O ESCRITOR CRÍTICALITERÁRIA JORNAL DA UBE A temática do amor em Renata Pallottini Falar contigo Falo contigo e é como se falasse com essa qualidade de luz nas árvores. É perfurar o verde e emergir do outro (o úmido porvir dos vegetais). Falo contigo e compreendo o estado dos sons que surgem à noite, noite-em-claro. Falo contigo e entendo o que não tem sentido Amor é assim, palavra: lume comovido. Nesse poema de Renata Pallottini, a temática do amor passa pela metalinguagem e pela autodecifração. A idéia de simplicidade – uma das características da poesia contemporânea (além dos versos fragmentados e da tendência à oralidade) – tem uma relação direta com a vida e com a natureza, e os temas por ela visitados são sentidos de maneira profunda, graças ao modo como manipula as palavras. Além disso, a simplicidade deixa transparecer a busca pelo entendimento de si mesma e revela o processo de criação poética da autora. A poesia, no caso de Renata, “permaneceu como uma válvula de escape daquela solidão de cada um (...) Quando o silêncio se instala, voltase para dentro, ouve as vozes mais íntimas, reúne, nos rápidos apontamentos do papel, qualquer papel que ache por ali, e depois vai tratar de falar com os outros, pelo poema que diz coisas secretas.” (Medina,1985, p. 252). Todos esses fatores talvez sejam decorrentes da linguagem que se ajusta aos novos tempos, isso sem contar o dinamismo da integração do ser humano e da poesia no processo histórico em desenvolvimento. Ao fazer uma análise da poesia brasileira hoje, Coelho (1944, p. 309) diz que, “numa visão de conjunto, em que se superpõem e se mesclam tantas vozes poéticas, o que se nota em profusão é o canto do “Eu lírico”, é a poesia ou simplesmente voltada para a experiência de um “eu” dobrado sobre si mesmo, ou então debruçada sobre os graves temas existenciais de ontem, de hoje e de sempre: a angústia do ser solitário em face do mistério do Amor, da Vida e da Morte.” No poema em análise, a poeta, na busca pelo autoconhecimento – quem sou?, por intermédio do amor e da palavra (talvez seja possível considerar a metalinguagem também como uma forma de interior, tentando expressar um pouco de sua verdade), procura definir-se verdadeiramente (definindo o amor), com o objetivo de entender o que há por detrás de suas máscaras (É perfurar o verde/ e emergir o outro lado). É um processo de desnudamento, porque o caminho para chegar do outro lado pode exigir alguma transformação. Conforme Moisés (1996, p. 25), “do Romantismo até nossos dias, a poesia lírica voltada para o autoconhecimento vai-se tornando cada vez mais estranha. Na tentativa de responder à inocente pergunta `Quem sou eu`, o poeta se afasta da idéia geral de ser humano, humanidade, para mergulhar fundo naquilo que o caracteriza enquanto indivíduo. Com todas as suas peculiaridades e indiossincrasias.” O autoconhecimento (compreendo o estado dos sons que surgem..., entendo o que não tem sentido), portanto, passa pela temática do amor e tem como instrumento a metalinguagem (Amor é assim, palavra:/ lume comovido.) Para a poeta, o processo de autoconhecer-se tem um caráter de contradição e estranhamento – dada a complexidade interior e a eterna luta para se encontrar a real posição no mundo –, mesmo porque aqui se está falando de um mundo subjetivo, inalcançável aos que assistem de fora, daí a concepção de poesia ser sublime, particular e vivenciada como uma forma de redenção da alma. Por meio da poesia, dá-se um tratamento especial às potencialidades da palavra, renovando-a e, dessa forma, provocando no leitor variadas percepções da realidade. A tentativa de autodefinição se verifica no aspecto formal, pois o número de versos é decrescente ao longo das estrofes: nas três primeiras, há quatro versos: na penúltima estrofe, com três versos, a poeta parece estar no caminho de autodefinir-se (passa a entender o que não tem sentido); na última estrofe, então, a definição, o que justifica somente haver apenas dois versos (porque uma definição não se explica, define-se e pronto: Amor é assim...). Na tentativa de autodefinição, nos segundos versos das quatro primeiras estrofes, há o uso da conjunção aditiva “e”, além de a poeta recorrer ao auxílio das imagens nas três primeiras. Na última estrofe, ao contrário, os dois-pontos são utilizados com a intenção de resumir, afirmar (novamente a idéia de que não há muito que explicar). O amor apresenta-se metaforizado. Interpretá-lo e entendê-lo é exercício dos mais prazerosos, como ocorre em Falar contigo, em que a metaforização da temática do amor atinge o ser a quem se ama e tem relação com a natureza. Falar com o amado é algo comparável a falar com a luz das árvores. É como perfurar o verde. Falar com o amado traz a compreensão e o entendimento até do que não tem sentido, ou seja, o entendimento das coisas – ou do olhar que se lança sobre as coisas – depende do amado, só o amado pode proporcionar. É como se os olhos de quem escreve precisasse dos olhos do outro para ver a luz, tanto que o amor (a palavra) é comparado ao “lume comovido”. Não é à toa a escolha léxica relativa à “luz” ou ao jogo de luz e sombra (“luzes das árvores”, “noite”, “noite-em-claro”, “lume”), pois, simbolicamente, a luz representa a saída das trevas (o não definir-se). A luz relacionada com a obscuridade – “noite-em-claro” – simboliza os valores complementares ou alternantes de uma evolução, ou seja, uma época sombria é seguida de uma época luminosa pura, regenerada: é autoconhecimento (Chevalier; Gheerbrant, 1999, p. 567). E não seria essa uma das funções do amor? Permitir o encontro de si mesmo no outro? Esse mesmo jogo de luz e sombra evidencia uma voz interior (obscuridade) e uma voz exterior (luminescência), representadas pela escolha lexical do verbo “falar”, do que se depreende uma associação significativa entre o mundo descrito (a natureza) e o ser que o ocupa. De acordo com Moisés (1996, p. 37), “Ao longo da história da poesia, o mergulho no mundo interior, que detectamos no tema do autoconhecimento, costuma vir acompanhado de seu contraponto: o voltar-se para fora. Movimentos opostos (...), voltar-se para dentro e voltar-se para fora, em poesia, freqüentemente se cruzam e se complementam, quando não se confundem. O fato de encontrar no próprio eu um de seus temas prediletos não quer dizer que o poeta seja (...) um indivíduo recolhido em si mesmo, sem qualquer contato com o mundo exterior. ...) Ao buscar o autoconhecimento, o poeta sabe que de um modo ou de outro, isso o porá em contato com a realidade que o cerca – como se conhecer-se fosse sinônimo de situar-se. Tradicionalmente, a realidade que cerca o poeta é a natureza.” Todo o processo de construção poética verificado em Falar contigo remete à tentativa de autodefinição: a busca por definir o amor reflete a busca pela definição de si mesmo, e isso só é conseguido por meio da palavra e do “falar” (a consciência moderna de que é de palavras que a poesia se faz, de que é a palavra a matéria-prima do produto poético). E nada melhor do que a grandiosidade da natureza metaforizada (“qualidade de luz das árvores”, “perfurar o verde”, “porvir dos vegetais”, “noite”, etc.) para expressar a imensidão íntima. Nas palavras de Bachelard (1993, p. 190-191), imensidão está em nós. Está ligada a uma espécie de ser que a vida refreia, que a prudência detém, mas que retorna na solidão, (...) A imensidão é o movimento do homem imóvel. A imensidão é uma das características dinâmicas do devaneio tranqüilo. Embora pareça a paradoxal, muita vezes é essa imensidão interior que dá seu verdadeiro significado a certas expressões referentes ao mundo que vemos. Em outras palavras, não se percebe aqui o amor idealizado do barroco ou do romantismo, mas, sim, a idéia de um amor através do qual o ser humano procura a “confirmação de si próprio (...) Através do amor ele busca eliminar de si a carência, a vaga e indefinida sensação de falta, de privação, de incompletude (...)” (Maria, 2002, p. 60). Impossível não lembrar Carlos Drummond de Andrade. Percebe-se no poema que a autodecifração pela ótica do amor depende da visão do outro (dos olhos do outro), da aprovação do outro, enfim, no caso de Falar contigo, do “falar” com o outro. O entendimento do que não tem sentido ou do que é o amor só é possível por intermédio da opinião do outro. De acordo com Medina (1985, p. 252), “talvez seja a antiga menina em busca da aprovação dos outros: no fundo quer ser amada através de coisas bonitas. Desse esforço de comunicação pretende extrair uma resposta de amor. Que arma mais eficaz que não a poesia?” É bem aquela idéia de que “o amor do outro viabiliza o nosso amor por nós mesmos.” (Colasanti, 1984, p. 84). Em Falar contigo, a descoberta do que seja o amor, bem como a descoberta de si mesmo, passa automaticamente pelos caminhos do outro. Em Renata Pallottini, percebe-se um prolongamento do Eu, uma ponte para o outro, uma descoberta do mundo. É uma expressão poética inconfundível e que nada tem de improviso, ou artifício, porque resulta de uma longa e intensa vivência lírica, de toda uma “luta com a a palavra”, para citar novamente Drummond. A poeta, munida de intuição criadora, resgata o poético que se encontra em momentos simples e nos atos de comunhão do ser humano. Amor, metalinguagem, autodecifração: faces de um mesmo ser na busca pelo expressar-se e reconhecer-se. Referências bibliográficas Gaston Bachelard. A poética do Espaço. São Paulo, Martins , 1993 (coleção Tópicos). Jean Chevalier e Alain Gheebrant. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1999. Nelly Novaes Coelho. Literatura e Linguagem. Petrópolis: Vozes, 1993. Marina Colasanti. E por falar em amor. Rio de Janeiro: Salamandra, 1994. Luzia de Maria. Drummond: um olhar amoroso. São Paulo: Escrituras, 2002. Cremilda de Araújo Medina. A posse da terra: o escritor brasileiro hoje. Lisboa: Sociedade Industrial, Gráfica Telles da Silva, 1985. Carlos Felipe Moisés. Poesia não é difícil. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1996. JÚLIO RÖCKER NETO, paranaense, é graduando do último ano de Letras da PUC do Paraná. ω No 100 - Outubro/2002 - Pág. 14 ω Júlio Rocker Neto