Julho| 2013 O Brasil no fim do tsunami O objetivo desta nota é analisar as possíveis respostas da política econômica brasileira diante das mudanças importantes que se observaram no ambiente econômico global nas últimas semanas. Referimo-nos aqui essencialmente à sinalização do Fed de que o programa de compra de ativos (QE3) deve ser gradualmente reduzido a partir de algum momento antes do final deste ano, dando um primeiro passo no processo de normalização das condições monetárias nos EUA. O cenário-base do Fed contempla o fim do QE3 até meados do ano que vem e o início do processo de elevação da Fed Fund rate a partir de meados de 2015. Deve-se observar que não há, até aqui, evidências de um cenário de crise global. Pelo contrário, a sinalização mais clara de redução dos estímulos monetários nos EUA é uma decorrência natural da diminuição de riscos em torno do cenário de recuperação daquela economia. Ao mesmo tempo, as evidências até aqui disponíveis sugerem que esse processo de redução dos estímulos poderá ocorrer de forma gradual, em um contexto em que a inflação ainda surpreende para baixo. Ainda assim, estamos diante de uma mudança que deverá continuar a ter efeitos relevantes nos fluxos de capitais para países emergentes. Contudo, a extensão dos efeitos sobre cada um deles dependerá em grande medida da robustez de seus fundamentos. Vemos o Brasil, sob essa ótica, em uma posição bastante vulnerável. Talvez possamos decompor a fragilidade do Brasil em dois componentes principais. Em primeiro lugar, tem havido um processo contínuo de revisão para pior da percepção dos mercados acerca do crescimento potencial brasileiro. Enquanto até meados do ano passado havia uma parte relevante dos analistas que via no baixo crescimento um fenômeno de natureza puramente cíclica, nos últimos trimestres observa-se uma percepção cada vez mais disseminada de queda do crescimento sustentável, em razão dos efeitos deletérios da política econômica dos últimos seis anos sobre a produtividade, a poupança e o investimento. O segundo componente da nossa fragilidade diz respeito à política fiscal. Há uma discussão nesse front, que perdura há pelos menos uma década, sobre os efeitos negativos da má qualidade do nosso equilíbrio fiscal sobre o crescimento potencial. No último ano, contudo, evoluímos para uma situação mais grave e urgente. Estamos diante de um enfraquecimento do arcabouço institucional que garantiu o equilíbrio fiscal, ainda que qualitativamente pobre, desde 1999. O advento de abatimentos cada vez mais amplos à meta de superávit primário reduziu a capacidade dela de parametrizar as expectativas dos agentes econômicos em relação ao resultado que efetivamente será entregue. À medida que a politica fiscal se torna mais discricionária e se enfraquece o compromisso com a geração de superávits primários, é inevitável que haja uma percepção de maior incerteza em relação à execução fiscal neste e nos próximos anos. Além da maior incerteza em relação à geração de superávits primários, há um segundo problema que eleva o risco fiscal: a falta de transparência. A contabilidade criativa e a utilização de instrumentos parafiscais tornam impossível avaliar a real postura fiscal a partir da trajetória de superávits primários, mesmo que não houvesse tanta incerteza em torno dela. Em resumo, assistimos nos últimos dois anos a um acelerado enfraquecimento do arcabouço que nos assegurou um equilíbrio fiscal, ainda que frágil, a partir de 1999. Somando-se a isto a deterioração das perspectivas de crescimento potencial, há uma tendência de piora da percepção de risco Brasil. Em um momento em que fluxos de capitais se tornam mais seletivos, economias em uma dinâmica desse tipo tendem a sofrer mais. Possíveis respostas da política econômica Em um regime de câmbio flutuante, a transmissão de choques desse tipo se dá primariamente através da depreciação da moeda. Diante do encolhimento dos fluxos de capital, a taxa de câmbio se desvaloriza e coloca em marcha, através do sistema de preços, o ajustamento da economia. A depreciação da taxa de câmbio real eleva, por definição, o preço relativo de bens comercializáveis (C) frente aos não-comercializáveis (NC). O sistema de preços gera incentivos, assim, para um processo de realocação de trabalho e capital para o setor produtor de bens comercializáveis. Com alguma desafasagem, a ampliação da oferta desses bens permite que se ampliem as exportações e se reduzam as importações. Observe-se, porém, que esse processo envolve redução da oferta de bens não-comercializáveis. Para que essa redução de oferta não se traduza em elevação dos preços desses bens é necessário que haja alguma contração de demanda. O ajuste externo, nesse sentido, requer que a política econômica seja calibrada para arrefecer o crescimento da absorção doméstica. Caso contrário, não se produzirá a desejada mudança de preços relativos (preços de C sobem enquanto os de NC ficam estáveis), que é a própria definição da depreciação do câmbio real. Teríamos, ao contrário, apenas uma depreciação nominal traduzida em aceleração generalizada dos preços, tanto de C como de NC. Como produzir o arrefecimento da absorção doméstica? Aqui entra novamente a política fiscal. Vimos antes que o enfraquecimento do arcabouço fiscal tende a levar a uma piora da percepção de risco, que potencialmente magnifica a redução dos fluxos de capital no contexto de normalização da política monetária norte-americana. Além disto, a resposta ótima envolveria uma política fiscal mais contracionista, de forma a obter o necessário arrefecimento da absorção doméstica exigindo um esforço menor da política monetária. Julho| 2013 Vemos, contudo, um espaço muito limitado para uma resposta consistente nessa direção. As autoridades ainda parecem entender que o baixo crescimento dos últimos anos decorreria da insuficiência de demanda, e nesse sentido uma política fiscal expansionista poderia ser benéfica. Além disto, o padrão histórico indica uma tendência de aceleração no crescimento do gasto público na segunda metade de mandatos presidenciais. O desafio da política monetária Caso se confirme a ausência de respostas mais consistentes no campo fiscal, o trabalho da política monetária torna-se mais difícil, tanto porque eleva-se a chance de depreciações mais fortes do câmbio, como porque é mais difícil assegurar que, diante delas, a elevação da inflação seja limitada e temporária. Há três elementos que ampliam os desafios da política monetária no contexto atual. O primeiro é o fato de que há fortes evidências de que a economia esteja em uma situação de pleno emprego: a taxa de desemprego está nos menores níveis históricos, a inflação está em trajetória de aceleração e o déficit em conta corrente tem se ampliado vigorosamente. Nesse contexto, fica mais claro que, diante da depreciação do câmbio, é necessário conter o crescimento da absorção doméstica para se evitar uma situação de excesso de demanda no setor NC, que poderia produzir uma aceleração mais generalizada e permanente dos preços. O segundo elemento que dificulta o trabalho da política monetária é o fato de a inflação, mesmo antes dos efeitos de qualquer depreciação, já estar muito alta. Em geral, diante de um choque que produza desvalorização apreciável do câmbio, a resposta típica da política monetária envolve acomodar os efeitos primários, ou seja, a elevação dos preços de bens comercializáveis. Exatamente porque faz sentido acomodar os efeitos primários de choques de oferta é que países como o Brasil optaram por definir uma banda em torno da meta de inflação. Ela serve para acomodar os efeitos primários, cabendo à política monetária assegurar o retorno para a meta em um intervalo razoável. Ocorre que, no caso atual, a inflação já está no topo do intervalo em torno da meta. Por isto, não há espaço para acomodar os efeitos primários da depreciação cambial sem que a inflação ultrapasse o teto da banda, que é de 6,5%. O terceiro elemento que dificulta o trabalho da política monetária neste momento é o fato de que a ancoragem de expectativas se enfraqueceu muito nos últimos tempos: a pesquisa Focus mostra desvios crescentes das expectativas em relação às metas em horizontes cada vez mais longos. Nessa situação, elevam-se os riscos de que a depreciação do câmbio produza uma aceleração mais forte e persistente da inflação. Conclusões Argumentamos aqui que o Brasil parece ter se colocado em uma posição de maior vulnerabilidade a uma situação em que haja redução de fluxos de capitais a países emergentes e maior escrutínio dos investidores em relação aos fundamentos. Isto decorre da percepção de acentuada piora em relação ao crescimento potencial brasileiro e do enfraquecimento das instituições que asseguraram um equilíbrio fiscal, ainda que altamente imperfeito, desde 1999. Eleva-se, assim, o risco de depreciações cambiais mais fortes e persistentes diante de uma piora das condições globais de liquidez. É verdade que o setor público brasileiro ainda mantém uma posição ativa em dólar relevante, o que faz com que, diante de uma depreciação do real, haja uma redução da dívida pública como proporção do PIB. Isto contrasta fortemente com a situação que vivemos em 2001 e 2002, quando a posição passiva em dólar do setor público produzia o efeito inverso diante de um movimento de depreciação do real. Ainda assim, parece-nos claro que nossa vulnerabilidade elevou-se apreciavelmente nos últimos 5 anos. Além disto, o desafio de manter a inflação sob controle para uma dada depreciação é dificultado em um contexto em que a política fiscal deve se manter expansionista, as expectativas de inflação sofrem um processo de desancoragem, a absorção doméstica cresce a um ritmo forte e a inflação já está no topo do intervalo em torno da meta mesmo antes dos efeitos da depreciação. A evolução da economia brasileira nos últimos dois anos foi marcada por piora apreciável dos tradeoffs entre inflação e crescimento. A depreciação do câmbio tende a acentuar essa tendência. Os riscos estão na direção de um crescimento um pouco menor do que poderíamos supor há alguns meses, ao mesmo tempo em que inflação pode se revelar mais alta, a despeito da perspectiva de uma elevação mais forte da taxa Selic. Alexandre Bassoli Economista-chefe do Opportunity e Mestre em Economia pela USP.