1440 Sertã Sábado 00h01 Este é o primeiro dia de Agosto, o primeiro dia de férias. ESTOU DE VOLTA! Cheguei cansado depois de mais uma longa jornada pelo exterior, como dizem os brasileiros. Este nosso Portugal é uma terra que recebe muito bem mas expulsa os seus de que não precisa. É como uma casa onde há muitas bocas para alimentar. Há sempre uma altura em que todos ralham e nenhum tem razão. Bem dizia a minha avó: “Não há fartura que não dê em miséria. Ainda têm de se agarrar à terra ou ir lá pra fora!”. Por falar em casa… A minha casa está infernalmente quente depois de tanto tempo fechada… Vou descarregar estas malas viajadas, esgaçadas e cansadas de tanto serem feitas e desfeitas. Tenho de abrir a janela durante a noite para arrefecer o quarto. Deve ter estado cá um calor na minha Sertã. Tenho a cara cheia de suor… Desde que os pinheiros, esses bravos, se foram embora, a temperatura tem subido em flecha. Ansiei tanto pelo ar fresco de verde pinho… Arrefeço, encho os pulmões de ar fresco pino-menta, a casa fica aromatizada. Enquanto a casa areja, vou dar uma volta até à Bela Vista para descansar os olhos. Ver se os contornos de luz laranja ainda se mantêm na mesma linha… 01h52 Desço da Bela Vista para ainda chegar a tempo de ver como andam as coisas pelo local mais movimentado da vila a esta hora: a Praceta do Pinhal. Não encontro ninguém conhecido, bebo apressadamente uma água com gás, não vá o jipe da Guarda Nacional Republicana vir aborrecer o dono do bar. Saio. Cá fora o barulho do costume. Os passeios manchados de pastilhas elásticas, os cantos malcheirosos, as garrafas de mini semeadas no jardim e os bancos continuam imóveis e gastos. Longe vão os tempos de 1 uma praça térrea, poeirenta e esburacada onde, em criança, colocávamos 4 pedras a servirem de balizas… Os inúmeros rapazes do bairro da geração pós 25 de Abril aglomeravam-se, esvoaçavam em bando atrás de uma bola de futebol plastificada… e o objectivo era gritar e entoar Goooooolo com alguns prédios a servirem de bancada! Fazia um eco especial! Glorioso! Bem, o meu gps mental manda-me rodear a Praceta rumo à Recta do Pinhal e zarpar para casa. As minhas pernas tremem de tantos quilómetros feitos para aqui chegar. Precisam de um descanso reconfortante. Sei que cheguei a casa sem lembrar do caminho percorrido… Num segundo, deito numa cama por fazer… 06h47 Os pássaros cantam… Tanta passarada! Tão cedo… 12h47 O Sol fortíssimo já iluminou a minha cara em demasia. Tento resistir mas o calor que entra pela janela já é intolerável. Tenho de me levantar. Lavo a cara com rapidez enquanto a água do chuveiro arrefece o ar e o corpo. O alcatrão derrete, o ar vibra, a rádio permanentemente sintonizada na Condestável em 91.3, rezando para não ouvir os relatos de incêndios do Reis. Vou até ao sítio mais fresco da vila… a maravilhosa Carvalha. Deve estar por lá o Sr. Américo com vontade de me servir um café com muito gelo. A vila continua lindíssima, com luz, limpa e bem ordenada. Encontro uns velhos companheiros de infância. 13h55 Convidam-me para almoçar no Delfim. Boa ideia. Comento com eles o facto de encontrar pouco pessoal da Brigada Sertaginense. Chego à conclusão que é impressionante a quantidade de colegas de escola que foram para Angola… Como o tempo dá a volta a tudo. Nós fomos obrigados a sair, eles vêm atrás… Agora voltamos sem convite! Não parece absurdo? Muitos outros foram trabalhar para Lisboa, Leiria, Coimbra, Guarda, Porto… 2 “O Zé também foi embora para a Suiça. Tem lá o irmão e a cunhada. Então, a serração já fechou!” O pessimismo está por aí. Como diz um amigo meu, “ a doença da panela” ataca. Traduzindo, (de)pressão! Temos de ver sempre a coisa pela positiva. (Cátia, foste tu que me ensinaste esta). Se não encontras estacionamento, é sinal que tens carro. Se tens trabalho a limpar a casa, significa que tens uma. As roupas estão apertadas é sinal que comes mais do que precisas. Se o despertador toca todas as manhãs significa que estou vivo. Se estou cansado ao final do dia é porque posso trabalhar. 15h48 O calor é forte… Vou até casa. Acabo de arrumar as coisas. Como ainda não fiz o tempo para a digestão… É que estava a pensar ir ao Trízio tomar uma bela banhoca… Ponho-me a olhar à minha volta com as mãos à cintura. Vou ao WC. Agarro em objectos variados e procuro etiquetas e rótulos para ler. Com dificuldade, e em letras escondidas e pequeninas, lá vejo qualquer coisa portuga no meio de tanta importação. Já ontem, enquanto dava uma arrumação na casa, contei 20 objectos made in China cá em casa (ténis, carregador de telemóvel, bonecos, álbum de fotografias, objectos de decoração, modem, gps… ) e logo eu que nunca entro em tais paraísos fiscais. Resta-me o consolo do meu tecto do sótão em pinho tratado do Faval, a sandes de queijo do Marmeleiro que preparo para levar ao rio, o maranho e o bucho que comprei no Delfim para o jantar. Bem… está na hora de levantar o rabo da sanita. Olha, o papel higiénico também é made in Sertã! Haja Deus! 17h39m Bem, tomo o caminho no sentido de Vila de Rei, corto para a Cumeada e sigo para Palhais e desço onde diz Clube Náutico. Quanto mais de desce, maior é a beleza natural… As curvas do rio pelo xisto. Azul no céu e na terra com creme e verde, que bela combinação. Abro bem as janelas do carro de onde saem notas do piano do Marco Figueiredo e onde entram ares frescos, fluviais. 3 Estaciono num cabo com vista privilegiada para o rio. Solto o beirão que há em mim e mando-me à água sem olhar para trás. (de repente, lembrei-me dos mergulhos na Ribeira da Sertã quando era pequeno). Ahhhhhhhhhhhhhhhhh! Que água magnífica! Agora só saio quando a pele estiver toda enrugada e a morrer de frio… 18h32 Procuro uma pedra em forma de banco para apanhar um pouco de sol de frente enrolado numa toalha. Para acabar em beleza, nada como comer um geladinho no bar do Clube. 19h40 Horas de regressar à vila da Sertã. Agora é tomar banho para tirar este barro da pele e ver como é que pulsa a Saturday Night Fever cá do burgo. Entretanto faço uns telefonemas a amigos. O encontro é combinado no sítio do costume. Jantamos no restaurante de eleição e cantamos a canção do vai a cima, vai abaixo e bota abaixo. Há milhares de vivências para contar. Umas felizes, outras nem por isso. Haja saúde para nos vermos sempre que possível. Com mais ou menos euros, o que interessa é o espírito e a alegria do reencontro. Depois da janta, segue-se o rali tascas. O mais forte do grupo atira com esta: - Começa-se no Aurélio e vimos por aí abaixo! Só paramos na ribeira!!! Isto vai ser bonito, vai. 23h55 Andámos toda a noite a pé pela vila, como nos velhos tempos. Éramos uns dez em permanente algazarra. Tenho os pés que nem os sinto. Já não estou habituado a andar tanto tempo a pé… Será da idade? Há alturas em que o meu corpo já se ressente. Passámos por todas as ruas estreitas e pelos atalhos de infância. Contámos as peripécias e as casas fora do lugar, lembrámos das pessoas que já foram mas que ainda ouvimos a sua voz… As festas de anos, a escola, os acampamentos, as Janeiras, a FAFIC, o desfile de Carnaval… 4 Alguém comentou acerca do velho edifício sede do Sertanense tão abandonado… onde alguns de nós aprendemos as primeiras notas musicais. Agora a música é outra! Estou exausto. Acho que abusei. Ainda onde cheguei de viagem e começo logo com um dia tão cheio como este… 00h00 Foram os 1440 minutos mais bem vividos e ansiados dos últimos tempos. A Sertã é a nossa terra e tem este poder de atracção para com os seus. As nossas raízes são sempre uma referência, não achas? Os olhos ardem-me, não aguentam muito mais tempo abertos. Acho que me vou deitar imediatamente por que hoje… foi de arromba. Concluindo… Este texto foi escrito para relembrar que todos devemos viver o melhor que pudermos sem nunca esquecer a nossa terra, os nossos amigos. Não deixes nada por dizer ou por fazer. Não desperdices o teu tempo. Um dia tem 1440 minutos. Em 1440 Gutenberg cria o processo de impressão com caracteres móveis. Eu escrevi este texto com 1440 palavras. 5