permaneci sem partido. Ao longo desses anos tenho tido momentos de maior proximidade com o PT e momentos de maior distância. Já ajudei em algumas campanhas, inclusive as presidenciais de Lula, de forma relativamente ativa nas duas iniciais, cheguei a participar da elaboração do programa da coligação na primeira campanha dele, na terceira apoiei, mas já não participei por motivo de saúde e, na última, por motivos que vamos debater aqui, já não tive nenhuma participação. Marina Amaral - Depois dessa introdução, o Duarte PODERIA FAZER a primeira pergunta ao Genoino e já podemos começar o debate. Duarte Pereira - Eu acho que um governo pode ser avaliado por dois pontos de vista: sua composição social e o programa que aplica. Os primeiros questionamentos que eu faria dizem respeito ao arco de alianças formado tanto para garantir a eleição quanto para a efetivação do governo. Quando o Lula foi eleito presidente, houve um grande entusiasmo no país porque pela primeira vez um político de origem operária chegava à presidência da República. Indiscutivelmente, pela primeira vez chegavam a cargos de importância no poder político no Brasil militantes que tinham uma trajetória de esquerda e também uma origem popular, operária, simples. Até alguns intelectuais que hoje criticam o governo na época falavam que a eleição representava uma ruptura na tradição política brasileira. No entanto, quem observava com mais cuidado o processo já notava que Lula não chegava sozinho ao poder. Primeiro porque na sua própria chapa a vice-presidência era ocupada por um grande empresário têxtil, um político de opiniões conservadoras e filiado a um partido dominado por políticos de origem malufista e por pastores evangélicos conservadores, uma composição problemática. José Genoino - Vou fazer a minha consideração sobre o fundamento da tua pergunta, Duarte. Acho que há uma relação direta entre programa e alianças políticas e o PT se preparou trabalhando sempre com essas duas vertentes ligadas entre si. Qual é a base do nosso projeto para o Brasil? É um projeto democrático, soberano, popular, que recupere o papel público do Estado, que realize a reforma agrária, que coloque no centro da política do governo a questão social. Fomos eleitos para construir um outro modelo para o Brasil depois do que aconteceu com o modelo neoliberal dirigido por Fernando Henrique Cardoso em aliança com esses partidos de centro que deslocamos para nossa influência. O que se tratava na campanha eleitoral? Que tínhamos de deslocar da hegemonia neoliberal de FHC partidos e setores empresariais para um projeto de esquerda, porque não somos hegemônicos nem na sociedade, muito menos no mundo e nem na gestão do Estado. Esse programa está sendo executado dentro da idéia de que a eleição não foi uma ruptura, trabalhamos com a idéia de um novo projeto num processo de mudança processual, que combina a eleição com a pressão da sociedade, dentro das regras do jogo. Duarte Pereira - Há uma grande parcela do PT e de outros partidos de esquerda que apoia uma agenda neoliberal como mostrei até agora do ponto de vista da macroeconomia e vou mostrar do ponto de vista das reformas. O governo Lula-Alencar se aproximou de que setor do governo do Fernando Henrique? Exatamente do setor financista, do que havia de mais radical de direita dentro daquele governo. É o que está presente dentro da Secretaria do Ministério da Fazenda, da Secretaria do Tesouro, presente no Banco Central, é essa ala financista que está levando propostas radicais que não conseguiram ser levadas à pratica no governo anterior. Não é desconhecido mais a esta altura que o verdadeiro programa que está sendo posto em prática, do ponto de vista da administração econômica e social, pelo governo Lula-Alencar at é agora é o programa que está expresso na chamada "agenda proibida", elaborada por Alexandre Scheikman e que teve sua redação final dada exatamente por Marcos Lisboa, hoje o formulador da política econômica do Ministério da Fazenda. Esse programa foi 97 oficializado através de um documento do Ministério da Fazenda que se intitula "Política Econômica e Reformas Estruturais". Quanto à reforma da Previdência, não vejo em que ela seja radicalmente distinta da proposta encaminhada pelo governo Fernando Henrique. O governo FHC realizou a primeira etapa e o governo Lula realizou a segunda etapa dessa proposta. Não vejo diferença porque as suas origens são comuns. Você não pode esquecer que o governo FHC se dispôs a aprovar e utilizar como ponto de apoio para aprovar a reforma da Previdência o projeto do deputado Eduardo Jorge, e quem se opôs a isso não foi o PSDB, foram setores então dominantes do PT. José Genoino - Eu defendi na época. Trecho 03 José Genoino - Sobre a questão do nosso debate: o detalhe é importante. Você fala sobre os direitos trabalhistas e eu disse aqui claramente que, para o PT, os direitos trabalhistas, férias, repouso semanal, 13º, licença maternidade e fundo de garantia ou algo semelhante são intocáveis, não podem mudar porque são cláusulas pétreas, nem uma reforma constitucional muda. A nossa visão não é como você colocou aí, que era o projeto do governo anterior que podia reduzir, negociar as férias para um terço. Segundo, sobre os militares. Você sabe que tem uma diferença e é bom ir para o detalhe. Um desembargador, um procurador, um funcionário público têm um período determinado e longo na mesma posição. Já os militares têm um período curto de sargento, de tenente, de general, por isso no mundo inteiro é uma carreira que tem especificidade. Sobre as reformas: a coisa que mais me incomodou - e você sabe que no começo do governo FHC fui minoria no PT - era a esquerda ficar contra as reformas. A esquerda tem que disputar reformas alternativas. Vamos pegar o caso da reforma política. É claro que o país precisa dela. Reforma com o princípio da fidelidade, acabar com os trocatroca de partido, discutir o financiamento público de campanha para diminuir o abuso do poder econômico, que é um projeto que estamos negociando com muita gente do PSDB, inclusive com o relator, que é do PFL. Essa reforma política não tem nada a ver com neoliberal, é democrática e republicana. Duarte Pereira - Acho impossível romper com o neoliberalismo sem reestatizar algumas das empresas estratégicas do país para readquirir o controle básico da economia. É claro que a forma de fazer isso, o momento oportuno, vai depender da conjuntura. Mas esse deve ser o nosso objetivo e esse objetivo, como você próprio acabou de afirmar, não está posto na agenda do governo Lula. Reestatizar empresas estratégicas para assumir o controle básico da economia e ter força para exercer um papel regulador mais eficaz sobre os setores - que serão maioria - ainda privatizados. Trecho 04 Duarte Pereira - Seu aspecto principal é quantitativo... José Genoino - Não, não é. É que você tem que ver o outro lado. Você é um teórico competente, e só vê um lado? Vamos ver os dois lados: o da assistência - que é a necessidade imediata e estamos atendendo 1,070 milhão de pessoas com o cartão-alimentação - e as medidas estruturantes, que vamos construindo. Para algumas pessoas, você dá um empurrão e para outras você dá o anzol para pescar. Essa é que é a situação que vivemos na sociedade de exclusão. Você sabe que em muitas cidades do interior é a Previdência, quando os aposentados recebem o salário, e hoje o programa Fome Zero que ativam essas pequenas cidades? Essa é a economia, é esse bom formigueiro de oportunidades que surge no Brasil, isso é o que estamos fazendo. Duarte Pereira - E os milhões de desempregados? O que você tem a dizer sobre isso? José Genoino - Tem que diminuir e enfrentar esse problema e eu já admiti. Agora, você não pode ficar só numa tecla. Duarte Pereira - Eu estou tocando em várias teclas: macroeconomia, contra-reformas... são vários aspectos. Trecho 05 Duarte Pereira - Só te faço uma pergunta: você acha que o socialismo não é concreto, nem viável? José Genoino - O PT tem uma identidade com o socialismo que está no artigo primeiro do seu estatuto. Uma sociedade de homens e mulheres livres, sem discriminação, sem dominação, exploração, baseada nos valores do socialismo democrático, humanista e libertário. E esse é um projeto que disputamos na sociedade, esses valores têm a ver com nosso cotidiano na política, não é um socialismo que é um dia, como se a revolução fosse uma data, como se um dia eu fosse assaltar o Palácio de Inverno. É um processo de construção do nosso cotidiano, nas nossas relações, no nosso trabalho político, no nosso trabalho parlamentar, no nosso trabalho sindical. Portanto, o PT tem uma identidade com os valores do socialismo libertário, democrático e crítico ao modelo ortodoxo, ao modelo autoritário, que o PT já nasceu fora dessa matriz e criticando essa matriz. Duarte Pereira - Eu acho que com isso você mostra o seu distanciamento de Marx, apesar de tê-lo citado. Para Marx, o socialismo é uma forma de organização social, de sociabilidade inédita na história que se constrói sobre o modo de produção e tem sua base na propriedade social dos meios de produção. Não pode haver socialismo, como uma sociedade nova, convivendo com a propriedade capitalista privada a não ser numa fase de construção, de transição. Trecho 06 José Genoino - Vamos com calma, Duarte. Primeiro, que eu não atribuí nada a você. Assim como eu não disse que você estava atribuindo nada a mim. Você fez considerações sobre as minhas opiniões e sobre o PT, extremamente duras. E em nenhum momento eu me senti atacado. Vamos ser claros, você disse claramente aqui que o PT é um partido de direita... 98 Duarte Pereira - Não, senhor. Partido de centro. De direita não é o PT, é o PTB, o PFL... José Genoino - Que o nosso governo é de centro-direita. E eu não considerei que estava sendo atacado, estou sempre fazendo um debate. Eu não disse que você pensava isso, estou afirmando uma visão e estamos fazendo uma polêmica. Eu disse que a sua visão de socializar os bens de produção, acabar com o mercado e a propriedade privada, a humanidade viveu essa experiência, e está aí - caiu o Muro. Segundo: você fala que a igualdade é formal, eu estou dizendo que não é formal a igualdade de que falei aqui. Terceiro: você sabe que nas vertentes do marxismo existe um debate sobre várias formas de propriedade. Formas mistas de propriedade estatal, propriedade pública e propriedade privada. Por último, quero deixar claro que o PT, como partido de esquerda renovado, moderno, não de centro, que governa o Brasil numa hegemonia do governo com setores de centro, está realizando um projeto de mudança para um novo modelo econômico de inclusão, de desenvolvimento, baseado na soberania, na democracia, na justiça social. Portanto, os valores do socialismo não são formais, não são declaratórios, eles se materializam nos atos de governo, nas políticas de governo. E nós temos uma diferença radical tranqüila no debate: estou defendendo esse nosso governo como um projeto de mudança concreta e realizável e você tem uma crítica contra esse nosso projeto, do governo e do PT. Fora disso, não tem ataques pessoais, não tem nada. Duarte Pereira - Mas tem distorções. José Genoino - Não, não distorci nada. Eu não disse nenhuma vez que você distorceu, nem eu distorci nada do que você falou. Está gravado e as pessoas vão ver nas páginas de Caros Amigos. Muito obrigado. Duarte Pereira - Você deu a palavra final. José Genoino - É a regra do jogo. CA85_abr_2004 Zé Celso - (cantando) Só duas coisas têm valor na vida… comida e bebida, comida e bebida… Comida é terra, Deus é terra, essa velha conhecida, que você chama pelo nome que te apraz, pois com comida ela só lhe dá de mamar, ela dá de mamar, ela dá de mamar, aos mortais. Agora soma pra multiplicar bebida, que o filho de sêmen, ele trouxe do fruto molhado da vinha... Embebedando os mortais e liquidando os seus “ais”, trazendo o sonho e o apagamento dos endividamentos de cada dia. Um Deus que aos deuses se dá, um Deus que se põe ao dispor, não há melhor drogaria pra dor. A ele o que se deve e o que se dá e se recebe, Messias que se bebe.” (aplausos) Gosto muito disso. Meu pai tomava um vinho chamado Messias, e as pessoas me acham messiânico; acham o Antônio Conselheiro messiânico. Isso é uma besteira, porque sou oswaldiano. Oswald de Andrade tem um livro maravilhoso chamado Crise da Filosofia Messiânica, onde ele diz: “Não há salvação, a vida é puro usufruto e pura decoração. Não há Messias”. E são geralmente messias as pessoas que querem fazer as coisas, as pessoas que realizam coisas, como Antônio Conselheiro, por exemplo, que fez uma cidade com 25.000 habitantes. Não estava esperando nada, quer dizer, não estava esperando chegar ao céu, chegar à revolução, ou ficar rico, ou o espetáculo do desenvolvimento, estava fazendo – então adoro essa frase. Por isso acredito no Messias que se bebe. Verena Glass - Como era a casa onde você nasceu, a família em que se criou...? Minha família é extremamente tradicional. Meu avô faliu. Era um carpinteiro espanhol, da Galícia, reacionário, franquista, mas muito boa pessoa. Era muito engenhoso, tanto que fez a carpintaria do teatro municipal da cidade, belíssimo, e que por um mecanismo igualava o palco com a platéia, o que possibilitava ser também sede de bailes maravilhosos, ficava um teatro de arena imenso, todo aberto pra uma praça muito bonita. E a família Lupo, das meias Lupo, executou meu avô – tipo essas cenas dos anos 30, de jogar na rua os móveis, de a família ir pra rua –, e a família Lupo também destruiu esse teatro para construir um prédio da prefeitura. Felizmente, isso mudou, atualmente a cidade elegeu um prefeito do PT. Marina Amaral - Que cidade é essa? Araraquara. Acabou o domínio dessa família que era a mais rica da cidade e até ganhei o título de cidadão araraquarense. E foi naquela situação que minha mãe casou com meu pai, que era um homem que vinha da roça, de uma família que tinha muitas terras, mas eles eram completamente loucos. Meu avô português era um hippie, vinha numa carroça distribuindo bala de mel para as pessoas, morava no sítio, tocava violão, e minha vó era uma índia que só tinha um olho e andava em pé no cavalo... Meu pai foi o único da família dele que se alfabetizou, foi pra cidade e fundou uma escola de comércio. Eles foram morar numa casa na “zona”, a zona de prostituição da cidade. Era uma casinha muito simples cercada de putaria por todos os lados. Então havia a preocupação de preservar a família do contato, e tive uma educação extremamente rígida da minha mãe, que era muito católica. Marina Amaral - Que é o Oficina hoje? Não, falta cair aquela parede do fundo e falta o estádio. E, nesses 24 anos, o que aconteceu? Primeiro, conseguimos desapropriar o teatro pelo Estado, na gestão do Franco Montoro –, aí começamos nós mesmos com as obras e o Oficina se transformou no Uzyna Uzona. Marina Amaral - E como está hoje a situação do Oficina? É uma situação que espero que eu tenha, nós todos que estamos lá trabalhando, que estamos aqui, o público que vai ler essa revista, o público que freqüenta o Oficina, as pessoas que têm uma visão de uma cidade diferente, espero que a gente tenha o talento de convencer a pessoa física de Silvio Santos de realizar esse nosso projeto que é um projeto bastante maduro, que já passou pela Lina Bardi, pelo Paulo Mendes da Rocha, de fazer um teatro-estádio no entorno do Oficina, abraçado por um oficina de florestas, como previu o Caetano 99 Veloso em Sampa, que será o campus de uma Universidade Popular de cultura orgiástica brasileira. Isso que queremos fazer lá. O grupo Silvio Santos tem um projeto de intervenção no bairro do Bexiga inteiro, porque eles compraram e destruíram muitas casas. A Erundina esteve pra tombar o Bexiga e não conseguiu. E o Bexiga, que era um bairro maravilhoso, um bairro de encontro da cidade inteira, fora dos guetos, porque geralmente São Paulo hoje, Pinheiros é um gueto, Capão Redondo é outro gueto, cada bairro é um gueto. E não tem um ponto de encontro onde a cidade toda vá. O Bexiga tem essa tradição, mas, depois do Minhocão e dessas demolições, ele ficou um bairro onde as crianças não têm onde brincar, um bairro de estourar carros, de marginalidade, que ainda se sustenta pelos teatros e cantinas, mas ainda não foi feito nada pelo poder público em relação ao tanto que fizeram as pessoas de teatro e as pessoas das cantinas, as pessoas da Vai-Vai, pessoas de lá como Adoniran Barbosa, Cacilda Becker, Oswald de Andrade. É um bairro tão rico e que sempre foi absolutamente menosprezado pelo poder público. Esse Minhocão foi uma espécie de Muro de Berlim que dividiu o bairro em dois e ficou difícil a sociabilidade ali, mas continua sendo um bairro passível de ser revivido como um bairro contemporâneo, moderno, até futurista, se houver uma intervenção nesse sentido. E a intervenção que o grupo Silvio Santos – eu diferencio a pessoa Silvio Santos e o grupo Silvio Santos, que é um grupo de especulação imobiliária – pretende fazer é verticalizar o bairro, pretende reprimir, recalcar o nome Bexiga e ressaltar o nome Bela Vista, fazer o que eles chamam de uma Las Vegas brasileira, o que acho um absurdo, porque Las Vegas é uma coisa que se faz no deserto, não no centro da cidade. E foi acontecer de a sede desse grande projeto cair exatamente aos pés do Oficina. Caiu no lugar onde não podia cair. Eles quiseram comprar o teatro porque a grande pretensão é ali ser o “Vaticano” do grupo, o centro. Onde o Júlio Neves começou a construir uma coisa, eles começaram a dizer que era uma “intervenção cultural”, um shopping center cultural, uma coisa do tipo Jetsons, mas aí já houve critica, já mudaram, o próprio Júlio Neves projetou uma torre enorme, mais alta que o Banespa, uma coisa de implantação mesmo, de ser uma zona verticalizada nas mãos do Baú da Felicidade, né? Aí, houve uma série de problemas, de arquitetos que levantaram a tese de prejuízos pro bairro, de deslocar as pessoas etc. Mas, finalmente, em 1997, sem sabermos, o Condephaat do governo de Mário Covas ainda, e do cara que está lá agora, o Mindlim, que é um sujeito extremamente hipócrita, que na minha frente disse que iria manter o tombamento, decide a liberação do entorno do teatro, o entorno do imóvel tombado pelo João Carlos Martins... Natalia Viana - Você disse que diferencia o grupo Silvio Santos da pessoa Silvio Santos... Porque ele é artista e é muito temperamental, é muito o que vem na cabeça dele. Fiquei impressionado com o seqüestro dele. Eu adoraria estar no lugar do seqüestrador pra poder conversar com ele. Depois lamentei muito o que fizeram com o seqüestrador, claro. E fiquei encantado com o discurso da filha na ocasião, e comecei a perceber que o povo adora ele. João Gilberto dizia uma coisa: “Se o povo gosta, tem alguma coisa”. A Lina Bardi adorava ele. Ela achava que ele era o outro Chateubriand. Ela dizia que a USP DEVIA ESTUDAR o Silvio Santos, porque era muito importante. Ela fez o Pietro Bardi ir no concurso de Miss Brasil, do Silvio Santos. Eu não sou maniqueísta. Por exemplo, o Maluf pagou os alicerces do Oficina. Invadimos o escritório dele fazendo a cena das Bacantes, com a Elke Maravilha. E o Maluf é um excelente ator, ficou fascinado, com cara de criança. O Maluf é um ator atrás de um enorme grupo financeiro. Ele ofereceu dinheiro pro Juruna, o Juruna recusou dinheiro na televisão. Fui pra televisão e disse: “Eu aceito dinheiro, porque dinheiro é de todo mundo, é uma coisa social e não tem dono, eu aceito dinheiro”. Aí, o João Carlos Martins fez a cafetinagem, acabamos indo ao escritório do Maluf, ele começou a erguer o dinheiro para construir os novos alicerces desse novo Oficina. Aí, o Celso Furtado se interessou em terminar o Oficina, levantou os alicerces do Oficina pra que eu não tivesse que recorrer ao Maluf, porque isso me queimou muito no moralismo político. Eu acho que agi dentro da maior ética, os jornais publicaram o que eu falava na época: “O dinheiro é de todo mundo, não vou deixar de aceitar dinheiro de um corrupto pra fazer um teatro”. Foi jogado abertamente, escancaradamente, com a televisão presente. Então é essa coisa do Silvio Santos, tipo Bush: tudo é comércio. Como tem outra posição que tudo é social. Eu acho o seguinte: que a posição do Oficina é uma posição radicalmente cultural, acredita que a arma que existe para combater a violência, para combater a pobreza, para combater a desigualdade é a cultura. A cultura aliada à educação. A educação só não basta. Você pode educar em rebanho, mas a cultura é crítica, é inovadora, é insolente, é libertadora, é polêmica. Então acho que a cultura pode trazer mais comércio, mais sociabilidade, mais igualdade. E o teatro tem uma coisa: se ele é forte, tem que tocar todos os seres humanos. Eu tenho essa audácia, essa pretensão, porque foi tudo construído com o teatro, foi teatro que a gente fez com o Mafuf, foi tudo isso que levantou o Oficina, a gente não tinha nada. Eu tinha uns restos de herança que recebi do meu pai, torrei no Oficina, não tenho nada, não tenho uma propriedade, não tenho nada, nada, nada. Duro, duro, duro. Tenho o teatro. Através do teatro é que foi construído esse teatro. E é através do teatro que penso convencer esse homem. Quero me encontrar com o Silvio Santos, porque tenho certeza de que, se ele pisar no Oficina e eu mostrar pra ele o projeto, ele troca pelo projeto de um shopping cultural, que é mais um shopping, e a gente ganha uma intervenção no bairro, favorável ao Bexiga. Porra, o homem tem um dinheirão enorme. Já construiu esse Baú da Felicidade, é quem tem condições de fazer isso. E é uma idéia realmente magnífica, de o centro da cidade ser verde – São Paulo é a cidade mais menosprezada do Brasil. São Paulo não tem um lugar onde você possa estar. Modéstia à parte, realizei uma obra muito importante nestes últimos dez anos, trabalho num lugar que tem um teto móvel, uma cachoeira, tem terra, tem sol, tem chuva, não é um lugar fechado. Porque aqui em São Paulo todo mundo vive num lugar fechado, esperando o fim de semana pra ir embora. Agora, o impasse é o seguinte: escrevi pra Gil, que é um tropicalista. O Oficina é um teatro tropicalista, voltado para o trópico... Izaías Almada - Não SERIA mais inteligente o grupo Silvio Santos abraçar o projeto Oficina? O que falta ao grupo? 100 Claro. Falta compreensão. Inclusive, no dia 25 de janeiro, dia de São Paulo, a cidade toda em festa e eles trabalhando, demolindo todas as casas, inclusive algumas tombadas. Demolindo tudo e a gente pegou e fez sábado e domingo, dias 24 e 25, espetáculo com as demolições e com a poeira das demolições. E a peça – segunda parte do “Homem” – começa com a gravação dumas girafas enormes, que pra mim já é a própria matadeira dos Sertões, destruindo as casas, como você vê Israel destruindo as casas na Palestina. Uma coisa tocante, fiquei impressionado com aquilo, sentia que era o prelúdio da “Luta”, entramos na fase aguda da luta. Realmente, eles estão na iminência de começar a construção, por isso que tive urgência, que eu queria vir até aqui, que estou querendo ir até o Jô, como vou pro Roda Viva dia 29, estou querendo alertar a opinião pública, contar essa história para a opinião pública, porque acho muito importante o apoio. O grupo tem um poder muito grande, poder financeiro, poder de persuasão. Todo mundo acha que fazer um shopping vai resolver os problemas do bairro, né? Enfim, acho que caiu nas minhas costas uma responsabilidade muito maior do que eu possa ter. Acho uma catástrofe desaparecer o Bexiga, é como se desaparecesse o Pelourinho, como se desaparecesse o Recife Velho, como se desaparecesse a Lapa, como se desaparecesse o Greenwich Village, enfim, é um lugar onde São Paulo se revitaliza, um lugar de pedestre, um lugar maravilhoso. A maior parte da população vai ficar nas cidades e as cidades precisam respirar, precisam de lugares onde se possa estar. Você não está dentro de uma cápsula de outro planeta esperando chegar o fim de semana pra você voltar ao planeta Terra. Natalia Viana - E as pessoas podem estar no Oficina? É aberto? Quer dizer, a gente cobra preços muito populares. E temos um movimento hoje extraordinário que é o Movimento Bexigão – trabalhamos com crianças. As crianças começaram a estourar os carros lá, aí queriam chamar a polícia – “polícia, não, porque polícia mata”. Chamamos um capoeirista do pedaço pra tomar conta, Pedro, que hoje é ator dos Sertões. Começou pela capoeira e atualmente temos mais ou menos quarenta pessoas que trabalham no Movimento e abriu pro bairro, e o Oficina está vivendo a sua quarta história. O primeiro era chamado de Idade do Ouro, depois teve o Oficina Subterrâneo, depois teve o que voltou com Hamlet, e agora tem esse dos Sertões, que é o quarto Oficina, muito aberto socialmente. Temos cem pessoas trabalhando, e esse Bexigão. O Raí nos ajudou muito, ele bancou esse ano passado... Natalia Viana - Você falando da liberação da libido, você que sempre teve trabalhos com movimentos populares, não existe um preconceito desse pessoal? Existe, enorme, mas está quebrado. Os meninos do Bexigão resistiram muito a entrar no Bexigão porque os colegas marginais deles, que estouravam carros, diziam: “Você vai lá e vai virar veado, vai ficar pelado” – não sei o que. Por exemplo, no Homem Um, as crianças nascem nuas, mas eles conversaram entre si e resolveram que não iam nascer nus porque têm consciência do que isso acarretaria. E acontece que, no Oficina, esses meninos e meninas estão tendo uma educação libertária que é maravilhosa. O erotismo, o amor, a libido são opostos à violência. As gangues todas são muito violentas, muito machistas. Se nas Febens se fizesse um trabalho como se faz no Oficina, tenho certeza de que aconteceria alguma coisa. Porque, a partir do momento em que as crianças ouvem as conversas de adultos, ficam sabendo dos namoros, estão entrando na puberdade e é necessário que recebam uma iniciação sexual, porque estão se apaixonando entre elas. Está começando a acontecer isso e é preciso instruir para usar preservativo, está precisando uma iniciação. A gente até colocou na peça uma cena em que elas cantam que é dedicada aos filhos do gozo, que é preciso cantar o amor, na sua crueldade e dor. Que é preciso uma iniciação com todo o rito. E todo o cuidado que tem que ter na formação de uma criança. Mas acho que estamos conduzindo muito bem, tanto que já estamos na terceira peça e essas crianças tiveram uma evolução extraordinária. E o próprio público que elas trazem, elas trazem muitas mães, e o Oficina faz aquele teatro com umbanda e candomblé, que é mais estranho para a classe média do que para o povo. O povo entende tudo. O povo entende de futebol, de carnaval, de música, entende teatro desse jeito... Natalia Viana - Você quer dizer algo para encerrar? Faço um apelo aqui não só para o Silvio Santos, faço um apelo para o governador Alckmin, para a secretária Cláudia Costin, pra que ela acelere o reconhecimento de um convênio com o teatro, porque até então somos posseiros, me recuso a assinar um documento em que a gente seja igual ao teatro Sérgio Cardoso – queriam nos obrigar a assinar um documento em que a gente tem a autorização de uso do teatro por dois, três anos, e queriam botar funcionários que têm horas determinadas, e não quisemos, porque no Oficina quem trabalha na luz, no som, na portaria, todo mundo está envolvido no processo, e a gente ensaia até de madrugada, é uma outra coisa, um centro de produção cultural, não é um centro de exposição. Mas quero fazer um apelo de que saia logo esse convênio, que, aliás, é um dinheiro muito pequeno em relação ao que vai pra Casa das Rosas, que é muito grande, que revejam essa posição do Condephaat, que o governador Alckmin reconsidere o entorno do teatro, agora que entrou um novo arquiteto, o Rui Ohtake, seria maravilhoso se o Rui Ohtake se juntasse à gente e viesse a fazer o teatro-estádio. Ele foi, enfim, um dos amores da Célia Helena, tem uma filha com a Célia Helena, que foi uma das maiores atrizes que já passaram pelo Oficina. Que compreenda esse momento, que se transcenda essa lógica utilitária das finanças, porque podem se dar também 9.000 empregos na área cultural se se ocuparem do Bexiga inteiro, de refazer a Vila de Itororó, que é uma construção romana maravilhosa, é um cortiço, mas uma construção imensa, fica ali pelo lado da Igreja do Carmo. A Vai-vai não tem uma quadra até hoje. Que se preserve o TBC, agora de novo numa situação de perigo, que se preserve a casa de dona Iaiá. Que se preserve uma série de casas maravilhosas, antigas, que se faça um bairro pedestre, moderno, um bairro legal, como o Marais em Paris, um bairro chiquérrimo e popular ao mesmo tempo, que possa ter gente de todos os lugares, e que o Silvio Santos construa também as coisas dele, Las Vegas, a Broadway brasileira, que o Brasil não é o Estados Unidos, e a Broadway brasileira pode ser muito mais rica do que essa coisa de pecinha pra uma classe só ir ver, pra texano ver, essa coisa pra aquela terceira idade que vai ver o teatrinho, né? Pode 101 fazer uma coisa magnífica pra São Paulo. Então faço um apelo ao Alckmin, que foi aqui o único candidato que foi conhecer o Oficina, pra discutir com o movimento Arte contra a Barbárie, pra Cláudia Costin, pra Marta Suplicy, que reveja a posição dela, assuma seu poder a favor dos artistas. Então, sei lá, estou aqui na Caros Amigos fazendo esse apelo para as pessoas todas que ocupam posição de poder, mas muito mais para as pessoas que têm poder em si mesmas, pra que a gente se inspire, pra que a gente tenha o talento de dar isso pra gente, e dar pra São Paulo. Sonhei muito tempo em ter a liberdade de fala que vocês me deram hoje, e a liberdade de poder transmitir o que eu sinto, porque tudo sai muito deturpado na imprensa, as pessoas pensam que sou um homem de cabelo branco louco, mas ninguém sabe o que faço, geralmente as matérias que fazem comigo são muito cortadas, vocês me permitiram dar uma visão de conjunto nunca dada, e sou muito grato por isso, já tenho em vocês uma inspiração enorme pra continuar, sair daqui fortalecido pra amanhã enfrentar a Petrobrás. CA86_mai_2004 João de Barros - Atualmente, o jornalismo investigativo se baseia no que o Ministério Público deixa vazar ou coisa do gênero. Como é que você trabalha a sua matéria investigativa? Olha, primeiro eu QUERIA dizer que tenho uma certa urticária quando ouço falar de jornalismo investigativo, por uma questão, digamos, filosófica. Acho que todo repórter é investigativo. O Ministério Público realmente é um dos canais de informação. Não tenho nada contra, desde que você não se atenha só a isso. O fato de existir um processo de investigação no Ministério Público não significa que os cidadãos ali citados sejam culpados. Aquilo é o início de um inquérito. Pode ser uma boa dica ou uma boa pista, mas acho que tanto a fita gravada, o grampo ou o Ministério Público são pistas às vezes boas, às vezes não para você iniciar uma reportagem. É óbvio que você não faz só com isso. José Arbex Jr. - Como você se relaciona com os manuais de redação? Quando fui para a Folha, em 1988, o Otávio (Frias Filho), me disse: “Estou te chamando porque você faz um trabalho muito legal no Jornal do Brasil... Eu falei: “Otávio, eu sou o antimanual”. “Mas é exatamente por isso que estou te chamando. Porque o manual se tornou uma camisa-de-força e estou querendo romper com ela. Acho que é um bom momento.” E fui fazer na sucursal de Brasília da Folha de S. Paulo exatamente o que fazia no Jornal do Brasil. Li o manual, mas só que fiz do meu jeito. Eu não tenho, a priori, nada contra o manual, seja ele da Folha, do Estadão, ou qualquer outro. O que pode ser complicado – e percebi isso algumas vezes em algumas redações – é quando os manuais se tornam na verdade instrumentos de controle, instrumentos de poder se são medianas as pessoas que vão gerir a aplicação daquilo. Trecho 2 João de Barros - Qual o poder da Polícia Federal sobre o presidente da República diante dessa promiscuidade? À época, governo FHC, teve esse poder. Hoje ela conta com excelentes policiais e excelentes quadros, faz muitas vezes um trabalho dos mais sofisticados, que as pessoas nem imaginam, mas, se uma corporação como essa não tiver autonomia verdadeira e acompanhamento democrático – por exemplo, sobre o dinheiro para o operacional nas ações de combate ao narcotráfico, que nos últimos anos é em grande parte verba americana –, aí é óbvio que a coisa foge do controle. Como diz o Carlos Costa, “quem paga dá as ordens”. Você sabe que a sua operação está sendo feita com o dinheiro que os americanos deram, você vai cumprir o que diz o protocolo, mas na prática ninguém controla. Não tem como. Existe um acordo legal, chamado “Acordo Guarda-Chuva”... Verena Glass - O governo brasileiro tem um acordo legal com a polícia americana? Tem um acordo legal que permite que a DEA passe verbas para o que se chamava DRE (Divisão de Repressão aos Entorpecentes). No caso da CIA, é para o CDO, que atua no regime de informação compartilhada. É a base operacional da CIA. Não sei por que o espanto, tudo isso foi publicado com uma quantidade tal de provas e detalhes e informações… tem uma pilha de documentos, quinhentas folhas, depoimentos de delegados. O delegado da Polícia Federal José Roberto Benedito Pereira escreveu um documento, à época confidencial, agora já um inquérito, com o título “São Tomé, Ver para Crer”. O que ele diz? Que se submeteu ao teste de detector de mentiras em Washington. Como é esse teste? Ele recebeu um papel assinado por um cara da CIA, se não me engano, chamado Robert Evans, que o convida para um simpósio sobre narcotráfico em Washington. Primeiro, é uma mentira da embaixada americana, porque não tinha simpósio nenhum, era uma cobertura para ele ir a Washington se submeter ao teste de detector de mentiras. Por que o teste? Conversei com policiais, dezenas deles: pra trabalhar no então CDO – depois da primeira matéria, em 1999, já virou SOIP, hoje COIE – Coordenação de Operações de Inteligência Especializada, você tinha que se submeter a esse teste, por causa do regime de informação compartilhada da Polícia Federal com a CIA. Então, só entrava lá quem eles tivessem confiança, dizem que o teste parecia uma coisa destinada a escolher os mais dóceis. Isso está contado pelo delegado José Roberto, com todas as letras. Então, ele foi, voltou e descreve todo o processo. Quando retornou desse encontro, a Interpol ia funcionar dentro do prédio do CDO – detalhe: o prédio do CDO é vizinho da Abin, dentro do setor policial de Brasília, vizinho da Agência Brasileira de Inteligência! Então, quando voltou, ele escreveu esse documento, e o que aconteceu? A Interpol já não ia mais trabalhar ali. É o que está escrito no relatório. Ele e o delegado Zubcov, que também se aposentou depois, discutem com o pessoal do CDO, e o Zubcov diz: “Há quem não se venda por um punhado de cents”. E cita a CIA. Isso levou a uma sindicância interna na Polícia Federal. A IstoÉ, com base nessa sindicância, volta ao assunto que havíamos feito em quatro etapas antes, e noticia essa história, em novembro de 2002. Volta ao assunto com esses dois personagens, 102 abre-se uma segunda sindicância, que é assunto de quatro ou cinco capas da Carta Capital e uma da revista IstoÉ. Está tudo contado, com detalhes. Trecho 3 Verena Glass - A Carta Capital é uma revista de esquerda? Hum... De novo as definições. Não sei. A gente tem um posicionamento que a gente até definiu... Depende do que. Por exemplo, você dizer se é de esquerda ou não depende até do período em que você está vivendo. Governo Fernando Henrique Cardoso, por exemplo: obviamente, é uma revista de esquerda. Porque a gente defendia naquela época, no mínimo, a isonomia competitiva para o capital nacional. Estava se vendendo o país inteiro e a gente dizia o seguinte: o capital brasileiro tem que ter, no mínimo, uma igualdade de tratamento pra poder competir. Isso é você ser capitalista, não é você ser de esquerda. Mas, àquela hora, era uma posição à esquerda. Então, esses rótulos são muito complicados e simplificadores, ainda mais num país como o Brasil, tão tosco, em que as pessoas se dizem de esquerda e tantos, tantas vezes, têm um comportamento absolutamente... sabe? José Arbex Jr. - Mas tem uma coisa que me incomoda na Carta Capital... Só uma? José Arbex Jr. - Só uma, que me incomoda nesse sentido: a presença do Delfim Netto. Não por causa das opiniões dele, isso um economista discute. Mas o cara é signatário do AI-5, é cúmplice da ditadura militar, se vangloria de ter assinado o AI-5, que perpetuou a ditadura neste país, é um assassino. Eu discordo que ele seja um assassino. José Arbex Jr. - Roberto Marinho era um democrata… Perto da Venezuela, isso aqui é um mar de rosas. Lá derrubaram o presidente da República num golpe midiáticomilitar comandado pelas emissoras de televisão. A discussão central para mim é a seguinte: cadê a legislação pertinente pra modernizar o setor no Brasil? Ou vai continuar assim? Eu não digo nem tomar nada de ninguém, até porque você tem que trabalhar dentro do cenário, com as dificuldades políticas que existem. É fácil dizer: “Ah, tem que ser assim”. Você tem que ver a viabilidade prática da coisa. Qual é a viabilidade? A coisa mais fácil do mundo é botar frases fortes no papel, é uma festa. Os estudantes das universidades gostam, batem palma, mas qual é a viabilidade prática disso? O que deveria ser feito é o seguinte: fortalecer alternativas. Rádio comunitária, rádio independente, jornal independente, tá, tá, tá... Como? O BNDES, sim, mas como? Ah, se é pra, aspas, direita, pode, pra esquerda, não. Não dá pra ser assim... Acho que tem que rediscutir a posse e uso dos meios de comunicação, por quê? Qual é o cenário? Se não me engano, 58 por cento do Congresso é eleito com votos do Norte e Centro-Oeste, onde está bem menos da metade da população. Essa é boa parte do voto que vai controlar as votações na Câmara. Então, vamos fazer um mapeamento, que eu já fiz, milimetricamente, esse é um assunto que me interessa, já escrevi isso, dezenas de matérias, capas, desde a IstoÉ. É uma história à qual me dedico há muito tempo. Como é esse jogo? Rio Grande do Norte: família Alves, do ex-governador Aloísio, depois Garibaldi, dono da Globo; Sarney no Maranhão; Collor em Alagoas; o ex-vice-governador da Paraíba na Paraíba; o Tasso é da Bandeirantes e a mulher é dona da Globo; o Albano Franco, que era da Globo e acho que agora do SBT; o João Alves, da Bandeirantes; o Antônio Carlos na Bahia, e assim vai. Isso tem capilaridade nos municípios: cada chefe político de um lugar é dono da televisão, ou da rádio. No governo Fernando Henrique Cardoso, o que se fez? Criaram as chamadas televisões “educativas”. Na moita, doaram televisões “educativas”. Na prática, em cada município, uma televisão absolutamente igual à comercial, que anuncia pinga. Só no governo FHC, a hora em que eu vi, mais de trezentas emissoras só pra Minas, e seiscentas no total! Uma gandaia, não sei como está isso hoje Sérgio de Souza - Com esse selo de educativa? De educativa. Você ganha a televisão educativa, vai lá e chuta o balde. Aliás, quem tinha uma televisão educativa na época era o corregedor da Anatel, que era um deputado federal! Então, o que acontece? Existe condição política de você dizer “devolve” uma televisão comercial, uma rede? Óbvio que não. É fácil fazer discurso, até deve ser feito discurso pra criar uma contrapressão, mas é óbvio que não existe condição política. Aliás, não existe condição política hoje nem pro governo falar o seguinte: “Não vai ter nenhuma verba pra ninguém”. Eles não tomaram nenhuma medida, ainda, radical em relação a coisas que sejam centrais. Nenhuma medida dura e revolucionária, digamos assim, e está esse barraco. Imagine se você disser “não tem um centavo pra ninguém”... meu amigo, o pau vai comer no dia seguinte igual na Venezuela, pode escrever José Arbex Jr. - E a lei da propriedade cruzada? É. Por exemplo, na Inglaterra, você tem alternativas, o cara só bota uma rádio comercial se ali tiver também uma rádio independente, só bota um jornal se tiver no máximo 50.000 leitores, se ele já é dono de outro meio. Tem mecanismos, aqui não tem mecanismo nenhum, na prática. Então, o cara é dono lá do Estado dele, carreia toda a verba do Estado para a televisão e a rádio dele, que se lasque o outro, e assim vai. Lembro que um amigo meu estava fazendo campanha na Paraíba, um cara genial, jornalista, estava já na marquetologia, falei: “Como é que vocês botam pra quebrar, anunciam o seu candidato o dia inteiro?” Ele falou: “Nããão, basta você tratar jornalisticamente o candidato adversário”… José Arbex Jr. - Muito boa! Se você não romper isso, não rompe o resto, porque terminam todos os governos sendo reféns do Jornal Nacional. Todos os que eu vi até hoje, todos, chega uma hora em que estão frágeis, se os caras derem quinze jornais ali na porrada, o negócio balança. Agora, não é tirar nada de ninguém, é apenas fortalecer alternativas Brasil afora. “Ah, mas vai fortalecer…” Por que não? Só pode fortalecer os de sempre, cara pálida? E a outra 103 teoria, “nada pra ninguém”, não vai acontecer. Até porque quase todos os grandões estão quebrados e a alternativa é, sim, dar de graça para o Murdoch ou pro Cisneros. CA87_jun_2004 É um caso (escandalosamente) inédito: um senador, João Capiberibe, e uma deputada federal, Janete Capiberibe, têm os mandatos cassados pelo TSE por uma suposta compra de dois votos, no valor de 26 reais cada. O autor da denúncia, Gilvan Borges, que já foi senador, fabricou “provas” e tem no currículo, entre outras coisas, uma acusação de nepotismo quando empregou a mulher e a mãe em seu gabinete no Senado, acusação à qual respondeu assim: “Uma me pariu e a outra dorme comigo”. Dispensem-se maiores comentários e vamos à entrevista. Exemplar, por sinal. Trecho 1 Natalia Viana - Sempre começamos perguntando da infância do entrevistado... Nasci na ilha do Marajó, na beira de um rio e onde não tinha absolutamente nenhum vestígio da sociedade industrial. Não tinha energia, não tinha escola, uma coisa isolada mesmo. E cresci ali até os 6 anos... Sérgio de Souza - Seus pais? Meu pai era um sujeito muito especial, era poeta, músico, trabalhava em Belém como condutor de bonde, e resolveu se embrenhar na floresta depois de casar com a minha mãe, que também vivia em Belém, e os dois foram para Marajó, onde eu nasci. Quando tinha 7 anos fomos morar em Macapá, para eu estudar, porque a minha mãe achava que tínhamos todos que estudar. Meu pai não, estava absolutamente conformado com a vida, eu já sabia nadar, subir no açaizeiro, pescar, então já estava pronto para a vida. Marina Amaral - Eram muitos irmãos? Sete. Macapá nos anos 50 devia ter 30.000 habitantes. E a lembrança mais fascinante que guardo é a imagem da cidade iluminada, aquilo pra mim foi um total deslumbre. A gente ia de barco a vela, a viagem durava uma semana. E estudei lá até os 17 anos. Natalia Viana - Morava lá a família toda? Todo mundo, e ainda tinha uns agregados, que chegavam do interior e iam ficando na nossa casa. Uma família pobre, comecei a trabalhar aos 7 anos, logo que cheguei, vendia revista, jornal, loteria, frutas, eu era um excelente vendedor. E fiz o curso primário em Macapá, no Grupo Escolar Barão do Rio Branco. Um dia fui lá, quando era governador, ver meus boletins. Eu era um péssimo aluno, minhas notas não eram lá essas coisas. Enfim, foi uma vida muito pobre, morávamos na Baixada, uma favelona, sem água, sem luz também, e conheci um padre – eu não tinha religião, não sabia rezar absolutamente nada, meu pai era ateu, minha mãe oscilava entre o catolicismo e o protestantismo –, e o padre me convidou para fazer um leilão. E eu fui, imagina, eu vendia o que pintasse na minha mão. Fui gritar o leilão do padre, ele gostou muito de mim, perguntou se eu queria ir para o seminário. Eu digo: “Na hora!” Sérgio de Souza - Você estava com que idade? Estava com 10 anos. Fui para um seminário, que era numa ilha, com padres italianos. Não suportei, eu era menino de rua, chegar numa disciplina de acordar às 6 horas, tinha que rezar, eu não sabia rezar. Aí, inventei uma doença pra voltar. Então me meteram num hospital, cuidado pelas freiras, e os médicos encontraram uma doença – me tiraram o apêndice!... Em compensação, nesse período me ensinaram a rezar. Quando voltei para o seminário, passei a ler a Bíblia e a me interessar – os padres tinham uma biblioteca excelente – pela história dos santos. Sem nenhuma vocação para ser santo. E fiquei três anos no seminário. Então, reconheci não ter mesmo a menor vocação para padre, e pedi para sair. Depois de concluir o 1º grau, fui para a Escola Normal, conheci Janete... Marina Amaral - Desde essa época? Sim, e passamos a fazer militância juntos no movimento estudantil. Época da ditadura, os grêmios eram proibidos, quando cheguei ao 2º ano fui para Brasília, estudar na Escola Agrícola. Passei quinze dias na escola, não agüentei, fui embora. Para Belo Horizonte. Sérgio de Souza - Estudar lá? Sim, fui em 1966, fiquei até 1968. E aí acompanho as primeiras manifestações de rua, um movimento estudantil muito forte... Trecho 2 Sérgio de Souza - Você sofreu também tortura física? Também. “Telefone”, todo tipo de tortura que você possa imaginar, ninguém passava incólume. Daí, depois de 110 dias preso ali, me transferiram para o presídio São José, um prédio do século 18 que havia sido convento, e fui colocado com os presos comuns. Primeiro fui levado para uma torre, torre de igreja mesmo, com sino, e ali me pelaram a cabeça, me desnudaram, e tocaram aquele sino. Aquele negócio ficaria na minha cabeça para sempre. Toda vez que tenho um momento de risco, ouço o tal do sino. No dia em que o TSE cassou o nosso mandato, a primeira coisa que veio na cabeça foi o sino. Impressionante como me marcou. E a cela onde eu ficava tinha 95 presos, dormiam todos em redes, um cruzado em cima do outro. Um calor de 40 graus, uma coisa insuportável, e, como eu já tinha sofrido tortura na fase de interrogatório, terminei ficando muito mal. Cheguei a pesar 51 quilos, era só osso. Então, Janete consegue que me transfiram para um hospital. Passei um mês e meio lá e, quando já estava bem melhor, começamos a articular a fuga do hospital. E terminei fugindo, realmente. Criamos um fisiologismo, um clientelismo com os soldados, e eles relaxaram bastante a guarda. A 104 Janete trouxe uma bata de médico, óculos, sapato, e terminei saindo pela porta da frente do hospital. Sozinho. No caminho, as enfermeiras ainda davam “boa noite, doutor”, era um hospital grande. Eu, Janete e Artionka, que tinha dez meses de nascida, pegamos um barco desses que circulam clandestinamente na Amazônia, são milhares até hoje, e fomos até Santarém, oito dias de viagem. Depois, Manaus, mais cinco dias, pegamos um barco para Porto Velho. Tem uma história fascinante: esse roteiro quem traçou para mim foi um sujeito que tinha feito um assalto com revólver de brinquedo em Manaus... Sérgio de Souza Como você montou seu time, seus secretários? Criei uma escola de governo, um centro de informação com desenvolvimentos humanos, e treinávamos permanentemente e capacitávamos as pessoas, era muito intenso, fizemos parcerias com as universidades e levamos gente da Unicamp, da USP, da Escola Paulista de Medicina, fizemos uma parceria com os franceses na área de educação e pesquisa. José Arbex Jr. Danielle Mitterrand esteve várias vezes com você lá, tem até um instituto... Tem um instituto de línguas e, na verdade, eu já sabia que não teríamos nenhuma possibilidade de obter apoio do governo federal, então fizemos uma parceria ampla com a Guiana Francesa e com a França. Fundamentada nas teses do desenvolvimento sustentável, e isso terminou nos ajudando enormemente. A questão com a Guiana evoluiu tanto, que em 1997 articulamos um encontro do presidente Chirac com o Fernando Henrique lá na fronteira, e esse encontro aconteceu em São Jorge, a imprensa aqui do sul não deu muita cobertura. Trecho 4 João de Barros - Pode-se encontrar algum paralelo entre o julgamento de vocês dois e o julgamento do Roriz, governador do Distrito Federal? Acho que usaram dois pesos e duas medidas, não tenho a menor dúvida de que ali o que era prova contundente se transformou em “indícios”, e o que era suposição me condenou. Então, por mais que um jurista diga que são dois processos diferentes, um envolvia 52 reais e o outro 40 milhões de reais desviados de recurso público e tudo comprovado com fotografias, com documentos, e no nosso julgamento só tinha a palavra das duas testemunhas. Eu disse que eles estão cassando um e levando dois, porque a deputada Janete foi a mais votada em toda a história do Estado. Teve quase 10 por cento dos votos proporcionais, o que é muito. Um dos argumentos dos acusadores é que os dois votos que “compramos” tinham influenciado a eleição, porque a diferença entre a minha votação e a do Gilvan era de 4.500 votos. Como a diferença era muito pequena, poderia ter tido alguma influência. Só que a Janete teve perto de 24.000 votos, o segundo colocado teve a metade. Isso significa que ela está sendo cassada sem nenhuma razão objetiva. Simplesmente porque se elegeu pelo PSB, junto comigo. Até parece uma atitude machista: “Vamos cassar o casal”. Como se ela não tivesse uma trajetória de luta política. Ninguém no Amapá admitiu a cassação. A contradição entre os dois julgamentos, o nosso e o do governador Roriz, terminou causando um choque na opinião pública, na Câmara e no Senado. Conseguimos ser mantidos nos mandatos por uma liminar da ministra Ellen Gracie. Até que se publiquem os acórdãos. Caso a gente não consiga uma revisão da decisão no TSE, então cabe um recurso extraordinário ao Supremo. E, por último, pela disposição dos senadores e dos deputados, pode haver também um processo de anistia. E tem ainda o aspecto que, para os eleitores que votaram na gente, a cassação é inaceitável, é falta de respeito com a decisão deles. Então, vários grupos no Amapá decidiram produzir uma reafirmação do voto. E está correndo um abaixo-assinado cuja meta é chegar a 98.000 assinaturas, exatamente a quantidade de votos que nós dois tivemos na urna. Foi um choque tão grande, que as pessoas estão comovidas. Tenho ido a Macapá, e também me comovo com as pessoas. Elas não admitem que o voto delas está anulado. Porque a decisão do TSE é de anular todos os votos. Pelo menos até que saia o acórdão, pode ser outra a decisão. Mas o povo está disposto ao seguinte: se confirmada a cassação, a Janete vai ser prefeita e eu vereador de Macapá. É uma decisão de nos devolver esses mandatos. Acho que porque uma das características do nosso trabalho político é exatamente a preocupação com o bem público. E porque é inadmissível, pelas regras do jogo político, alguém ser intransigente com composições, com determinadas cumplicidades. E outra coisa que não se aceita é que eu tenha sido governador durante tanto tempo e não tenha me “prevenido” – vocês sabem o que isso significa, não é? Acumular uma grande quantidade de dinheiro para poder se defender dos processos. Se perdermos o mandato, vamos ficar desempregados, não temos nenhuma aposentadoria. Existia aposentadoria do governador, eu digo: imagina um sujeito com 50 e poucos anos se aposentar... e acabei com ela. E não temos nenhuma poupança, então isso tudo para os padrões políticos brasileiros, é inaceitável. José Arbex Jr. - Você falou com o Lula e o Zé Dirceu? Falei. Eles ficaram solidários, e preocupados... José Arbex Jr. - Mas deram declaração pública sobre o caso? Não. Até porque há essa questão da governabilidade, da relação harmônica entre os poderes. Tenho uma visão um pouco diferente, no meu Estado, harmonia entre os poderes é prejuízo para a sociedade. Sérgio de Souza - Como está o papel da mídia nessa história? Pela minha pouca experiência e a convivência que estou tendo com jornalistas no plano nacional, há uma dificuldade de acesso à informação dos próprios jornalistas. Vi nesse imbróglio com o jornalista americano uma certa pressa na produção da notícia. Perguntei aos jornalistas: “Vocês leram o artigo?” “Não.” Para os senadores, fiz a mesma pergunta: “Vocês leram o artigo? O que foi que ele disse?” Ninguém sabia. Como é que está todo mundo falando, se ninguém sabe o que ele falou? José Arbex Jr. - E, no seu caso específico, como a mídia está se comportando? 105 Eu DIRIA com uma compreensão muito grande, com exceção de São Paulo, em que teve pouca repercussão. José Arbex Jr. - Por quê? Acho que há um preconceito paulista em relação a um agente político lá da margem esquerda do rio Amazonas. CA88_jul_2004 Natalia Viana - Senadora, vou deixar o gravador mais próximo, que a senhora está com problemas na voz… Heloísa Helena - Para alegria de alguns. Marina Amaral - Você nasceu em Alagoas? Sim, nasci numa cidadezinha chamada Pão de Açúcar, na beira do rio São Francisco, no sertão de Alagoas. O nome originário da cidade era mais bonito, era Jaciobá, que quer dizer espelho da lua, por causa do rio. Depois morei em várias cidadezinhas do interior, sempre no sertão de Alagoas, morei um tempo no povoadinho onde minha mãe nasceu, chamado Poço Branco, e depois passei uma parte muito importante da infância e adolescência em Palmeira dos Índios. Digo que sou muito sortuda e abençoada porque as primeiras coisas que li na vida foram a história de luta e libertação do povo de Deus – porque tive uma excelente experiência na Igreja, não convivi com a Igreja cínica e carcomida a serviço da elite, convivi com a Igreja que protegia os pobres – e as coisas escritas por um velho comunista: Graciliano Ramos. Marina Amaral - E era uma família rural? Minha mãe é filha de trabalhadores rurais. Meu pai era servidor público, mas morreu quando eu tinha três meses de idade. E, como minha mãe, que havia ficado órfã com 14 anos, criou os irmãos no cabo da enxada, era natural que nós também, mesmo quando já morávamos em Palmeira, nos meses de férias, íamos para a roça. José Arbex Jr. - São quantos irmãos? Somos dois hoje. Meu irmão mais velho foi assassinado quando eu era pivete. João de Barros - Como foi isso? Como todo filho de pobre quando é assassinado, ninguém acha quem matou. Assassinado com um tiro de 12 no peito... José Arbex Jr. - Sua mãe é viva? É viva, não muda nada. Lá em casa eu sou a mais calma... Pelo menos em casa, só brigo no trabalho, e com quem não presta. Sérgio de Souza - A política partidária aparece em que época? Meu irmão já militava no PC do B. Portanto, eu já tinha alguma familiaridade com política. Sérgio de Souza - Com que idade? Com 15 anos. Só fui para Maceió porque ganhei uma bolsa. Fui fazer o último ano e o vestibular. Mas já lia muitas coisas, meu irmão militava no PC do B, ainda na clandestinidade, conheci toda a chamada literatura de esquerda via ele também, e comecei a fazer política como todo mundo: no movimento da Igreja, no movimento estudantil, sindical, depois fui ser professora da universidade. Quer dizer, já militei no movimento sindical quando fui funcionária da Previdência, no INAMPS. Sérgio de Souza - O PT foi o seu primeiro partido? Foi, mas eu já trabalhava com o movimento rural. Sempre digo que a primeira surra que levei fora de casa foi militando, foi defendendo trabalhador rural e enfrentando os malditos usineiros. José Arbex Jr. - Você entrou para o PT antes de entrar para a DS (Democracia Socialista, grupo ligado à IV Internacional)? Na DS primeiro, depois no PT. José Arbex Jr. - E o que a levou ao trotskismo? Uma concepção de esquerda com a qual sempre me identifiquei mais. Marina Amaral - Em que ano você entrou na universidade? Em 1980. Sérgio de Souza - Você começou falando que estava afônica, para a alegria de alguns. Quem SERIAM? A vadiagem do capital Sérgio de Souza - Mas daí é muito amplo… Não é amplo, não, isso é pouca gente. Sérgio de Souza - Pensei no seu meio, no Senado. É, também no Senado, se bem que hoje nem sei mais quem no Senado ficaria alegre (se eu estivesse afônica). Como “cínico memorial das contradições”, aquilo deixa qualquer um estarrecido. Imagina como me sentia em Alagoas ao ver toda a tropa de choque “collorida”, imagina o que passei no Estado, vendo a campanha do Collor versus Lula, e agora ver toda a tropa de choque “collorida” ser tratada como amor primeiro, quase que de infância, pelo governo Lula. Ou ver a tropa de choque do governo Fernando Henrique sendo hoje tropa de choque do governo Lula. João de Barros - Mas, na contramão do que a senhora está falando, também senti um pouco isso ao ver uma foto sua no Senado, comemorando os 275 reais do salário mínimo ao lado do ACM. Eu não estava ao lado do senador Magalhães, estava dividindo o mesmo espaço geográfico que ele. Tenho um amigo anarquista, que amo muito, e sei que ele também me ama muito. Ele recortou a foto, mandou pra mim e disse bem assim: “Meu amor, continuo te amando. Mesmo que você venha com essas ridículas considerações de que o mandato parlamentar é a trincheira de resistência da nossa classe. Como sempre, continuo pensando que você não deve, ou melhor, não merece estar no mesmo espaço geográfico dessas pessoas”. Então, quando 106 as pessoas querem interpretar, interpretam da forma que querem. Eu estava defendendo o que sempre defendi e, em vez de as pessoas perguntarem onde estavam os petistas que não estavam a comemorar, diziam que eu estava ao lado dos meus inimigos de classe e de meus adversários históricos. Eu não estava ao lado deles. Eles é que estavam, disputando o direito autoral do projeto Lula. É só isso que eles fazem, porque a obra que está sendo viabilizada é a obra deles. Ficam a esfregar o dedo nas feridas das contradições do PT porque é o que lhes resta fazer. Aliás, o que fizemos muito também. Passamos, eu quatro anos, como líder do PT no Senado e líder da oposição ao governo Fernando Henrique outros oito anos, a todos os dias verbalizar que o Fernando Henrique tinha dito: “Esqueçam o que escrevi”. Então, agora eles ficam a falar que o PT está dizendo: “Esqueçam o que falei, o que fui e o que escrevi”. E, em um ou outro momento, em função do oportunismo eleitoral, eles se associam a um determinado projeto, como foi para aprovar as duas farsas de reforma, a da Previdência e a Tributária, que nem foram reformas. Aí, eles contaram com quem? Com o PFL carlista e com o PSDB. Do mesmo jeito, na próxima semana quase será unânime – só não será porque haverá dois ou três votos contrários – a aprovação da Lei de Falências e da PPP, né!? José Arbex Jr. - O Lula é um traidor ou é equivocado? Sei que muita gente acha superdoloroso quando a gente fala, mas a palavra é traição porque não compartilho a concepção preconceituosa, nojentinha, de parte da elite nacional, que dizia “oh, é um incompetente, um despreparado...”, não. Não tem nada a ver. É uma figura altamente qualificada, preparada, competente, só que mudou de lado. Se eu disser que é equivocado, incompetente, despreparado, estarei compartilhando com algo que eu brigava em todos os lugares, era quase uma repetição eterna, porque falava do curso, daquelas porcarias de diploma, não sei que... Com todo o respeito aos que lutam por um diploma, que estão lá tentando fazer alguma coisa nas universidades brasileiras. Vocês acham que é fácil pra um militante socialista agüentar o governo Lula e o PT legitimarem a verborragia da patifaria neoliberal? Superávit, responsabilidade fiscal, ajuste fiscal, austeridade, governabilidade!… Não é uma coisa qualquer, passamos décadas dizendo que aquilo não era verdade; e hoje eles legitimam essa verborragia! Sérgio de Souza - Qual SERIA, então, a alternativa? Romper com o Fundo Monetário Internacional. Sérgio de Souza - Isso é possível? Ah, não tenho dúvida de que é. Aliás, no dia em que alguém me mostrar um único país do planeta Terra, unzinho, que seguiu o receituário dos parasitas, das instituições de financiamento multilaterais, e, mesmo sob a égide da globalização capitalista, conseguiu superar a dicotomia desenvolvimento econômico-inclusão social, deixo de ser de esquerda. Não tem. Marina Amaral - Mas o PT sempre disse que não ia romper com o FMI. Meu amor, não estou a exigir do PT isso, não. Não estou a exigir mais nada, agora, porque graças a Deus estou em outra; estou agora na turma do Socialismo e Liberdade. Aliás, como dizia dona Helena, minha mãe, na miséria de nossa infância: Deus escreve certo por linhas tortas. Porque nada melhor pra mim do que ver ao longe passar o bloco dos desmascarados sem ter de pular com eles. João de Barros - Heloísa paz e amor, é? Paz e amor pra classe trabalhadora. Combate e guerra permanente pro capital. Pra classe trabalhadora, você não sabe como sou boazinha. Pense numa mulher boazinha, um anjo. Agora, pra turma de lá, não, porque tenho lado. Tenho lado, é por isso que eu MORRERIA. Já imaginou se eu estivesse agora tendo de defender essas coisas todas? Eu MORRIA. João de Barros - Para simplificar, você está pensando em fazer o quê? O que estamos fazendo. Andando, conversando com o povo primeiro, porque até os movimentos sociais não estão necessariamente articulados com o povo. Qual é o movimento social que está? Fora os que estão fazendo ocupação de terra, qual? O movimento comunitário sempre foi delegado à direita fisiológica, lembra? Então nós também, mesmo quem está dizendo que está fazendo a ofensiva junto dos movimentos sociais, não estamos conversando com o povo. Porque a gente também tem a mania de dizer que está conversando com o povo e não conversa. É o cão, né? Nós, militantes de esquerda, temos a mania de dizer que representamos o povo, conversamos com o povo, e não conversamos, então também tem que dizer isso. Sou apaixonada pelo povo brasileiro, não é discurso, é porque o povo brasileiro é muito generoso mesmo, impressionante! Porque a pessoa gosta de mim, sendo alguém da periferia, sem saber necessariamente o que é que estou falando de FMI, de não sei o quê? Estou dizendo que o povo brasileiro é muito generoso porque ando neste país, visitei o país todo, e sou vista pela elite como uma pessoa rancorosa, radical, intolerante, uma onça raivosa, uma mulher primitiva... mas não dedico uma única gotinha do meu suor para convencer a elite de que não sou isso. E, por mais que tenha pessoas das universidades ou sofisticadas no saguão do aeroporto, muitas que, mesmo não compartilhando com nossa visão de mundo, acham que temos o direito de defender aquilo em que acreditamos, porque realmente está muito enraizado na alma do povo brasileiro o sentido democrático, é impressionante como as pessoas simples são o maior estímulo da gente, da nossa radicalidade. Claro que temos pessoas maravilhosas como Chico Oliveira, Paulo Arantes, Leda Paulani, Carlos Nelson Coutinho, Milton Temer, a Rosa e o João Machado da PUC, Ricardo Antunes, e vários outros desses chamados intelectuais que, aliás, sempre riem deles mesmos quando, nos eventos do novo partido, são classificados como intelectuais. Mas as mais belas lições de generosidade e de apoio são do catador de lixo, do ambulante, do motorista de ônibus que está lá passando e você está dirigindo e ele buzina: “E aí, e o novo partido?” Alguns acham que a nossa visão de mundo é uma viagem interplanetária, outros acham que é impossível aquilo que a gente defende, e outros nem sabem muito bem o que estamos a defender, mas eles querem que algo mude. Então, isso é o que nos movimenta. 107 Então, se tem gente que quer militar só nos movimentos sociais, espero que não vá votar agora nessa eleição, porque aí vai votar em quem? Vai fazer o jogo de quem? Wagner Nabuco - Muitas vezes vai votar no PFL. A institucionalidade, realmente... eu, pelo menos, só vivia vomitando naquela época em que as contradições eram tantas, que eu corria para o banheiro para vomitar no momento das votações do Senado. Sérgio de Souza - Pra encerrar, qual SERIA o seu conselheiro maior? Muitas pessoas me inspiraram a vida toda, como as chamadas personalidades da esquerda mundial, Rosa Luxemburgo, Trótski, Lênin, o belo humanismo revolucionário do Che Guevara, camarada Jesus, Graciliano. E o senador Lauro Campos, que era muito amigo, muito especial na minha vida. Convivo muito com as pessoas, pra mim é oxigênio conviver com as pessoas, digo as do chamado mundo real. Sempre tive as mais belas lições de generosidade, acho que as mais belas lições de honestidade tive na minha própria casa. Lembro de minha mãe costurando, e colando umas continhas azuis nos vestidos das madames. Eu ficava apaixonada por aquelas continhas azuis, sonhando em me apropriar das que sobravam, pra colocar nos vestidinhos das minhas bonecas de pano. E minha mãe era tão rigorosa, que colocava as contas que sobravam nos saquinhos para devolver à mulher que contratava o vestido. Então, sempre tive lições preciosas, tem uma que nunca esqueço, de um menino de rua. Eu vinha de uma dessas viagens do interior e encontrei uma briga de meninos de rua, desci pra apartar a briga e me meter na confusão, faca e não sei o que. Eu conhecia muitos deles, e me meti pra apartar a briga. Aí, depois, a gente levou um deles para o pronto-socorro e ficamos lá conversando. E um deles, supersujo, que conheço porque sei qual é a favela onde ele mora. Tão difícil pra essas crianças voltarem pra casa, né? Porque está lá o amante ou o pai alcoolizado, a lama, fica disputando o que comer no lixão com urubus, e ratos percorrendo a sua própria cama. E ele estava cheio de cola e muito sujo e disse: “Heloísa, tu mora perto do presidente da República?” Fiquei com vontade de falar mal do Fernando Henrique na hora, mas respondi: “Mais ou menos perto”. Aí, ele disse: “Ah, mas você tem de falar com o presidente da República, pra ele mandar comida pros pobres da seca. Porque eu vi lá na loja da esquina” – ele apontou assim –, “porque eu vi ali na Casa Guido, que tem um menininho morto cheio de mosca na chupeta, Heloísa. E ele não tinha nada pra comer em casa. Então, você tem de falar com o presidente, que é pra mandar sopa e comida lá pro povo do sertão que está passando fome”. Eu fiquei assim, digo, a pessoa que não tem nada, que não tem casa, não tem expectativa de vida, estava brigando no meio da rua, se esfaqueando uns aos outros pra ter cola, e ele nem estava pensando nele. Nada, não estava pedindo casa pra ele. Nem pedindo lona pra proteger o barraco da mãe dele. Estava pedindo porque uma cena o marcou profundamente, um menininho morto com a chupeta cheia de mosca. Então, assim, as pessoas sempre me ensinaram muito. E tive também muita sorte. Porque a Igreja com a qual convivi não era uma igreja reacionária, que privilegia os filhos da elite. Os padres da minha infância os reencontro com muita alegria pelo interior de Alagoas, porque estão lá espalhados. E as freiras holandesas da escola em que eu estudava em Alagoas sempre foram muito especiais. Então, sempre encontrei muita gente generosa, substituem na minha alma e no meu coração qualquer outra convivência que eu tenha tido de ter com o que existe de pior na espécie humana. Sérgio de Souza - Quer dizer alguma coisa para finalizar? Só reafirmar: é melhor o coração partido do que a alma vendida. CA90_set_2004 Natalia Viana - Sempre abrimos perguntando sobre a infância do entrevistado, para começar do começo mesmo. Pedro Simon - O pessoal do Dops era assim também. Quando prendiam, começavam assim: “Onde é que nasceu? Onde passou a infância?...”. Palmério Dória - Mas aqui não tem pau-de-arara, é mais tranqüilo. Nós, o velho MDB, lutamos muito para não ter pau-de-arara. O PT ganhou um país sem pau-de-arara. Quer dizer, hoje temos um regime de plenitude democrática no que tange ao Judiciário, ao Legislativo e ao Executivo, mas no social continua no tempo do pau-de-arara. Pior do que antes, inclusive. Wagner Nabuco - O PMDB é parte desse governo, não é? Vou te dizer que me considero MDB. Sempre falo na tribuna do Senado: “O meu MDB”. Wagner Nabuco - Pelo fato de o PMDB ser um “Frankenstein”, como o senhor se sente mantendo essa sua coerência histórica? Mantenho minha coerência histórica desde que comecei no grêmio estudantil do curso secundário. Uma coerência muito feliz porque eu, quando jovem, conheci o Alberto Pasqualini – o pensamento dele é uma coisa fantástica. Ele pregava as idéias que se discutem hoje no mundo, sessenta anos depois: o fracasso do comunismo, o equívoco total do capitalismo. Nosso grupo de estudantes ia na casa dele duas vezes por semana. Das 8 da noite até tarde. No campo das idéias, fui numa linha reta, me impregnei tanto das idéias dele, que não titubeei. Agora, os comunistas não gostavam. Diziam que o Pasqualini era um “capitalista fantasiado”. Ele dizia que os meios de produção ficam na propriedade privada, mas ela tem uma responsabilidade social que é obrigada a cumprir. Ele pregava que todo trabalhador tinha direito a educação, a uma casa, a um rádio, a coisas que não havia em 1946 lá no interior. Mas era contra o socialismo, achava que o socialismo dava a igualdade, mas não dava a liberdade. Eu me impregnei daquelas idéias e me criei naquela cidade, nasci em Caxias. Meu pai e minha mãe vieram do Líbano. Vieram direto, sou “puro-sangue”, minha irmã mais velha também é libanesa. Caxias é uma terra de colonização italiana. É um legítimo exemplo de como poderia ser feita a reforma agrária 108 dando certo. Vieram primeiro os alemães, depois os italianos, e ali eles plasmaram uma civilização que é hoje uma cidade como Caxias, a mais importante do Rio Grande do Sul. No meio dessa colonização italiana, eu e os patrícios libaneses nos criamos. Tenho mesclados sangue árabe, colonização italiana e Brasil. Minha família era simples. Estudei no Colégio Nossa Senhora do Carmo, depois meu pai se mudou para Porto Alegre, estudei no Rosário, fui para a Pontifícia Universidade Católica, depois voltei a Caxias para lecionar na universidade, fui vereador em Caxias... José Arbex Jr. - Como o senhor avalia o primeiro Getúlio, o Estado Novo, a ditadura? O Getúlio era um fazendeiro, classe dominante. A Revolução de 1930 saiu porque São Paulo quis impor um candidato e era a vez de Minas Gerais. O “café-com-leite” vinha funcionando e ninguém tinha condições de dizer nada. E ali era a vez de o governador de Minas Gerais sair candidato a presidente da República, mas o Júlio Prestes resolve dizer: “Não, vai ser São Paulo de novo”. Getúlio, nessa época, era governador do Rio Grande do Sul. E aí, junto com Osvaldo Aranha, Flores da Cunha, Brochado da Rocha, começou a fazer a costura Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Paraíba. Os outros não estavam levando a sério, nem São Paulo, nem Rio, nem nada. Mas o negócio foi crescendo e, surpreendentemente, ganhou. A revolução ganhou e Getúlio assumiu, mas o Getúlio que assumiu era o que estava naquele Brasil que ele representava. Não tinha nada de diferente. O que quero dizer é o seguinte: o Getúlio não era que nem o Pasqualini. Se tivesse sido, já TINHA toda uma doutrina social, toda uma filosofia, mas não, Getúlio estava dentro do movimento e naquele movimento surgiu uma brecha e ele entrou e ganhou. Começou governando desse jeito. Depois, dentro do contexto mundial, nazismo de um lado, fascismo do outro lado, comunismo do outro, aqui no Brasil, os comunistas com o Prestes e os integralistas com o Plínio Salgado, ele começou a forjar as grandes transformações. Pegou um Brasil colônia, porque o Brasil de 1930 não tinha nada que ver com o Brasil de 1945. Ele pensou na Federação, na União. Foi o grande homem da história do Brasil, não há como deixar de reconhecer. Palmério Dória - O Samuel Wainer disse que ele foi o “inventor do Brasil moderno”. É isso? Eu acho que sim. Uma coisa até impressionante, porque ele não era um homem de grandes viagens. Eu aconselho vocês a lerem, se não leram ainda, o discurso de formatura dele, que está nas memórias que a filha escreveu. Não dá para acreditar que um guri de 22 anos fosse tão agnóstico, tão fino e tão frio, com um sentimento tão impressionante como ele. Palmério Dória - Como o senhor avalia o que disse o Fernando Henrique, que a grande tarefa dele como estadista seria acabar com a “era Vargas”, o “entulho getulista”? Acho que ele já deve estar pedindo para esquecerem. Não tem significado nenhum. Não teve no Brasil um homem com a cultura, a história, a competência, a biografia do Fernando Henrique. Até o fato de ele ser filho de general. Foi uma formação burguesa, mas, mesmo assim, ele se identificou com a esquerda, com os problemas. Agora, eu era líder do Itamar e me esforcei para que ele não fosse presidente, porque tinha um erro histórico ali. O Itamar até falava em Fernando Henrique, em Pedro Simon e em Antônio Britto. Eu fui defender o Britto, porque não podia defender meu nome. O Britto não foi candidato a presidente porque ficou com medo do Quércia, que era candidato na convenção. Mas não tinha nenhuma dúvida, eu dizia, o Itamar dizia, o Fernando Henrique dizia, nós, com o apoio do Michel Temer, GANHÁVAMOS a convenção. O próprio Quércia RETIRAVA. Mas o Britto era candidato a governador do Rio Grande do Sul e não topou. Aí que entrou o Fernando Henrique e se consolidou. Daí eu cobrei do Itamar: “Itamar, tudo bem, vamos ver como é que vai ser”. E defendi que o vice DEVIA SER o governador de Minas, que estava no PTB… José Arbex Jr. - Não vi uma intervenção sua no Senado contra a Monsanto por ela ter feito contrabando de semente transgênica no Brasil, contrariando a Constituição. Não vi ninguém no Senado dizer que não é qualquer empresa transnacional que vai obrigar o governo brasileiro a botar uma medida provisória que autoriza a produção de transgênico, contra o que diz a Constituição. Não vi dizerem que os executivos dela que promoveram esse contrabando tem que pôr na cadeia. Não, o Brasil vai e dá um prêmio pra eles, autoriza a plantação e a Embrapa diz que é uma questão técnica. Você não ouviu esse discurso nem de mim nem de ninguém. No Rio Grande do Sul, a questão ficou muito complicada. Quando você diz “é contra a lei, prende”, pouca gente soube da lei. Isso não é bem assim, você fala com uma tranqüilidade que eu, do outro lado... José Arbex Jr. - Mas por que acabou assim? Porque a lei não é cumprida. O Brasil é um país de leis para não serem cumpridas, é o país da impunidade. Só vai para a cadeia ladrão de galinha, se não é ladrão de galinha, tem um bom advogado e não vai para a cadeia. E não é só aqui. Sérgio de Souza - Esse quadro está mudando ou continua o mesmo? Está piorando. No sentido de que antes tínhamos uma expectativa fantástica, que era o Lula. Na história do Brasil não houve fato nenhum, comparado à vitória do Lula, que alimentasse tanto a esperança da sociedade. Vou dizer mais: acho que na história do mundo não houve. É muito difícil. De repente, um partido bem devagarinho… parecia impossível, partido dos trabalhadores, o que é isso? Ou morre ou se aburguesa. José Arbex Jr. - Senador, pra encerrar o capítulo dos transgênicos, eu queria saber como o senhor se sente sabendo que o Senado aprovou uma CPI para investigar o MST, mas não uma CPI para investigar a Monsanto. Mas estão investigando o MST? Sérgio de Souza - Os discursos do senhor são todos apaixonados. Mas não me considero oposição ao Lula, me considero independente, rezo pelo Lula todos os dias. Nas minhas orações estão o Lula e o governo dele. Thiago Domenici - E o senhor pede o que nas orações? Que Deus permita que o Lula faça no governo dele 30 por cento do que prometeu, que já seria uma boa coisa. 109 Natalia Viana - Heloísa Helena disse em entrevista pra gente que o Lula faz o que quer, ela tem muito clara essa impressão. Já o senhor acha que não. O que acontece? Sou fã da Heloísa Helena, até disse pro PT: vocês vão fazer bobagem, vão criar um Teotônio de saia. Ela é brilhante, tem alma, tem sentimento, o PT não agiu bem com ela. Wagner Nabuco - Dizer pro banqueiro: “Ó, você ia receber 10 amanhã, mas só vai receber 7...”. É isso aí. “Porque, se eu ficar mais um ano assim, tu não vai receber nada.” O cara entende isso também: “Porque eu, Lula, que entrei aqui com um prestígio espetacular, se eu este ano te pagar 180 milhões e o brasileiro continuar na miséria, pode acontecer uma convulsão social no Brasil, e vocês não vão receber nada”. Sérgio de Souza - O senhor está prevendo uma mexida na democracia formal, está fazendo esse alerta? Não digo na democracia, mas tenho temor do que pode acontecer no campo eleitoral, no campo político. Wagner Nabuco - O país voltar a ser dirigido por forças mais à direita? Pode ser. Wagner Nabuco - Essa é uma preocupação? É uma preocupação. TRECHO 6 Natalia Viana - Vou fazer uma pergunta que tem a ver com a minha pouca idade… Quando leio ou ouço falar as histórias políticas da época de Getúlio, de Jango etc., me parece que naquela época a política era muito mais divertida. Um presidente bêbado que renuncia de repente, um jornalista que diz que o vice não pode assumir, um governador que monta uma cadeia de rádio para fazer longos discursos – e é ouvido apaixonadamente pelo povo… O que mudou? Já não se fazem mais políticos como antigamente? Tu chama de diversão e eu chamo de tragédia. O Brasil já experimentou de tudo. Tivemos em 1937 o Estado Novo; tivemos a deposição do Getúlio, que, não aceitando a pressão para renunciar, se suicidou; tivemos o Jânio Quadros, um homem que tinha a expectativa de toda a nação e terminou renunciando; tivemos a junta militar impedindo que o Jango assumisse; tivemos a legalidade do Brizola, que levantou o Brasil inteiro e permitiu a posse do Jango; tivemos em 1964 a deposição do Jango e uma junta militar que ficou aí um tempão enorme; restabelecida a democracia, se elege um presidente que comete um sem-número de bobagens e é deposto num impeachment do Congresso Nacional; elegemos presidente da República um intelectual, parecia que seria uma maravilha, e deu no que deu; agora temos um líder sindical que era da confiança de toda a nação, mas, na verdade, está muito longe de ser o que a gente esperava. Agora, se for mal e o PSDB, o PFL, imaginam que o Fernando Henrique volta, não volta. O que me assusta, volto a repetir, é o que ainda falta pro Brasil: eleger um candidato com fanatismo religioso. É o que aconteceu com o Bush. Alcoólatra inveterado, se curou ninguém sabe como, e ele diz que Deus o curou. E curou pra ele ser presidente da República. Disse isso em toda a primeira campanha: “Eu era um alcoólatra, um homem perdido. E Deus me curou, e se Deus me curou foi pra eu salvar os Estados Unidos”. Eu já estou vendo gente falando isso aí. Já tem candidato falando que Deus o está mandando. Eu não sei se daqui a pouco isso pega e vamos experimentar um outro tipo que Brasília ainda não conheceu. Por isso, vamos torcer pra que o governo do Lula dê certo. Vamos torcer pra que ele encontre o verdadeiro caminho, o caminho das suas idéias, o caminho da sua luta, o caminho do que ele representa, o nordestino que venceu, chegou à presidência da República. Ele não pode se deslumbrar com um avião bacana, com os tapetes, com as festas, com os elogios baratos... Tu termina se adaptando àquela realidade, e acha que aquela realidade é o mundo. Brasília é a Ilha da Fantasia. Porque a gente, principalmente o Lula, entra em contato com os empresários, os funcionários públicos, normalmente os mais bem aquinhoados, o pessoal das multinacionais de automóvel, da Petrobrás, do Banco do Brasil... E a gente vive um mundo e termina num faz-deconta do mundo que está do outro lado. CA91_out_2004 Natalia Viana - A gente sempre começa perguntando do comecinho, da infância do entrevistado... Sou o primeiro da família que nasceu no Brasil, nasci poucas semanas depois de meus pais chegarem aqui... Marina Amaral - Chegarem de onde? Chegaram de Paris, o navio partiu de Paris. E minha mãe veio grávida. Se eu tivesse nascido no navio, que tinha bandeira francesa, seria francês hoje. Minha mãe alemã, meu pai iugoslavo se conheceram durante a guerra e perderam três filhos antes de vir pra cá. Fui o primeiro que vingou. E tenho mais um irmão, jornalista também, que vocês conhecem, Ronaldo, o Alemão. E o meu avô, pai da minha mãe, era jornalista, não conheci. Morreu durante a guerra. Na minha infância se falava muito desse avô, era um herói oculto, e sempre fiquei com esse negócio na cabeça, desde o começo. Eu queria, como todo moleque, ser jogador de futebol. Não deu certo. Aí, fiz uma brincadeira que o cara que não dá certo em nada na vida acaba sendo jornalista. E quando não sabe nem escrever nem fotografar vira chefe. Renato Pompeu - E se não sabe ser chefe vai ser professor... Professor de jornalismo... Bem completado. Então, sempre gostei de escrever, fazer poesia, aí no Colégio Santa Cruz, dos padres canadenses, tive um professor muito bom de português, o padre José. Quando alguém gostava de escrever, ele dava uma atenção especial. E tinha um jornal lá chamado Verbômidas, o primeiro onde escrevi. Foi criado pelo Chico Buarque, que estudava lá também, estava dois anos na frente. Até hoje, ninguém sabe por que tem esse nome, ele inventou. Com 16 anos saí do Santa Cruz e fui pra um colégio público. Comecei na Folha Santamarense, que já não existe, em 1964, um ano que não dá pra esquecer. No mesmo ano fui pra 110 Gazeta de Santo Amaro, que existe até hoje. Aí, entra o Myltainho (Mylton Severiano) na história. Um primo meu alemão, o Klaus, vendia enciclopédia britânica na Realidade, que era a principal revista brasileira da época e até hoje a melhor que já foi feita. Então fui lá com um bilhete dele pedir emprego. Cheguei, só estava o Myltainho, acho que era uma segunda-feira de manhã, não tinha mais ninguém na redação. Cláudio Júlio Tognolli - Depois de tantos anos de jornalismo, você acha que passar para o outro lado, para a assessoria, coisa que você nunca tinha feito, te ensinou algo mais sobre a profissão que você nunca tinha vislumbrado enquanto repórter a vida toda? Não, por duas razões: primeiro, que eu já tinha trabalhado nas campanhas do Lula em 1989, em 1994 e agora em 2002, então já tive experiência anterior do outro lado do balcão. Mas, mesmo nas campanhas e agora no governo, acho que a função básica do jornalista é a mesma: apurar, levantar informações e transmitir notícias, informações. Então, não faz diferença eu trabalhar na Caros Amigos, na Folha, na TV Globo ou no governo. Os jornalistas têm dúvidas, me perguntam coisas, eu vou atrás para responder, e passo todas as informações que posso, que tenho condições de apurar. Então não é pelo fato de eu estar trabalhando hoje no governo que vejo imprensa de outra maneira. Vejo os mesmos problemas, acho que ela vive um mau momento já há algum tempo... Cláudio Júlio Tognolli - Por quê? Por uma série de circunstâncias, as empresas estão em crise, cada uma por razões diferentes, mas praticamente todas elas estão, cortaram muita gente e continuam cortando, deixaram de investir em reportagem, acho que esse é o problema central, os jornais ficaram todos muito parecidos, muito chatos. Independentemente de se falam bem ou mal do governo. Tenho conversado também com muitos donos de veículos, com diretores de redação, e eles concordam com isso. A circulação dos jornais brasileiros e das revistas caiu muito nos últimos anos, se deixou de cobrir o Brasil. Hoje, só tem cobertura nacional a TV Globo. Você tem uma concentração muito grande de jornalistas em Brasília, bem pagos, uma disputa muito grande por bons profissionais, e tem Brasília demais e Brasil de menos na imprensa brasileira. Marina Amaral - E por que o Lula presidente nunca deu uma entrevista coletiva? Fiz o levantamento de todas as entrevistas exclusivas e coletivas que o Lula deu desde a posse. Foram mais de oitenta. O que não houve ainda – e estou insistindo para que seja feita – é uma entrevista coletiva geral no Palácio do Planalto. Quando se diz “ah, o Fernando Henrique dava muitas entrevistas...”, não é verdade. Ele deu três coletivas em oito anos de mandato, sendo uma delas junto com o Clinton, e os repórteres só perguntaram da Monica Lewinski. Se dependesse só de mim, obviamente o presidente falaria mais, mas não precisa falar a toda hora, com todo mundo. O cargo exige uma responsabilidade maior do que no tempo em que ele era líder sindical, líder partidário. Mas o problema não está na forma da entrevista. O que acontece é que, desde 1º de janeiro de 2003, o Brasil tem um presidente que não é mais um presidente, é outro tipo de comportamento, de origem, de partido. No início tive muita dificuldade de me adaptar à função e os jornalistas de se adaptar a uma nova situação também. Eles estavam acostumados com oito anos de Fernando Henrique, que tinha os seus métodos, falava por telefone com jornalista. O Lula nunca teve isso, não tem, não faz parte. Sérgio de Souza - Você atribui a que isso? Ele não gosta? Não, é que ele acha que não pode banalizar isso. Está certo, não pode dar entrevista todo dia e toda hora. Na semana passada, ele deu a entrevista de capa da revista Época. Dia 14 agora, jornal Estado de S. Paulo; dia 23, uma coletiva para as rádios. Então são várias formas de você atender. Mylton Severiano - Tenho observado duas más vontades bem ferrenhas contra o governo Lula ou o Lula. Uma é o Jornal da Record, do Boris Casoy, e outro é a Folha de S. Paulo. É notório isso. Mylton Severiano - É bem notório, mas houve na eleição do Lula dois fatos que ficaram meio mal explicados e eu GOSTARIA que você, que estava lá dentro, desse a sua versão. Um foi uma entrevista que o Boris fez, e duas ou três perguntas iniciais não vieram para o grande público, e a outra foi que o Lula levantou de um almoço na Folha de S. Paulo porque o Otavinho (Otávio Frias Filho, o diretor de redação) TERIA PERGUNTADO não sei o que atravessado pra ele. GOSTARIA que você esclarecesse porque isso pode estar na gênese dessa má vontade deles. Eu não sei do lado deles, posso falar do nosso. Do nosso, não há nenhuma dúvida de que nunca houve simpatia do Boris pelo Partido dos Trabalhadores, por direito dele, cada um tem a sua opinião. O problema não é a crítica, o problema é que às vezes as pessoas são desrespeitosas, e acho que é um problema de educação mesmo, ele começou com uma gracinha sobre a gravata do Lula, se era importada e tal, coisa que ele não perguntou para o Serra. Wagner Nabuco - O Lula já estava eleito? Acho que foi na reta final da campanha. Houve um tipo de tratamento para o Serra e outro para o Lula, e o que irritou o presidente, o então candidato, foi que o Boris falou: “A imprensa internacional está dizendo que a tua eleição representa a formação do eixo do mal” – que era aquele negócio de Cuba, Venezuela e Brasil. Aí, o Lula perdeu a paciência e disse: “Você não está falando a verdade. Não é a imprensa internacional, é um jornalista de um jornal menor, um articulista que escreveu isso. Não é a imprensa internacional”. E houve esse mal-estar, essa discussão toda. E a do almoço da Folha foi a mesma coisa, a maneira desrespeitosa de se dirigir, seja quem for, a um candidato a presidente da República, que naquela ocasião estava praticamente eleito. Sergio de Souza - Você estava no almoço? Estava. Uma das perguntas, não lembro exatamente os termos, do Otávio Frias Filho, foi na linha da formação do Lula: “Você não tem diploma, não estudou inglês, como é que quer ser presidente da República?” Alguma 111 coisa dessa ordem, e foram várias na seqüência, até que, já quase ao final do almoço, o Lula, que tem uma ótima relação pessoal com o Frias pai, virou pra ele e falou: “O senhor me desculpe, mas não posso agüentar isso, tenho que me dar ao respeito, vou embora”. E o senhor Frias deu o braço ao Lula, desceu o elevador, foi até o carro, pediu desculpas e falou que nunca tinha acontecido isso lá. Mas acho que os problemas já eram anteriores. O preconceito contra o Lula, se você comparar com 1989, e contra o PT já diminuiu muito. Houve uma mudança cultural no país muito grande, mas ainda existe numa parte da mídia e numa parte da elite brasileira, que simplesmente não aceitam a vitória do Lula até agora. Sérgio de Souza - Um dos seus últimos empregos como repórter foi na Folha? É, saí da Folha de S. Paulo em 2002 para trabalhar na campanha do Lula. João de Barros - Quem faz a cabeça do presidente? Ninguém. Imagina! Isso eu já ouvi de um monte de gente, apareciam uns cinqüenta nomes que fazem a cabeça do presidente. É o contrário. Ele já fez a cabeça de um monte de gente. Se você pegar a história de como o PT foi formado, tinha os radicais da Igreja, tinha o pessoal da luta armada, vários intelectuais de grande prestígio. Até onde eu percebo, o Lula fez a cabeça dessa turma toda. De chegar ao poder pelo voto. Tinha gente que achava impossível. Ouvi gente séria dizendo: “Precisamos organizar o povo, para que daqui a trinta anos a gente possa pensar em chegar ao poder”. Aí, o Lula uma vez levantou o braço e falou: “Vão estar todos mortos. Não é melhor a gente eleger um vereador aqui, um prefeito ali, quem sabe um governador amanhã?” E com vinte anos o PT chegou ao poder, então não tem essa, tem muita gente que se insinua e tem pessoas que o Lula gosta de ouvir, muitas pessoas... Marina Amaral - Quem? Os ministros que estão lá, porque ele confia neles e ouve, mas ele gosta de conversar com gente de fora do governo. Sérgio de Souza - Ele tem confidentes? Ele não é muito de confidências, não mistura muito o pessoal com o trabalho, mesmo com as pessoas mais próximas. Sérgio de Souza - Ele lê livros? O último que eu vi ele lendo, na campanha de 2002, foi a biografia do Juscelino. Sérgio de Souza - Não tem hábito, não adquiriu e nem vai adquirir? Não, quando alguém chega pra ele e fala “esse livro aqui é muito bom”, ele lê. Um que ele leu e lembro que comentou muito foi A Estrela Solitária, a história do Garrincha, mas não vou dizer que o Lula é um intelectual, que vai procurar livro na livraria. Agora, ele tem uma coisa da cultura oral. Acho que poucos brasileiros tiveram a oportunidade de conversar tanto, por exemplo, com o Antônio Cândido. E ele tem uma memória incrível. Conversa com você, vai lembrar daqui a dez anos “o teu amigo jornalista”. Ele ouve dez caras, isso acho até bom, não tem coisas preconcebidas, aí vai matutando o que os caras falaram e toma a decisão – é a maneira dele de fazer as coisas. Mylton Severiano - É um intuitivo. É, mas um intuitivo que aprendeu ao longo da vida com muita gente que tem todos esses conhecimentos específicos que ele não adquiriu na escola. Sérgio de Souza - Você disse que foi ganhar um terço do que ganhava. E tem trabalho pra caramba, até 10 da noite. Sem a família. Por que você foi pro governo, então? É a continuação de uma história. Na primeira campanha do Lula, já fui ganhando muito menos do que ganhava no Jornal do Brasil e até aconteceu um negócio engraçado, porque eu falei: “Não quero ser assessor de imprensa, não gosto, não sei fazer”. Ele falou: “Não enche o saco, eu também nunca fui candidato a presidente da República”. E as coisas foram acontecendo, as campanhas, aí o teu amigo ganha a eleição e você vira e fala: “Bom, agora...”. Até brinquei, queria lançar um movimento “Vai com Deus, Lula. Fizemos a nossa parte, seja feliz”. Não dá pra fazer isso. Eu não sei explicar por que estou lá, mas tenho certeza de que, se não estivesse, não IA ESTAR legal. Sempre falo pros amigos: dá até pra se divertir lá dentro. No começo deste ano criei o “Projeto Felicidade”. Pro meu pessoal. “Vamos ser todos felizes, não tem outro jeito mesmo, estamos aqui, ninguém é obrigado a ficar, mas quem ficar vai ficar feliz.” Que é o seguinte: trabalhar menos, ganhar mais e namorar mais. Fui contar isso pra um colega que é uma figura, o advogado-geral da União, o Álvaro Ribeiro da Costa. Ele olhou pra mim e falou: “Kotscho, acho que você vai ter que sair do governo”. Ele está lá até hoje e eu também. CA92_nov_2004 Natalia Viana - Começando pelo começo... Eu sou Cecília Maria Bolsas Coimbra, nasci no Rio de Janeiro, no dia 16 de março de 1941, tenho 63 anos. Sempre morei no Rio, há dois anos estou morando em Niterói. Natalia Viana - Seus pais faziam o quê? Meus pais eram extremamente conservadores, meu pai era português, fã de Salazar, minha mãe era extremamente católica, apostólica romana, como ela dizia. Tive educação religiosa, fiz primeira comunhão, e comecei a duvidar dos dogmas da Igreja Católica aos 11 anos de idade. Natalia Viana - Por alguma razão especial? Não, comecei a pensar, e aí me sentia culpada porque passei a duvidar do dogma da transubstanciação, a transformação da hóstia no corpo de Cristo, e eu dizia que não era possível uma coisa dessas. E comecei a ler 112 Calvino, Lutero, li muito Allan Kardec e entrei para a Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, a famosa Fenefi da UB, que, na época de 1961, tinha a maior base universitária do Partido Comunista na América Latina. Fui fazer história, era a época em que houve a renúncia de Jânio Quadros, e o meu pai dizia que “o Brasil vai se tornar um caos com o João Goulart assumindo a presidência”... Minha família era toda lacerdista da UDN, União Democrática Nacional. Natalia Viana – Comemorou o golpe? Comemorou... E, quando entrei na faculdade, tinha idéia de que comunismo era uma coisa horrorosa, e aí tive contato com os primeiros comunistas, um deles se tornou depois meu marido (José Novaes). Lembro que dizia: “Papai, conheci uns comunistas tão interessantes”. “Cuidado! Esse pessoal não sei o que!” Lembro que fui numa primeira reunião do Partido Comunista, vi que não era nada daquilo e logo depois entrei. Comecei a ler materialismo dialético, materialismo histórico, a gente estudava muito, porque, pra entrar pro partido, você tinha de ter o curso básico do marxismo. E as dúvidas religiosas que eu trazia desde a adolescência ali foram respondidas, né? E me coloquei como materialista mesmo, mas começaria a divergir do Partido Comunista logo depois do golpe. Quando veio o golpe, a gente teve de se esconder, a polícia invadiu. Eu estava pra casar no dia 17 de abril e nem compareci ao cartório, me casei só no ano seguinte... Marcelo Salles - Na igreja? Não. Minha mãe me obrigou a vestir de noiva. Eu disse: “Tudo bem me vestir de noiva, mas que o padre venha em casa”. À igreja, eu não ia, de jeito nenhum. Mas me casei no religioso. Natalia Viana - Quer dizer que, assim que aconteceu o golpe, vocês já tiveram de se esconder? Sim, eu já estava morando com o Novaes, no Catete, e a gente saiu, no dia seguinte a polícia bateu lá. E a polícia tinha ido na casa da minha mãe, né? Mas a gente não foi preso naquela época, ficou um tempo escondido, não aparecia na faculdade. Respondendo a IPM, inquérito policial militar, respondi a dois IPMs, porque antes do golpe trabalhava com o Paulo Freire no programa nacional de alfabetização. Marisa Alvarenga - Você foi torturada no DOI-Codi? Calma, que estou chegando lá... Ninguém entrava ali sem ser torturado. Aí, me levam pra uma cela e logo depois uma pessoa aparece, que era um médico, um candidato a psicanalista que depois eu denunciei quando fui solta, o Amílcar Lobo, a gente conseguiu cassar o registro desse cara mais tarde. Ele não se identificava. Vestia uma farda de oficial do Exército, e perguntou: “Você é cardíaca? Tem pressão? Tem alguma doença?” Eu estranhando aquilo, e logo depois me encapuzaram e fui levada para a sala de tortura. Quando chego lá, os caras sabiam de onde era o documento, quer dizer, para mostrar pro DOPS o grau de eficiência dos serviços de informação do DOI-Codi. O DOPS era o cocô do cavalo do bandido, tanto que abriu uma competição para ver quem era mais competente. Realmente, talvez uns vinte minutos depois que a gente tinha chegado no DOI-Codi, eles identificaram: era o documento do seqüestro do embaixador norte-americano. Naquele momento, final de julho, início de agosto, tinha havido outro seqüestro, o do embaixador alemão (Ludwig Von Holleben), obviamente feito por outro grupo. A ALN e o MR-8 não tinham nada a ver. O DOI-Codi não sabia de porra nenhuma do seqüestro do alemão, e achava que a gente tinha alguma coisa a ver. E aí a cobra fumou. Natalia Viana - Você foi torturada ao lado do seu marido? Eu vi o meu marido sendo torturado. Me levavam para ver o Novaes sendo torturado. Ele diz que não foi levado para me ver sendo torturada. Porque eu perdi a consciência. A primeira coisa que eles faziam era colocar a mulher nua. Quando vi agora as fotos que seriam do Herzog, falei pro jornalista que me entrevistou: “Isso, pra nós, não é surpresa. Isso é a primeira coisa que faziam, principalmente com mulher. Era te colocar nua à mercê, que era num sentido de te fragilizar”. Quer dizer, fiquei durante muito tempo acreditando que meu filho – que na época estava com 3 anos e meio, meu filho mais velho – tinha sido entregue para o Juizado de Menores. Eles me fizeram acreditar nisso, porque meus irmãos foram presos, sem ter nada a ver. Natalia Viana - Como é para você, que vivenciou com algumas pessoas que estão no governo, a experiência de ter sofrido tortura, ver essas pessoas, pelo que você falou, fazendo esses pactos de silêncio? Eu não sei. Acho lamentável, é a única coisa que posso falar, ver um José Genoino, um José Dirceu, um Nilmário Miranda... Luiz Eduardo Greenhalg, que fala alguma coisa e daqui a pouco retorna, dá um passo à frente e três atrás. Eu tenho o maior respeito pela história deles. Natalia Viana - Quando apareceu o Grupo Tortura Nunca Mais? Em 1985, em cima de uma coisa bem pontual do governo Leonel Brizola, um governo dito de oposição. Em 1985, a gente tomou conhecimento de uma denúncia trazida pela grande imprensa: de um lado, o secretário de transportes do governo Brizola, que já morreu, um ex-preso político, Brandão Monteiro. O Brandão denunciou que o secretário de defesa civil na época, o José Halfeld Filho, estava indicando para o comando do Corpo de Bombeiros o Walter Jacarandá. O Walter Jacarandá foi torturador direto do Brandão Monteiro e o Brandão, quando soube disso, ele era secretario também, disse: “Peraí, esse cara me torturou, esse cara não pode ser indicado para o comando do corpo de bombeiros”. Em cima desse incidente, a gente começou a perceber que havia outros membros da repressão em cargos de confiança do governo Brizola. E, a cada dia, descobríamos mais membros da repressão ocupando posto de confiança no governo Brizola. E começamos uma campanha, em abril de 1985, e o Grupo Tortura Nunca Mais se organiza oficialmente no final de outubro, início de novembro de 1985, quando a gente faz então um grande seminário na Cândido Mendes e anuncia a formação de uma entidade. E, desde o início, a gente já não se colocava como ONG, com todo o respeito que a gente tem pelas ONGs, a gente se colocou como movimento social, como um grupo de militantes, porque fazemos questão de ninguém ganhar nada com isso. Mas não é trabalho voluntário, não, não é cada um fazendo a sua parte, não, é militância política. 113 TRECHO 5 Paulo Eduardo Gomes - Como a gente vai, a partir desse evento emblemático envolvendo o nome do Vladimir Herzog, tendo o Tortura Nunca Mais como o centro de irradiação, reproduzir os questionamentos e as cobranças decorrentes da constatação da existência dos arquivos da ditadura? Que tipo de movimento vocês imaginam fazer? Estamos fazendo já. Desde a semana passada estamos lançando uma campanha nacional e internacionalmente, pela abertura imediata, ampla, geral e irrestrita, não lenta, gradual e segura, dos arquivos do terror. Estamos solicitando duas coisas: a anulação do decreto 4.553 do tal sigilo eterno, que eles já estão discutindo, e a abertura imediata, de forma irrestrita, dos arquivos. É só entrar na nossa home page, que encaminha mensagens, qualquer tipo de mensagem, para as autoridades, presidente da República, ministro da Justiça, ministro da Defesa, com cópia para o secretário Nacional de Direitos Humanos. Que se faça uma ampla campanha e estamos solicitando a quem tem condições de escrever artigo que o faça no sentido de apontar a importância dessa campanha, não só de resgate da história, de anular esse esquecimento que tem sido produzido, esse silêncio que tem sido produzido, e os efeitos disso hoje para a sociedade brasileira, para a questão dos direitos humanos hoje no Brasil. Coloca nossa home page lá: www.torturanuncamais-rj.org.br CA93_dez_2004 O economista Carlos Lessa conta por que saiu do BNDES, explica que nunca foi insubordinado porque o banco, como empresa pública autônoma, não é subordinado a nenhum ministério. E faz um alerta – o presidente Lula está sendo enganado, ao ter sido levado a acreditar que, com a política econômica neoliberal, vão chover investimentos estrangeiros no Brasil. “E aí vem o conto do vigário que passam no presidente, que é o seguinte – não vem recurso nenhum, nem tem por que vir, por uma razão muito simples, os recursos externos estão dentro do Brasil”. TRECHO 1 Claudius - Você colecionou 72 boatos de sua demissão, toda hora você estava sendo demitido e de repente... Fui demitido. Claudius - É, a coisa aconteceu. E disseram que foi pelo fato de você ter sido boquirroto, ter falado demais, ter criado uma porção de casos etc. Na verdade, acho que existe uma tentativa de construir por esse lado. Estou pretendendo dedicar um pedaço do meu tempo, nas próximas semanas, a escrever com dois amigos, que foram colegas meus durante essa trajetória, o que acumulamos, o que aprendemos em dois anos de BNDES – o Dark Costa (vice-presidente) e a Cristina Rice, que era minha chefe de gabinete. Uma das coisas que pretendo mostrar é que comecei a ser demitido praticamente no início da gestão. Fui sendo demitido, e foi sendo levantada contra nós uma variedade espantosa de acusações. Vou usar porque tenho o clipping das setenta e tantas. E o interessante é que uma quantidade enorme das coisas que foram levantadas como variáveis de explicação não tem nenhum fundamento, mas Goebbels dizia que o importante não é o fato, mas a versão do fato e a sua repetição ad infinitum. Por exemplo, uma das coisas que insistiam em dizer é que eu era insubordinado. Realmente, jamais me considerei subordinado ao ministro Furlan, ponto. Por uma razão primeiro política, porque quem me convidou foi o presidente da República; se fosse o ministro Furlan que me tivesse convidado, eu não aceitaria por uma razão muito simples: eu não o conhecia. Você não pode se sentar numa cadeira daquela responsabilidade sem ter confiança em quem o convida. Então, a verdade é que, se eu tivesse sido selecionado pelo ministro Furlan, TERIA PRONTAMENTE RECUSADO. Mas há uma razão mais de fundo – é que juridicamente eu não era subordinado, o BNDES não é subordinado. O BNDES é uma empresa pública, por definição, não está em nenhuma hierarquia. Existe um órgão supervisor que tem de verificar se a empresa pública cumpre ou não a legislação geral do país e a legislação geral dela própria como empresa. Porém, quem administra é o presidente e a diretoria. Quem responde pelos atos sou eu, o ministro não tem nada a ver com os atos que eu assumo. Então, o não ser subordinado, que afirmei desde o início, era papel que me correspondia, sim. Além do mais, o espectro de questões em que o BNDES atua é o mais amplo que vocês possam imaginar. O meu vice-presidente brincava, dizendo que nós vamos do alfinete ao foguete. Significa dizer o seguinte: se eu estivesse subordinado substantivamente a um ministro, esse ministro não SERIA ministro, SERIA na verdade um vice-rei em relação aos outros ministros, porque de todos os assuntos com que lida o BNDES – agricultura, comércio exterior, energia, transporte, saúde, educação, cidades, integração, Ministério da Defesa – SAIRIAM sub judice decisões tomadas por esse ministro. Que SERIA um superministro. Eu contratei pareceristas, os melhores especialistas de direito administrativo no país, todos eles disseram que a instituição não é subordinada, está sob supervisão. Um pequeno detalhe: nunca consegui ver que essa questão fosse clarificada para a opinião pública. Wagner Nabuco - Ainda nessa linha extremamente importante, os recursos do BNDES para o ano que vem são 60,8 bilhões de reais disponíveis para aplicação... Você sabe que isso é maior que o Banco Mundial, e o interessante é que sou acusado de ineficiente. TRECHO 3 José Arbex Jr. - O senhor se sente enganado pelo Lula? Não, não, veja bem, enquanto fui presidente do BNDES eu não podia dizer isso porque fazia parte do governo, e tinha de deixar o meu chapéu de economista em casa e tocar pra frente o meu papel como dirigente de órgão 114 público. Na hora em que o presidente me pede para devolver a cadeira que é dele, eu devolvo a cadeira, é o ato da demissão. Mas, a partir daquele momento, recupero a minha liberdade, posso dizer sim, o presidente Lula está sendo enganado, por um discurso... TRECHO 4 José Arbex Jr. - O senhor acha que um presidente tem o direito de ser iludido? Então, o Lula é incompetente, devia renunciar... Veja bem, eu estou atirando em alvo que, me parece, tenho o direito de atirar. Porque é o seguinte: sou economista, sou um brasileiro, milito há muito tempo no sonho de que esse Brasil seja um país justo. Então tenho o direito, mais do que o direito, a obrigação de dizer o que penso da política econômica. Agora, sobre o presidente, como presidente, como pessoa, preciso dizer que tenho uma imensa simpatia pelo presidente, como ele é como pessoa. Aí, você me pergunta: tem o direito de ser iludido? Olhe, meu caro, o peso, a força desse jogo é realmente brutal, realmente brutal. Sabemos o que pesa nesse jogo, quer dizer, se você tem medo de conseqüências que não controla e, de outro lado, tem confiança numa recomendação que parece muito com a sua própria experiência de vida, a pessoa pode ser iludida, sim. Eu acho que é de boa-fé, acho que o presidente está iludido de boa-fé, acho que ele está certo de que está acertando. TRECHO 5 Claudius - Você é um otimista. Sou um otimista estrutural, acredito no homem, acredito que vamos fazer uma civilização. Mas respeito quem for pessimista. O que eu quero dizer é que, do ponto de vista político, Lula é um patrimônio nosso, mesmo fazendo os erros. Aliás, acho que é nisso que ele tem uma quantidade ainda grande de apoios. Se nesse momento houvesse uma eleição, eu VOTARIA no Lula para presidente. José Arbex Jr. - Como o senhor explica o comportamento em relação à Monsanto que forçou praticamente o contrabando de sementes... Ela não forçou, não, que eu saiba ela introduziu a semente para criar... José Arbex Jr. – Então, como o senhor explica um governo que, em vez de punir a Monsanto cria uma medida provisória para liberar os transgênicos? Essa discussão eu não acompanhei, ela não passou pelo BNDES. José Arbex Jr. - Como cidadão brasileiro. Como cidadão brasileiro, me preocupa muito essa questão das sementes transgênicas, me preocupa espantosamente essa história das sementes, e me preocupa muito a Embrapa, eu acho que a Embrapa é uma estrutura técnico-científica fundamental para a agricultura brasileira, tinha de ser robustecida, fortalecida, e está extremamente debilitada. Me preocupa muito deixar a produção de sementes importantes em mãos de Monsanto, Cargill etc. Isso, você tem de começar a conversar com o ministro da Agricultura, com o ministro da Indústria, você precisa compreender que o governo tem um lado pelo qual ele está ligado a estruturas empresariais, são essas complexidades que tem o poder público. O que posso te dizer é que, em todas as batalhas que enfrentei e muitas foram gigantescas, o presidente ficou do meu lado. Agora eu sou oposição à política do Palocci, sou oposição à política do Meirelles, posso fazer, não estou no governo. E aí sai de baixo, porque o que vamos disparar é uma loucura. Quero pensar um projeto nacional e popular. É só com isso que estou preocupado agora. Por que acho que é preciso preservar a figura do Lula? Primeiro, porque não é nada trivial você ter um operário que nasceu em Garanhuns virar presidente da República. E, segundo, que, se não der certo, vêm os tucanos aí numa voracidade enorme. E não temos mais condições de resistir. Eu vi a extensão da devastação que eles fizeram. TRECHO 7 Wagner Nabuco - Sua família é de elite tradicional, quando você foi caminhando por essa área mais de paixão pelo povão, como é que foi o embate? Eu vou explicar. Não foi embate, no meu caso foi o seguinte: eu descobri o povo, esse troço é complicado, olha aqui! Eu convivia com o povo da favela, mas os meninos da favela, pra mim, eram heróis. Eles jogavam futebol melhor do que eu, paqueravam melhor do que eu, sabiam de sexo mais do que eu, quer dizer, eu os achava sujeitos privilegiados, não estou brincando, não. Eu fui descobrir a miséria quando, trabalhando para Arraes, no plano diretor de Recife, vi a favela da Boa Viagem e do Pina. Isso gerou pra mim um impacto brutal, quer dizer, se uma sociedade deixa pessoas ficarem nessas condições, essa sociedade está errada. E, se essa sociedade está errada, tenho de rever tudo o que existe sobre isso. O choque, pra mim, foi o choque de ver a miséria, as condições em que aquelas pessoas viviam. Pra você ver a miséria, tem de estar fora do seu local de origem. Durante muito tempo não conseguia chegar a Recife sem ficar empacado emocionalmente. CA94_jan_2005 Sérgio de Souza - Vou começar com uma pergunta simples: você gosta de briga de galo? Que engraçado! Não, eu particularmente não, já vi briga de galo... Tá, vou ser mais objetivo na resposta: conheço o Duda Mendonça, a quem você se refere na pergunta, há muitos anos. E de uma circunstância curiosa: nos anos 70 eu trabalhava na DPZ e a gente fazia as campanhas da máquina de escrever Olivetti. O responsável 115 pela propaganda na Olivetti era o Mário Chamie, o poeta, eu era muito garoto e o Chamie e o presidente da Olivetti me tratavam como um menino de estimação, então eu tinha liberdade pra fazer um trabalho bastante bom. Trabalhava em dupla com o Francesc Petit, um dos sócios da DPZ. Quando chegou no Dia das Mães, resolvemos, com a concordância ou conivência do cliente, fazer a campanha com o tema – aí eu estava de sacanagem, tinha repressão política e tal – “Dê uma Olivetti portátil para sua mãe reclamar por escrito”. A campanha foi bem, repetimos no Dia dos Namorados e no Natal. Quando chegou o outro ano, óbvio que o Dia das Mães merecia o tal anúncio. Nessa época eu freqüentava muito a cidade de Salvador, minha primeira mulher tinha amigos lá e acabei fazendo muitos amigos também, incluindo Mãe Menininha. E o Gantois tinha um problema de vazamento no teto e não tinha dinheiro pra arrumar. Aquilo ficou na minha cabeça. Quando chega a hora de fazer o anúncio do Dia das Mães, olho que dia cai – 13 de maio. Falei: “Opa, isso é um anúncio pra fazer com uma mãe preta. Melhor ainda: vou tentar fazer com a Mãe Menininha do Gantois, porque ganha um cachê, arruma o telhado. Primeiro converso lá, respeitosamente”. Falei que existia uma oportunidade, que não garantia que acontecesse, que precisava apresentar para o anunciante e tal, que seria um anúncio com Mãe Menininha para a Olivetti no Dia das Mães. Todo mundo gostou muito, então escrevi o título: “Dia 13 dê uma Olivetti portátil para sua mãe, ela vai se sentir uma verdadeira mãe de santo” – e tinha a foto de Mãe Menininha do Gantois. O anúncio teve um grande impacto, e o Duda nessa época estava começando a vida de publicitário, tinha trabalhado anteriormente na área imobiliária e, obviamente sem má intenção, achou que aquilo podia ser coisa de “uns paulistas se aproveitando de Mãe Menininha”, e saiu – obviamente ele já gostava de um spotlight – dando porrada pra tudo quanto é lado, com cobertura de imprensa relativamente local. Eu fiquei magoado com aquela agressividade, mas esqueci e o assunto também acabou. Passam-se uns cinco, seis meses, tem o Festival Ibero-Americano de Publicidade aqui em São Paulo, e o Duda veio de Salvador. Eu não o conhecia. No festival, alguém me apontou ele, me aproximei, falei: “Olha, tem uma coisa que a gente precisava esclarecer. Não acho legal o que você fez por falta de informação. Se foi por falta de informação, vamos esquecer o assunto. Se foi de safadeza, acho uma puta sacanagem”. Ele falou: “Não, desculpa”. E me convidou pra passar o final do ano em uma casa dele em Itaparica. E a gente acabou fazendo amizade. Depois convivi muito com o Duda. Do ponto de vista profissional, curiosamente quem o apresentou para o Paulo Maluf fui eu, porque não faço campanhas políticas... Sérgio de Souza - Aliás, fiz a pergunta pra chegar nisso. Por que não? Nunca topei fazer. Primeiro que, quando comecei a trabalhar em publicidade, o Brasil vivia um sistema político com o qual eu não concordava e eu não queria fazer campanhas do governo. Trabalhava numa agência que foi extremamente carinhosa, respeitosa e bacana comigo, que permitiu eu me dar a esse luxo, me trataram como menino-prodígio, e me isolaram, “bom, você só quer iniciativa privada, você fica nessa praia que é bom para a agência”. E aí me treinei para trabalhar para a iniciativa privada. Acho que se fizesse uma campanha política faria mal. Dependo muito da solução profissional. Mas sempre fui convidado para fazer campanhas políticas, por todo mundo. Uma vez foi o Paulo Maluf. Falei: “Doutor Paulo, não faço campanha política, vou ser até mais sincero: não sou seu eleitor, mas não é a sua campanha, é que não faço nenhuma. Mas queria convidar o senhor para fazer a minha”. Eu estava fazendo a campanha do Vulcabrás (um tipo de sapato popular da indústria Grendene) e tinha feito o Vicente Matheus com um puta sucesso, tinha feito o Nuno Leal Maia... TRECHO 2 João de Barros - Você não acha que nessa questão política também tem muita permissividade? Porque para o anúncio de empresa privada tem o Conar, o órgão que regulamenta a propaganda. Mas não tem isso na campanha política, essa coisa de você não poder devolver o produto. O Conar é um grande mérito da geração anterior à minha. E persistiu esses anos, com bastante mérito. Claro, o Conar tem um problema, particularmente nos últimos anos, por exemplo, quando julga questões morais. A questão moral é complicadíssima, porque o que é totalmente normal para a minha sobrinha é um escândalo para a minha avó. E, quando você está com 63 pontos de audiência, estão a minha sobrinha e a minha avó vendo. Mas, mesmo assim, o Conar tem muitos méritos. O eleitor não tem esse órgão. Marcos Zibordi - Você estava falando que publicitário só anda com publicitário, você estava querendo dizer que eles não conhecem a vida real? Não estou generalizando. É claro que muitos sim, mas muitos publicitários acabam criando uma situação artificial de vida. Outra coisa: hoje muito menos, mas é uma atividade que, de repente, você sai do patamar de estagiário para um salário atípico em relação ao seu próprio núcleo social, você passa a ganhar mais do que seus amigos que são engenheiros. Marcos Zibordi - Pegar as mulheres... Olha, já não é tão assim. Já foi melhor. João de Barros - O seu leque estético, você disse, sempre passou pela música... Música popular muito, artes plásticas, eu ando muito, literatura. João de Barros - Esse leque passa por Racionais MCs? Passa, claro, os meninos, inclusive, freqüentam a agência de vez em quando. Agora faz tempo que eles não vão lá. Márcio Carvalho - Que meninos vão lá, o Mano Brown? Mano Brown, agora faz uns três anos. Marina Amaral - Vai dar uma queimada no Mano Brown. Não, ao contrário, foi para um festival, há uns três anos, que o Mano Brown esteve comigo. Tenho uns amigos, por exemplo, os meninos do Affro Reggae são muito meus amigos e a gente ajuda os meninos do Affro Reggae. 116 TRECHO 4 Sérgio de Souza - Você diz que não tem personalidade política, mas ao mesmo tempo mostra preocupação quando fala de educação, de cultura popular. Que temor da política é esse? Não é um temor, acho sinceramente que a política, no seu sentido partidário, convencional, está muito distante da maneira como eu encaro as coisas, acho que isso veio até de formação. Eu lia Maiakovski com 17 anos de idade, gostava mais da idéia do “não existe revolução política sem revolução estética”, a minha praia é muito voltada pra esse lado. Todo o meu trabalho tem uma característica de brasilidade, essa pretensão de entrar na cultura popular brasileira, o fato de deixar sempre espaço crítico pra quem deve, todos esses fatores na sua somatória são pequenos gestos políticos. Agora, toda vez que vai no partidário, no acadêmico, acho meio defasado do meu quadro. CA96_mar_2005 Revelações explosivas de dom Tomás Balduíno, dirigente da Comissão Pastoral da Terra, nesta entrevista à Caros Amigos: existe uma tabela para os pagamentos aos pistoleiros no Pará, conforme a categoria da vítima a ser morta: um padre, um líder de grupo sem-terra, um deputado, 20.000 reais; um vereador, 15.000 reais; um sindicalista, 10.000 reais... O agronegócio, de que tanto se fala, produz apenas 21 por cento da soja brasileira, embora esteja acabando com o cerrado, e apenas 0,8 por cento de tantas aves que são exportadas. Por sua ação em defesa dos índios e camponeses, houve uma tentativa de matar dom Tomás, que falhou por que ele não estava no local previsto: tinha ido ao enterro de dois assassinados... TRECHO 1 Natalia Viana - Começando pelo começo. Onde o senhor nasceu? Em Posse, uma cidade no limite leste de Goiás com Bahia. Uma região interessante, interseção Minas-Goiás-Bahia, um pouco daquele grande cenário, de Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas. Cenário de Canudos. Pega depois, na vertente, o São Francisco, o cenário de Canudos... é o meu mundo. Uma terra que foi palco do cangaço. Minha infância foi dividida entre Posse e Formosa. Meu pai foi promotor e depois juiz na cidade de Formosa. Minha infância é povoada de muita excitação, muita animação pelo sítio do cangaço. A cidade foi sitiada, pessoal se armando... Marina Amaral - Família grande? Somos doze filhos. E temos um ramo paulista, Ortiz. Sou primo do Plínio de Arruda Sampaio. Nós dois somos primos de Monteiro Lobato pelo lado da mãe. Meu pai veio estudar no Rio, se casou com filha de fazendeiro e a levou lá pro sertão. Marina Amaral - Há outros parentes ligados à Igreja? Três tios padres. Isso influenciou minha vida no início, mas acho que nasci padre... Desde criança celebrava missa. Sérgio de Souza - De brincadeira? É, de brincadeira. Era paga a troco de um torrão de açúcar. Tinha algum dízimo... Mas era a animação da família ver o menino rezar, naquele latim que nenhum padre entendia... TRECHO 2 Mylton Severiano - Já que lembramos da ditadura, qual foi sua visão dentro da Igreja, onde grande parte apoiou as passeatas da Família, com Deus pela Liberdade? Não fui eu só. Um bom grupo dentro da Igreja repudiou o golpe, porque houve aquela declaração da alta hierarquia, dos cardeais louvando a Deus pelo fato de o Brasil ter se livrado do perigo comunista sem derramamento de sangue. Nesse tempo, eu ainda não era bispo. Só fui a partir de 67, mas assisti à reviravolta acontecida na Conferência Episcopal. Foi através de um pequeno grupo que até hoje se reúne, um grupo informal, que dom Fernando Gomes dos Santos carinhosamente chamava “grupo não grupo”. Dom Helder, dom Paulo Evaristo, dom José Maria Pires, o próprio dom Fernando, dom Pedro Casaldáliga, eu, dom Valdir Calheiros, vários outros. E decidimos formar o grupo, dom Helder resistiu muito a essa proposta, “não façam isso, vão interpretar como cismático”, mas acabou entrando. O grupo procurou ajudar a Conferência Episcopal. Não se colocar contra as bobagens que eram declaradas, mas procurar se reunir para fazer a leitura da conjuntura. Nos reuníamos dentro do quadro das assembléias, porque, se a gente se reunisse fora, SERIA perigoso. E graças a isso o grupo foi se tornando uma referência dentro do episcopado, sendo procurado pelos outros irmãos bispos. A gente teve forte influência até nas eleições da presidência da CNBB. Começou então com essa mudança e os outros conteúdos. Sérgio de Souza - E o Vaticano como via isso? Mal. Já tinha tentado desfazer. Nós nos valemos da tradição histórica do poder do bispo de se reunir com outro irmão bispo. Foi isso que tapou a boca do núncio. Mas houve repressão a grupos, assim, por exemplo, no Equador, vinte bispos foram presos. Um grupo grande de bispos do Brasil e da América Latina sofreu a repressão. TRECHO 3 João de Barros - Anapu é governada por uma família? Anapu tem várias fazendas ali. É um pessoal unido, articulado. Uma UDR de plantão permanente. Quando houve 117 aquele outro protesto porque o governo não cumpria as liminares de juízes contra ocupações de terra, eles trancaram a rodovia com 5.000 bois! Foi gente até aqui do Pontal do Paranapanema para dar apoio. Essa gente está em todas! Sérgio de Souza - Desde o Congresso, não é? Desde o Congresso. A bancada ruralista. Essa eleição que houve agora não foi a favor do Severino, foi contra o Luís Eduardo Greenhalgh, porque ele apóia isso que eu estou falando. É quase um Estado paralelo. Sérgio de Souza - É invencível? O senhor vê esperança nisso? O governo tem que fazer acordo, porque está estruturado na maneira deles. Thiago Domenici - Mas que tipo de acordo poderia ser feito com essa gente? Um acordo porque a gente acha que esse pessoal, diante do que é legal, não tem muita força de tergiversar ou reagir. Pelo menos na aparência. Eles falam em legalidade, e é tudo ilegal. Tudo grilado. Acho que seria um acordo com a própria nação, em vez de fazer acordo com um grupo de fazendeiros no sentido de legalizar, ordenar, a questão fundiária no Estado do Pará, do Amazonas, de Mato Grosso, de Rondônia, de Roraima. Quer dizer, efetivar as exigências da lei, porque é tudo patrimônio público. TRECHO 4 João de Barros - E é bom lembrar que, dos mais de mil assassinatos no campo, só nove mandantes foram condenados e nenhum deles está na cadeia. Deixa eu dar esse dado com mais precisão. Primeiro, o das famílias despejadas: nos dados da CPT de 2003, 35.292 famílias despejadas. São famílias que ocupam a terra de viver e trabalhar. O juiz se baseia num título apresentado por um pretenso dono da terra e dá esse despejo. Do ano de 2004. TRECHO 5 Marina Amaral - O senhor acha que esse caso da irmã Dorothy tem força para mudar essa situação, ou vai se juntar a Chico Mendes, Eldorado de Carajás e os lavradores não conhecidos nem americanos vão continuar sendo mortos sem ninguém se incomodar? A repercussão, da mesma forma que explode, pode ser abafada. Um abafamento no caso da Dorothy é punição imediata dos culpados e pronto. O governo lavou as mãos. Então, manda um aparato de soldados lá – e eu fico até com medo pelas meninas, com tanto soldado. Diante da opinião pública, aí é que está, hoje é diferente. Hoje existem as organizações do campo. E o pessoal assumiu isso, essa reivindicação, essa cobrança. Já participei de n reuniões e ainda tem mais. Logo em seguida houve reunião do Fórum Nacional pela Reforma Agrária. É diferente. TRECHO 6 Mylton Severiano - O senhor já foi ameaçado? Sim, sim. TRECHO 7 Marina Amaral - O senhor acha que, para quem está no campo, o governo Lula vai trazer algum tipo de progresso? O senhor falou que o Fome Zero não tinha o mesmo tipo de inspiração do que, por exemplo, um trabalho como o de vocês. O senhor vê alguma ação do governo que pode ter mudado, o mínimo que seja, a realidade dessas pessoas? Olha, dou graças a Deus que o Lula está aí e ao mesmo tempo o critico fortemente e mais ainda o PT dele. Mas a gente tem que reconhecer que mudou. Por exemplo, a questão da repressão, não tem repressão aos movimentos populares. Marina Amaral - Com Fernando Henrique tinha? Sim, sim, demais! E tem coisa que até hoje perdura do Fernando Henrique, por exemplo, a punição de uma ocupação. Até juiz do Supremo já deu razão a ocupação de terra, por reconhecer que não é em vista de ficar com aquela terra, mas de pressionar para que haja a reforma agrária. Isso é legítimo. Mas, veja, o governo do Pará continua policialesco com relação a essas organizações populares. Em Goiás, houve agora um despejo da cidade de Goiânia de 20.000 pessoas, são 4.000 famílias. Quer dizer, são outros governos, inclusive são PSDB. E aqui em São Paulo também, o aparato policial é muito forte. Olha, com relação ao Lula, você pode fazer a crítica que quiser, mas nesse ponto o pessoal respira, age até mais confiante, eu creio que faz a diferença. Porque o que é que aconteceu no Brasil? O Estado foi feito pela elite e aquela cadeira ser ocupada pela elite. Por um acidente de percurso, foi um ex-operário e migrante nordestino, e isso o pessoal não tolera, tem que votar para qualquer Serra da vida. E a preocupação da gente é quando chegar o termo daquilo, com todos os desgastes, com todas as manobras, que volte atrás, volte simplesmente para a elite, aí é como a mão na luva, o encaixe é perfeito. TRECHO 8 Marina Amaral - Posso fazer uma pergunta fútil? Como o senhor se mantém nessa elegância com 82 anos feitos? Já dei essa resposta para um jornalista e repito: deitar na rede e balançar. CA97_abr_2005 118 Na guerra pelas eleições de 2006, a ex -prefeita de São Paulo, Marta Suplicy, tornou-se o alvo dos petardos disparados pelos tucanos, apoiados pela mídia paulista. Em campanha para obter a indicação de seu partido para disputar as eleições para o governo estadual, Marta tem sido acusada pelo prefeito José Serra de ter deixado uma dívida de 8 bilhões de dólares e de ferir a Lei de Responsabilidade Fiscal. Na entrevista a Caros Amigos – feita em duas etapas –, ela contrapõe outros números, acusa o prefeito de estar fazendo caixa para “aparecer depois como um grande administrador”, em vez de pagar os credores, e fala do tratamento privilegiado dado aos tucanos pela imprensa grande. Trecho 1 Natalia Viana - Marta, a gente sempre começa perguntando sobre a infância do entrevistado. Onde nasceu... Nasci em São Paulo, cresci em São Paulo, morei alguns anos fora do Brasil, mas sou paulistaníssima. Natalia Viana - De que bairro? Nasci no Jardim Paulista. Natalia Viana - E como foi a sua infância? Sou a filha mais velha, éramos quat ro, agora somos três. Eram três meninas e um rapaz e, desde pequena, acho que já tinha fortes indícios de que seria feminista. Já percebia que o menino, apesar de ser o menor, tinha regalias que as meninas não tinham, uma coisa que me marcou muito. A minha mãe era uma pessoa bastante submissa, quieta e, mesmo sem ter consciência de que nome teria o meu sentimento, eu sabia que não queria ser daquele jeito, que não queria que a minha vida fosse como a dela. Só que eu era muito controlada, uma menininha que era levada e buscada no colégio Des Oiseaux, não tinha a vida da maioria das crianças, era bastante protegida. Marina Amaral - Quando veio a luz? Foi na adolescência? A luz veio muito tarde, viu? No secundário, mudei de escola e fui para o colégio Sion, o que, para a maioria das pessoas, não faria nenhuma diferença, mas, para mim, ver que os pais das colegas não eram os donos das empresas já era uma situação diferente. E eu também tinha curiosidade, queria mais, e aí pedi para não voltar da escola direto para casa, porque queria aprender a bater a máquina, depois pedi para aprender italiano, aí eu ia da escola para o Circolo Italiano, que era no centro, e aquilo começou a me possibilitar conhecer outras pessoas, circular no centro. Quando comecei a namorar o Eduardo, veio outra etapa, ele já tinha uma ação política, era presidente do grêmio da FGV (Fundação Getúlio Vargas). Sérgio de Souza - Foi o primeiro namorado? Não. Aí, eu comecei a me interessar mais por política, criei o grêmio do Sion, comecei a ter um pouco de militância como estudante secundarista, mas ainda era tudo muito embrionário, muito protegido. Eu ficava muito agoniada com a situação de pobreza que eu via, de disparidade, de a gente ter as coisas e as outras pessoas não terem, mas era tudo equivocado porque, na época, lidar com a pobreza era levar cobertor na favela. Eu não tinha na minha formação a idéia de que isso poderia ser resolvido, meu pai era um industrial extremamente conservador. E também era uma pessoa muito culta, que abria possibilidades de discutir política, discutir o mundo, de brigar, mas é claro que ele tinha um arsenal de argumentos bem maior do que o meu. Eu já era muito, entre aspas, rebelde. Não acatava as posições dele. Trecho 2 Sérgio de Souza - Como você chega no PT e na política partidária? Nessa época, eu era muito mais interessada na mulher, nas campanhas feministas, tinha a alma naquilo. Não tinha nenhuma preocupação partidária, mas lembro da primeira vez em que o Eduardo convidou o Lula pra fazer um comício no centro da cidade. Lembro também das reuniões políticas em casa, minha participação consistia em servir o café, mas eu estava sempre muito atenta ao que acontecia. Em uma reunião dessas estavam o Fernando Henrique e mais algumas pessoas da USP, poucas, umas cinco, e o Lula e eu ali no meio. Sérgio de Souza - Só homem também, né? Sempre foi, e é até hoje. Até parece que mudou muito... E todos falavam muito, coisas prolixas, difíceis de entender, muito abstratas. Eu lá ouvindo. E, quando o Lula falou, fiquei muito impressionada porque, de maneira absolutamente clara, ele resumiu tudo o que eles tinham dito e ainda avançou alguma coisa. Quando todo mundo foi embora, falei: “Eduardo, esse cara aí é muito dotado, quem é ele?” E ele me explicou quem era o Lula. Trecho 3 Wagner Nabuco - O que foi fundamental para sua derrota contra o Serra? Acho que foram as taxas, não ter conseguido reagir ao apelido que eles me puseram, Martaxa, de a mídia ser absolutamente contrária e me desqualificar todo dia. Marília Melhado - E quando você se candidatou a governadora, em 1998? Foi uma surpresa quando o Lula me ligou e falou: “Marta, você topa ser candidata a governadora?” Aí eu falei: “Bom, eu topo. Mas como vou fazer na prévia?” Porque o candidato era o Palocci, só que ele não alavancava nas pesquisas, tinha uns 4 a 6 por cento e eu uns 6 a 8 por cento, sem ser candidata a nada. A conclusão foi que o Palocci, a primeira opção, não alavancou, o Genoíno não quis ser porque pretendia disputar mais um mandato a federal e, como eu ia bem nas pesquisas, eles me convidaram e aceitei rápido. A possibilidade de ganhar era praticamente zero, mas eu não pensava em fazer carreira na política, achei que PODIA FAZER uma campanha interessante e tudo bem. Só perdi por causa de uma pesquisa veiculada às vésperas da eleição. As pessoas não votaram em mim porque a disputa tinha virado entre Rossi e Maluf, e então votaram no Covas. O que recebi de 119 telefonema no dia seguinte, de gente arrependida, triste... E um telefonema do Serra pedindo para eu apoiar o Covas. Eu falei: “Serra, ainda não engoli o sapo que vocês aprontaram. Eu vou apoiar, mas, pelo menos, me dá dois dias para eu engolir o sapo que vocês aprontaram, né?” Porque eu sabia que eram eles mesmos que tinham aprontado tudo. Trecho 4 Marina Amaral - E você conseguiu descobrir furos na blindagem do Alckmin? O Alckmin é uma pessoa querida, tem um jeito de bonzinho que agrada às pessoas e tem toda uma conivência, não sei se é a palavra, uma blindagem na imprensa de dez anos de um governo sem críticas. Agora deu essa brecha na Febem, mas há muito mais. O Rodoanel foi feito há tão pouco tempo e já está sendo recapeado. O metrô de São Paulo foi iniciado junto com o da Cidade do México, nos anos 70, e o do México tem 200 quilômetros e o de São Paulo 57. Na gestão do Alckmin, do PSDB, foram feitos só 7 quilômetros! Não teve nenhuma prioridade para o transporte de massas e ninguém questiona. E, a partir desses dez anos de PSDB no Estado de São Paulo, que serão doze quando terminar o mandato, será possível fazer uma análise bem redonda do que foi feito – claro que muita coisa deve ter avançado – e dos grandes fracassos. E aí temos de ter propostas, não apenas criticar o que eles deixaram de fazer. Acho que ganha quem tem propostas, por exemplo, o Serra tinha propostas: ampliar e melhorar o que eu estava fazendo. Perdemos a eleição, mas perdemos com 49 por cento de ótimo e bom, e ele sabia desse dado, não PODIA PROPOR nada muito diferente do que estávamos propondo. E tinha uma demanda da população, que eu saquei só no final, quando uma senhora no CEU me disse: “Não vou votar na senhora, prefeita”. Eu falei: “Mas a sua criança estuda aqui no CEU”. “Mas a senhora não me deu o Vai-e-volta, e ele vai dar”. Eu olhei aquilo, o Estado nunca deu uniforme, nunca deu Vai-evolta, nunca fez CEU nenhum, e ela não ia votar em mim porque a criança dela não era uma das 100.000 que tinham sido contempladas pelo Vai-e-volta. Aí acendeu uma luz, falei: “Credo, gente!” E percebo que, se essa população para quem trabalhei tivesse sido mais sensível – eu ganhei nessa população, mas precisei de alguns pontos a mais –, eu não TERIA PERDIDO. Trecho 5 Marcos Zibordi - Mas você é psicóloga, trabalhou na televisão, foi esposa de político e, quando diz assim “fico irritada”, tenho uma certa dificuldade pra aceitar essa justificativa... Tá, você quer que eu seja perfeita, eu não sou. Desculpe te decepcionar. Marcos Zibordi - Mas eu acho que... Por ser psicóloga, por ser ex-mulher do Eduardo, por isso e aquilo, eu DEVIA TER o controle? Eu também acho, por esses lados. Você queria que eu fosse perfeita, que tivesse um grau de tolerância à tensão mais alto. Eu também gostaria, mas não tenho. Trecho 6 João de Barros - A senhora DIRIA que está mais à direita do partido? Não, porque fiz o governo mais à esquerda do PT, queria que alguém dissesse que fez um governo mais à esquerda do que eu fiz. Marina Amaral - O que é um governo de esquerda? É o que tem as prioridades voltadas para o social, para as pessoas mais pobres, ainda mais em uma megalópole como São Paulo, em que a maioria são as pessoas mais carentes, mas a riqueza é feita por todos. CA98_mai_2005 Ele é militante há cinqüenta anos – começou na Juventude Universitária Católica, a JUC, nos anos dourados, entrou na AP (Ação Popular) quando atuava como deputado do PDC no governo João Goulart, e seguiu na esquerda durante o exílio logo após a sua cassação. Socialista e católico, foi um dos idealizadores do PT. Professor, promotor, advogado, duas vezes deputado, Plínio de Arruda Sampaio irradia a integridade dos que lutam a vida inteira por uma causa: a dos mais fracos. O longo caminho ideológico percorrido entre o berço de ouro e a esquerda do PT é resultado dessa devoção. Em nome dela, ele está mais uma vez disposto a lutar. Agora para salvar o partido que lhe parece cada vez mais distante do sonho libertário que o gerou. Seu recado: o PT tem de voltar a ser PT. Trecho 1 Marina Amaral - Sempre perguntamos ao entrevistado como foi a infância, onde nasceu, o período formação... Bom, São Paulo, 1930. Nem os pais de vocês aqui tinham nascido! Fiz o curso de formação no colégio Rio Branco, depois fiz a Faculdade de Direito. Durante a faculdade, fui militante de um movimento chamado Juventude Universitária Católica, a JUC. Fui dirigente da JUC, militante o tempo inteiro. Quando me formei, fiz um concurso para promotor público, passei, entrei e comecei a minha carreira de promotor. Thiago Domenici - Promotor aqui em São Paulo? Não. A gente começava longe... O lugar onde comecei chamava Xiririca! Hoje é Eldorado. Quando a gente ia, tinha que passar por duas balsas – uma no rio Juquiá e outra no rio Ribeira. Saía às 6 da manhã e chegava às 6 da tarde. Quando não chovia, era estrada de terra. Mas fiquei pouco tempo lá e fui removido para Sertãozinho, 120 que fica do lado de Ribeirão Preto, um calor danado. Mas aí logo aconteceu que meu pai foi nomeado secretário da Segurança Pública de São Paulo. E ele me chamou e disse: “Olha, eu caí num negócio aqui, e é melhor você vir pra ficar cuidando um pouco das minhas coisas”. Aí vim para o gabinete dele e ajudei. Marcos Zibordi - A sua militância começou no período universitário? Sim, mas não propriamente política. Só no final se transformou em militância política. Era uma militância social, uma participação... Naquele tempo, os moços cristãos eram muito de esquerda, muito presentes, muito participantes da vida universitária, que era muito ativa. Marina Amaral - O senhor já era socialista? Eu era democrata cristão. Marina Amaral - O que significava isso? Eu era democrata cristão, mas democrata cristão de esquerda! É um negócio complicado, né? E dentro da democracia cristã também havia o grupo mais à direita, mais conservador, e a disputa era ver para onde iria a democracia cristã: se ela seria um apêndice da UDN, partido de direita, ou se iria para o governo João Goulart, que era de esquerda. Eu defendi a tese de que iria para a esquerda. E ganhei! Tenho o texto até hoje, está amarelo, em que defendo uma tese extremamente atual, extremamente correta. A tese de que o povo brasileiro demora para identificar um aliado. Uma vez que identifica, é de uma fidelidade enorme. O Getúlio, por exemplo, tinha uma fidelidade enorme. O Jânio Quadros era identificado pela periferia de São Paulo como um homem de periferia. No final, ele estava velho já, muito desgastado, mas mesmo assim tinha os votinhos dele na periferia. Trecho 2 José Arbex Jr. - O senhor hoje está muito mais à esquerda do que quando eu o entrevistei lá em Moscou, por exemplo, quando o senhor era um deputado comportado do PT, tinha toda a liturgia do cargo etc. Não fazia discursos radicais como tem feito ultimamente. Será que está acontecendo com o senhor aquilo que o Stedile falou: vai ficando com idade, vai querendo reservar um lugar no céu? Pode ser também. Você não conhece a história do Genoino com o Nelson Carneiro? Quando chegou na Constituinte, o Genoino foi lá pro Nelson Carneiro e disse: “Deputado, estamos aqui com uma lista de deputados pra tirar o crucifixo da Câmara, porque não tem cabimento crucifixo na Câmara, e eu queria que o senhor assinasse”. E ele disse: “Xiii, meu filho, passei a vida inteira brigando com Ele, na hora que eu tô indo pra lá, ainda vou fazer outra desfeita?” Thiago Domenici - O senhor fez parte daquela lista dos cem primeiros brasileiros cassados, né? Sim, é uma grande alegria minha, uma grande honra, aprovado em primeira época sem exame oral, os cem primeiros. Até vou ser franco: quando aconteceu, achei natural. Mas procurei ficar no Brasil, não saí imediatamente, só sai quando um tal Tinoco, que era uma fera, chegou a um repórter da Bandeirantes e disse: “Hoje tem peixe gordo, peguei o Almino Affonso, o Paulo de Tarso, o Plínio Sampaio.” O repórter saiu correndo e telefonou para um primo meu: “Some com o Plínio, que ele vai ser preso hoje”. Verena Glass - A família ficou? A família ficou e aí aconteceu uma coisa fantástica, porque perdi o meu cargo de promotor público, perdi o meu mandato, e tinha cinco filhos, quer dizer, cinco filhos, no exílio, advogado, ai, meu Deus. Mas, chegando no Chile, era o governo do Frei e um dos homens fortes dele era o Jacques Chonchol, que depois foi ministro do Allende, um homem muito forte. Era casado com uma brasileira, e vinha de origem cristã e também de esquerda. Aí ele disse: “Vou fazer um jantar e queria que você fosse”. Fiquei uma semana lá, pensando: “Como trazer meus filhos, minha mulher?” Então chega um diretor da FAO em Santiago e diz: “Deputado, o senhor já tem compromisso de trabalho?” Falei: “Não, estou chegando”. E ele disse: “O senhor tem um lugar na FAO”. Resolveu a minha vida. Marina Amaral - Quanto tempo o senhor ficou no Chile? Seis anos no Chile, depois me mudei pros Estados Unidos. Fiquei no Chile de 64 a 70, quer dizer, saí logo depois que o Allende se elegeu. De modo que, quando a FAO me ofereceu um posto alto em Washington, eu fui e fiquei quatro anos lá e um ano na Universidade de Cornell, em Itaca, nos Estados Unidos, e aí fiz um mestrado em economia agrícola porque tinha trabalhado o tempo todo em agricultura. Trecho 3 Marcos Zibordi - E o PT? É, vamos chegar no PT, porque senão a gente passa o dia inteiro aqui. Então, deixei a FAO, fui pra Cornell, fiz um ano e meio lá, peguei o meu mestrado e vim pro Brasil. Cheguei com a idéia de fundar um partido socialista, democrático e popular. Começamos a mexer com o grupo, os três coordenadores eram Almino Affonso, Fernando Henrique Cardoso e Plínio de Arruda Sampaio. Nós três começamos a mexer o Brasil e a procurar gente para fazer esse partido, então fomos ver Marcos Freire, Jarbas Vasconcelos, fomos ver o pessoal do Sul, começamos a articular. O negócio foi evoluindo, contamos para lá, contamos para cá, tenho todos esses documentos ainda. O Weffort escreveu muita coisa. Nós escrevemos muita coisa, o Fernando escreveu alguns textos muito bons, ele escreve admiravelmente bem, diferenciado o português. José Arbex Jr. - Mas ele pediu para esquecer tudo o que escreveu. Mas eu não esqueci, tenho tudo lá em casa. Então combinamos o seguinte: “Fernando, você sai candidato, na sublegenda. Se passarmos de 1 milhão de votos, a gente lança o partido...”. Trecho 4 121 José Arbex Jr. - Qual a sua análise da importância do MST hoje na conjuntura brasileira, qual o significado desse movimento? O MST é o movimento mais importante do Brasil neste século. Porque é um movimento que congrega o setor que precisa ser integrado para isto aqui virar uma democracia. O MST está sofrendo uma crise dificílima, que é o fato de apoiar um governo, que sempre apoiou, e esse governo não faz a reforma agrária. Eles estão vivendo um drama de saber se dão um brado ou não. Eles partem do seguinte princípio: o Lula é melhor do que o Fernando Henrique, e é mesmo, ele não reprime. Agora, ele não faz a reforma por causa da maldita correlação de forç as. Natalia Viana - Eu queria fazer uma pergunta com relação à nossa última capa, a Marta Suplicy. O senhor assinou aquele documento pelo voto nulo na eleição... Fiz um artigo na Folha de S. Paulo dizendo que ia votar nulo. Natalia Viana - Então, a Marta disse que o governo dela foi o mais de esquerda que já houve no Brasil. É o que ela diz. Precisa ver se foi. Natalia Viana - Foi? Não foi um governo de esquerda. De jeito nenhum. Foi um governo, eu diria, típico dos governos burgueses, um governo com grande apoio de mídia, com obras de efeito, mas não foi um governo que mudou a dinâmica de acumulação da cidade, que tentou fazer de fato uma dinâmica popular... Marina Amaral - E a idéia é vocês apresentarem candidatos de esquerda nas próximas eleições? Nem se pensou nisso, não tem nenhuma organização, aliás, não sou de nenhuma tendência, de nenhuma organização. Nunca fui. Fui apoiado pela Articulação uns tempos, pelas esquerdas por outro tempo. Sou do partido. E não tenho nenhum comando, nem estado-maior, não tenho nada. Estou fazendo uma cruzada cívica, um chamado à consciência. Esse partido foi uma grande vitória popular, é um partido socialista, e deve permanecer como tal e como tal deve se comportar diante do governo. CA99_jun_2005 Alex Pereira Barbosa, 30 anos, é pura elegância nos seus quase 2 metros de altura que nunca o deixaram passar despercebido, mesmo antes de se tornar o rapper MV Bill, o Mensageiro da Verdade. O sucesso como artista veio junto com polêmica e perseguição, principalmente depois do videoclipe Soldado do Morro, feito com imagens reais de crianças que trabalham para o tráfico nas favelas cariocas. O clipe e o CD receberam onze prêmios e Bill foi convidado pela ONU para ocupar o cargo de “embaixador para assuntos que envolvem crianças em situações de guerra”, apesar das acusações de apologia do crime por parte da polícia. Seu livro Cabeça de Porco, escrito em parceria com o seu empresário, Celso Athaíde, e com o ex-subsecretário de Segurança Pública do Rio, Luiz Eduardo Soares, documentando a vida dos meninos do tráfico em todo o Brasil, já está na terceira edição e na lista dos mais vendidos. Trecho 1 Natalia Viana - Pra começar, qual a lembrança mais antiga que você tem da Cidade de Deus? Da comunidade? Pô, eu tenho muitas! Marcelo Salles - Como foi tua infância? Foi o tipo de infância que costumo chamar de padronizada. Pré-moldada. Que é estudar até onde der ou tentar conciliar estudo e trabalho, coisa muito difícil, e tem os fascínios da vida, querer ter o que tem na televisão, querer uma vida boa, com dignidade, um carro bacana. E ao mesmo tempo as referências próximas de mim mostravam que eu nunca ia ser um daquele ali, nunca ia ter aquilo. Então eu fazia parte do quadro de invisibilidade que afeta a maioria dos jovens não só das comunidades, depois fui descobrir que afeta o Brasil inteiro. Tive a oportunidade de encontrar o hip hop no meu caminho, que caiu na minha vida não como uma forma de me revelar como artista, mas de me incluir no mapa, de ser aceito e colocar minha comunidade no mapa, de ter voz. Meu maior mérito nisso tudo foi passar a ter voz, ter ouvidos, mobilizar pessoas até a Cidade de Deus para fazer uma matéria sem ter morte, sem ser tragédia. Como vocês! Isso é uma das coisas que mais me chamaram a atenção dentro do hip hop, mas a minha infância foi uma infância padronizada. Marcelo Salles - E sua família? Minha mãe foi criada para ser dona de casa. Sabe essas mulheres de antigamente que eram criadas pelas mães só para servir aos maridos? Minha mãe foi isso. Eu pequeninho já observava toda a subserviência da minha coroa ao meu pai. Os maus tratos dele com ela, a dependência química do meu pai... Trecho 2 Marina Amaral - Você chegou a ter alguma relação com a criminalidade quando era criança? Vender pequenas quantidades de droga, ou roubar alguma coisa? Não vou entrar em detalhes, mas quem nasce em lugares como este, lugares onde se planta ódio, descaso, desdém, não dá pra depois colher amor. E desses lugares aqui as pessoas dificilmente esperam que saia mocinho. Vendo por esse ângulo, você é um bandido pro resto da vida. O fato de você morar dentro de uma comunidade, emergir dela, militar por ela, isso já faz de você um bandido. Trecho 3 Alessandro Tarso - Você diz em uma das suas letras que o inimigo usa terno e gravata. Como assim? Ah, cara, isso é uma alusão aos políticos. Alessandro Tarso - A todos os políticos? 122 Porra, a gente tem dificuldade de enxergar o partido mais próximo do povo, enxerga o menos distante e não existe uma identificação com políticos. São muito distantes, tudo é feito à base de votos. Canso de falar isso em discurso, em música, em debate, a gente só é procurado em época de eleições, cara. Como o estado de miserabilidade é grande demais, um voto se compra com um prato de comida. Alessa ndro Tarso - Eles levam vocês pra fazer show? Eu não, eu não faço comício. Marina Amaral - Vocês foram conversar com o presidente Lula já eleito? Não, já conversei com ele antes. Teve uma reunião na casa do Gilberto Gil, que convidaram o Caetano Veloso, o Chico Buarque, Djavan, o Júnior, coordenador do afro-reggae, convidaram eu, representando a Cufa, isso antes do Lula ser eleito. O José Serra estava lá também, falamos sobre vários assuntos. Marina Amaral - Mas, quando vocês foram conversar com o Lula, ele já eleito, você acha que foi uma mudança de atitude um presidente querer conversar com o hip hop ou é uma mudança do hip hop ir falar com o poder? Primeiro, que a gente está diante de um governo que tem predisposição ao diálogo com o hip hop. Acho que foi também por conta da própria organização do hip hop. E ter um diálogo aberto com o governo federal acho que mostra um avanço das duas partes. Chamei pessoas de outros Estados, várias não puderam ir por conta do custo da passagem e tal, mas acho que foram 21 representações. E todos tiveram oportunidade de falar coisas que gostariam de falar para um presidente da República, num diálogo aberto. Foi criada a Frente Brasileira de Hip Hop. E tem discussões locais, regionais, nacionais, porque o mais importante que isso possibilitou foi a abertura pra esse diálogo direto com o governo federal. Agora, o que vai surgir desse diálogo é outra história, coisas que a gente vai descobrir com o tempo. Mas eu achava que o hip hop não DEVIA FICAR fadado ao Ministério da Cultura. Porque não é só cultura, é mais que isso, tem a parte social, forte pra caralho, e muitos lugares em que a parte musical nem chegou ainda, só a parte social que atua. Então, ter esse diálogo é muito importante. Trecho 4 Marcelo Salles - Duas coisas que senti das entrevistas e do livro é que você diz que tem dois movimentos fundamentais para que o garoto entre no tráfico: a falta de opção e a sociedade pressionando o tempo todo para que ele consiga os objetos que deseja. Depois dessa pesquisa eu queria saber se é isso mesmo. O que eu vi de perto é a falta de chance. Quando a gente faz nosso trabalho com a Cufa... quando a gente passa o conhecimento cultural, a gente não impõe: você vai ter que fazer isso daqui! Não, cada um faz juízo do que é bom e do que é ruim. Agora, quando a gente nega essa chance às pessoas, a chance de trazer alguém pro lado de cá, estamos ajudando a confirmar que ela tem que morrer e confirmando suas futuras vítimas. O jovem que mora na comunidade não consegue se sentir visível dentro da vida. Só consegue se sentir visível quando está cometendo algum delito, aí já com uma arma na mão. Estou dizendo que, se todas as pessoas tivessem uma oportunidade, nem todas IAM SER DIFERENTES, mas algumas IAM SE MODIFICAR. Não sou defensor deles, mas não consigo colocá-los como monstros. Porque quando eu começava a conversar a máscara de monstro caía, eles voltavam a ser seres humanos. A minha visão é que tem que humanizar. Quem não quiser oportunidades, aí já é outra história. Já ouvi muita gente falar que o moleque se espelha em quem está mais próximo. Mas não é o bandido que está mais próximo, é o desempregado, as empregadas domésticas, os garis, o mecânico, o bêbado. Não que não tenha dignidade nessas profissões, mas não é isso que nego quer ser. Nesse leque de opções surge o tráfico e a criminalidade que dão o mesmo dinheiro que essas profissões ou mais e vêm acompanhados de outra coisa: auto-estima. Ele vai passar a ser respeitado dentro da comunidade dele, as menininhas vão ficar a fim dele. Mesmo sabendo que o preço é alto, ele prefere viver pouco como rei do que muito como ninguém. Trecho 5 Marina Amaral - E o que é a Cufa exatamente? É a Central Única das Favelas. Uma central onde a gente possa fazer não só eventos, mas desenvolver as nossas idéias, mais focada na área social. Todos que compunham a Cufa naquele início eram jovens do hip hop. E, ao abrir para novos parceiros, a gente foi vendo que a gente era muito maior do que os quatro elementos do hip hop. A gente viu que poderia fazer mais coisas do que criar uma biblioteca comunitária, por exemplo, e começou a fazer diálogos, discussões. Hoje, a Cufa cresceu de um jeito que eu mesmo não posso precisar a série de ações que a gente tem. A Nega Gizza, que faz rap também, é uma das coordenadoras, sabe de tudo que está rolando, sabe a quantidade de parceiros que a gente conseguiu – e, quando a gente faz uma parceria em outro Estado, a intenção não é ser dono do projeto do cara. A gente dá ajuda financeira, se tiver, contato, equipamento, noção, toques, se torna parceiro natural pela linguagem, pelo que a gente está falando. A Cufa é isso. Costumo dizer que a gente é um hospício, tá ligado? Que concentra uma porrada de malucos sem camisade-força, mas, no fundo, no fundo, a gente acaba sendo uma ONG, como outras. Trecho 6 Alessandro Tarso - Você acha que uma alternativa política para a solução dessas diferenças seria esse sistema de cotas, que é uma coisa mais ou menos importada de outros países? Tenho amigos que estudam na PUC aqui do Rio e, mesmo sem ter entrado pelo sistema de cotas, são discriminados. Papo de ignorância, isso é coisa importada dos Estados, é racismo gringo, acho que o jovem entrando dessa forma vai ser discriminado pra caralho, me incomoda também chegar nas universidades federais e estaduais e ver carro importado, carro do ano, e ver os únicos lugares destinados pros pretos na cozinha, na 123 faxina ou na segurança. Pode ter as cotas como coisa imediata, mas isso não impede que se dê uma melhorada no sistema de ensino, nas condições de os pais manterem os filhos na escola, isso tem que ser mais fortalecido e, a partir do momento que as coisas forem se equilibrando, a cota pode ser extinta. Tentaram estender as cotas pra elencos de cinema, teatro, porra, acho que em alguns casos só modificando as histórias. Tinha uma novela, aquela da Dona Jura, que mostrava um tipo de subúrbio, mas, se você pegar o clipe do Rappin Hood, por exemplo, Suburbanos, mostra um subúrbio totalmente diferente. Então é desenvolver outra visão, isso já ajudaria a encontrar novas histórias e incluir outros grupos de pessoas, não incluindo só os pretos, mas o nordestino, o índio, o desdentado, todo mundo. Agora, se continuar contando as mesmas histórias da adolescente rebelde que brigou com o pai porque não vai dar mais a mesada, do empresário revoltado, tá ligado, vai continuar mostrando o mesmo modelo. Quando foi levantada a questão de ter 20 por cento de pretos nesses elencos, teve um diretor de novela, não recordo o nome do infeliz, que questionou: “Pô, e se eu tiver que fazer uma novela de anjo?” CA100_jul_2005 A defesa do Estado é a bandeira do governador paranaense Roberto Requião. Da anulação de contratos à contestação de dívidas na Justiça, Requião vem andando na contramão do resto do país, que segue cumprindo ao pé da letra os contratos “predadores”, como ele diz, referindo-se às multinacionais que hoje comandam da distribuição de energia às rodovias estaduais. Batendo de frente com o governo federal, impediu o cultivo e o transporte de transgênicos no Paraná, e embora tenha sido chamado de “dinossauro” pela mídia, apresenta como troféu da batalha a produtividade recorde da soja e o preço 20% superior do produto não-transgênico nas exportações. Peemedebista desde sempre, mas simpatizante do PT, Requião acredita que é a política econômica submissa aos interesses internacionais e não a corrupção a origem dos males do governo, incluindo a relação promíscua com o Congresso. “O projeto econômico do governo está tendo que comprar o Congresso Nacional (...). É o mesmo esquema que comprou na época do Collor e do FHC”. Trecho 1 Paulo César Pereio - A sua origem política é na política estudantil? Política estudantil. Paulo César Pereio - O senhor foi da Ação Popular? Fui, participei perifericamente da AP, mas na fase da APML. Nunca fui da JUC (Juventude Universitária Católica), nunca fui franguinho da JUC. Carlos Azevedo - E na política profissional o senhor começou por onde? Política profissional eu não comecei ainda. Não sou profissional. Sou um amador apetrechado...Eu comecei no MDB. Sou o filiado número 1 do PMDB do Paraná. Na mudança, né? Tenho a ficha número 1. Trecho 2 Marcos Zibordi - E em relação ao Banestado, não se pensa fazer nada? Estamos providenciando uma ação, porque o Itaú comprou o Banestado por 1 bilhão e 600 milhões de reais, e recebeu de créditos tributários 1 bilhão e 800 milhões de reais. Além disso, o Estado ficou devendo 5 bilhões para a União, e eu pago hoje 50 milhões de reais por mês do empréstimo do Banco Central para sanear o Banestado. Trambicaço foi a venda do Banestado. O Reinold Stephanes, por exemplo, que foi colocado no Banestado para saneá-lo em determinado momento, diz que não devia ser vendido. Palmério Dória - Colocado por quem? Pelo Lerner. Acha que não tinha sentido vender o banco. Mas era a moda da privatização. Marcos Zibordi - O senhor falou que o Lerner foi o pior governador da história do país? Não, do Paraná. Não faria isso com o Lerner. E foi um bom prefeito de Curitiba. Trecho 3 José Arbex Jr. - Tenho a impressão de que a crise atual do governo Lula se deve em parte à maneira pela qual o Lula trata as leis no país. E esse caso dos transgênicos mostra isso de forma acintosa. É o governo Lula se curvando a uma transnacional com todo o séqüito do PC do B e toda a caterva junto – isso mostra uma vassalagem incrível diante do poder transnacional e um desprezo por lei. Eu tenho uma opinião um pouco diferente. Acho que a crise do governo Lula começou com o Collor. É a crise do modelo neoliberal imposto ao Brasil. Então, o que o Lula faz hoje? Ele se elegeu com o nosso voto, com a esperança do Brasil em uma mudança. Uma mudança na condição da política econômica, fundamentalmente. Daí, através da Fazenda e do Banco Central, ele adere ao modelo. Quando adere ao modelo, ele não tem mais voto no Congresso Nacional. Que, bem ou mal, é composto por brasileiros que sentem a pressão das suas bases. Eu não concordo que o Congresso abrigue trezentos picaretas. O Congresso tem quadros intelectualmente muito bem dotados e tem essa maioria desideologizada. Desideologizada, mas brasileira também. Que gostaria muito de votar numa política de mudança. Agora, quando a política é a continuidade da política do Collor e do Fernando Henrique, esse pessoal não vota porque não acredita nisso. Então tem que ser comprado para votar. E eles ficam numa encruzilhada, num beco sem saída. Qual é o beco? Se votarmos tudo isso aí, vamos ter o repúdio da base eleitoral, que quer que o Brasil cresça, se desenvolva e gere emprego. Então, só tem uma saída para a nossa sobrevivência: o clientelismo político. Então queremos as emendas e 124 queremos o mensalão. Eles se defendem dessa forma. Agora, se uma bandeira positiva fosse levantada no Congresso Nacional, o Lula não IA PRECISAR desse jogo, o jogo da corrupção. Quem corrompe não é o Lula. O Lula tem uma história de integridade, conheço o Lula há 35, quarenta anos. Palmério Dória - Você o apoiou nas quatro campanhas? Nas quatro campanhas e ele não é ladrão. Não posso imaginar o Lula com 1 real de recurso público. Ele não teria nem como gastar isso saindo do governo, como usar isso, ele é um sujeito de uma integridade indiscutível. Quem é que sustenta a corrupção do Congresso? É a pergunta latina, né? Qui prodest? A quem aproveita? Então, quem aproveita é que paga. Esse dinheiro está saindo dos banqueiros, das multinacionais, do agronegócio e dos exportadores. E o pessoal cobra para votar porque sustenta o mandato com clientelismo na sua base. Porque não tem bandeira. Ou você faz uma política de atitude, quer dizer, estou votando pelo Brasil, então tenho discurso, ou você tem que comprar a sua base. Com favores, ambulâncias, salários, funcionários, o problema básico é esse. Agora, de repente, o Delúbio abre a sua contabilidade fiscal e bancária. Isso é uma piada de mau gosto. Nenhum ladrão do Brasil hoje teria conta em banco. Não estou dizendo que ele seja, mas é evidente que isso é de um cinismo absoluto. Trecho 4 Palmério Dória - Em escala de roubo, onde se roubou mais, no governo Fernando Henrique ou agora no governo Lula? A gente não precisa nem de um roubômetro para avaliar isso. O Fernando Henrique com a privataria roubou 10.000 vezes mais do que qualquer possibilidade de desvio do governo Lula. Sérgio de Souza - E qual é o papel do Roberto Jefferson? É um deputado do PTB. Trecho 5 Carlos Azevedo - Mas a reforma política é necessária, não? Não, não é. Pra quê? Você vai fazer o que com ela? Você vai mudar o sistema de comunicação do Brasil? Você vai criar o financiamento público de campanha e vai deixar o SBT, a Globo e a Record, com todo o poder de comunicação que têm, podendo destruir e construir imagens? Reforçar e detonar políticas? Isso é uma ilusão! Você vai criar um sistema socialista da República dos Guaranis, e vai conviver com essa superestrutura capitalista do país? Prefiro esse troço aberto e de repente poder procurar uns empresários nacionalistas e pedir financiamento para fazer uma crítica ao entreguismo no Brasil. Sérgio de Souza - E tem empresários nacionalistas? Eu acho que tem. Foram enganados muito tempo. Trecho 6 João de Barros - Como o senhor vê a questão da globalização, estamos diante de um novo Brasil colonial? Aí vamos para o César Benjamim – o Brasil foi o primeiro país colonizado do mundo. Com a cana-de-açúcar. Vieram pra cá, plantaram a cana que era aceita e conhecida no mundo inteiro. Mas era uma empresa de sucesso, holandeses, ingleses e portugueses, mão-de-obra escrava, indígena e os saquaremas, que eram os “portugueses nascidos no Brasil”. Era uma empresa para os outros. Quando a independência foi proclamada, a Inglaterra aceitou a independência do Brasil, mas o Brasil aceitou assumir a dívida de Portugal com a Inglaterra. Foi a primeira dívida nossa. Daí veio a história dos fechamentos dos portos e a esquadra inglesa resolveu esse problema aqui na nossa frente e assim foi, abolição da escravatura, Ventre Livre, essas coisas todas. Nós pagamos a conta de Portugal e éramos o Brasil, empresa para os outros. Brasil, empresa agrícola para a Monsanto. Brasil, empresa agrícola para cinco trades internacionais... E é isso que tinha que reverter. Trecho 7 Palmério Dória - E a candidatura própria do PMDB? Ah, não sei. Eu aposto num programa do PMDB. Candidatura é uma coisa na frente, se tiver problema. Palmério Dória - Mas dá para pensar assim sem nomes? Dá. Para mim, não dá para pensar com nomes. O Garotinho se ensaia, mas, ao mesmo tempo que ele se ensaia, a Rosinha tentou privatizar a Cedae (Companhia Estadual de Águas e Esgotos). Então, você veja para quem ele está tirando o chapéu. Palmério Dória - E se lhe apresentarem isso? O senhor fica docemente constrangido ou... Em primeiro lugar minha consciência, em segundo o país e em terceiro o partido. Minha avaliação é por aí. Só falta agora eu dizer para vocês que minha fidelidade é o PT. Eu já ando desconfiado até do papa... Sérgio de Souza - Esse não dá para confiar mesmo. Eu disse para o arcebispo de Curitiba, ele ficou espantado: “Vou me licenciar seis meses de nossa Igreja para ver como esse papa se sai”. CA106_jan_2006 Com tantos músicos e instrumentos em casa, ao lado de seus pais Elis Regina e Ronaldo Bôscoli, João Marcello Bôscoli começou cedo, aos 11 anos gravou seu primeiro trabalho tocando bateria em um disco de João Bosco. Foi produtor e arranjador de figuras como Milton Nascimento e Paulinho da Viola. Mas sentia que faltava algo. 125 Em 1998, com seus amigos Cláudio e André Szajman montou a Trama para gravar “música de verdade”: “Bandas e cantoras que não gravam o próprio instrumento ou precisam de um afinador digital, eu não gravo”. Natalia Viana - A gente sempre começa as entrevistas com a vida do entrevistado. Onde você nasceu? Nasci no Rio de Janeiro, 17 de junho de 1970, durante o jogo Brasil x Uruguai. O Brasil estava perdendo de 1 a 0 e meu pai achou que íamos levar uma surra, o jogo virou, acabou em 3 a 1 e tudo foi tranqüilo. Morei no Rio de Janeiro nos primeiros anos de vida e estava com pouco mais de 1 ano quando minha mãe se separou do meu pai e vim morar em São Paulo. Tatiana dos Santos - Com a sua mãe? A vida inteira, e quando ela se casou com o César (Camargo Mariano), por conta da mudança perdi um pouco o contato com o meu pai, mas as temporadas de shows faziam com que eu passasse bastante tempo no Rio, passei os anos de 78 e 80 inteiros no Rio, fiquei indo e voltando, já morei em mais de 35 casas, o que é ótimo, odeio rotina. Andrea Dip - Entre Rio e São Paulo? Sempre. Esse negócio de carioca e paulista é surreal. Nasci na avenida Niemeyer, depois fui para a Joatinga, depois mudei para São Paulo, rua Atlântica, na rua Califórnia, no Brooklin, na Cantareira, nos Jardins, depois no Rio de Janeiro de novo, na Joatinga em outro lugar, na Francisco Otaviano... É gostoso. Natalia Viana - Não dá para não ser músico sendo filho de tantos músicos? Acho que era para ter um pouco de bode de música, mas é o que eu gosto. Natalia Viana - Como era na sua casa? Acho que, como na maioria dos casais dos anos 70, a música era muito disponível, mas as pessoas não ficavam impondo. Os instrumentos ficavam à disposição, aconteciam os ensaios, tinha os discos e eu tinha liberdade de mexer nos aparelhos todos, não havia um: “Olha, você vai ter aula de música e tal”. Era uma coisa meio anos 70, deixavam rolar. Tatiana dos Santos - Mas você foi fazer aula de música? É natural que em filhos de músicos, com tantos instrumentos em casa, algum se manifeste. Eu tinha uns 7, 8 anos e sempre tocava bateria nos ensaios. O instrumento estava lá, foi o que me adaptei melhor e tal, um dia pedi uma bateria nova e: “Não, primeiro tem de tirar som da bateria velha, pra depois da bateria nova”. Aquelas coisas dos anos 70, e pedi para ter aula de música particular. Acho interessante lidar com música, independentemente de na vida adulta ir trabalhar com isso ou não. Na minha casa também pensavam assim. Tive aula particular até a minha adolescência. Natalia Viana - Quem freqüentava a sua casa? O pessoal do ramo, todo mundo, os conhecidos da época, o Gil, o Ivan Lins, esses caras eram jovenzinhos, o Ivan era estudante de química ainda. O Fagner morou na minha casa durante um tempo e também os que não eram conhecidos, o pessoal do Quinteto Violado. Percebia que, quanto maior ficava o artista, mais longe ele ficava da minha casa, minha mãe gostava mesmo da descoberta. Se existe uma coisa que não gosto, acho que é por conta da minha formação, é da entourage. Chega o artista com seis caras, advogado, amigo, assessor, puxa-saco, assessor de imprensa... não tem nada a ver com música, né? Detesto o star system. Tenho um desprezo enorme por isso. Natalia Viana - Sua mãe nunca chegou a ser desse esquema? Bem maior do que isso. A Elis foi a primeira artista brasileira a fazer sucesso na televisão, na época em que dava 90 por cento de audiência. Era bem maior que a Xuxa na época. Natalia Viana - Mas ela tinha a coisa de artista, toda essa coisa... Acho que surgia e rapidamente era dissolvida porque ela mudava muito de tudo: de gravadora muitas vezes, de casa, não tinha turma e é outra coisa que me identifico, não tenho turma nenhuma, trafego em várias, mas não sou de nenhuma. Minha turma sou eu. Luís Otávio Lopes - Era até natural uma renovação de repertório... Acho que sim. Olha que engraçado, morei onze anos com a minha mãe e durante seis anos não tinha telefone em casa, imagina isso hoje. Se quisesse falar com a Elis, TINHA DE IR até a Cantareira e ela TINHA DE ESTAR lá e a fim de atender. Então, só ia quando queria muito falar com ela. Acho que era proposital, ela sabia a força que tinha, sabia deslocar o eixo dela e as coisas aconteciam. Acho que muito da força de São Paulo veio quando ela veio para cá. Natalia Viana - E como era a Elis como mãe? Presente, mãe anos 70, fazia questão de levar à escola, fazer comida, de fazer as coisas pessoalmente. No auge da temporada no Teatro Bandeirantes, em São Paulo, que ficou um ano e meio em cartaz, por seis meses não teve empregada em casa, ela fazia tudo mesmo, faxina, lavava roupa... É muito distante a imagem que muitas pessoas têm da Elis e do que ela era. Por isso, fico espantado com o comportamento de alguns artistas hoje em dia. Parece que tem alguma coisa maior do que a música, está sempre precisando falar com uma pessoa que não é sua amiga, o chamado networking, né? Andrea Dip - Dá pra evitar isso? Dá. Às vezes, as pessoas demoram um tempo para entender por que é assim, todos os indicadores de sucesso disponíveis são indicadores que não me interessam. As principais revistas, os principais programas... Já recusei em um ano e meio vários programas e apresentações em programas de televisão porque não eram exatamente o que queria, e falava: “Tem gente melhor pra fazer isso aí”. Se eu fosse uma dessas pessoas que a gente vê por aí hoje, em vez de morar em São Paulo, MORARIA no Rio de Janeiro. A Elis Regina é uma das pessoas, tenho sete pessoas tão famosas quanto ela na minha família. Então, o ato natural seria morar no Rio de Janeiro, 126 namorar uma atriz, trocar de namorada, enfim... Fazer uma festa com algum novo empresário carioca que está surgindo, um empresário paulista. Não me acho melhor do que elas, é só um estilo diferente. Cazu - Mas você se apresenta para a imprensa? Quando é de música, sim. Na televisão a cabo fiz o Música Brasileira durante duas temporadas, gravando bandas. Então, você chega lá, marca e grava oito bandas por dia em 48 canais e faz um arquivo. Como o que o Fernando Faro faz no Ensaio, da TV Cultura. Não tenho interesse, não tenho aptidão para ser apresentador de televisão. Salvo raras exceções, nem considero isso como uma profissão pra mim. Tatiana dos Santos - Você apresentou o Grammy... Como sou membro votante, me ligaram: “João, o SBT quer apresentar o Grammy e a gente colocou seu nome para ser comentarista. Você poderia fazer?” “Tudo bem, o Grammy eu manjo, do Grammy latino conheço pouca coisa, conheço as raízes, agora essa música diluída que virou a música latina, Shakira’s e tal, orgulhosamente não conheço.” “Pô, mas é importante.” Fui lá e gostei. O fato de ser em São Paulo me ajuda, sou caipira pra caramba, se tiver de viajar, me dá uma preguiça danada. Alguns amigos que trabalham no meio me criticam, dizem que sou omisso, que deveria fazer algum tipo de concessão, que poderia apresentar um programa de música e ter alguma outra coisinha... Mas a coisinha sempre fica maior do que a música e não tenho nenhum interesse na vida que não seja música. Tatiana dos Santos - Você tocou com o João Bosco, né? Tinha 11 anos, foi no ano da morte da minha mãe, em 1982. Já freqüentava os estúdios desde os 8, 9 anos, ia com a minha mãe e depois ia por conta própria. Por exemplo, no Rio de Janeiro, os estúdios da Odeon, eles eram – eram, porque foram destruídos, algum intelectual fechou – na rua Mena Barreto, e eu ficava no Colégio Andrews, ao lado. Ia andando para ver a gravação do disco da Elis. Tinha criado o hábito de ir ao estúdio, vi a gravação do disco do Djavan, o Alumbramento, da música O Amor É um Grande Laço, um Passo pra uma Armadilha... Vi algumas gravações dos discos do Milton, gravações do 14 BIS, dos Fevers. Andréa Dip - De quem você era mais fã? Nessa época, eu só gostava da Elis porque era minha mãe e alguma coisa que parece música americana. Gostava da banda Black Rio, mas sabia que era parecido com uma banda americana. Gostava só de música americana. Tatiana dos Santos - Mas você disse que saía do colégio e ia para o estúdio, o que te empolgava lá? É assim, eu ouvia música americana e vivia a MPB, é diferente. Conheci o Djavan mostrando música pra minha mãe, eram amigos. Então, era uma outra caixinha pra mim, entendeu? Eu olhava os artistas, “ah, legal...”. Tatiana dos Santos - Conta o comecinho, como surgiu a idéia da gravadora? Trabalhei na DPZ Propaganda em 1995, fazia jingle como uma maneira de ficar dentro do estúdio e também pra ganhar um troquinho, quando contas acumulam debaixo da porta, aquela circular do prédio com os nomes dos devedores, é desagradável, faz qualquer um se mover. Comecei no mesmo ano a fazer uma coluna de música na revista Capricho, convidado pela Mônica Figueiredo. Naquele ano assinei contrato com a Sony para gravar o meu primeiro álbum, também era colaborador da ShowBizz eventualmente, escrevia de vez em quando para alguns jornais e tinha um programa de televisão na TV Gazeta, o Companhia da Música. Lá conheci o Skank, Nação Zumbi, Marcelo D2. Ganhava muito bem na DPZ, mas realmente faltava alguma coisa. Pedi demissão e fiquei durante um ano meio imaginando o que iria fazer. Juntei todas as minhas receitas e fui para os Estados Unidos. Nessa época, a minha namorada e parte da minha família moravam lá, o César Mariano com a minha irmã Maria Rita, moravam em Nova Jersey. Então, tinha essa facilidade de ir para lá e, com pouco dinheiro, conseguia circular. Nova York é um lugar que recomendo para todo mundo, independentemente do imperialismo americano, aquela ilha não tem nada a ver com o resto. Dá uma vontade enorme de fazer as coisas, não sei explicar. Chego lá, piso na rua e me sinto especial. Outro dia, andando na rua, vi o Puffy Daddy passando e pensei: “Se o cara fez, porque a gente não pode fazer? Você vê as pessoas empreendendo e acredita na possibilidade de que pode dar certo, vai na gravadora da molecada que tem só uma mesa, “porra, não é tão difícil”, mas pensava no máximo em ser produtor, de ter um estúdio que o mercado internacional pudesse desfrutar... Meus sonhos eram bem menores, confesso. Fui na casa do Nelsinho (Motta), ele me deu um livro do Berry Gordy, que montou a Motown, To Be Loved, foi uma das coisas que me fizeram acordar, fui folheando e me apaixonando. Voltei para o Brasil em 97 e fui procurar o Marcelo Castelo Branco, da Universal, na época e falei: “Vamos abrir a Motown no Brasil. Temos 70 milhões de negros aqui e o rap, o hip-hop não chegaram. Tem um puta catálogo, pode rolar alguma coisa”. Ele falou: “Pô, pode ser, vamos ver”. Me ofereceu um primeiro projeto com uma artista brasileira com versões da Motown. Falei: “Mas não é isso”. Conversei comigo mesmo: “João, você é um merda, saiu de todas as coisas que tinha, tá duro, aí aparece um negócio de fazer a Motown e você não quer”. Mas eu tinha o desejo de fazer alguma coisa, uma contribuição. Na minha família tenho a Chiquinha Gonzaga, que praticamente inaugurou a música brasileira. Natalia Viana - Na época, então, não foi uma visão crítica contra o esquema que estava aí? Eu queria que “abrir uma empresa de música” não fosse um ato político. Nos anos 70, quantas vezes a gente ouvia dizer que o Antônio Adolfo foi fazer o disco em casa, uma confusão, aí, o Boca Livre fez um disco independente, começou a fazer sucesso, puta problema, não conseguia entregar. No Brasil, já tinha a Velas, a Eldorado, Baratos Afins, mas eu tinha o desejo de organizar isso um pouquinho mais e de passar a ter o peso que tem hoje. Hoje, 22 por cento do mercado brasileiro é independente, mesma coisa do mercado americano. Só que a diferença é que no mercado americano e europeu a indústria independente existe há quarenta, cinqüenta anos. O rock, o eletrônico, o hip-hop, o rhythm ’ blues, parte do jazz nasceram independentes, até a disco music, que todo mundo acha que veio de alguma major, não foi, o cara começou na casa dele. Sempre acreditei que, se 127 tivesse mais gravadoras independentes, a liberdade editorial de cada presidente de gravadora ou dono de estúdio ia deixar a coisa mais multifacetada. Andrea Dip - Você teve de quebrar um ciclo... Acho que o processo já estava caindo de maduro. As majors do mundo inteiro estavam vindo de uma época de muitos milhões. Michael Jackson, contrato de 100 milhões de dólares, Madonna, 150, Prince, 150, Janet Jackson, 200 milhões. Quando Janet Jackson passa a custar 200 milhões de dólares, alguma coisa está errada. Os presidentes de gravadoras ficaram malucos, mandando brasa e comprando com o dinheiro dos outros. Esse ciclo foi caindo. O Gangsta Rap nos anos 90 foi uma porrada das independentes. A gente distribui a Death Row, no Brasil, que é a gravadora do Snoop Doggy Dogg e do 2Pac, venderam 60 milhões de discos em cinco anos com uma música. Tudo isso foi uma fissura na indústria, ou seja, os movimentos musicais sempre vieram das independentes e foram abraçados pelos grandes. Na década de 90, foi incrível, pegando o exemplo do Gangsta Rap, era tão porco o discurso, tão chauvinista, que as majors não tinham muito como abraçar. Com a Internet isso caiu. Nunca entendi por que as majors nunca abraçaram a Internet... Camilo Leal - Elas permanecem nessa resistência... Permanecem, né? Pra gente é bom, porque acabei de vir de um encontro com o presidente da Telefônica em que só me beneficio disso. Natalia Viana - E vocês entram onde, ou vocês ainda não sabem direito qual que é? Não, no negócio de música,o terreno é muito instável. Hoje, libero minhas músicas para o celular, os caras não liberam. No resumo das coisas: as telecom company podem contar com as gravadoras ou não podem? Não, não podem. Por quê? Porque as majors dizem não, estamos falando de cinqüenta anos, dos Beatles pra cá, contra as independentes que surgiram agora. Então, quando o cara da Telecom olha o macro, somos prejudicados pela postura das gravadoras. Se chegar pra tia do café ali e falar “gravadora”: “Deus me livre! Gravadora é uma porcaria”. Todo mundo odeia gravadora, eu também não gosto. queria arrumar um outro nome, mas ainda não surgiu. Tatiana dos Santos - Como a Trama foi possível? Quando encontrei meus dois amigos que hoje são meus sócios na Trama. Fui conversar com algumas outras pessoas e sabia desde o início que precisaria ter algum poder sustentável, para ser desligado das majors. Você é independente se não tem nenhuma ligação com uma major. “A Trama não é independente porque tem dinheiro”. Não, não é, a Trama tem dinheiro, por isso ela é independente. Se você tem o próprio dinheiro, se tudo é seu, você é independente. Se você é distribuído por uma major, não é independente. Tem um monte de gravadora que fala: “Ah, a gente é independente”. Se você é distribuído por major, não é. Academicamente falando. Natalia Viana – Então, academicamente, explica pra gente, só para o leitor entender, qual é o processo? Distribuição... A produção artística se faz dentro do estúdio, grava, e transforma num master, depois cuida da parte gráfica, de todo o design sonoro e visual, e termina. Pronto, está consolidado e tem um álbum: pode ser um vinil, pode ser um disquinho. Neste momento tem de mandar para a fábrica. Aí, já entra um ponto: antigamente, as fábricas eram das gravadoras, hoje elas são empresas independentes. Daí, tem a segunda etapa, que é a distribuição. Alguém vai pegar esse disco e vai colocar no lugar que você preestabeleceu. A distribuição não precisa ser necessariamente especializada em música. Aí, tem a equipe de vendas também. Então, o que acontece, se qualquer etapa dessas for ligada a uma major, você não é independente. Então é isso, a gente é uma gravadora independente por causa disso. Tatiana dos Santos - Qual é a ligação com o grande grupo VR? Não, não tem uma ligação com um grupo. O meu sócio é dono de um grupo grande, é diferente. Não tem grupo por trás. Tenho dois sócios: André e Cláudio Szajman, os dois são donos 100 por cento de um grupo chamado Szajman. Esse grupo tem embaixo a VR, uma empresa chamada Smartsnet, e tem a Trama. Eles não têm sócio na VR, sou sócio deles apenas na Trama. As pessoas não entendem, é um grupo de capital fechado que tem dois jovens, um cara de 34 e outro de 35 anos, faturam 5 bi por ano por mérito próprio. Eles herdaram a empresa que faturava 500 milhões, em dez anos passou a faturar quase 5 bi. Não precisamos perguntar nada pra ninguém, mas conversamos muito com o doutor Abram Szajman, que é o pai deles, pra ouvir os conselhos, bater papo, só isso. Camilo Leal - Mas é outra área, né... Mais ou menos, né? É baseada também no relacionamento humano. Porque a VR é baseada no PAT - Plano de Apoio ao Trabalhador e o pai do André e do Cláudio preside a Federação do Comércio, o Sesc e o Senac. Se tem alguma coisa que eu gostaria que não criticassem na minha frente é o Sesc e o Senac, porque tenho mais o que fazer. Eles têm esse background, têm o trabalho do Salgado e do Danilo Miranda, que faz um puta trabalho, quem conseguir fazer qualquer coisa dessas no Brasil vai bem, são empresários que têm uma formação humana, artística muito grande. O Cláudio é vice-presidente do Einstein e tal. Natalia Viana - Daí você resolveu o problema do dinheiro... Nós somos amigos desde 1981. A questão financeira é importante, mas não o mais importante. Se eu tivesse a grana, ESCOLHERIA as mesmas pessoas para trabalhar. O André saiu da VR e já está na Trama há um tempão. Ele trouxe vários artistas e entende de gestão empresarial. Natalia Viana - Começaram com que artista? O primeiro ou foi o Otto ou foi o Zoli. Quaria o Zoli porque era um cara que admirava desde moleque, conheci ouvindo música no rádio: "Pô, esse cara dá pra ouvir, legal e tal...". Fiquei assustado quando apareceu o rock nacional nas primeiras semanas. Quando ouvi aquilo, falei: "Caramba!" Daí, um dia, numa festa vi uma garota 128 que eu gostava cantando: "Você não soube me amar...". Desse dia em diante, falei: esse negócio de rock nacional é do caralho, passei a gostar, nada como uma garota, né? Em 1979, o Michael Jackson lançou um álbum e na minha casa o papo foi: "João, trouxe uns discos aqui. O Quincy Jones produziu esse disco, desse menino, o Michael Jackson, aquele lá!" E eu adorava Quincy Jones, o álbum era o Off The Wall eu era moleque e me perguntava: "Pra onde vai a música agora, pop, metais, cordas, aquele som da disco, o punk, o black? O que vão fazer? Aí, veio o eletrônico que a vanguarda nova-iorquina fez com aquela cara de Los Angeles. Daí, olhei a ficha técnica: essa bateria eletrônica eu conheço... Aí, fui ouvir o rock nacional, fodeu... ouvi Blitz, pirei, ouvi Inútil, pirei, daí me rendi. Natalia Viana - Você foi atrás dele então? Fui. O Zoli tinha participado do meu disco com duas músicas inéditas, uma chamada Flor do Futuro e outra Seja Melhor. Eu sabia o quanto isso era importante para ele, que não gravava já havia algum tempo, e estava contando com aquelas músicas e foi muito generoso. Gostava mesmo do som dele, e sempre achei que ele era mal cuidado nas gravadoras. Chegava lá com um som certo, daí botavam um produtor errado, ou um produtor certo pra idéia errada, a capa feita às pressas, ele sempre com cara de assustado... Diogo Ruic - João, vi uma entrevista em que você disse que não convidava os artistas... Não, nunca convidei ninguém. O Zoli foi uma coisa orgânica, a gente vinha do meu álbum, um trabalho que ficamos muito contentes, fizemos um clipe depois, e tal. E as pessoas que conviviam com a gente estavam vendo a movimentação. Muitas pessoas me ajudaram. Aliás, realmente a minha participação é proporcional. Você vê o número de pessoas que tem na história da Trama, o meu peso é proporcional, todo mundo acaba tendo um peso em determinada hora e o Zoli nasceu junto com a parada. Levei os equipamentos pra casa, ele já estava lá. Quando rolou alguma coisa entre nós, já foi: "E aí, e agora, o que vai rolar?" O Otto veio através do Miranda, que foi fundamental. Conheci o Miranda no Rio de Janeiro, ele gostava de coisas diferentes das que eu ouvia. Fomos pra casa dele e ouvi o Otto pela primeira vez: "Vamos contratar ou não vamos?" "Vamos, todo mundo quer, mas e você?" Falei: "Cara, é um som que não faria, então vamos contratar justamente por isso". Andrea Dip - Quais são os critérios da Trama pra escolher... No começo, a gente tava construindo um catálogo e tivemos de gravar uma grande quantidade de discos num espaço curto de tempo. Em resumo, você lança um artista novo, ele chega nas lojas com um preço muito maior que as coletâneas de sucesso de um artista consagrado, tem de encarar os maiores sucessos do Chico Buarque a 9,90 reais. No final é pessoal. O Miranda produziu o Otto porque ele gostava, contratei o Zoli porque gostava... Depois começou a ir por núcleos, chegou o Bruno E., ele falou: "Meu, tem o lance do drum’n’bass rolando, esse aqui é o Patife", mostrou o som, "ah legal, interessante, está mexendo com alguma coisa brasileira, ótimo", a mesma coisa com o do hip-hop e também do que chamaram de "nova MPB". Cheguei a ter dezenove artistas sob contrato. Tatiana dos Santos - E como você vê a mídia em relação à Trama? Nós chegamos a ter 65 artistas em vários núcleos, o núcleo de eletrônica, o drum’n’bass, e dentro desses núcleos tem o de "nova MPB", como o mercado definiu, em que cinco artistas, o Jairzinho, a Luciana Melo, o Max de Castro, o Simoninha e, na época, o meu irmão Pedro Camargo Mariano, são filhos de artistas. Como a nossa mídia é muito "inteligente", passaram a dar uma atenção tão grande a isso, que passavam a idéia de "a gravadora de filhos de artistas". Natalia Viana - Qual a diferença pra um artista que está se lançando agora de gravar na Trama e numa grande? Acho que em gravadora independente o assunto de música acaba pautando as coisas um pouco mais. Quando você vai numa major, a conversa de música praticamente não existe, eles querem saber o seguinte: “Qual é sua onda? Esse estilo aqui? Legal, você tem três músicas pra eu trabalhar?” É um papo muito direto, business. Acho bom que seja assim. Natalia Viana - Você acha que o artista tem mais liberdade na Trama? Não poderia dizer isso porque as majors mudaram nestes cinco, seis anos. Não vou ficar aqui o resto da vida repetindo o mesmo discurso contra. Eles não têm nenhum tipo de ideal. Aquela piada, né: esses aqui são os meus ideais, se você não gostar, eu tenho outros, você que escolhe. Eles perceberam que era uma coisa importante para os artistas, e foram dando, desde que não atrapalhe muito. Por exemplo, tentar obrigar o Los Hermanos a fazer alguma coisa que eles não querem, não adianta e aí começaram a entender que artistas que querem fazer sucesso têm de contratar pensando nisso, contrata o cara que dança legal, tem paciência de dar entrevista, está sempre sorrindo, vai dublar legal. Tudo bem pensado, e contratar um artista que já existe, é um outro trampo. Hoje, é possível gravar numa major com liberdade. Natalia Viana - E com relação ao contrato, ao tanto que o artista recebe? Honestamente, quando você é o artista mais forte, consegue as porcentagens melhores. A Trama tem uma política de sempre trabalhar com um piso mínimo de 10 por cento para o artista. Se o cara compõe as músicas dele, daí já dá mais 9 por cento, daí o cara produz e tal. Então, ele tem uma parte grande do negócio. Natalia Viana - Nas majors quanto é? Não sei como está hoje, antigamente sei que tiveram artistas conhecidos que explodiram e, quando foram renovar com a gravadora, o cara falou assim: "Legal, eu quero renovar, eu renovo, mas lembra que os meus três primeiros discos eram 4 por cento? Então, eu quero 10 por cento retroativos". Hoje existem muitas opções e, como a Internet deixou todo mundo com a bunda de fora, pega mal pra uma major não pagar o justo para um artista e acho que muito importante é o clima de trabalho. Por exemplo, a gravadora Sony-BMG é gigante, tem um cara, o Henri Laurance, que cuida melhor do que ninguém do Tom Zé na França, que é da BMG. Uma corporação não é uma garantia e também não é um mal necessário, mas, se o artista quer fazer uma música 129 totalmente alternativa e vai atrás de uma major, a chance de as coisas darem errado são muito grandes, a não ser que seja um Rick Martin. Luís Otávio Lopes - Como você vê o mercado independente no Brasil? Passou a existir... Andrea Dip - Você achava que a Trama ia crescer tanto como cresceu? Não sei se é tanto assim. Meu sócio tem uma empresa que fatura 5 bi. A Trama está longe disso, é diferente, né. Tatiana dos Santos - Como a Gal Costa chegou até vocês? A Gal foi, de novo, aquele nosso jeitinho de trabalhar. O César Mariano encontrou com a Gal em uma apresentação de bossa nova no Carnegie Hall e convidou: “Ah, vamos fazer um disco, vamos fazer alguma coisa”. Ela falou: “Vamos, mas eu só faço... tem que ser uma coisa com compositores novos”. Agarramos a chance de ter a Gal Costa, que é uma mulher que surgiu no cenário brasileiro junto com o tropicalismo – que é um dos maiores movimentos culturais do século 20 no Brasil, gostando ou não gostando –, poder tê-la em 2005, gravando álbum com músicas inéditas, de compositores desconhecidos, me pareceu uma idéia interessante. Eu não tinha o interesse de pegar a Gal e gravar as músicas do Gil, do Caetano, porque isso já foi feito muitas vezes. Camilo Leal - Tem um espaço que a Trama está ocupando na referência do público jovem... É vocação natural, um exercício de identidade. A gente começou e a grande mídia não dava muita atenção pra gente. Focamos em Internet, show e universitário. Achava um absurdo não ter circuito universitário no Brasil. Resolvemos fazer o Trama Universitário, que surgiu da necessidade. Sei que no Brasil tudo é diferente, mas eu acredito na capacidade de indignação que a gente tem. Tatiana dos Santos - Vocês têm um número fixo de lançamentos por mês? A gente tem mais de mil títulos lançados, álbuns brasileiros gravamos mais de duzentos. Se dividir por sete anos, acho que dá mais de um álbum a cada três semanas. Hoje, de artistas sob contrato, temos por volta de catorze – e diminuindo. Meu sonho é ter dez. É que, quando você vai no primeiro lojista e ele pergunta “escuta, quantos títulos você tem aí no seu catálogo?”, “Ah, eu tenho nove.” “Nove? Você precisa ter cinqüenta pelo menos para vir falar com a gente.” E aí a gente entrou nesse período numa fase de expansão e passou a ter um casting um pouco maior. Fora isso, o ideal é ter um número pequeno, que você consiga conversar com todo mundo. Senão acaba sendo muito impessoal. Tatiana dos Santos - Você se interessa em fazer alguma coisa em rádio? Me interesso. Tenho um programa de rádio de música brasileira em sete emissoras pelo Brasil, em Brasília, Belo Horizonte... Gravo aqui e mando uma hora só de música brasileira. Começou na Rádio JB FM, do Rio de Janeiro, e toco de tudo, de Cordel do Fogo Encantado até o Tom Zé, mas guitarra distorcida já seguro um pouco a mão. O programa começou lá dentro no segmento chamado adulto. Tatiana dos Santos - O que é rádio adulta? Não sei, dizem... É que as pessoas herdam as terminologias do mercado americano, mas aqui não tem o mercado, então fica só o nome no vazio, uma placa sem nada ao redor. Mercado adulto lá é outra coisa, né? Mas aí programa foi expandindo e hoje tem em seis rádios. A gente deve entrar com esse programa agora em São Paulo na Rádio Alfa. Agora, em televisão, vamos apresentar no ano que vem o Trama Virtual, só com bandas novas, mas aí com alguns quadros também, coloca no estúdio e documenta. Semana passada, estive na Hebe Camargo gravando um programa, por incrível que pareça, sobre música independente. A Hebe é uma pessoa que tem visão, pode ser um pouco conservadora, mas ela está faz tempo no negócio e se ligou que precisa ter uma renovação. Quando as bandas de rock têm quarenta e poucos anos e seus caras de MPB têm sessenta e poucos, maravilha, viva a longevidade, mas também há de haver uma renovaçãozinha... Cazu - Você acha que está acontecendo essa renovação? Acho que sim, depois da década de 90, não ficou mais na mão de seis ou oito pessoas. Antes, se quisesse gravar um disco, como faria? Para começar, tem de ir num estúdio e custa caro, 250 reais a hora mais ou menos, aí faz um disquinho, uma demo custa 5.000 dólares, depois vai precisar fabricar o disco. Fabricar era uma coisa complicada porque as principais fábricas eram exatamente as majors que dominavam o mercado e fazer um vinil era a treta do arco-da-velha, para distribuir, precisa ter alguém lá na major gostando do som. Não tinha alternativa, ficava preso a essas gravadoras. Hoje em dia, produzir um disco ficou muito barato, dá pra fazer em casa. Por outro lado, com a Internet, tem muita gente, mas, se escolher o site certo, pode ter sorte. É como uma banda que tem de achar um lugar para tocar. Deixou de ser um curral eleitoral. Cazu - Com isso, você deve receber um número grande de demos... Diminuiu bastante. Quando começamos a Trama, era assustador. Recebia em média oitenta a noventa telefonemas por dia, pagava uma pessoa só para atender os outros. A gente recebia as demos, catalogava e era impossível ouvir todas, mas, se em algum momento falassem “pô, mas você não ouviu a banda X?”, “Não, não ouvi, espera, vê se tem aí”. Com a abertura da Trama Virtual, isso caiu muito, foi para trinta, quarenta por dia, porque eles já mandam direto pelo site. Natalia Vianna - Vocês enfrentaram problema com o jabá. queria saber se vocês pagam jabá e como é que foi encarar essa coisa de tocar nas rádios? No começo, não quis ter departamento de rádio, eu não queria. Achava que não ia tocar, que não ia fazer diferença nenhuma. Uns meses depois, a gente contratou. No começo da Trama, nem que quisesse ter pago jabá teria conseguido. Chegava com os álbuns e os caras falavam “esquece”, nem com meio milhão. Tem um monte de dono de rádio que hoje se relaciona bem com a Trama – vou manter os nomes deles guardados para não ficarem chateados. Eles foram até a Trama, sentaram com os meus sócios e falaram: “Escuta, vocês não podem investir em música de qualidade, vocês têm merda na cabeça? O povo gosta de lixo, tem de investir em 130 lixo, senão vocês não vão ganhar dinheiro nunca”. Isso é sério. Marcaram almoço mais de uma vez para falar isso. Isso é a primeira coisa: impossível. O único momento em que a gente teve chance de fazer alguma coisa foi quando eles possibilitaram um programa de rádio. Fizemos um programa de música black, o DJ Patife fazia música eletrônica, um tempo depois, o Rappin’Hood fez de hip hop. Tudo isso começou com a Trama, começamos a financiar esses programas. Os programas de rádio começaram a ser nossa válvula de escape. Por isso, a necessidade de Internet. Aprendi uma coisa: a palavra jabá, se quiser usar, é bom ter bons advogados porque não procede. O jabá é quando pega um dinheiro de caixa dois, dá para o DJ e o dono da rádio não sabe de nada. Funciona assim. Luís Otávio Lopes - E a payola? Num determinado momento, as rádios passaram a emitir nota por falta de espaço publicitário. Então, você vai lá e compra trinta spots de rádio. Se tenho uma grana, monto uma banda, vou numa rádio e compro trinta anúncios por disco e por show, pago a mesma “taxinha” que a Sony. A Trama nunca teve artista tocando quarenta vezes por dia no rádio, não temos essa força. Nos Estados Unidos, o caso é mais sério, existe desde a década de 50. Em 1980 teve um presidente da CBS que tentou não pagar payola no lançamento do The Wall do Pink Floyd, deu uma puta cagada, não tocou em lugar nenhum. Aí pagou de manhã, tocou à tarde. Então, essas histórias são histórias que não vejo solução mesmo lá fora. Aí, você fala assim: está bom, vamos esquecer da payola e quero ir pra grande mídia. Quantas empresas nos Estados Unidos são donas de todas as empresas de mídia? Três ou quatro e o buraco é mais embaixo. Agora, não, a Trama nunca pegou dinheiro de caixa dois e colocou numa rádio, pra um DJ tocar. O que fazemos muito são promoções, distribuímos DVDs, isso acho legítimo. A diferença pra mim é que não deveria tocar a mesma música tantas vezes no mesmo dia. Se alguém quisesse acabar com o jabá, é só limitar o número de vezes que a música toca por dia no rádio. É simples assim. Faço meu programa de rádio e toco várias vezes uma música porque quero. Por exemplo, estou fazendo meu programa e toco Seu Jorge com o Bid, o “E depois”, que gosto, de quinze em quinze dias. Deve ter alguém achando que tenho algum caso com eles. Não é. O que acho errado é quando você toca, as pessoas acreditam que aquilo acontece como um fenômeno natural e não é. Isso é grave. Se, no mínimo, as rádios falassem “você está ouvindo essa música agora com patrocínio da gravadora tal”, tudo bem. Durante sete anos da Trama, a gente nunca teve apelo numa grande rádio. Maurício Reimberg - João, por que não deu certo a aposta da Trama no hip- hop, porque antigamente a Trama tinha uns dez artistas, hoje é o Rappin’Hood, o irmão dele... Hoje temos seis artistas, chegamos a ter dezoito pela mesma razão que chegamos a ter dezoito artistas de eletrônica. A gente tem de concentrar. Maurício Reimberg - Por que caiu tanto? Precisávamos criar um catálogo num primeiro momento. Cara, tenho uma caixa de e-mail com todo mundo querendo gravar pela Trama. É preciso fazer escolhas. Quando você abraça um rapper que nem o Rappin’Hood, que vai fazer um trabalho maior, tem de fazer escolhas. Não posso fazer aquele mesmo trabalho com dezoito artistas. Então, eu vou dar um exemplo: Thaíde e Dj Hum se separaram. Agora, o Thaíde vai gravar um disco na Trama, lança no ano que vem. O Xis, por exemplo, fechou com a Warner e foi maravilhoso para ele. Chegamos a ter uns quinze lançamentos. O Puff Daddy tem seis artistas na gravadora dele e fatura um bi. Então, acho que ter muito mais artistas do que a gente tem hoje é perigoso. Luís Otávio Lopes - Com o agravante de que o público dele pirateia... Ah, isso é inevitável. No rap, os piratas pegam pesado, quando o cara vê o disquinho a 1,90 real, compra mesmo. Diogo Ruic - E qual a sua posição com relação aos piratas? Deram aulas de preço e aulas de logística. Só isso. Tatiana dos Santos - E essa questão da numeração do CD, você entrou nessa? Sim. Qualquer coisa que dê uma percepção de legalidade, transparência nessa indústria, é fundamental. Na Trama não temos esse problema, mas a indústria tem. Controlou um pouquinho mais? Controlou. Ótimo, não há nenhum problema. Camilo Leal - Li em algum lugar que a Trama pensa em fazer um software de compactação que melhorasse o som final... Mp3 é um lixo! Claro que é, mas é um lixo que escolhemos, então temos de trabalhar com ele. Muito ruim. Me perguntaram: “Você ouve mp3?”Falei: “Porra, não matei meu pai a soco, por que vou ouvir mp3?” Tatiana dos Santos - Mas por que vocês lançaram um disco em mp3? Lançamos, mas aí você tem uma metástase. Sou eu que estou falando, mas tem o trabalhador da indústria da música que fica feliz de ver que o mp3 aconteceu. Eu sou cara de estúdio e cara de estúdio não gosta de nada, porque ouve som em caixas de som de 100.000 dólares, sem estar comprimido, sem estar gravado, sem estar nada. Você acostuma com isso. Nós começamos a fazer uns testes que a gente pegava uma música, fazia um mapa: perdeu essa freqüência, essa outra, essa também. A gente começou a aumentar para compensar. Começamos com isso e se percebeu que a compressão de alguns mp3s é burra. Nossa busca é para ter um som de mp3 que seja mais alto, mais grave, mais agudo, mais médio... é um projeto em andamento. Se você for no nosso estúdio agora, eles estão testando, fazem, refazem, testam aparelhos novos. Andréa Dip - QUERIA aproveitar o gancho e pedir pra você falar um pouquinho da Trama Virtual. A Trama Virtual foi uma idéia do meu sócio André, que depois jogou na mão do Miranda e do pessoal pra eles desenvolverem. A primeira vez que ele falou isso foi em 2000. Estávamos fazendo um planejamento estratégico, vendo para onde iríamos, e ele achou interessante essa idéia. Confesso que, quando vi a idéia pela primeira vez, eu pensei: “Pô, será que vai rolar?” Fizemos a loja de downloads e não adiantou nada porque a gente não tinha 131 os compradores no Brasil. Vendia legal, mas não tinha massa crítica. Hoje, talvez possa vir a ter. Outra coisa, o Piromania; você entrava no site, escolhia a seqüência de músicas e uma capa, três dias depois vem o CD fabricado pra você. Funcionou, mas também tinha uma massa crítica pequena. São experiências que vamos fazendo, às vezes não dá certo num primeiro momento, quem sabe mais pra frente. Quando se busca inovação, ou aquilo que você acha que é inovação, tem de estar preparado pra passar um tempão falando sozinho. Cansei de ouvir: “Música eletrônica, João, você é louco, você acha que no Brasil vai ter uma gôndola de música eletrônica?” Tem. Então, às vezes não rola, mas não pode ter vergonha de tentar, senão fica paralisado pelo medo. Tatiana dos Santos - Mas como que é funciona na prática? De qualquer lugar que tenha um computador, você pode fazer download de suas músicas e pode colocar as suas músicas à disposição, tem ferramentas que compreendem a montagem de um site, você monta seu site, coloca suas fotos, suas referências. Qual é a vantagem disso? Da mesma forma que uma banda que acabou de se formar numa garagem tem interesse de tocar no Rose Bombom ou no falecido Aeroanta, a web é um outro canal. Não é tocando no Circo Voador uma vez que você vai fazer sua banda acontecer do dia para a noite. Você tem um lugar em que 30.000 pessoas por dia entram para ver música independente. Andrea Dip - Tem uma estrutura de comunidade, né? Acho que sim. Não gosto muito do Orkut, mas, quando o João Kléber começa a falar de Orkut no ar, é sinal de que o negócio vende. Andrea Dip - E é um caminho bom pra banda começar... É um caminho, não é o caminho. Andrea Dip – O Cansei de Ser Sexy estourou e começou no Trama Virtual, né? Totalmente, são várias meninas que tocam em muitos lugares. Acho legal esse negócio de não ter nenhum tipo de envolvimento político. Não precisa... aliás, adoro gente que não quer saber minha opinião. Vai lá, coloca no site e pronto. E ainda tem gente que diz: ”Nem quero saber o que aquele idiota do João Marcelo acha, ele não entende nada”. Andrea Dip - Não tem burocracia. Nenhuma. É tudo de graça. A única coisa que a gente pede é que a música seja sua. Só isso. Andrea Dip - É o mínimo, né? Não, às vezes você pode fazer um arranjo de uma música conhecida e ficar bacana. É quase impossível, mas às vezes acontece. Diogo Ruic - João, você estava falando do mercado pirata, que eles deram aula de preço. Como que uma gravadora pode baixar preço, onde é cara a produção do CD? Dá pra deixar por 5 reais, como eles conseguem? Preço e logística. Não dá pra chegar a 5 reais. Olha, acho que no Brasil música não deveria ter imposto. A música inventou o Brasil pro mundo. O Brasil começou a ter algum significado pro mundo depois da bossa nova. O café nós perdemos para Colômbia, mas na música a parada é aqui. Não quer dizer que a gente esteja arrebentando, mas acho que tem um potencial muito grande. Então, acho estranho que revista, livro, jornal não tenham imposto e que música tenha. É mais um erro, na minha opinião, da gestão das mídias. Apesar de que as gravadoras queimaram o filme, né? Você falar para a sociedade em isenção de imposto pra gravadora... As pessoas passaram a misturar duas coisas preocupantes, que nem na época da ditadura, o que é o país e o que é o governo militar, o que é música e o que são as mídias. Diogo Ruic - A gravadora virou sinônimo de monopólio. Virou sinônimo do que é música, o negócio de música. Só que já não é mais Acho injusta a tributação. Quando você confere tudo, a maioria do custo é imposto mesmo. Andrea Dip - Então é o imposto que deixa caro? O imposto é uma das coisas que poderiam ajudar a baratear, é inegável. Não é só isso. Ah, se baixar imposto cai? Ajuda a cair. Mas aí vem uma dança dos dominós, vão caindo os custos. Pra mim, o disco tinha de custar no máximo 10 reais. Diogo Ruic - Vi uma carta de apresentação da Trama no site em que vocês falam de arte como desenvolvimento político. Qual seria o papel da música, hoje, nesse desenvolvimento político? Bom, o que a gente quis dizer aí é o seguinte: quando você pega um cara da periferia como o Patife, leva em um lugar e o trata com dignidade, percebe o talento que ele tem, independentemente da classe social, da religião... A maioria dos artistas são duros. Sou neto de operário, minha mãe começou a cantar porque não tinha dinheiro para comprar um piano. Meu pai era aquele ex-rico, falido carioca, que já teve grana numa época da vida, mas vivia mais na saliva e na bossa do que qualquer coisa. A vida dos artistas geralmente é assim, vêm de classes inferiores. É difícil ter um cara como um Ivan Lins, que é formado em engenharia química e tal. Acho que tratar essas pessoas como elas foram tratadas, pegar o Caju e Castanha e colocá-los em um estúdio e falar assim: "Olha, você pode fazer isso e você pode fazer aquilo". O simples fato de você não criar essas castas acho que já é, de certa maneira, cumprir o que estamos falando nessa carta. E acho estranho a música pela música, porque na minha casa nunca foi assim, era sempre para fazer alguma coisa, ou para transar com alguém. Na bossa nova, eles só pensavam em beber e transar, é o que eles queriam fazer, a bossa nova surgiu meio de efeito colateral, seja para você ser ouvido ou para você ser incluído. Não me lembro de ter ouvido música desligada de tudo. Hoje em dia, você ser feliz, se divertir, acho que é quase uma manifestação política. O mundo está acabando, deu supererrado. No elevador cabem três pessoas e tem quatrocentas mil para subir, não vai dar para subir, acho que ser feliz durante alguns instantes, uma música que seja, em outra época PODIA ACHAR escapista, mas hoje acho que é, de certa forma, política também. E política não é só você subir em palanque e 132 tal, política é falar de gente, de relacionamento. Tom Zé fala muito isso. Vou começar a usar os aforismos do Tom Zé, vocês vão descobrir e me pegar. Luís Otávio Lopes - João, de que forma se constrói uma gravadora plural, independente, que revele novos talentos sob condições em que os pólos de produção fonográfica locais estão deteriorados ou praticamente inexistentes. Recife agora, por exemplo, dez anos depois do Mangue Beat, só agora tem um pólo de produção fonográfica próprio. Como é que vai se constituir uma gravadora nacional independente com essas dificuldades? Bom, a primeira coisa que fizemos foi abrir um estúdio. Se cada vez que tivesse de levar um artista para o estúdio fizesse um cheque de 25.000, 30.000 dólares, não teríamos conseguido. Democratizamos os meios de produção, criamos um estúdio que todo mundo possa usar. Enquanto falamos aqui, o Mombojó está gravando, em cima estão mixando o Marcelinho/Beat