O DIÁRIO DE UMA PROFESSORA: ANÁLISE DE EXPERIÊNCIAS CULTURAIS EM ALFABETIZAÇÃO MENDES, Maria Francisca PUC-Rio – Departamento de Educação [email protected] Grupo de Pesquisa: “Crianças e Adultos em Diferentes Contextos: a Infância, a Cultura Contemporânea e a Educação” coordenada pela Profª Sonia Kramer e apoiada pelo CNPq RESUMO O presente trabalho procura contemplar parte significativa das reflexões suscitadas na elaboração da dissertação de mestrado em andamento, a ser defendida até fevereiro de 2007. Decidi enfrentar o desafio de, incorporando o papel de pesquisadora ao de professora, analisar as minhas próprias experiências profissionais narradas em um diário construído ao longo do ano de 1999, com uma turma de alfabetização. Como autora desse diário, surgido pela necessidade de criar um espaço reflexivo das tantas questões do cotidiano escolar, resolvi não somente socializá-lo, como também debruçar-me sobre esse gênero discursivo enquanto possibilidade investigativa do professor acerca do viver/pensar/sentir a própria prática. E é justamente esse enfoque que desejo agora sublinhar. A decisão de escrever sobre as experiências vividas não é uma escolha fácil. Torná-las públicas também é uma decisão difícil. Entretanto, quando entendemos que o conhecimento se constrói na troca e na relação com o outro, é fundamental poder partilhar nossas memórias, assumir as rédeas de nossas próprias histórias para que, ao socializá-las, tenhamos a possibilidade de dividir inquietações, desconhecimentos, dúvidas e incertezas. Minha prática de escrita é construída a partir de experiências, histórias e memórias. Acredito que, quando escrevo sobre minha atuação como professora, reflito sobre as vivências e as atitudes assumidas. O ato de escrever constitui-se, assim, um repensar sobre a ação educativa. Nesse sentido, entendo-me uma professora reflexiva. Palavras-chaves: diário de aula – professor reflexivo – formação de professor 1680 1. Introdução A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. Larrosa, 2002, p. 21 O presente trabalho procura contemplar parte significativa das reflexões suscitadas na elaboração da dissertação de mestrado em andamento, a ser defendida até fevereiro de 2007. Creio que meu texto articula-se à área temática “Profissionais da Educação: formação, concepções e perspectivas”. Decidi enfrentar o desafio de, incorporando o papel de pesquisadora ao de professora, analisar as minhas próprias experiências profissionais narradas em um diário construído ao longo do ano de 1999, com uma turma de alfabetização. Como autora desse diário, surgido pela necessidade de criar um espaço reflexivo das tantas questões do cotidiano escolar, resolvi não somente socializá-lo, como também debruçar-me sobre esse gênero discursivo enquanto possibilidade investigativa do professor acerca do viver/pensar/sentir a própria prática. E é justamente esse enfoque que desejo agora sublinhar. Zabalza (1994, p. 98) salienta que: Se a actuação reflexiva do professor constituir a base da sua implicação na redacção do diário, bem-vinda seja ela (com isso já o diário logrou um dos seus objetivos mais importantes: introduzir o professor num contexto de racionalidade superior ao que antes possuía). 2. Memórias, autobiografias e diários: um pouco de história Memórias, autobiografias e diários revelam possibilidades de registro do vivido, sentido, acontecido: leitura e escrita apontando aspectos significativos da vida íntima e privada, seja de pessoas conhecidas ou desconhecidas, seja de homens ou mulheres. Embrenhar-se na análise das narrativas presentes em memórias e diários, que abordam aspectos da vida privada e da vida íntima, vale mais pela possibilidade de entender como o pensamento acerca da vida cotidiana foi percebido nas observações dos acontecimentos e questões suscitadas, do que analisar apenas a superfície de seus enunciados. Foisil (1999, p.331) destaca que, nesse percurso, vale “menos a vida privada que a atitude ante a vida privada, e não só a narrativa, mas também os silêncios: não só o discurso, mas igualmente sua aridez ou até sua ausência”. 1681 Lacerda (2003) em seu trabalho sobre a literatura memorialística feminina brasileira, procurou analisar 90 obras, entre pessoas conhecidas e desconhecidas. Colheu informações diversas acerca dos objetivos de sua pesquisa: “a história de vida e de leitura de um grupo de brasileiras nascidas entre 1843 e 1916” (p. 30) nas narrativas pontuadas por angústias, desejos, opressões perdas de uma vida ou de um período significativo dela. O intuito era conhecer, através de livros cheios de passado, as práticas de leitura das memorialistas e as condições em que essas escolhas foram efetivadas. As memórias caracterizam-se por trazerem uma narrativa marcada pela afetividade e subjetividade da autora. A memorialista procura incorporar aos seus escritos diversas fontes, personagens, lugares que possam contribuir para fazê-los mais autênticos. “Na memória, a preocupação é com a verdade do narrado, isto é, sobressai, aqui, o documentário construído sobre a vida” (idem, p. 42). O caráter pessoal da documentação abrange, segundo as produções analisadas pela autora, períodos longos da vida das escritoras, da infância à velhice. Algumas das memórias buscaram apoio em diários pessoais e livros de parentes para se concretizarem; outras, se apresentam em forma de crônicas reunidas cronologicamente. Os diários apresentam marcas estruturais mais claras em sua narrativa. Nem sempre revelam uma escrita de todos os dias da vida da autora; são pontuados por rupturas e intervalos grandes ocasionando a descontinuidade do texto. Lacerda (2003, p.242) comenta que os diários foram e continuam sendo companheiros do tempo das moças e parceiros de sua vida adulta: “mais do que um objeto de leitura, a escrita dos diários acabou se transformando em um refúgio para os desejos de transgressão à rigidez moral e religiosa da época, ainda que não fosse tomada como tal”. 3. Diários de aula: memórias e práticas de professores Zabalza (1994) entende a produção de diários de aula como um recurso reflexivo do exercício profissional, tendo ele mesmo feito uso desse recurso no início de seu caminhar como professor. O autor comenta que há pouca referência internacional de trabalhos realizados na linha de análise de diários de aula. Complementando seu comentário, creio que posso destacar que há menos ainda quando o professor se coloca enquanto pesquisador de suas próprias memórias transcritas sob a forma de diários de aula. 1682 A decisão de escrever sobre as experiências vividas não é uma escolha fácil. Torná-las públicas também é uma decisão difícil. Entretanto, quando entendemos que o conhecimento se constrói na troca e na relação com o outro, é fundamental poder partilhar nossas memórias, assumir as rédeas de nossas próprias histórias para que, ao socializá-las, tenhamos a possibilidade de dividir inquietações, desconhecimentos, dúvidas e incertezas. Minha prática de escrita é construída a partir de experiências, histórias e memórias. Acredito que, quando escrevo sobre minha atuação como professora, reflito sobre as vivências e as atitudes assumidas. O ato de escrever constitui-se, assim, um repensar sobre a ação educativa. Nesse sentido, entendo-me uma professora reflexiva. Ouvir a voz do professor devia ensinar-nos que o autobiográfico, “a vida”, é de grande interesse quando os professores falam do seu trabalho. E, a um nível de senso comum, não considero este facto surpreendente. O que considero surpreendente, se não francamente injusto, é que durante tanto tempo os investigadores tenham considerado as narrativas dos professores como dados irrelevantes (GOODSON, 1992, p. 71). Tornar pública essa produção é uma forma de legitimar e valorizar saberes produzidos no cotidiano – espaço onde se originam tantas pesquisas e estudos. A prática dos professores é constantemente tomada como objeto de pesquisa. A autoria desses professores muitas vezes é deixada de lado. Fala-se sobre os professores; e não com eles. Ao assumir a função de investigadora de meu processo de formação busco, através do registro escrito, ressignificar meu papel de autora e sujeito da própria história. Ao escrever, dou sentido à minha atuação; manifesto minha singularidade; penso e repenso decisões; reconstituo trajetórias assumidas; percebo a mim e a minhas crianças através de outro olhar. [...] o próprio facto de escrever, de escrever sobre a própria prática, leva o professor a aprender através da sua narração. Ao narrar a sua experiência recente, o professor não só a constrói linguisticamente, como também a reconstrói ao nível do discurso prático e da actividade profissional (a descrição vê-se continuamente excedida por abordagens reflexivas sobre os porquês e as estruturas de racionalidade e justificação que fundamentam os factos narrados). Quer dizer, a narração constitui-se em reflexão (ZABALZA, 1994, p. 95). 4. O referencial teórico-metodológico de análise Entendo este trabalho como a possibilidade de realizar uma pesquisa qualitativa de cunho sócio-histórico onde as análises da tessitura do diário vão procurar explicitar o conhecimento do contexto e os sujeitos que dele emergem; a compreensão da complexidade e da historicidade dos fenômenos integrando individual e social; e o entendimento do pesquisador enquanto sujeito sócio- 1683 histórico que vai estabelecer relações intersubjetivas com os sujeitos sócio-históricos pesquisados dimensões que legitimam um novo enfoque: um olhar mais humano de se produzir ciência. Minha lida é com palavras: palavras dos outros, palavras minhas dos outros e palavras minhas, segundo Bakhtin (2000). O autor ressalta que são diferentes as formas de se dirigir a alguém; as características constitutivas desse destinatário refletem-se na variedade dos gêneros do discurso. Quando escrevo, o faço para alguém; e é esse interlocutor que dá sentido ao meu texto. As páginas do meu diário minha obra destinam-se à leitura do outro porque entendo que as palavras nele contidas “buscam uma respondibilidade, vibram e repercutem no tempo, chocam-se, desorganizam e reorganizam nosso modo de ver e estar no mundo. As palavras nascem do movimento e produzem movimento” (ZACCUR, 2001, p. 40-41). Há sempre um destinatário pensado em meus enunciados, mesmo que, por vezes, eu possa não diferenciá-lo; isso já exerce influências sobre as palavras que tenho a dizer/escrever, afetando, dessa forma, composição e estilo do enunciado. “Ter um destinatário, dirigir-se a alguém, é uma particularidade constitutiva do enunciado, sem a qual não há, e não poderia haver, enunciado” (BAKHTIN, 2000, p. 325) onde percebemos que “o enunciado está voltado não só para o seu objeto, mas também para o discurso do outro acerca desse objeto” (idem, p. 320). O diário marca um campo de interlocução mediado pela linguagem que se manifesta sob uma perspectiva dialógica e polifônica. Cabe compreendê-lo de forma ativa e responsiva: “a compreensão responsiva nada mais é senão a fase inicial e preparatória para uma resposta (seja qual for a forma de sua realização)” (idem, p. 291). As histórias contempladas são enunciados vivos com os quais preciso interagir, concordando ou discordando, completando, adaptando, compreendendo seus discursos. A atitude responsiva ativa implica em perceber que “toda compreensão é prenhe de resposta e, de uma forma ou de outra, forçosamente a produz: o ouvinte torna-se o locutor” (idem, p.290). Nesse sentido, torna-se indispensável assumir a exotopia. O lugar exotópico determina o espaço que devo ocupar para poder descobrir um texto repleto de sentidos que serão percebidos, também, a partir da observação do lugar que o outro ocupa, refletindo a diversidade de vozes que comigo passam a dialogar. Meu horizonte social contribuirá nos esclarecimentos necessários visando tornar possível uma releitura das experiências vividas/sentidas. Devo identificar-me com o outro e ver o mundo através de seu sistema de valores, tal como ele o vê; devo colocar-me em seu lugar, e depois, de volta ao meu lugar, completar seu horizonte com tudo o que se descobre do lugar que ocupo, fora dele; devo emoldurá- 1684 lo, criar-lhe um ambiente que o acabe, mediante o excedente de minha visão, de meu saber, de meu desejo e de meu sentimento (BAKHTIN, 2000, p. 45). É a idéia do “descentramento” brechtiano: a personagem que descreve a experiência vivida dissocia-se da personagem cuja experiência se narra (o eu que escreve fala do eu que agiu há pouco; isto é, o eu que escreve é capaz de ver-se a si mesmo em perspectiva numa espécie de negociação a três: eu narrador-eu narrado-realidade (ZABALZA, 1994, p.95). Represento a voz através da qual as outras vozes serão explicitadas. Pretendo situar-me fora de minha obra para que, ao olhá-la de modo distanciado, possa tornar-me um outro em relação a mim mesma. O princípio da alteridade sublinha esse entendimento: minha constituição depende da consciência do outro. Alteridade e dialogia são dois importantes fundamentos da arquitetura bakhtiniana: possibilitam entender que me constituo na relação dialógica com o outro um encontro nem sempre harmonioso e livre de conflitos. Somos seres inacabados; buscamos no outro uma completude que jamais será atingida. O excedente de visão indica a experiência que tenho do outro que ele próprio não tem. Isso explica nosso inacabamento. Se busco no outro minha completude, se o reconheço vital à minha constituição, esse outro, necessariamente, é diferente de mim. São as diferenças que possibilitam o encontro. Torna-se fundamental entender a alteridade como uma comunhão que ocorre quando entendo que o outro a mim acrescenta um horizonte de possibilidades. Com ele e a partir dele crio e recrio minha trajetória de ser no mundo do presente vivido e do futuro a viver. 5. Um mergulho nas tramas do diário: as múltiplas vozes que emergem nas narrativas As reflexões, agora, direcionam-se a um diário específico, o diário sobre a minha turma de alfabetização, produzido ao longo do ano de 1999, em uma escola pública do município do Rio de Janeiro. Eu e minhas crianças nos conhecemos no início desse ano e nos despedimos ao final de 2000. O diário é o material que mais sobressai nesse primeiro ano, embora o trabalho com a alfabetização tenha oportunizado uma diversidade de outros registros. No segundo ano, na decisão de não mais continuar com as anotações diárias privilegiei, ainda mais, outras linguagens: fotos muitas fotos! , cartazes, livros, registros de escrita das crianças, blocões, painéis, tudo preservado como quem guarda um precioso tesouro. Como muitas dessas formas de expressão também encontram-se descritas no diário, este transformou-se em documento privilegiado de investigação. Compreendendo “diários que, como o livro da vida de Freinet, constituem outros modos de escrever a história cotidiana” (KRAMER, 2003, p. 61), meu diário reflete uma prazerosa/tortuosa 1685 história rumo à apropriação da leitura e da escrita de minhas crianças da turma de alfabetização história que sublinha meu próprio prazer de ler e escrever. As páginas acentuam “uma prática pedagógica nas suas múltiplas determinações e dificuldades” (KRAMER, 1994, p. 101) onde minha escola revela-se a partir de um cotidiano instigante permeado de dúvidas, incertezas, contradições, descobertas. É nesse espaço provocador de interlocução social e cultural que procuro renovar-me a cada dia, na medida em que desafios precisam ser administrados. Toda narrativa, evidentemente, pressupõe escolhas, seleção do que deve ser contado/omitido. Traz a marca da autoria, do que considero como essencial a ser registrado. Não há uma única forma de se expressar, assim como são múltiplas as possibilidades de se registrar o vivido. As narrativas que se constroem a partir das experiências entre professores e crianças contribuem significativamente em sua formação e criação marcas que revelam um constituir-se humano, sujeito que é histórico e social. Cada professor tem uma história; muitos não a revelam; alguns a reconhecem apenas; outros, além de reconhecê-las a tornam coletiva pois entendem que é na coletividade que essas histórias são estruturadas. Os registros, sejam nas mais diversas linguagens escrita, falada, fotográfica, plástica... constituem-se elementos de uma vivência que pode ser partilhada e, quem sabe, eternizada na memória; uma memória onde se presentifica o eu em sua relação com o outro. 4.1. Vozes das crianças Incorporando à professora sua vertente pesquisadora, entendo como necessário refletir sobre concepções de criança e de infância que legitimam determinadas práticas sociais, culturais e pedagógicas que estruturam o universo escolar. Sarmento (2005) enfatiza a importância da infância e ressalta a criança como ator social pleno. A infância não encontra-se isolada e nem descolada no tempo e espaço. De sua construção fazem parte tanto as crianças como os adultos com os quais interagem a partir das interpretações sobre e para elas. Dessa relação vão surgir tensões e possibilidades que constituirão um possível diálogo entre as gerações e seus processos sociais. A infância é historicamente construída, a partir de um processo de longa duração que lhe atribuiu um estatuto social e que elaborou as bases ideológicas, normativas e referenciais do seu lugar na sociedade. Esse processo, para além de tenso e internamente contraditório, não se esgotou. É continuamente actualizado na prática social, nas interacções entre crianças e nas interacções entre crianças e adultos (SARMENTO, 2005, P. 365-366). 1686 Dentro das salas, pelos corredores, no refeitório e no pátio da escola, as crianças constroem suas identidades nas inúmeras situações sociais vivenciadas. São múltiplas as identidades elaboradas na relação com o outro e que constituem a infância como um tempo de ser e agir sobre o mundo; um mundo que não é somente de crianças ou de adultos, mas sim de sujeitos historicamente construídos. Diversos são os fatores que interferem nessa configuração – econômicos, culturais, etários, étnicos – promovendo diferentes entendimentos entre crianças e adultos no cotidiano educativo. Reconhecer as contradições presentes nas práticas diárias pode levar o professor a repensar as ações que contribuem para cristalizar uma visão de infância universal, de um ser sem voz e sem participação, em vias de se constituir, em suma, um sujeito a-histórico. “Grupo da Camila, Natália, Paloma e Ana Beatriz é o da cantoria. Tudo o que fazem é cantando. Isso não as atrapalha muito, mas Camila é sempre a última a terminar; quando consegue, porque na maioria das vezes ela não finaliza o que começou. Claro, sua função no grupo é conduzir a cantoria. Ou bem se faz uma coisa, ou bem se faz outra. E Camila preocupa-se mais com o repertório musical. Hoje estavam cantando “A linda rosa juvenil...” Preciso aproveitar isso para o caderno de músicas. Jean não canta, berra! Nessa altura, a turma toda já cantava a música, incluindo eu.” (Diário, 10/03/99) Camila, Natália e Tamiris vendendo coisas pela sala. Perguntaram à Camila onde ela tinha arranjado dinheiro (dinheiro de brinquedo que eles usam na sala) e ela respondeu: Eu arranjei com meu trabalho! (Diário, 10/11/99) Humberto, sempre espirituoso, veio com o seguinte comentário: Professora, eu tô quieto hoje porque minha mãe me deu chá de camomila. E lá se foi ele ajudar o Anderson a copiar do quadro um trabalho. Às vezes perdia a paciência e resolvia fazer para o colega. (Diário, 22/09/99) Percebo a sala como espaço de dialogicidade, onde as regras e os valores já encontram-se marcados nas escolhas e no convívio entre os pares. Nas falas e nos silêncios, nos olhares e nas risadas, nos encontros e distanciamentos, as crianças relacionam-se culturalmente e transportam para essas vivências uma rede de significações do que seja uma vida social plena – com seus conflitos, dissabores e alegrias. “Estas actividades e formas culturais não nascem espontaneamente; elas constituem-se no mútuo reflexo das produções culturais dos adultos para as crianças e das produções culturais geradas pelas crianças nas suas interacções” (SARMENTO, 2005, p. 373). 1687 4.2. Vozes da professora Uma das questões cruciais de debruçar-me sobre meu próprio diário estava em estranhar a familiaridade das situações vivenciadas, uma vez que elas pareciam ser muito conhecidas. Para poder caminhar por esse labirinto de emoções e constatações, recorri à Velho (1978): “o que sempre vemos e encontramos pode ser familiar mas não é necessariamente conhecido... (p. 39, grifos do autor). Deixei-me surpreender pelo campo, tentando desnaturalizar e relativizar os fenômenos à minha volta – porque não naturais, mas históricos e socialmente construídos – e estabelecendo com eles uma nova relação que, certamente impregnada pela minha subjetividade, possibilitou a construção deste texto. Segundo Geertz (1989), “os textos antropológicos são eles mesmos interpretações e, na verdade, de segunda e terceira mão. (Por definição, somente um “nativo” faz a interpretação em primeira mão: é a sua cultura.)” (p. 25, grifo do autor). Posso considerar-me tanto pesquisadora, quanto nativa. “Resolvi passar, como trabalho de casa, a receita completa no quadro para as crianças copiarem. Apesar de ter simplificado bastante, houve pouco tempo para a cópia e aí eu me transformei numa megera. Não deixei sair quem não havia acabado, depois que o sinal bateu. Ramon começou a chorar com medo de perder o ônibus. Como eu me odeio quando faço isso. Nessa hora percebo que nenhum estudo, nenhuma especialização adianta para uma pessoa que se mostra tão irredutível. Resolvi deixar para lá e parar de atazanar as crianças. Rosilene ajudou quando eu comentei: Que pena! Você não vai conseguir fazer em casa, amanhã. E ela prontamente respondeu: Eu lembro. Está tudo aqui. E apontou a cabeça. E me desarmou. Recolhi os cadernos dos ‘atrasados’: ela, Ramon, Rogério e Anderson. E lá se foram eles. E cá fiquei eu mais irritada comigo, com minhas atitudes, do que com eles. Eu não precisava estragar uma manhã tão deliciosa. Espero não tê-los traumatizado tanto.” (Diário, 13/04/99) (Passeio pela rua da escola para colher todos os tipos de registros possíveis.) “Após quase uma hora de preparação conversas, idas ao banheiro, distribuição dos crachás, divisão dos grupos com respectivos nomes nos crachás, aviso à direção e à merenda sobre possível atraso saímos. O passeio foi o maior sucesso! As crianças estavam eufóricas e participativas, cada uma fazendo o seu papel às vezes confundiam as funções, mas o nome do grupo preso nos crachás os trazia de volta à finalidade. Foi bom perceber como eram recebidas em cada ambiente. Algumas pessoas nem olhavam para as crianças (do grupo dos cartões, por exemplo), precisando da minha intervenção; outras, não só as recebiam, como colaboravam muito educadamente. A cada momento era preciso dar um tempo para aguardar um grupo mais lento ao registrar alguma informação (ou com muitas informações a registrar, num curto espaço da rua). Eu só organizava e cuidava para que ninguém caísse, ou chegasse mais próximo da rua. Todo cuidado é pouco. Às vezes, eu parava só para olhá-los cadernos e lápis nas mãos, olhares para o que era preciso observar, conversas e ajuda mútua e batia um orgulho grande de poder possibilitar isso a eles e a mim também. Perdemos tanto tempo arranjando desculpas para não fazermos determinadas 1688 propostas mais ‘arrojadas’ que nem percebemos os momentos preciosos que podemos estar perdendo.” (Diário, 20/04/99) Entre olhares, escutas e escritas, na tentativa de constituir-me pesquisadora, confronto-me com os imponderáveis que, nas palavras de Malinowski (1975, p.55), “constituem parte do verdadeiro tecido da vida social, que neles se emaranham os inumeráveis fios que mantêm unidos a família, o clã, a comunidade aldeã, a tribo...” Há o dia da professora-megera; há o dia da professoracontempladora. Cada atitude revela pressupostos teóricos que a legitimam. Torna-se essencial estar atenta à questão de que “o ensino e a aprendizagem que ocorrem nas salas de aula representam uma das maneiras de construir significados, reforçar e conformar interesses sociais, formas de poder, de experiência, que têm sempre um significado cultural e político” (TORRES SANTOMÉ, 1995, p. 166). 4.3. Vozes das famílias É necessário refletir sobre de que forma ocorre a participação das famílias nos acontecimentos escolares de seus filhos. Falamos: ‘a escola pública é de todos’; porém, muitas vezes acabamos excluindo a participação efetiva das famílias que, por sua vez, se distanciam ainda mais. É importante destacar como a escola e aqui não importa se pública ou privada ainda encontra-se isolada do cotidiano da comunidade, parecendo um mundo à parte da vida, da cultura e das lutas dessas famílias. Elas são chamadas a participar através de exigências como pontualidade, assiduidade (sua e de seus filhos às aulas e reuniões), contribuições (caixa-escolar), documentação, higiene e apresentação adequada dos filhos (uso do uniforme). A escola, não só é um desejo da comunidade, que almeja ver suas crianças estudando, como também está presente em suas lutas reivindicatórias (CARVALHO, 1989). O ensino público representa um valor a ser perseguido e conquistado. Cabe-nos tentar romper essa linha velada de separação entre escola, família e comunidade; e isso só será possível quando esse espaço se refletir sobre novas bases de participação, onde os pais tenham assegurado seu direito à fala e não somente à escuta. “Antes da entrada, a avó do Hugo veio conversar comigo para saber qual a letra que eu estava ensinando - se era o ‘la-le-li-lo-lu’ - porque ele não soube explicar em casa. Ela gostaria de ajudálo já que ele “não sabe nada”. Pedi que não falasse isso diante de Hugo porque ele, com certeza, sabia muita coisa. Expliquei que estamos trabalhando todas as letras e que na Reunião de Pais a 1689 ser realizada no início de março, explicaria o processo de alfabetização. De um modo geral, as famílias que colocam os filhos no C.A. acreditam que eles nada sabem e que só então vão aprender alguma coisa. Algumas acham inclusive que seus filhos não vão conseguir grande coisa. Não é muito fácil lidar com isso. Em todas as reuniões tento refletir com eles sobre as infinitas possibilidades de aprendizagem e as atitudes mais adequadas de apoio aos filhos nessa fase. No entanto, o professor de município, a cada dia que passa, se percebe sozinho na tarefa de ‘ensinar’ a ler e escrever. As famílias pouco ou quase nunca participam. Pode parecer incrível mas há pais que nem sabem a série de seu filho que dirá o nome da professora. Há outros que a professora nem chega a conhecer ao longo do ano. E o trabalho precisa acontecer apesar disso. Para ser bem sincera muitos são os que não lêem e nem escrevem.” (Diário, 11/02/99) “Passeio à Rocinha. Um dia para ficar registrado na memória e jamais esquecer. As crianças estavam felicíssimas e os pais apareceram na escola para nos acompanhar. Saímos com as mães de Luana e Guilherme Ferreira. O pai de Felipe nos esperava no tal 99 que foi onde descemos do ônibus. Denise foi conosco. Passeamos pela rua principal e entramos em muitos becos, alguns mais bem cuidados, outros mais ‘largados’. Eram os pais que orientavam a direção que devíamos seguir. E as crianças, empolgadas, não paravam de me mostrar lugares, casas, detalhes... Eu confesso que fiquei cansada. Visitamos duas creches. Em uma delas fomos recebidas pela mãe de Camila que lá trabalhava. Era criança que não acabava mais. As pessoas, pelas ruas, ficavam admiradas de nos verem passeando. Vi onde outros pais trabalhavam, inclusive a mãe de Paloma. Acabamos chegando na casa do Ruan com meia hora de antecedência. Lá estavam a mãe dele e a mãe de Felipe que começaram a preparar os cachorros-quentes.” (Diário, 15/12/99) 5. REFLEXÕES FINAIS Entre idas e vindas procurei, com este trabalho, re-conhecer um pouco de minha trajetória pedagógica entendendo-a dentro de um contexto sócio-histórico permeado por ideologias e significações. Analisá-la implica percebê-la como dinâmica, em constante mutação, influenciada pelos diálogos travados nos embates do cotidiano, nos cursos de formação, na reelaboração de pressupostos teóricos e nas trocas com o outro, professores parceiros, crianças e famílias. Na visão de Magnani (1993, p. 30), “o professor se forma ou é deformado no processo de formação por outros e de outros. Todo processo de formação do professor é trabalho que produz uma proposta de ensino e os sujeitos e relações sociais nele envolvidos, enquanto objetivação de um projeto mutável e com suas utopias dado por outros ou concebidos pelos professores”. A história desse caminhar constitui-se na profissional que sou hoje; e que acaba por se revelar nas linhas e entrelinhas, nos ditos e não ditos de meu próprio diário. Uma escritura marcada pelo entendimento de que eu e minhas crianças somos sujeitos históricos, imersos em uma cultura da qual recebemos influências e a qual influenciamos; autores e responsáveis pela própria criação no refletir das experiências culturais que partilhamos. A escrita e a leitura do diário encontram-se 1690 com a leitura e a escrita das crianças, inscrevendo novos sentidos e palavras, reflexões e possibilidades de diálogos nessa construção. Larrosa (2003, p. 126-127) vê o professor como um maestro da leitura, e sublinha que: El maestro de lectura se hace responsable, primero, de las palabras que há recibido como un don de la lectura y que, a su vez, quiere dar a leer. Esa responsabilidad que se llama respeto, atención, delicadeza o cuidado, le exige desaparecer él mismo de las palabras que da a leer para darlas a leer en su máxima pureza. Y el maestro de lectura se hace responsable también de los nuevos lectores que deberán producir nuevas lecturas. Por eso también tiene que desaparecer en la lectura de lo que da a leer para que sea uma lectura nueva e imprevisible (p. 126-127). 6 – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 421p. CARVALHO, M. P. Escola e participação popular: um invisível cordão de isolamento. In: Cadernos de Pesquisa. São Paulo: Fundação Carlos Chagas, n. 70, agosto/1989. p. 65-73 FOISIL, Madeleine. A escritura do foro privado. In: ARIÈS, Philippe e CHARTIER, Roger. História da vida privada: da Renascença ao Século das Luzes. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 330-369 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989. 323p. GOODSON, Ivor F. Dar voz ao professor: as histórias de vida dos professores e o seu desenvolvimento profissional. In: NÓVOA, António. (Org.). Vidas de professores. Portugal: Porto, 1992. p. 63-77 KRAMER, Sonia. A formação do professor como leitor e construtor do saber. In: MOREIRA, Antonio Flavio B. 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