Eu quero pedir licença para saudar todas as mulheres aqui presentes lembrando duas mulheres. A primeira é Marilza Lúcia Fortes, através de um artigo que escrevi a época de seu falecimento, intitulado: “Silêncio no Tribunal: Morreu Marilza Lúcia Fortes”. O Segredo de Marilza estava escrito em seu nome: ‘Fortes’, que diz respeito àqueles que têm força. Valendo rememorar aqui o pensamento do bardo inglês Willian Shakespeare, quando autoquestionava o que há num simples nome, se aquilo o que chamamos de rosa, com outro nome teria o mesmo e doce perfume. Ocorre, no entanto, que nome é nome – não se traduz. Nome próprio é como dogma e deve ser transcrito na íntegra, como o de Marilza Lúcia Fortes, uma mulher forte, que tinha coragem. Coragem, como escolha humana, não como instinto primitivo e insensato. Ela nasceu em Cuiabá de seus antepassados. Era filha única da professora primária Marina do Couto e de Valdomiro de Arruda Fortes, descendentes de antigas famílias cuiabanas. Quando seus pais mudaram-se para Campo Grande, no Sul de MT, residiram por longa data na Av. dos Estados, no Bairro Jardim dos Estados. Certa vez, numa entrevista concedida ao Jornal Semanário: “A Crítica”, em 12 de março de 2006, Marilza fez questão de autodefinir-se: “Como uma mulher negra, vaidosa, que gosta de flores, poesia e que acredita na Justiça. Defende que pelo fato de ser mulher tem a obrigação de estar bem arrumada, conforme seus gostos: um bom perfume, anéis e brincos grandes; muitas pulseiras e que, de preferência, possuam muito brilho”. Quando alguns buscaram rotulá-la como sendo uma Juíza Auditora Militar de ‘linha dura’, Marilza, respondeu que: “minha mão sempre foi mais leve do que o dedo de um policial no gatilho de um revólver. Acho que não sou linha dura, dizia ela, sou justa. Todos devem ser julgados dentro da Lei”. Marilza lutou muito como Juíza Auditora da Justiça Militar para conquistar o direito de ser empossada Desembargadora, uma vez que, por onze anos foi preterida, só conseguindo ser nomeada após sete anos de luta, quando o Supremo Tribunal Federal deu-lhe ganho de causa. Foi a terceira mulher a assumir a mais alta Corte de Justiça de nosso Estado, tendo sido ao que parece a primeira Juíza Auditora Militar do Brasil, assim como a primeira coordenadora do Curso de Direito da FUCMAT, atual UCDB, além de ser formada em sua primeira turma e a segunda advogada a atuar no Estado, bem como a segunda mulher a ocupar a presidência da Associação dos Magistrados das Justiças Militares Estaduais. Com a divisão do Estado, Marilza integrou Departamento do Sistema Penitenciário, sendo chefe Departamento Jurídico até a sua aprovação em concurso provas e títulos para o Cargo de Juíza Auditora do Estado MS, em 1980. o do de de Marilza rompeu tabus em nosso Estado, ao adotar comportamentos tidos à época como um atrevimento. Recordo-me, a título de memória histórica, que Marilza foi a primeira mulher a entrar no Fórum que ficava na Rua 26 de Agosto, onde hoje funciona o Centro Cultural José Octávio Guizzo, trajando calça comprida, em um tempo em que essa indumentária era exclusiva dos homens, o que lhe valeu uma advertência do Juiz diretor. Marilza, a exemplo de Simone de Beauvoir, com o passar do tempo foi tornando-se cada vez mais mulher, dando origem ao rosto, à voz, à identidade e a uma história submersa daquele que seria o perfil em construção da mulher Sul-Mato-grossense. Simone de Beauvoir, escritora e autora do primeiro manifesto feminista, cujo nome marmorizei nos meus arquivos emocionais e de consciência, desde quando li um antigo escrito de sua autoria, transcrito no livro de Ruth Escobar, intitulado: Maria Ruth, que dizia assim: “No dia em que a mulher puder amar com a sua força, não com a sua fraqueza, não para fugir de si mesma, mas para encontrar-se, não para demitir-se, mas para afirmar-se, então o amor tornar-se-á para ela, como para o homem, ao invés de perigo mortal, fonte de vida”. Prosseguindo, digo que por tudo que acima relatei, procurei escrever essas simples palavras, na cor lilás que Marilza tanto gostava, para que a memória dela não se extravie, para que essa história linda que poderia ser escrita à mão como eram escritas as antigas cartas de amor não se perca com o tempo, enfim, para que a história de Marilza, que morreu um dia antes da primavera, seja como a de Cecília Meireles, que aprendeu com a primavera a deixar-se cortar e a voltar sempre inteira. Registro ainda que estava na cidade de São Paulo, quando li pela internet que Marilza havia falecido. Chegando a Campo Grande por volta das 23:00 h, fui direto até o saguão do Tribunal de Justiça onde Marilza estava sendo velada. Permaneci velando-a até o dia amanhecer enquanto a chuva que caía ofuscava as vidraças do Palácio da Justiça, deixando as árvores e flores que abriam a primavera sob mudos céus, na companhia de amigos e familiares presentes. Por fim, relembro que certo dia do mês de março de 2006, antes da sua posse no Egrégio Tribunal de Justiça de MS, Marilza telefonou-me e perguntou-me se eu julgava interessante que ela em determinado trecho de seu discurso utilizasse do poema de Carlos Drummond de Andrade, intitulado: “No meio do caminho”, tendo eu concordado de pronto, visto que Marilza havia tirado uma a uma as pedras de seu caminho, sem perder a ternura pela vida, contudo, sugerilhe naquela oportunidade que se possível fechasse o discurso com um verso de Fernando Pessoa, escrito em 1913, que para mim traduzia com fidelidade tudo o que ela almejava dizer e, que para minha alegria ela recitou assim: “Cheia de Deus, não temo o que virá, Pois, venha o que vier, nunca será Maior do que a minha alma”. A segunda homenageada é uma pobre mulher, apelidada de “Maria Bolacha”, que vivia a mendigar e, cujo endereço era as calçadas de nossa cidade, tendo sido imortalizada no livro de crônicas de Ulisses Serra, “Camalotes e Guavirais”, um clássico de nossa mais genuína literatura, lançado em 13 de outubro de 1971. Segundo Ulisses Serra, o fundador de nossa academia de letras, “era uma anciã, morena-cor-de-mate, baixa e gorda, olhos verdes, andar de papagaio e de pano à cabeça, personificava o inconformismo, a reação e a luta. Quando a malta de garotos gritava-lhe o apelido, que ela julgava enxovalhante, vinha-lhe a boca o palavrão, vibrava violentamente o chicote que sempre tinha às mãos e perseguia os seus agressores morais. Todos os dias e o dia todo, de ponta a ponta das ruas, era a zombaria dos gravoches caboclos e a reação permanente e feroz de Maria Bolacha. À tarde, pelo cansaço, com voz fraca e enternecida, ofegante, pedia clemência aos garotos para que não a chamassem assim. Eles se condoíam, silenciavam e uma trégua se estabelecia. Súbito, sobrevinha a irreverência, sibilava um novo Maria Bolacha. Também ressoava um novo palavrão, de novo ela vibrava o seu chicote e se arremessava, violenta contra aqueles diabretes. Alquebrada pelos anos, extenuada pela luta e já doente, um dia abandonou a arena das ruas e voltou, para sempre, à sua mansarda no sítio nativo, da Mata do Segredo. Mas, enquanto forças teve, disputou o direito às ruas, defendeu sua dignidade e repeliu a rebenque e pedradas a alcunha desmoralizante”. Neste mês em que se homenageia as mulheres de MS, dessa tribuna de onde se pode enxergar as luzes das calçadas das ruas em que viveu Maria, - dessa tribuna coberta de história pela defesa do Direito da mais miseráveis das mulheres, em nome daqueles garotos, eu diria: Maria, perdão. Maria, que lutou no limite de suas forças, como uma espécie de penha pelo direito às ruas e, sobretudo pelo respeito à dignidade sagrada da mulher, resistindo como aqueles mendigos que morrem de fome mais não recolhem a esmola oferecida por escárnio. Por isso, tinha razão Milton Nascimento, quando escreveu para Elis Regina cantar: Maria, Maria é um dom, uma certa magia, uma força que nos alerta. Uma mulher que merece viver e amar como outra qualquer do planeta. Porque é preciso ter sonho sempre Quem traz na pele essa marca Possui a estranha mania de ter fé na vida. Muito Obrigado. (Discurso proferido pelo Conselheiro Carlos Magno Couto, em 27 de Março de 2015, no Anfiteatro da OAB/MS, em homenagem as mulheres de Mato Grosso do Sul)