JAMES JOYCE E A ARTE COMO REDENÇÃO Carlos João Correia 1. Num filme do realizador japonês, Nagisha Oshima (Merry Christmas Mr.Lawrence), conta‐se a seguinte história: Jack Cellier um jovem inglês, esbelto, louro, de olhos azuis, pleno de energia física, tinha um irmão mais novo, criança frágil e portadora de um defeito físico (corcunda). Mas possuía um dom prodigioso: cantava maravilhosamente! O irmão mais velho sempre o protegeu, batendo‐se mesmo fisicamente com outros jovens! Um dia, o mais novo, é admitido no colégio interno do irmão e é submetido às 1 praxes académicas (uma delas era despir‐se em frente dos outros revelando, neste caso, a terrível corcunda). O mais velho fica perante um dilema: ou protege o seu irmão (mas está a abrir uma excepção) ou não faz nada (e o seu irmão irá sofrer horrivelmente)! Toma a decisão de não fazer nada, não exigindo um tratamento de excepção para o seu irmão (oportunidade que lhe é oferecida). Depois do “ritual de iniciação”, o irmão mais novo ficou de tal modo traumatizado com a experiência que se recusou cantar para sempre! O mais velho, a partir daí, decide expiar a sua culpa. Torna‐se um militar, dotado de uma coragem louca e insana, defendendo sempre os seus companheiros da crueldade, o que o levou, no final, como castigo, a ficar literalmente enterrado no solo sob o sol abrasador até morrer, enquanto os amigos lhe cantavam um dos mais belos salmos bíblicos e ele interiormente escutava as canções do irmão. No momento da morte, uma borboleta branca pousa sobre aqueles cabelos louros...Morte por expiação! Com as devidas distâncias, esta é também, na nossa interpretação, a história do Ulisses do Joyce, o desejo de morte por expiação. Mas, mostra‐nos ‐ o que é também tocante e fabuloso ‐ como é possível, perante uma premissa idêntica, não acabar numa situação tão extrema! Este ponto de partida será pois esta a minha proposta global de leitura da obra de Joyce. 2. Quando um dia James Joyce, em diálogo com o seu grande amigo, o pintor Frank Budgen, se questionou sobre qual seria o símbolo mais perfeito da humanidade não hesitou em identificá‐lo com uma personagem da mitologia clássica, a figura lendária 2 dos poemas homéricos, Ulisses. Segundo Joyce, as outras grandes figuras da literatura universal, como Fausto (enclausurado no seu saber e levado a estabelecer um pacto com Mefistófeles para poder sentir o que era a vida), Hamlet (preso aos fantasmas do seu pai e ao seu desejo de vingança), Dom Quixote (combatendo moinhos de vento, julgando‐se incarnação de algum cavaleiro do Graal), são sempre figuras mais ou menos fantasmagóricas, presas nos seus próprios pesadelos. Mas se olharmos para Ulisses (versão latina de Odisseu, o herói da Odisseia) o que é que encontramos? O mais comum dos homens que vai vencendo através da sua inteligência e astúcia, mas também da sua coragem, as dificuldades que o destino lhe coloca. Ulisses é o bom filho de Laertes – de tal forma que o seu pai entra em profundo desespero durante a ausência de Ulisses e rejuvenesce miraculosamente quando o vê de retorno a casa; Ulisses é o bom pai de Telémaco – não só a pretensa loucura de Ulisses, como forma de evitar ter de combater os troianos, é desvendada para não fazer mal ao seu filho, como este último não descansa enquanto não encontra o seu pai perdido; Ulisses é o amante de Calipso, essa ninfa que, ao recolher o herói, após um naufrágio, fica de tal forma apaixonada por ele que o retém durante uma dezena de anos junto de si, só permitindo a partida do herói por decisão dos deuses; Ulisses é o companheiro de armas dos Aqueus (apesar de abominar a violência e preferir a diplomacia, apesar de considerar a expedição vingativa a Tróia uma estupidez; mas é ele que inventa o cavalo de Tróia, o único estratagema astucioso para vencer aquela cidade); 3 Ulisses é aquele que apenas sonha retornar para junto dos seus, da sua fidelíssima Penélope, do seu velho cão Argo, do seu filho e da sua terra, Ítaca. Tal admiração de Joyce por este símbolo clássico da humanidade integral condu‐lo naturalmente a escolhê‐lo como personagem central do seu maior romance, precisamente o Ulisses de 1922, considerado por muitos como a principal obra literária do século XX. E na escolha do nome do herói como título da sua obra, Joyce indica‐nos claramente um dos múltiplos sentidos do seu livro: em face da fragmentação e da desolação do mundo moderno, como restaurar a humanidade perdida? 3. Só que, em vez de um relato epopeico das aventuras e desventuras de Ulisses em busca de Ítaca, confrontamo‐nos com a narrativa de um simples judeu de origem húngara, que vive na cidade de Dublin, na Irlanda, de nome Leopold Bloom e cujas expedições se resumem a único dia, o dia 16 de Junho de 1904 (conhecido a partir daí pelos joyceanos como o “Bloomsday”) ‐ melhor dizendo, 18 horas que medeiam o seu pequeno‐almoço com a sua mulher, Molly Bloom, até ao retorno a casa na noite desse mesmo dia. E os acontecimentos que presencia são os mais banais e comuns da vida do mais comum dos habitantes de Dublin: as conversas nos pubs, as discussões políticas, a leitura dos jornais, o funeral de um conhecido, o nascimento numa maternidade, os passeios na praia, a ida a um famoso bordel da cidade. Nada de grandioso, nada de sublime – bem pelo contrário: por vezes, deparamos com relatos bem sórdidos que podem ir desde a descrição de um vomitado até aos problemas de menstruação da sua “Penélope”, Molly Bloom ‐ o que explica a proibição do romance durante vários anos por obscenidade. O “Ulisses” de Joyce é o “anti‐herói”, por excelência, da literatura contemporânea. 3.1 Porquê esta insistência de Joyce no relato que, por vezes, toca as raias da descrição pormenorizada, meticulosa do que há de mais vulgar e, por vezes, sórdido da vida? Por exemplo, a exposição meticulosa da cidade de Dublin é, de tal modo, precisa que Joyce ‐ ele que viveu a maior parte da sua vida fora da Irlanda, como exilado voluntário, mas que só escreveu sobre Irlanda ‐ se vangloriava do facto de que, se algum dia a cidade desaparecesse do mapa, ela poderia ser reconstruída graças apenas aos seus romances (embora – é bom sublinhar ‐ que os pormenores arquitectónicos são mínimos...). Com efeito, apesar de Joyce admirar profundamente Zola (o romancista naturalista francês, autor do Germinal) não o move nenhum imperativo descritivo de retratar o mundo que nos envolve, mas antes o mundo como ele nos surge na nossa consciência, na nossa mente. Compreender o Ulisses de Joyce é decifrar o profundo sentido simbólico da narrativa e das suas personagens. 3.2 Porquê, então, a insistência no comum? Joyce estava convencido que a arte tinha uma função redentora num mundo fragmentado e claramente à deriva. Existe até um paradoxo divertido assinalado por Malcolm Bradbury (The Modern World): os escritores que nutrem uma especial simpatia pelo mundo moderno (como é o caso do conhecido H.G.Wells ou Charles Snow, o autor do magnífico romance Strangers and Brothers, também famoso pelo seu ensaio filosófico 2 Culturas) têm habitualmente um estilo de escrita quase positivista, em que a narrativa escorre sem grandes problemas. Pelo contrário, aqueles que são considerados "modernistas" como T.S.Eliot, Proust, Virginia 4 Woolf são profundamente cépticos em relação ao mundo em que vivem, e a escrita torna‐se complexa e difícil para o comum dos leitores. 3.3 Para Joyce, a narrativa literária e a arte em geral tinham o poder de proporcionar aquilo que o autor designava por “epifania” (cf. textos 1 e 2). O que significa uma epifania? É um termo com um claro sentido religioso. Joyce teve uma educação religiosa numa escola jesuíta (a sua mãe era profundamente católica); como ele, aliás, o descreve no seu romance autobiográfico, Retrato do Artista quando Jovem (1916), chegou mesmo a ser convidado para ser sacerdote – só que romperá com essa visão religiosa do mundo. Ruptura que, de algum modo, é simbolizada no seu exílio em relação à Irlanda; com efeito, o Ulisses foi redigido entre 1914 e 1921, nas cidades de Trieste, de Zurique e de Paris; a sua relação com a Irlanda foi sempre de uma profunda ambivalência; desde acusá‐la de paralisia e de charlatanice até ao amor que se desprende pelo facto de apenas ter escrito sobre a sua pátria). No entanto, a sua ruptura com a educação católica da sua juventude (ruptura que lhe será particularmente penosa quando a mãe, a morrer de cancro ‐ ele que lhe tocava peças de piano para a consolar ‐, lhe solicita que ele, o escritor, James Joyce, se confesse religiosamente, o que ele recusa ‐ deixando‐lhe um forte sentimento de culpa; na minha interpretação, é este o tema forte do Ulisses). No entanto, a influência dos símbolos religiosos sobre o autor é bem forte, e assim ele repensa literariamente alguns das imagens centrais da espiritualidade humana, assim como utiliza, aqui e ali, expressões de raiz indubitavelmente mística. Ora, é inegavelmente o caso do termo “epifania”. A celebração da epifania é habitualmente realizada no dia 6 de Janeiro e procura consagrar o momento em que Jesus é visitado pelos três reis magos («dia dos reis»). 3.4 Por que razão este acontecimento é central para o escritor irlandês? O decisivo, para Joyce, não está no carácter teológico do evento, mas apenas na conjugação, à primeira vista tão paradoxal, entre a revelação de um símbolo tão forte (a incarnação divina) e um estábulo humilde em Betsalém. Da mesma forma que Proust está convencido que as nossas memórias involuntárias possibilitam a revelação da verdadeira identidade de 5 cada um de nós, do mesmo modo Joyce pensa que os momentos plenos de encanto, beleza e fulgor despontam a partir de eventos banais e comuns da vida. Se assim é, a literatura pode proporcionar momentos de redenção, de força e de criatividade – sobretudo quando aborda temas vulgares e situações comuns das pessoas. Daí o hábito de Joyce – hábito totalmente irritante para o seus amigos – de andar com um pequeno caderno de notas na mão para tentar surpreender os pequenos gestos, as hesitações da fala, os actos quotidianos mas irreflectidos e, assim, apreender a verdadeira natureza da vida em toda a sua intensidade e beleza. Não deixa de haver um paralelismo curioso com Freud em encontrar nos actos falhados da vida uma das vias possíveis de acesso ao mundo fundo do nosso ser. Mas, enquanto Freud, está preocupado em mostrar as raízes pulsionais da existência, pelo contrário, a atenção de Joyce concentra‐se em mostrar como essa epifania da beleza e da intensidade da vida (a sua plenitude, numa palavra) se pode surpreender nos hábitos comuns da vida. A questão de Joyce é, no fundo, uma: como dar sentido à nossa vida diária, a mais banal, a mais usual? Que epifania poderá ela afinal revelar? Que novo tipo de heroísmo se poderá revelar na figura daqueles que nós olhamos desdenhosamente como pessoas que, numa primeira análise, são as mais vulgares? 4. Qual é a narrativa do Ulisses de Joyce? Dificilmente alguém, no seu bom senso, consegue dar uma resposta simples e clara a esta questão. O Ulisses é uma das obras mais complexas (e, em muitos momentos, das mais difíceis da história da literatura). São, a meu ver, três as razões estilísticas que tornam a obra particularmente complexa mas que, simultaneamente, a transformam numa das obras mais inovadoras da criatividade humana. É, senão a primeira, pelo menos a primeira grande obra da 6 literatura em que se usa a técnica literária do “stream of consciousness”, do “fluxo da consciência”. O objectivo do “stream of consciousness” consiste em proceder à revelação dos sentimentos das personagens, dos seus pensamentos, sem uma sequência necessariamente lógica (por vezes, descrição tão caótica como o fluxo usual da nossa mente saltitando entre impressões, ideias, medos, alegrias, etc.) e, por vezes, essa técnica permite apreender estados “pré‐conscientes” que antecedem a formação de ideias. Diga‐se que o termo «stream of consciousness», provém de William James (Principles of Consciousness, 1890). Segundo Joyce, não tem nada a ver com o inconsciente de Freud, mas antes com Jung (que ele admirava); para Joyce, a consciência é já, em si mesma, um grande mistério! 4.1 A segunda razão que explica a dificuldade de leitura do Ulisses prende‐se com a variação de estilo literário dos 18 capítulos que compõem este volume de 700 páginas. Para lá desta descrição deste fluxo da consciência, cujo momento mais alto no romance ‐ considerado por muitos, um dos momentos mais extraordinários da escrita literária, mas, também, a causa principal da proibição do romance ‐ é provavelmente o monólogo feminino de Molly Bloom (cf.4), no último capítulo da obra (“Penélope”) ‐, Joyce varia de estilo permanentemente; certos capítulos são escritos em forma de drama teatral (é o caso da cena no lupanar), outros sob a forma da pergunta e resposta (é o caso do encontro de Leopold Bloom com Stephen Dedalus, a outra personagem central deste romance), outros sob a forma da dialéctica, do ensaio, do trecho musical (há partes do Ulisses que poderiam ser tocadas musicalmente). Esta variação permanente de estilo confere à obra um carácter fragmentado, sem qualquer unidade aparente, a que acresce a terceira razão: o domínio fabuloso por parte de Joyce da língua inglesa (e não só...) e, em particular, dos dialectos próprios de Dublin e da Irlanda. Esse domínio lexical permite‐lhe jogar com uma miríade de referências e de subentendidos que tornam muito complexa a leitura. Apesar destas dificuldades, procuremos não tanto contar a história (não tem sentido nenhum) mas dar conta da estrutura narrativa da obra, apontando alguns momentos cruciais. 4.2 Quem conhece minimamente a Odisseia de Homero sabe que a história não se desenrola apenas em volta da busca de Ulisses do caminho para Ítaca. Existe uma segunda busca, a do filho de Ulisses, Telémaco, por seu pai. É aliás, assim, que se inicia a Odisseia e essa busca não é apenas um procedimento retórico, pois ocupa os primeiros cantos da obra. O mesmo acontece no Ulisses de Joyce – também aqui descobrimos uma dupla busca, por um lado, a de Leopold Bloom (a nova incarnação de Ulisses); e, por outro, a de uma outra personagem, central no romance, a de Stephen Dedalus. Mas o que é que eles buscam e, em particular, o “Telémaco” irlandês? Reparem: o pai de Stephen está vivo, passeia‐se em Dublin, e é até um conhecido de Leopold Bloom... Quem é este “Stephen Dedalus”? Joyce nunca escondeu a dimensão autobiográfica da personagem. Stephen Dedalus é o alter ego de Joyce. Enquanto Bloom é uma personagem criada especificamente para o Ulisses, pelo contrário Stephen Dedalus é uma personagem recorrente na obra deste escritor. Por exemplo, é a personagem central de Retrato Artista quando Jovem (o romance autobiográfico) assim como do romance póstumo Stephen Hero (1944, 3 anos depois da morte do escritor). Os 7 problemas, as preocupações e os dramas de Stephen são os dramas e os problemas de Joyce. O Ulisses de Joyce está aliás cheio de referências biográficas como se deixa retratar na escolha do dia em que toda a intriga se desenrola: “16 de Junho de 1904”. Com efeito, o Bloomsday é um dia importante na vida Joyce, pois foi nesse dia que o escritor encontrou a paixão da sua vida, Nora Barnacle (Nassau Street, Trinity College), que o acompanhará para sempre. Stephen, no Ulisses, é um jovem intelectual irlandês que estudava em Paris e que tinha retornado a Dublin por causa da saúde da mãe. Stephen acusa‐se – melhor dizendo é acusado pelo seu amigo, Buck Mullligan numa das célebres torres da costa de Sandymount – de ter sido de algum modo responsável pela morte da mãe, pois tinha‐se recusado a ajoelhar‐se religiosamente junto do leito da doente. Pode‐se imaginar a situação psicológica de um jovem, de clara formação intelectual, depois de uma vida um pouco boémia em Paris, regressar subitamente à Irlanda, por causa da doença da mãe e sentir‐se responsabilizado pelo falecimento da mesma. Retorno de um filho pródigo, mas que lhe acarreta três novos exílios: perder a sua mãe, responsabilizar‐se por isso e abandonar a sua pátria intelectual de eleição. E é aqui se joga a terceira situação de exílio de Stephen. Podemos surpreendê‐la num dos momentos fundamentais do romance (também um dos momentos mais difíceis de leitura, capítulo “Proteu” – deus grego do mar que podia assumir qualquer forma pois o seu corpo é constituído por água): o passeio na praia (Sandymount), pelas 11 horas da manhã, meditando sobre múltiplas coisas, entre elas (cf.3) a “realidade irredutível de tudo o que existe” e a nossa captação da mesma como efemeridade pura; meditando sobre a distinção filosófica entre as qualidades primeiras e segundas das coisas que se revela na “inelutável modalidade do visível”, na “inelutável modalidade do audível” mas que subentende a nossa “inelutável realidade de nós próprios e do mundo em que vivemos”. Mas como apreender essa identidade, essa identidade que se oculta e se revela nas sensações, nas impressões efémeras, como ter essa “epifania” do que somos? E Stephen sente‐se claramente preso a um labirinto em que ele próprio se encerrou. 8 Não é por acaso que é designado por Dedalus (Dedalus é uma figura da mitologia grega que conseguiu através do voo fugir ao labirinto que tinha construído à sua volta; por sua vez, Estêvão [Stephen] é o primeiro mártir cristão). E o momento decisivo que nos aparece como um enigma da Esfinge, mas no qual se revela o segredo do romance: «Toca‐me. Suaves olhos. Suave, suave, suave mão. Sinto‐me tão só, aqui. Que palavra é essa que todos os homens conhecem? Eu aqui estou sozinho, quieto. E triste também. Toca. Toca‐me.” O exílio de uma vida pensada, não vivida, mas mais do que isso o exílio da solidão. E a busca... Como Telémaco, Stephen Dedalus está em busca de algo... “Qual a palavra que todos os homens conhecem?”. A outra personagem central, o Ulisses deste romance, é Leopold Bloom, este judeu em pátria irlandesa, angariador de anúncios, que logo no começo deste dia prepara carinhosamente o pequeno‐almoço para a sua mulher, a sua Penélope, Molly Bloom, uma anafada cantora de música popular. Só que esta, em vez de ser a fidelíssima Penélope da narrativa helénica que homericamente resiste aos seus 120 pretendentes, bem pelo contrário, nessa mesma manhã, recebe uma carta do seu amante Boylan a marcar um encontro amoroso para aquele mesmo dia. Na verdade, a relação entre Leopold Bloom (Poldy como é afectuosamente tratado pela mulher) e Molly tinha‐se deteriorado completamente com a morte, há dez anos (o tempo de errância de Ulisses), do seu filho recém‐nascido, Rudy, provocando uma autêntica implosão no seio do casal. 9 Para compreendermos melhor o Ulisses desta história observemos uma outra cena que se passa num dos tradicionais pubs irlandeses. Apesar de se ter convertido ao Cristianismo, Bloom envolve‐se numa discussão violenta sobre o Judaísmo com alguém conhecido como o “Cidadão” (Citizen), zarolho como a figura mítica do Polifemo, aquele monstro com um só olho que o Ulisses homérico consegue enganar através de se autonomear como “Ninguém”. E da mesma forma que a cena homérica termina com o gigante Polifemo a lançar, de raiva, um pedregulho a Ulisses, o Polifemo irlandês (em que uma só vista significa simbolicamente a unilateralidade e a visão curta) lança por cima de Bloom uma caixa de bolachas. Julgo que é fácil de compreender que Leopold Bloom, o Ulisses desta história, é a outra imagem do exílio, como Stephen, mas por razões completamente diferentes. Há sempre muitas razões que suscitam a pulsão de morte (referida por Freud na fase final da sua obra). Esta “facilidade sinistra de morrer” (Yourcenar) torna‐se “trivial” quando se perde quem se ama....Exílio conjugal, exílio por ter perdido o seu filho, Rudy, exílio por ser judeu (retoma a figura simbólica do judeu errante), mas num país que olha, ainda hoje para os estrangeiros, com alguma dureza.... Exilado da sua religião (converteu‐se ao Catolicismo), mas ostracizado pela sua raça. Mas, se Setphen é o intelecto, Bloom é extremamente sensível, bondoso, cheio de ternura (pequenos gestos: pequeno‐almoço para a sua mulher; o seu sofrimento pela morte de um amigo). Bloom é uma «florescência», uma «flor», uma razão acrescida do seu exílio. Situação de alguém totalmente alienado num mundo masculino, brutal, simbolizado por Citizen, esse ser abjecto, perfeito bronco, mas também perfeito cidadão‐modelo de Dublin, que constrói a sua pretensa identidade masculina pela negação do que julgam ser próprio das mulheres (flores). «Bloom» é claramente o Ninguém para este mundo. E assim estamos em face de dois “estrangeiros”: Stephen e Bloom totalmente perdidos, que se descobrem num mundo que não só lhes é estranho, como os exila. Mas encontram‐se por acaso. Bloom desloca‐se a uma maternidade (Joyce quis claramente assinalar os lugares comuns mas importantes da vida) para visitar uma amiga da família que tinha tido gémeos e aí encontra Stephen em confraternização com enfermeiros. 10 Acabam ambos (Bloom com o objectivo de proteger Stephen) no bordel da cidade (capítulo intitulado «Circe», a feiticeira que transformava os homens em porcos) em que, numa cena trágico‐cómica, mas cheia de magia (próprio das feiticeiras), deciframos cenas alucinatórias, delirante e masoquistas. Stephen está completamente bêbado e é agredido. Bloom socorre‐o e leva‐o para sua casa onde ocorre um dos momentos mais importantes do romance ‐ sob a forma de pergunta‐resposta ‐ e se oferece o verdadeiro encontro daqueles dois seres ‐ tão diferentes entre si ‐ mas que descobrem que as diferenças longe de serem factores de divisão e de conflito são factores de enriquecimento. Pois o que está em jogo aqui não é a amizade (eles separam‐se como amigos, mas percebe‐se bem que cada um deles seguirá o seu caminho) e muito menos a paixão amorosa. Será uma nova relação relação filial? Bloom o protector, Stephen, o protegido? Mas Stephen tem um pai e Bloom uma filha... Será a relação entre o Intelecto (Stephan) e a Sensibilidade (Bloom)? Mas Stephen tinha sensibilidade artística e Bloom era culto... A meu ver, o decisivo é esse encontro entre duas pessoas que só o acaso (destino) as reuniu mas que souberam encontrar‐se. E é neste encontro que está a chave do romance. A redenção da expiação de Stephen finalmente encontra solução. Alguém perdido como ele, o acarinhou, o tratou, o levou para sua casa... Esta Odisseia aproxima‐se do fim e termina com o retorno de Bloom ao leito conjugal, onde não só Bloom se reconcilia com a vida e com a sua Penélope (que lhe diz finalmente “sim”), da mesma forma que esta última entoa o seu grande monólogo (cf.4) que não só expressa igualmente a sua reconciliação com Bloom, como começa e termina com a expressão da afirmação incondicionada da vida, bem expressa nesse mesmo yes, símbolo de confiança e de entrega a outrem. “Qual a palavra que todos os homens conhecem?” perguntava‐se Stephen na praia. Essa palavra é naturalmente o Amor (como sublinhará Anthony Burgess) (cf.5). O Ulisses é um romance sobre o amor, o amor entre um Ulisses simbólico e um Telémaco simbólico, mas também entre um homem (Leopold Bloom) e uma mulher (Molly Bloom), entre dois seres, entre duas pessoas: Bloom e Stephen que descobrem a sua redenção no encontro, na relação, isto é, na entrega e na confiança recíproca entre duas pessoas. É essa a epifania que a vida comum revela para Joyce e permite responder afinal à questão: como dar sentido à nossa vida tão comum, tão vulgar? Textos de referência 1. Epifania (i) “Imagina o meu olhar pousado naquele relógio como a tentativa de um olho espiritual procurando fixar‑se num ponto preciso. No momento em que esse ponto é atingido, o objecto é epifanizado. Ora, é nesta epifania que reside, para mim, a terceira qualidade, a qualidade suprema do belo.” (Joyce, Stephen Hero) 2. Epifania e estética (ii) “Stephen: As relações mais satisfatórias do sensível devem, por isso, corresponder às fases necessárias da apreensão artística. Se as descobrires, terás encontrado as qualidades da beleza 11 universal. Aquino diz: ad pulcritudinem tria requiruntur integritas, consonantia, claritas. Eu traduzi assim: São necessárias três coisas para a beleza, inteireza, harmonia e claridade. Corresponderão elas às fases de apreensão? [...] Stephen apontou para um cesto que um empregado do talho enfiara, invertido, na cabeça. ‐ Olha para aquele cesto – disse. ‐ Estou a vê‐lo – disse Lynch. ‐ Para ver aquele cesto – disse Stephen ‐, a tua mente, em primeira lugar, separa o cesto do resto do universo visível que não seja o cesto. A primeira fase de apreensão é uma linha de delimitação em torno do objecto a apreender. É‑nos apresentada uma imagem estética tanto no espaço como no tempo. O que é audível é apresentado no tempo, o que é visível é apresentado no espaço. Mas, temporal ou espacial, a imagem estética é, em primeiro lugar, luminosamente apreendida como algo de autodelimitado e autocontido sobre o fundo incomensurável do espaço ou o tempo que não é essa imagem. Capta‑la como uma coisa. Vê‑la como um todo. Apreendes a sua inteireza. Isso é a integritas. ‐ Em cheio! – disse Lynch, rindo. – Continua. ‐ Depois – disse Stephen ‐, passas de ponto em ponto, seguindo as suas linhas da forma; apreendes a imagem a imagem equilibrada, parte por parte, dentro dos seus limites, sentes o ritmo da sua estrutura. Por outras palavras, à síntese da percepção imediata segue‑se a análise da apreensão. Tendo‑te apercebido em primeiro lugar de que era uma coisa, sentes agora que é uma coisa. Apreendeste‑a como algo complexo, múltiplo, divisível, separável, constituído por partes, harmonioso no resultado das partes e na sua soma. Isso é a consonantia. ‐ Em cheio de novo! – disse Lynch espirituosamente. – Agora, explica‐me o que é a claritas e ganhas um charuto. ‐ A conotação d palavra é bastante vaga. Aquino utiliza um termo que parece ser inexacto. Desorientou‐me durante algum tempo. [...] Aqui tens como eu entendi as coisas. Depois de termos apreendido aquele cesto como uma coisa e o termos analisado em conformidade com a sua forma e o termos apreendido como uma coisa, fazemos uma única síntese que é lógica e esteticamente permissível. Verificamos que ele é aquilo que é e não outra coisa. A claridade de que fala é o quidditas escolástico, a característica de uma coisa. Esta qualidade suprema é sentida pelo artista quando a imagem estética é concebida na sua imaginação. Shelly comparou, magnificamente, a mente nesse misterioso instante a uma brasa prestes a apagar‑se. O instante em que essa suprema qualidade da beleza, a clara radiação da imagem estética, é luminosamente apreendida pela mente que foi impressionada pela sua inteireza e fascinada pela sua harmonia é a estase [stasis] luminosa e silenciosa do prazer estético, um estado espiritual muito semelhante àquela condição cardíaca a que o fisiologista italiano Luigi Galvani, usando uma frase quase tão bela quanto a de Shelley, chamou o encantamento do coração. [...] ‐ O que eu disse – recomeço ele – refere‑se à beleza no sentido mais lato da palavra, no sentido que a palavra tem na tradição literária. Na linguagem comum, tem outro sentido. Quando falo de beleza no segundo sentido do termo, o nosso julgamento é influenciado, em primeiro lugar, pela própria arte” James Joyce, Retrato do Artista quando Jovem, trad.port., Lisboa, Europa‐América, 1993, pp.203‑205 3. Inelutável realidade "Inelutável modalidade do visível: pelo menos, se não mais, pensado através dos meus olhos. 12 Estou aqui para ler as assinaturas de todas as coisas, ovas e sargaços, a maré que se aproxima, essa bota corroída. Verderanho, azul de prata, ferrugem: sinais coloridos. Limites do diáfano. Mas acrescenta: nos corpos. Então é porque tinha consciência deles, corpos, antes deles, coloridos. Como? Batendo com a cachimónia contra eles, é claro. [...] Stephen fechou os olhos para ouvir as suas botas triturar crepitantes detritos e conchas. Caminhas de qualquer modo por sobre isso. Eu, passo a passo. Um muito breve espaço de tempo através de muitos breves tempos de espaço. Cinco, seis: o Nacheinander. Exactamente: e essa é a inelutável modalidade do audível. Abre os olhos. Não. Meu Deus! Se eu cair sobre um penhasco que está suspenso pela sua base, caio inelutavelmente pelo Nebeineinander! [...] Vê agora. Esteve ali todo o tempo sem ti: e exisitrá sempre, mundo sem fim. [...] Que palavra é essa que todos os homens conhecem? Eu aqui estou sozinho, quieto. E triste também. Toca, toca‑me. Deitou‑se para trás, estendido ao comprido sobre as rochas cortantes, metendo as notas rabiscadas e o lápis num bolso, o chapéu caído sobre os olhos. Esse é o movimento de Kevin Egan, o que eu fiz, cabeceando pela sesta, sono sabático. Et vidit Deus et erant valde bona. Olá! Bonjour. Benvindo como as flores em Maio. Sob a aba do chapéu ele observou o sol do sul através de pestanas trémulas como o pavão. Estou apanhado nesta cena escaldante. A hora de Pan, o meio‑dia dos faunos. Entre plantas serpentes, pesadas de goma, frutos ressudando leite, as folhas jazem, abertas nas águas douradas. A dor está longe. E não mais de apartes a cogitar. O seu olhar cogitou nas botas de biqueira larga, restos de um peralta, nebeneinander. Contou os vincos de couro enrugado dentro do qual o pé de outro se tinha aninhado, quente. O pé que bate no chão em libertinagem, pé que não amo. Mas ficaste deliciado quando o sapato de Esther Osvalt entrou em ti: rapariga que conheci em Paris. Tiens, quel petit pied! Amigo fixe, alma gémea: amor de Wilde que não ousa dizer dizer o seu nome. O braço dele: o braço de Cranly. Agora deixar‑me‑á. E a culpa? Tal como sou. Tal como sou. Tudo ou nada. Do lago Cock, em longos laços, água fluía, cheia, cobrindo verdes‑douradas lagoas de areia, subindo, fluindo. A minha bengala de freixo irá a flutuar. Eu aguardarei. Não, passarão, passando, roçando as rochas baixas, remoinhando, passando. O melhor é acabar com isto o mais depressa possível. Escuta: falar de ondas em quatro palavras: sissu, rrss, rsseeis, uuus. Veemente hálito das águas entre cobras do mar, cavalos empinados, rochas. Chapinha em taças de rocha: flop, flop, slap: metido em barris. E, gasta, cessa a sua fala. Flui sussurrando, fluindo de largo, flutuante charco de espuma, flor desabrochada. Sob a maré enchente, viu as ervas contorcidas erguerem‑se lânguidas a agitar relutantes braços, levantando as saias, em água murmurante a oscilar e revirar frondas modestas de prata. Dia após noite; noite após noite; erguidas, submergidas e deixadas cair. Senhor, estão cansadas; e, perante, o sussurro, elas suspiram. Santo Ambrósio ouviu‑o, suspiro de folhas e de ondas, esperando, esperando a plenitude dos seus tempos, diebus ac noctius iniurias patiens ingemiscit. Para nenhum fim se reuniram, soltas, depois, em vão, continuam a fluir, voltando atrás: tear de lua." James Joyce, Ulisses, trad.port., Lisboa, Livros do Brasil, 1989, pp.65‑66; 78‑79. 4. Final do monólogo de Molly Bloom “sim ele disse que era uma flor da montanha sim isso somos todas flores um corpo de mulher sim essa foi a única verdade que disse em toda a vida e o sol hoje brilha para ti sim isso foi o que gostei mais porque vi que entendia ou sentia o que é uma mulher e eu sabia que sempre havia 13 de fazer dele o que quisesse e dei‐lhe todo o prazer que pude excitando‑o até que me pediu para dizer sim ao princípio eu não quis responder só olhi ao mar ao longe e o céu estava a pensar em tantas as coisas que ele não sabia de Mulvey e do Senhor Stanhope e Hester e do papá e do velho capitão Groves e os marinheiros a brincar aos papagaios e ao eixo e ao lava pratos como lhe chamavam no cais e a sentinela diante da casa do governador com a coisa à volta do capacete branco pobre diabo meio assado e as raparigas espanholas a rir‐se com as mantilhas e e os travessões altos e os pregões pela manha os gregos e os judeus e os árabes e não sei quem demónios mais de todos os extremos da Europa e Duke Street e o mercado da criação tudo a cacarejar junto de Larby Sharon e os pobres burros a resvalar meio da dormir à sombra nos degraus e os vagos enrolados nas mantas a dormir à sombra nos degraus das portas e as grandes rodas das carroças dos touros e o velho castelo com milhares de anos sim e aqueles mouros tão bonitos todos de branco e os turbantes como o reis pedindo para nos sentarmos um momentinho nas lojecas e Ronda com as velhas janelas das posadas 2 olhos a espreitar numa gelosia para o amante beijar as grades e as tabernas meio abertas à noite e as castanholas e a noite em que perdemos o barco em Algeciras o guarda‑nocturno a dar voltas por aí sereno com a sua lanterna e oh aquela tremenda profunda corrente oh e o mar o mar carmesim às vezes como fogo e os gloriosos poentes e as figueiras nos jardins da Alameda sim e todas as pequenas ruas estranhas e as casas vermelhas e azuis e amarelas e as roseiras e os jasmins e os gerânios e os cactos e Gibraltar como uma rapariga onde eu era uma Flor das montanhas sim quando pus a rosa nos meus cabelos como usavam as raparigas andalusas ou talvez eu devesse pôr uma vermelha sim e como ele me beijou debaixo da muralha e eu pensei que tanto faz ele como outro e depois pedi‑lhe com os olhos para pedir outra vez sim e depois ele pediu‑me se eu queria sim dizer sim minha flor da montanha e primeiro pus os braços à volta dele sim e puxei‑o para baixo para mim para que pudesse sentir os meus seios todos perfume sim e o coração batia‑lhe como louco e sim eu disse sim eu quero Sim.” James Joyce, Ulisses, trad.port., Lisboa, Livros do Brasil, 1989, pp.843‑844. 5. A Palavra “(ansiosamente) Diz‑me a palavra, mãe, se já a sabes. A palavra que todos os homens conhecem.” James Joyce, Ulisses, trad.port., Lisboa, Livros do Brasil, 1989, p.631 14