Leituras / Readings
O Eu e os Outros - 8
Me and the Others - 8
J. Pio Abreu
SEREI EU QUE FALO, OU SOU FALADO?
Fui falado, certamente, pela língua dos meus pais e
dos meus avós. Ainda hoje é ela que me molda os
pensamentos. Aprendi os nomes das coisas, das pessoas, de mim próprio, esse nome que já fora falado
mesmo antes que eu visse a luz. Aprendi a dizer os
movimentos através dos verbos que outros disseram.
E quando já estava bem adestrado em pronunciar,
pela minha voz, as palavras dos outros, também me
disseram (e eu repeti) que era eu quem falava.
Assim seja. Eu falava o que a minha mãe me dizia para
o meu pai, e falava o que o meu pai me dizia para a
minha mãe. Avós, tios e irmãos também falavam
através de mim para os outros. Uns a favor, outros
contra, e lá se iam assim marcando as distâncias e
proximidades desse jogo familiar. Essa bizarria de me
convencerem de que era eu quem falava, tinha um
preço: é que esse complexo espaço familiar cheio de
atracções e repulsões foi ficando gravado dentro de
mim.
Falar de um espaço será muito simples. Era mais uma
dança, pois que as posições recíprocas nem sempre
se mantinham. E eu no meio, a ver como paravam as
modas, mas entrando com eles na dança de aproximações e repulsas, dependendo de quem (e para
quem) falava através de mim, e do que dizia naquele
momento. Às vezes eu próprio me defendia de uns
com os argumentos dos outros. Só me dei conta do
trágico da situação quando os meus pais se divorciaram em guerra aberta.
Que fiz então? Fui ter com amigos e professores.
Também eles me falavam, mas tinham a vantagem da
sua fala não se dirigir, nem a favor, nem contra os que
me estavam próximos. Agarrei-me depois à leitura, o
que quer dizer que passei a ser falado pelos livros. Os
livros podiam ser escolhidos e, em princípio, não
tomavam parte no jogo de prós e contras em que se
transformara a minha vida. Até construí com eles
frases de belo efeito que esculpiam a admiração nos
olhos de quem me ouvia. Mas breve me dei conta que
eu falava igual a tantos outros: todos aqueles que
eram falados pelos mesmos livros.
Nessa altura, ser falado pelos livros tinha vantagens:
sempre podíamos discutir com os pais, que eram
mais falados pelos discursos da rádio, então uma
novidade caseira que preconizava o sacrifício individual a favor dos mitos eternos: Deus, Pátria e Família.
Nos livros havia liberdade, intriga, revolta, prazer,
romantismo, variedade. Nos livros e nos filmes, tudo
era mais próximo daquilo que sentíamos, dos nossos
desejos e esperanças, na vida diária de uns com os
outros, fora da família (nessa altura ainda não existiam as discotecas onde os jovens, mais que falados,
são agidos e sentidos pela mesma música).
Depois, as conversas de futuro: projectos comuns e
projectos amorosos. Longas conversas lado a lado ou
na estranha proximidade do telefone. Aí já não sei
quem era falado por quem: eu ou o outro (a outra).
Talvez ambos: construíamos, finalmente, a nossa fala,
falados que éramos um pelo outro. Às vezes, porém,
estávamos a viver dentro de um filme ou de um
romance lido por ambos. Talvez seja essa a fala que
me alimentou e construiu durante muitos anos, embora não possa garantir que a tenha construído sozinho. Foi uma construção colectiva, onde cada um de
nós era o eixo das influências recíprocas.
Hoje tudo fala à minha volta. E é engraçado que
todos falam mais ou menos o mesmo, com pequenas
variações. Mais engraçado ainda, o discurso vai
mudando de semana a semana, até ficar vazio. Parece
o movimento ziguezagueante de um cardume de
peixes perdido no mar. Como se não houvesse
memória, existe hoje um mundo de falas que
ninguém parece ouvir. De modo que já não sei se
alguém é falado, nem quem fala o que se fala. Talvez
sejam os computadores, não apenas a falar-nos (ou
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antes, a sabotarem a nossa fala), mas também a actuar-nos em
favor de benefícios ocultos.
No meio disto ensurdeço. Mas ainda falo. Talvez, finalmente, eu
fale. Recorro à minha memória, e falo. Falo, grito para os montes.
Espero que algum dia se oiça bem claro o eco da minha fala
genuína:“NÃO ME DIGAM MAIS NADA, NÃO ME DESTRUAM,
DEIXEM-ME SER O QUE ERA!”...
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VOLUME VII Nº6 NOVEMBRO/DEZEMBRO 2005
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