CONSIDERAÇÕES CRÍTICAS SOBRE A APLICAÇÃO DO JUÍZO DE PONDERAÇÃO NOS CASOS DE COLISÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS Wanderley Soares Dantas1 RESUMO: Neste artigo será analisada a solução jurídica normalmente empregada para casos de colisão entre os direitos fundamentais. O eixo de condução será a problematização em torno da aplicação da técnica de ponderação proposta por Alexy. Entende-se que o recurso da ponderação gera deficiências ao discurso do direito, na medida em que remete o julgador a argumentos extrajurídicos que estão fora de sua alçada, transformando assim o conflito jurídico em um embate entre concepções ético-políticas diferentes. Para fazer um contraponto ao método proposto por Alexy na resolução de conflitos entre direitos fundamentais, o marco teórico adotado consistirá na teoria discursiva do direito formulada por Habermas. A metodologia a que se recorreu foi epistemológica, problematizando conceitos e teorias do campo jurídico, com base no levantamento bibliográfico de obras da lavra de Alexy e Habermas sobre a superação de conflitos entre direitos fundamentais. Conclui-se que a teoria discursiva confere uma maior racionalidade à atuação do Poder Judiciário diante desses embates, o que correspondeu aos objetivos propostos de evidenciar que muitas vezes a resolução dos conflitos entre direitos fundamentais conteudisticamente preenchida pela disputa entre os direitos encampados pelos micro e pequenos empreendedores e os direitos gerais dos demais agentes do mercado é fundamentada em valores compartilhados pelos julgadores. Palavras-chave: colisão de direitos fundamentais, máxima otimização dos princípios, método da ponderação, discurso de justificação, discurso de aplicação. 1 DANTAS, Wanderley Soares. Economista e Advogado, Analista Jurídico do SEBRAE/AC 2 1. Introdução A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 arrola inúmeros direitos fundamentais que devem ser observados pelo Estado nas relações com os particulares, e também nas relações horizontais estabelecidas entre esses. Em regra, esses direitos fundamentais são explicitados por comandos dotados de elevado grau de abstração. Deles não se extrai de imediato o suporte fático, expressão utilizada pelo constitucionalista Virgílio Afonso da Silva que significa “aqueles fatos ou atos do mundo que são descritos por determinada norma e para cuja realização ou ocorrência se prevê determinada conseqüência jurídica: preenchido o suporte fático, ativa-se a conseqüência jurídica” (SILVA, 2010, pp. 67 e 68). Para ilustrar. Nas disposições normativas de direito penal, a definição do suporte fático não se reveste de maiores complicações. Considerando o art. 121 do Código Penal que preconiza: “Matar alguém: Pena – reclusão de seis a vinte anos”, tem-se que a sanção estipulada (conseqüência jurídica) ocorre tão somente com a ocorrência daquilo que o dispositivo prescreve, ou seja, alguém matar outra pessoa (suporte fático). Já nas disposições que enunciam direitos fundamentais o suporte fático não é definido de imediato. Na norma que dispõe “é garantido o direito de propriedade”, o que se protege? Contra quem? Qual a conseqüência jurídica que pode daí decorrer? Para que essa conseqüência ocorra, é necessária a ocorrência de quais fatos? Uma vez que todas essas considerações devem ser levadas em conta na definição do suporte fático dos direitos fundamentais insculpidos na Constituição, tem-se que não raro ocorrem conflitos entre os mesmos. E a resolução dessa questão tem sido uma constante no pensamento jurídico. Entre as variadas teorias sobre o tema, este trabalho adotou duas: a de Alexy, que é a mais difundida na prática forense, e a de Habermas, que a ela se contrapõe. O eixo condutor desta produção científica será a apresentação das deficiências que a aplicação da técnica da ponderação gera ao sistema jurídico, na 3 medida em que remete o julgador a argumentos extrajurídicos que estão fora do seu sistema de atuação, transformando assim o discurso jurídico em um embate entre diferentes concepções valorativas, éticas, políticas e culturais. Com esse intuito, será utilizada a teoria discursiva do direito, formulada por Habermas e também abordada por Günther. Questões que envolvem conflitos entre direitos fundamentais são de certa forma corriqueiras no processo de afirmação dos interesses de micros e pequenos empreendedores frente aos interesses do mercado em geral. Isso justifica a relevância para o Sistema “S” dessa pesquisa de cunho eminentemente epistemológico. Inicialmente, será apresentada a teoria de Alexy para depois ser feita uma exposição das críticas levantas por autores como Günther e Habermas àquela proposta teórica. Por fim, apresentar-se-á a réplica de Alexy às considerações desses autores, problematizando-se na sequência sobre seus pressupostos e sua aplicação no Brasil. 2. Apresentação da teoria de Alexy. Um contraponto: Günther Para a resolução de conflitos entre os direitos fundamentais, ALEXY (2003, pp. 131-134) sustenta que o método a ser empregado pelo aplicador do direito deve ser o da ponderação. Deve se avaliar em que medida cada direito contraposto tem de ser aplicado ao caso concreto, de forma a se ter uma otimização máxima. Vale a pena fornecer um exemplo. Os jovens integrantes de uma banda de rock beneficiados pelo Projeto de Fomento a Cultura do SEBRAE/AC, na tentativa de se tornarem mais populares, decidem tocar suas músicas em uma movimentada rua da capital acreana, que fica nas redondezas de um hospital de grande circulação. Vale ressaltar que há inúmeras placas exigindo silêncio aos transeuntes dessa região. Frente à situação narrada, os responsáveis pelo hospital decidem recorrer ao Poder Judiciário local para impedir que os jovens continuem a se reunir no local e lá expressarem suas habilidades musicais. 4 Ao se deparar com a indagação se seria justa a proibição de manifestações culturais nas proximidades de hospitais, fazendo uma analogia, para ALEXY (2003, pp. 131-140), o jurista deveria pensar da seguinte forma: (i) a Constituição garante a todos o direito fundamental de liberdade de expressão artística, intelectual e de pensamento; (ii) o direito à vida também é conferido pela ordem constitucional aos doentes que estão em repouso em um dado hospital; (iii) diante de uma situação fática em que esses dois direitos são colidentes, o aplicador do direito utilizará o método da ponderação para conferir um valor superior ao direito à vida, considerando que o direito constitucional de liberdade de expressão deve ser preservado em todas suas expressões, a não ser quando representar risco de vida para os que deveriam estar submetidos a um quadro de repouso físico e mental ou quando afrontarem a ordem pública, impedindo, por exemplo, trânsito de veículos automotores em uma região central. É contra o uso do método de ponderação para a resolução de conflitos entre direitos que Günther se posiciona. Para ele, não há de se falar em colisão de direitos fundamentais e de uma ponderação em que um direito deverá ser resguardado em detrimento de outro (BARBOSA, 2008, pp. 23-37). Na aplicação do direito, o método empregado pelo juiz deverá ser um que considere o momento de justificação da norma e seu momento de aplicação. Esse constitucionalista alemão entende que no caso acima narrado, por exemplo, não há uma colisão do direito fundamental de liberdade de expressão artística, intelectual e de pensamento com o direito à vida. Isso não ocorre justamente pelo fato do direito de liberdade de expressão não ser aplicado ao caso. Ele é uma salvaguarda justificável, estabelecida mediante um processo legislativo adequado, devendo, pois, ser observado pelo Estado e pelos particulares. Contudo, ele não resiste ao momento de aplicação da norma, pois não deve ser aplicado em um contexto em que se possa expor a riscos consideráveis a vida de outras pessoas, sendo que seu exercício poderia se dar de inúmeras formas não tão lesivas. Como o direito de liberdade de expressão não é aplicável ao caso acima, não se poderia falar em colisão de direitos e, conseqüentemente, desnecessário se faz o recurso da ponderação. Daí se pode argumentar: ah, isto é 5 apenas uma filigrana jurídica. Chegar-se-á na maioria dos casos a um mesmo resultado, tendo apenas o diferencial da técnica argumentativa empregada para justificá-lo. Günther e outros críticos, todavia, sustentam que não, como se verá a seguir. 3. Críticas que Habermas dirige às formulações teóricas de Alexy Habermas inicia sua crítica à formulação teórica de Alexy sustentando que a ponderação dos direitos os reduz ao nível de metas, políticas e valores. Eles perdem, assim, o caráter normativo que lhes é característico. Nas palavras do constitucionalista, “se em casos de colisão todas as razões podem assumir o caráter de argumentos de política, então a parede de fogo erguida no discurso jurídico pela compreensão deontológica de normas e princípios jurídicos desmorona” (tradução nossa) (ALEXY, 2003, p. 134). Habermas entende ainda que não há padrões racionais para que se efetue a ponderação dos direitos em situações de conflito. Em suas palavras: “como não existem padrões racionais aqui, o sopesamento realiza-se de forma arbitrária ou irrefletidamente, de acordo com padrões de costumes e hierarquias” (tradução nossa) (ALEXY, 2003, p. 134). Por fim, outra objeção levantada é a de que a ponderação de valores leva as normas legais a deixarem de ser definidas por conceitos como certo e errado, correto e incorreto, para serem definidas por conceitos como adequado ou inadequado dentro de uma ordem concreta de valores. 4. Réplica de Alexy às críticas feitas a sua teoria Robert Alexy inicia sua réplica introduzindo a estrutura do método de ponderação como solução de conflitos entre direitos fundamentais, nos termos abaixo estabelecidos. A ponderação está compreendida pelo princípio da proporcionalidade, que consiste em três subprincípios: adequabilidade, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito (ÁVILA, 2009, pp. 168, 172 e 175). Todos 6 esses princípios expressam a idéia de otimização e os direitos constitucionais, enquanto tratados como princípios, são mandados de otimização. Mas o que significa entender os princípios como mandados de otimização? Significa que os princípios são normas e devem ser aplicados com a máxima eficácia possível, considerando-se as circunstâncias fáticas e legais. Contudo, devido à amplitude em que suas bases são estabelecidas, é comum que os princípios estejam em permanente situação de conflito aparente. E é para que a aplicação desses princípios seja otimizada que, na visão de ALEXY (2003, pp. 131– 140), é necessário o recurso à ponderação. Voltando aos subprincípios que constituem o princípio da proporcionalidade, o qual engloba a ponderação, tem-se que os da adequabilidade e da necessidade referem-se à otimização enquanto aquilo que é factualmente possível. O princípio da adequabilidade deve ser entendido como aquele que impede a restrição do âmbito de proteção de algum direito fundamental sem que dela decorra uma respectiva promoção de um outro princípio tão ou mais relevante (ÁVILA, 2009, p. 168). Se, pois, algum direito pode ser exercido sem afetar outros constitucionalmente assegurados, não há porque restringir seu exercício. Já o princípio da necessidade preconiza que a interferência no âmbito de proteção de um direito fundamental deve ser a menos intensa possível, ou seja, aquela que represente menos custos ao particular (ÁVILA, 2009, p. 172). Diferentemente dos princípios de adequabilidade e necessidade que expressam uma otimização relativa às possibilidades fáticas, o princípio da proporcionalidade em sentido estrito tem como referencial as possibilidades legais. Segundo esse princípio, a não satisfação de um direito em detrimento de um outro apenas se justifica quando a satisfação deste gerar ganhos maiores que a não satisfação daquele. Alexy explica com primor como se dá a aplicação prática do princípio da proporcionalidade em sentido estrito, nos seguintes termos: A Lei do Sopesamento mostra que a ponderação pode ser dividida em três fases. A primeira fase é uma questão de estabelecer o grau de não satisfação, ou prejuízo, ao primeiro princípio. Isto é seguido por uma 7 segunda fase, em que a importância de satisfazer o princípio concorrente é estabelecida. Finalmente, a terceira fase responde à pergunta de se deve ou não a importância de satisfazer o princípio concorrente justificar o prejuízo, ou não-satisfação, do primeiro (tradução nossa) (ALEXY, 2003, p. 136). Feitas essas reflexões iniciais, ALEXY (2003, pp. 135-137) inicia sua réplica. Quanto à primeira objeção levantada por Habermas, a rebate, em linhas gerais, com o argumento de que é possível um juízo racional acerca da intensidade de uma interferência no âmbito de proteção dos direitos constitucionais e da escala de importância que cada um tem no desenho normativo. Como ilustração de que o método da ponderação como solução para o conflito entre direitos fundamentais pode ser utilizado racionalmente, Alexy traz alguns julgados da Corte Constitucional Alemã. No primeiro deles, a Corte decidiu que a obrigação de os fabricantes de cigarros colocarem advertências em seus produtos sobre os perigos à saúde provocados pelo fumo é uma interferência relativamente menor na liberdade de iniciativa. Diferentemente, banir todos os cigarros representaria uma grave interferência. Considerando-se que os riscos à saúde pública decorrentes do tabaco são elevados, tem-se que as razões que justificariam a interferência na atividade comercial relacionada à cadeia produtiva do cigarro são bastante consideráveis. Relacionando uma intensidade de interferência leve, derivada da mera obrigação de se reproduzirem os prejuízos à saúde provocados pelo fumo nos produtos do tabaco, com razões bastante consideráveis para interferências graves, tem-se, sob o exame da proporcionalidade em sentido estrito, que é válida a referida obrigação estabelecida aos que exercem atividade econômica nesse ramo. Uma segunda decisão trazida por Alexy diz respeito a um caso em que se vislumbra um conflito entre liberdade de expressão e direitos da personalidade. Nos pólos do litígio estavam a revista humorística Titanic e um oficial da reserva dos Estados Unidos. O motivo da querela foi o uso das expressões “assassino nato” e “aleijado” pela publicação citada ao se referir ao oficial da reserva paraplégico, que tinha sido convocado à ativa. 8 A Corte Constitucional alemã entendeu que a utilização da expressão “assassino nato” no contexto da sátira, em que outros também foram chamados com termos semelhantes, não configurou um dano injusto, grave, ilegal contra os direitos de personalidade do oficial paraplégico. Sendo assim, não seria cabível impor uma multa ao folhetim por causa dessa expressão. Se diferente fosse, ter-se-ia um dano moderado desproporcional a uma interferência severa no direito constitucional de liberdade de expressão, haja vista que os produtores da revista ficariam receosos de continuar realizando seus trabalhos da forma que tinham feito até então. No que tange ao emprego da expressão “aleijado”, a Corte vislumbrou um grave prejuízo aos direitos de personalidade titularizados pelo oficial tetraplégico. Entendeu-se que o uso da expressão “aleijado” em referência a uma pessoa portadora de necessidades especiais era humilhante e expressava uma falta de respeito de tal ordem contra a dignidade da vítima que justificaria uma grave interferência no exercício da liberdade de expressão da revista Titanic. Após a exposição desses dois casos julgados pela Corte Constitucional alemã, Alexy conclui que neles se depara com o uso do método da ponderação para a solução de conflitos entre os direitos fundamentais. E mais, no pano de fundo desses julgados, estariam presente os juízos de certo e errado, correto e incorreto, conforme sua explanação: Juízos sobre o aumento da proporcionalidade trazem, como todos os juízos, uma pretensão de correção, e esta pretensão é apoiada por juízos sobre graus de intensidade enquanto razões. Isso é suficiente para o argumento de que o balanceamento não remove nada do reino de justificação e correção (tradução nossa) (ALEXY, 2003, p. 139). Sendo assim, Alexy sustenta que o uso do método da ponderação é racional (e não arbitrário como defende Habermas), além de o juízo de proporcionalidade em sentido estrito ser pautado pelas noções de certo e errado (e não apenas pelas de adequado e inadequado). 5. Experiência jurisprudencial brasileira Conforme entendimento do Ministro Gilmar Mendes, o Supremo Tribunal Federal tem acolhido em julgados a formulação teórica de Robert Alexy. Para corroborar seu ponto de vista, ele cita em sua obra a decisão em que se 9 concedeu um habeas corpus a um suposto pai, que se recusava a retirar uma amostra de sangue para exame de DNA em uma ação de investigação de paternidade e que, por isso, recebeu uma ordem judicial para fazê-lo, sob pena de condução sob vara (BRANCO, COELHO e MENDES, 2008, pp. 287-288). O relator originário do caso entendeu que a interferência sobre o direito à incolumidade corporal do indivíduo era mínima quando confrontada com o interesse do investigante de ter conhecimento de sua identidade real. Já a corrente vitoriosa recorreu a uma ponderação diversa, conferindo um peso maior à interferência provocada sobre o direito à intangibilidade corporal do suposto pai do que à pretensão do investigante de exigir o exame. 6. Problematizando as considerações anteriores De tudo que foi exposto sobre a teoria de Alexy, depreende-se que para ele a ponderação é um método que aplicado aos casos concretos produziria uma decisão correta para o deslinde do conflito entre direitos fundamentais. É isso que o constitucionalista Leonardo Barbosa, egresso da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, sobreleva com bastante primor em seus estudos sobre o tema. Com ele, a palavra: Para comprovar essas afirmações, basta checar a posição de Alexy em sua análise do caso Titanic. O exemplo que ele traz para demonstrar por que a ponderação deve ser entendida como método racional (fundamentado) de solução de colisões de direitos fundamentais revela exatamente o oposto. Reconhecendo ser “polêmico” se a denominação “assassino nato” representa ou não uma afetação apenas moderada à imagem do oficial da reserva alemã, ele defende que chamá-lo de “aleijado” é certamente humilhante e desrespeitoso, portanto, mais grave. Porém o que está em jogo não é quão grave foi a ofensa ao oficial. Não interessa o “grau de afetação” de seu direito em comparação ao direito da revista. De um ponto de vista deontológico, a questão é se o direito à honra ou à imagem do oficial proíbe o tipo de manifestação veiculado pela Titanic ou, se ao contrário, a matéria representa (em um, nos dois ou em nenhum dos casos) tão-somente o exercício regular da liberdade artística ou de expressão. Não há o que ser ponderado aí. Quanto à proibição de circulação da Titanic, cabe definir se, ocorrendo violação à honra ou à imagem do oficial, ele teria o direito de impedir a circulação da revista ou se o dano que lhe fora imposto deveria ser resolvido de outra maneira (publicação da sentença no mesmo espaço utilizado para matéria, condenação pecuniária pelo dano proporcional à circulação da revista, etc.). Alexy não hesita em afirmar que os argumentos da Corte são “bons argumentos”. Entretanto, seriam argumentos jurídicos? (BARBOSA, 2008, p. 33) 10 Daí se tira um gancho para se fazer mais uma crítica à Alexy. O uso do método da ponderação para a solução de conflitos entre direitos fundamentais remete o julgador a outros tipos de argumentos que estão fora de sua alçada, transformando o discurso jurídico em uma disputa entre concepções ético-políticas diferentes. Uma alternativa que o jurista tem para contornar os conflitos aparentes entre direitos fundamentais é concluir que a pretensão do indivíduo envolvido na querela não se inclui no âmbito de proteção do direito que evoca. Vale lembrar aqui a afirmação de Virgílio Afonso da Silva de que o suporte fático das disposições que enunciam direitos fundamentais nem sempre se mostra evidente e indiscutível. É dessa forma que Klaus Günther procede (BARBOSA, 2008, p. 27-34). Ao defender a existência do discurso de justificação e do discurso de aplicação, ele simplesmente se afasta da problemática do conflito aparente entre direitos fundamentais para sustentar que não há choque algum. Simplesmente um dos direitos não é aplicável ao caso. Faz-se, assim, uma restrição do suporte fático do direito em questão. Nada melhor do que um exemplo para finalizar as reflexões acima lançadas sobre a teoria de Günther como uma alternativa para o enfrentamento dos conflitos aparentes entre direitos fundamentais. É de reconhecimento universal a validade da norma moral de que não se deve mentir. Contudo se um cidadão conhece o paradeiro de um militante de esquerda procurado por um regime autocrático, deve ele compartilhar suas informações com os agentes do Estado, entregando-o? Vamos à teoria de Günther, assim estruturada: Para Günther, o discurso de justificação responde pela produção de normas de ação válidas. A validade das normas, por sua vez, atende a uma exigência de universalização (isto é, “interesse geral em um seguimento generalizado”). Esta exigência é formulada por Günther na forma de um “princípio da universalização”, que, em sua versão fraca, enuncia o seguinte: “Uma norma é válida se as conseqüências e efeitos colaterais [side effects] resultantes de sua observação generalizada para os interesses de cada indivíduo puderem ser aceitos por todos eles, sob as mesmas circunstâncias”. A cláusula sob as mesmas circunstâncias pretende indicar que a exigência de universalização (da qual depende a validade normativa) deve ser condicionada, em razão da impossibilidade de preencher as 11 condições ideais de tempo infinito e saber ilimitado. Este índice de indeterminação, com o qual o princípio passa a ser equipado, aclara dois modos diferentes de oferecer razões para a ação. O primeiro associa-se à produção de normas válidas, oferecendo razões prima facie para a ação (nas palavras de Günther, razões que valem “sob as mesmas circunstâncias”). O segundo modo diz respeito à aplicação de normas válidas a situações concretas, e demanda razões ponderadas (isto é, “tudo considerado”, deve-se ou não agir de tal maneira) (BARBOSA, 2008, pp. 27-28). Voltando ao exemplo narrado acima, chega-se à conclusão de que o enunciado “não se deve mentir” é valido universalmente, pois a observância desse preceito inibe a ocorrência de desajustes na esfera social. Entretanto, necessário se faz reconhecer que o saber é limitado e, portanto, a exigência de universalização deve ser condicionada em algum grau. No caso trazido à baila, tem-se que, apesar de existir uma regra moral válida que recomenda não mentir, um cidadão poderá descumpri-la, omitindo a verdade, quando a sua aplicação no caso concreto não se mostrar ponderada. Em suma, o discurso de justificação confere uma validade universal ao enunciado “não se deve mentir”, todavia as circunstâncias concretas oferecem razões para que o discurso de aplicação indique que tal norma não deve ser aplicada. Na teoria discursiva do direito de Habermas, a legitimidade do sistema de direito está amparada em ações e processos discursivos que garantem a participação dos destinatários das normas quando da sua criação. De outra banda, segundo Habermas, no campo do Direito, diferentemente da moral em que a autonomia é monolítica, há sua manifestação em duas facetas: autonomia pública e autonomia privada. Seu modelo de democracia procedimental faz uma conjugação entre da liberdade dos antigos com a liberdade dos modernos, ou seja, da autonomia pública proposta pelo modelo republicano e da autonomia privada liberal. Nesse sentido: Essa vinculação entre autonomia pública e autonomia privada legitima o Direito como instrumento necessário para garantir a igualdade desse liame. E isso se fundamenta no fato de que a ideia de autodeterminação jurídica exige que os destinatários do Direito possam se enxergar como seus autores (BOTELHO, 2010, pp.164-165). 12 Assim, Habermas assevera que há um nexo interno entre os direitos fundamentais e a soberania popular. Consoante Habermas, “certamente a fonte de toda legitimidade está no processo de legiferação; e esta apela, por seu turno, para o princípio da soberania do povo” (HABERMAS, 2003, p. 122). Afinal, para que haja a configuração da situação de incidência do princípio da democracia, os direitos fundamentais assumem um papel primordial, pois eles são os pressupostos garantidores de um processo discursivo inclusivo e em igualdade de condições. [...] Habermas entende que uma coesão interna entre direitos humanos e soberania popular consiste no fato de que toda e qualquer exigência de institucionalização jurídica de uma determinada prática civil do uso público das liberdades comunicativas seja cumprida através dos direitos humanos, os quais possibilitam, portanto, o exercício da soberania popular (BOTELHO, 2010, p.168). Nessa condição de pressupostos para o desenvolvimento de um processo democrático, os direitos humanos não podem ser flexibilizados através de um juízo de ponderação. Daí a crítica de Habermas à aplicação do juízo de ponderação como método para resolução de conflitos entre direitos fundamentais. Concluindo: [...] podemos dizer que a concepção procedimentalista apresentada por Habermas pressupõe um processo democrático assegurador da autonomia pública e privada ao mesmo tempo, levando à existência de uma equiprimordialidade entre soberania popular e direitos humanos que, portanto, se pressupõe mutuamente, sem que qualquer deles possa reivindicar uma primazia sobre o outro (BOTELHO, 2010, p.170). Para solver a problemática entre direitos fundamentais conflitantes é mais adequado se recorrer ao reconhecimento de um discurso de aplicação da norma jurídica, que nas palavras de Álvaro Ricardo de Souza Cruz: [...] viabiliza uma decisão imparcial, a partir de ações comunicativas ou estratégicas por meio de um mecanismo de depuração: o processo. Logo, afasta-se de uma argumentação exclusivamente moral, que deve sustentarse tão somente na ação comunitária dos falantes (CRUZ, 2006, p.188). Os choques entre direitos fundamentais podem ser resolvidos com a exclusão de uma situação jurídica de seu âmbito de proteção devido a algumas circunstâncias que recomendam a não aplicação daquele direito no caso concreto. 13 Logo, haverá a incidência apenas do outro direito restante, não sendo, pois, cabível se falar em colisão entre direitos e nem sendo necessário se recorrer ao método da ponderação para solver o impasse. Com o intuito de traduzir a problemática epistemológica abordada neste artigo às vicissitudes do mundo da vida, traz-se um exemplo ao leitor. Caso um cidadão residente nas proximidades de uma área de preservação ambiental com mananciais resolva construir uma represa em sua propriedade rural para o exercício de sua atividade econômica, visando a ter a seu dispor uma fonte para irrigar sua produção agrícola e industrializar a sua produção, pode o Estado impedi-lo de levar tal empreitada adiante? Essa é uma hipótese exemplar em que o jurista se deparará com um conflito entre direitos fundamentais, mais especificamente, entre o direito de propriedade do empresário rural e o direito a um meio ambiente equilibrado titularizado pela coletividade. A construção de uma represa em uma propriedade particular com fins de dar suporte a uma atividade econômica localizada nas proximidades de uma área de preservação ambiental com mananciais constitui um ato enquadrável no suporte fático do direito de propriedade? Se sim, como resguardar o direito da coletividade em ter preservados os mananciais que abastecem toda cidade? Diante desse choque entre direitos, como resolver tal impasse? Sob a ótica da micro e pequena empresa, a problemática da superação da colisão entre direitos fundamentais através do juízo de ponderação também pode ser catastrófica, na medida em que cria canais hermenêuticos que permitem ao juiz afastar os benefícios legais estabelecidos ao grupo dos micro e pequenos empreendedores sob a justificativa de que o princípio da isonomia está sendo rompido pelo conjunto normativo aplicável ao caso, que indiretamente prejudica o grupo geral dos empresários. Nessa situação, o juiz declararia a inconstitucionalidade dos ditos benefícios legais sob a fundamentação de não espelharem os valores de isonomia compartilhados pela coletividade. Toda essa argumentação seria viabilizada com a abertura criada pelo juízo de ponderação para a busca de critérios fora do sistema 14 do direito, permitindo assim decisões judiciais que refletissem a carga de valores e princípios morais, éticos e políticos compartilhados pela coletividade. Ou que pelo menos o julgador diz serem da coletividade, ao projetar suas crenças pessoais em esferas alheias, e assim afastar as normas legais que beneficiam os micro e pequenos empreendedores! 7. Conclusão Como foi apresentado ao longo deste artigo, o juízo de ponderação não representa a melhor técnica para a solução dos conflitos entre direitos fundamentais. A adoção desse método gera deficiências ao sistema jurídico, fazendo com que o julgador fundamente sua decisão em argumentos extrajurídicos que estão fora de sua alçada. O discurso jurídico, nesse quadro, cede lugar ao embate entre distintas concepções valorativas. Como visto, Klaus Günther solve essa problemática com a diferenciação entre a aplicabilidade do discurso de justificação no âmbito da legislação e do discurso de aplicação na esfera jurisdicional para o caso concreto. Assim, ele afastou os argumentos centrados em aspectos éticos, religiosos, morais e políticos do momento de aplicação concreta das normas. Em termos conclusivos, tendo por base que a função da atividade jurisdicional é a estabilização das expectativas de comportamento do indivíduo, temse que a atribuição essencial do Poder Judiciário é a manutenção do equilíbrio comportamental do cidadão, e não a ascensão de expectativas de cunho ativista. Esse papel cabe ao legislador legitimamente eleito pelo povo, sendo realizado através do discurso de fundamentação do processo de elaboração das normas jurídicas. Nesse sentido, quando estiver diante de um caso envolvendo os interesses da micro e pequena empresa frente aos direitos comuns a todos os empresários, o juiz não deve recorrer à sua carga de valores e princípios políticos para fundamentar que os benefícios legais estabelecidos ao primeiro grupo são inconstitucionais por não espelharem os valores de isonomia compartilhados pela coletividade. Afinal, o Judiciário não deve encampar a pretensão de representar a 15 ordem de valores reinante na sociedade, sendo assim objeto de críticas por invadir a seara de representação política da sociedade, sem ter uma legitimidade para tal conferida. Isso cabe ao Legislativo, pois é nele que está refletida a soberania popular, sob o pálio da participação da sociedade na escolha de seus integrantesrepresentantes e de um processo democrático judicialmente institucionalizado. 8. Referências bibliográficas ALEXY, Robert. Constitutional rights, balancing, and rationality. Ratio Juris, vol. 16, n. 2, jun. 2003. Disponível em: <http://onlinelibrary.wiley.com/journal/10.1111/(ISSN)1467-9337/issues>. Acesso em: 10 nov. 2012. ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. 10° ed. São Paulo: Malheiros, 2009. BARBOSA, Leonardo A. de Andrade. Notas sobre colisão de direitos fundamentais e argumentação jurídica: um diálogo entre Robert Alexy e Klaus Günther. 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