Questões da memória e da história no romance Los perros del paraíso, de
Abel Posse
Márcia de Fátima Xavier (UFMG)
Este trabalho tem como objetivo tratar o tema da história e da memória e as
implicações entre verdadeiro e falso no romance Los perros del paraíso do escritor
argentino Abel Posse.
Formado em Direito, diplomático de carreira, Abel Posse nasceu em
Córdoba (1934) e cresceu e se educou em Buenos Aires. Sua obra, até então, é mais
lida fora de seu país, principalmente na Espanha, França e Estados Unidos. A história
tem sido uma de suas paixões e a ela regressa em seus romances.
O romance moderno que toma a história como tema integra o elenco das
grandes narrativas de consolidação do sentimento nacional. A partir de meados do
século XX, principalmente na América Hispânica, encontramos um romance histórico
capaz de elaborar criticamente a nossa relação com a temporalidade ocidental
moderna. De acordo com Fernando Ainsa (1993), o esforço por recuperar uma
identidade fraturada se traduz na aparição do romance histórico em vários países
latino-americanos. Esse tipo de narrativa deixa de lado o tempo presente, a imediatez
que marcou boa parte da literatura dos anos setenta, narrativa marcada pelas
expressões testemunhais do tempo contemporâneo, tanto de exílio como de
resistência interna para fixar-se no tempo passado, nos temas da conquista, da
colônia e da Independência. Através da re-escritura anacrônica, irônica e/ou paródica,
quando não irreverente e grotesca, o romance moderno rompe com as crenças e os
valores estabelecidos, ainda que nem sempre tendentes à dessacralização da história
oficial. A releitura da história, responde, também, à necessidade de discutir origens e
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identidades, não na procura de algum tipo de formas fixas, mas no movimento que
retoma o passado segundo as demandas do presente. O que move esse novo
romance histórico é a vontade de reinterpretar o passado com os olhos livres das
amarras conceituais criadas pela modernidade européia no século XIX. No lugar do
tempo cronológico, trabalha-se com a simultaneidade temporal, o tempo circular, o
tempo mítico ou a mescla de várias concepções do tempo. A enunciação é
problematizada com o intuito de relativizar verdades tidas como universais e
absolutas.
Linda Hutcheon, em Poética do pós-modernismo (1988), chama esse tipo
de narrativa de metaficção historiográfica, pelo fato de apresentar em primeiro plano a
sua condição de arquivo narrativo, enquanto reflete sobre o processo de produção e
manipulação do discurso histórico. A metaficção historiográfica refuta os métodos
supostamente naturais, ou de senso comum, para distinguir entre o fato histórico e a
ficção; ela sugere que verdade e falsidade podem não ser os termos adequados para
discutir história e ficção. Muitas dessas características apontadas por Ainsa e
Hutcheon estão presentes em Los perros del paraíso. Posse nos leva a uma “viagem”
pela história da descoberta da América; desde a ardente paixão de Fernando e Isabel,
os reis de Castela e Aragão, até a conquista do chamado Novo Mundo1.
Publicado em 1983, um ano após a Guerra das Malvinas2, percebemos de
forma clara que o romance faz uma denúncia direta ao abuso de poder. Posse atribui
aos reis católicos uma ideologia fascista e repressiva que pode relacionar-se com o
processo político vivido pela Argentina durante Guerra das Malvinas e também no
período da ditadura3.
Diferentemente dos conquistadores, que eram “cães ferozes”, os índios
eram considerados como cães que não ladravam, los perros del paraíso. De acordo
com o narrador, permaneciam sempre mudos e fiéis — “[...] bestezuelas incapaces de
ladrar” (POSSE, 1989, p. 270).
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O romance apresenta-se como uma escrita de busca de novas formas
estéticas da narrativa, fora das convenções realistas. Posse deixa claro o projeto de
ficcionalização da sua história. Narrado em terceira pessoa, o autor utiliza-se de uma
linguagem irônica e crítica. O burlesco, o humor como corrosão são presenças
constantes na obra e funcionam como ferramentas de desdramatização. A civilização
indígena, por meio de premunições, aguardava pela chegada dos “bondosos deuses”.
Os diálogos são extremamente irônicos, chegam a ser sarcásticos. Um humor
corrosivo que faz uma conexão com a história recente. Todos os atos que a sociedade
pré-hispânica afirma que a sociedade ocidental seria incapaz de fazer são ocorrências
praticadas na atualidade.
— ¡Oh, son seres maravillosos, los que llegan! Hijos de la mutación. ¡Generosos!
Una infinita bondad los desgarra: se quitarán el pan de la boca para saciar el
hambre de nuestros hijos. Sé que un dios humano les manda amar al otro como a
sí mismo. Serán incapaces de traernos muerte: detestan la guerra. Respetarán
nuestras mujeres. [...] Si ven a un herido, le besan la llaga y lo curan. Alimentan
gratuitamente al hambriento. Guian al ciego. Odian las riquezas porque en ellas
ven trampas de los tzitzimines, los diablos (POSSE, 1989, p. 129-130).
A narrativa é composta de quatro partes, precedidas cada uma delas de um
esboço cronológico. Aparentemente trata-se de um marcador temporal linear
ocidental, misturado a marcadores utilizados pelos indígenas, que estabelecem uma
cronologia que vai desde 1461 até 1500. Porém, esta linearidade obviamente não
garante a veracidade da relação entre os acontecimentos narrados no romance e os
que a História registra. Após uma análise detalhada dos acontecimentos indicados em
cada período, percebe-se que o autor não é fiel à história oficial. Já na primeira
cronologia identificamos dados que comprovam a ficcionalização da história ao datar a
chegada do soldado Ulrico Nietz a Gênova, em 1469 — referência clara a Friedrich
Nietzsche. O autor também não mantém fidelidade a datas de outros acontecimentos:
apresenta o nascimento da Beltraneja4 um ano antes do registrado pela biografia e
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atribui dia e mês ao casamento de Fernando e Isabel, sendo que em uma larga
bibliografia pesquisada só consta que foi realizado no ano de 1469. Assim, com
procedimentos como esses, Posse problematiza o real e o imaginário, o verdadeiro e o
falso. Manifesta, de forma explícita, que o compromisso com a veracidade não passa
pela repetição da escrita historiográfica, à maneira do romance realista decimonônico.
Trata-se de um trabalho de narrativa literária experimental em que se sobressai a
mescla de história e ficção explícita.
A utilização, no romance, da história da colônia e colonização da América
como fio integrador e que ao mesmo tempo distorce os conceitos de verdade e ficção;
a poetização da narrativa; a criação poética de um lugar; os componentes
metafictícios; a incorporação de personagens, temas e referências a outras tradições,
principalmente a hispano-americana, nos fazem questionar a legitimidade do discurso
da história oficial.
A problematização da questão da memória e da história, do verdadeiro e do
falso é um dos grandes debates teóricos de várias gerações de historiadores. Assim
como nos mostra Costa Lima (2006), nem mesmo os gregos, os primeiros
historiadores de que possuímos textos integrais, que tinham como prerrogativas a
aporia da verdade, conseguiram fidelidade a algum tipo de verdade. Os próprios
autores gregos se acusavam por suas incorreções, “mentiras”. Tucídides é acusado de
haver escrito o que é falso ao descrever seu próprio método, pois admitia que
reproduzia com as palavras o que, no seu entendimento, os diferentes oradores
deveriam ter usado. A preocupação dos gregos no século V a. C. em relação às
mentiras e à falsidade passa a ser uma preocupação pós-moderna em relação à
memória e à história.
A história, para Walter Benjamin, é fragmentada, instantânea; não linear. É
marcada pela presença da totalidade “rasurada” que pode ser vista através da imagem
do “caco” — quando se tem o “caco” não há como saber realmente como foi o vaso na
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sua totalidade. Benjamim constrói a história a partir da extração de diversos elementos
de conjuntos constituídos e forma a partir desses elementos heterogêneos um novo
fragmento. “Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como ele de
fato foi’. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no
momento de um perigo” (BENJAMIN, 1996, p. 224).
Para Leyla Perrone-Moisés, as reflexões anti-historicistas de Benjamin,
podem em parte ser aplicadas à história literária:
O que é contingência de todo discurso histórico — trazer em si as marcas do
presente — torna-se uma necessidade interna na história literária, porque os
“fatos” de que ela se ocupa não aconteceram, como os da história, uma vez só e
só no passado, mas continuam a acontecer a cada leitura nova (PERRONEMOISÉS, 1998, p. 25).
De acordo com Perrone-Moisés, a história literária está fadada a assumirse como releitura e requalificação do passado à luz dos valores do presente. Ao
escrever sua obra, o novo autor lhe imprime uma nova significação. É a consciência
dessa ambivalência ou ambigüidade que leva os escritores a assumirem também o
papel de críticos. O historiador que se pretende científico e objetivo apresenta a
totalidade dos fatos conhecidos, sedimentada através de muitas leituras precedentes
do passado, e os valoriza, lhes confere a objetividade da distância. Ao historiadorcrítico, não é a ambição de uma visão ideal e total do passado que o guia, mas a
premência de uma escolha, a necessidade de situar, orientar e valorizar sua própria
ação presente.
Paul Ricoeur em La memoria, la historia, el olvido (2000) faz uma longa
investigação acerca do tema da historia e suas implicações entre verdadeiro/ falso;
memória/ esquecimento. Ricoeur afirma que a relação entre realidade e ficção nunca
deixará de nos atormentar, porém não trata a questão de forma definitiva, tenta
ponderar os dilemas existentes de forma argumentada, ainda que não resolva a
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questão. De acordo com o teórico, muitos autores abordam a questão da memória a
partir de suas deficiências. Para ele, o que importa é abordar a descrição dos
fenômenos memorialistas do ponto de vista de considerar-se responsável pelos de
seus próprios atos. Afirma que a ambição veriditiva da memória tem propriedades que
merecem ser reconhecidas antes de considerar qualquer deficiência e debilidade da
memória. Considera o testemunho a estrutura fundamental de transição entre a
memória e a história. É no testemunho que a memória declarativa se exterioriza.
Insiste no compromisso da testemunha no seu testemunho. Nesse momento, em que
as coisas ditas passam do campo da oralidade para o campo da escrita, é que nasce o
arquivo — reunido, conservado, consultado. Argumenta que o testemunho só passa
pela porta do arquivo depois de submetido à confrontação severa entre testemunhos
competidores e também depois de ser absorvido em vários documentos que não são
testemunhos não escritos (restos de habitações, moedas, imagens pintadas ou
esculpidas, mobiliários etc.). Segundo Ricoeur, o conjunto desses documentos, dessas
marcas, garante o estatuto da história como ofício e do historiador como artesanato.
De acordo com o autor não temos nada melhor que o testemunho para assegurar que
algo ocorreu. A confiabilidade se situará frente a frente com a confiança e a suspeita.
Explicita que uma coisa é romance, mesmo o realista, e outra é o livro de história; os
dois distinguem-se pelo pacto implícito entre o escritor e seu leitor — ainda que não
formulado de forma explícita, esse pacto estrutura expectativas diferentes por parte do
leitor. Ao abrir um romance, o leitor se dispõe a entrar no universo ficcional; suspende
seu receio, sua incredibilidade e aceita seguir o jogo como se as coisas narradas
tivessem acontecido. A intencionalidade histórica implica que as construções do
historiador tenham a ambição de serem reconstruções mais ou menos aproximadas do
que um dia foi “real”, quaisquer que sejam as dificuldades encontradas para sua
efetivação.
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Abel Posse, ao retirar do arquivo a história do Descobrimento, provoca o
seu leitor, o seu público, nos atormenta (conforme Ricoeur); estabelecendo um
desassossego frente à história. O romance também nos faz questionar a nossa
situação política e econômica atual frente aos escritores da História. Assim, a leitura
do romance contribui para uma nova visão do passado, questionando as identidades
culturais cristalizadas e denunciando a incapacidade do homem ocidental em
reconhecer o mundo e o outro, sobretudo nas suas diferenças. Ainda não vivemos
num processo de colonização? Somos realmente uma civilização independente?
Referências
AINSA, Fernando. Nuevas fronteras de la narrativa uruguaya (1960-1993).
Montevideo: Ediciones Trilce, 1993.
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: Magia e técnica, arte e política.
Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 10. ed. São Paulo: Brasiliense, 1996. v. 1. p. 222232.
HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
LIMA, LUIZ COSTA. História. Ficção. Literatura. São Paulo: Editora Companhia das
Letras, 2006.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. História literária e julgamento de valor. In: Atlas literaturas:
escolha e valor na obra crítica de escritores modernos. São Paulo: Companhia das
Letras, 1998.
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POSSE, Abel. Los perros del paraíso. Ciudad de la Habana: Editorial Arte y Literatura,
1989.
RICOEUR, Paul. La memoria, la historia, el olvido. Tradução de Agustín Neira. Buenos
Aires: Fondo de cultura económica de Argentina, 2000.
Notas
1
Um dos nomes dados à América pelos europeus na época do seu descobrimento. O
continente era “novo” para os europeus em comparação com o Velho Mundo que já
conheciam: Europa, Ásia e África. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Novo_Mundo>.
Acesso em: 02 set. 2008.
2
A Guerra das Malvinas ocorreu entre os dias 2 de abril e 14 de junho de 1982, pela soberania
dos arquipélagos austrais tomados por força em 1833 e dominados a partir de então pelo
Reino Unido. O saldo final foi a derrota da Argentina, com a morte de 649 soldados argentinos,
255 britânicos e 3 civis da ilha. Na Argentina, a derrota no conflito fortaleceu a queda da Junta
Militar que governava o país e a restauração da democracia como forma de governo.
Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Guerra_das_Malvinas>. Acesso em: 10 jun. 2007.
3
O período denominado Ditadura Argentina começou com o golpe de estado que derrubou o
presidente constitucional da Argentina, Arturo Illia, em 28 de junho de 1966. Desse modo,
começou um novo período de governos militares que resultaria na volta do peronismo ao poder
em 1973. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Ditadura_argentina>. Acesso em: 02 set.
2008.
4
A infanta Joana de Castela nasceu em 1462 e morreu em Lisboa em 1530. A sua mãe era a
princesa Joana de Portugal, casada com o rei Henrique IV de Castela. Contudo, Henrique, sem
filhos dos casamentos anteriores, tinha a fama de ser impotente, condição, de resto, expressa
pelo seu cognome — Henrique, o Impotente. Por isso se urdiu na corte que Joana estava
envolvida num caso amoroso com o nobre D. Beltrán de La Cueva, o qual, segundo a exegese
histórica pôde apurar, estaria em missão fora da Corte no momento aproximado da concepção
da jovem infanta. Joana foi considerada ilegítima pelos grandes de Castela, que se recusaram
a reconhecê-la, e desde o berço ficou conhecida pelo aviltante título de “a Beltraneja”, como
referência a seu putativo pai. O seu nascimento provocou portanto um escândalo na corte de
Castela e o pedido de divórcio de Henrique de Castela, tendo a rainha D. Joana de Avis sido
repudiada em 1468, e regressado a Portugal, embora a filha permanecesse em Castela.
Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Joana,_a_Beltraneja>. Acesso em: 01 jul. 2008.
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